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A vida de Santos Dumont no

Plano Espiritual

Gilson Teixeira Freire

pelo espírito
Adamastor

Outubro d€ 2006
Dedicado àqueles que renegaram
a bênção da vida.
Agradecimentos

As reuniões no Grupo de Fraternidade Espírita Irmão


Vítor, desenvolvidas no decurso dos três anos que despendi
para escrever esta obra foram o sustentáculo seguro que me
permitiram um ambiente de sintonias propícias ao seu
desenvolvimento. Por isso, devo agradecer aos meus
companheiros de trabalho que não me faltaram com o
apoio incansável em todas as horas de atividades.
Especialmente naqueles instantes em que a dúvida
assaltava-me, ferindo de insegurança minha sensibilidade
mediúnica, eles souberam proporcionar-me a adesão de
confiança de que necessitava. Foram tantos que não posso
aqui enumerá- los, no entanto a vida registrou suas
imprescindíveis contribuições e saberá recompensá-los.
Devo especial gratidão ainda a Carlos José Horta e Cléa de
Paula Santos, cujas palavras de estímulo e irrestrito apoio
foram imprescindíveis para que os valores do bom ânimo
jamais se esvaíssem em mim, e a Sergito Cavalcanti que,
aquiescendo com veemência à sua imediata publicação,
cuidou de lhe dar corpo no plano
físico.
Meu reconhecimento se direciona também para Jarbas
Franco de Paula, Lúcia de Fátima Marques, Vanda Zanete
e Antônio Russi que colaboraram na indispensável revisão
final do texto e a Noemia Resende Teixeira que se
empenhou com extraordinário
zelo no trabalho de editoração, valorizando
sobremodo a obra.
Desejo ainda registrar emocionado que, sem
o respaldo indispensável de meus entes
queridos, provendo-me com o mais genuíno amor,
este trabalho não teria sido possível. Tributo que me
chegava, não somente em forma do afetuoso acalento
vibracional, como da tolerância pelas muitas horas
roubadas do precioso e indispensável convívio
familiar. E se me sentisse no direito de dedicá-lo a
alguém, sem sombras de dúvidas, o consagraria a
minha esposa dileta, Sônia Maria, sobejado pela sua
capacidade de amar, tolerar e servir sem
exigências.
E, finalmente, agradeço a Deus por me haver dado
condições de contribuir, um pouco que seja, com a
crença na imortalidade, corroborando a certeza de
que o espírito não morre jamais, crença que é o mais
valioso consolo que podemos ter em vida, não
importando a religião que
professemos.

Gilson Teixeira Freire


Sumário

Esclarecimentos necessários, 11 A História de Um ícaro, 17

1 - Em Portais do Vale, 23

2 - Ovoidização, 27

3 - Heitor, o Novo Amigo, 34

4 - Rumo às Cavernas, 43

5 - 0 Socorro no Tempo Devido, 52

6 - Fisiopatologia da Autodestruição, 58

7 - No Departamento de Embrioterapia, 71

8 - Na Câmara dos Ovóides, 81

9 - Catherine Lyot, 88

10 - A Bênção do Recomeço, 98

11 - Dias Atribulados, 106

12 - Tempestade Vibracional, 112

13 - Doloroso Transe, 117

14 - Um Homem Sem Memória, 133

15 - Nas Éstradas do Passado, 150

16 - Aventuras Inusitadas, 162

17 - Dias Gloriosos, 169

18 - Momentos Históricos, 177

19 - Valiosa Ajuda, 189

20 - Fisiopatologia da Arrogância, 197

21 - Depressão: Tempo de Colheita no Campo do Espírito, 212

ícaro Redimido - 9
22 - Em Busca de Soluções, 226

23 - Nas Penumbras da Morte, 239

24 - Confissões da Intimidade, 250

25 - Lições Para a Eternidade, 262

26 - Sombras de Um Homem, 277

27 - Contenda Inútil, 285

28- 0 Senhor dos Canhões, 301

29- 0 Padre dos Inventos, 314

30 - Sanando as Chagas do Passado, 335

31 - A força do Perdão, 354

32 - Enfim, o Trabalho, 361

33 - Nos Bastidores da Guerra, 375

34 - Um Pedestal Vazio, 393

35 - Quando o Passado Socorre o Presente, 402

36 - Reencontro Memorável, 411

37 - Em Um Campo de Luzes, 415

38 - Nas Teias do Destino, 424

39 - De Volta à Colônia, 431

40 - O Canhão da Paz, 437 Glossário, 444

Mensagem de Santos Dumont, 449

10 - Gilson T. Freire /Adamastor


Esclarecimentos
Necessários

Apresento ao leitor uma obra que não pode ser considerada simplesmente uma
ficção. É fruto de uma estranha parceria com uma inteligência livre da matéria. Sei
que lhe dar tão exótica origem coloca- a no rol das literaturas questionadas quanto
à sua veracidade e levanta a suspeita de tratar-se apenas de um produto da
imaginação aguçada de alguém capaz de se conceber dominado por forças
estranhas, conduzindo o relato dos escritos aqui apresentados. Por isso ela está
estritamente endereçada àquele que aceita a possibilidade da existência da vida em
ura outro plano que não o da carne e admite a viabilidade de trocas de informações
através das correntes de pensamentos que trafegam entre os dois mundos.
Este livro, no entanto, não foi desenvolvido pelas vias da psicografia mecânica
na qual o medianeiro pouco interfere em seu trabalho, mas através de um
envolvimento ativo e direto de inspiração consciente. Escrevi-o bastante cônscio
de mim mesmo e com clara percepção das idéias que entretecia na mente. Apenas
as sentia brotarem com uma profusão inusitadamente rápida e com uma clareza tão
cristalina que não me deixavam a mínima dúvida quanto à sua origem. Imagens
nítidas se formavam em minha tela mental sem o mínimo esforço imaginativo e eu
apenas cuidava de lhes dar corpo, vestindo-as com minhas próprias palavras,
enquanto me sentia enlevado e envolvido por um halo de vibrações de difícil
definição. O tempo parecia-me estacionado, ainda que a sucessão das idéias fosse
muito superior à minha reduzida capacidade de composição e habilidade de
escrita. Embora já ciente do corpo do trabalho, não tinha a menor noção do que
iria escrever, até o momento em que penetrava naquele mágico fluxo de idéias. A
presença nítida de alguém que não pertence a este plano de vida era evidente e
incontestável e sua influência bastante poderosa para que me curvasse diante dele
com sentimento de simpatia, admiração e respeito. Eu o seguia em pensamento,

ícaro Redimido • 1 1
em pleno comando de minhas funções orgânicas, mesmo sentindo, naquele
inusitado clima de enlevo, a sensação de estar flutuando ou como se meu corpo
estivesse leve e estendido na posição horizontal, atado apenas pelo cérebro.
A vivência dos fatos relatados era de tamanha magnitude que muitas vezes me
atirava em lágrimas por senti-los com surpreendente realidade, como se estivesse
presente neles, tal a nitidez com que os quadros se formavam em minha mente.
Essas sensações são as únicas provas, ainda que restritas ao meu próprio
testemunho, de que lidei com forças fora da normalidade e além de mim mesmo.
Outras comprovações para certificar-lhes que os relatos desta obra são verídicos
não posso apresentar, a não ser minha própria sinceridade. Explicações diferentes,
tampouco seria capaz de lhes dar, embora os descrentes do espírito se apressem em
recorrer aos mistérios do inconsciente para travestir tais fenômenos de um racional
ismo coerente com suas doutrinas materialistas, crenças que já não podem nem
mesmo se sustentar diante da imponderabilidade da própria matéria.
Durante um ano, antes de iniciar este trabalho, fui invadido, no momento do
sono, por uma profusão de sonhos muito reais e que entreteciam todo o enredo da
história que iria escrever mais tarde. No entanto eu não estava ciente do fato e não
podia compreender a razão daquilo. Passava os dias acompanhado por aquelas
imagens inquietantes e guardava a estranha sensação de trazer a mente invadida por
pensamentos que não me pertenciam, pressionando-me as paredes do cérebro para
evadir-se. De certa forma me perturbavam, dificultando-me o trabalho diurno,
causando-me uma íntima inquietude e a inexplicável impressão de não estar
completamente desperto e integrado ao nosso mundo. Hoje compreendo que se
tratava realmente de uma gestação de idéias, um preparo necessário para o perfeito
desenvolvimento da obra. Embora incômodas, exerciam uma forma de pressão
como se exigissem para serem escritas. Essa sensação desaparecia por completo no
instante em que as transferia para o papel, proporcionando-me agradável alívio.
Enquanto o enredo se estendia, minhas noites continuaram sendo enriquecidas pelos
mesmos sonhos vividos e ricos de detalhes das imagens e dos ambientes que depois
se desdobravam na dissertação da história narrada. Por isso, além de escrevê-la, eu
a vivi intensamente ao longo dos três anos, tempo consumido em sua composição.
Uma entidade que não pertence a este mundo esteve presente junto a mim,
inspirando-me no seu relato. Responde pelo nome de Adamastor e

12 - Gilson T. Freire / Adamastor


sentia a força de sua presença, impondo-me o seu pensamento e dirigindo
ativamente o trabalho. Por vezes podia acompanhar frase por frase a sua
elaboração mental, para me perder logo em seguida numa avalanche de idéias e
imagens qual torrente de água cristalina a banhar-me a alma com impetuosidade e
ternura ao mesmo tempo. Pedindo-me paciência, falava- me em palavras mudas,
impressas na tela mental: — “Escuta-me não com teus ouvidos, mas com a tua alma.
Guarda na memória as imagens que vês e as emoções que experimentas. Depois
escreve-as com calma, sem tanta pressa e não queiras apreender tudo que te exprime a
idéia evasiva. No final tudo se acomodará. Não temas e nada se perderá". No entanto,
não pude evitar que minhas próprias interpretações interferissem no processo e que
minha parca condição intelectual maculasse a clareza das idéias percebidas por
esta via intuitiva de acesso ao mundo do imponderável. Certamente que não pude
vesti-las com a mesma clareza com que as anotava na tela mental e, por isso,
guardo a certeza de não ter sido o suficientemente assertivo para evitar os erros
que assumo como de minha inteira e única responsabilidade.
Muitos nomes e termos inteiramente estranhos ao meu ambiente psíquico eram
percebidos com natural insegurança, exigindo-me posterior e cuidadoso estudo a
fim de conferir-lhes a exatidão, impondo à captação mediúnica um perfeito
controle racional, evitando-se assim os enganos naturais decorrentes de minha
insegurança e da rapidez com que se imprimiam em minha mente. Contudo
surpreendia-me, atestando que a maioria deles correspondia exatamente à forma
com a qual se me apresentaram. Entretanto, muitos não se acham registrados ou
pelos menos não os pude encontrar nas biografias ao meu alcance, de modo que
admito a possibilidade de erros em decorrência da exótica origem destes dados e da
exigüidade de minha visão metapsíquica. Ainda que um dos objetivos deste
trabalho seja a aproximação dos fatos desta e da outra vida, a precisão de seus
informes, no que diz respeito à exatidão da grafia, não foi, em momento algum, o
seu escopo principal. Seu enredo e seu personagem serviram apenas como um
propósito secundário para a veiculação da verdadeira mensagem da obra, que
objetiva engrandecer- nos para a vida real do espírito, incentivando nossa melhoria
moral, ensinando-nos a valorizar a vida e a vê-la como um meio indispensável para
a conquista dos tesouros da eternidade.
Sei que o protagonista destes relatos desperta especial interesse para a história
de nossa nação por retratar um de seus mais ilustres personagens, e muitos
questionamentos serão suscitados perante as revelações aqui

ícaro Redimido • 13
apresentadas, por parecer desmerecê-lo das glórias e feitos que lhe atribuímos. Creio
que a intenção da espiritualidade superior não é diminuir o valor de quem quer que
seja, mas apenas nos revelar fatos que possam nos instruir e nos tornar mais felizes.
Acredito ainda que se a vida de todos os grandes homens da história universal,
excetuando-se o Cristo e seus santos mensageiros, fosse-nos apresentada sob a ótica
do espírito, falhas de caráter e fraquezas incontestáveis lhes seriam imputadas, não
sendo o nosso herói em particular uma exceção à regra. Nossos ídolos, quase
sempre, encarnam nossa pretensão de hegemonia, representam nossos mais genuínos
anseios de perfeição e realizam nossos sonhos de audácia, por isso,
costumeiramente, vê-los desqualificados pela realidade, ofende-nos os próprios
brios.
Ao perceber o alcance da obra e sua possível relevância para a nossa história,
senti-me incapaz de desenvolvê-la com a envergadura de que se fazia necessária.
Porém não me foi dada a opção de negar o trabalho e tive que executá-lo a despeito
de minha insuficiência, pois não guardo dotes de literato, não conheço o idioma o
bastante para evitar grandes erros e muito menos trago cabedal de intelectualismo
satisfatório para ser aquele que a encabeçasse no mundo físico. Senti-me
fortemente conduzido e tenho certeza de que a espiritualidade desprendeu enormes
esforços na superação dos óbices que minha ignorância lhe contrapunha, por isso
espero contar com a compreensão daqueles que, conhecendo minhas parcas
possibilidades e inquestionáveis limitações, assistem-me projetado em tal patamar
de realização, ainda mais por tratar-se de assunto distanciado do meu âmbito de
atuação profissional.
As notas foram todas elas colocadas posteriormente a fim de auxiliar o leitor e
pode-se considerá-las como de minha própria autoria. Algumas, contudo,
demonstravam-me nitidamente tratarem-se de sugestões do autor espiritual e as
registrei como tais. Um glossário foi inserido no final do livro, com a intenção
ainda de se facilitar a revisão de neologismos próprios do texto.
As lições que se depreendem de seu enredo, como as considerações sobre a
ovoidização, a energética do psiquismo e as ponderações sobre a doença depressiva
do homem podem ser julgadas inéditas e questionadas quanto ao seu real valor
doutrinário, se para alguns parecerem não guardar perfeita identidade com as
revelações que até então nos foram apresentadas como integrantes dos preceitos
espíritas. Contudo, reservando-me o direito de co-autor da obra, deixo claro que se
trata de opiniões pessoais, tanto minhas quanto da entidade que as ditou, pois se
lhes dei guarida é porque

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se coadunaram com o meu próprio modo de pensar e conceber os ensinamentos
espíritas que me bafejam a razão. Embora eu situe suas origens fora de mim
mesmo, este não deve ser o motivo para encará-las como verdades absolutas e
inquestionáveis, pois todos, encarnados ou não, somos seres ainda em crescimento
e estamos sujeitos aos mesmos equívocos naturais da jornada do conhecimento.
Para isso ressalto as palavras de Allan Kardec, as quais suscito para a nossa
reflexão: “um dos primeiros resultados que colhi das minhas observações foi que os
Espíritos, nada sendo mais do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena
sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que dispunham se circunscrevia ao
grau de adiantamento que haviam alcançado e que a opinião deles só tinha o valor de
uma opinião pessoal. Reconhecida desde o princípio, esta verdade me preservou do
grave escolho de crer na infalibilidade dos Espíritos e me impediu de formular teorias
prematuras, tendo por base o que fora dito por um ou alguns deles”1. Portanto a razão
plena deve nortear-nos, não somente na leitura desta obra, como servir também de
peremptório juízo crítico para o julgamento de todo e qualquer corpo de idéias que
se nos apresente como oriundo do insólito mundo dos Espíritos.
Desta forma, acreditar na veracidade dos fatos aqui narrados, fica por conta da
capacidade de cada um em conceber a vida e seu telefinalismo. Aqueles que crêem
que tudo termina nas portas do túmulo, certamente passarão adiante, sem a mera
curiosidade de questionar o sentido da existência e o significado de obras de tão
aparente exótica origem. Outros, contudo, que acreditam na imortalidade da alma,
poderão aceitar a história como um drama real, vivido no Plano do Espírito. No
entanto, não importa que a encarem como mera ficção, se dela for possível extrair
subsídios aproveitáveis em nossa melhoria moral. Nosso esforço terá encontrado a
sua recompensa. Eis o que interessa e seguramente este é o escopo maior de todo o
nosso empenho, meu e de meus companheiros, deste e do outro mundo.

Gilson Teixeira Freire


Belo Horizonte, Outubro de 2000

1 Do livro Obras Póstumas, segunda parte, “a minha primeira iniciação no Espiritismo” - 1 7 a


edição, FEB.

ícaro Redimido - 15
ícaro e Dédalo
Pintura de Cario Saraceni Museu de
Capodimonte, Nápoles, Itália
A História de Um ícaro

C onta-nos o mito dos antigos gregos que ícaro, filho de Dédalo,


ousou fugir dos labirintos de Creta, servindo-se de asas construídas
com penas, fixadas com cera. Conseguindo voar até as alturas,
aproximou-se ícaro tão demasiado do sol que seu calor derreteu a cera,
fazendo-o precipitar-se no mar Egeu. Este foi o castigo para aquele que,
desafiando as leis da natureza, intencionou voar mais alto que os pássaros.
Sua lenda ficou na memória da História como sinônimo daquele que é
vítima de ambições excessivamente elevadas, além das possibilidades do
homem comum. ícaro personalizou ainda, numa época, o sonho humano
de voar como as aves.
Homens eminentes, no desempenho de missões no mundo, representam
essa figura mitológica quando, deixando-se conduzir pelo orgulho
desmedido, alçam vôos tão altos na atmosfera das vaidades humanas que
as luzes da altivez lhes abrasam as frágeis asas, precipitando-os em grandes
quedas morais. Mas é preciso considerar que ícaro representa não somente
missionários falidos, porém o anseio de todo espírito humano, que não
basta a si mesmo e está sempre alimentando sonhos de grandeza que lhe
façam enaltecer o personalismo enfermiço. Para estes é que Jesus asseverou
que “todo aquele que se exaltar será humilhado”2, pois da arrogância
passarão à perda dos valores que lhes integram a personalidade, em
situação exatamente oposta àquela orgulhosamente pretendida. Estes
movimentos fazem parte da individualidade humana que ainda não conhece
o equilíbrio e não sabe situar-se na posição de humildade que nos
recomendou o Evangelho: “aquele que entre vós todos é o menor, esse
é grande. ”3
O inventor, personagem desta história, foi um destes ícaros modernos
que, escondendo por trás de sua compleição mirrada e frágil uma alma
altaneira e audaz, aspirou à maior das glórias humanas ao desafiar as leis
da gravidade. Desejou um dia tornar-se uma grande personalidade e
inscrever seu nome nos anais da história, como aquele que realizou o
maior sonho do homem: voar como os pássaros. Justo imaginarmos que
tal encargo, feito sobretudo de soberbia, poderia terminar em tragédia.
O ícaro de nossa narração, por estar envolvido em elevada atmosfera

2 Lucas 14:11
3 Lucas 9:48

ícaro Redimido • 17
espiritual, julgou ter a genialidade dos grandes sábios, sendo que, na verdade,
apenas copiava o que lhe ditavam à intuição nobres entidades do invisível, desejosas
de auxiliar o progresso humano. Acreditando que unicamente a sua inteligência
sustinha suas frágeis máquinas, imaginou- se incapaz de falir, enquanto que o
mundo espiritual trabalhava ativamente para instruí-lo e orientá-lo, a fim de que
seus arriscados projetos não se precipitassem em graves fracassos. Os jornais o
focalizavam como o herói do novo século e, apesar de sua minguada aparência, era
tido como um grande homem, aquele que competia com as águias e ousava desafiar
as grandes altitudes. O mundo espiritual, ao programar a tarefa necessária ao
progresso humano, sabia dos riscos que tal missão acarretaria para aqueles que se
empenhassem em sua execução. Era preciso uma alma muito humilde para realizá-
la com a resistência precisa, a ponto de não se deixar abrasar pelas ostentações
humanas. Ao mesmo tempo, o malfadado desejo de glórias precisava ser utilizado
como um pretexto para o bom êxito da incumbência, pois a alma, que ainda não
atingiu a maioridade, não sabe se mover sem que a jactância lhe dirija o
personalismo rumo ao enaltecimento doentio. A empreitada era delicada e difícil,
mas era preciso correr os riscos em prol das necessidades do progresso. Para os
escolhidos que iriam voar tão alto e experimentar o sabor das maiores vaidades
humanas, o perigo da queda moral era uma ameaça altamente provável, superando
certamente a possibilidade de precipitarem-se no solo.
O inventor não estava livre dessas ameaças. Conquistou glórias momentâneas
no seio dos povos, mas se viu um invencioneiro ao se dar conta de que outros
homens, em outras terras, também ouviram e responderam aos apelos do mundo
espiritual, que tinha pressa na execução de seus projetos, e semeava idéias em
qualquer campo em que pudessem florescer. E estes irmãos disputavam-lhe os
mesmos méritos pela primazia do fabuloso invento, como patrimônio exclusivo de
suas vaidades. Alimentara a falsa ilusão de ter possuído a maior das genialidades e
ter sido o único mortal a vencer as alturas. Mas suas glórias eram falsas tanto
quanto eram falsos seus inventos. Com desespero, descobriu-se tão falível quanto
qualquer outro mortal. Viu seu nome ser preterido na galeria da História por outros
que lhe requisitaram o primado do eloqüente feito. Medalhas, títulos, monumentos
e honras caíram, desfeitos de um dia para o outro, tais quais castelos construídos
nas movediças areias das ilusões egóicas. Não bastaram seus feitos por demais
insignes para uma alma em curso na Terra. Ele precisava dessa primazia para
alimentar o seu orgulho, que já experimentara o sabor dos louros humanos. Depois

18 - Gilson T. Freire / Adamastor


a guerra, sim, a guerra com toda a sua crueldade, insistia no uso da máquina que
julgava sua, para protagonizar a destruição, contrariando as suas mais sinceras
pretensões de paz. O aeroplano, aquele que teimava em considerar seu filho dileto,
não podia prestar-se a objetivos tão vis, e sua consciência, martirizada pelo passado
de culpas, feria-lhe ainda mais a alma dorida, aprofundando-o no charco a que se
atirara.
Seu coração vazio de espiritualismo não encontrou consolo no respeito e no
carinho que o seu próprio povo lhe dedicava. Este não se importou com o fato de
que outros lhe houvessem desqualificado do título histórico de pai da maior
invenção de todos os tempos, fingiu não ouvir e teimou em assim considerá-lo,
alçando-o aos píncaros da merecida glória. Seu nome foi enaltecido e seus feitos
valorizados acima de seus reais méritos. Mas não bastou. O louvor que lhe
consagrava sua singela gente, distante das realidades do mundo de então, não lhe
era galardão suficiente. A desilusão se instalara em seu coração e ser herói apenas
em sua restrita nação não lhe bastava para acalentar a alma doente e ferida,
traumatizada pela queda das grandes altitudes do espírito. O drama estava armado
e acreditara não ter como evadir-se dele, a não ser através do ato ignominioso:
fugir e não mais viver... Pondo fim ao curso da própria vida, o nosso ícaro se
precipitou no abismo das maiores dores que o ser humano pode colher. Eis a
história urdida nestes singelos relatos. Um romance da vida real escrito por quem
o acompanhou de perto como nenhum outro.
Revelando as fraquezas e as virtudes de um herói decaído, suas lições visam,
não a diminuir sua imagem na memória de um povo e importante para o sustento
de uma nação, porém à nossa educação espiritual, ensinando-nos que honras e
glórias precisam do equilíbrio da simplicidade e da humildade a fim de não se
converterem em prejuízos evolutivos para aqueles que as protagonizam. E
expondo-nos os bastidores da notoriedade, deixa-nos entrever que o gênio é
somente alguém que se capacitou pelo próprio esforço, a se transformar em um
canal receptivo das correntes intuitivas que trafegam entre os dois planos da vida.
A doença depressiva e seu cortejo de males encontram aqui uma rápida, porém
profunda reflexão sobre as suas origens, enriquecendo- nos com acervo de
conhecimentos que nos auxiliam a entendê-la sob diferenciados aspectos,
alicerçados nas expressões do espírito eterno, visando sobretudo ao
estabelecimento de medidas seguras para a sua prevenção.
A guerra, fonte de ruínas e de grandes dramas, o maior de todos os males que o
homem terreno pode empreender, é também abordada nesta

ícaro Redimido -19


obra em um inusitado ângulo, sob a ótica do espírito. As lições daqueles que a
viveram sob a dura realidade do lado de cá são preciosos ensinamentos que nos
induzem a adotar a mansuetude como norma indispensável de relacionamento em
toda a extensão da vida planetária e a envidar todos os esforços para se deter a
jornada de sofrimentos e destruições dos grandes conflitos fratricidas entres os
povos.
Em síntese, este é o resumo da obra que temos a alegria de apresentar. Mais um
romance lavrado pela influência direta dos espíritos dentre tantos já escritos se
fazia realmente necessário? Certamente que a literatura espírita hoje disponível é
profícua o bastante para solver toda a necessidade da alma humana, já de muito
carcomida pelo cientificismo materialista diante da insofismável realidade do
espírito. Não se necessita, é verdade, de mais novidades para chamar-lhe a atenção,
nem de novos fatos que comprovem a veracidade do mundo do Além. Por isto, esta
exposição não traz a pretensão de se juntar à plêiade de literatos do espírito, pois
seu relato, à guisa de romance, apenas dá cumprimento às determinações do
Mundo Espiritual que visam, sobretudo, mostrar o verdadeiro roteiro dos
acontecimentos que os encarnados podem apreciar somente em um de seus lados.
Seu valor não está somente em nos mostrar que a vida continua, apesar de todas as
dúvidas do homem terreno, mas em completar a História que na verdade se realiza
em dois planos de vida e em dois momentos contíguos. Aproximando o curso dos
fatos desta e da outra vida, unindo causas e efeitos, entretece a verdadeira sucessão
da História, em sua lógica impreterível, quando vista sob o prisma do espírito. E,
assim, o homem em trânsito no planeta não pode mais ignorar que a vida se
constrói em duas etapas complementares de experiências, sempre interligadas pela
continuidade inquestionável da linha da evolução.
Sem dúvida muitos duvidarão dos fatos aqui narrados, por se acharem ainda
presos à ilusão da matéria; entretanto lhes pedimos apenas que os analisem com os
olhos da alma, buscando retirar da letra ensinamentos imprescindíveis para a
reforma moral que a vida nos suscita. Conhecendo de perto o drama deste ícaro,
certamente aprenderemos a valorizar a existência e a equilibrar os vôos do nosso
espírito, para que, cientes das ameaças das grandes altitudes do orgulho e da
vaidade desmedida, não nos deixemos resvalar para o fosso das ignomínias
humanas. Adotando a humildade como norma do viver, aprenderemos a voar até
onde nos podem suportar as frágeis asas da alma ainda incapazes de nos suster
sobre os imensos abismos que nos separam do Infinito. Compreenderemos
definitivamente que as luminares idéias que promovem o progresso humano

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não são meras e casuais criações de homens de gênio, mas, sim, realizações que
obedecem a planos cuidadosamente idealizados pelo mundo espiritual, fonte de
toda inspiração humana. E, finalmente, que a História não caminha ao léu e a
evolução não se faz ao sabor do acaso, mas se realizam dentro de um edifício
conceptual já pronto, obedecendo a diretrizes divinas cujas extensões não podemos
ainda vislumbrar.
Embora apenas dois nomes se responsabilizem pelo desenvolvimento destes
relatos, convém esclarecer que ele é fruto de um esforço de equipe, como tudo que
se realiza na vida, sobretudo em nossa esfera. Muitos ajudaram, em ambos os lados
da existência e, embora perdidos no anonimato, suas contribuições foram
registradas pela vida, que lhes recompensará o empenho. O seu autor principal,
Adamastor, embora desconhecido do meio espírita, mostrará os seus méritos pelo
seu trabalho e, com discrição, dispensa outras apresentações.
Agradeçamos ao esforço de todos por esta contribuição à História, mesmo que
os homens da Terra teimem em não lhe reconhecer a inquestionável veracidade. E
agradeçamos, sobretudo, ao Senhor que nos permite a oportunidade do tempo para
trabalharmos em favor de nós mesmos, engrandecendo o espírito na jornada rumo à
Eternidade.
Que o Senhor nos ampare sempre,

Bezerra de Menezes
Belo Horizonte, setembro de 2000

ícaro Redimido - 21
* Em Portais do Vale

“Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir os


sábios; e Deus escolheu as coisas fracas do mundo para confundir
os fortes; e Deus escolheu as coisas ignóbeis do mundo, e as
desprezadas, e as que não são, para reduzir a nada as que são; para
que nenhum mortal se vanglorie na
presença de Deus. ” Paulo -1 Coríntios, 1:27-29

pós anos de sofrimentos incoercíveis, finalmente Alberto lançara


nos espaços infindos um brado de socorro em sussurrada e rouca
voz. Sua mente despertara do longo e profundo sono de
inconsciência em que se arrojara. Conseguira, enfim, elaborar um fio
contínuo de pensamento e proferir uma pequena e singela prece, dirigida
com profunda sinceridade de sentimentos às forças superiores. Sua oração
ecoara pela imensidão silenciosa das escuras e frias cavernas do Vale
qual clamor surdo, sufocado de agonia e piedosa súplica. Esta fora ouvida
pelos planos elevados da vida, os quais não menosprezam as mínimas
oportunidades de auxílio àquele que pede com lisura.
— Mãe Santíssima, socorre-me, não posso respirar! Mãe Santíssima,
ouve-me, por amor de Seu Filho!
E nada mais podia aquela triste alma em frangalhos suplicar, pois seu
pensamento fragmentado mal se dava conta de sua própria condição.
Permanecera detido em profundos pesadelos de tormentos e dores
inenarráveis, mas naquele dia o socorro chegaria através de entidades
amigas, enviadas de regiões superiores.
Eu fazia então parte da equipe de atendimento aos dementados que

ícaro Redimido - 23
despertavam no Vale dos Suicidas. Já de alguns anos dedicava-me a esta tarefa,
pois, por minha vez, havia sido também socorrido naquele mesmo local e ali
permanecia em trabalho de minha recomposição pelas pesadas dívidas contraídas
para com a vida. Sim, forçoso é declarar que eu fazia parte daquelas tristes
paisagens, porque fora também um suicida. Por tempo prolongado estive
inconsciente naquele Vale de amarguras, um dos mais pesarosos e lúgubres lugares
que a mente do homem comum pode imaginar existir. Perdera, de certa forma, os
laços familiares que me entretinham na crosta pelo elevado tempo despendido na
recuperação de mim mesmo, e a maioria de meus antigos entes queridos seguia em
avançados passos na jornada evolutiva, envolvidos em conquistas outras,
distanciadas de minhas necessidades. Eu me retive na retaguarda, por obra de meus
próprios desatinos e não me sentia mais encorajado a voltar ao seio da família
dileta, exigindo tolerância para as contingências de minha penúria espiritual.
Naturalmente que um coração de mãe jamais esquece um filho, e de minha
amorosa genitora recebia sempre apelos de afetividade que me sustentavam no
espinhoso caminho que seguira. Recebera dela todo tipo de socorro e carinho e a
ela devo minha condição atual. Mas, por força das circunstâncias, permaneci como
trabalhador do Vale, vendo nisso uma maneira de saldar parte de meus pesados
débitos para com a vida. Sim, eu era um caravaneiro do Vale das Trevas e
orgulhava-me de não me contar mais entre as fileiras dos seus degenerados. Porém,
não convém contar a minha história particular que nada traz de surpreendente aos
homens da Terra. Devo relatar-lhes o enredo de outro homem, daquele a quem
neste instante iniciávamos o socorro. Por que a sua história? Porque aprendi a amá-
lo e me afeiçoei ao seu coração por razões que ainda ignoro. Ademais, conheci sua
vida como nenhum outro, acompanhei-a com toda a sua dura realidade e tenho a
sua devida autorização para discorrer sobre os seus dramas. Outro enredo também
não lhes poderia entretecer, pois não trago dotes de intelectualismo ou aptidões
literárias para deliciá-los ou instruí-los com outros contos da vida do lado de cá.
O Vale dos Suicidas já é conhecido daqueles que têm acesso às informações do
Mundo Espiritual. Dele trataram autores habilitados na arte da escrita, de modo
que poucas informações posso acrescentar. Ali é o triste lugar em que se reúnem
aqueles que são vítimas de si mesmos e lutam desesperadamente para a
recuperação de suas consciências perdidas, desfeitas no desbaratado ato de
destruírem a si próprios. Vale de lágrimas e dores das mais pungentes da alma
desencarnada é também local onde se pode presenciar os mais abnegados esforços
daqueles que

24 - Gilson T. Freire / Adamastor


sabem amar e socorrer em nome do Altíssimo. Foram almas deste quilate que
fundaram, ainda nos tempos do Brasil colonial, a cidade de Portais do Vale.
Quando os limites da nação brasileira se delinearam na geografia política da
Terra, também nos espaços espirituais que circundam o globo desenharam-se as
suas fronteiras culturais e lingüísticas. Notoriamente é preciso considerar que, no
Mundo Espiritual limítrofe à crosta planetária, os povos se distribuem em nações
semelhantes às da Terra e continuam jungidos pelas mesmas afinidades de
costumes e idiomas que os unem durante o estágio na carne, delimitando uma
região de atuação espiritual denominada “Espaço das Nações”. Aí estagia, além-
túmulo, a grande massa de desencarnados à espera do momento precioso de
retorno à carne. Somente em planos superiores, habitados por espíritos que já
ultrapassaram as necessidades de comunicação verbal e as distinções culturais, é
que as fronteiras das nações se rompem, dando lugar a uma só comunidade.
Estamos, no entanto, muito distanciados dessas luminares esferas, pois ainda nos
apresentamos, relacionamos e nos comunicamos da mesma forma como o
fazíamos na Terra.
Ao mesmo tempo em que se formava a nação brasileira nos espaços espirituais,
desenhavam-se também as suas regiões de sombras, ocupadas por aqueles que
insistem no exercício da maldade sem lindes, a fim de colherem as dores e os
lamentos semeados. Nesta época estabeleceu-se o Vale dos Suicidas como a região
que congrega almas em sofrimentos expiatórios, originários da louca desventura
da autodestruição. A matéria extrafísica é entretecida de substância muito mais
maleável às emanações mentais dos seres que a habitam, e paulatinamente o
ambiente se amolda às suas características psíquicas predominantes. Por isso o
Vale dos Suicidas, adaptando-se progressivamente, formou precipícios, charcos e
cavernas em perfeita correspondência às emissões mentais e às necessidades de
seus protagonistas. É da Lei que o homem colha exatamente o que semeia, pois do
contrário o progresso não se faria, se a vida lhe conferisse sempre confortos
imerecidos. Todas as nações do Mundo dos Espíritos têm, assim, os seus Vales de
dores em tudo similares ao nosso.
A maioria dos exilados do Vale ali permanece por décadas, aguardando a
bênção da reencarnação, comumente a única porta de acesso para a libertação de
suas aflições. Muitos dormem na letargia profunda, enquanto outros vivenciam
pesadelos intermináveis eangustiosos. Poucos se sentem vivos, mas não
compreendem seus tormentos, guardando no organismo perispiritual as dores dos
últimos instantes de vida e os estigmas das agressões que infligiram ao próprio
corpo. Suas agonias são inenarráveis,

ícaro Redimido - 25
de modo que aqui encontramos os maiores dramas humanos e os mais pungentes
tormentos a que pode se resvalar o espírito em trânsito na evolução. Grande e
imenso abismo de dores, onde aquele que caiu na desgraça, vítima de si mesmo,
lamenta e chora a maior das desditas humanas: o haver negado a vida, o dom mais
precioso que herdamos do Criador.
Abnegados monges portugueses, desencarnados no início da formação do
Vale dos Suicidas, imbuídos do sagrado propósito de amparar as infelizes almas
que se ajuntavam nestas paragens de dores, fundaram Portais do Vale, uma
colônia dedicada à tarefa de socorro, sob a égide do Cordeiro. Seus grandes
portões, limitando a sua entrada, conferiram- lhe logo o seu conhecido nome.
Nesse local residem almas nobres, possuídas de imensa dedicação ao sofrimento
humano. Almas que poderiam estar desfrutando ambientes espirituais felizes,
permanecem suportando as tristes e pesadas vibrações que daí promanam. Grande
parte de seus habitantes, no entanto, é formada entre aqueles que, como eu, são
recuperados do Vale e se reintegram nas atividades da vida espiritual como
colaboradores, ajudando os que ficam e os que chegam constantemente nesse
fosso de lágrimas. Assim, nada fazemos de mais e apenas devolvemos à colônia e
à vida o mesmo que recebemos. E isso faz a nossa felicidade.

26 - Gilson T. Freire / Adamastor


Ovoidização

“0 perispírito se dilata ou contrai. ”


Allan Kardec - O Livro dos Médiuns, item 56

aquela manhã de intensos trabalhos de assistência aos recém-

N socorridos do Vale, fora convocado com urgência ao serviço,


de maneira que mal tive tempo de adiar algumas obrigações
rotineiras, e me embrenhei mais uma vez nas Cavernas do Sono. Eu as
conhecia muito bem, pois nela servira não somente como Caravaneiro
das Trevas, como fora também um de seus hóspedes delinqüentes por
aflitivos anos. Já não era, no entanto, membro ativo das Caravanas de
busca e somente era requisitado em ocasiões especiais. Exercera atividades
de atendente médico por muito tempo, pois fora profissional da área e
ainda podia fazer jus a tal título em Portais do Vale, embora desmerecesse
essa qualificação. Os enfermos resgatados do Vale necessitam de cuidados
prementes, muito semelhantes à rotina da medicina terrena e, pelas
habilidades exercidas na vida, acha-se um facultativo em melhores
condições de desempenhá-las do que outros. As graves lesões das almas
dos suicidas refletem-se em seus organismos espirituais, apresentando-se
comumente, como é de se esperar, em frangalhos. Requerem curativos,
suturas e, às vezes, verdadeiras intervenções cirúrgicas, por mais impróprio
que isso possa parecer ao entendimento dos encarnados. Fora, desse
modo, convocado para préstimos médicos assim que me vi em condições
de reassumir o pleno domínio sobre mim mesmo, pois, quando encarnado,
assistira os dilacerados da guerra e habituara-me à manipulação dos corpos
mutilados. Depois de muito trabalho e estudos, no decorrer de largos
anos, despertara em mim o interesse pela ovoidização, pois me intrigava

ícaro Redimido - 27
e condoía-me sobremaneira assistir a esta bizarra e grave dismorfia, própria do
mundo espiritual, tão diferente de tudo que se conhece na Terra, em prol da qual
pouco se pode fazer. Passei assim a atender especialmente àqueles suicidas
ameaçados por essa penosa patologia da alma, atuando sobretudo na sua
prevenção.
A ovoidização é uma das mais pungentes enfermidades que pode acometer o
espírito depois da morte. Consiste na perda da consciência ativa, quando o eu
consciente desmorona-se completamente, em decorrência de atrozes e
insuportáveis sofrimentos, voltando-se sobre si mesmo, anulando-se e perdendo
todo o contato com a realidade. A atividade consciente da alma entra em letargia,
refugiando-se nas camadas do subconsciente. O pensamento contínuo se
fragmenta, perdendo seu fio de condução, e a estrutura perispiritual se desfigura
completamente, desfazendo sua natural conformação humana, adquirindo o
formato aproximado de um ovo, cujas dimensões se aproximam de um crânio
infantil. O processo é em tudo semelhante ao das bactérias que se encistam diante
de condições adversas de vida, aguardando novas oportunidades para retornarem à
atividade normal. A ovoidização é processo incurável no Plano Espiritual, sendo
uma das mais graves enfermidades de nosso mundo, e somente pode ser revertido
em reencarnações expiatórias, quando o espírito reencontra-se com novo ambiente
de manifestação e pode refazer o metabolismo do seu consciente. Várias
reencarnações, porém, se consomem em tentativas frustradas, de modo que a perda
evolutiva é imensa para estes infelizes seres. Muitos regridem a condições tão
primárias da vida humana que necessitam reencarnar entre povos primitivos, a fim
de que a rudeza dos organismos ainda involuídos possam suportar-lhes a grave
patologia, sem se desfazerem em malformações congênitas4 incompatíveis com a
biologia humana. Por isso, existe em Portais do Vale um departamento de serviços
que se empenha em estudar e tratar preventivamente a ovoidização, onde eu
situava naquela época os meus singelos esforços de serviços e pesquisas.
Os suicidas que dormem nas Cavernas do Sono são os candidatos naturais à
ovoidização. Permanecem em sono reparador, em baixíssima atividade
consciencial, por anos a fio. Ao iniciarem, no entanto, o despertamento, a rápida
percepção da amarga realidade que lhes assedia pode deflagrar, de imediato,
mediante reflexo de defesa, a retirada apressada para camadas ainda mais
profundas do inconsciente inferior. Esse reflexo não somente inibe totalmente o
despertar, como retrai o

4 Defeitos anatômicos na formação dos embriões.

28 - Gilson T. Freire/Adamastor
metabolismo mental, motivado por novo impulso de contração, estabelecendo-se a
ovoidização de forma incondicional. Por isso, quando o serviço de vigilância de
nossa colônia identifica almas em tais condições, com indícios de ovoidização,
somos convocados em regime de urgência. Neste instante ainda podemos atuar,
antes que o suicida deflagre a contração do “eu”, tornando o processo tardio demais
para ser revertido em nosso mundo.
O suicídio é possível também no Plano do Espírito e não somente na carne.
Quando encarnado, pode o ser danificar sua veste orgânica de tal modo a torná-la
incompatível com a vida na matéria. Na Esfera Espiritual, no entanto, o perispírito
possui mecanismos regeneradores muito mais eficazes, de modo que destruí-lo por
dano físico é praticamente impossível. Mediante a contração da atividade
consciente, no entanto, é permitido ao ser continuar negando a sua existência,
fugindo de si mesmo. Desta forma, podemos considerar de fato a contração ovoidal
como um autocídio espiritual. Como se vê, temos também nossos suicidas. Suicídio
que, naturalmente, pressupõe mera tentativa de fuga da realidade que envolve o
espírito depois do túmulo e não a destituição da individualidade, pois tal não é
possível no plano em que nos projetamos.
As causas do encistamento da alma são as mesmas que motivam o auto-
extermínio na carne: o desespero diante de sofrimentos intoleráveis, somados à
falta de preparo para a existência no Plano Espiritual. Sofrimentos, a bem da
verdade, aparentemente intoleráveis, pois a sabedoria das Leis divinas não nos
proporciona nunca dores que sobrepassem nossa capacidade de suportá-las. Se
parecem aniquilar-nos, é porque nossa revolta diante delas é incomensurável e
indevida. O mais forte indutor de tais barbaridades, no entanto, está na falta de
preparo para a vida espiritual, sendo o materialismo o seu mais poderoso
protagonista. Materialismo que se desenvolve diante do enfraquecimento do
pensamento religioso do homem moderno, desgastado na ideação de fórmulas
mentais arcaicas, não lhe proporcionando mais subsídios para a crença no espírito.
Os apelos de um ser que aprendeu a raciocinar e a crer na razão não podem mais ser
satisfeitos por uma fé cega que macula o conhecimento, genuína conquista da
Ciência. Como se vê, urge lutarmos contra tal situação a fim de que a penúria do
espírito seja desterrada do Planeta e banidos os riscos do mergulho na
inconsciência. Não destituindo as conquistas modernas que representam valores
reais e não podem ser questionadas, mas renovando o pensamento religioso do
homem terreno, para que o seu frio racionalismo não sufoque a alma que anseia
pelos

(caro Redimido - 29
genuínos bens da eternidade. Semeemos novamente as verdades que consolam,
verdades que nos foram reveladas desde que aprendemos a pensar, mas que
acabaram esquecidas e que precisam ser relembradas e reestruturadas,
compatibilizando-se com o nosso avanço intelectual. Por isso a implantação do
Espiritismo na Terra, protagonizando a fé alicerçada na razão, pode ser vista como
uma das maiores vitórias do Plano Espiritual Superior na atualidade.
Os ovóides, espíritos em fuga de si mesmos, como se pode deduzir, aumentam
assustadoramente nos dias atuais. Permanecem espalhados pelo Vale dos
inconscientes, atados a rochas ou troncos de árvores, pois podem segregar
substância pegajosa que os fixam a qualquer superfície. No entanto,
preferencialmente, aderem-se a outros seres vivos, encarnados ou não. Tristemente
temos que considerar que o ovóide se torna, na verdade, um parasita. Como todo
ser vivo, seu metabolismo, embora baixíssimo devido às suas reduzidas
necessidades, precisa da absorção de seivas vitais para a sua subsistência. Não
dispondo de meios para produzi-las, a manutenção de sua exígua vitalidade
somente pode ser levada a efeito mediante a aquisição de recursos vitais externos,
provenientes de outros seres. A anatomia e a fisiologia dos ovóides adquirem assim
todas as características próprias dos parasitas da Terra, especializados na
assimilação e metabolismo de forças vitais roubadas de outros seres vivos. Embora
qualquer tipo de energia vital possa servir- lhes para este fim, aquelas que melhor
se adaptam às suas necessidades e para as quais eles se especializaram são as
energias do psiquismo. Por isso, o hospedeiro natural do ovóide é a mente humana.
Devido a esta característica, os ovóides comumente são colhidos por espíritos
dedicados ao mal, que os utilizam como instrumentos de torturas humanas. Eles
podem atá-los aos cérebros de inditosos obsediados, minando suas forças e
deteriorando suas resistências psíquicas através do escoamento de suas forças
mentais. Induzem assim, não somente a depressões, mas à demência e à loucura,
desequilíbrios de difícil remissão, tanto na carne quanto no mundo espiritual. Sendo
os ovóides joguetes nas mãos desses infelizes, natural que este seja outro motivo
para se lhes evitar, a qualquer custo, a proliferação no Vale dos Suicidas.
Muitos poderão se perguntar por que a Lei de Deus, que é sobretudo bondade,
permite a existência desse estranho parasitismo, infectando a intimidade
consciencial de espíritos de consideráveis conquistas evolutivas, deixando-os
expostos a esta cruel e aparentemente injusta espoliação. Podemos apenas
responder que tal regime de desamor é o mesmo que

30 - Gilson T. Freire/Adamastor
impera no mundo da carne, com sua dura realidade, onde o parasitismo subsiste
como norma de vida entre criaturas de diferenciados níveis evolutivos. Seres
aparentemente involuídos, dotados de hábeis e intrigantes mecanismos de
exploração de recursos vitais, subjugam hospedeiros, chamados naturais, aos seus
caprichos e egoísticas necessidades de subsistência. Regime de vida que nos faz
questionar se tal comportamento é de fato natural e representa apenas a obediência
à vontade de Deus. Se nosso Pai é amor, por que a vida em suas primitivas bases se
apóia neste consórcio de iníquas explorações? Como nada no âmbito da criação
pode estar fora do domínio de Sua Lei, temos que encontrar razões que justifiquem
esse estranho comportamento. Lucubramos que todos, sem exceção, mantemos um
ambiente de disputas pela supremacia da vida, e ainda somos parasitas de seres que
nos sucedem na jornada evolutiva, pois nos damos à exploração de seus recursos
vitais, com o sacrifício mesmo de suas vidas, quando na carne. Justo é assim
estarmos, por nossa vez, sujeitos ao roubo exploratório de nossos valores orgânicos
por outros seres, mesmo sendo menos evoluídos do que nós. Porém, somente o
afastamento da bondade pode justificar tais aparentes barbaridades no seio de uma
criação que é feita essencialmente de amor. Tais inquirições, no entanto, não
podem aqui ser respondidas e as deixamos como suscitantes de questionamentos
das razões do viver e do evoluir.
A ovoidização, contudo, não é uma adulteração das leis perispirituais, pois está
subordinada aos mesmos princípios da miniaturização ou restringimento, fenômeno
a que está submetido o espírito no processo reencarnatório, quando a tessitura
plasmática do perispírito, antecedendo nova descida à carne, sofre uma contração
involutiva, retornando aos patamares da evolução biológica, para abraçar um novo
óvulo fecundado e elevá-lo, rapidamente, à condição das últimas conquistas no
campo da vida carnal, através do milagre do desenvolvimento embrionário. Este
impulso de contração é o mesmo que deposita a potência de um carvalho em uma
semente, fazendo-a explodir depois, num anseio incontido de crescimento. O
perispírito, ricocheteando suas forças contraídas, atira-se ao rápido refazimento,
expandindo-se e confeccionando seu futuro corpo na recapitulação embrionária,
quando, em apenas nove meses de gestação, refaz todas as etapas por que já
passou. Sem esta precedente contração involutiva não se veria tal explosão
evolutiva que lhe surge como uma reação imediata. É assim que temos aprendido
que o perispírito está sujeito, como todo fenômeno da criação, às forças de
contração e de expansão. A ovoidização, portanto, em última análise, é apenas uma

ícaro Redimido - 31
contração ou miniaturização patológica, pois ocorre distante do momento
reencarnatório. Não encontrando o reservatório uterino, meio indutor, mantenedor e
protetor de tal processo, o ser, em franco processo de contração, estaciona-se na
fase ovóide deste percurso, restringindo sua consciência às etapas mais elementares
da vida biológica.
Alguns observadores do nosso plano referem-se ao ovóide como sendo a
segunda morte do espírito. Fenômeno este muito pouco divulgado na literatura dos
espíritos, dirigida aos homens, por tratar-se de tema de natureza ainda muito
complexa e que poderia causar maiores dúvidas e questionamentos entre os
pesquisadores da Terra. De fato, a morte ovoidal pode ser considerada a segunda
morte, porém, para o perfeito esclarecimento do estudioso, devemos compreender
que se trata apenas de um dos patamares onde pode estacionar a contração
perispiritual. O ovóide ainda traz um metabolismo vital, embora bastante reduzido,
mostrando, ademais, resíduos de atividade consciencial, sendo portanto apenas um
dos limiares em que estagia o ser rumo à segunda morte. Na realidade, esta é o
resultado de aprofundamento em nível ainda mais inferior da condensação
involutiva, acometendo espíritos com alto quilate de rebeldia e maldade, levando-os
à completa estagnação da consciência, com a total perda da atividade vital,
fenômeno raríssimo e conhecido também como a petrificação perispiritual. Isto,
entretanto, pressupõe apenas o limiar do mergulho do ser no abismo da
inconsciência e não a anulação de sua individualidade.
Naturalmente, trabalhando nos ambientes espirituais onde se recolhem as almas
embaladas por estes impulsos autodestrutivos iniciados na carne, na ação suicida,
achávamo-nos envolvidos por esta exótica e triste patologia do espírito e a ela
dedicávamos nossos estudos, abordando-a em toda sua dura realidade, a fim de
encontrar meios eficazes de auxílio, interferindo como possível e como nos permite
o Senhor da Vida.
À guisa de esclarecimentos para o estudioso, é preciso considerar que, além da
exaltação do impulso contrativo no suicídio, o perispírito está sujeito ainda à
alteração do movimento contrário, ou seja, a expansão inadequada. A hipertrofia
perispiritual é patologia que guarda igualmente a sua gravidade, sendo também
identificada e estudada no plano do espírito em que nos achamos. As forças
perispirituais hipertônicas se responsabilizam pelos crescimentos celulares
exagerados, quais os tumores de qualquer natureza e a hiperatividade de qualquer
função orgânica identificada pela medicina terrena. Guardam sua origem nos
estímulos do psiquismo doentio que se apóiam no exagero do “eu”, como os

32 - Gilson T. Freire / Adamastor


sentimentos exaltados de egoísmo e egolatria, vícios da alma a que todos, sem
exceção, estamos afeitos neste planeta. Nos capítulos subseqüentes tornaremos ao
assunto com mais exatidão a fim de se completar o estudo proposto5.

5 Nos capítulos 6 e 20 o assunto iniciado aqui encontrará o seu desenvolvimento mais abrangente.

ícaro Redimido -33


Heitor o Novo Amigo

“Bendito aquele que vem em nome do Senhor. ”


Salmos, 118:35

direção de nossos trabalhos, identificando em Alberto, o suicida

A que despertava nas Cavernas do Sono, um risco iminente de


ovoidização, convocara-nos para a atuação sem demora. Olegário,
meu dileto companheiro de serviços, aguardava-me para a partida imediata.
Tínhamos pouco tempo para os procedimentos habituais necessários à
jornada e devíamos apressar-mo-nos.
Não pensem os amigos que podemos penetrar nas Trevas sem o devido preparo.
Quais os mergulhadores da Terra, é necessário precavermo- mo-nos com uma série
de cuidados especiais. Não que devêssemos nos meter em escafandros especiais
próprios para as águas, mas para se visitar as Cavernas do Vale é preciso que se
tomem algumas precauções, se não se é um espírito superior. Os espíritos de
grandes conquistas evolutivas podem adentrar nestes ambientes ocultando suas
luzes para não serem notados, e com seus avançados padrões vibratórios, de modo
geral, são imunes aos fluidos do ambiente. Nós, no entanto, assim como a imensa
maioria dos trabalhadores de Portais do Vale, espíritos de medianas aquisições
morais, não podemos perambular pelo Vale sem adotar cautelas que nos protejam
das nocivas correntes vibratórias e nos previnam do assédio das entidades das
Trevas. A absorção de emanações mentais maléficas dessas plagas sombrias pode
envenenar nossa constituição perispiritual, perturbando-nos com o chamado “mal
do caminhante das Trevas”, que nos lembra o “mal dos navegantes”, pois ambos se
manifestam com sintomas muito semelhantes, como tonturas e

34 - Gilson T. Freire / Adamastor


náuseas incontroláveis. Certo é que, como não estamos imantados por dano de
consciência às redes do mal que aí dominam, não precisamos temer o ataque direto
de entidades das Sombras. No entanto, não somos de todo imunes contra o cerco
desses espíritos e podemos sofrer ameaças e mesmo ser expulsos de seus domínios,
como muitas vezes acontece. Nossa sintonia com o ambiente não é completa e,
destarte, não nos libertamos de todo do Mal, pois somos seres ainda em processo
de melhoria e não conseguimos exercer a bondade em toda a plenitude de que
gostaríamos.
Faz-se imprescindível o completo controle das emoções para se lidar
adequadamente com os espíritos mal intencionados ou travessos que perambulam
pelo Vale. Eles estão em seus domínios e o trabalhador deve saber respeitar-lhes os
limites. Ele deve estar preparado para enfrentar situações conflitantes e saber
abdicar-se de seus interesses imediatos, pois o ingresso em disputas impróprias e
indignas pode desequilibrá-lo facilmente, indispondo-o à tarefa e deixando-o à
mercê das agressões do meio. Por isso, o tarefeiro que não consegue dominar os
próprios impulsos diante da maldade alheia e da injustiça, não está preparado para
esta tarefa. A intermediação de modo inconveniente nas relações entre vítima e
algoz deve obedecer, não a um partidarismo próprio, mas a um roteiro determinado
pelos orientadores, que conhecem as motivações de tais contendas e as reais
necessidades de cada um. Os verdugos do momento são vítimas do passado, e tão
meritórios de socorro quanto aqueles que são maltratados. Assim, vestir-se de
humildade, controlar com eficiência a raiva e a indignação e eximir-se do desejo de
fazer justiça com as próprias mãos são imposições indispensáveis ao servidor. A
arrogância diante dos sofredores é igualmente atitude condenável que pode deixar o
seareiro em situação embaraçosa. A bondade, a humildade, a capacidade de perdoar
e a abnegação devem ser as únicas armas ao dispor daquele que deseja servir com
Jesus e atuar com proveito para todos.
Necessário ainda se faz esclarecer que o tarefeiro, para atuar com eficiência no
resgate de entidades sofredoras, deve fazer-se visível ao meio a fim de interagir em
seu mesmo nível de manifestação. Os espíritos recuperados daquelas plagas,
transformados em obreiros do Bem pela boa vontade de servir, continuam sendo
visíveis aos companheiros da retaguarda por tempo variado, penetrando nestes
sítios sem maiores inconvenientes. Estes, entretanto, incentivados à reforma íntima
e pela constante dedicação ao penoso trabalho, terminam por se desvencilhar de
parte de suas inferioridades, tornando-se, paulatinamente, imperceptíveis

ícaro Redimido - 35
ao baixo ambiente em que servem. Daí a necessidade de promoverem a
condensação perispiritual cada vez que retornam a ele. Esta condensação é feita
mediante a absorção dos eflúvios atmosféricos do meio pela respiração, mas o
processo requer adestramento, para que não se transforme em prejuízos e
incômodos para o trabalhador, pois, se não for subordinado a um controle, pode
ultrapassar determinado limiar de tolerância, desencadeando nele os mesmos
sintomas do “mal do caminhante das Trevas”, indispondo-o à viagem. Contudo,
chega um ponto que o servidor, pelo esforço próprio, atinge nível evolutivo tal em
que a condensação se lhe torna dificultosa e até mesmo impossibilitada. É, assim,
preciso que um recrutamento constante de novos elementos, dispostos à penosa
tarefa, renove freqüentemente o acervo de caravaneiros das Sombras.
Além de uma primorosa conduta íntima, requer-se ainda do tarefeiro uma
apresentação pessoal discreta e simples, de modo a não chamar atenção sobre si.
Cores alegres e vivas não são recomendadas, naturalmente. Para aqueles,
entretanto, que se sentem incomodados com a idéia de que os desencarnados usam
vestes, somente podemos asseverar que a vida e as necessidades no mundo
extrafísico não diferem sobremaneira daquelas encontradas na Terra.
Outro imperativo para o mergulho nas Trevas é o pleno controle do medo.
Como o trabalhador se acha adensado, sua presença torna-se perceptível não
somente aos sofredores, mas também aos seres malignos que as habitam, quase
sempre dispostos a recebê-los com animosidades. A simples visão destas entidades,
comumente transfiguradas em formas monstruosas em franca exibição de
agressividade, pode paralisar o servidor bem intencionado, porém não adestrado à
tarefa, aniquilando-lhe toda a capacidade de serviço e criando dificuldades para os
demais membros da equipe. Por isso desenvolvem-se em Portais do Vale longas
sessões de treinos especializados com o propósito de dominar o medo com
eficiência. E preciso estar habituado à visão das mais terríveis mazelas do homem e
suas desfigurações perispirituais sem se deixar aniquilar pelo pavor. Como todos já
passamos pelas Trevas, não é difícil, ao encarnado, imaginar as horripilantes
figuras e as lúgubres paisagens que podem nos paralisar de terror pela sua simples
visão.
Não obstante a boa vontade de servir nas Sombras, é necessário ainda estar
habilitado a lidar com suas ameaças. Ameaças que são mais ilusórias do que reais e
que mais despertam pavor do que realmente significam algum dano à nossa
integridade. Se não trazemos a consciência ultrajada

36 - Gilson T. Freire / Adamastor


pela prática de grandes males, não guardamos liames com as entidades que se
comprazem com o exercício de crueldades. Espíritos, que são muito mais infelizes
e necessitados do que realmente perigosos, podem inibir e assustar aqueles que se
lhes mostram suscetíveis, atividade na qual se comprazem e da qual tiram proveito
como única fonte de suas parcas alegrias. Assemelham-se a adolescentes imaturos
e inconseqüentes, que se deleitam em perturbar a ordem estabelecida pelo simples
prazer em dar vazão aos seus instintos rebeldes.
Por todas estas razões, a maioria das caravanas de socorro é composta de
espíritos recém-resgatados das Sombras, o que facilita, em muito, não somente suas
ambientações vibratórias como também o controle do medo, pois se acham
habituados às suas imagens desagradáveis e não se assustam facilmente com elas.
A urgência do socorro necessário exigia uma equipe já treinada, e por isso
fomos convocados. Apesar de nossas parcas condições espirituais, Olegário e eu
achávamo-nos preparados para o serviço, cientes de todos os riscos e necessidades
da empreitada, em decorrência de muitos anos dedicados a esse tipo de atividade.
Contaríamos com a presença de Adelaide, uma companheira ainda pouco
experiente, que nos vinha acompanhando, em obediência à direção de nossa
colônia, a fim de adestrar-se na tarefa socorrista, sendo já nossa conhecida. Ao
chegarmos ao Posto Avançado, já estava ela aguardando-nos para a partida
imediata. Dois guardas de Portais que a acompanhavam, zelosos, despediram-se de
imediato ao chegarmos, em busca de seus afazeres. Faziam-lhe companhia
enquanto estava sozinha, cumprindo apenas com as gentilezas de nossa colônia,
pois ali não havia ameaça alguma à sua pessoa. Neste dia, no entanto, contaríamos
com a participação de um novo amigo e, como sua presença fora autorizada pelos
nossos dirigentes, sabíamos tratar-se de um espírito experiente neste tipo de
serviço. Aguardávamo-
lo para a partida.
O Posto Avançado é o verdadeiro limite entre nossa colônia e as Trevas. Um
grande muro nos separa do ambiente exterior, lembrando- nos as construções
medievais. Ervas robustas e ressequidas lhe sobem pelas pedras, espinhosas e
desprovidas de flores, emprestando às suas velhas paredes uma beleza rude. No
alto, vislumbra-se um céu de chumbo, com suas nuvens lúridas e ameaçadoras,
emoldurando permanentemente a extensão do soturno Vale, onde o sol jamais
fulgura com seus raios de vida.

ícaro Redimido - 3 7
Enfim chegava Heitor, a quem esperávamos para a prece antes da partida.
— A paz esteja convosco, irmãos — saudou-nos com discrição o novo amigo.
— Só posso pedir aos Céus que os recompensem por esta hora de serviços em prol
dos que sofrem. Sou Heitor e apresento-me como o mais humilde de seus
companheiros. Trago do Alto a recomendação para resgatar um espírito amigo que
jaz neste abrigo de dores. Sua hora chegou. Portanto, partamos sem demora.
Heitor irradiava tal aura de simpatia que não tínhamos a menor dúvida de que se
tratava de um espírito de escol, vindo de esferas mais elevadas do Plano Espiritual.
Uma barba grisalha lhe emoldurava a feição de bondade e sabedoria, exalando paz
e convidando-nos à entrega confiante e imediata ao seu afeto. Suas vestes e sua
aura nos diziam tratar-se de uma alma religiosa, talvez algum monge, amadurecido
na dedicação ao próximo e na renúncia de si mesmo. Se não divisávamos sua luz,
certamente era porque sua humildade lhe inibira o fulgor a fim de não nos
constranger e não despertar a atenção dos infelizes seres de nossos escuros
caminhos. Há muito não presenciávamos no Vale um espírito de tão elevada estirpe
a nos acompanhar, de modo que fomos imediatamente invadidos por confortante
alegria e indizível sentimento de paz.
Convocando a imagem de Jesus para nos abrigar as intenções e exorando a
presença Divina, proferia o amigo:
— Recordemos a palavra do Mestre que, na parábola da ovelha desgarrada nos
dizia: “Qual de vós é o homem que, possuindo cem ovelhas e perdendo uma delas,
não deixa as noventa e nove no deserto e não vai atrás da perdida até que a
encontre? E achando-a, põe-na sobre os ombros, cheio de júbilo e, chegando em
casa, reúne os amigos e vizinhos e lhes diz: Alegrai-vos comigo porque achei a
minha ovelha que se havia perdido. Digo-vos que assim haverá maior alegria no
céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não
necessitam de arrependimento”6. É verdade, meus amigos, o céu não é lugar para se
desfrutar de felicidades solitárias, por isso o pastor que perdeu a sua ovelha é tão
infeliz quanto ela mesma, e não descansará enquanto não a recuperar.
Em seguida, fechando os olhos, proferiu uma prece sem palavras. Sentimos seu
tórax inflamar-se suavemente e um facho de luz, partindo das alturas caiu sobre
nós, inundando-nos de inexprimível contentamento. Tive que conter o meu impulso
de sorrir, tal o influxo de energias que

6 Lucas, 15: 3-7

38 - Gilson T. Freire / Adamastor


sentia percorrer-me o íntimo e a felicidade que, de inopino, invadiu-me a alma.
Sem mais preâmbulos iniciamos a jornada rumo aos portões que nos separavam
do Vale, seguindo os passos decididos de Heitor, que parecia conhecer muito bem o
caminho. Nossa tarefa demandava urgência e não convinha delongar o nosso tempo
com outras considerações que podiam ser adiadas. Neste percurso, no entanto,
ainda podíamos entreter alguma conversação e aproveitamos para nos conhecer
melhor, estreitando os laços que nos uniam no serviço. Esta era uma oportunidade
que não podíamos dispensar, haurindo os benefícios que a tarefa nos ensejava.
Heitor informava-nos, percebendo de imediato a primeira impressão que nos
causara, que realmente minha intuição era acertada. Ele se achava ligado a ordem
de natureza religiosa, pois se dedicara ao sacerdócio em suas últimas encarnações.
Vivia no Mosteiro dos Templários de Cristo, uma colônia de planos superiores,
conhecida apenas por Templários, onde dava continuidade à sua formação
monástica. Servira, no entanto, nas caravanas de socorro do Vale e por isso
conhecia muito bem os seus caminhos.
— Trabalhando na Ordem dos Servos de Jesus por muitas décadas, pude
exercitar o verdadeiro amor cristão e dar seguimento ao meu aprendizado no
socorro aos necessitados — agregou Heitor. — Aqui o Senhor pode melhor nos
ensinar a servir, pois na tarefa de regaste temos que renunciar ao nosso conforto e
desprender-nos de antigas comodidades, forjando nossas almas no real espírito do
servo cristão. Depois, sentindo a necessidade de aprender, para melhor
compreender a natureza humana, situei meus esforços em Templários, onde, pela
graça do Senhor, venho dilapidando a rudeza de minha mente, através do
beneplácito do estudo e da meditação. Ouvi, no entanto, os apelos de um espírito
amigo, conhecido de longas eras e não pude furtar-me ao seu socorro, pois senti
nele a ameaça de irremediável mergulho na inconsciência. Por isso, solicitei de
Portais do Vale a inestimável ajuda de vocês. O socorro, todavia, como sabem, é
urgente.
Heitor expressava em seu olhar tal ternura e influxo de bondade que, por um
momento, nasceu-me na alma o ímpeto de atirar-me aos seus pés. Percebendo meus
sentimentos, contanto, o nobre amigo desviou seus olhos e, com simplicidade, senti
seu pensamento desfazer em mim qualquer atitude de reverência.
— Fui médico na Terra — disse por minha vez, ainda evitando-lhe o olhar
percuciente que, sem dúvida, tudo já sabia pela simples incursão

ícaro Redimido - 39
em nosso campo mental. — Estou aqui com o interesse não só de aprender a servir,
mas também para conhecer e estudar o sofrimento humano, e dessa forma adquirir
melhores condições de ajudar sem atrapalhar. Caracterizou-me a vida o grande
apego às riquezas da matéria e não pude evadir-me do desespero ao me ver privado
de todos os bens. Atirei-me na bebida até configurar o suicídio, que me trouxe para
este Vale lúgubre. Aqui permaneci por muitos anos, consumindo minha
inferioridade nas Cavernas do Sono até ser socorrido pelos samaritanos de Portais
do Vale. Como se vê, não faço nada de mais a não ser dar minha cota de
pagamento a tudo que recebi dos amigos que hoje compõem praticamente a minha
família. Depois de muito tempo fui elevado à condição de médico socorrista, título
para o qual não guardo méritos, mas trato de desempenhar o melhor que posso.
E, indicando-lhe Olegário, continuei:
— Este é meu fiel companheiro de incursões no Vale. Foi militar quando
encarnado e precisa adestrar-se no trato com os delinqüentes, pois exercera sua
atividade sem a necessária benevolência para com os malfeitores. Também foi
socorrido do Vale, através de nossa modesta ajuda, onde uma grande decepção
amorosa o conduziu ao auto- aniquilamento. Aproveitamos a sua aparência robusta
de soldado para intimidar os espíritos delinqüentes que nos ameaçam nas incursões
nestes sombrios caminhos.
— Ademais, alimentei o ódio nas guerras e preciso purificar minha alma —
acrescentou Olegário, com sinceridade nas palavras.
Realmente, Olegário era prestimoso companheiro, indispensável em minhas
excursões pelo Vale. Fora designado para servir ao meu lado pela direção de
Portais do Vale, por termos tecido sincera amizade ao longo de alguns anos em que
me empenhara no seu reequilíbrio. Dedicava- me tamanha amizade que suplantava
minha capacidade de merecê-la, sendo que não fizera por ele mais do que minha
sincera obrigação. Embora guardasse a distinção e o respeito, impostos pela
disciplina militar, na verdade servia-me como um enfermeiro, além de encarregar-
se de nossa defesa quando necessária. Sua presença assegurava-nos confiança e
tranqüilidade ao serviço.
Caminhando ao nosso lado, silente e humilde, Adelaide apenas sorria e nos
fitava com sua expressão meiga, despertando de imediato o interesse de Heitor, que
suscitava, com o olhar inquiridor, o que justificava aquela delicada presença
feminina em nossa pequena caravana. Adiantei-me então a apresentá-la:

40 - Gilson T. Freire / Adamastor


— Aqui temos Adelaide, nossa aprendiz. É a segunda vez que excursiona nas
cavernas, mas sua serenidade nos fala de um espírito seguro e confiante nas
diretrizes do Alto. Como o amigo pode perceber, sua alma emana bondade e
ternura, dispensando maiores apresentações.
— Venho da Escola dos Samaritanos — prosseguiu Adelaide, levemente
intimidada pelas considerações que tecíamos a seu respeito — e estou em tarefa de
adestramento. Não basta ter o desejo de servir, é preciso estar preparada para o
serviço, como todos sabem. Assim sendo, a melhor maneira de se fixar o
ensinamento é o exercício do trabalho, sob a orientação de quem pode nos instruir.
Quero observar para aprender, mas também ajudar, se possível, sem importunar.
— É uma alegria conhecê-la, querida irmã—respondeu Heitor. — A humildade
de suas palavras traz imensa sabedoria, por isso, tenho a certeza de que seus
objetivos serão atingidos.
— A irmã, no entanto, é a única que não foi socorrida do Vale e não traz em
sua história o drama do auto-extermínio — apressei-me a considerar.
— Desejei conhecer o Vale porque tive uma filha querida que daqui foi
socorrida. Eu não tinha, na época, condições de ajudá-la e não podia sequer visitá-
la, pois a simples aproximação das vibrações destas plagas abissais me paralisavam
as forças, abalando-me a frágil organização espiritual. Sentia-me desvalida e infeliz
por nada poder fazer e assim decidi empenhar-me no esforço de aprender a servir a
quem mais precisa. Compreendi, com Jesus, que não são os sãos que precisam de
socorro, mas os doentes. E os impuros dessas Trevas são as criaturas mais
necessitadas que já vi nas paisagens espirituais, onde viceja a dor. Hoje já trago o
espírito mais fortalecido e posso caminhar por aqui sem que o horror me paralise.
Quero conhecer de perto os serviços socorristas e adestrar-me neles, como uma
maneira de recompensar a vida pelo muito que recebi, através do amparo à minha
filha.
Não convinha, contudo, delongar mais nossas interlocuções, pois chegamos
diante dos enormes portões que nos permitiriam a entrada no Vale e, com exceção
de Olegário que já se achava devidamente ambientado pelas suas incursões diárias,
devíamos iniciar o adensamento perispiritual sem demora. Já treinados nos
procedimentos habituais, começamos a alterar o ritmo respiratório a fim de sorver,
a longos haustos, os fluidos reinantes. Adelaide, ainda pouco experiente neste
exercício, demandava maior tempo a fim de promover a condensação progressiva.
Sustentávamos-lhe o braço, pois a cada inspiração ela cambaleava, ainda

ícaro Redimido - 41
um pouco nauseada, porém, já ciente dos procedimentos, não tardou para que
obtivesse os resultados esperados.

42 - Gilson T. Freire / Adamastor


Rumo às Cavernas

“Não é da vontade de vosso Pai que está nos céus que venha a perecer um só destes
pequeninos. ”
Jesus - Mateus, 18:14

N ossa caravana, de fato, se resumia a nós quatro, destarte, éramos


o suficiente para o trabalho. Não iríamos aos confins abismais e
não tardaríamos mais do que um dia na caminhada, de modo
que não necessitávamos de recursos indispensáveis às incursões nas regiões
mais profundas do Vale. As Cavernas do Sono ficam próximas e não
demandam maiores esforços para serem atingidas. Guardas de Portais do
Vale as protegem constantemente dos assaltos freqüentes dos mercantilistas
das Trevas, que por ali sempre perambulam à cata de ovóides perdidos.
Nas mãos destes delinqüentes, representam mercadoria de barganha de
estimado valor entre os malignos e, por isso, são muito procurados. Se
suspeitassem que transportávamos ovóides, poderiam nos acuar, na
tentativa de persuadir-nos a abandoná-los. Neste caso, os guardas,
informados de nossa missão, nos ajudariam a dissuadi-los de qualquer
ataque à nossa caravana. A presença de Heitor, no entanto, com seu
elevado potencial espiritual, era mais do que o suficiente para desestimular
qualquer ameaça desses infelizes.
Ao sinal de Heitor, os guardas acionaram as roldanas que movem os pesados
portões que, rugindo melancolicamente, entreabriram-se, deixando-nos passar.
Bem no alto, divisamos a lanterna vermelha de localização, sempre piscante, qual
farol costeiro, orientando a direção ao viajante. Poucos passos, no entanto, eram
suficientes para ocultá-la completamente de nossas vistas. Embora não possa ser
avistada em regiões

ícaro Redimido - 43
mais distantes, este sinal atrai a direção de aparelhos rastreadores, instrumentos
indispensáveis aos caminhantes inexperientes, que ainda não conseguem se orientar
pela percepção das correntes mentais. Trazíamos também nosso rastreador, à feição
de bússola orientadora, embora não necessitássemos dele, pois Olegário e eu
freqüentemente efetuávamos incursões nestas áreas, onde exercíamos o socorro aos
ovóides e as conhecíamos muito bem.
Heitor trazia um mapa com a localização de Alberto, o infeliz amigo que
iríamos resgatar e deixamo-nos conduzir por ele, que mostrava segurança em sua
orientação e não necessitava de nossa singela ajuda. Rumando para as Cavernas do
Leste a passos decididos e firmes, descemos uma das trilhas que corta o caminho
para as Escarpas. Devíamos evitar, propositadamente, o trajeto mais largo, porém
mais freqüentado pelos errantes do Vale, a fim de evadirmo-nos de encontros
desagradáveis e desnecessários. Afinal, se ali é o domínio dos atormentados, é
também o reino dos malignos e eles se acham inteiramente no direito de o
defenderem como se realmente lhes fosse herdade particular, tratando-nos como
invasores de suas propriedades.
A paisagem progressivamente se transforma à medida que descemos rumo aos
grandes Abismos. A atmosfera se torna pesada, opressiva, imprimindo-nos certa
dificuldade na respiração. Uma angústia, lembrando os pesares da morte física,
estreita-nos o coração. Um odor lamoso invade- nos as narinas com desagradável
impressão. Uma névoa fria e úmida nos veste paulatinamente de sombras,
esmaecendo a já fraca luz solar. O solo, pedregoso e irregular, cobre-se de uma
umidade lutulenta, escorregadia, irradiando um frio penetrante e gélido. A escassa
vegetação torna-se paulatinamente definhada, retorcida e espinhosa, parecendo
agredir o visitante incauto. Troncos ressequidos, tortuosos, sem folhas, traçam
retoques lúgubres na paisagem, emprestando-lhe um matiz de ruína e desolação.
Nuvens umbrosas e ameaçadoras rematam o sombrio quadro, emoldurando-o de
angustiosos presságios. Pedras volumosas, cavadas de reentrâncias e saliências,
mostrando farpas pontiagudas, ameaçadoras, interrompem freqüentemente a trilha
estreita e íngreme, obrigando-a a curvas acentuadas. Freqüentemente a pequena
estrada é entrecortada por outras trilhas que dão em todos os sentidos, emprestando
ao visitante a impressão de estar penetrando verdadeiro labirinto. Estas são as
“estradas de ninguém”, como são conhecidas aqui. Não levam a lugar algum e por
elas perambulam os espíritos verdadeiramente errantes, dementados, cujo único
passatempo consiste em caminhar incansavelmente

44 - Gilson T. Freire / Adamastor


por elas, sem rumo, sem destino, vagueando permanentemente em fuga de si
mesmos.
Pouco se divisa ao longe, sendo necessária grande destreza no sentido de
orientação para não se extraviar por completo nestas intricadas veredas. E,
realmente, com freqüência, caravaneiros ainda inexperientes se perdem,
necessitando do auxílio de tropas de busca, sempre de prontidão em nossa colônia
para este fim. O serviço, no entanto, adestrou-nos na orientação e por ali nos
movíamos mesmo de olhos vendados, pois percebíamos as correntes mentais e
podíamos segui-las com segurança quais animais de fino olfato que, farejando as
emanações trazidas pelos ventos, podem se guiar para os sítios de seus interesses.
As formações rochosas, lembrando amálgamas vulcânicos da crosta, parecem
crescer como troncos, emprestando ao ambiente uma atmosfera de exótico
irrealismo. Embora possam espantar os neófitos estudiosos do espírito, temos que
afirmar que são estruturas calcárias e graníticas, quais as do mundo físico. Muitos
se surpreendem diante dessa afirmativa, pois considerariam o Mundo Espiritual
confeccionado em substâncias fluídicas, leitosas, como mantos diáfanos e não
compreendem como seja possível divisar aqui rochas tão pesadas e firmes quanto
às da matéria bruta. Pois saibamos, de uma vez por todas, que o mundo espiritual
também é feito de substância urdida nas mesmas bases atômicas do mundo físico.
As duas matérias, física e extrafísica, diferenciam-se apenas na íntima
condensação de seus elementos inffa-atômicos, e ambas são de idêntica origem e
natureza, oriundas das mesmas energias coaguladas que entretecem todo o
sustentáculo do universo dinâmico e material.
A atmosfera angustiante e o frio gélido reinam juntos com o silêncio quase
absoluto e ameaçador, entrecortado por piados melancólicos e rugidos distantes,
intimidadores, avisando aos incautos que estão invadindo território alheio. Uma
impressão de ameaça paira no ar, sugerindo-nos que a qualquer momento monstros
horrendos podem nos atacar. Se o caminhante não é experiente no exercício do
autocontrole, deixa-se facilmente dominar pelo pavor, suscitado pelas vibrações do
ambiente, capazes de paralisá-lo por completo, atraindo as entidades das Sombras,
sempre atentas às emanações que o medo irradia. Somente o pensamento firme nos
propósitos superiores e a certeza de que não pertencemos ao meio nos reconfortam
e nos protegem. A presença de magnos espíritos como Heitor nos confere
serenidade e segurança, capacitando-nos para os serviços com a calma e a
confiança que demandam.
À medida que penetramos nas trevas mais densas, podemos perceber

ícaro Redimido • 45
formas animalescas esgueirando-se sorrateiramente entre as sombras ou passando ao
léu por não perceber-nos ou por não se verem atraídas pelos nossos eflúvios, em
nada condizentes com os seus interesses. Sintonizam- se especialmente com o ódio,
as emanações do pavor ou as vibrações das grandes culpas como se pudessem ver
essas projeções mentais, tal a acuidade que desenvolveram em percebê-las, de modo
que, se o transeunte não as exala, não se deixa ameaçar por tais criaturas infelizes.
As efluências que carreiam propósitos superiores do bem exercem ainda uma
barreira natural, afastando esses seres pela simples dissonância vibracional. Além
desses monstros errantes e solitários, encontram-se no Vale, freqüentemente, hordas
de espíritos malignos em busca de presas fáceis para seus propósitos de dominação
ou simplesmente para darem vazão aos seus instintos agressivos. São aqueles que
realmente podem molestar- nos, perturbando-nos o trabalho.
Formam’acampamentos provisórios, quais caçadores nômades e se apresentam como
antigos guerreiros e bárbaros dos tempos medievais, munidos, inclusive, de armas
semelhantes. Organizam-se em base a éticas involuídas, próximas daquelas que
imperam entre os animais, onde os mais fortes preponderam sobre os mais fracos,
subjugando-os segundo seus interesses. Poderosos chefes dominam largos territórios
e comumente batalhas selvagens são desencadeadas entre rivais por interesses
antagônicos ou disputas territoriais, formando um palco de agressões e alucinações
coletivas que o homem encarnado dificilmente poderia imaginar existir. O Plano
Espiritual superior, que orienta a evolução planetária, tolera esses círculos de
selvagerias, ciente das necessidades de redenção da alma humana, cerceando-lhes os
limites com desvelo e amor, enquanto aguarda a urgente evangelização do Orbe para
que possam ser saneados e a maldade banida definitivamente de nossas paisagens.
Ao atingirmos pequena clareira entre as rochas pontudas, Heitor estacou-se de
pronto, solicitando um minuto de concentração. Pressentia um bando de entidades
mal intencionadas aproximando-se, sorrateiramente. Sem dúvida perceberam nossa
presença e vinham ao nosso encalce. Naturalmente que nos achávamos providos de
meios naturais de defesa e os Senhores das Sombras não podiam nos infligir
sofrimentos. Mas o bom senso nos convidava a evitar altercações desnecessárias.
Assim, era melhor nos ocultar a fim de passarmos desapercebidos. Procuramos,
então, por uma reentrância mais próxima nas rochas, escondendo-nos bem ao fundo
de uma pequena gruta, em completa escuridão. Um forte odor de putrefação de
pronto agrediu-nos o olfato, repugnando-nos os

46 - Gilson T. Freire / Adamastor


sentidos, exigindo-nos o exercício do autocontrole, para não nos rechaçarmos
espavoridos. Era imperioso permanecer ali por breve período até que nos
sentíssemos seguros. Heitor, dando-se conta do fato e podendo divisar na escuridão,
afastou-se de nós, como à procura de algo que lhe atraía a atenção. Logo podíamos
ouvir os ruídos dos espíritos que se aproximavam com alarido. Gritos e uivos
ameaçadores indicavam suas disposições de ânimos nada aprazíveis.
— Não encontramos sinais dos santinhos podres. Vamos. Não estão por aqui
ou fugiram de medo. Os biltres do Cordeiro sempre se acovardam
— ouvimos um deles dizendo, em meio à completa algazarra. — Temos mais o
que fazer do que ficar seguindo estes patifes. Retornemos.
Em breve momento a celeuma se dissipava ao longe e podíamos prosseguir
nossa jornada. Sentia as vibrações dos pensamentos de Adelaide recheados de
receios, comuns aos neófitos em seus primeiros confrontos com os seres das
Sombras. Aconcheguei-a ao meu lado, a fim de apoiá- la em sua infundada
insegurança. Heitor, entretanto, chamava-nos a atenção, solicitando-nos a ajuda.
Um desvalido sofredor jazia no fundo da gruta e a caridade nos suscitava atendê-lo
como possível. Este era o motivo do forte cheiro de putrefação que sentíamos.
Tratava-se de um espírito recém desencarnado, jungido ao corpo físico por liames
perispirituais do qual hauria as emanações imateriais da degradação orgânica.
Trouxemo-lo para fora com todo o cuidado que a mobilização demanda nestes
casos. Podíamos agora vê-lo em seu adiantado processo de cadaverização. Sem
dúvida um dos quadros mais tétricos de se presenciar no Vale. Acalmamos
Adelaide que dava mostras de apreensão, embora estivesse já ciente do fato em
seus treinamentos anteriores.
A cadaverização acomete os imprevidentes que desencarnam sem o devido
preparo para a existência no Além, acreditando tratar-se o plano físico da única
possibilidade da vida. Ocorre ainda entre os suicidas que não conseguem
desvencilhar-se de seu mortuário orgânico, presenciando em si mesmos os terríveis
fenômenos da decomposição. Em sua grande maioria continuam atados aos seus
féretros, até que se esgotem os últimos alvores de suas energias físicas,
remanescentes nas carnes em decorrência da prematura morte. Outros são trazidos
por imantação a essas paragens, onde permanecem estirados nos lodaçais
purgativos. Encontrá-los escondidos naquelas covas era raro, daí o nosso
assombro. Possivelmente aquele fora atirado ali por espíritos vampiros com a
intenção de ocultá- lo, a fim de seviciá-lo mais tarde, dominando-o para os seus
propósitos indignos. É lastimável, mas forçoso é compará-los às feras que ocultam

ícaro Redimido - 4 7
suas carcaças para as devorar mais tarde, com paciência. Hostes rivais de
entidades vampirescas disputam essas presas imprevidentes com sofreguidão,
cobiçadas por serem fontes de energias vitais preciosas para seus sustentos. Quais
espantalhos vivos, são lânguidos joguetes nas mãos destes flibusteiros que lhes
sugam todas as forças, abandonando-os em estado lastimável.
Cautelosamente, para não provocar sobressaltos e intensificar os pesadelos que
vivenciava, acomodamos o infeliz em nossa padiola, a fim de transportá-lo para um
local mais seguro e aprazível. Nada pode nos comover tanto os sentimentos de
fraternidade do que a vista de um ser tão desvalido. Não podemos nos evadir de um
pensamento condoído de compaixão e meditar nas razões que levam um ser
racional a atirar-se em tamanha desgraça. Comoção que lança um brado de
interrogação rumo ao Senhor da Vida, como se Ele, Pai magnânimo e de Amor
infinito, fosse capaz de abandonar completamente os seus filhos. Um ser em
frangalhos, desfeito em nauseabunda e repugnante substância, mas um filho Seu,
que guarda uma alma feita da mesma essência que nos forma, tão sagrado quanto
qualquer ser vivo, como pode ser assim esquecido da criação? É necessário grande
entendimento dos mecanismos da vida para se compreender isso, pois do contrário
colocamo-nos, por nossa vez, revoltados contra a Sabedoria Divina que deveria
cuidar dos ignorantes como vela pelos animais inconscientes, nunca deixados ao
léu na natureza. Se Deus cuida das feras e lhes dá as covas para se protegerem, por
que não zela com maior desvelo pelos seus filhos caídos? Naturalmente que tais
inquirições não podem ser respondidas aqui. Guardemos a certeza, contudo, de que
o Senhor, com Sua infinita bondade e misericórdia, sabe o que faz, não podendo ser
questionado em momento algum e, muito menos, condenado por estas aparentes
atrocidades da vida.
A visão do infeliz nos cortava o coração, enchendo-nos de piedosos
sentimentos. Adelaide não podia conter o pranto silente e lutava entre a
repugnância e a extremada comiseração. Somente quem já esteve perto de um
destes seres consegue aquilatar até onde pode chegar a desventura da revolta
humana e a importância da ciência do espírito que, preparando- nos para as
realidades da vida depois da morte, protege-nos contra tais lamentáveis situações.
Comovido pela caridade inibo-me de descrever com minúcias a deplorável situação
orgânica do infeliz, detalhando-lhe a grave patologia perispiritual. Transportamo-lo
sem delongas, com toda a suavidade possível, continuando nossa caminhada,
silenciosos, rumo ao nosso objetivo.

48 ■ Gilson T. Freire / Adamastor


Adelaide nos interrogava com os olhos, buscando esclarecimentos sobre aquele
inesperado encontro e suas razões, mas não era hora para tergiversações.
Em breve podíamos divisar a entrada das Cavernas do Leste. Um dos guardas,
avisado de nossa excursão, já se achava a postos para nos receber, saudando-nos de
longe. Embora exercendo intensa vigilância nas entradas das Cavernas, nossos
sentinelas não podem impedir de todo a entrada de qualquer interessado, pois não
conseguimos o completo domínio sobre o local, em decorrência das vibrações
reinantes e das condições precárias daqueles que ali se hospedam. Por força da Lei,
eles se fazem suscetíveis aos ataques dos interesseiros do mal, aos quais se
prendem pelos laços da ressonância. O Bem não pode ter o controle absoluto do
reino das Trevas, por própria imposição da Lei de Deus, que dá a cada um o
produto de seus méritos. Enquanto existir a disposição para a maldade, as regiões
trevosas também existirão como os limites de seus domínios. A vigilância apenas
pode manter contatos com nossa colônia, avisando- nos da presença de seres
perversos e solicitando socorro para aqueles que se encontram em condição de
receber ajuda. Para os espíritos travessos, mais inconseqüentes do que realmente
maus, os vigilantes podem representar, entretanto, alguma intimidação às suas
incursões à cata de ovóides.
Penetramos no largo salão que dá acesso às grutas, verdadeiras câmaras
mortuárias. Aqui jazem os seres detidos em sono profundo de completa
inconsciência, perdidos de si mesmos, menosprezando a preciosidade do tempo,
verdadeiros estacionários da evolução, aguardando o dia do despertamento. Nem de
sonhos ou meros pesadelos se revestem suas consciências, ocultas na mais
completa obscuridade. Muitos podem permanecer nesse estado por décadas sem
darem mostras de qualquer atividade mental, denotando a gravidade em que
atiraram suas almas. Toda a profícua vida do espírito no plano em que nos
encontramos é malbaratada, desperdiçando-se as oportunidades de crescimento e
aprendizado. Alguns caminham para a ovoidização, como afirmamos, enquanto
outros são levados, pela caridade dos amigos, para reencarnações reconstituitivas
como única possibilidade de regeneração. Poucos se restabelecem antes de longos
anos de profundo sono. Daí a importância de nossa vigilância, a fim de socorrer
com eficiência aqueles que dão mostras de recuperação.
Adelaide nos perguntava, intrigada, quanto aos motivos de se manter em local
tão pouco acolhedor almas necessitadas de aconchego e proteção,

ícaro Redimido - 49
muito mais infelizes do que más. De fato, muitos são levados para as Câmaras de
Retificação, acomodações mais aprazíveis, em colônias mais iluminadas. No
entanto, a maioria deles pode sofrer choques vibratórios em ambientes elevados, à
semelhança da luz que, quando muito intensa, pode cegar. A necessidade de
permanecer em sombras traduz-se assim numa obrigatoriedade para quem não pode
suportar o brilho das regiões superiores sem se perturbar. Estas cavernas oferecem
o meio adequado para estas almas, em obediência à Lei de Deus, que situa cada um
no devido lugar de suas reais necessidades. E como nossa colônia, há outras que
cuidam dos desvalidos dessas cavernas, como quem zela por crianças abandonadas.
Mantendo vigilância constante, nossos dirigentes procuram retirar o mais depressa
possível aqueles que dão mostra de poder suportar sítios mais elevados.
Tochas pendentes projetam pálidas luzes nos recortes de rochas, tecendo
sombras tremulantes nas paredes do macambúzio salão. Uma atmosfera adensada
emanando mofo e exalando melancolia e morte nos envolve de imediato ao
penetrarmos o local. O trabalhador que ali adentra necessita de equilíbrio
emocional para não se deixar abater pelas agonias reinantes, paralisando sua
capacidade de servir. Pelo menos as Cavernas do Leste se conservam mais secas
pela temperatura que ali se mantém um pouco mais elevada, embora ainda muito
frias. A maioria delas, no entanto, são muito mais geladas e úmidas, tornando-se
ainda mais desagradável a permanência nelas.
Depositamos o infeliz suicida recolhido em nosso caminho sobre uma campa, a
fim de socorrê-lo como possível. Heitor o examinou mais detidamente, enquanto
guardas se aproximavam para observar. Não havia muito a fazer por ele no
momento, a não ser tentar induzi-lo ao sono profundo, bloqueando-lhe os pálidos
resíduos de consciência, a fim de que se desligasse definitivamente de suas vestes
cadavéricas. Entretecendo delicadas operações magnéticas, Heitor, adestrado no
hipnagogismo7 , operava o tronco encefálico, anestesiando a região talâmica,
bloqueando assim o tráfego dos impulsos que ainda provinham do que lhe restava
do distante corpo físico e cortou-lhe, finalmente, o laço fluídico de retenção
perispiritual. Um forte tremor o sacudiu de chofree, em breve, assistíamos a sua
respiração estertorosa acalmar-se, adquirindo ritmo lento, bastante irregular,
denotando que o amigo, graças a Deus, entrava em letargia profunda. Seus olhos
esbugalhados finalmente se cerraram, mostrando que o terrível pesadelo que o
perseguia, pelo menos momentaneamente,

7 Processo hipnótico de indução ao sono.

50 - Gilson! Freire/Adamastor
lhe daria sossego. Talvez assim pudesse ambientar-se nas Cavernas, caso não
voltasse a apresentar seus terrificantes delírios, condição então que lhe exigiria
outro tipo de socorro. Por ora, seria deixado ali, aguardando identificação e o
auxílio que demandasse. Olegário tomava as providências, encaminhando-o para a
assistência devida. Adelaide, comovida, mostrava interesse em conhecer-lhe a
história, para melhor ajudá-lo, alegando que se ele chegou a nossas mãos por vias
tão especiais, aparentando obra do acaso, era porque lhe devíamos assistência. De
fato, poderíamos penetrar em seus registros mnemônicos8 , identificando-lhe o
drama particular, mas não convinha determo-nos nesta tarefa, enquanto tínhamos
outra mais urgente para cumprir. Infelizmente, justificava Heitor, não era este o
momento e o que podíamos e devíamos fazer por ele havia terminado.
Cumpríramos essa missão e nosso outro socorrido, motivo de nossa jornada, corria
o risco da ovoidização, exigindo-nos maior urgência em seu atendimento. Cada
minuto era precioso naquele instante e entregamos o amigo aos cuidados dos
guardas da Caverna que zelariam por ele até que se tomassem as providências
cabíveis, pois esta era uma tarefa corriqueira para eles.

8 Relativo à memória

ícaro Redimido - 51
O Socorro no Tempo
Devido

“0 dom gratuito de Deus é a vida eterna” Paulo - Romanos, 6:23

D escemos, passando por diversas galerias, até atingirmos o terceiro


nível inferior da Caverna. Escadas íngremes, esculpidas nas rochas,
exigi-am-nos cuidados redobrados na deambulação na penumbra
quase completa. A iluminação não deve ser ostensiva neste ambiente,
pois as irradiações eletromagnéticas podem perturbar os que dormem,
suscitando-lhes vivências inadequadas de pesadelos, quase sempre
terrificantes, de difícil controle e indutores de loucuras.
Benedito, tarefeiro de nossa Colônia e responsável por aquele setor da Caverna,
já nos aguardava, avisado de nossa excursão. Após os cumprimentos habituais nos
disse o amigo:
— Bom que vocês chegaram a tempo. Tenho feito o possível para acalmar
Alberto. Há poucos dias percebi que ele está semidesperto e suas feições se
modificaram. Ele começou agora a vivenciar a desencarnação. Mas é preciso ajudá-
lo sem demora, pois ele dá mostras de piora rápida.
Espírito simples, porém zeloso, Benedito forjava sua reforma dedicando-se à sua
tarefa com extremada boa vontade, apesar das condições adversas do ambiente.
Trazia ainda a compleição de anão, oriunda de sua última encarnação e não tardaria
muito a ser transferido, pois há muitos anos se esmerava no penoso mister.

52 - Gilson T. Freire / Adamastor


Seguimos o amigo que se locomovia com destreza na penumbra, caminhando
sem titubear por intricados labirintos até estacionar diante de pequena gruta,
escondida em estreita reentrância de rocha, mergulhada em completa escuridão.
Heitor conferiu rapidamente a identificação afixada na entrada, embora sua
aguçada percepção espiritual não necessitasse disso, mas em obediência às normas
da direção da Caverna, pois alguns colaboradores podem se equivocar, perturbando
enfermos que não se acham preparados para o procedimento visado. Ao
penetrarmos, acionamos pequeno aparelho de iluminação portátil, de tonalidade
azulada, adequada neste momento, focalizando o aflito amigo a quem iríamos
socorrer como possível. Notamos, de imediato, que o pobre companheiro se achava
em completa hipnofobia, estado de terror durante sono profundo onde o indivíduo,
vivenciando pesadelos horríveis, não consegue operar estímulos eficientes a fim de
superficializar a consciência para a realidade. Uma agonia acerba domina a alma
do hipnófobo, perseguido por sonhos horripilantes que considera reais, sem
conseguir despertar, gerando um círculo vicioso de estímulos que podem levar à
rápida deterioração dos mecanismos da consciência e induzir à ovoidização, única
fuga possível. Não convinha ainda mobilizá-lo, era urgente atendê-lo ali mesmo.
Heitor deitou seu amoroso olhar em Alberto e lamentou-lhe a penúria
espiritual, suspirando profundamente. Cerramos os olhos em breve prece,
suplicando aos Céus os recursos necessários para o serviço. O infeliz amigo
achava-se enrodilhado em cama improvisada na rocha, completamente paralisado,
em rígida posição fetal. Sua organização psicossomática amoldara-se à morfologia
mórbida do dramático instante do desenlace violento a que se impusera, retirando-
se da vida. Trazia o rosto edemaciado, com a língua pendente e cianótica, estirada
lateralmente, completamente ressequida. Os olhos estacionados e esbugalhados
parecendo saltar das órbitas. As mãos atavam-se com sofreguidâo ao pescoço, onde
situava toda sua agonia, tentando em vão libertá-lo da sufocação angustiosa. Seu
peito arfava sem conseguir respirar. Sua mente, embora desfeita em completo
torvelinho de sofrimentos, despertava por instantes de seu sono comatoso, dando-
se conta de seu desespero. Podíamos ouvi-lo mentalmente, sussurrando palavras
mudas e aflitas de súplicas à Mãe Santíssima. Mas, por não encontrar nenhum
conforto na realidade do momento, seus pensamentos voltavam-se sobre si mesmo,
procurando por refúgio seguro na inconsciência. O sono, no entanto, não lhe era
também possível, pois breve entorpecimento era o bastante para lhe projetar em
angustioso pesadelo de queda, comum também nesta patologia

ícaro Redimido - 53
espiritual. A sensação de estar caindo em um abismo sem fim caracteriza a mente
que se aprofunda rumo à morte da razão. Aí estava patente o risco de ovoidização
iminente, única defesa possível para um ser que não encontra o bem-estar
almejado a todo custo.
— Depois de longo período de inconsciência absoluta, nosso amigo despertou
para vivenciar afinal o seu traumático desfecho — explicava Heitor, embargando
as emoções. — Para ele, é como se a morte se desse neste instante. Vejamos nisso
a providência divina que acoberta a alma das dores que não pode tolerar, adiando-
as para o momento em que possam ser suportadas da melhor maneira possível,
resguardando-a do desespero intolerável e da ruína da revolta.
Sua maior aflição, sem dúvida, era motivada pela impossibilidade de respirar,
encontrando-se a glote completamente estrangulada. O enforcamento estava
patente com sua realidade, estampada nas lesões típicas. Alguns espíritos, nestas
condições, trazem até mesmo a corda de que se serviram no ato ignominioso,
porém Alberto não a aparentava, mostrando apenas a região cervical
completamente macerada. Era imperioso, então, a introdução de uma cânula para
que pudesse respirar, encontrando maior conforto e assim nutrir alguma
possibilidade de recuperação. Iniciamos, sem delongas o procedimento, em tudo
idêntico à traqueostomia9 realizada pela medicina terrena. Qual ambulatório
aparelhado no socorro aos doentes a que se serve, mantínhamos nas Cavernas
recursos para estas intervenções. Em breve um prolongado sibilo deu mostras de
que Alberto podia respirar, enchendo a longos haustos os pulmões arfantes. De
imediato sua musculatura relaxou-se pela veiculação de maior taxa de oxigênio na
circulação. Sua mente enfim se embriagava de ar, após muitos anos de escassez,
fazendo-o finalmente desfalecer. Heitor manipulou recursos magnéticos a seu
favor, tranqüilizando-o por completo, acomodando-o em um sono repousante, sem
sonhos, ativando as conexões ascendentes dos núcleos da rafe e os neurônios do
locus ceruleus10. Seus precários centros vitais, esmaecidos, revitalizaram-se
momentaneamente de pálida luz azulada, provocando- lhe o afrouxamento dos
membros. Agora podia ser transportado com segurança para um atendimento mais
eficaz em nossas enfermarias, em Portais do Vale. A ameaça de ovoidização fora
superada de imediato e, com tratamentos mais adequados, tínhamos chances de
trazê-lo à nossa

9 Procedimento médico que consiste em abrir e introduzir uma pequena cânula na traquéia, a fim de se
permitir a livre respiração.
10 Estruturas cerebrais responsáveis pela ativação do sono.

54 - Gilson T. Freire/Adamastor
realidade, embora muito ainda se necessitasse fazer a seu favor. Agradecendo ao
Senhor a oportunidade do serviço e, deitando-o em nossa maca, iniciamos a viagem
de volta à nossa colônia.
Não era ainda o momento para conhecermos mais de perto o drama desse
infeliz. Sequer sabia se o teríamos sob nossos cuidados, de modo que me calei no
interesse de adentrar em sua história. Adelaide, naturalmente, endereçava-me
mudos questionamentos, mas sinalava-lhe com o olhar que aguardasse com
paciência. Heitor apenas nos informava que há aproximadamente três anos, ajudara
a depositar Alberto naquela mesma gruta, quando ainda participava das caravanas
de socorro em atividade no Vale. Ali permanecera em sono profundo, na mais
completa inconsciência durante esse tempo e somente agora entrava, de fato, na
vivência traumática da morte. Período até mesmo curto se comparado à média dos
que permaneciam ali, pois os espíritos submetidos a este tipo de patologia podem
estacionar por décadas, atados ao sono restaurador da consciência perdida. E
sabidamente, tratava-se de um tutelado seu ou de outros espíritos superiores, pois
sua prontidão em socorrê-lo parecia corresponder aos interesses de esferas mais
altas. Importante considerar que se as inter-relações no Mundo dos Espíritos
baseia-se em favores e intervenções facilitadas, como no plano dos encarnados,
esses favores obedecem sempre à Lei do merecimento e não atendem aos
propósitos ilícitos dos valores humanos, comumente fundamentados em
desideratos egoísticos, de natureza política ou monetária. Não se atiram pérolas
aos porcos, ensina-nos o Evangelho, por isso, antes de acionar as benesses de uma
assistência espiritual orientada, é preciso resguardar a condição de merecimento do
socorrido que, se não as detiver, não será objeto delas. Assim é que seguíamos
transportando nosso amigo, cientes de que chegara a sua vez, embora uma
multidão de necessitados agonizasse ao nosso derredor sem que pudéssemos
atendê-los prontamente, antes que os seus dias fossem contados.
Percebíamos ainda que Alberto não maculara seu destino com grandes feitos de
maldades e por isso não contava com perseguidores implacáveis atormentando-lhe
o coração na requisição de vinganças. Dava mostras de ter sido vítima apenas de si
mesmo, o que lhe facultava facilidades no atendimento. Quando os laços do ódio
se imiscuem nas grandes tramas humanas, as enfermidades que geram na alma são
de tamanha gravidade que não encontram solução na Erraticidade, requisitando a
contribuição de sucessivas reencarnações para que a real cura se instale no campo
do espírito. Há uma lei que confere benefícios segundo méritos, funcionando

ícaro Redimido - 55
inexoravelmente em todas as paisagens da alma humana e diante dela temos que
submeter nossos interesses exclusivistas, sempre prontos a burlar todos os limites.
Por isso, muitas vezes, em operações de resgates, temos que entregar à própria
sorte desventurados companheiros, atados pelas recíprocas inimizades, até que as
exigências de vingança das vítimas do ontem, vertidas em verdugos do hoje, se
esgotem no tédio dos dissabores ou na inconsciência de seus protagonistas.
Somente as grandes dores sanam os grandes males e, nestes casos, os sofrimentos
atrozes são os únicos recursos da misericórdia divina em favor dos
inconseqüentes.
Não havia tempo para o repouso, mesmo breve, pois devíamos voltar antes que
anoitecesse. No retorno, nossos passos seriam mais lentos e à noite as dificuldades
no Vale são maiores. Os malévolos, habituados às sombras intensas, colocam-se
mais à vontade e dispostos a perturbar aqueles que trabalham, exigindo-nos maior
vigilância. Ademais, transportando socorridos, temos que tomar cuidados
redobrados para não chamar a atenção de espíritos levianos, que se aproximam para
averiguar se o que levamos representa para eles algum interesse. Caso suspeitem
que sim, podem se dispor a disputar conosco o assistido, como se tratasse de mera
carga de interesses mercantilistas. Naturalmente que caravanas como a nossa
contam com defesas seguras para óbices desses, mas é preferível evitar a todo custo
altercações desagradáveis com seres inconseqüentes e sem outros propósitos que
não perturbar a ordem. Seres também dignos de piedade, os quais somente o tempo
e a dor podem convencer de alterar a jornada de revoltas em que se comprazem. É
preciso considerar que a dura lei de relações que impera neste reino de maldades se
assemelha ainda à ética primitiva dos guerreiros, baseada na imposição pela força e
em interesses egoísticos em que todos menosprezam a piedade e ignoram o mínimo
respeito ao bem-estar alheio.
Avançamos silenciosos pelo caminho de volta. Heitor redobrara sua acuidade
espiritual a fim de perceber a presença de entidades mal intencionadas antes que
nos notassem. Apenas por duas vezes tivemos que nos ocultar de transeuntes
errantes e, felizmente, nosso trajeto se fez sem maiores incidentes. Em breve
podíamos respirar aliviados ao avistarmos de longe o sinalizador que marcava a
presença dos portões de nossa colônia.
Atingindo os pórticos que sustentam os enormes muros de Portais do Vale,
ponto mais alto de nossa caminhada, fomos surpreendidos por uma imagem
inusitada, raramente vista naquelas paragens. Não pudemos deixar de nos deter,
extasiados diante do inesperado. Naquele instante o sol

56 - Gilson T. Freire/Adamastor
poente penetrava um de seus raios avermelhado e fugidio por uma fresta de nuvem,
invadindo as eternas brumas do Vale, iluminando-as por um raro momento. Sua
larga extensão, sempre enevoada, deixou-se embeber pelos matizes pálidos da
diáfana luz, permitindo-nos entrever sua exótica paisagem. Picos íngremes, como
farpas imensas, vestidos de névoas esbranquiçadas e planícies estiradas ao longe,
cobertas de mantos leitosos, desdobravam-se diante de nossos atônitos olhos, como
nunca havíamos visto. Um cenário exótico, porém profundamente melancólico
ecoava dor e lamento, estampando em nossas almas pesar e espanto. Extasiados,
não sabíamos o que dizer diante daquela singular visão, gota de piedade da
natureza que, apenas por um instante, libertava o Vale de dores das eternas
sombras como a lembrar aos seus infelizes habitantes que a alegria ainda é possível
para aquele que sabe esperar. Um sentimento de esperança nos invadiu na certeza
de que um dia o Planeta se verá livre deste imenso fosso de amarguras. A visão se
perdia nas névoas mais distantes, incendiadas por evanescente vermelho, que
rapidamente se desfazia em tons rosados, vazadas por cumes elevados que, como
mãos postas, afiguravam suplicar misericórdia aos Céus. Seguramente ali deve ser
o fim do mundo e, embora tácito, parecíamos ouvir o som de mil vozes clamando
por compaixão.
A nostalgia própria desta mágica ocasião fecundou-nos do mais genuíno e
sagrado sentimento da presença do Divino e nos detivemos em breve oração de
louvor e gratidão ao Senhor da vida, arrancando-nos as mais recônditas lágrimas
das almas doridas e carentes da paz verdadeira.

ícaro Redimido - 57
Fisiopatologia da
Autodestru ição

“Em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é escravo do pecado. ”
Jesus - João, 8:34

A lberto, depositado em confortável leito, respirava com certa


tranqüili-dade, mas não dava ares de recuperação imediata.
Arregalava os olhos buscando inutilmente divisar o exterior
mas somente conseguia enxergar os próprios pensamentos, desalinhados
e caóticos. O efeito calmante do sono induzido se esgotara e o infeliz
retornava à vivência de seus terríveis pesadelos.
— Que falta faz o sentimento de religiosidade para um espírito atormentado—
considerava Heitor. — Se nosso amigo tivesse alimentado a fé sincera, motivada
por crença, qualquer que fosse, estaria em melhores condições de reagir hoje. Se
ele não voltar a orar com lhaneza, não se colocará em condições de colher as
energias divinas que o envolvem. Ele não cultivou esse hábito e aprendeu a confiar
somente em si mesmo. Não alimentou a vida do espírito e se deixou convencer de
que apenas o vazio o esperava depois do túmulo. Ele não está habilitado a perceber
os estímulos de nosso meio e não consegue se desvencilhar dos tormentos íntimos.
Temos que aproveitar um pequeno potencial de bondade e humildade que ainda
traz no espírito.
Achávamo-nos na Casa de Apoio, nosocômio dedicado aos recém- socorridos
do Vale, em quarto acolhedor e individual. O ambiente, mantido ainda na
penumbra, contava com isolamento acústico e tênue luz azulada,

58 - Gilson T. Freire / Adamastor


a fim de não perturbar o repouso do enfermo com estímulos prejudiciais. Sua
dispnéia11 não fora de todo sanada com a traqueostomia, porque os delicados
alvéolos pulmonares achavam-se também lesionados pela prolongada hipóxia12 e a
musculatura brônquica reagia com espasmos violentos, obstaculizando o processo
respiratório tão importante à manutenção da fisiologia perispiritual quanto da
carnal. O coração batia desalinhado e aflito na tentativa de compensar a baixa taxa
de oxigenação reinante.
Um quadro em tudo semelhante à enfermidade asmática se instalara em
Alberto. Os amigos do plano terreno, habituados aos efeitos drásticos dos
medicamentos de potente ação no quimismo da carne, perguntar-se- ão se por
ventura o plano espiritual não disponibilizará de recursos de igual natureza em tais
circunstâncias. Certamente que qualquer médico gostaria de contar com a ajuda de
substâncias broncodilatadoras13 em momentos como este. Não nos iludamos, os
remédios podem ajudar, mas seus efeitos, quando aplicados com o princípio dos
opostos, se fazem acompanhar de reações adversas que levam ao aprofundamento
subseqüente da lesão que intencionam sanar. A cura real somente pode ser
alcançada pela ativação das vias do próprio equilíbrio, do contrário não se mantém
no perispírito, conquanto possa se suster por algum tempo na carne, simulando
uma solução segura para o processo mórbido. A introdução de substâncias
bloqueadoras dos receptores adrenérgicos14 , possível também em nosso plano de
ações, levaria a um efeito fugaz de abertura dos duetos brônquicos, mas se faria
seguir de um mais intenso reforço nos espasmos, pois a reatividade perispiritual é
surpreendentemente muito mais rápida e enérgica do que a física, podendo agravar
sobremaneira o processo, ao invés de conferir o mínimo alívio. Por isso nos
valemos de recursos magnéticos muito mais efetivos em nosso plano. O uso de
substâncias medicamentosas sutis, modeladas e aplicadas segundo os princípios da
Homeopatia terrena, é recurso de maior eficácia no plano espiritual, pois atuam
como um estímulo para o refazimento do próprio equilíbrio. E, neste caso, as
utilizaríamos se nada pudéssemos esperar da terapêutica energética.
Os amigos inscientes do espírito certamente estranharão nossas afirmativas,
considerando que estamos materializando sobremaneira o

11 Falta de ar, dificuldade de respirar.


12 Baixo teor de oxigênio no sangue.
13 Substâncias farmacologicamente ativas que promovem a dilatação dos brônquios, usadas na crise
asmática.
14 Estruturas moleculares das paredes celulares, onde atua a adrenalina.

ícaro Redimido - 59
ser desencarnado, mencionando detalhes da fisiologia comum à carne. A estes
lembramos que o espírito, no plano em que nos manifestamos, ainda se serve de
um organismo em tudo semelhante ao corpo físico, possuindo a mesma tessitura
celular e o mesmo arranjo de órgãos com funcionamento exatamente idêntico. Os
detalhes da conhecida anatomia humana se aplicam perfeitamente à anatomia
perispiritual, por serem em tudo análogos. Estas estruturas funcionam em íntima
conexão com o espírito, formando com ele uma unidade indissolúvel e, por isso,
irão refletir sempre, em forma de desorganizações estruturais ou funcionais os
mínimos desequilíbrios. Desorganizações estas, no entanto, muito mais evidentes
e consistentes no perispírito, por ser este um veículo de maior maleabilidade do
que o corpo físico. O cérebro, sede de nossa unidade substancial, a mente, sendo a
estrutura mais importante e mais complexa da nossa organização é o palco
imediato destes desequilíbrios, onde se manifestam de forma mais incisiva e mais
drástica. O perispírito, por isso, trabalha sabiamente a fim de desviar dele estas
perturbações, depositando-as, como possível, em regiões mais superficiais de
nossa unidade. Faz assim adoecer a periferia a fim de se resguardar o máximo de
equilíbrio para o psiquismo e seus apurados instrumentos de manifestação. Desse
modo, toda enfermidade superficial é uma defesa da mente e, se o corpo adoece, o
faz sempre para proteger a integridade do espírito. Quando, no entanto, o processo
mental se avulta sobremaneira, não há como impedir que os próprios pensamentos
desalinhados firam a delicada tessitura do encéfalo em forma de distúrbios
funcionais e lesões neuronais. Transtornos estes que, por sua vez, irão obstaculizar
o perfeito funcionamento da mente, devido à íntima unidade com que funcionam.
Não digamos, entretanto, com isso, que as desordens mentais se devam às
alterações de sua estrutura, como o faz a equivocada visão materialista da
medicina terrena.
Heitor operou novamente delicadas intervenções no campo mental de Alberto
de onde na verdade partiam as excitações nocivas para a manutenção de seu
mórbido estado orgânico, mas com poucos resultados atenuantes. Era preciso
empregar outros meios de alívio, pois, do contrário, nosso assistido iria iniciar,
sem dúvida o processo de encistamento da consciência.
O nobre amigo, no entanto, necessitava deixar-nos e nos confiou a guarda do
tutelado. Estava convencido de que a misericórdia divina se faria presente através
de nossos modestos recursos e despediu-se agradecido e contente pelos resultados
até então alcançados, não antes, naturalmente, de comprometer-se a nos ajudar no
que fosse possível, pois estaria

60 - Gilson T. Freire / Adamastor


acompanhando de longe o seu tratamento, envidando todos os esforços necessários
à sua recuperação. Retornaria nos momentos devidos para nos orientar no que
fosse preciso.
Assumimos naquela hora a tutela de Alberto. Adelaide, colocando-se ao meu
lado, dava mostras de que dividiria comigo a responsabilidade e que juntos
conduziríamos o seu processo de recuperação. Ela se admirava, no entanto, de
Heitor ter partido sem nos esclarecer alguma coisa de sua história e nem sequer
nos orientar quanto às providências a serem tomadas no cruciante instante.
Esclarecemos que Heitor apenas dava mostras de plena confiança em nossa
atuação, deixando-nos inteiramente livres para tomar as decisões que julgássemos
cabíveis. Sabia que iríamos mobilizar todos os recursos para a condução do
tratamento e, colocando em nossas mãos todas as decisões que o caso demandava,
evadia-se, humildemente, evitando nos roubar os méritos do sucesso se porventura
o obtivéssemos. Atitudes assim se encontram entre almas nobres que não
enxergam no outro o serviçal inútil que somente faz o que se lhe manda, anulando-
lhe a capacidade de auto-realização no serviço. Certamente que ele estaria
vigiando nossas ações e não se eximiria de intervir caso adotássemos
procedimentos errôneos que viessem prejudicar o seu tutelado.
A sós, diante do amigo que sofria, de pronto nos interessamos pelo seu drama.
Despertou-nos o desejo de conhecer-lhe o passado para melhor ajudá-lo, no
entanto não era ainda o momento, pois Alberto caminhava para a ovoidização e era
preciso adotar providências mais urgentes. Posteriormente, caso fôssemos bem
sucedidos, então seriamos convocados a penetrar em sua intimidade com maior
precisão a fim de conduzi-lo a um efetivo restabelecimento.
Ofegante, o infeliz reassumia a posição fetal como se recolhesse em si mesmo.
A desvitalização perispiritual nos mostrava a incapacidade de resposta eficaz aos
estímulos energéticos ou mesmo aos medicamentos de que dispúnhamos. Seus
membros enrijeciam-se e os movimentos oculares rápidos demonstravam a
imediata reentrada nos pesadelos cruciantes.
Convidamos Adelaide a um exame mais minucioso do enfermo a fim de
adotarmos as providências cabíveis. O quadro configurava todos os efeitos da
doença autodestrutiva ainda intensamente atuante e aproveitamos o ensejo para
detalhá-la para a amiga, interessada em aprender para melhor servir.
—Vejamos, Adelaide—disse-lhe, procurando envolvê-la no interesse pelo
estudo — a que ponto pode a louca desventura do auto-extermínio conduzir o ser.
Observemos a completa desorganização de nosso suicida

ícaro Redimido - 61
a fim de compreendermos com mais detalhes a sua fisiopatologia. Sei que são
velhos hábitos da nossa medicina, que parecem atender muito mais à curiosidade
do que ao sincero desejo de ajudar, mas certamente conhecer primeiro é o caminho
para se melhor interferir depois.
A autodestruição opera graves danos à organização perispiritual, sobretudo nas
delicadas estruturas encefálicas, onde induz suas lesões mais importantes. Para se
compreender esta patologia da alma, conhecida em nosso meio por Psicólise15 ou
Autocatálise, é preciso entender o comportamento das forças que operam no
perispírito e identificar as etapas do processo desencarnatório, momento em que se
estabelecem as suas perturbações.
Em nosso plano, o perispírito, também chamado psicossoma, é entendido como
um organismo energético, impulsionado por duas forças básicas: uma de expansão
e outra de contração. O primeiro impulso, caracterizado como hiperdinâmico, tem
caráter construtivo, operando crescimento, atividade e aumento do metabolismo. O
segundo, o hipodinâmico, gera repouso, diminuição de metabolismo e degeneração.
A contração faz decrescer o tônus vital e a expansão o dinamiza, portanto não são
movimentos necessariamente espaciais, porém dinâmicos e vibracionais. A
expansão promove construções de órgãos para atender às necessidades do espírito,
impulsionando a vida, enquanto que a contração os destrói, protagonizando a
morte. Morte que nunca é fim, mas apenas mudança de plano de manifestação,
permitindo-se com isso a constante renovação do organismo. Do equilíbrio e
alternância entre estas duas pulsões nascem todas as atividades operacionais do
perispírito e, conseqüentemente, do corpo físico. A diminuição de um deles
condiciona o impulso para o aumento do outro, de tal forma que o psicossoma
funciona qual mola que, se contraída, tende a esse expandir e, se estendida,
propende a se contrair, dentro dos princípios de ação e reação que embalam todos
os fenômenos do universo, sejam físicos, químicos, biológicos ou espirituais.
A elaboração evolutiva, desta forma, se faz pela alternância entre ciclos de
retração e de expansão, com resultados efetivos no desenvolvimento constante do
espírito. Por esta razão, crescimento e destruição, vida e morte devem se alternar
no palco da evolução onde uma é apenas condição que propicia o desenvolvimento
da outra. Isso faz ainda da evolução, qual onda de fases opostas, uma trajetória de
ascensão,

15 Palavra composta de psyché, termo grego que significa espírito ou mente, e lysis, ruptura, destruição.

62 - Gilson T. Freire / Adamastor


entrecortada por períodos de desfazimentos. Assim se faz o progresso que, como
todo ciclo, deve alternar suas fases. Tal é a mecânica da criação, que não permite
acúmulos em um único sentido. De outra forma o espírito seria eterno na matéria e
não amadureceria para a realidade maior que o aguarda.
Os momentos do nascimento e da desencarnação são os instantes nos quais se
pode verificar com maior precisão a atuação destas duas forças perispirituais.
Precedendo à reencarnação, o perispírito é dominado pelo impulso contrativo,
condensando-se em uma diminuta unidade celular, processo conhecido em nosso
plano por restringimento ou miniaturização, cuja intensidade está intimamente
relacionada à condição de cada espírito, sendo tanto mais intensa quanto menor o
seu patrimônio evolutivo. Ao entrar em contato com a carne, abraçando um óvulo
fecundado, o perispírito deflagra o movimento oposto, expansionista, realizando-
se com impressionante desenvoltura a rápida expansão da maturação embrionária.
O impulso de contração, no entanto, não está por completo detido, mas segue
impondo ritmos de pequenos retrocessos ao organismo, induzindo-o a destruir
momentaneamente o que fez, mas apenas para se refazer, movimento chamado de
caiabolismo. O impulso expansionista predomina nitidamente, realizando-se o
crescimento orgânico, movimento denominado pelos fisiologistas de anabolismo.
Dessa forma o metabolismo orgânico se compõe de uma fase de crescimento, a
anabólica, interposta por uma outra de destruição, a catabólica. Ao atingir o seu
ápice, em torno da metade do período da vida na carne, quando o organismo chega
à maturidade, o impulso expansionista inicia o seu decréscimo perdendo
paulatinamente a potência, permitindo assim que o contra-impulso volte a
predominar. Instala-se o envelhecimento, o catabolismo passa a imperar sobre o
anabolismo e o ser entra em automática e comedida autodegeneração orgânica, que
irá culminar com a completa morte na matéria. Chegando ao fim da fase
contrativa, o perispírito deixa o corpo e transfere-se a consciência para novo plano
de manifestação. A unidade perispiritual é, então, embalada por novo impulso
expansionista, reconstituindo-se outra vez, em renovado e refeito organismo,
completando-se assim o seu ciclo. Ciclo que em breve se reiniciará em novo
nascimento na matéria.
As forças perispirituais embalam consigo não somente o metabolismo físico-
celular, mas também a consciência, pois essa igualmente se apóia sobre uma base
energética. Na fase de contração a consciência se deprime

ícaro Redimido - 63
e se apaga momentaneamente, e na fase de expansão ela se exalta e se desenvolve,
de forma que o espírito, assim como a matéria e a energia, é também uma
elaboração baseada em uma síntese cíclica. E sempre que se inicia uma nova fase
de expansão, tanto a consciência quanto a forma passam por período de
refazimento na qual se reconstroem, recapitulando as etapas já percorridas em seu
processo de desenvolvimento. Assim é que o crescimento embrionário refaz, em
curto espaço de nove meses, os milhões de anos que já perpassou na evolução. E o
mesmo se verifica na morte física, quando a consciência, após breve período de
contração, novamente se expande, reconstruindo-se quase que imediatamente e
recapitulando todas as etapas vividas em sua última reencarnação. Tal fenômeno,
chamado de revivência mnemônica ou recapitulação panorâmica, é assistido
como uma projeção cinematográfica tridimensional e se passa em fugazes
minutos, embora seja percebido em uma outra realidade, parecendo demandar
longo período de tempo.
Apoiados nestas considerações teóricas recordemos agora, com mais detalhes,
as etapas do processo desencarnatório para melhor compreendermos os fenômenos
em jogo na patologia da autodestruição. O Plano Espiritual, com muita propriedade,
compara o momento da morte com a metamorfose dos insetos, pois em tudo lhe é
semelhante. Uma vez cessada a vida física, o desencarnante, embalado pela
contração perispiritual, inicia também a retração do metabolismo consciencial,
entrando na fase de crisálida, onde a atividade consciente se recolhe e se apaga
completa e momentaneamente. Nesse momento o perispírito, acelerando a fase
destrutiva e contrativa, promove a quebra de suas malhas teciduais, movimento
conhecido em nosso mundo por histólise16 perispiritual. Ainda sob o império do
impulso de contração, irá então intensificar a absorção dos remanescentes
energéticos que moviam o corpo físico, a fim de reciclá-los dentro da sábia
economia da natureza que procura tudo aproveitar. Terminada essa fase, dá-se lugar
a histogênese17 perispiritual, quando o psicossoma, expandindo-se, processa
rapidamente a sua auto-reconstrução, seguindo o mesmo molde previamente
desfeito, em base aos registros morfológicos retidos em suas malhas energéticas.
Nesse mesmo momento a consciência desperta

16 Palavra composta do grego histós, que significa tecido, e lysis, quebra. Portanto histólise perispiritual é a
dissolução dos tecidos orgânicos e perispirituais.
17 Do grego histós, tecido e gênesis, formação, portanto na histogênese o perispírito reconstrói os seus novos
tecidos, preparando-se para a nova vida no mundo espiritual.

64 - Gilson T. Freire / Adamastor


e, entrando também em reconstrução, recapitula rapidamente toda a experiência
realizada na matéria, momento nobre da vida do espírito, no qual ele recolhe tudo
o que semeou, revive o que aprendeu, fixa ensinamentos ou erros e se prepara para
a nova existência que se inicia. Em seguida, finalmente cai a consciência em novo
sono revitalizador para despertar logo mais, ativa e reconfortada, encetando a rica
vida espiritual.
A revivência mnemônica é importante etapa do processo desencarnatório que
visa à sedimentação dos conhecimentos hauridos na vida, retirando deles proveitos
para a jornada no Mundo Espiritual na forma de conhecimentos automatizados,
sendo indispensável recurso de reedifícação do psiquismo. Através dela o espírito
encontra-se em melhores condições de dar uma seqüência à sua vida mental
egressa da carne e promover, de uma maneira mais proveitosa, a sua evolução. As
experiências vividas e os conhecimentos adquiridos na existência terrena serão,
desta forma, transformados em impulsos instintivos, funcionando como pendores e
dons natos, tanto na Erraticidade quanto na futura reencarnação do ser.
O suicida, deixando-se embalar pelo impulso autodestrutivo, altera esses
movimentos naturais e necessários para a caminhada do ser na linha da evolução.
Alimentando o desejo de retirar-se da vida e intencionando a dissolução completa
de seu próprio eu, faz preponderar o movimento de contração sobre o de expansão,
promovendo assim a deterioração das forças reconstrutivas do perispírito. Deste
modo se pode compreender todo o desenvolvimento de fisiopatologia envolvida na
autocatálise. Como o perispírito é sumamente muito mais sensível às ações da
mente do que o corpo físico, refletirá, de forma instantânea e intensa, os profundos
desequilíbrios oriundos da psicólise. E será ainda no momento da desencarnação
que essas alterações far-se-ão sentir de modo mais proeminente, deixando depois
suas marcas indeléveis registradas em dismorfias perispirituais atípicas. As etapas
naturais da morte não se completam eficazmente no suicida, embalado por intenso
fluxo antivital. A histólise perispiritual é acelerada e a histogênese é extremamente
enfraquecida. A contração da consciência é tal que, obnubilando-a, não permite o
semidespertamento para dar lugar à revisão mnemônica. A assimilação dos
eflúvios vitais remanescentes do corpo físico não se conclui, de forma que o
cordão fluídico, por onde trafegam os impulsos comunicantes entre este e o
psicossoma, permanece ativado, unindo ambos em fortes liames e fazendo com
que os fenômenos da decomposição sejam sentidos pelo desencarnante. E, mesmo
que os

ícaro Redimido - 65
trabalhadores do desligamento sejam bem sucedidos nesta separação, estaciona-se a
histogênese na conformação do momento da morte, retendo por isso, de modo vivo,
todos os processos traumáticos a que o corpo físico fora submetido. De acordo com
a fixação do suicida em um desses momentos, determina-se o tipo de patologia
perispiritual predominante. Alberto fixara-se na paralisia da histogênese
perispiritual e não efetivara o despertarrtento da consciência. A histólise não se
detivera e ainda operava- se a retração perispiritual. Seu psicossoma, por isso,
mostrava-se completamente desvitalizado, moldado na aparência física do momento
da desencarnação e com a consciência completamente bloqueada. A revivência
mnemônica não se estabelecera e o impulso de reconstrução fora completamente
inibido, revolvendo-se o infeliz em adiantado contra- impulso vital, embalado pela
doentia vontade de não viver. Permanecera em completa inconsciência, sem dar
mostras de nenhuma atividade mental por longo período, até que finalmente
despertara para a vivência de pesadelos, não conseguindo manter-se desperto na
dura realidade em que se projetara.
Apreciando a complexa patologia da psicólise, o homem encarnado poderá
melhor ajuizar-se quanto à gravidade de suas levianas ações ao acelerar as forças
destrutivas de sua alma. Não somente engendrando o suicídio consciente, mas se
permitindo agredir de forma insciente e inconseqüente pelo abuso de substâncias
tóxicas de toda natureza que lhe facultem, nos prazeres fugazes, a fuga de suas
insatisfações. Em que pesem todas as condições adversas que obstaculizem a plena
concretização da felicidade na Terra, nada justifica a louca desventura de se auto-
aniquilar, pois as drásticas conseqüências do ato perdurarão por prolongados
períodos, quando o autocida terá que conduzir a reconstrução de si mesmo em
longa jornada de dores e refazimentos, perturbando sobremaneira a sua carreira
evolutiva, entretecendo-a de agruras ainda maiores do que aquelas de que
intencionou fugir.
Tocamos a fronte do moribundo com nossas destras, a fim de ouvirmos os seus
pensamentos e inteirarmo-nos de suas necessidades imediatas. A desorganização da
estrutura mental era assustadora e, de imediato, percebemos vibrações enegrecidas
alargando-se como um manto lamacento, recobrindo toda a delicada tessitura
neuronal dos lobos frontais, estendendo-se pelo sistema límbico18. As meninges,
delicadas lâminas

18 Complexo sistema neuronal formado por diversas regiões do cérebro que fazem a integração entre a
emoção e o corpo físico, através do sistema nervoso autônomo. Por meio dele a vida emocional interfere,
positiva ou negativamente no funcionamento visceral e na regulamentação metabólica de todo o
organismo. Dele fazem parte o giro hipocampal, o hipocampo, o tálamo, o corpo amigdalóide e o giro do
cíngulo, dentre outras estruturas.

66 - Gilson T. Freire / Adamastor


defensivas do sistema nervoso central, tentavam desesperadamente recolher essa
substância tóxica, concentrando-a em si mesmas.
— São as energias do pessimismo, da angústia e da negação de todo o
potencial divino depositado em nosso espírito — acrescentava, diante do espanto
da amiga. — Estas forças degradadas, geradas e alimentadas por uma doentia
vontade autodestrutiva, caracterizam um processo depressivo de longa duração,
Adelaide.
Alberto mostrava ter vivenciado prolongado período de autodesvalori- zação,
promovendo com isso a destruição das forças espirituais que sustentam a
consciência. Tal sentimento funciona, não somente como material isolante das
potências sagradas que trafegam pela mente e que fazem a manutenção do eu,
como contamina toda a malha neuronal em que se assenta o pensamento.
Engendrado pela própria vontade doentia e nutrido pelas frustrações a livre
realização dos intentos ególatras, depois de longo tempo, passa a funcionar por
retroalimentação automática, como se tivesse existência própria, degenerando todo
o delicado maquinário encefálico.
Nosso amigo trazia toda a tela mental enegrecida por essas emanações
degradadas. O centro coronário, empalidecido, sofrendo o bloqueio temporário das
energias divinas que o mantêm, não conseguia dinamizar as outras peças do
cérebro. Até mesmo a articulação mental das palavras estava impossibilitada
porque as ondas mentais originárias dos núcleos conscienciais não atingiam a área
de Broca19. O hipotálamo sobrecarregava a hipófise com estímulos desesperantes
de síntese de adrenocor- ticotróficos20 , objetivando uma resposta contra a iminente
ameaça de ruína orgânica. Toda a região somestésica21 estava coberta por manto
cinzento, determinando o bloqueio de quase toda a sensibilidade proprioceptiva. A
obstaculização das conexões do sistema límbico impedia a perfeita troca de
estímulos entre o hipocampo22, o giro parahipocampal23 e o corpo amigdalóide24,
ameaçando a instalação de uma verdadeira

19 Assim é chamada a área da fala no cérebro, que na verdade não a gera, mas apenas coordena as
estruturas físicas que propiciam ao pensamento escoar-se pelas vias da comunicação sonora.
20 Hormônios produzidos pela hipófise que estimulam a produção de adrenalina pela glândula
supra-renal, substância esta necessária nos momentos em que o organismo está submetido a
alguma ameaça.
21 Região do cérebro responsável pela sensibilidade.
22 Estrutura cerebral situada nos lobos temporais, considerada a principal sede da memória e
importante componente do sistema límbico.
23 Uma das circunvoluções cerebrais, as saliências sinuosas situadas em sua superfície, localizada
em sua parte inferior e interior. Faz parte do sistema límbico, além de ser sede da olfação.
24 O nome não se refere às amígdalas propriamente ditas, os órgãos defensivos da orofaringe, mas
sim às massas de neurônios situadas internamente no cérebro que fazem parte do sistema
límbico, sendo importante centro regulador do comportamento sexual e da agressividade.

ícaro Redimido ■ 67
ablação bilateral dos lobos temporais25. Além disso, a interrupção do círculo de
Papez26 se impunha como uma necessidade defensiva contra a grave depressão e a
ansiedade desmedida.
Numa desesperada tentativa de evacuar essas energias degradadas, as células da
glia27 trabalhavam intensamente, defendendo a integridade da delicada tessitura
neuronal, com o sacrifício de seus próprios metabolismos. Captavam as emanações
pestilentas drenando-as nos vasos que se dirigem à pia-máter28, onde se
acumulavam de modo assustador. As meninges se intumesciam prenunciando os
mecanismos que levam, em etapas posteriores, ao aparecimento de processos
infecciosos, quando os bacilos patogênicos, verdadeiros lixeiros dos sistemas
biológicos, são chamados também para colaborar com a drenagem vibratória, em
suas etapas derradeiras. As energias mais sutis, no entanto, escapam a este
processo mais grosseiro de limpeza e derivam-se para os sonhos, onde são
escoadas na geração de correntes mentais atordoantes, mas capazes de lhes
consumirem parte do potencial destruidor. Por isso os pesadelos, quando não se
trata de ideações induzidas por entidades malévolas, são mecanismos automáticos
de defesa da mente ao se ver ameaçada de desorganização pelos próprios impulsos
destrutivos.
Sua consciência se enchia assim de sensações desesperantes e imagens
aterradoras, fazendo-o experimentar todas as emoções primitivas da alma humana:
uma forma de exauri-las, porém recurso de valor limitado, pois impõe ao ser uma
lamentável vivência de pânicos. Sentindo-se esmagar por situações dramáticas,
Alberto vivenciava tormentos de destruição de si mesmo, imaginando-se em meio a
tempestades, furacões e outros perigos que lhe ameaçavam o aniquilamento
completo. Um tormento mental em tudo semelhante à síndrome do pânico29,
descrito pela psiquiatria terrena. Presenciava, de fato, uma situação real de perigo
iminente e por isso todas as reações típicas do medo extremo estavam presentes,

25 Quadro conhecido na Terra como Síndrome de Klüver-Bucy, observada no homem como conseqüência
da remoção dos lobos temporais e caracterizada por alterações do comportamento, como a cegueira
psíquica e a regressão à fase oral, levando o indivíduo a colocar na boca tudo que pega, mesmo coisas
completamente inadequadas ao consumo humano. A síndrome, embora muito rara entre os encarnados,
é manifestação comum entre os suicidas em estado de consciência reduzida a limites críticos.

26 Conjunto de várias estruturas cerebrais que compõem parte do sistema límbico. Este sistema, por sua
vez, é um importante conjunto de estruturas nervosas intracerebrais que participam das emoções.

27 Ou neuróglia, conjunto de células e fibras que sustentam os neurônios no sistema nervoso central.

28 Uma das membranas que formam as meninges, lâminas protetoras do encéfalo.


29 Patenteia-se aqui uma das origens desta psicopatologia de causas ainda ignoradas pela medicina.

68- Gilson T. Freire/Adamastor


dominando-o completamente. Qualquer associação lógica era impossível. O sistema
autônomo simpático protagonizava todas as reações possíveis de fuga. O coração
acelerava-se descompassadamente e o sistema vascular se retraía, concentrando-se
nas regiões de maior requisição orgânica no momento, deixando a pele fria e pálida.
Os pêlos se eriçavam como um animal acuado e os pulmões arfavam com pressa o
oxigênio impossível de ser absorvido com eficácia. Seus músculos estremeciam
como a se prepararem para uma imediata evasão. O centro gástrico, totalmente
retraído na inatividade, fazia desaparecer qualquer sensação de fome ou sede.
— Como você pode ver, Adelaide, nosso amigo está em plena fuga. Foge da
vida que parece ameaçar-lhe, enquanto que suas verdadeiras ameaças são internas e
engendradas por ele mesmo. Por isso foge de si mesmo, de seus próprios
pensamentos, de seu angustioso mundo íntimo e da desdita que cavou para si
próprio.
Compadecíamo-nos do amigo, na medida que vislumbrávamos a extensão de
seu drama íntimo. Podíamos sentir seu imenso pavor e seu desalento ao se ver
completamente impossibilitado de evadir-se do tormento em que vivia. De forma
impressionantemente realista o víamos na tela mental, refugiado dentro de uma
pequena gaiola, à qual se agarrava com desespero, solta e em queda livre rumo a
um abismo de trevas, em meio à furia de uma forte tempestade.
— Trata-se de uma barquilha, o pequeno cesto pendente dos balões, onde se
acomoda o aeronauta — dizia. — Ela, no entanto, desprendeu- se de seu apoio
aéreo e está caindo no vazio. Aí, nesta frágil estrutura, seu espírito busca um
refúgio desesperado e inútil. Nosso amigo degenerou os mecanismos de suporte de
sua consciência espiritual e o desastre parece iminente e inevitável. A defesa
segura somente se faz mediante a completa desestruturação dos mecanismos que
sustentam o eu na massa neuronal, fazendo-o retroceder às etapas primordiais da
organização mental, mergulhando-o na completa inconsciência. A qualquer
momento ele irá ultrapassar os limiares da atividade consciencial e estará
irremediavelmente encistado na pseudomorte ovoidal30. Nós o perderemos,
Adelaide, se não agirmos com urgência. Sua permanência no Plano Espiritual não
mais se sustenta. Seu mundo orgânico, perante tamanha desorganização, não irá
resistir por muito tempo.
— Somente a reencarnação... ,

30 O processo de formação do ovóide, assim chamado por simular a morte para um espírito que já
adquiriu a consciência - ver glossário.

ícaro Redimido - 69
— Sim, Adelaide, somente a reencarnação — continuei-lhe o pensamento — ou
várias reencarnações em condições precárias poderão proporcionar-lhe o
refazimento do espírito. No exercício paciente de novas e dolorosas experiências de
vidas, sua trajetória evolutiva será restituída, ainda assim com graves danos às suas
conquistas atuais, que praticamente se perderão. A memória de suas últimas
experiências na carne será desfeita quase por completo, tornando-se de difícil
acesso, por se verem resvaladas para os porões ocultos do subconsciente. Pouco
proveito auferirá ele de suas últimas e preciosas lições de vida. Trata-se de um
grave dano ao espírito, minha amiga, um dos quadros mais lamentáveis que se pode
presenciar em nosso plano. Vemos, no entanto, que embora sua mente não consiga
articular palavras, seu coração irradia uma silenciosa e desesperada súplica a Deus,
seu último refugio. Esses sentimentos sustentam o seu sistema circulatório, apesar
do caos orgânico, dotando-lhe de alguma capacidade de reação. Aí reside um
pequeno potencial de resposta que temos de aproveitar, agindo rapidamente. Resta-
nos ainda um último recurso, vamos recorrer à Embrioterapia sem demora. Não há
outro caminho.
A janela deixava-nos entrever os alvores da aurora prenunciando um novo dia,
ofuscando com miríades de matizes pálidos o manto de estrelas que rapidamente se
esmaecia no veludo purpúreo da abóbada celeste. O encanto do momento ensejava-
nos a presença do Divino e recolhemo-nos em sentida prece ao Senhor da vida,
para que nos ajudasse a realizar algo em favor daquele desventurado suicida.
Nossos corações se inundaram de sentimentos elevados, que, recaindo sobre ele, o
apaziguaram momentaneamente. A fim de prepará-lo para breve incursão na carne,
acomodamo-lo na câmara de restringimento, disponível para este fim e, sem
demora, demandamos o Departamento de Embrioterapia.

70 - Gilson T. Freire/Adamastor
No Departamento de
Embrioterapia

“E terás confiança, porque haverá esperança; olharás ao redor de ti e


repousarás seguro, deitar-te-ás, e ninguém te amedrontará. ” Jó, 11:18

D eixamos a Casa de Apoio rumo ao Departamento de


Embrioterapia. As intensas atividades noturnas se encerravam
em nossa colônia e muitos trabalhadores buscavam o repouso
em seus lares, enchendo as ruas de expressiva movimentação. O quadro
se assemelha às grandes cidades da Terra, no fim do expediente diário,
mas aqui se verifica o contrário. Aproveita-se o período noturno, quando
os encarnados repousam, para se trabalhar com mais proveito junto aos
espíritos desligados do corpo físico. O dia nos serve para o recolhimento
e o serviço interno, digamos assim. Muitos desencarnados ainda precisam
do descanso para a restauração das forças perispirituais desgastadas no
trabalho corriqueiro, recolhendo-se para isso, comumente em seus lares
ou em locais de lazer durante parte do dia. A medida que o espírito se
habitua à vida espiritual, reduz-se-lhe essa necessidade de refazimento,
enquanto os recém-chegados da Terra ainda se utilizam do período noturno
para o sono, como de hábito quando encarnados. Adelaide e eu já
estávamos afeiçoados ao serviço quase constante e nossa necessidade de
descanso se fazia unicamente semanal, sem que déssemos mostras de
exaustão. Por isso, avançamos rapidamente para o referido Departamento,
a fim de agilizarmos a assistência a Alberto.

ícaro Redimido - 71
Rumando para o outro extremo de nossa colônia, o ambiente paulatinamente se
modifica, enriquecendo-se de jardins acolhedores, árvores frondosas, fazendo-se
mais presentes as irradiações solares, tão salutares para a vida do ser, em qualquer
nível em que se manifeste em nosso orbe. A Casa de Apoio encontra-se no limiar
do Vale, recebendo ainda de forma expressiva a sua influência vibracional, pois os
enfermos ali acolhidos necessitam de uma ambientação progressiva. Poderíamos
compará-los àqueles que, vivendo nas trevas, para retornarem à luz do dia,
precisam de paulatina adaptação à claridade a fim de não se enceguecerem. Por isso
esse nosocômio não conta com proteções seguras contra as vibrações do Vale e
seus ambientes são um tanto quanto lúgubres e sombrios. Suas construções são
rudes e seus jardins, áridos, embora o ambiente se faça acolhedor e confortável em
comparação às cavernas e charcos de onde a maioria procede.
Adentrando os portões do Departamento de Embrioterapia, Adelaide admirava-
se de seus ricos e floridos jardins, uns dos mais belos de nossa colônia. Seguíamos
por uma larga passarela ornamentada de flores, onde podíamos admirar uma série
de estátuas situadas a distâncias regulares, representando as sete etapas principais
da embriogênese. A primeira delas mostra uma mórula, uma massa de 16
blastômeros, desenhada em minúcias, marco inicial do desenvolvimento
morfogênico. Seguem-se esmeradas reproduções das demais fases embrionárias, na
exata seqüência de seus desenvolvimentos, cópias perfeitas de suas congêneres
vivas, talhadas em substância vítrea, deixando entrever em seus interiores todos os
seus ricos detalhes anatômicos. Todas elas, ademais, emitem vibrações sonoras de
delicada composição musical, a se difundirem por todo o ambiente. A última, no
entanto, nos desperta especial atenção, uma das mais belas esculturas de nossa
colônia: dois vigorosos braços de mármore, saídos da rocha bruta, sustentam no
alto um bebê humano, recém-nascido, ainda com o cordão umbilical pendente,
estampando na face um meigo sorriso para a vida, no lugar da habitual expressão de
dor. Um receptáculo, à feição de uma concha uterina, envolve-a em delicado
espelho d’água, refletindo-lhe a beleza no líquido cristalino. Realmente uma linda
construção capaz de suscitar admiração a quantos dela se aproximam, despertando,
não somente os sentimentos de maternidade e paternidade, mas sobretudo a
gratidão pelas dádivas do processo reencarnatório.
Adelaide estacionou-se, extasiada, diante do magnetismo da obra. Desejava
beber-lhe as sutis emanações e fazer embalar sua alma nos doces sentimentos da
maternidade terrena, bênção incontestável do Pai, através da qual somos partícipes
de Seu sagrado ato de criar.

72 - Gilson T. Freire/Adamastor
—Esta é uma das mais famosas estátuas de Portais do Vale— expliquei ante o
emudecimento da irmã. — Chama-se Esperança e representa os sentimentos do
suicida perante a vida, que lhe brinda com novas oportunidades de refazimento,
através da bênção da reencarnação. Quase sempre o retorno à carne dentre os
suicidas se faz em estágios dolorosos, em corpos deformados e através de
embriões frustros, abortados na primeira oportunidade, quando não são cruelmente
expulsos por mães que não lhes toleram as emanações negativas. No entanto, o
sorriso desta criança guarda a esperança em futuros renascimentos saudáveis e
felizes. Diante deste monumento muitos se emocionam, ansiosos pelo retorno ao
ritmo natural da vida.
— São realmente emocionantes e nos retiram vibrações do mais fundo da alma
— respondeu, enfim, a amiga, ao lhe cessar o influxo vibracional de sadia
emotividade.
Examinando essas estatuetas nos perguntamos como pode o homem moderno
se convencer de que as formações embrionárias são meras construções de forças
casuais da carne. Absurdo igual seria afirmarmos que essas estatuetas são produtos
de encontros fortuitos das substâncias que as constituem. As estruturas
embrionárias são resultantes de cálculos precisos que prevêem com exatidão
detalhes que desconhecemos. As células germinativas não detêm um
conhecimento de conjunto para levar a efeito tamanha sabedoria. Tal não se pode
exigir de uma unidade celular ou mesmo do código da vida, o DNA, mero registro
de moldes protéicos. Há necessidade de uma fonte diretora e unificadora de
propósitos, que conheça a finalidade e o resultado final da construção levada a
efeito. Imaginar o contrário seria o mesmo que admitir que bastaria ajuntar os
materiais formativos de uma casa para se obter a sua perfeita edificação, sem a
necessidade do arquiteto e dos executores da obra. Por isso é muito mais lógico
compreendermos que as células físicas são meros tijolos posicionados pela
sabedoria formativa do espírito; este, sim, o verdadeiro artífice do edifício
orgânico sob a orientação divina.
— Estes monumentos guardam o propósito de prepararem o visitante para
adentrar-se no sagrado ambiente do Departamento, suscitando-lhe o respeito pela
magnitude da vida—prosseguia. — Entretanto, esta última funciona também como
um coletor vibracional. Todos os visitantes que por aqui passam, deixam aos seus
pés as mais santas emoções da maternidade, impossíveis de não serem suscitadas.
Energias emocionais que são colhidas a fim se servirem à reencarnação de muitos
espíritos infelizes, desprovidos de suficiente força vital para se sustentarem na
carne.

ícaro Redimido - 73
Atrás desta última estátua, abre-se um admirável e sereno lago, tendo em seu
centro as construções do Departamento. Árvores frondosas e floridas contornam
todo o lago, tecendo verdadeira coroa de flores ao seu redor.
— Aqui, Adelaide — continuei, diante da amiga ainda extasiada — estamos
em um Departamento que necessita de defesas seguras contra as emanações que se
irradiam do Vale, pois acomoda os suicidas em interregnos reencarnatórios,
quando se acham extremamente suscetíveis às emanações do mal, desguarnecidos
de suas proteções naturais. Poderíamos dizer que aqui os espíritos se encontram
quase nus, desvestidos de suas habituais roupagens. Não, não pense que os
veremos em forma pura — adiantei-me ao perceber-lhe o pensamento assustado —
o espírito puro não existe ainda no plano evolutivo em que vivemos. Na verdade
continuam revestidos de material orgânico, porém bastante tênue e instável.
Acalme-se! Vamos visitá-los e logo você compreenderá melhor.
O lago atua qual malha absorvente de eflúvios, particular propriedade da água,
como sabemos. As árvores ao redor são cerejeiras mantidas em permanente estado
de floração, cujo viço branco também guarda especial absortividade das irradiações
do pesar. As melodias, permanentemente irradiadas das estátuas, funcionam como
um manto musical abafador das emanações do desespero e da insegurança,
neutralizando com eficiência seus efeitos perturbadores. O visitante, no entanto,
que aqui chega ainda portando sentimentos pesarosos é impedido de atravessar a
ponte que leva ao interior do Departamento, devendo aguardar ou retornar desse
ponto. Espíritos lúgubres, repletos de negativismos, não podem adentrar neste
ambiente e, por isso, a vegetação aqui não lhes sofrendo as influências nefastas,
detém especial exuberância, sendo até mesmo mais expressiva do que a do nosso
Templo Central, onde todos têm natural acesso.
Três enormes edifícios em forma de cúpulas erguem-se na pequena ilha rodeada
por águas puras e mansas. No centro uma torre pontiaguda, vítrea, como uma
espícula, erige-se para o alto, emprestando à arquitetura um aspecto futurista.
Entramos em um imenso salão onde vários operários transitavam e procuramos por
Fausto, o interlocutor direto de nosso trabalho. Expusemos-lhe a situação de
Alberto e ele se prontificou a agilizar os procedimentos habituais mediante a
urgência do caso. Recorreria prontamente a informações superiores, estabelecendo
o plano de tratamento e, em breve, os contatos necessários com os envolvidos
diretamente no processo seriam levados a efeito.
Alberto foi imediatamente transferido para o Departamento a fim de se agilizar
o seu preparo, dando-se prosseguimento ao seu restringimento,

74 - Gilson T. Freire / Adamastor


o que demandaria alguns dias. Restava-nos, por ora, apenas esperar o andamento
do tratamento proposto.
A embrioterapia é o mais eficaz recurso terapêutico usado em nosso plano em
favor dos suicidas, principalmente daqueles que estão na iminência de ovoidização.
Visa colocá-los em contato com as salutares energias maternas, a fim de adestrar
convenientemente seus impulsos autocatalíticos. Como vimos, tais pulsões podem
terminar por desorganizar completamente a estrutura perispiritual do psicolítico31 .
Conduzido, no entanto, para o ambiente uterino, ele encontra a sua devida
orientação, de modo a se acomodar em natural processo reencarnatório. O impulso
contrativo, dessa forma, não é simplesmente forçado a uma repressão, mas
reorientado e devidamente aproveitado. O homem terreno guarda a ilusão de que se
pode simplesmente eliminar estes impulsos patológicos, fazendo-os desaparecer,
mas no mundo biológico eles funcionam quais projéteis cujas trajetórias não
podem ser obstaculizadas sem que provoquem estragos ainda maiores, devendo ser
reorientados a fim de que minorem seus efeitos. Ao entrar em contato com o útero
materno, esgota-se-lhe o impulso contrativo, invertendo-o no sentido da expansão,
levando ao refazimento do perispírito. O impulso histolítico é exaurido e o
histogênico é estimulado satisfatoriamente, detendo-se assim a ovoidização.
Serve ainda a embrioterapia para o escoamento do potencial de negatividade do
suicida. A massa embrionária, por especial propriedade da carne, presta-se como
um adstringente poderoso de suas energias degeneradas, drenando-lhes o potencial
destrutivo. De modo geral, esse escoamento vibracional é de tal monta que
imprime graves deformidades à massa celular em desenvolvimento, tornando-a
incompatível com a vida, terminando o autocida32 por ser espontaneamente
expulso. Em muitos casos, no entanto, o abortamento natural não se faz esperar,
pois as energias negativas que irradia na mãe tornam-no vítima de criminosa
expulsão. Um mal sem justificativas, mas que as sábias leis da vida fazem com que
redunde em proveitos para o Bem, servindo-se para a correção dos rumos do
suicida. O sofrimento abortivo termina por ser também terapêutico para este, pois
sua consciência registrará a frustração diante da morte prematura, fixando o
ensinamento da real valorização da vida.
A isso ainda se deve acrescentar o fato de que o fole uterino é um auxiliar da
drenagem vibratória do reencarnante, funcionando também

31 Termo de origem espiritual oriundo de psicólise, já definido, significando aquele que no mundo
espiritual continua se autodestruindo, o suicida do espírito - ver glossário.
32 Aquele que comete autocídio, o mesmo que suicídio.

ícaro Redimido - 75
como uma desembocadura para os seus impulsos negativos. Tudo isso faz da
embrioterapia o melhor remédio para o suicida, indispensável, na maioria das
vezes, à sua recuperação.
— Mas para isso, então, a embrioterapia deve contar sempre com mães
dispostas ao sacrifício. Será sempre possível encontrá-las receptivas, acolhendo em
suas intimidades entidades tão desequilibradas?
— Isso requer cuidadosas considerações. Na verdade, as mães nem sempre se
acham, de fato, dispostas a esse sacrifício e quase sempre a prova lhes é imposta
por deméritos. Trata-se, comumente, de mulheres que realizaram abortos em outras
existências e não detêm condições saudáveis para o pleno desenvolvimento fetal.
Trazem lesões energéticas no aparelho reprodutor, tornando-as incapazes de
saudável sustento ao embrião, servindo então para a reencarnação de espíritos
igualmente lesados, como os suicidas. Outras são mulheres levianas, que praticam
o sexo descompromissado, guardando natural aversão à gravidez, com firme
disposição à prática do aborto criminoso. Não somente mulheres, mas homens
frívolos em busca dos prazeres fáceis, que também são chamados à
responsabilidade pelos seus atos. Neste caso a prova lhes é imposta pelas Leis
Divinas, que acomodam aqueles que negaram a existência junto àqueles que
também lhes recusam o nascimento. São fatos que servem como recursos
terapêuticos para todos os envolvidos, chamando a atenção daqueles que lidam com
o sexo como se fosse mero veículo de prazeres e ensinando a outros a valorização
da vida. Assim funciona a Medicina da Lei, que a tudo condiciona de modo que
nada exista sem objetivos sublimes e até mesmo o Mal encontre realizações no
Bem.
Os protagonistas do processo, no entanto, não são escolhidos ao acaso. O
Departamento de Embrioterapia se encarrega da cuidadosa seleção daqueles que
irão receber o suicida. Normalmente exige-se a existência de relações entre os
envolvidos, pois dificilmente um espírito é aceito para a reencarnação sem o
consentimento, mesmo inconsciente, de seus pais. Essas relações são
cuidadosamente estudadas, buscadas muitas vezes no passado, para que o processo
se faça alicerçado na lei de causa e efeito e redunde em proveito para todos. Sem
que essas interações se estabeleçam, suas chances de êxito se tornam muito
reduzidas.
Importa ainda considerar que o organismo materno está, até certo ponto,
defendido do alto poder destrutivo das energias fetais degradadas, pois a natureza
lhe dotou de um dos mais qualificados mecanismos de defesa contra tal potencial
desorganizante: a placenta. Esta é, seguramente, o mais eficiente instrumento
biológico de adstringência vibracional que se conhece. Ao mesmo tempo em que
nutre o reencarnante e recolhe

76 - Gilson T. Freire / Adamastor


seus excretos biológicos, absorve também com sabida avidez as suas energias
negativas, impondo-lhes eficazes bloqueios e drenando-as com segurança através
da organização materna. É, dessa forma, um verdadeiro filtro miraculoso cujas
células, especializadas nesta sagrada função, sustentadas pelo amor materno,
minoram a carga deletéria do reencarnante, proporcionando-lhe um
desenvolvimento embrionário compatível com suas necessidades. Muitas vezes, no
entanto, essa carga vibratória ultrapassa o limiar neutralizador da placenta,
tornando-se passível assim de atingir o organismo da mãe, desencadeando os
incômodos sintomas da gestação. O metabolismo materno, ativando os seus
próprios emunctórios33 vibracionais, intensificará a eliminação de líquidos
orgânicos, carreadores dessas energias deletérias, através do aumento do fluxo
urinário, da sudorese e, mais freqüentemente, dos vômitos, estabelecendo-se dessa
forma a hiperemese gravídica34. Em graus mais avançados essas vibrações podem
ainda ocasionar as infecções ginecológicas e urinárias da gestação, quando essas
cargas energéticas são de tal monta que os microrganismos são convocados para
auxílio mais eficiente na drenagem fluídica excedente. Se nada disso é suficiente,
assistiremos então ao estabelecimento dos quadros de eclampsia35, que a medicina
terrena chama também de toxemia gestacional e que corresponde a uma verdadeira
intoxicação vibratória, podendo, aí sim, trazer graves danos à organização materna,
quando a gravidez não é interrompida pelo abortamento espontâneo ou induzido.
Quadros mais dramáticos, estes que, no entanto, guardarão sempre correspondência
entre causa e efeito para se estabelecerem nos destinos de seus protagonistas.
Caminhando por extenso corredor, notávamos o grande número de
colaboradores movimentando-se ativamente, porém com calma e respeitoso
silêncio sem provocar o mínimo sinal de tumulto no ambiente. O Departamento não
somente estabelece as diretrizes da embrioterapia como prepara, acomoda e
acompanha o suicida em sua incursão na carne, até a sua plena libertação do
processo autocatalítico. O serviço demanda número expressivo de trabalhadores
especializados. Suas enfermarias acolhem ainda os suicidas nos interregnos
reencarnatórios, estacionados em delicados estágios em que se apresentam detidos
na fase embrionária do desenvolvimento físico, impregnando-se suas malhas
perispirituais da

33 Órgão, abertura ou canal por onde se eliminam do organismo os produtos da depuração do


metabolismo, não somente físicos, mas também vibracionais.
34 Vômitos habituais da gravidez.
35 Quadro caracterizado pelo aumento da pressão arterial durante a gestação, podendo trazer graves
conseqüências para a mãe e o feto.

ícaro Redimido - 77
aparência de fetos dismorfos36, fenômeno aqui chamado de embriomorfia.
Percebendo a extrema curiosidade da irmã, convidei-a para uma rápida visita à
Câmara dos Embrióides, como também são conhecidos os embriomorfos, a fim de
que pudesse avaliar a delicada condição desses espíritos. Mediante autorização,
penetramos assim a referida enfermaria. Enorme sala acomoda pequenas câmaras
semelhantes às estufas existentes na Terra, onde se abrigam os recém-nascidos.
Fios quase invisíveis pendem do teto, conectando-se a estes pequenos cestos.
— São todos espíritos suicidas, assistidos pela nossa colônia — explicava à
Adelaide. — Passaram por uma primeira encarnação a fim de se refazerem da
louca desventura da autodestruição. Estes embrióides, no entanto, participaram de
encarnações malogradas, pois não detiveram suficientes impulsos vitais para se
sustentarem na carne. Poucos, entretanto, evoluíram até a expulsão espontânea,
sendo a maioria vítima do aborto criminoso.
De modo geral estes espíritos desencarnam com reduzido potencial
expansionista e por isso não estabelecem adequada histogênese perispiritual,
aprisionando-se na forma física embrionária detida. Muitos trazem os sinais das
teratogenias37, impostas na carne, pelas suas vibrações deletérias e outros ainda se
deixam impregnar pelas lesões próprias do abortamento instrumental. Assim
permanecerão até que novas oportunidades reeencarnatórias os libertem do
aprisionamento da forma. Sob os cuidados de dedicados colaboradores
permanecem aqui, aguardando as bênçãos de novas reencarnações. Suas
necessidades de sustento são muitíssimo reduzidas e consistem praticamente de
calor e vibrações, principalmente aquelas oriundas da maternidade. Os fios
pendentes do teto trazem estas emanações, colhidas de diversas origens, como
pensamentos de familiares distantes, preces de entes queridos e energias colhidas
em reuniões de intensificação vibracional, sessões levadas a efeito pelo
Departamento, com este fim.
— Quer dizer que os sentimentos maternais que a estátua suscitou-me estão
sendo empregados aqui, neste momento? — Lembrou a amiga, admirada.
— Sem dúvida. E muito bem aplicados!
Convém esclarecer que o Departamento acomoda somente os embrióides
oriundos do Vale, enquanto outros, não suicidas, encontram assistência em
diferentes colônias do mundo espiritual. Existem ainda

36 Sem forma.
37 Desenvolvimento fetal em formas monstruosas.

78 - Gilson T. Freire / Adamastor


aqueles que, muitas vezes, permanecem imantados aos organismos maternos depois
de expulsos do meio uterino, jungidos por laços de amor ou intensos ódios
recíprocos, compondo quadros graves, exigindo solução no tempo. Comumente tal
comportamento, contudo, não decorre de reencarnantes suicidas, pois devido aos
seus precários estados vibracionais, estes não se acham capazes de alimentar tais
sentimentos e, mesmo inconscientes, dão-se conta de suas condições de devedores
da vida.
Observando respeitosamente os pobres seres dismorfos, protegidos por
incubadoras translúcidas, podíamos perceber suas atividades vitais através dos
batimentos cardíacos, visíveis nas pulsações das artérias superficiais. A intensa
contração de suas auras, condensadas pela miniaturização, envolve-os em névoa
leitosa, deixando-lhes os limites físicos pouco precisos.
O aborto criminoso, entretanto, deve ser considerado como um fator agravante
da embriomorfia. Quando o suicida consegue maior permanência no ambiente
uterino, pode neutralizar com mais eficiência o seu potencial contrativo,
desencarnando em melhores condições de completar satisfatoriamente sua
histogênese perispiritual. Fato, todavia, diretamente dependente da potenciação
espiritual de cada um e dos méritos morais arquivados. Quanto maior as aquisições
evolutivas do indivíduo, maiores são suas possibilidades de refazimento.
— Penso naquelas que abortaram e hoje se dão conta de haverem provocado
tanto mal a seres já por si tão infelizes. Como poderemos ajudar a consolar esses
corações que caíram? — questionou a irmã, preocupada com aquelas que
acobertaram o crime em plena ignorância de seus atos.
— Devemos compreender que não são somente as mulheres que abortam.
Muitas vezes são elas vítimas da incompreensão de familiares ou de companheiros
que não assumem com elas as responsabilidades pela maternidade. Desvalidas e
rejeitadas pela sociedade, vêem-se compelidas ao ato por forças das circunstâncias
e profundas inseguranças diante da vida. Sem considerarmos aquelas que são alvos
de estupros ou seduções. Não nos iludamos, os homens também realizam abortos e
podem se responsabilizar muito mais pelo ato impensado do que as mulheres. Para
aquelas que incorreram no erro sem conhecer a extensão do mal praticado,
podemos aconselhar a dedicação à gravidez desamparada, ajudando as mães que
desejam ter seus filhos, mas não encontram recursos para isso. E que tratem de
criar condições para engravidarem, o mais

ícaro Redimido - 79
rápido possível, se puderem, a fim de minorarem seus compromissos diante da
vida.
— Nosso Alberto corre o risco de se estacionar na embrio-morfia, neste caso?
— perguntou, preocupada, a amiga.
— Sim, não conhecemos ainda o seu potencial moral, mas mesmo que ele se
aprisione na embriomorfia, sua condição será muito melhor do que na
pseudomorte ovoidal e seu tratamento será muito facilitado. A ovoidização é
patologia muito mais grave e significa perda evolutiva muito mais expressiva do
que a embriomorfia. Os embrióides detêm mais rápido potencial curativo e muitos
conseguem se desenvolver completamente até a forma adulta, mesmo no Plano
Espiritual, sem passar por imediata reencarnação.

80 - Gilson T. Freire/Adamastor
Na Câmara dos Ovóides

O salário do pecado é a morte Paulo - Romanos, 6:23

ão podíamos, no entanto, deixar o Departamento sem


completarmos as lições do dia e por isso convidei Adelaide
para examinar de perto a Câmara dos Ovóides, contígua à
enfermaria que visitávamos.
— Conheço a existência destes estranhos seres, mas jamais vi um deles —
dizia a estudante, admirada diante da ímpar oportunidade.
Uma sala de iguais dimensões continua a Câmara dos Embrióides, construída
nas mesmas feições, contendo pequenos berços também conectados por fios
translúcidos. Ali, no entanto, estes são abertos, pois os ovóides não necessitam de
proteção vibratória e temperaturas diferenciadas, como os embrióides.
— Aqui se acomodam os ovóides suicidas em preparo para a embrioterapia
com seletivo potencial de recuperação, pois existem outros, oriundos de outras
etiologias. Há aqueles que são filhos do ódio, centralizados em monoideísmo de
revolta e vingança. Os que aqui são assistidos, entretanto, não alimentaram tais
sentimentos, mas são apenas vítimas de avançada psicólise38 . Examinemo-los
detidamente, a fim de que você possa ajuizar-se dos limites da queda humana.
O ovóide é uma verdadeira regressão biológica, representando o colapso da
forma e da consciência. O processo se efetua através de paulatinas degradações
em que a configuração humana se contrai, inicialmente pela perda dos membros e
redução significativa do tronco, até que se estaciona

38 Ver o glossário no final da obra.

ícaro Redimido - 81
em sua forma final, assemelhando-se a uma mórula embrionária agigantada, pois
guarda dimensões que variam entre as de uma laranja e as de um crânio de recém-
nascido. A alta densidade da psicosfera39 envolve-o em uma névoa, tornando-lhe os
contornos imprecisos e emprestando-lhe um aspecto gelatinoso, como os
embrióides. Sua membrana externa acinzentada, à semelhança da mórula, apresenta
desenhos losangulares arredondados.
Toquei de leve a fronte de Adelaide de modo a permitir-lhe uma visualização
mais abrangente do estranho ser sob nossa respeitosa análise. Abaixo da membrana
protetora, podíamos vislumbrar os vasos sanguíneos com pulsões quase
imperceptíveis, denotando-se-lhe a fraca atividade vital. Os órgãos internos se
apresentam reduzidos em suas formas embrionárias. A bomba cardíaca bate
fracamente em sístoles frouxas, intercaladas por longas diástoles. Sua anatomia
está regredida ao coração dos répteis, apresentando quatro câmaras incompletas,
formadas por dois átrios e um só ventrículo parcialmente dividido. O sistema
nervoso também se acha retrocedido aos primórdios de seu desenvolvimento
embrionário, mostrando-se como o arquencéfalo, o cérebro primitivo, constando de
um tubo neural dividido nas três vesículas encefálicas primordiais. Os doze pares
de nervos cranianos e suas formações ganglionares, no entanto, acham-se
presentes. Sua temperatura é instável, variando com a do ambiente, mantendo-se
menos de um grau acima deste.
— Estes cistos humanos, assistidos por dedicados enfermeiros espirituais,
estão em permanente sono estivai, quais os animais hibernantes
— disse a Adelaide. — O pensamento contínuo está neles detido
momentaneamente e não há registro sequer de sonhos. O fenômeno aos nossos
olhos demonstra, sem sombra de dúvidas, que o encistamento não é unicamente um
patrimônio dos animais inferiores. O longo letargo lhes permite a espera por
melhores condições de vida e, dessa forma, podem resistir às situações adversas do
ambiente espiritual em que se projetaram.
Importa ainda considerar, junto ao estudioso, que a ovoidização, embora pareça
exótica aos nossos olhos, não se trata de uma aberração biológica completamente
estranha à natureza do ser. Foi e continua sendo um procedimento vitorioso nos
reinos inferiores da existência, arquitetado pelo princípio inteligente com o fim
precípuo de se resguardar, diante de condições adversas de vida. Aparentemente foi
abandonado no plano carnal, à medida que este evoluiu e desenvolveu organismos
mais

39 O mesmo que aura.

82 - Gilson T. Freire / Adamastor


complexos para a sua subsistência, porém continuou a ser um mecanismo biológico
útil após a morte física. Depois do desenlace, por não encontrarem no Plano
Espiritual condições favoráveis à manutenção de suas vidas, os animais superiores
e mesmo o homem primitivo promovem o encistamento perispiritual, recolhendo a
consciência ainda insciente, em sono letárgico, aguardando desse modo, de forma
cômoda, a oportunidade de novo renascimento na carne. Por isso, os ovóides
humanos já habitaram abundantemente as paisagens espirituais de nosso planeta
nos primórdios da humanidade, até que conseguiu o homem desenvolver o seu
perispírito e amadurecer sua consciência, a tal ponto de viabilizá- los para o
sustento do pensamento contínuo fora da matéria, modelando no mundo extrafísico
uma estrutura capaz de mantê-lo em vida ativa, tal qual nos encontramos hoje.
Desta maneira, os desencarnados que recorrerem à ovoidização estão apenas
recordando antigo e bem sucedido mecanismo da evolução, amplamente utilizado
no passado e registrado na memória espiritual de todo ser vivente.
— Observe outros aspectos deste estranho ser — continuei. — Olhe mais
atentamente na sua superfície e veja que nos centros dos losangos da membrana
protetora, que não poderíamos chamar propriamente de pele, há pregas que
confluem para pequenos orifícios. São dutos que vertem uma secreção pegajosa,
secretada quando o ovóide não está acomodado na intimidade de algum hospedeiro.
Essa secreção o protege, ajudando-o a fixar-se em qualquer superfície em que
esteja. Notemos também que na parte inferior do ovóide se observa um pequeno
orifício pregueado que continua em fímbrias delgadas. Trata-se de sua ventosa,
através da qual ele se alimenta. Não de detritos ou substâncias de natureza material,
porém de vibrações.
Instalam-se estes cistos humanos, regredidos a organização tão rudimentar,
preferencialmente na mente humana, pois se alimentam das emanações psíquicas de
suas vítimas. Comumente se alojam na fronte de seus hospedeiros em íntima
conexão com o centro cerebral, fonte de intensos eflúvios mentais. Como essas
vibrações não produzem resíduos e o metabolismo celular está praticamente
estacionado, a organização do ovóide dispensa o trabalho dos órgãos digestivos e
excretores, que se encontram reduzidos em suas formas embrionárias,
completamente destituídos de atividade orgânica. Naturalmente que levarão ao
esgotamento das energias psíquicas daqueles que parasitam, acarretando-lhes
graves transtornos mentais.
— Não estaremos sujeitos ao ataque de um deles?
—Não se intimide, minha amiga, tal assédio se fundamenta em certos

ícaro Redimido - 83
quesitos que seguramente não trazemos no momento. Há necessidade de sintonia
para que a parasitose se instale em qualquer nível em que se manifeste, pois vítima e
algoz sempre se unem mediante anuência da Lei de Deus. Observe, no entanto, que
o ovóide possui um lentíssimo movimento pulsátil, que é a sua respiração, na razão
de um ciclo completo a cada dois minutos, aproximadamente, na mesma freqüência
das vibrações que está absorvendo neste instante. Este movimento cessa por
completo, uma vez que não esteja se alimentando. Ele absorve, neste momento,
nossas emissões de simpatia, como podemos notar pela ligeira sensação de frio nas
pontas de nossos dedos, ao lhe aproximarmos nossas mãos. No mundo subumano
das Trevas, no entanto, eles são temidos e usados como verdadeiras armas de
persuasão por espíritos com intenção de domínio, que podem aplicá-los tanto em
encarnados quanto em desencarnados e por isso os ovóides são muito procurados
por estes infelizes. Uma triste realidade de nosso mundo, minha amiga.
— É assustador, Adamastor, observarmos como pode degenerar a alma
humana. Um ser superior transmudado em uma massa embrionária disforme,
perdendo completamente a configuração já conquistada. Isso me deixa pasma
diante da possibilidade da regressão.
— Nossos amigos na carne costumam suscitar controvérsias diante do ovóide,
detentor de nítido processo retroativo da forma, por não terem compreendido muito
bem a revelação que parece formalmente contestá-la. Aqui o fenômeno da
degradação está patente aos nossos olhos e todos os dias o constatamos em nossos
assistidos, portanto não podemos mais lhe negar a veracidade. Sabemos, contudo,
que o patrimônio evolutivo já conquistado pelo ser continua retido como potencial
e na verdade não se perde. Porém, não há dúvidas de que as forças involutivas da
contração foram colocadas em funcionamento pela alma doente, que requererá
imenso esforço para se recuperar, retardando sobremodo o seu progresso. De forma
que não podemos mais duvidar da possibilidade de regressão, representando, sem
dúvida, o maior dano que o espírito é capaz de se infligir. As grandes quedas
morais do ser em evolução são sempre possíveis, desencadeando movimentos
retrógrados para si mesmo, até que este atinja os patamares da sublimidade, de onde
se torna improvável resvalar-se novamente para os abismos do mal e da revolta.
Enquanto isso for possível, permite o Senhor a liberdade de se rebelar contra Suas
Leis; destarte, tais graves erros recorrerão sempre em forma de prejuízos evolutivos
para quem os pratica, única forma de se coibi- los, ensinando, com isso, a não mais
exercê-los.

84- Gilson T. Freire/Adamastor


A Câmara dos ovóides no Departamento de Embrioterapia detém aqueles com
algum potencial de recuperação imediata. São encaminhados para reencarnações
frustras, mas bastante salutares para eles. Levarão a formações teratogênicas40,
incompatíveis com a vida, muito mais graves, naturalmente, do que as induzidas
pelos embrióides. Serão assim os protagonistas de diversas patologias da prenhez,
como as ectopias gestacionais41, os deslocamentos placentários, os blastomas
coriais42, como a mola hidatiforme43 e, sobretudo, as malformações embrionárias44,
absurdas do ponto de vista biológico, despertando no observador terreno a noção de
que a vida está subordinada ao acaso e a presença do Divino é incerta e duvidosa.
— O pesquisador da Terra imputa a erros genéticos aleatórios e injustificáveis
as perturbações induzidas pelos espíritos regredidos — dizia a Adelaide, — mas
não são nada disso, são ensaios biológicos de desovoidização como chamados aqui.
Produzem verdadeiras aberrações biológicas, mas ricas de inquestionável valor
terapêutico para esses desvalidos seres. A natureza não produz inutilidades e
mesmo a teratogenia guarda sua necessidade. Após vários ensaios reencarnatórios
frustros, o ovóide pode se recuperar e refazer seu molde perispiritual na
conformação humana. Depois nascerão ainda como mongóis, imbecis ou portando
outras malformações genéticas, as mais diversas, catalogadas pela ciência terrena,
sem lhes alcançar a causa, erradicada no espírito. Com esforço, porém, podem se
recuperar e continuar assim a acompanhar o grupo humano ao qual pertencem.
Grande parte deles, no entanto, não se restabelecerão e serão enviados para
humanidades primitivas, onde prosseguirão suas evoluções.
— Portanto, deduz-se que os homens não deveriam deter estes processos uma
vez identificados, não é mesmo?
— Sim, Adelaide, mais uma vez o aborto comparece aqui como fator de
prejuízos para todos os envolvidos. Estes processos gestacionais devem ser
suportados até o ponto em que não ameacem a vida das mães que os acomodam.
Embora dolorosos, são ressarcimentos expiatórios e devem ser tolerados ao
máximo, a fim de que cumpram com suas finalidades.

40 Ver glossário.
41 Gravidezes que ocorrem fora do útero, freqüentemente na tuba uterina e, mais raramente, no
ovário ou na cavidade abdominal.
42 Tumores uterinos oriundos de trofoblastos fetais defeituosos. Os trofoblastos, por sua vez são as
células que formarão a placenta.
43 Processo tumoral desenvolvido na gravidez, pela degeneração das vilosidades coriônicas, pro-
duzindo-se uma massa de cistos que lembra um cacho de uvas.
44 Defeitos na forma dos embriões.

ícaro Redimido - 85
As energias desequilibrantes da massa ovoidal são exoneradas para a carne nesses
choques biológicos, aliviando-lhes a danosa ação no perispírito. Para o espírito
nessas condições, funcionam como verdadeiros choques, quais os eletrochoques da
psiquiatria, levados a efeito com o mesmo propósito de despertamento da
consciência adormecida na loucura. Irão refletir no espírito como salutar impulso
de refazimento, invertendo, como já vimos, o impulso contrativo do encistamento
ovoidal.
Cabe ainda considerarmos que existem ovóides, tão intensamente atados aos
seus hospedeiros desencarnados, que reencarnam jungidos a eles, produzindo
estranhas enfermidades para a análise dos estudiosos do mundo, como o cisto
dermóide, uma malformação embrionária, descrita pela patologia humana, rara e
incompreensível. Esta evidente comprovação da existência do ovóide consiste num
exótico tumor cístico, que se desenvolve de forma anômala na região frontal
daquele que o transporta, formado por uma pele envolvendo uma massa de restos
embrionários em estado rudimentar, onde se nota a presença de pêlos, glândulas
sebáceas e sudoríparas, cartilagens, ossos e dentes, demonstrando que, junto com o
hospedeiro, o ovóide submeteu-se a caótico ensaio de desenvolvimento
embrionário. Nosso conhecimento da perfeição das Leis Divinas obriga- nos a
inocentar a natureza pela produção dessas estranhas patologias, sendo o próprio
espírito caído o único artífice dessas graves desarmonias.
Adelaide dava-se por satisfeita e era forçoso terminarmos nossas observações,
finalizando a proveitosa visita ao Departamento. Respeitosamente deixamos a
enfermaria com a esperança de que o homem terreno aprenda definitivamente a
valorizar a existência e a se deixar conduzir pelo amor, a fim de que as aberrações,
sob as nossas vistas, deixem definitivamente de macular as paisagens divinas da
vida.
— Não terminamos nosso trabalho, em absoluto, Adelaide — disse à amiga
que acreditava estarmos encerrando ali nossa tarefa, ao entregar Alberto aos
cuidados do Departamento. —Quando assumimos uma tutela, responsabilizamo-
nos pela sua completa execução. Podemos nos servir da ajuda de outros tarefeiros,
mas trabalhamos com um modelo de assistência integral, há muito adotado em
nossa colônia. Acompanhamos nosso enfermo até que ele se veja capaz de
caminhar por si mesmo. Enquanto não terminamos essa tarefa não passamos
adiante. Tal roteiro de serviço pressupõe o contato com várias atividades
assistência is, que nos levam à dilatação do conhecimento em um sentido unitário e
global. Afastamo-nos assim da assistência estritamente especializada ainda em
curso na Terra, forma eficaz de trabalho, mas que nos distancia da visão

86 - Gilson T. Freire/Adamastor
de conjunto, tão necessária ao nosso crescimento. É certo que, em diversas
circunstâncias, necessitamos de conhecimentos especializados, como agora, mas
somos forçados a acompanhar de perto o processo e com ele crescemos na assistência
integral. Outrora funcionávamos no modelo terreno, onde cada especialista tratava de
uma particularidade do enfermo, mas se perdia o contexto global de suas
necessidades, e ninguém terminava por se responsabilizar por ele. Por isso nossos
dirigentes nos trouxeram esta outra forma de intervenção muito mais eficiente, capaz
de nos atar aos destinos do assistido, de nos fazer envolver afetiva e efetivamente
com ele, incentivando-nos a lutar verdadeiramente pela sua recuperação. Na Terra,
com muita propriedade se diz que o doente que tem muitos médicos; na verdade, não
tem nenhum. Isso é exatamente o que conseguimos evitar. Por isso, todos estes
embrióides e ovóides, além da carinhosa assistência que aqui recebem de enfermeiros
especializados, têm todos os seus tutores zelando de perto pelos seus destinos. Assim
funciona a misericórdia de Deus, que assiste o homem através do próprio homem.
Deixamos o Departamento com o compromisso de nos encontrar, no momento
aprazado, com os encarnados que seriam envolvidos no processo de auxílio ao nosso
amigo.

ícaro Redimido - 87
Catherine Lyot

“Aquele dentre vós que está sem pecado seja o primeiro que lhe atire uma pedra. ”
Jesus - João, 8:7

F ez-se noite e demandamos a crosta, acompanhados de Fausto.


Rumávamos para grande metrópole das terras brasileiras e
seguíamos o tarefeiro do Departamento de Embrioterapia,
encarregado de nosso auxílio. Levávamos Alberto, resguardado em
envoltório protetor. Volitávamos por região de densas trevas, atravessando
ligeiros sem nos deter nas particularidades do triste caminho, repleto de
angustiosas paisagens. Em breve atingimos agitado centro urbano, que
ainda se acomodava nas últimas atividades do dia e os humanos se
preparavam para o repouso noturno. Seguíamos silentes e resolutos, pois
Fausto sabia com precisão aonde se dirigir. Adentramos turbulenta região
urbana, impregnada de intensas radiações mentais, que nos penetravam
quais dardos agudos e dolorosos. Entidades vestidas de sombras se
revolviam intensamente em cada dobra de rua, motivadas por aspirações
humanas de baixo teor vibratório. Não havia dúvidas: estávamos em
região de prostíbulos, no submundo humano. Acomodavam-se os homens,
cansados de suas lides diárias, mas os espíritos amantes das paixões
carnais despertavam para os prazeres noturnos, agitando de augúrios
sombrosos a aparente quietude da noite terrena.
Adelaide mostrava-se assustadiça diante do ambiente nada aprazível. Ofereci-lhe o
apoio do meu braço a fim de que se sentisse mais segura.
— Não se aflija, irmã, nada temos a temer do lugar que adentramos,

88 - Gilson T. Freire / Adamastor


pois estamos a serviço do Cordeiro — afiancei, procurando tranqüilizá- la. —
Mantenha firme o seu pensamento e sua presença nem mesmo será notada pelos
espíritos vampirescos que se comprazem neste ambiente de sevícias aviltantes.
Estacionamos diante de um casarão à semelhança de pequeno palacete,
protegido por grades em meio a exuberante vegetação. Espíritos viciados do sexo se
acomodavam sequiosos dos prazeres da carne, acotovelando- se nos cantos escuros,
denotando a triste natureza do lugar onde adentrávamos. Uma carruagem
estacionava nos portões do palacete no mesmo instante em que chegávamos,
deixando simpática madona, vestida com exuberante sedução, exalando
extravagantes essências francesas, acompanhada de uma jovem de traços morenos.
— Aqui temos Catherine Lyot, irmãos, a amiga a quem vamos recorrer nesta
noite — disse-nos Fausto, indicando respeitosamente a mulher madura que
chegava. — Trata-se de uma francesa radicada no Brasil. Como os amigos já
notaram, estamos numa casa noturna de comércio do sexo onde, infelizmente,
tivemos que buscar socorro para Alberto. Sei que vocês esperariam melhor
ambiente para situar nosso amigo em posição tão delicada, porém, em obediência às
determinações que nos chegaram do Plano Superior, este é o lugar que melhor lhe
convém, e esta a pessoa mais apropriada para recebê-lo, tenham a certeza disso.
Ainda não sabemos o que une os protagonistas do nosso roteiro, mas estejamos
convencidos de que estão atados por laços do passado, cujas origens ainda
ignoramos. Ademais, fomos informados de que entidades de planos mais altos estão
interessadas no socorro a esta desventurada amiga e guardam a intenção de mudar-
lhe os rumos do destino, chamando-a para as responsabilidades diante da vida. A
jovem que a acompanha é Rosa, uma órfã, a quem ampara e devota apreço
maternal, apesar de ter sido levianamente induzida à sua mesma vida desregrada.
— Ela será coagida a receber o nosso amigo por filho frustro neste caso? Não
me parece com cara de quem irá aceitar isso de bom grado — considerou Adelaide.
— Embora tenhamos meios de efetivar o processo à revelia de sua anuência, é
conveniente que tentemos convencê-la da necessidade de aceitar a prova,
aproveitando o ensejo para renovar os tristes caminhos de sua vida. Assim tudo será
mais fácil e as chances de êxito serão maiores para todos — explicou-nos o
dedicado tarefeiro, já bastante ciente de seu trabalho.
Catherine — prosseguiu o amigo — merece todo o nosso respeito.

ícaro Redimido - 89
Não a tratemos com a hipocrisia dos homens, que usam de palavras condenatórias
e atitudes de menosprezo, como se lhe fossem superiores, pois não temos esse
direito. Sabemos pouco de seu passado, porém, embora identifiquemos nesse
momento a sua condição de hetera45, no exercício de execrável proxenetismo46,
estejamos cientes de que se trata de valoroso espírito, antiga monja, desviada de
suas intenções na presente encarnação. Esconde por trás desta sua aparência de
requintada mulher da vida uma alma aflita e vazia, profundamente sofrida, pois
sabe que este não é o destino para o qual renasceu. Entregou-se à prostituição ainda
na França, de onde vem. Sua família faliu nos negócios, após o falecimento de seu
pai e ela, renegando-se a viver na simplicidade, preferiu prostituir-se, explorando
seus dotes de refinada beleza. Seus entes queridos a repudiaram por isso e, para
não cair no descaso, preferiu partir para longe unicamente com o propósito de
enriquecer e reconquistar a posição social perdida em seu país de origem. E aqui já
se firmou como pessoa de prestígios e dotes de conquistas fáceis, embora,
naturalmente, desperte profunda aversão e inimizade nas pessoas que se
consideram na posição de moralistas. Especializou-se em servir os senhores mais
abastados dessa sociedade fútil e com isso acumula bens que lhe conferem
respeitável situação econômica. É a dona desta casa e arregimenta jovens para o vil
comércio do sexo, às quais explora. Eis o triste cenário tecido pela nossa
desventurada amiga, palco de nossos trabalhos, mas o Senhor está conosco do
mesmo modo que está no coração dessas infelizes. Naturalmente não podemos
apoiar esse abjeto negócio, porta para profundas dores da alma, mas como já nos
asseverou o Mestre, não temos o direito de atirar-lhes as pedras da condenação.
São apenas irmãs trêfegas, esquecidas de que são feitas de substâncias divinas,
merecedoras de nossos melhores sentimentos.
De imediato percebemos que o pensamento de Heitor, o amigo que nos
acompanhou nas Cavernas, se fazia presente em forma de ondas de reconfortante
apoio, indicando-nos que liames do coração o uniam à amiga sob nossos olhos.
Respeitosamente oramos em silêncio para que Jesus nos abençoasse a empreitada e
algo nos permitisse realizar em seu benefício.
Catherine dirigia-se aos seus aposentos a fim de se preparar para mais uma de
suas costumeiras noites. Duas entidades femininas, vestidas de

45 Termo que na Grécia antiga designava a mulher dissoluta, sendo empregado comumente para caracterizar
uma prostituta elegante e distinta.
46 Ato de servir como mediador à libidinagem alheia, favorecer a prostituição, manter prostíbulos ou ter
lugar destinado a fins libidinosos.

90 - Gilson T. Freire / Adamastor


sombras, aguardavam-na ansiosas, na entrada do casarão, risonhas e frívolas. De
imediato percebemos tratar-se, não de entidades malévolas, mas levianas, unidas
pelas teias do sexo, compartilhando com nossa amiga os seus vícios carnais.
A algazarra no salão que adentráramos era imensa. Espíritos envolvidos em
tristes atitudes obscenas despertavam-nos profunda compaixão. Emanações
pestilentas, mal-cheirosas, atordoavam-nos os sentidos, exigindo-nos grande
concentração a fim de não afetar o nosso trabalho. Sentíamos por Adelaide, mas
ela se mostrava estar em condições de enfrentar o sórdido panorama sob nossos
olhos, e além disso, precisava adestrar-se no manejo do submundo humano, se
desejava mesmo servir aos que sofrem, pois este era o palco natural de nossos
empreendimentos assistenciais. Ademais, aprendemos com Jesus que não são os
sadios que precisam de médicos.
Penetramos nos aposentos de Catherine, acompanhando-a respeitosamente. O
quarto, decorado em primoroso luxuário francês, repugnava-nos pelos tristes
eflúvios da mais baixa lascívia. Na porta, um espírito de aspecto grotesco exercia a
função de guarda do erótico aposento, vigiando aqueles que podiam participar do
estranho conúbio de prazeres da carne, mas sua baixíssima condição vibratória o
impediu de nos notar a presença.
— O Mal tem também sua organização — disse à Adelaide — e aproveita
para tirar vantagens do comércio com os homens.
Entidades infelizes, cativas do sexo, esgueiravam-se por entre os móveis,
ansiosas pelos prazeres que a noite prometia, felizes com a chegada daquela que
pareciam idolatrar. Catherine colocou-se diante de grande espelho, revelando sua
enorme vaidade, contrafeita com as pequenas rugas que já ameaçavam se imprimir
em seu rosto jovial.
Aproximamos nossa destra de sua fronte para lhe ouvir melhor os pensamentos,
tendo em vista que as destoantes vibrações do ambiente nos obstaculizavam
percebê-los de longe. Sua mente fervilhava. Pensava em Abelardo, o jovem que
seguidamente a procurava nos últimos meses. Ele lhe despertara os desejos de
mulher há muito obscurecidos pelos vícios da sexualidade e exigia exclusividade
nas volúpias amorosas. Desejava realmente estar com ele, mas não convinha
manter-lhe fidelidade, pois não podia dispensar seus endinheirados clientes. O
pequeno conflito, no entanto, logo se diluiu nas fantasias sexuais que a lembrança
do jovem lhe suscitava. As ondas mentais que se lhe escapavam de imediato
refletiram nas infelizes desencarnadas jungidas a ela, despertando-lhes atitudes
obscenas, fazendo-as proferirem gritos e gargalhadas estridentes.

ícaro Redimido - 91
— São crianças inconseqüentes, meus amigos — dizia Fausto. — Deixam-se
inebriar pelas emanações das fantasias sexuais de nossa imprudente amiga, nas
quais não somente se comprazem, como também se alimentam. Não podemos
afastá-las daqui, pois estão imantadas ao ambiente. Como podem perceber, na
aparente privacidade deste quarto, pratica-se realmente um abjeto sexo em grupo.
Todos aqueles que se deixam macular pelos prazeres mundanos deste tipo de
erotismo, onde não imperam os valores da afetividade, do respeito mútuo e da
responsabilidade, vêem-se obrigados a compartilhar com seres das sombras suas
sagradas energias sexuais. Se os humanos pudessem observar esta triste realidade,
enojar-se-iam dessa prática que repugna tanto quanto a assistir a loucos
deleitarem-se em uma pocilga sem se dar conta do fato. Um dia os homens
aprenderão que o sexo deveria ser um ato tão sagrado quanto uma prece.
Fausto tocou carinhosamente a fronte de Catherine e lhe pediu o recolhimento
das idéias em jogo, sugerindo-lhe a figura paterna a quem muito se afeiçoara.
Sabia que a lembrança do genitor há muito tempo desencarnado impor-lhe-ia
salutar sentimento de culpa, chamando-lhe a atenção para as responsabilidades da
vida. A irmã, imediatamente abrindo uma das gavetas da penteadeira, pousou os
dedos sobre uma foto antiga onde se adivinhava a imagem do pai e deixou que
grossas lágrimas lhe corressem pela face ricamente maquiada, suplicando
mentalmente pelo perdão. Energias de profunda amargura lhe surgiram nos centros
cerebrais da emotividade em direção à região cardíaca. Fausto, adestrado no
manejo das forças vitais, desviou a corrente, concentrando-a em uma das têmporas
de nossa irmã. Notamos que, de imediato, aí se iniciava um processo de dilatação
das artérias temporais. No mesmo instante Catherine levou seus dedos na referida
região, sentindo que se lhe ameaçava uma de suas terríveis crises de enxaqueca.
— Aproveitemos o valor da enfermidade que os homens costumeiramente
amaldiçoam — disse o amigo. — Sentimos ter que lhe desencadear essas dores,
mas lhe são benfazejo freio aos desgastes inconseqüentes de forças que lhe roubam
preciosos recursos de equilíbrio. Embora nos pareça um estranho paradoxo, a
saúde precisa da doença para se realizar, pois é a única linguagem a que o homem
terreno sabe obedecer, ignorante ainda das leis do equilíbrio que lhe regem o bem-
estar orgânico.
Não demorou muito e víamos a decepção na face dos espíritos obsessores, ao
notarem que sua parceira de prazeres se atirava na cama, meio combalida e
desalentada.

92 - Gilson T. Freire / Adamastor


Em breve, Rosa, a jovem que chegara junto com Catherine, era chamada,
adentrando-se ligeira no quarto, trazendo-lhe, já ciente do que se passava, a toalha
molhada para lhe atar na testa, único alívio que experimentava nessas ocasiões.
O tumulto dos espíritos se somava agora ao bulício dos humanos, pois a casa se
enchia de janotas, oriundos da alta sociedade local. Pelintras de faces frívolas,
emolduradas pelos sorrisos irônicos dos aproveitadores e disfarçando a luxúria em
trajes de requinte, exalavam eflúvios pestilentos, imiscuídos dos odores maléficos
do álcool e do fumo, causando-nos piedade e repugnância pela baixeza da alma
humana.
— Um bando de obsessores encarnados, explorando corações infelizes que
vendem prazeres fáceis a fim de sobreviverem! Que triste realidade!
— proferi, pesaroso, à Adelaide.
Uma frase do Evangelho, no entanto, ressoava em minha mente: “raça de
incrédulos e perversos, até quando vos sofrerei?”47 Assaltado pelas minhas
reminiscências, surpreendia-me, contrito e aflito, sem o direito de menosprezo a
nenhum daqueles senhores, pois no passado já havia pertencido às suas fileiras.
Lágrimas aflitivas marejaram-me os olhos, mas o momento, no entanto,
requisitava-nos o máximo equilíbrio e não convinha perturbar o trabalho com
minhas tristes recordações. Recolhi-me em sentida prece agradecendo ao Senhor
por já não me contar entre aqueles devassos cavalheiros. Adelaide, percebendo-me
a emotividade, dirigiu-me caricioso olhar e silentemente me envolveu em seu braço
de amigável conforto, sem exigir-me explicações para a repentina manifestação de
sensibilidade. Trazemos da vida na carne muitas lembranças que gostaríamos de
simplesmente apagar da memória, mas elas nos perseguem quais fantasmas
renitentes, impossíveis de se aniquilar, exigindo-nos o aprendizado do equilíbrio. O
trabalho em favor dos infelizes, o estudo nobilitante e o exercício constante de
sentimentos elevados são os únicos remédios para uma alma que enseja a
regeneração.
Neste momento, rompendo minhas amargas conjecturas, um rapaz em trajes
militares batia à porta dos aposentos de Catherine, com vigor. Na impetuosidade de
sua expressão vimos tratar-se de Abelardo, o jovem que habitava as fantasias de
nossa amiga pouco antes. Ansiava estar com ela e exigia-lhe que atendesse os rogos
de moço fogoso e apaixonado. Rosa, gentilmente, o afastava, explicando-lhe que
Catherine estava enferma, mas ele, desconfiado, queria atestar por si mesmo,
temendo que sua preferida estivesse nos braços de outro.

47 Mateus 17:17

ícaro Redimido - 93
— Precisamos afastá-lo para que não nos obstaculize os serviços da noite—
pedia Fausto, que continuava a operar o plano mental de Catherine, diligenciando
adormecê-la.
Intentava, inutilmente, apaziguar o companheiro imprudente, quando um
robusto marinheiro, ciente do que se passava, reprimiu-o indignado, dizendo-lhe
que se acalmasse, pois “madame Catarina” não era propriedade dele. Foi o que
bastou para que os dois se encarassem, ameaçando se engalfinharem em
animalesca luta. Acorreram-se todos a fim de se evitar o pior, enquanto os
espíritos, sedentos de emoções vis, exasperados, procuravam excitar ainda mais os
ânimos, desejosos de presenciar os sabores dos embates humanos. Rosa ameaçou
sair para chamar a polícia, o que acalmou Abelardo que finalmente consentiu em se
retirar, não sem antes constatar que Catherine estava realmente sozinha. Ela não
tivera força sequer para levantar-se e acalmar a situação, apenas acenou de longe
para o seu preferido, serenando-o. Sendo atendido, retirou-se o jovem, contrafeito e
ofendido. Decepcionados, os espíritos levianos retornaram às motivações de seus
prazeres e a casa voltou à sua rotina. Com grande alívio agradecemos a Deus pelo
bom desfecho da situação que poderia ter prejudicado nossos planos, adiando ainda
mais o socorro a Alberto, já sem condições de aguardar mais tempo para o ingresso
na carne.
Catherine, após acessos de vômitos, sentiu esgotar suas forças físicas e
finalmente adormeceu. Os obsessores, vendo que nada mais conseguiriam,
deixaram-na sozinha e, sequiosos de prazeres, saíram em busca de outros repastos
para seus ignóbeis regalos. Finalmente o ambiente se acomodou em um pouco de
sossego e pudemos entretecer um escudo magnético em torno de seu leito,
higienizando um pouco a sua envilecida atmosfera vibracional. Desprendendo-se
do corpo físico, sentia-se envolvida por eflúvios de inefável paz jamais aspirados.
Enquanto Fausto se retirava, demandando outros afazeres, operávamos o campo
visual de Catherine para que ela pudesse nos perceber e entretivesse conosco algum
diálogo. Ao divisar-nos, prostrou-se de joelhos, acreditando-nos enviados do Céu.
— Anjos de Deus, não me mandem para o inferno — dizia, em choro
veemente, revelando sua consciência profundamente ferida pelos exaltados
sentimentos de culpa.
— Levante-se, irmã, somos apenas seus amigos, não somos enviados do Céu e
sequer estamos aqui para lhe condenar por qualquer atitude que seja — respondi-
lhe, procurando acalmá-la. — Contenha seu pranto e procure orar a Jesus para que
sua alma se refaça na paz que a envolve.

94 - Gilson T. Freire / Adamastor


De imediato Catherine começou a proferir sentida prece em francês,
recordando-se de sua meninice, quando Fausto adentrou o quarto, acompanhado de
Heitor, nosso já conhecido companheiro.
— A paz esteja com todos, amigos. É uma satisfação revê-los, embora em
ambiente tão desagradável para as suas sensibilidades — saudou-nos o dileto
mentor. — Catherine, como já previram, é estimada pupila de nosso coração e não
podemos deixar de prestar-lhe socorro nesta hora tão importante, no destino
profundamente infausto que traçou para si mesma. Vamos ao trabalho. Temos que
lhe trazer à presença o genitor, único capaz de movê-la do lameiro em que se
atirou. No entanto, encontra- se ele reencarnado, em plena infância e
demandaríamos precioso tempo preparando-o para um mergulho no passado. Só
nos resta ludibriá-la, meus amigos. Com o devido respeito, far-me-ei passar por
ele, pois assim se faz necessário para o seu próprio bem.
Em seguida, aproveitando o potencial de oração em que se movia Catherine,
ainda de joelhos, extasiada diante das luzes espirituais que a iluminavam, Fausto
operou seus centros mnemônicos, copiando-lhe a imagem do pai e projetou-a,
através de surpreendente manipulação ideoplástica sobre Heitor, que se vestiu
assim da exata figura paterna. Vendo-se diante do querido pai, estirou-se em pranto
convulso, suplicando por perdão, como uma criança surpreendida em condenáveis
peraltices.
— Que fizeste, minha filha, da moral e dos costumes aprendidos na infância?
— perguntou-lhe Heitor, na figura do pai, no mais perfeito francês. — O que fazes,
filha querida, neste ambiente imundo e indigno da realeza divina de que todos
fomos feitos?
Catherine, sem compreender o que se passava, tentava evadir-se para o refúgio
seguro do corpo físico, em imenso conflito de consciência, dividida entre o
irrefreável desejo de abraçar o pai querido e a vergonha que se lhe estampava na
alma maculada de ignomínias. Adelaide e eu sustentávamos-lhe a organização
carnal, constrangida a tremores espásticos, refletindo os inopinados estímulos
oriundos do espírito parcialmente desprendido.
— Perdoa-me, papai, não queria manchar-te de opróbrios o honrado nome ...
— respondeu arfante nossa amiga, abalada na profundeza da alma. — Compadeça-
te de meu infortúnio que já me serve de oneroso castigo... Perdoa-me...
— O perdão genuíno, entre aqueles que não atingiram ainda a maioridade do
espírito, somente é possível diante da sincera disposição de transformação de quem
o suplica. Se reconheces o erro, nada te imputa maior desdita do que persistir nele,
filha querida, tornando-se,

ícaro Redimido - 95
assim, difícil a oferta do perdão sincero. Promete-me que abandonarás a estrada de
devassidão em que transitas, e então moverei os Céus e a Terra para trazer-te a
felicidade que almejas.
— Dá-me forças para isso, meu pai. Não quero mais a penúria do pecado que
me sufoca o coração, mas não tenho outros caminhos por onde transitar. Ajuda-me,
pai querido... perdoa-me... — suplicava em plangente preito, domada pela comoção
intensa que lhe eclodia da alma dorida.
— Há um meio de desvencilhar-te do atoleiro em que te chafurdas, minha
querida. Vês os espíritos amigos que te amparam neste momento? Eles te trazem
um filho como dádiva preciosa do Céu, e com ele, uma esperança de redenção.
Aceita de bom grado o presente de Deus e tua vida se transformará...
— Pai, o que me pedes não posso aceitar, não sou digna da maternidade...
trago o seio enodoado de culpas e vícios...
— Teu empenho sincero na reforma íntima e a dedicação ao bem serão o
bastante para te incendiar de luzes, acendrando-te as nódoas do pecado, filha. Abre
o coração e aceita, apenas isso te pedimos.
Nesse momento, Fausto ofereceu-lhe formoso bebê, entretecido em linhas de
forças ideoplásticas, cópia viva e perfeita com a finalidade precípua, não de
ludibriá-la, mas para que se sedimentasse em sua obnubilada mente o realismo do
ato como se fazia necessário.
Diante da oferta, Catherine, desfeita em lágrimas, motivada por sublime
sentimento maternal e sentindo-se aliviada por merecer a consideração daqueles
que imaginava enviados dos anjos, abriu as portas de seu coração, estendendo os
braços para receber em seu regaço a messe divina.
Conduzimo-la ao corpo físico, a fim de permitir-lhe recuperar-se das intensas
emoções vividas e pudesse guardar reminiscências claras dos momentos vividos.
Despertando, plangia entre comovidos soluços, sentindo ainda a presença do filho
no colo e a figura do pai querido, reais e vividos na memória. Após breve intervalo
em que lhe permitimos sedimentar os ensinamentos recebidos, induzimos-lhe novo
sono reparador, a fim de encerrarmos a tarefa. Fausto, por meio de delicadas
operações magnéticas, fixava Alberto, miniaturizado em encistamento perispiritual,
na cavidade uterina de nossa amiga, onde permaneceria, ambientando-se nas
energias maternas, à espera do primeiro óvulo fecundado em processo de nidação48.
— Terminamos por ora nossa tarefa, amigos, podemos partir — disse

48 O processo de fixação do óvulo fecundado no útero.

96 - Gilson T. Freire/Adamastor
Heitor. — Agradeçamos a Jesus a proveitosa noite de trabalho. Temos a esperança
de que nossa irmã encontre a sua redenção, mediante o processo doloroso que a
espera. Sabemos o quanto lhe custará, não somente mudar de vida, mas ainda viver
a frustração do filho que não virá. Estejamos, no entanto, felizes, confiantes e
cientes de que a sabedoria da vida opera o espírito através da dor, alavanca
indispensável ao nosso progresso, rumo à angelitude.
— E quanto ao pai, não precisamos de sua anuência no processo? —
interrogou Adelaide.
— O pai será apenas o portador dos recursos biológicos para o processo
reencarnatório e não lhe solicitaremos responsabilidades de que sabidamente não
poderá, em absoluto, dispor. Uma prostituta grávida dificilmente terá o
reconhecimento da paternidade no mundo de nossos dias, minha amiga. Não nos
iludamos. As sábias leis da vida, no entanto, registrarão o dolo e o cobrarão de seu
protagonista no momento devido, estejamos cientes disso — respondeu Heitor com
criterioso bom senso.
— Tampouco precisaremos estar presentes para a eleição da carga genética
mais conveniente ao nosso amigo em trânsito na carne? — insistia Adelaide com o
fito de se educar na ciência da assistência espiritual.
— Neste caso, o processo irá decorrer de suas próprias leis de atração, pois
nosso Alberto não precisará contar com um organismo aprimorado para dar
cumprimento às finalidades de sua reencarnação. Não pelo fato de estarmos diante
de um suicida que, por isso, desmereça maiores cuidados, mas porque sabemos que
será impossível impedir que estampe nas células embrionárias as malformações
oriundas da autodestrutividade alimentada, tornando-as inviáveis. Infelizmente foi
o que semeou o nosso amigo, e será o que irá colher — esclareceu Heitor,
prestimoso, para o aprendizado de minha pupila.
Acalmando as ansiedades da irmã, anuí:
— Não se preocupe, acompanharemos de perto a incursão de Alberto na carne,
permitindo-lhe a observação mais acurada do processo.
Heitor proferiu sentida prece, encerrando os nossos trabalhos no momento.
Solicitando licença para nos deixar, retirou-se, carregando nos braços Catherine,
adormecida em espírito, a fim de propiciar-lhe breve passeio em regiões espirituais
mais elevadas, afagando-lhe a alma dorida e fatigada das agruras terrenas.

ícaro Redimido - 97
A Bênção do Recomeço

“Não te admires de eu te haver dito:


necessário vos é nascer de novo. ”
Jesus - João, 3:7

N osso serviço assistencial se intensificou com o recolhimento de


Alberto no vaso físico e passamos a visitá-lo freqüentemente,
procurando sustentá-lo e esforçando-nos, como podíamos, para
auxiliar a desventurada amiga que o recebera. Através do Departamento
de Embrioterapia, estabeleceu-se um canal de comunicação permanente
entre o nosso plano e a casa de Catherine, facilitando-nos o trânsito
quase diário.
Nos primeiros dias nossa tarefa objetivou a limpeza do aparelho reprodutor da
nossa irmã, preparando-a da melhor maneira possível, para o bom andamento do
processo gestacional a que se submeteria, em breve. Era lastimável observar-lhe a
precária situação orgânica, devido à prática abusiva do sexo mundano. Energias
aviltantes lhe habitavam os delicados órgãos genésicos, inundando-os de
emanações pestilentas. Demandamos vários dias em paciente trabalho de varredura
dos maléficos eflúvios, concreções semicamais tão densas que podíamos quase
tocá- las. Identificávamos, a cada camada de limpeza, variados bacilos
patogênicos, imantados de modo ameaçador aos seus tecidos, aguardando a melhor
oportunidade para eclodirem na forma das diversas doenças venéreas descritas pela
medicina terrena.
— Os estudiosos do mundo acreditam que estes sejam os agentes das
enfermidades infecciosas — considerava, — porém justo é observarmos que a
presença deles se deva à atração de natureza vibratória em perfeita ressonância
com as energias deterioradas, geradas e absorvidas pela nossa

98 ■ Gilson T. Freire/Adamastor
irmã, das quais se alimentam. Na verdade, não somente aí, mas em qualquer
departamento da economia orgânica, todo processo infeccioso guarda raízes na
esfera espiritual do homem.
Em meio a vibriões, bacilos e vírus diversos, notávamos que havia um grande
predomínio dos espiroquetas sifilíticos.
— Estão perfeitamente ambientados em seu mundo energético — mostrava à
Adelaide, assustadiça. — A qualquer momento nossa irmã iria irromper-se em um
quadro de Mal de Lues49 de graves proporções. Vemos como a Providência Divina
atuou em seu favor, devido à sua anuência no auxílio a Alberto. Quem ajuda é
ajudado, assim é da Lei. Naturalmente que aqui se alojam em decorrência do
ambiente vibracional que os atrai. Não podemos deixar de compreender que todo
contágio somente se estabelece mediante um convite ao agente infeccioso,
coadjuvante da enfermidade, Adelaide. Tratemos de evacuar a carga vibratória que
os sustenta, como nos é possível, diminuindo-lhes o potencial patogênico.
Não podíamos, no entanto, simplesmente fazer evadir essas emanações
deletérias da intimidade orgânica de nossa amiga, por estarem a ela imantadas por
laços de natureza perispiritual, que somente poderiam ser definitivamente rompidos
mediante a mudança de seu padrão vibratório. Era-nos possível somente deslocá-
las dos tecidos mais internos, carreando- as para o canal vaginal onde se
acumulavam em grande quantidade.
— As células mucosas da vagina, infatigáveis trabalhadoras, irão iniciar a
produção de abundante secreção, carreando estas impurezas energéticas para o
exterior — dizia à Adelaide, ainda intimidada. — Nossa irmã irá padecer os
incômodos de incoercível corrimento, perturbando-lhe o bem-estar por muitos dias.
Será, no entanto, recurso defensivo importante para a manutenção de seu
equilíbrio. A medicina terrena ainda não se deu conta disso e trata de inibir, com
insistência, essas importunas leucorréias50 , dificultando muitas vezes o trabalho de
drenagem dos miasmas pestilentos.
Catherine de fato, em breve se submetia ao tratamento de duchas vaginais,
devido ao fenômeno que prevíramos. Um dia os médicos compreenderão que tais
enfermidades desempenham tarefas no organismo, deixando de vê-las como meras
e injustificáveis casualidades do mundo celular que devem ser detidas a todo custo.
Segundo recomendação médica, diante da providencial enfermidade, a amiga
detivera suas atividades sexuais, propiciando-nos benfazejo período

49 Sífilis, doença venérea sexualmente transmitida.


50 Corrimento vaginal, de qualquer natureza.

ícaro Redimido - 99
de trabalhos assistenciais. Alberto se acomodava cada dia mais em seu organismo
e seu perispírito se reduzia a dimensões unicelulares. Adelaide, admirando-se do
fato, considerou:
— Vemos que Alberto se retrai a.cada dia que passa. Não era isso o que
queríamos a todo custo evitar?
— Não se assuste, minha amiga, o processo de miniaturização perispiritual
apenas prosseguiu o seu ritmo e está finalmente chegando ao fim. Aqui ele
encontrou o seu ambiente natural e em breve o útero desempenhará a sua função,
atuando como um refletor para as energias psicossomáticas condensadas ao
máximo, fazendo-as explodirem em nova e vertiginosa reconstituição orgânica.
Observe atentamente a nova forma de seu perispírito. Assemelha-se a um funil,
uma verdadeira formação vorticosa, cujo vértice termina na dimensão unicelular.
Este ponto tocará o óvulo fecundado, envolvendo-o e aspirando-o qual fole
poderoso, estimulando-lhe a surpreendente construção orgânica, cujo crescimento
febril supera o ritmo de todas as formas vivas existentes. Estamos diante do mesmo
processo que condensa a futura árvore em uma semente, para depois, encontrando
ela o ambiente adequado ao seu desenvolvimento no seio da terra, explodir no
inopinado crescimento. O meio uterino é, para o espírito, qual o solo fecundo que
recebe e nutre a semente com os recursos necessários à sua restituição. Eis a
maravilha do renascimento, que funciona sob o império das forças de condensação
e expansão do perispírito. A contração máxima, como a vemos, era já esperada
porque Alberto se defrontou com o meio adequado para isso, e a executou
convenientemente. Se, no entanto, ele não tivesse sido acomodado no seio uterino,
aí sim, o processo lhe seria drástico, pois terminaria, como já vimos, na
ovoidização. A expansão será deflagrada no instante em que Alberto identificar a
presença do substrato masculino, necessário ao seu desenvolvimento. No entanto, é
conveniente que esse momento seja um pouco adiado, a fim de prepararmos da
melhor forma possível o ambiente orgânico de Catherine.
Notávamos em breve que a aura de Alberto lançava laços fluídicos em direção a
um dos ovários de Catherine, abraçando-o com sofreguidão.
— Embora tenha participado por incontáveis vezes de momentos como este,
não me canso de extasiar-me diante da maravilha do processo reprodutivo —
comentava, admirado, com Adelaide. — Alberto cuida, instintivamente, de
amadurecer o óvulo mais adequado às suas necessidades neoformativas. Sem o
sabermos, trazemos na memória espiritual minuciosos conhecimentos de genética e
podemos selecionar, de modo automático, a carga hereditária que mais nos convém
ao renascimento.

100 - Gilson T. Freire / Adamastor


Aprendemos isso ao longo das infindáveis experiências reencarnatórias de que já
participamos.
— Caso Catherine venha a se valer de métodos contraceptivos, como iremos
socorrer nosso amigo, com seu envoltório perispiritual completamente contraído e
inadequado para se sustentar no mundo espiritual? — interrogou, preocupada,
Adelaide.
— As forças envolvidas no processo reprodutivo, colocadas em
funcionamento de forma instintiva e inconsciente pelo reencarnante, são muito mais
poderosas do que podemos imaginar. Funcionam de forma vitoriosa há
incomensuráveis milênios e são capazes de façanhas inimagináveis, superando
muitos obstáculos que se lhes anteponham. Podem apressar o amadurecimento do
óvulo e interferir no ritmo hormonal feminino. São capazes ainda de suscitarem os
desejos humanos, fazendo- os meros joguetes das energias sexuais, movimentadas
segundo as suas intenções ocultas. Se pudéssemos ver o reino invisível das ondas
onde se operam essas maravilhas, ficaríamos admirados ao reconhecer seus
dilatados tentáculos, dirigidos com precisão pelo espírito e sua vontade. A bem da
verdade, no entanto, temos que admitir que há intrincados processos, movidos por
fortes rejeições maternas ou paternas, que inviabilizam completamente o processo
reencarnatório, exigindo trabalhosas interferências do mundo espiritual para serem
superadas. E forçoso é admitirmos ainda a existência de esterilizações definitivas
que não podem ser contornadas pela vontade do espírito, por mais poderosa que
seja.
— E seu futuro pai não poderá dificultar-lhe o ingresso na vida, negando-se a
recebê-lo? — continuou a indagar a querida estudante.
— Sem dúvida seu pai será Abelardo, o jovem militar que se encantou com os
dotes físicos de nossa francesa. Embora não guarde nenhuma intenção de ter com
ela um filho, ele não lhe impõe obstáculos à aproximação, pois não identifica em
sua memória espiritual os laços que seguramente os unem na urdidura do destino.
Embora se apresente com uma atuação aparentemente neutra, sua primeira e
espontânea intenção será de negar o filho inesperado, contudo sua rejeição não traz
força suficiente para interferir no processo e por isso sua participação nos parece
ser meramente biológica, levada a efeito pelas circunstâncias a que se expõe.
Certamente que a lei de causa e efeito nos move na vida sempre rumo ao bem e às
oportunidades de refazimento dos erros do pretérito, por isso lhe será, sem dúvida,
uma ótima ocasião para o exercício e o aprendizado do amor, indispensável à
própria felicidade.
Abelardo continuava a manter intensos encontros amorosos com sua

ícaro Redimido -101


preferida, nutrindo-lhe verdadeira paixão. Catherine, apesar de ser-lhe um pouco
mais velha e não estar, na verdade, afeita àquele amor fogoso e incomum, deixava-se
levar pelos rogos do jovem apaixonado, atendendo- lhe a exigência de fidelidade.
Pelo menos por uns tempos, pensava, pois admitia a aventura como breve e
passageira. E brincava com os sentimentos do moço, proporcionando ao coração, roí
do por grandes decepções amorosas do passado, refazer-se nas fantasias de Eros,
fingindo ser ainda uma jovem adolescente, debutando no amor. Ademais, sentia-se
mais equilibrada, a pesada angústia que sempre lhe oprimia o peito a abandonara
sem explicação, e começara a nutrir certa aversão aos contatos sexuais movidos por
meros interesses pecuniários.
As entidades obsessoras que compartilhavam com ela as aventuras sexuais
permaneciam em seu ambiente psíquico, porém meio contrafeitas com as
modificações que denotavam no campo mental da parceira. Sem se darem conta do
que lhe passava, imputavam a mudança à presença do jovem que lhe encantava os
sentimentos femininos. Alheias à nossa atuação e à presença de Alberto,
ressentiam-se dos prazeres da promiscuidade em que se compraziam, notando-a
comedida diante do comércio do sexo. Freqüentemente as observávamos
maquinando planos para afastarem o moço intrépido que lhes roubava a atenção da
sócia de prazeres, obstaculizando-lhes o manejo dos interesses menos dignos.
— Se nossa amiga se deixasse orientar por algum sentimento religioso,
qualquer que fosse, que lhe sofreasse um pouco os desregramentos morais, poderia
se precaver contra tal assédio das Sombras — considerava eu à Adelaide. —
Precisamos esforçar-nos por mantê-la nos propósitos que vem alimentando, a fim
de proporcionar-lhe uma melhor saúde física na gravidez e um mínimo de paz para
nosso desventurado Alberto. O entrechoque das energias sexuais viciadas na
promiscuidade pode perturbar-lhe ainda mais a delicada situação perispiritual.
O bem-estar, que Catherine passou a desfrutar com a melhora de suas angústias,
ajudava-nos a manter-lhe os pensamentos num nível um pouco mais elevado.
Durante o sono físico, sugeríamos-lhe as lembranças da meninice, quando seus
genitores a levavam para o catecismo, procurando trazer-lhe à memória física os
valores religiosos cultivados no passado. E lhe suscitávamos freqüentemente a
oração, cientes de sua vivência como freira em encarnação remota. Não obstante,
não conseguimos induzi- la ao hábito da prece, embora a tivéssemos surpreendido,
certo dia, lendo a Bíblia. E assistíamos sua mente alimentando interesses há muito
não cultuados, como um forte e inexplicável desejo de ir à missa. A hipocrisia da
sociedade de então não tolerava, no entanto, a presença de

102 - Gilson T. Freire / Adamastor


meretrizes em seus templos, por sentir que maculavam seus sagrados ambientes,
embora o Senhor lhes tenha deixado o exemplo vivo de Madalena. Não convinha,
assim pensava Catherine, expor-se a esse incômodo, pois conhecia a história de
muitas companheiras que haviam sido duramente enxotadas das igrejas e
severamente repreendidas pelo ultraje a Deus.
Saneando um pouco o hálito psíquico de nossa amiga, desenvolvemos certa paz
em seu devasso ambiente, embora, em torno, a chusma de pelintras, encarnados e
desencarnados, seguisse seus condenáveis roteiros de tripúdios.
Não tardou muito para que, enfim, nos deparássemos com um quadro diferente.
Ao efetuarmos nossa costumeira visita a Catherine, numa noite, notamos que
Alberto se agitava febrilmente em seu nicho uterino, motivado pela presença dos
elementos masculinos em dia de fertilidade de sua futura mãe. Estendia delicados
laços fluídicos em direção ao óvulo maduro, já desprendido do ovário,
conduzindo-o apressadamente pela tuba uterina, a fim de trazê-lo para o encontro
com os espermatozóides.
— Chegamos a tempo de presenciar o momento miraculoso, Adelaide. Nossa
amiga, conhecedora de seu período fértil, foi ludibriada pela poderosa ação das
forças perispirituais de Alberto que, abraçando um de seus ovários, amadureceu
antecipadamente o óvulo de que necessita, alterando-lhe o habitual ciclo hormonal.
O fantástico instante da fecundação não tardará, pois as contrações uterinas estão
fortemente ativadas, elevando o sêmen até o seu objetivo. Note como isso apressa
a ascensão do líquido seminal. Sem a contribuição desses espasmos uterinos, a
viagem dos espermatozóides demandaria tempo muito maior do que lhes permitem
seus reduzidos ciclos vitais.
— Ocorre-me, Adamastor, o sentimento de que estamos num conluio com
Alberto, constrangendo Catherine a engravidar-se — considerou Adelaide, algo
contrafeita e ensimesmada. — Não estaremos participando de um engodo? Será
que realmente ela aceitou engravidar-se ou foi constrangida pela presença da
imagem do pai?
— Minha boa amiga, Catherine aceitou receber Alberto, inebriada por
indizível ambiente de luzes espirituais, vislumbrando alegrias nunca antes sentidas
e coagida pela memória do genitor, é bem verdade. Isso, no entanto, não invalida
sua livre disposição de servir à vida. Ainda não sabemos como reagirá na
consciência da carne, que não guarda reminiscências tão nítidas das resoluções
deliberadas no plano do espírito, mas os méritos de sua anuência já lhe foram
computados pela Lei de

ícaro Redimido -103


Deus. Se ela não tivesse aceitado receber Alberto de boa vontade, estaríamos
lutando com enormes dificuldades para manter-lhe a presença no nicho uterino que
o rechaçaria, e nossas chances de sucesso seriam bem reduzidas. Ainda que de
forma inconsciente, ela sabe o que está lhe passando neste momento. Conhecendo
sua personalidade e a vida que entreteceu para si mesma, podemos aventar uma
idéia bem aproximada de como irá se comportar quando realmente se vir grávida,
mas não convém gerarmos expectativas que a poderão influenciar no campo sutil
das sugestões mentais. Os dirigentes superiores da vida certamente já selaram o seu
prognóstico, mas quanto a nós, guardemos nossos sentimentos a esse respeito. E
não olvidemos que todo esse processo, embora lhe pareça um engodo, está
contribuindo para reformar-lhe o patético destino, antes que sua alma se precipite
em queda, nos abismos de aflições, de onde somente poderia esquivar-se com dores
muitíssimo maiores. Sem esquecermos ainda que nossos protagonistas criaram,
através de suas condutas, as condições favoráveis ao desencadeamento da situação
que vivenciarão. A vida não se constrói somente com prazeres, sabemos disso e,
cedo ou tarde, ela nos cobra a colheita das ações levianamente semeadas.
Adelaide se deixou convencer da realidade, persuadida de que o espírito
necessita de vicissitudes e sofrimentos, às vezes salutares, como única linguagem
de que a Lei dispõe para que a evolução se faça vitoriosa no campo das realizações
mais nobres do espírito. Afastando de sua delicada alma os sentimentos que a
incomodavam, voltamos nossa atenção para os maravilhosos fenômenos em jogo
no precioso instante. E, em breve, podíamos presenciar o óvulo envolvido por
agitada nuvem de espermatozóides.
— Note, Adelaide, que não é o primeiro que chega que guarda o direito de
fecundar o óvulo — observa. — A união dos gametas se estabelece mediante
liames vibratórios, ainda não compreendidos pela ciência terrena. Veja como a aura
de Alberto, neste momento, dilata-se e envolve o óvulo em um halo energético,
atraindo com vigor o espermatozóide mais condizente com suas necessidades. O
processo se opera de forma completamente automática com base nos ensaios
reencarnatórios multimilenares do ser. Por isso nem sempre é o gameta mais hábil e
perfeito o escolhido, porém aquele que sintoniza com as exigências provacionais do
reencarnante, podendo ser um portador de graves deformidades genéticas.
Aprendemos, assim, que, na verdade, herdamos sempre de nós mesmos, e a
hereditariedade do corpo é dominada completamente pela hereditariedade do
espírito.

104 - Giison T. Freira / Adamastor


Catherine, parcialmente desligada do corpo pelo sono físico, permanecia ao
nosso lado, já ambientada em nossa presença, porém sem se dar conta do campo
divino em que se convertera o seu centro genésico naquele momento. Sua mente,
obnubilada, não detivera a necessária clareza para se inteirar do fato, porém
inconscientemente sentia-se possuída por apoteótica alegria, oriunda da mais
deificante satisfação do espírito, a de ser partícipe do sagrado ato de criar. Pálida
luz acendeu-se em seu centro genésico, há muito obscurecido, denotando a
presença divina em meio às suas vilipendiadas energias sexuais.
Era quase manhã quando deixamos a sua casa. Embevecidos pelo milagre da
fecundação, olvidávamos até mesmo o sorumbático ambiente de nossas atividades e
louvamos a Deus e ao Seu amor, em meio a messalinas doidivanas, adormecidas
nos braços de jagodes refestelados, constritos aos seus viscerais prazeres urdidos na
mais ordinária das paixões humanas.
Elevando-nos sobre a mata próxima, divisamos surpreendente paisagem terrena.
O sol despontava rente à linha do horizonte, inflamando o mar de cores esfiiziantes
e ateando fogo às nuvens incautas, mal refeitas do repouso noturno. O chilrear de
gaivotas distantes e a carícia da brisa matinal emolduravam a artística paisagem,
comovendo-nos diante de tanta exuberância. Parecia-nos que a natureza, desejosa
de recompensar- nos pelos serviços, brindava-nos com admirável regalo. Um
sentimento melancólico nos assaltava o espírito naquele momento, pensando na
frivolidade do homem encarnado, que se deixa chafurdar na vileza dos engodos
mundanos, ainda infantilizado diante das dádivas da criação, incapaz de se
reconhecer herdeiro da divindade e partícipe do egrégio milagre da vida. Somente a
prece podia expressar as emoções que nos brotavam em profusão e, com as almas
genuflexas diante do Altíssimo, oramos, pedindo luzes para os inconseqüentes que
certamente ainda somos e para os irmãos que, não obstante, ainda teimam em
caminhar sob a nossa retaguarda.
Finalmente retornamos à nossa colônia completamente aliviados pelo bom êxito
da tarefa. Satisfeitos, corremos até Fausto, dando-lhe em primeira mão a notícia de
que Alberto se fixara em definitivo no organismo materno. Enfim, podíamos
descansar um pouco, na paz do dever cumprido.

ícaro Redimido -105


Dias Atribulados

"Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de


amanhã cuidará de si mesmo. A cada dia basta o seu mal. ”
Jesus - Mateus, 6:34

A fecundação sela a união do espírito com a carne, tornando a


junção irreversível, cuja ruptura somente se faz possível mediante
a morte. Iniciando o desenvolvimento de sua nova veste, o espírito
entrega-se completamente à sua reconstrução, o que lhe requisita total
exclusividade de ação. Somente entidades de altíssimo quilate evolutivo
conseguem manipular à distância o desenvolvimento de sua forma,
mantendo-se em relativa liberdade de consciência durante o processo. A
maioria dos homens, no entanto, necessita da permanência constante
junto à massa embrionária para propiciar a devida orientação à sua
maturação. Por isso, toda a atividade consciencial do ser, acompanhando
a redução perispiritual, regride também aos patamares da evolução de
onde parte para a nova aventura na esfera do recomeço. E, como vimos,
toda mudança de fase de vida requer a recapitulação das fases precedentes
para se reiniciar, sendo a reconstrução nada mais do que uma
rememoração. Desse modo, durante o desenvolvimento embrionário, o
espírito recorda a evolução biológica já percorrida e refaz, em curtos
nove meses, os milhões de anos já perpassados na carne. Assim é que,
nas primeiras semanas, o embrião humano é de todo indistinguível do
embrião dos animais inferiores, pois a ontogenia rememora a filogenia51,

51 Ontogenia é o desenvolvimento do indivíduo desde a fecundação até a sua maturidade. Filogenia é o


desenvolvimento do filo genético. Filo é classe ou categoria ao qual um animal pertence. Quando se diz que
“a ontogenia rememora a filogenia”, quer-se dizer que o desenvolvimento de um ser em especial é um
processo que relembra o desenvolvimento da classe animal a qual ele pertence.

106 - Gilson T. Freire / Adamastor


como temos aprendido da observação da embriologia. Fato que comprova a
veracidade do fenômeno e a pré-existência de uma consciência ativa e extrafísica
que recorda e dirige todo o processo.
Estabelecidos de modo indissolúvel os liames que atavam Alberto ao vaso
físico, vencíamos apenas a primeira parte de nossa incumbência e a tarefa se
intensificou desde então. Fausto comparecia nos primeiros dias subseqüentes,
auxiliando-nos na condução inicial da delicada elaboração que exigia cuidados
redobrados, tendo em vista a instabilidade de suas forças perispirituais.
— Estamos diante de um ovo hipoativo, como apropriadamente o denomina a
medicina terrena—explicava-nos o tarefeiro do Departamento de Embrioterapia. —
Embora Alberto se encontre ávido por reconstituir seu novo corpo, os exaltados
estímulos autodestrutivos anteriormente alimentados ainda reverberam na
intimidade de suas forças psicossomáticas, impondo-lhe inibições à expansão e
retardando-lhe o ritmo de desenvolvimento. Temos que lhe apressar os passos, pois
do contrário ele se fixará na tuba uterina, onde sua permanência, naturalmente, será
dificultada pelo estabelecimento de uma gravidez tubária52 com as graves
conseqüências que acarreta. Já se passaram quatro dias e em apenas três, como de
hábito, o ovo já deveria ter se fixado na cavidade uterina. Auxiliemos como nos é
possível.
Apesar das intensas operações de ativação empreendidas pelo tarefeiro,
decorreram sete dias e o trofoblasto53 ainda não apresentava condições de nidação.
Ultrapassando a região fándica do úteroSi, seu sítio habitual de fixação, terminou
por se implantar nas margens do orifício interno do canal cervical55 como previra o
hábil servidor.
— Sim, meus amigos, conseguimos evitar o pior, mas a placenta prévia56 já
está configurada e será inevitável — disse ele. — Catherine experimentará
sangramentos importantes no segundo trimestre da gravidez se Alberto não for
vitimado por abortamento natural ou induzido, antes disto. Aguardemos agora os
acontecimentos.
Finalmente acomodada, a massa embrionária dava livre curso ao seu
desenvolvimento. Fausto nos deixou a sós na condução da operação que

52 A gravidez que, de forma anormal, ocorre na tuba uterina e não no interior do útero. Exige intervenção
cirúrgica, sendo incompatível com o desenvolvimento do feto, pois pode levar a mãe à morte.

53 O conjunto de células embrionárias que dão origem à placenta.


54 Região situada no fiindo do útero, de maior amplitude, próxima à qual se fixa o ovo, em situação de
normalidade.
55 O canal que comunica a cavidade do útero com o exterior.
56 Implantação baixa da placenta, próxima ou sobre o orifício uterino, levando a hemorragias na gravidez.

ícaro Redimido -107


passou a demandar menores cuidados, entregue agora à orientação de seu próprio
automatismo. Acompanhávamos o seu progresso em visitas quase diárias,
exercendo a vigilância que nos cabia e permitindo a Adelaide o enriquecimento de
seus conhecimentos no exame do processo reencarnatório. Embora parcialmente
refeito pelo salutar contato com as energias maternas, podíamos já observar a massa
embrionária refletindo a desorganização energética do nosso amigo, revelando
movimentos anormais em seu desenvolvimento. Dentro em breve notávamos que o
coração não se desenhava segundo sua perfeita conformação, deixando entrever
alterações importantes em sua anatomia embrionária. O tubo neural primitivo, onde
se concentrava o potencial de suas forças deterioradas, era palco de adiantado
processo patológico, na formação das vesículas primordiais, prenunciando o
estabelecimento de graves patologias no sistema nervoso central. Fluidos
escurecidos escoavam de seu psicossoma reduzido, aviltando a massa celular que se
contorcia, desgovernada pela desorientação magnética imposta à forma.
Verificávamos, com evidência, que a carga genética herdada pelo nosso amigo
era da melhor qualidade possível e não se responsabilizava pelas alterações sob
nossa análise. As malformações se deviam unicamente às adulterações de seu
molde perispirítico. Sabemos, sem sombras de dúvidas, que o DNA, tão venerado
na ciência dos homens, não é o único responsável pelo estabelecimento das formas
dos seres vivos. Esta surpreendente molécula se responsabiliza apenas por impor
modelos específicos de formações protéicas, mas a adequada utilização e o devido
posicionamento destas proteínas não pode, naturalmente, ser esperado de uma
unidade destituída de vontade e inteligência próprias. Isso é da alçada da entidade
espiritual formadora e seu molde energético que, como hábil arquiteto e executor da
construção, sabe como orientar o material que recebe para a edificação da obra
previamente idealizada. Seria pedir muito a uma simples molécula. Certamente é
inegável que a conformação das estruturas protéicas, propiciadas pelos polímeros
do DNA, pode e influencia em muito o resultado final da arquitetura orgânica, da
mesma maneira que o desenho dos tijolos afeta as linhas finais de um conjunto
arquitetônico. Não digamos, com isso, que os tijolos constroem a casa, com toda a
sua complexidade, o que seria completamente ofensivo à lógica. Compreendamos
de uma vez por todas que o código genético detém indispensável molde de
elementos protéicos necessários à construção do edifício orgânico, mas sua ação se
compara a de uma olaria, produtora das variadas peças que entram na formação de
uma casa e nada mais.
Notávamos ainda, admirados, que o feto em desenvolvimento absorvia

108 - Gilson T. Freire / Adamastor


energias sifilíticas, irradiadas da mãe, em perfeita sintonia com suas lesões
energéticas. Os espiroquetas trafegavam à vontade pelo seu organismo impondo-lhe
novas dificuldades, mas ao mesmo tempo absorvendo em seu ávido metabolismo as
energias igualmente aviltantes, vertidas de sua organização perispiritual.
— Estamos presenciando um verdadeiro conúbio — dizia à Adelaide
— onde os bacilos apenas se alimentam das energias espirituais degradadas,
auxiliando a sua evacuação da malha energética de Alberto. Por isso podemos
considerá-los auxiliares da drenagem vibratória e sustentados pelas irradiações de
igual natureza que promanam de sua alma.
Além deles abundavam na massa embrionária, igualmente ambientados pela
corrente fluídica, os vibriões fetais57 , agentes identificados pela medicina terrena
como responsáveis pelo abortamento patológico.
Apesar de estarmos presenciando um desenvolvimento anormal, exigente de
cuidadoso acompanhamento e suscitante de preocupações, tínhamos motivos para
nos alegrar, pois sabíamos que as dificuldades do momento prometiam salutares
soluções para os intrincados dramas dos espíritos envolvidos no procedimento
assistencial que empreendíamos. Nosso contentamento era ainda maior, pois
passamos a contar com outro grande feito. Orientadores de nossa colônia
identificaram parentes desencarnados das duas entidades femininas que
obsediavam Catherine. Já cientes das responsabilidades da vida espiritual,
submeteram-nas aos seus bons alvitres, encaminhado-as para o devido socorro em
casa de assistência espírita cristã. Embora não obstaculizassem sobremaneira o
nosso trabalho, pesava-nos ver-lhes a penúria espiritual sem nada poder fazer.
Além disso, elas promoviam desgastes vibracionais em Catherine, excitando-a à
prática abusiva da sexualidade e poderiam perturbar-lhe o processo gestacional,
assim que dessem conta do fato.
Catherine prosseguia sua rotina de vida, mantendo-se, felizmente, fiel ao seu
apaixonado companheiro, facilitando em muito o nosso trabalho assistencial.
Dávamos graças a essa providência divina, que, sem o sabermos, cuidava também
com desvelo pelo bom andamento do processo, certamente em obediência a outros
determinantes da Lei que ignorávamos. Freqüentemente a presenciávamos
recordando-se de seu sonho, trazendo- lhe lágrimas de doce emotividade à alma
sensibilizada. Durante o desprendimento noturno, ainda não conseguia perceber-
nos a presença com clareza a fim de confabular conosco, mas se dava conta de estar
habitando ambiente vibracional diferenciado. Os espíritos levianos que

57 Chamado vibrio fetus, agente microbiano associado também às septicemias.

ícaro Redimido -109


habitualmente a procuravam para os folguedos libidinosos, durante o seu repouso
físico, paulatinamente se afastavam, tendo em vista a mudança de seu hálito
vibracional. A imagem da figura paterna, na lembrança do sonho, continuava a
exercer-lhe forte influência à mente, impondo-lhe salutares sentimentos de culpa.
Muitas vezes percebíamos seus pensamentos mergulhados em sinceros desejos de
mudança e podíamos verificar os efeitos benéficos que o remorso, desprovido de
exageros doentios, é capaz de suscitar no espírito, induzindo-o a importantes
reformas ao longo de sua linha evolutiva.
A placenta, agora desenvolvida, exercia intensamente sua atividade de abafador
das toxinas, tanto materiais quanto vibratórias, emitidas pelo reencarnante. Como
estas, pelo seu caráter aviltante e excessiva quantidade, ultrapassavam o seu limiar
de trabalho, não tardou muito para que se estabelecesse em Catherine o quadro de
náuseas e vômitos, típicos dos processos gestacionais, com a finalidade de se
facilitar a drenagem das energias vertidas pelo feto em desenvolvimento.
Iniciávamos assim um período crítico no processo em andamento, quando ela
finalmente se reconheceria grávida, apesar de inconscientemente já estar
plenamente ciente do fato.
Em breve acompanhávamos nossa amiga em visita ao médico terreno. Convinha
estarmos presentes a fim de orientar o facultativo, como nos fosse possível,
evitando-se maiores agruras para nossos amigos. Aproximando-nos da
companheira, notamos-lhe a vibração pesarosa e oprimida no semblante constrito,
pois sua intuição já lhe adiantava, com clareza, a condição em que se encontrava.
Sabia-se grávida, apesar de todos os cuidados que aprendera a adotar a fim de
evitar esse dissabor sempre temido no tipo de vida que empreendia. Rosa, a fiel
amiga de todas as horas, acompanhava-a, já ciente da novidade, pois em sua
percepção previra o sucedido, por assistir à sua fácil capitulação diante dos
galanteios de Abelardo.
Adentrando o consultório médico, notamos que a mente do facultativo não se
mostrava acessível a qualquer tipo de inferência de nosso plano. Confirmando as
impressões de nossa companheira, apressava-se a despedi- la, pouco afeito a ouvir
os seus reclames. Catherine, porém, ressumando aflitivo pesar nos olhos que
deixavam pender grossas lágrimas, dizia-se extremamente infeliz diante da
inesperada gravidez e, atendendo às nossas sugestões, ainda que com extrema
dificuldade, insistia, procurando ouvir- lhe os conselhos para enfrentar o inevitável
processo.
— A madame tome as providências que achar melhor, mas eu não posso fazer
nada pela senhora — dizia o médico, ainda contrafeito.

110 - Gilson T. Freire / Adamastor


Notávamos-lhe a sólida formação moral, rica de possibilidades para a devida
orientação à nossa amiga, porém sua pressa e seu pouco interesse em se envolver
com o caso tornavam-no completamente impérvio à nossa atuação. Intensificamos
nossa capacidade de influenciação, a fim de não perdermos a valiosa oportunidade,
insistindo para a continuação do diálogo, ao que Catherine anuiu:
— Tive um sonho, doutor, em que meu finado pai me entregava um bebê...
— Madame, já está provado que os sonhos são meras criações do inconsciente,
não dê confiança a essas bobagens — retorquia o médico, impaciente,
interrompendo-a e despedindo-a, visivelmente contrariado e sem a mínima
disposição para atender ao nosso instante petitório.
Ciente da vida de meretrício de nossa companheira, estava certo de que ela não
toleraria o processo e lavava suas mãos, abstraindo-se dos conselhos nobilitantes que
lhe ditávamos com insistência à mente refratária. Não pudemos deixar de lamentar o
fato, recordando que a palavra amiga, menosprezada por muitos profissionais da
saúde, é auxílio muito mais eficaz do que qualquer medicamento para um doente
aflito.
Ao deixar o consultório, apoiando-se no ombro de Rosa, Catherine mal se
conteve para chegar em casa e prorromper em choro copioso. Como enfrentar a nova
situação diante da vida que levava? Abelardo tolerar-lhe-ia o descuido? Assumiria
com ela o filho inesperado? Rosa, alma sensível e mais afeita às nossas sugestões,
considerava:
— Lembra-se do sonho que você me contou há pouco tempo? Não será verdade
que seu pai tenha vindo do Além para lhe alertar quanto a este filho? Como pôde
acontecer exatamente o que você viu no sonho?
— Como disse o doutor, os sonhos são apenas fantasias, Rosa. Isso não é
possível, ninguém volta do Mundo dos Espíritos. É pura coincidência — respondia
Catherine, inconsolável, entre soluços.
Restava-nos aguardar o repouso noturno para tentar consolar-lhe a alma dorida,
convencê-la da realidade do sonho e da necessidade de aceitar o processo com boa
vontade, lembrando-lhe os compromissos assumidos.

ícaro Redimido -
111
Tempestade Vibracional

Por que sois assim temerosos? Ainda não tendes fé?


Jesus - Marcos, 4:40

R etornando à noite, não contávamos com as dificuldades


imprevistas da jornada. Era Carnaval na Terra e nesses dias de
folia o plano das Trevas se aconchega à crosta, unindo suas sombras
aos folguedos inconseqüentes dos homens. Orientadores de nossa colônia
recomendam aos seus tarefeiros que evitem a todo custo as incursões
terrenas nessas épocas. Nem todos são capazes de se resguardarem das
intensas tormentas vibracionais e do assédio de hordas de espíritos
inferiores que, junto com os homens, entregam-se às imprudências nesses
dias de algazarra. Era recomendável aguardar que as pesadas nuvens
fluídicas envolvendo a grande cidade se dissipassem para que tomássemos
aos afazeres assistenciais; no entanto, o serviço não podia esperar. As
ondas mentais que Catherine desferia poderiam perturbar Alberto,
danificando-lhe ainda mais a delicada tessitura perispiritual, ameaçando
o bom êxito de nossa tarefa. Era imprescindível algo intentarmos para
alívio da situação, evitando a semeadura de infelicidades ainda maiores
para nossos amigos. Demandamos assim às regiões trevosas da Terra,
cientes das dificuldades, embora as nossas parcas condições espirituais
não nos resguardassem por completo das agressões do colidente ambiente
de nossos trabalhos.
Empreendemos a jornada bastante inseguros, como marinheiros que se dispõem
a enfrentar tempestades desconhecidas em alto mar, munidos de frágeis
embarcações. O horizonte ensombrecido e agourento que vislumbrávamos ao longe
nos ameaçava com maus presságios, infundindo- nos verdadeiro pavor. Foi preciso
vencer o temor quase infantil que nos

112 - Gilson T. Freire/Adamastor


assaltava para partirmos, confiando na proteção divina. Ao nos aproximarmos do
halo vibratório da metrópole terrena, sentíamos como se adentrássemos numa
borrasca de graves proporções. Vibrações antagônicas nos açoitavam, quais farpas
agudas em meio a vendaval de fluidos escuros soprando com fúria. Parecia que nos
embreávamos na mais tenebrosa região umbralina.
Os encarnados, não habituados à percepção das vibrações ambientais, não
podem fazer uma idéia precisa de como os desencarnados as registram através dos
seus sentidos aguçados. Em nosso esforço descritivo, não encontramos outra forma
de caracterizar essas emanações trevosas do que compará-las a um temporal. A
imagem se lhes aproxima, porém trata-se de analogia acanhada que não corresponde
à exata realidade do fato. Os espíritos inferiores, no entanto, quais os homens
comuns que habitualmente as compartilham, não lhes denotam a sordidez por se
acharem perfeitamente adaptados a elas.
Alheio aos entrechoques da atmosfera vibracional que respira, o homem terreno
desfruta dos festejos carnavalescos sem se dar conta da vileza do ambiente que o
envolve. Se lhe fosse possível vislumbrar o panorama espiritual que o assedia
nesses dias de levianos arroubos de festividades, aterrar-se-ia ante as assustadoras
imagens que se desdobrariam aos seus atônitos olhos, conspurcando-lhe o alegre
colorido das fantasias e a exuberância festiva das alegorias.
A alegria sincera e destituída de intencional idades inferiores não encontra,
naturalmente, reprovações nas Leis que nos dirigem, se não nos deixássemos
contaminar pelos interesses menos dignos que menoscabam o espírito, advindo daí
o seu erro. Pudesse o homem, na busca da diversão a que tem direito, resguardar-se
do conúbio com as Trevas, desfrutaria das festividades populares, continuando a
respirar as emoções superiores sem descer à vil sensualidade.
Atravessamos silentes e apressados as tristes paisagens povoadas de corriolas de
vândalos, favorecidos pelas bênçãos da volitação e encobertos pelos diferenciais
vibratórios que nos destoavam do ambiente, mas não sem registrar o entrechoque
das emissões inferiores que nos atingiam de forma desagradável, causando-nos
tensões e receios.
O casarão francês envolvia-se na festa de Momo enfeitando-se tipicamente
como o exigia a ocasião. Entretanto fora invadido pelos mesmos espíritos
umbralinos que povoavam as ruas, e as trevas se somavam às cores vivas da exótica
decoração. A agitação no recinto era inusitada. Em descomunal algazarra os
espíritos se jungiam aos insensatos encarnados, inebriados em danças simiescas.
Catherine não se dispunha

ícaro Redimido -113


ao sono reparador, embriagava-se e, embora não estivesse ainda perfeitamente
habituada aos folguedos carnavalescos, entregava-se com ânimo às folias típicas
dessa festividade. Como uma criança em fuga das responsabilidades que previa
pela frente, parecia desejar somente esquecê- las, atirando-se na bebida
inconseqüente. Não notávamos a presença de Abelardo e logo a vimos atirar-se nos
braços de outros amantes, retornando aos velhos hábitos da promiscuidade sexual.
Espíritos viciados do sexo invadiam-lhe novamente o ambiente psíquico
desguarnecido, voltando a compartilhar-lhe os arroubos libidinosos.
Lamentávamos não poder contar com uma de suas crises enxaquecosas, a fim de
coibir-lhe os desmandos nos imprudentes excessos a que se entregava, pois o
metabolismo gestacional afastava momentaneamente estes salutares incômodos. A
madrugada avançava e não víamos a menor possibilidade de assediá-la com nossas
influenciações, a fim de evitar o pior. Não nos cabia outra alternativa que nos
recolhermos em nossa colônia, à espera do fim da exótica e lúgubre festa humana.
Ao retornarmos, ouvimos um chamado de socorro ao longe, proferido por
entidade de nosso plano. Aproximando-nos, vimos que um jovem, gesticulando
desesperadamente, suplicava por ajuda diante de matula infrene de espíritos
vampirescos. Três encarnados armados de facas ameaçavam um cavalheiro,
visivelmente embriagado, em solitária e escura ruela. A súcia de entidades
demoníacas gritava por sangue em meio à desesperante algazarra. O rapaz, aflito,
temia pelo velho assediado pelos bandidos. Acalmamo-lo na esperança de algo
fazer em seu auxílio, mas não nos era possível qualquer atuação. Em minutos os
facínoras, dando ensejo aos incentivos da corja que os excitava, desferiram golpes
mortais no imprevidente homem, deixando-o agonizando na sarjeta. Os vampiros,
ávidos e enlouquecidos, atiraram-se qual bando de hienas selvagens sobre a vítima,
sorvendo-lhe as emanações vitais do sangue que vertia em abundância. A
inesperada e terrificante cena nos paralisou por completo os sentidos. Ocultos pelas
barreiras vibracionais, estávamos de certa forma defendidos contra a cambada de
malfeitores desencarnados, mas muito pouco pudemos fazer em auxílio do
cavalheiro. Acercamo-nos com dificuldade, apenas para constatar que a vítima
agonizava nos seus últimos minutos de vida. O jovem revelava-se ser seu filho em
condições espirituais mais relevantes, porém se tratava de uma entidade encarnada
em desprendimento noturno e, ante o choque e a ameaça da cena, retirara- se,
espavorido para o refúgio seguro do corpo físico. Convocamos entidades de
socorro, assentadas em grupo espírita cristão nas imediações, de onde valorosos
companheiros acorreram em nosso auxílio. Tentamos

114 - Gilson T. Freire / Adamastor


embalde desvencilhar o pobre ébrio do assédio dos vampiros, mas era impossível.
Achava-se jungido a eles por fortes liames e ainda se debatia com restos de
vitalidade orgânica, vilipendiada pelos malignos. Os amigos nada puderam também
fazer; era necessário deixá-lo entregue à própria sorte. Adelaide, em desespero,
suplicava para que socorrêssemos o infeliz boêmio.
— Querida amiga, é preciso conformar o coração diante das tristes realidades
da vida ainda extremamente primitiva que levamos na Terra
— disse, consolando a desesperada companheira. — Este cavalheiro, sem dúvida,
semeou para si mesmo seu trágico destino. Alimentou vibrações que atraíram estes
vampiros e estará nas mãos deles como um espantalho, servindo-lhes de joguete por
tempo indeterminado e por obra de seus próprios desatinos. Tais elos somente serão
quebrados pela dor e podemos auxiliá-lo incluindo-o em nossas preces.
Abandonamos o local da tragédia humana, deixando alguns espíritos de nosso
plano velando pelos acontecimentos. Certamente invocariam a presença de
encarnados no local, a fim de recolherem o infeliz e encaminharem as providências
habituais em tais ocasiões. Nada mais podíamos fazer.
Apressadamente voltamos ao refugio seguro de nossa colônia, deixando que a
tempestade das paixões humanas se aplacasse no dissabor dos apetites
momentaneamente refestelados e no esgotamento providencial dos ânimos
exaltados.
Retornando às nossas atividades junto a Catherine, findos os tormentosos dias,
encontramo-la ainda se recompondo dos abusos a que se atirara. Sua aura exalava
ainda odores alcoolizados e a graça da enxaqueca retornara, finalmente, a fim de
fazer valer o seu justo merecimento depois de tantos excessos empreendidos. A
situação de Alberto era de se lastimar. Sua delicada tessitura perispiritual
encharcara- se dos produtos maléficos sorvidos pela imprudente irmã. Era urgente
nossa intervenção para que ele não sucumbisse naquele momento. Seus batimentos
cardíacos eram quase imperceptíveis e sua psicosfera empalidecida prenunciava a
morte próxima. Iniciamos urgente terapêutica de limpeza a fim de libertá-lo do
guante do álcool. Fizemos adormecer nossa amiga, exausta e desfeita em seus
desvarios. As emanações psíquicas que lhe vertiam da mente permitiam-nos
entrever o intenso desregramento a que se entregara nos últimos dias. Abandonara
os imperativos da consciência, deixando-se conduzir pela inconseqüência,
certamente procurando na bebida olvidar os compromissos que a vida lhe suscitava.
Desprendemo-la, a custo, do corpo físico, mas sua consciência permanecia

ícaro Redimido -115


obnubilada pelos desatinos assoberbados. Era impossível qualquer tentativa de
contato com ela no momento. Solicitamos com urgência a presença de Fausto, a fim
de nos auxiliar no imperioso socorro a Alberto. Envolvendo- o em delicadas
operações magnéticas de limpeza, demandamos várias noites de tratamento intensivo
a firri de libertar nosso pobre amigo da acentuada intoxicação a que fora acometido.
— Os homens agem como crianças imprudentes diante dos sagrados valores da
vida. Lidam com suas energias orgânicas como se fossem feitas unicamente para o
prazer — considerava-nos Fausto, concitando- nos à meditação. — As conseqüências
a que se expõem não compensam os fugazes gozos que desfrutam.
Após alguns dias pudemos verificar os graves danos na organização de Alberto,
decorrentes das peraltices de sua incauta mãe. A massa embrionária sofrerá sérios
prejuízos e valiosas células físicas foram sacrificadas na tentativa de evacuar as
toxinas impostas à sua frágil organização. Porém, conseguíramos evitar o pior e
podíamos repousar um pouco.

116 ■ Gilson T. Freire / Adamastor


Doloroso Transe

“É impossível que não venham tropeços, mas ai daquele por quem vierem!”
Jesus - Lucas, 17:1

O cortejo de atribulações seguia a sucessão do tempo sem nos


deixar esquecer de que o Mestre nos recomendou olvidar de
cada dia o seu próprio mal. Ainda estamos distantes da vivência
integral do Evangelho para o ressarcimento de todas as nossas dores e
prosseguimos semeando-as no campo de nossos destinos, sem reconhecer
que somente o Bem nos pode conferir alegrias verdadeiras. As vicissitudes
se amontoam em forma de desesperos, as aflições nos assolam em cada
estação da existência, pois não sabemos praticar a vida na retidão do
dever e no amor ao semelhante. Justo ansiarmos pela felicidade, genuíno
anelo herdado do Criador, porém enquanto não nos fizermos seareiros
da alegria, não deteremos méritos para desfrutá-la e seguiremos como
meros fantoches de agonias, sombras de nós mesmos, colhendo os
tormentos livremente fomentados.
Catherine não estava preparada para a reforma sadia de seu destino. Não
encontrou seus novos caminhos na execução dos projetos que a vida sabiamente
lhe ofertara. Dera asas ao desespero, pois não desejava abandonar as comodidades
e a luxúria sustentadas pelo dinheiro fácil, embora advindo de tão execrável fonte.
Abelardo, ciente da gravidez de sua amada e certo de que deveria se
responsabilizar pela paternidade, preferiu dar vazão à covardia, pois não lhe
convinha assumir uma prostituta e seu filho, ambos renegados pela sociedade. Era-
lhe muito mais cômodo ignorar o fato e olvidar sua pretensa afeição, embasada na
mais fugaz das paixões carnais. Nunca mais fora visto, deixando nossa amiga
inteiramente

ícaro Redimido -117


sozinha, multiplicando-lhe as agruras. A Lei, que é feita de uma substância
inalcançável pela nossa parca percepção, tudo assinala e registrou com imagens
vivas, na memória de seu protagonista, o instante do dolo. Ela saberá retorná-lo ao
seu destino, em forma de reação, no momento mais apropriado. Não nos convinha
qualquer indignação com sua ignorância, cabendo-nos apenas o pesar e um
pensamento de paz em seu favor.
Tivesse ele se disposto a apoiar nossa irmã e ela teria angariado condições para
mudar a sua vida. Encontraria ensejos para sustentar sua gravidez e juntos
poderiam ter entretecido um lar, meritório de grandes venturas. Mesmo que não
recebessem Alberto, outros filhos tecer-lhes- iam á alegria de um destino
benfazejo. Os ganhos evolutivos seriam incalculáveis e dores imensas evadir-se-
iam de suas almas. Mas nossos amigos optaram pela desdita, eximindo-se de
assumir as suas responsabilidades. O destino é força poderosa que tende a seguir
um roteiro previamente estabelecido, mas funciona qual nau em cruzeiro
determinado. Embora a rota esteja já traçada, o timoneiro tem liberdade de segui-la
ou não, podendo aportar na segurança do cais almejado ou atirar o barco da vida de
encontro a rochedos ameaçadores. Elegeram eles, por livre escolha, o caminho da
comodidade, rumando para as perigosas falésias da irresponsabilidade. O pobre
Alberto guardava a predisposição de expor-se aos danos advindos da infeliz
eleição. Tivesse ele, no entanto, encontrado guarida segura junto aos amigos
encarnados, teria haurido maiores benefícios de sua fugaz incursão na carne, apesar
de todas as dificuldades que o envolviam no processo reencarnatório.
Se o amor habitasse o coração dos homens, a felicidade lhes seria hóspede
permanente. Enquanto isso não se dá, o infortúnio contumaz lhes parasitará a alma,
por força de expressão de uma Lei que é, sobretudo, justa e proporciona a cada um
os frutos de suas obras.
A perda de Abelardo ferira a alma sensível de Catherine muito mais do que se
poderia esperar. É verdade que ela brincara com os sentimentos do rapaz, mas
nunca se sentira tão feliz, confiando em um braço amigo em quem apoiar seu
profundo desterro. Na desilusão em que se chafurdava, a gravidez indesejada se lhe
desenhava como a vilã que lhe afastou o companheiro e com ele a doce alegria de
se sentir amada. Durante o repouso noturno intentávamos, embalde, desligá-la do
corpo físico, a fim de entretecer com ela um diálogo amistoso, consolando-a diante
das aparentes dificuldades da vida, mas era-nos impossível qualquer tentativa nesse
sentido. Seus olhos espirituais se cerraram diante da responsabilidade assumida,
completamente dominada pela idéia fixa de deter, a qualquer preço, o divino
processo gestacional de que era palco. Desferia perigosas

118 - Gilson T. Freire / Adamastor


ondas mentais contra Alberto, que lhe penetravam quais aguilhões afiados,
danificando-lhe a já frágil organização perispiritual. Auxiliávamo-lo como
podíamos, mas não tardaria o momento que não seria mais possível o seu sustento
na carne. A placenta, imiscuída de energias repulsivas ao feto, feria-se de pontos
inflamatórios, que logo deixariam processos cicatriciais calcificados, promovendo-
se a atrofia de seus delicados tecidos. Além disso, desenvolvendo seus vasos
sanguíneos ricamente intumescidos nas margens do orifício uterino, não demoraria
ainda o instante em que se romperiam, deflagrando um fluxo hemorrágico,
comprometendo-se então, de forma incisiva, o andamento da gestação, como já
nos prevenira Fausto.
Catherine, sem saber que sua gravidez seria inexoravelmente interrompida, não
se dispunha a aguardar o que o destino lhe reservara. Enceguecida, não enxergava
senão o próprio corpo desfeito, o filho incômodo, a ausência de um pai com quem
dividir as responsabilidades da maternidade, somadas à negação de uma sociedade
incomplacente, disposta a condenar-lhe desapiedadamente os deslizes da conduta.
Seu orgulho não se curvaria diante dos olhares de desdém, desonrando-lhe a altivez
da alma. Rosa permanecia ao seu lado, disposta a lhe dar o apoio nestas difíceis
horas, tornando-se nosso único canal para transmitir-lhe o sustento que
intentávamos e os conselhos que gostaríamos que ouvisse.
Mas tudo foi em vão. A promessa proferida em espírito foi esquecida, o sonho
olvidado e as esperanças fenecidas nas tramas da desilusão. Catherine, desfeita em
desenganos, buscava no abusivo uso de bebidas a inútil fuga de suas vicissitudes.
Incapazes de lhe proporcionar qualquer alívio, os efeitos nocivos do álcool
somente multiplicavam-lhe as aflições, comprometendo-a ainda mais diante das
Leis da vida, na medida que promoviam desapiedada agressão ao feto.
Até que numa manhã, embora o sol brilhasse com sua habitual alegria, fazendo
o dia avançar despreocupadamente pela ingerência do tempo, encontramos
Catherine em uma carruagem, acompanhada por Rosa, dirigindo-se para retirada
região no subúrbio da grande cidade. Seu semblante constrito exalava um fatídico
pesar. Não tínhamos a menor dúvida para onde se dirigiam. O cocheiro, ciente da
direção que lhe indicaram, seguia os passos de seu obediente cavalo, mostrando
receio do ambiente hostil que adentrava. Apenas o pataleio surdo do animal na
terra seca da poeirenta ruela quebrava o sorumbático silêncio que movia as nossas
personagens, atrizes da vida real. Não havia mais lugar para confabulações ou
qualquer desesperada tentativa de persuasão. Em vão intentamos todos os recursos.
Não se podia mais alterar o rumo de seu destino. Estava inexoravelmente traçado.
Cumpria-nos a .obrigação do

ícaro Redimido -119


apoio, mesmo em hora tão abjeta. Convocamos Fausto para nos auxiliar na dura
empreitada e o valoroso amigo não tardaria a chegar.
No fundo de um morro, uma velha ponte quebrada interrompia a marcha do
veículo, forçando o cocheiro a estacionar diante de casebre singelo, ao lado de
córrego mal cheiroso. O ambiente de imediato nos assaltou com desagradáveis
eflúvios, mas não era o mangue próximo com seu característico odor que nos feria
com tamanha repugnância. As entidades que se amontoavam nas suas proximidades
eram as que o descoloriam de intensa abjeção. O cheiro de sangue pútrido emanava
de todos os cantos. Vibrações que gritavam as agonias de muitas mortes bafejavam
de odor cadavérico o triste barraco, conquanto a vegetação do entorno, indiferente à
vileza do ambiente, esmerava-se na exuberância.
O cocheiro afastou-se, macambúzio, entretendo seu obediente animal com o
verdejante pasto em derredor, enquanto uma senhora atendia à porta, desenhando
na face macilenta a figura de uma assustadora estrige58. A chegada do coche
despertou de imediato o interesse da turba de espíritos, agitando-a com frenética
algazarra. Muitos acorriam da mata próxima, onde pareciam aguardar o ansiado
instante. Acotovelavam-se em torno de Catherine, ao denotar-lhe de imediato a
disposição íntima de vítima próxima. Entidade monstruosa, de aspecto reptiliano,
parecia chefiar a súcia de comparsas, impondo-lhes certa ordem, pois buscava com
os olhos determinar aqueles que detinham o direito da vez, ordenando aos outros
que se retirassem.
Ao longe duas entidades aparentando bondade nos observavam, percebendo-nos
de imediato a presença. Aproximaram-se sem receio e se apresentaram:
— Meus amigos, vemos que são espíritos benfeitores. Não podemos dar-lhes
as boas vindas a este vil lugar, aonde somente os malignos se comprazem em vir.
Apresento-me como Matias, servo de vocês, e este é Daniel. Representamos aqui a
vigilância dos Obreiros do Bem.
Os nobres companheiros, dispostos à ingrata tarefa, recebiam-nos com
amabilidade e explicavam que nos achávamos em um local sob a guarda de
poderosos Dragões, como são denominados, em nosso plano, os espíritos malignos
que dominam largas regiões trevosas das esferas inferiores. Uma flâmula
tremulante composta de dois compridos triângulos sobrepostos, vivamente
coloridos de vermelho e verde, assinalava-lhes a posse e domínio absoluto da
localidade. Para ali eram enviados vampiros, que estes Dragões guardavam
interesse em recompensar por serviços

58 Vampiro com traços de mulher e cadela em certas lendas orientais.

120 - Gilson T. Freire / Adamastor


prestados, a fim de se comprazerem com os remanescentes vitais dos fetos
criminosamente sacrificados. Sim, estávamos em uma casa dedicada à prática do
aborto criminoso. D. Carmem, a senhora encarnada que a dirigia, expressando em
seu perispírito o triste aspecto de uma bruxa, era antiga e respeitada parteira da
região que, após nobilitantes serviços no bem, envolvera-se com espíritos das
hordas draconianas, optando pela prática dos delitos hediondos a que se entregava.
Estabelecera-se no solitário casebre, isolado da cidade, na beira do imundo
córrego, a fim de não levantar suspeita das autoridades locais. Utilizava-se ainda
do ribeirão que se achava bem próximo ao mar, para atirar os restos fetais,
servindo-os de alimento aos peixes, ocultando, assim de modo eficiente, as provas
de seus crimes.
Matias e Daniel muito pouco podiam fazer em socorro aos infelizes que
aportavam no local quase que diariamente. Acudiam um ou outro e cuidavam de
convocar as equipes de trabalho de nosso plano que atendiam à caridade cristã,
amparando as pequenas vítimas que ali desencarnavam em delicadas condições
perispirituais, providenciando ajuda para aqueles que não mereciam, por força da
Lei, cair nas mãos da plévia ali acampada. Recebiam ainda os trabalhadores que,
como nós, costumeiramente compareciam, acompanhando suas imprevidentes
assistidas. Achavam- se, à nossa semelhança e por graça Divina, protegidos pelas
barreiras vibratórias que nos tornavam ocultos à turba de criminosos.
Cumprindo com suas obrigações, avisou-nos Matias:
— Amigos, todo o cuidado aqui é pouco. Embora ciente de que já conhecem o
fato, é de minha obrigação alertá-los de que devemos nos esforçar ao máximo para
não alimentar qualquer atitude menos honrada como a indignação, a revolta ou a
raiva, diante das barbaridades aqui acometidas. Se deixarmos que estes sentimentos
nos dominem a alma, como sabem, poderemos nos impregnar dos fluidos aqui
reinantes, adensando nossos perispíritos a ponto de torná-los perceptíveis a alguns
dos criminosos aqui reunidos, colocando-nos assim ao alcance de suas agressões.
Achávamo-nos rodeados de verdadeira súcia de vampiros da mais vil estirpe.
Há muito não percebíamos entidades em condições tão lastimáveis. Sustentava
Adelaide, solicitando-lhe manter o pensamento elevado em prece constante, a fim
de não se permitir afetar pelo ambiente.
Empregamos a denominação de vampiro para espíritos bastante inferiorizados
que se comprazem em se suster das vibrações hauridas de matérias vivas como os
remanescentes vitais dos corpos recém-mortos e, principalmente, do sangue, seja
de origem animal ou humana, onde os

ícaro Redimido -121


elementos de vitalidade se concentram de modo significativo. Obviamente que não
podem degustar e deglutir estas substâncias, como o fariam se estivessem
encarnados, mas são capazes de absorver pela olfação os ricos eflúvios energéticos
que emanam delas. São espíritos estropiados, almas em frangalhos com terríveis
expressões draconianas desenhadas em suas faces, porém sem os caninos agudos e
as vestes típicas que conhecemos dos vampiros que entretecem o imaginário
humano. De fato, esta é uma triste realidade do Mundo Espiritual em que vivemos.
Primitivos antropófagos, que permaneceram arraigados à alimentação
excessivamente carnívora, e espíritos sanguinários, animados por disposições
malignas e habituados ao crime na Terra, assumiram após a morte o estranho
costume do vampirismo. Hábito delinqüente também chamado draconismo, faz-se
não somente pelo assédio aos restos cadavéricos, como também através do
consórcio com encarnados que, afinados com seus macabros escopos, são
estimulados ao crime fácil e aparentemente sem propósito, com a precípua
finalidade de lhes arrebanharem vítimas. Conúbio hediondo estabelecido desde
épocas remotas em seitas primitivas, dedicados à oferta de sangue animal ou
mesmo humano aos pretensos deuses, estes, na verdade, os antigos comparsas
desencarnados que, assediando seus companheiros de retaguarda, dissimulados em
abominável sacerdócio, davam continuidade aos seus terríveis vícios. Ainda hoje se
pode verificar esse sinistro costume nas festas de sangue, levadas a efeito nos cultos
satânicos. Afora estes ritos sanguinários, esses espíritos se reúnem em qualquer
local onde se pratique a mortandade de animais e abunde o sangue, como nos
matadouros. Outros ainda habitam necrotérios, velórios e cemitérios onde absorvem
os restos vitais de cadáveres. Naturalmente que não está todo ser humano sujeito a
essa vil depredação vibratória, mas somente aqueles que não guardam na vida a
devida reserva moral a fim de resguardá-los da maldade alheia. Obviamente os
encontraremos também nas casas clandestinas de aborto criminoso, onde absorvem
os restos vitais dos fetos assassina-dos e do sangue que habitualmente promana
daquelas que infelizmente se dispõem ao grave delito.
Justo é que o estudioso sincero, crente na sabedoria das leis da vida e ciente de
que o amor governa a criação, interrogue os motivos que levam a comportamento
tão adulterado, distanciado da bondade que a todos deveria nortear na jornada da
vida. O vampirismo, contudo, pode ser entendido como um continuísmo
inadequado daquilo que nos foi usual ao longo da estrada evolutiva, pois no baixo
mundo animal a vida se sustenta no jogo da morte, onde o mais forte pode devorar
o mais fraco. A

122 - Gilson T. Freire / Adamastor


persistência, no entanto, em tais hábitos baseados em ética tão primitiva e tolerada
pela Lei do Amor apenas nos passos iniciais do ser, não se justifica ã medida que o
espírito cresce, despertando-se para a razão e para o exercício da bondade como
normas indispensáveis do viver. Preferimos assim compreender que a demora neste
animalizado vício é uma contrafação da criação, divorciada das pretensões divinas,
promovida pelo espírito que optou pela franca negação da benevolência para com
os irmãos da retaguarda evolutiva.
Nosso sustento na vida ainda se baseia em inadequado vampirismo, praticado
em refinadas expressões, sem nos darmos conta de que exercitamos, na verdade,
um regime em oposição à Lei do Amor. Se insistimos neste estranho hábito de
ingerir as vísceras de nossos irmãos inferiores, justificados por viciadas e pretensas
necessidades biológicas, justo é estarmos, por nossa vez, sujeitos ao roubo
exploratório de nossas biomassas doentiamente surrupiadas de outros. O amor e
não a morte deve alimentar a nossa vida, se queremos de fato que a felicidade
habite nossa alma. A indústria da morte, sustentando nos séculos o vício do
vampirismo, deve ser assim banida de nossa sociedade, a fim de que ela se
harmonize com as Leis de Deus e a paz se estabeleça em seu seio. Sem dúvida que
o homem encontrará diversas maneiras de prover sua vida física no planeta, de
forma eficiente e saudável, que não se baseie no extermínio de seus irmãos
menores, maculando o puro amor que lhe consubstancia a alma divina. Mas isso é
assunto que extrapola o âmbito destes nossos relatos e aqui os deixamos apenas
como motivação para a nossa reflexão.
Todos os espíritos que se nutrem das emanações da carne são classificados no
Mundo Espiritual em que vivemos como vampiros. Em qualquer panorama em que
se manifestem, experimentam graves transformações perispirituais. Naturalmente
que, depois da morte, não se metamorfoseiam em morcegos, como entretecido na
lenda dos encarnados, mas promovem regressões em suas feições, desenhando em
seus perispíritos deformações animalescas, misto de homem e fera, em variados
contornos, compatíveis com suas posições mentais e com as vibrações inferiores
que haurem de seus irmãos menores. Por isso, a fantasia humana, na verdade, não
se distanciou da realidade, ao lhes delinear as assustadoras imagens, presentes em
seus romances dantescos ou películas de terror. Quando o homem santificar-se,
purificando o seu ambiente planetário, se tais espíritos persistirem na vil prática,
aqui não poderão mais reencarnar e serão levados para outros planos da vida
universal, a fim de prosseguirem a evolução junto a rebanhos humanos

ícaro Redimido -123


primitivos, capazes de lhes tolerar as criminosas atitudes e nefandos apetites.
Não estávamos, assim, rodeados de verdadeiros Dráculas, saídos de um filme de
terror ou dos contos do famoso novelista inglês, mas sim de espíritos infelizes,
teriomórficos59, bestificados e mutilados, verdadeiros loucos, distanciados da
realidade divina em que fomos criados. Não podiam, na verdade, infligir-nos dano
algum e nos infundiam mais pesar do que pavor. Não se assustem os homens,
nutrindo em suas imaginações o temor da morte com o receio de se entregarem a
essas terríveis criaturas. Entretanto, urgem a prática constante do bem e o exercício
de uma vida moralmente elevada, a fim de nos resguardarmos contra esta dura
realidade da vida espiritual. A verdadeira proteção contra tais ataques não advém do
uso de armas ou de escudos especiais, mas sim da prática constante do bem. Por
obra do Senhor, achávamo-nos munidos destas defesas, não por méritos que ainda
não detínhamos, mas por trajarmos já a armadura do bem sincero.
Enquanto Catherine encetava negociações com a senhora das Trevas,
indignando-se diante da vultosa quantia que lhe exigia para a tarefa, adentramos o
casebre, visivelmente contrafeitos, diante, não só da algazarra dos espíritos, como
das péssimas condições de higiene do local. Notávamos, pela conversação que
entreteciam, que Catherine já era conhecida da ex-parteira, certamente por ter-se
servido de seus préstimos para algumas de suas cortesãs.
De imediato observamos que restos fetais, envolvidos em trapos
sanguinolentos, descansavam em um canto, atraindo as moscas, certamente
oriundos das práticas do dia anterior. Adelaide, sobressaltada, questionava- me se
porventura a entidade espiritual que se associava àqueles despojos não estaria ainda
presente. Atendendo à ansiedade sadia da amiga desejosa de ajudar, esclareci-lhe:
— Não se apavore, Adelaide. A Misericórdia Divina assiste o ser em qualquer
situação em que se encontre. Os obreiros do desligamento já estiveram aqui e
encaminharam o espírito que estava unido a estes restos carnais. Embora as
condições de desencarnação variem sobremaneira de acordo com a bagagem moral
de cada um, o Plano Espiritual dedica especial atenção ao desenlace destes espíritos
em situações tão delicadas, com o mesmo desvelo com que o homem terreno recebe
aqueles que renascem com dificuldades físicas. Deus socorre o homem através do
próprio homem, como temos aprendido, portanto estes espíritos nunca

59 Que têm forma de animal.

124 - Gilson T. Freire / Adamastor


jazem abandonados à própria sorte. Alguns permanecem unidos ao organismo
feminino pelos laços do amor ou do ódio. A maioria, no entanto, encontra socorro
nas enfermarias de embrióides, quais a que visitamos no Departamento de
Embrioterapia, a fim de se restabelecerem do choque reencarnatório interrompido,
ou tornarem, em curto intervalo de tempo, ao vaso físico. Raríssimos detêm o
demérito de se deixarem cair nas garras dos draconianos, servindo-lhes de joguetes
em interesses indignos, sem que os obreiros da caridade nada possam fazer.
Adelaide interrompia-nos o diálogo, desviando sua atenção para Catherine que
se preparava para a intervenção, ingerindo uma beberagem na qual identificávamos
a presença da Nux moschata, erva utilizada para se estimular as contrações
uterinas. Posicionava-se em seguida para o início do procedimento abortivo,
quando se nos apresentou, para alívio de nossas aflições, a figura majestosa de
Heitor, acompanhado de Fausto. Vergonhoso pesar, entretanto, corou-me o
pensamento por não ter conseguido manter Catherine na linha do seu dever,
evitando-se um desfecho tão infeliz na programação que intentávamos. Heitor,
espírito nobre e percebendo de imediato a minha desconcertada disposição íntima,
aduziu:
— Caros amigos, novamente nos encontramos em situação adversa,
maculando-lhes a alma sensível. Sinto muito tê-los envolvido nesta constrangedora
conjuntura. Guardem a certeza de que estou ciente dos fatos e sei que fizeram todo
o possível para evitar o draifta que se desenvolve diante dos nossos olhos. Não
permitam que culpas infundadas contaminem a nobreza de suas intenções e
agradecemos imensamente todo o empenho que despenderam em favor da tarefa.
As condutas de nossos companheiros na carne já eram perfeitamente previstas,
como certamente todos havíamos intuído. Não nos convinha, contudo,
simplesmente aguardar pelo esperado, eximindo-nos do esforço sincero em
modificar-lhes as infelizes disposições íntimas. Naturalmente não seria sensato,
pois, como sabemos, o conhecimento de nosso destino pode nos inibir toda
tentativa de modificá-lo, por isso não nos é conveniente a certeza de um futuro
inexorável. E estejamos certos de que a vida nos faculta sempre a possibilidade de
se evitar o pior, pois se o escândalo é necessário, como nos disse o Mestre,
podemos sempre criar condições para desmerecê-lo.
Fausto, cumprimentando-nos e expressando o pesar em sua face, acrescentou:
— Nossas preocupações se justificam devido ao quadro de placenta prévia
estabelecido em Catherine. Temos informações de que nossa infeliz

(caro Redimido -125


irmã Carmem utiliza-se da introdução de velas no orifício uterino, ferindo de morte
o feto e induzindo o aborto, mas ela não sabe que encontrará a placenta ricamente
vascularizada em seu caminho, provocando uma hemorragia de graves
conseqüências. Eis o motivo de nossos receios, meus amigos, e o que justifica a
presença de nosso nobre mentor.
A ex-parteira iniciava sem delongas o processo, hábil no manejo de seu
instrumental de morte. Com destreza posicionava o espéculo vaginal a fim de expor
o colo uterino, iniciando vagarosamente a introdução das velas, para a sua
progressiva dilatação. Heitor, aproximando-se de sua pupila, aconchegou-a
amorosamente ao seu regaço, osculando-lhe a face suarenta. Grossas lágrimas
pendiam de seus olhos, aparentando aceitar com doçura e compreensão os deslizes
da tutelada, que capitulava ante a ímpar oportunidade de renovação. Sensibilizava-
nos sua atitude, semelhante à de um pai diante da filha travessa que desconhece a
extensão das faltas cometidas.
Rosa, aflita, recolhida em angustioso silêncio, proferia sentida prece a Nossa
Senhora, pedindo por aquela que considerava sua benfeitora, sustentando-lhe a mão
trêmula. O sol, a meio caminho do zênite, inundava de escaldante calor a pequena
choupana, enquanto os espíritos vampirescos se posicionavam, ansiosos, para o
horrendo banquete. Apesar da celeuma reinante, respeitavam a ordem estabelecida,
pois três deles, estampando sorrisos macabros nas faces licântropas, apresentavam-
se como os pretendentes da hora. Um dos mais afoitos, com o punho cerrado,
desferia golpes contra o abdome de Catherine, na tentativa de estimular as
contrações uterinas e acelerar a expulsão do precioso repasto.
Não tardou muito para que uma vela mais grossa fosse cuidadosamente
introduzida, porém com força, com a intenção de penetrar na cavidade uterina e
matar o feto indefeso. Quando, então, um jorro de sangue em profusão assustou de
imediato a assassina, ciente de que estava diante do imprevisto. Algo apavorada,
aplicou-lhe tamponamentos de algodão, que, no entanto, não surtiram o efeito
desejado. Irritada diante do inesperado, ordenou a Catherine que se levantasse e
fosse logo embora, pois estava terminado. Mais tarde o feto sairia por si mesmo.
Despedia-se sem delongas e meio aflita, desejosa de desvencilhar-se imediatamente
do que poderia ser-lhe um grave incômodo. Entre lágrimas de dores, Catherine
levantou-se, ainda cambaleante, sem compreender muito bem o impositivo de ir-se
tão cedo e os motivos da súbita irritação de D. Carmem. Rosa, amparando-a, não se
dava também conta do que acontecia, somente assustava-se com o sangramento
abundante que lhe descia pelos membros

126 - Gilson T. Freire / Adamastor


inferiores. A ex-parteira corria para chamar o cocheiro com palavras ríspidas e
apressadamente despachava nossas amigas.
Os vampiros, que espreitavam especialmente os restos fetais ricamente
vitalizados, vivamente decepcionados, encolerizaram-se, vociferando gritos
terríveis. O mais audaz deles, inconsolado, atirou-se então de encontro a Catherine,
agarrando-se às suas pernas, em triste atitude, aspirando com sofreguidão, entre
uivos apavorantes, o sangue vivo que lhe jorrava da intimidade. A cena nos feria a
sensibilidade com imenso pesar e repugnância, mas nada podíamos fazer ante o
assédio das Sombras, pois nossa amiga, lamentavelmente criara em si mesma a
condição de se expor à sobre-horrenda espoliação vibratória. Heitor não deixava de
lhe suster amorosamente a cabeça, constrito, porém mantendo a suavidade que lhe
caracterizava a nobreza do espírito. Adelaide chorava, procurando inutilmente
desviar os olhos da terrível cena, ocultando-os com as mãos. E eu orava com
sinceridade a Deus para que se compadecesse de nossas desditas neste planeta de
horrores.
O cocheiro, assustado, obedecia ao pedido aflito de Rosa, indeciso entre a
ordem de apressar o passo de seu animal e a necessidade de evitar a todo custo os
solavancos na condução da carruagem, pois a cada forte balanço do coche, novos
grotões de sangue vivo afluíam abundantes de Catherine.
Finalmente acomodada em seu leito, a irmã respirava aliviada, conquanto o
sangramento prosseguisse sem sinais de que diminuiria. Extremamente fraca,
aguardava ansiosamente que o feto fosse eliminado, detendo-se a hemorragia, mas
as horas corriam sem que nada se passasse. As cólicas de expulsão não davam
mostras de se iniciarem. Apenas o sangue vivo continuava a lhe brotar em
abundância. O infeliz licômano permanecia agarrado ao seu quadril, sugando os
eflúvios que se evadiam junto com o precioso líquido da vida. Aplicávamos passes
de alívio em nossa amiga sem nada mais poder fazer.
Sensibilizados diante do aviltoso ataque do vampiro, entreolhávamo- nos
paralisados, esperando que Heitor tomasse alguma atitude. Este, no entanto,
guardando serenidade diante da lastimável situação, explicava- nos que, para
agirmos com segurança, teríamos que adensar nossos perispíritos de modo a tornar-
nos visíveis para o monstro e então tentar persuadi-lo ou ameaçá-lo para que
desistisse de seu demoníaco intento, tarefa que nos exigiria pesados esforços e nos
dificultaria depois a continuidade do trabalho assistencial. Entrementes, um fato
inesperado acontecia diante de nossos atônitos olhos. Os espíritos viciados do sexo,

ícaro Redimido -127


freqüentadores assíduos do lugar e dispersos nas redondezas, logo se deram conta
da inabitual movimentação da casa naquelas horas da tarde e acorreram para se
inteirarem do que estava acontecendo. Ao se depararem com o vampiro agarrado a
Catherine, indignaram-se com o infeliz, ameaçando-o com rudeza, ordenando-lhe
que a deixasse, pois se tratava de pessoa protegida pelo bando. A presença da
robusta entidade que vimos servindo-se de guarda nos aposentos de Catherine foi o
bastante para intimidar o licomaníaco, que resolveu desistir de suas intenções, não
sem antes bramir coléricos uivos que pouco intimidaram os circundantes.
Admirados, demos graças a Deus pela providência que partiu dos próprios
consorciados da casa, pois nós mesmos nada teríamos feito. Heitor citava a palavra
de Jesus que nos recomendava granjear amigos, ainda que com os recursos da
iniqüidade, para que não nos faltem nas horas de aflições, e naquele momento
compreendíamos a extensão dos conselhos do Mestre. Embora bastante
materializados e grosseiros, os espíritos que se ligavam pelos laivos carnais àquelas
messalinas eram entidades muito mais ignorantes do que verdadeiramente más e se
prestavam, pelo menos, para lhes guarnecerem de certa proteção contra o cerco de
seres realmente malévolos. Aproveitamos então para tecer em torno da nossa amiga
um manto de proteção magnética a fim de resguardá-la de outros possíveis assédios,
visto não ter ela alimentado a postura moral elevada o bastante para lhe conferir
natural segurança. Para isso, foram-nos de imensa utilidade as vibrações que se
desprendiam de Rosa, única pessoa capaz de se manter com o pensamento elevado
em preces, mesmo diante da intensa concupiscência do ambiente. Agradecíamos a
Deus, cientes de que a oração tem o seu valor e pode ser empreendida em qualquer
lugar, mesmo no mais vil deles.
Afastado o vampiro, Fausto pôde examinar com mais cuidado a condição em
que se encontrava Alberto, verificando que o mesmo agonizava em seus derradeiros
instantes de vida. Adelaide, algo preocupada, questionou-me se porventura o
espírito, em tais condições, tem consciência do que lhe passa e se registra dores em
sua frágil organização. Atendo-lhe a sadia curiosidade, considerei:
— Recordemos que Alberto já completou três meses de permanência na carne
e seus liames com a matéria já se estabeleceram de forma suficientemente forte
para lhe reter o espírito, tornando o processo desencarnatório semelhante a qualquer
outro. Embora os órgãos sensitivos ainda se encontrem em estágio de
desenvolvimento, já são capazes de veicularem sensações ao espírito, de modo
bastante efetivo, podendo ele já registrar o frio e o calor, o toque e, naturalmente,
os estímulos dolorosos.

128- Gilson T. Freire/Adamastor


Compreendamos, sem sombra de dúvidas, que é uma grande ilusão do homem
terreno achar que está lidando, no aborto criminoso, com seres ainda incapazes de
sentir e sofrer. Eles padecem, não somente as dores físicas do ato, como também os
sofrimentos de ordem moral que se lhes impregnam profundamente na alma. O
medo, a intensa frustração diante dos anseios não realizados, as sensações da morte
traumática e o ódio por aqueles que lhes infligem o mal compõem o cortejo de
sentimentos que acompanham essas pequenas e indefesas vítimas da ignorância
humana. Embora seus instrumentos físicos ainda estejam incompletos para o
reconhecimento seguro de tudo que lhes sucede, o espírito encontra-se ativo e
percebe o que lhe passa. Ainda que estes acontecimentos não possam inscrever-se
na memória física, são registrados em detalhes na memória espiritual, à qual a
consciência pode ter acesso em estados alterados de percepção.
— Quer dizer que se a placenta não o tivesse protegido...
— Isso mesmo. Felizmente para Alberto, a placenta, antepondo-se entre ele e
o orifício uterino, protegeu-o dos golpes dolorosos da ferramenta abortiva,
resguardando-o de padecimentos ainda maiores. Sua consciência, neste instante,
pressente a morte próxima e agoniza também, sofrendo as dores do desenlace
prematuro, registrando, não somente as angústias próprias do momento, como o
malogro pela vida que se frustra. Recordemos que, embora usando veste física
ainda imatura, estamos diante de um espírito velho, habilitado nas sensações da
vida e no julgamento das emoções humanas. Ele percebe as impressões mentais que
movem sua mãe neste momento e se dá conta de que é presença indesejada. Sofre
pelas injúrias físicas de que é alvo, sentindo-as como um ato de maldade. Por isso,
muitos espíritos nestas condições passam a nutrir verdadeiro ódio por suas
pretensas mães, sentimentos que unirão seus destinos, aguardando solução no
tempo. Alberto, no entanto, em sua intimidade consciencial sabe que não é
meritório da vida que não soube valorizar na última encarnação e tal disposição
íntima restringe sua capacidade de gerar animosidades. O momento o alimenta
sobretudo de profunda tristeza e frustração diante do renascimento malfadado,
sensações que não deixam de ser curativas para suas tendências autodestrutivas. Ele
arquivará a lição, estabelecendo doravante maiores cuidados para com o próprio
corpo e aprendendo a valorizar devidamente a existência física.
— Entretanto, temos de reconhecer que muitas vezes o aborto é inevitável
para se salvar a vida da mãe — ponderou assustada a amiga.
— Sem dúvida, é preciso considerar que o aborto encontra, em raras

ícaro Redimido -129


ocasiões, indicações terapêuticas, como também muitas vezes se dá como ato
espontâneo. Todas estas condições, no entanto, guardam correspondência com as
necessidades do reencarnante, como já vimos. E lembremos que nestes casos o ódio
não encontra lugar nos corações envolvidos, resguardando-os de futuros sofrimentos
expiatórios.
Adelaide dava-se por satisfeita e prosseguimos na tentativa de algo realizar em
benefício de nossos amigos. Fausto nos explicava a necessidade de Alberto esgotar
a maior parte de seu tônus vital para desprendê-lo da massa fetal, cabendo-nos,
portanto, aguardar. Catherine, como pressentíamos, em breve deixaria a vida, caso
não fosse prontamente socorrida. Heitor, numa última tentativa de evitar a
desencarnação próxima de sua pupila, tratou de sugestionar Rosa, infundindo-lhe
forte preocupação pelo estado de sua tutora, a fim de que se dispusesse a buscar
ajuda rapidamente e não aguardasse mais pelo desfecho do aborto. Obediente e
facilmente influenciável, a jovem deixou-se invadir por terríveis presságios, vendo
que Catherine se mostrava a cada momento mais lânguida, pedindo insistentemente
por água sem dar mostras de melhoras.
Era já tarde, quando ela saiu apavorada à procura do médico, enquanto o dia se
dissipava nas cores melancólicas do crepúsculo. Acompanhamo- la, eu e Adelaide,
deixando nossos amigos sustentando como podiam a desventura da amiga. O
médico, entretanto, negava-se a comparecer em sua casa, apesar das súplicas
insistentes de Rosa. Perfeitamente ciente de que se tratava de cabaré famoso, dava
mostras de orgulhosa dignidade, achando inconveniente sua presença em tão
deplorável lugar, pois poderia ser notado pelos circundantes, denegrindo-se-lhe a
imagem de homem probo. Insistimos com nossa capacidade de influenciação,
porém não encontrávamos qualquer ressonância no facultativo, que colocava a sua
honra acima dos deveres de médico e dos sentimentos humanos. Que lhe
trouxessem a doente, determinou secamente, sem delongas, despedindo a aflita
moça. Lacrimosa, Rosa retornou, apurada e bastante contrafeita, pois suspeitava
que Catherine não detivesse forças para resistir a nova caminhada, mesmo que não
tão longa.
Encontramos Catherine já em estado de choque e completamente obnubilada.
Acomodando-se em camadas profundas do inconsciente, atirava-se a desvarios,
quando Heitor me convidou ao exame minucioso dos pensamentos que a moviam
naquela hora de agonias. Com a destra em sua fronte podia ouvir-lhe as correntes
mentais aflitivas, enquanto Rosa providenciava a sua remoção urgente. Na
iminência de perder o bebê, seus sentimentos maternais se exaltavam, nutrindo-a de
frustrações e pesares diante da covardia a que dera vazão, evadindo-se de recebê-lo

130 - Gilson T. Freire / Adamastor


com amor e desfrutar os encantos da maternidade. Sentimentos ambíguos que no
entrechoque das forças psíquicas despertavam reminiscências profundas em sua
memória espiritual, trazendo-lhe à tona época remota, advinda de outra existência.
Sem plena consciência da preciosidade do instante que vivenciava, via-se
enclausurada em uma solitária e fria masmorra, em hábitos de freira, sentindo
imenso pesar por grave ocorrência. A mesma ambigüidade de sensações em
intenso antagonismo consigo mesma a movia, pois se via constrangida pela morte
de um homem que amava, porém responsabilizava-se pelo seu assassinato.
Dominada pela vingança, diante da afeição não correspondida e de infame traição,
revolvia-se entre o amor e o ódio. Uma amargura infinda dominava-lhe a alma de
angustiosas recordações que não sabia de onde provinham. Podia ver ali as forças
poderosas do passado agindo no presente. Segredos que o espírito transporta,
emoções não resolvidas que vinham à tona, aguardando ensejo para soluções
definitivas. Certamente presenciava a execução de importantes lições para os
amigos envolvidos naquela trama e as premissas do presente não os uniam por
mero acaso, mas obedeciam às instruções do destino, contidas nas páginas do
pretérito, escritas em linhas indeléveis no livro da vida. A gravidade do momento
frenava-me o ímpeto de atender à curiosidade, questionando Heitor sobre o quadro
que se desdobrava ante minha análise e calei-me respeitoso. Atendendo à caridade
cristã, emitia ondas de paz, tentando confortar a amiga, em instante tão decisivo
para o seu destino. Pressentia que o momento de alguma forma se ligava àquele
drama distante e os sentimentos que a inundavam pareciam corresponder aos
mesmos que lhe afloravam, sub-reptícios, da remota lembrança, afigurando-se-me
o irmão reencarnante como o mesmo personagem, alvo de seus contraditórios
sentimentos de paixão e ódio.
Alberto, nesse momento, iniciava seu processo de desencarnação, recolhendo-
se para as camadas internas do inconsciente, apagando-se para a realidade em que
mal iniciara os passos. Seu perispírito começava a absorção do tônus vital
remanescente na massa embrionária, a fim de deixá-la definitivamente, e se
contraía, inibindo todos os exaltados estímulos expansionistas, colocados em
funcionamento. Concretizara assim o seu desfecho, pondo fim a todas as suas
esperanças de vida nova. Dava cumprimento, porém, às linhas de seu destino,
traçadas pelas próprias desventuras, como todos já prevíramos.
As estrelas mais afoitas já enfeitavam o céu quando, enfim, Rosa conseguiu
mobilizar sua amiga, carregando-a com ajuda de outras companheiras para a
carruagem que a levaria ao médico. O fluxo

ícaro Redimido -131


hemorrágico não cessara e as entidades que, por curiosidade, permaneciam ao seu
lado, retiraram-se, obedientes a outros convites da noite. O quadro de choque já se
achava instalado e Catherine não conseguia mais responder aos estímulos
ambientes. Ao ser colocada cuidadosamente no veículo que a levaria, novo e
intenso fluxo hemorrágico colocou-a no limiar da morte. Não guardava mais
vitalidade suficiente para atingir o médico. As amigas, sem se darem conta disso,
saíram à procura do socorro. Sudorese fria cobria-lhe o corpo e sentimos que sua
pulsação chegava ao fim. Sua consciência se retraía nas reentrâncias do espírito,
apagando-se completamente para a realidade. O óbito clínico estava efetivado e
Catherine entrava nos estágios iniciais do desenlace, pouco depois de Alberto.
Ambos, no entanto, permaneciam jungidos às vestes corpóreas, como de praxe, nos
momentos iniciais da morte.
Diante do consultório do médico, pôde o profissional apenas constatar que a
enferma já havia falecido, recomendando que retornassem para providenciar o seu
funeral, sem questionar as verdadeiras causas que desencadearam o inopinado e
grave episódio hemorrágico.
Findo o primeiro período de recolhimento da desencarnação, em curto tempo,
Fausto, com delicada destreza, pôde recolher Alberto de seu pequeno manto físico,
colocando-o em uma cesta prateada, própria para este fim. Enquanto o reduzido
séqüito de amigos, vestidos com o luto da ignomínia e lastimando a ausência da
parentela francesa, enterrava os despojos da famosa cortesã, demandamos as
regiões espirituais que nos aguardavam, ciosos de que cumpríramos com o melhor
ao nosso alcance. Deixando os humanos transportando seus fardos de infortúnios,
exaltados diante dos mistérios da morte, distanciamo-nos do palco de seus
intermináveis dramas de cada dia.
Heitor permaneceu ainda velando por Catherine e dias depois pôde providenciar
o seu desligamento. Embora nossa irmã transportasse consigo uma consciência
denegrida no exercício de uma vida ímproba, deixou o plano físico nos braços de
seu protetor, partindo rumo às esferas de refazimento.

132 ■ Gilson T. Freire / Adamastor


Um Homem Sem Memória
“Vendei o que possuis e dai esmolas. Fazei para vós bolsas que não envelheçam ”
Jesus - Lucas, 12:33

A morte é o fim somente da organização carnal temporária de que


se serve o espírito em sua romagem terrena. Limita apenas uma
. das infinitas dimensões da vida, que se desdobra além, em
panoramas inalcançáveis para a mente humana. Para o espírito em
evolução, sujeito a quedas e recomeços, os recursos propostos pela Mente
Divina para a sua educação são ilimitados, sobrepondo-lhe a reduzida
capacidade de empreender o mal e sofrer-lhe as conseqüências. Embora
isso não justifique a permanência no desacerto, é-Ihe dado o livre-
arbítrio para errar, pois sempre é possível o reparo da consciência ferida
e vilipendiada pelo desamor. Os atropelos não compensam os abusos
livremente pretendidos, mas todas as oportunidades são oferecidas para
a regeneração do espírito e o seu retorno definitivo ao seio amoroso do
Pai, que o aguarda com paciência e o quer livre na capacidade de eleger
e agir, vivendo, enfim, por espontânea vontade, confinado nas fronteiras
do amor sem limites. A dor comparece como recurso de correção, inibindo
novos sofrimentos para que o espírito conquiste a alegria perene, herança
genuína com a qual foi criado. Além dela, o amor se estabelece como
auxílio poderoso, capaz de cicatrizar as maiores chagas do espírito, remédio
seguro, sempre disponível na criação, em qualquer instância, aguardando
somente que a vontade do ser se manifeste para utilizá-lo em proveito de
si mesmo. Por isso o apóstolo pescador nos asseverou que a benevolência
pode cobrir a multidão de nossos males.
Não fosse o amor de Heitor por sua pupila, estaria ela entregue ao

ícaro Redimido -133


dissabor de um traspasse doloroso e prolongado. O óbito a surpreendera com um
coração desalentado e a alma despreparada para uma vida espiritual feliz. Porém, a
misericórdia do Pai lhe sustentava os passos vacilantes na nova existência que
iniciava. Se a Lei é capaz de punir, ela o faz com o escopo único da correção,
nunca visando à semeadura de desesperos, frutos exclusivos da própria desdita do
ser. E se é possível amparar, antes que acoimar, esta sem dúvida é opção da
Misericórdia Divina. Catherine seguiu seu caminho e não nos cabia acompanhá-la
por ora. Heitor a ampararia com a dedicação de verdadeiro e amoroso pai,
orientando-a com segurança na nova estrada que se desdobrava aos seus pés.
Cumprira ela, embora com dificuldades, a tarefa que a vida lhe pedira e, se foi
protagonista do escândalo, era porque o escândalo se fazia necessário.
Não fosse a disposição de Heitor em amparar Alberto, possivelmente não
estaríamos empreendendo a sua assistência naquele momento. Mas, a misericórdia
de Deus a ninguém abandona e assiste o homem através do próprio homem sem
que ele se dê conta de Sua amorosa presença.
Alberto, em obediência à Providência Divina, fora recolhido no Departamento
de Embrioterapia, na mesma enfermaria que anteriormente visitara em companhia
de Adelaide. Em breve, acompanhado da dedicada amiga, retornávamos ao local, a
fim de nos certificarmos dos novos rumos a tomar em nossa tarefa de tutoria.
Embora amparado pelo Departamento, continuava ele sob nosso encargo e
devíamos nos inteirar de suas novas necessidades. Ainda não conhecíamos a sua
história e ignorávamos as causas que o levaram ao infeliz auto-extermínio, mas no
momento nossa expectativa se direcionava ao estado em que iríamos encontrá-lo.
Ter-se-ia fixado na embriomorfia? Necessitaria de novo e urgente mergulho na
carne? Haveria ainda risco de ovoidização?
O espírito que é abortado na fase de desenvolvimento embrionário tem destino
variado, guardando dependência direta de sua condição evolutiva e do período em
que deixa o corpo em formação. De modo geral, aqueles que interrompem sua
incursão na carne antes da terceira semana de gestação desligam-se quase que
automaticamente de suas vestes orgânicas ao serem abortados. Seus liames com o
perispírito feminino são mais fortes do que com o próprio corpo em
desenvolvimento e assim continuam, por tempo indeterminado, jungidos às mães
que o abortaram por qualquer motivo que seja, aguardando nova oportunidade de
renascimento, segundo programação espiritual. Por isso, na maioria das vezes, o
espírito expulso até essa fase é o mesmo que torna a nascer logo depois. Esta é a
forma como a natureza protege esses seres, surpreendidos

134 - Gilson T. Freire/Adamastor


em delicada situação de trânsito entre os dois mundos. Os que falecem depois da
terceira semana, de modo geral, abandonam a intimidade materna juntamente com
seus restos orgânicos, estando o desligamento perispiritual subordinado aos mesmos
princípios que norteiam a desencarnação em geral, ou seja, guarda dependência
direta com a posição evolutiva de cada um, sendo tanto mais dificultosa quanto
menos evoluído é o ser. Alguns, da mesma forma, podem voltar à união quase
imediata com suas mães, aguardando novo nascimento, quando assim programado,
enquanto que outros são cuidadosamente recolhidos às casas assistenciais que se
dedicam a este tipo de amparo, qual o Departamento de Embrioterapia. Estejam
seguros os homens de que o mundo espiritual dispensa especial atenção a estes
espíritos, da mesma forma que na Terra se cuida com desvelo dos bebês
prematuros. Aqueles que não tornam à carne logo de imediato demandam período
variável para se recuperarem, de acordo com seus potenciais evolutivos. Uma
pequena parcela, de modo geral oriunda de ovóides ou suicidas, não se recupera,
tornando-se embrióides, como vimos, presos ao molde embrionário, tendo a
reencarnação como única possibilidade de volver à normalidade da forma.
Sabemos, no entanto, que os liames do pretérito e as forças do ódio podem
alterar todas essas condições, modificando sobremaneira os destinos dos
envolvidos. Embrióides comprometidos com processos dolorosos, comumente
renitentes criminosos do passado, podem cair nas garras de espíritos malignos,
servindo-lhes aos interesses nefastos, situação bastante rara, que cria graves
conseqüências para o ser, exigindo a interferência da Misericórdia Divina. No
aborto criminoso, como regra geral, estabelecem-se laços de ódios recíprocos,
jungindo mãe e filho, tecendo destino de amarguras para ambos, com difícil
solução no tempo. Mesmo transportando precárias condições orgânicas, os
embrióides podem promover, de imediato, acirrado ataque às infelizes mães que os
abortaram, em triste urdidura obsessiva, que pode conduzi-las à loucura ou mesmo
à morte. Fora do âmbito dessas conjunturas dolorosas, os embrióides, de modo
geral, encontram socorro nos serviços especializados de assistência onde são
amorosamente cuidados, a fim de se restabelecerem do choque reencarnatório ou
tornarem, em curto intervalo de tempo, ao vaso físico.
Ao chegarmos ao Departamento de Embrioterapia, fomos surpreendidos por
Fausto que nos informava haver transferido Alberto para as Câmaras de
Retificação. O amigo se desculpava por não ter-nos inteirado do fato a tempo, mas
a nossa alegria pela notícia suplantava qualquer sentimento de desagrado. O
tarefeiro nos dava conta de que o pequeno impulso contrativo do desenlace de
Alberto esgotara-se prontamente, dando início

(caro Redimido -135


à efetiva expansão reconstrutora perispiritual, levando ao seu pronto refazimento.
O tratamento proposto redundara no resultado esperado. Como o desamor não
interferia no processo e uma onda de simpatia lhe amparava a alma desvalida, a
qual até mesmo Fausto dizia não saber de onde provinha, nosso amigo pôde se
recuperar, pois detinha suficiente potencial evolutivo para isso. Apesar do aborto
lhe ter sido hedionda imposição, o processo fora benéfico o bastante para efetuar o
saneamento de suas energias negativas, evacuadas com proveito para a massa
embrionária. A embrioterapia tinha sido bem sucedida. Podíamos respirar aliviados
e dar graças a Deus pelo êxito do tratamento.
Demandamos às Câmaras de Retificação ansiosos por examinar nosso amigo.
Estas Câmaras são usadas no plano espiritual para se acomodarem, com relativo
conforto, espíritos que necessitam passar por sono prolongado após o óbito, mas
somente aqueles, no entanto, cujas consciências não se achem desequilibradas por
ódios comprometedores ou aflições angustiosas a ponto de perturbarem a paz que
reina em tais ambientes. Apesar de serenos, trazem a intimidade psicossomática
imiscuída de remanescentes vibracionais deletérios, oriundos de desequilíbrios da
vida mental na carne e ainda se ressentem dos sintomas que lhes acompanhavam a
jornada terrena nos últimos dias. Aí permanecem eliminando tais resíduos
fluídicos, a fim de amealhar um bem-estar maior na nova vida que iniciam.
Espíritos que, embora providos de certas conquistas morais, nutriram a crença na
nulidade após a morte e não conseguem despertar para a realidade espiritual, aí
também se estacionam em sono prolongado, às vezes, por anos a fio.
Respeitosos e silentes, adentramos a Câmara que o retinha, a fim de nos inteirar
de seu estado atual. Surpreendidos, encontramo-nos com um espírito
rejuvenescido, dormindo serenamente. A angústia respiratória e a expressão de
desespero se lhe evadira da fisionomia, deixando-a estampar um rosto jovial que,
embora bastante lívido, irradiava mansidão. Orelhas salientes, cabelos negros e
lisos, repartidos ao meio, testa larga, sobrancelhas delgadas, desenhavam-lhe o
semblante, enfeitado por fino bigode, delineando-se aos nossos olhos a figura de
um jovem de baixa estatura com idade aproximada de vinte anos. Sem denotar mais
os sinais da constrição cervical do enforcamento, seu perispírito estava
complemente refeito e se apresentava de modo aparentemente saudável.
Naturalmente que os graves desequilíbrios que engendrara para si mesmo não
haviam sido de todo sanados, mas estavam momentaneamente apaziguados. Um
salutar período de refazimento lhe seria doravante concedido pela Lei. O
entrechoque das forças psíquicas autodestrutivas que conflitavam em seu

136 - Gilson T. Freire / Adamastor


palco mental, serenou-se por um instante. Sua condição fora amenizada pela
Misericórdia divina e doravante poderia ele, possivelmente, reconstruir o panorama
íntimo sem a necessidade dos bruscos choques reencarnatórios, haurindo maiores
benefícios de tratamentos mais amenos.
Seus olhos, estacionados sob as pálpebras cerradas, não denotavam os
característicos movimentos rápidos, indicando-nos a ausência absoluta de sonhos,
típico dessa fase de recuperação da consciência. Retiramo- nos em silêncio a fim
de dialogar com proveito, sem perturbar-lhe o repouso prolongado.
— Podemos agora compreender o valor do estágio na carne para um espírito
em desespero. A bênção do renascimento, embora curto como no caso de Alberto,
é recurso seguro que a Providência Divina coloca a nosso favor. Em que pesem
todas as dificuldades do processo e os dramas engendrados ao seu derredor,
devemos agradecer à misericórdia do Pai, sempre disposto a amparar-nos, sob
quaisquer circunstâncias — considerava junto à Adelaide, embora confabulasse
comigo mesmo.
— O escândalo se fazia necessário, compreendemos a assertiva do Mestre ...
— completou a amiga, trazendo a figura de Catherine em sua mente.
— Vejo seu pensamento buscando por Catherine. Certamente teremos
oportunidade de revê-la. Aprendemos a querê-la e tecemos com ela uma teia de
simpatia que certamente nos unirá no futuro. Por ora convém enviar-lhe o nosso
sentimento de reconforto e paz, para que se refaça do doloroso transe sem graves
conseqüências para a sua consciência. Não obstante as dificuldades com que se
envolveu no processo, conferindo- lhe o infeliz desfecho, o prejuízo angariado foi
muito mais para si mesma do que para Alberto, que, a despeito do acréscimo de
dores impostas aos próprios sofrimentos, hauriu benefícios com a acerba
experiência. O Mal muitas vezes é via de correção para o próprio mal, o que não
quer dizer que ele seja necessário, pois a Lei não depende de sua realização para
engendrar o Bem que sempre almeja na educação do ser.
Verificávamos que a embrioterapia permitira a Alberto, enfim, completar com
eficiência a histogênese perispiritual, alijando de sua organização os obstáculos
impostos pela autocatálise. Adelaide admirava- se da perfeita recomposição
psicossomática de nosso amigo, obedecendo aos moldes anteriores ao seu
renascimento e não a configuração embrionária com a qual deixou a carne.
— Seu perispírito se refez em obediência aos registros morfossomáticos
prévios, os quais o choque biológico do renascimento não fora suficiente para
alterar a orientação anterior—apressei-me a lhe explicar.—Podemos

ícaro Redimido - 137


comparar o processo à exposição de limalhas de ferro fortemente imantadas a
pequeno e diferente campo magnético, que não é poderoso o bastante para desviá-
las da direção inicial à qual retomam com facilidade, uma vez terminada a
insuficiente interferência. Sua recuperação pressupõe, no entanto, que ele traz
recursos evolutivos suficientes para exercer certo domínio sobre a sua constituição
e que seu corpo mental se acha preservado. Ele não precisará de breve retorno à
esfera física e poderá desfrutar de um período de refazimento no Plano Espiritual.
Os riscos da embriomorfia e da ovoidização estão definitivamente superados,
Adelaide. O choque reencarnatório lhe foi salutar impulso de reconstrução
perispiritual, livrando-o de grave encistamento ovoidal. As forças psicossomáticas
da contração foram dominadas e a histogênese perispiritual, finalmente, pôde dar
livre curso à sua plena realização. Enfim, a desencarnação anterior completou o
seu ciclo. Não nos iludamos, no entanto, Adelaide, o processo não terminou.
Acredito que ele irá despertar, mas situações dificultosas ainda o aguardam para o
completo restabelecimento de seu panorama íntimo, desfeito pelo suicídio.
— Haverá então outros danos a se esperar, neste caso? O restabelecimento de
sua forma não pressupõe sua plena recuperação? — interrogou a amiga, admirada.
— Vemos apenas o refazimento de suas linhas morfossomáticas, mas
certamente sua consciência ainda necessitará de tempo para se reequilibrar. O dano
do suicídio ao espírito é severo o bastante para desestruturar o sutil metabolismo do
pensamento. A personalidade pode sofrer lesões graves, apresentando quadros
psicóticos de difícil remissão no plano em que estamos. O choque reencarnatório,
embora salutar, pode provocar amnésias importantes, apagando-se da memória
consciente os registros da encarnação prévia. Outros não conseguem o
despertamento eficaz da consciência e necessitam ser encaminhados à reencarnação
da forma como estão. Significativo processo depressivo costuma acoimar ainda os
suicidas, ao se depararem com a realidade depois da morte, reconhecendo que suas
dificuldades diante da vida e de si mesmos multiplicaram-se com o ato impensado.
Não conhecemos casos em que o autocida desperte realmente refeito como se nada
houvesse sucedido. A irradiação de serenidade de sua psicosfera é sem dúvida um
bom prognóstico, mas aguardemos que nosso companheiro desperte para verificar a
extensão da chaga espiritual estabelecida em sua alma e as suas novas
necessidades.
Diariamente o visitávamos, aplicando-lhe passes de drenagens a fim de auxiliar
na limpeza fluídica necessária ao seu despertamento.

138 - Gilson T. Freire/Adamastor


Prontamente ele reagia, eliminando pela regurgitação substância espumosa e
escura. Diante do espanto de Adelaide, expliquei:
— Todos trazemos da carne vibrações deletérias acumuladas pela mente, no
exercício da vida, Adelaide. Vibrações que não são necessariamente produto de
maldades, mas de ansiedades, inseguranças, temores infundados, bem como dos
equívocos do orgulho e do egoísmo. O perispírito, quando já alcançou certo
patamar evolutivo, não as tolera em teores perturbadores, daí a necessidade de que
sejam evacuadas de sua delicada intimidade. Essa limpeza fluídica residual é
efetivada, normalmente, através do que chamamos de drenagem emunctorial ou
fisiológica, assim denominada por utilizar as vias orgânicas e não patológicas de
eliminação, como a transpiração, a regurgitação, o vômito e as vias urinárias.
Exsudam de modo geral secreções pegajosas e escuras, que variam em intensidade
e duração segundo necessidades individuais. Recordemos que há concreções
energéticas tão arraigadas e graves que não podem ser evacuadas do perispírito por
essas vias, estabelecendo chagas através das quais se consomem, sendo chamadas
drenagens não emunctoriais ou patológicas. Outras ainda, de maior condensação,
frutos de atos ignominiosos relevantes, somente podem ser absorvidas pela carne.
Estas são as drenagens expiatórias, fontes, da maioria das enfermidades do homem
encarnado.
Por longo tempo assistimos Alberto no repouso regenerador nas Câmaras de
Retificação. À medida que os dias se passavam nos dávamos conta de que éramos
os únicos interessados no auxílio ao nosso desventurado amigo. Inusitadamente ele
se encontrava aparentemente só. Se não era assediado por inimigos ansiando por
justiça, tampouco era procurado por vibrações angustiantes de familiares e amigos,
encarnados ou desencarnados, fato que de certa forma o deixava livre para
recuperar- se. Estranhávamos o fato, pois é freqüente a presença assídua de
parentes aflitos, pedindo por notícias e ansiando por favores especiais junto às
enfermarias de Portais do Vale. Seu isolamento nos fazia pensar estarmos diante de
um espírito que possivelmente não constituíra família quando encarnado. O Vale
dos Suicidas se compara a imenso hospital, onde freqüentemente aportam
familiares em busca de notícias de seus detentos e nossa colônia conta com equipes
empenhadas em acalmar essas aflições comuns na alma humana. A bem da
verdade, nossos mentores informavam- nos que muitas pessoas, entre parentes e
amigos, apoiaram-no pelo pensamento e pelas preces logo após o seu desenlace,
como uma de suas irmãs e sua fiel caseira. No momento, entretanto, não
observávamos

ícaro Redimido -139


mais esta teia da afetividade sustentando-o, possivelmente devido ao longo tempo
que ele despendera nas Cavernas do Vale, caindo em momentâneo esquecimento
por parte daqueles que o querem. A Misericórdia divina, que a ninguém
desampara, contava com nossa modesta colaboração para lhe sustentar os passos na
vida espiritual e procuraríamos fazer isso da melhor maneira possível, condoídos
pelo seu quase completo abandono, somente suplantado pela presença magnânima
de Heitor.
Nem mesmo os genitores de nosso amigo se mostravam preocupados com ele,
pois não lhes percebíamos os pensamentos angustiosos procurando-o.
Habitualmente os pais não olvidam os filhos, a não ser quando em trânsito na carne
e, possivelmente, esse seria o caso em questão.
Embora os parentes remanescentes na crosta não demonstrassem excessiva
inquietude pela sua situação, notávamos uma enorme aura de simpatias envolvendo
de forma significativa a sua atmosfera espiritual. Nos momentos em que
entrávamos em prece a fim de aplicar-lhe os passes de drenagem, podíamos sentir
estas ondas de ternura em proporções nunca vistas, excitando-nos a imaginação
quanto à sua origem. Não guardávamos a menor dúvida de que essas afáveis
vibrações eram oriundas de pensamentos generosos em seu favor, sendo-lhe
bálsamo precioso e salutar, interferindo beneficamente em sua recuperação.
Certamente grande número de amigos, pessoas que possivelmente foram
beneficiadas por ele, procuravam-no com sentimentos de reconforto e gratidão,
verdadeiro fluxo de apoio, amparando-lhe o espírito frágil e vacilante nos
primeiros passos no Mundo Espiritual. Como não se acompanhavam de ondas
aflitivas, denotavam não partir de familiares, cujas irradiações mentais, comumente
veiculadas em cruciantes preocupações, mais perturbam do que amenizam o
desencarnado em situação delicada como a de Alberto.
— Podemos observar aqui as evidências dos efeitos telessomáticos— dizia à
Adelaide, convidando-a ao estudo. — É reconhecida no mundo dos homens a
possibilidade de se atuar na organização somática de outrem, à distância, pelo
emprego da vontade, direcionada para o bem ou com o intuito de prejudicar. A
prática do vodu, através do qual se inflige um ato de maldade a outrem, sem
contato físico, é fenômeno conhecido desde épocas remotas, o que atesta
igualmente a possibilidade de se propiciar o bem onde quer que seja. Não há
extensão suficiente para se apartar o pensamento, onda poderosa que encontra
sempre o seu destino com precisão e eficiência. Um sentimento de bondade afaga e
consola, onde quer que se encontrem as dores que objetive sanar. Por isso a

140 - Gilson T. Freire/Adamastor


oração é recurso seguro que a Divindade coloca à nossa disposição em qualquer
momento e em qualquer lugar. Alberto está sendo beneficiado por vibrações que,
mesmo separadas pelas barreiras dimensionais, chegam a ele, servindo-lhe de
recurso inigualável de recuperação. Podíamos senti- las reverberando em sua
organização perispiritual e certamente contribuíram decisivamente para amenizar o
seu doloroso quadro e apressar a sua melhora, que demandaria tempo muito mais
prolongado para se efetivar.
De fato, os diretores de nossa colônia nos informavam que está vamos diante de
um homem que cultivara o apoio popular e detinha méritos importantes, pois
deixara uma mensagem de paz na Terra e desempenhara uma missão de relevo
entre seus irmãos. As emanações de simpatia que registrávamos ao seu redor
provinham de suas ações dignas para com os semelhantes, embora indignas para
consigo mesmo. Admirados, podíamos sentir a importância dos atos de bondade na
romagem terrena, retornando em benefício de seu próprio protagonista. São os
únicos valores que trazemos para o Mundo Espiritual, a única moeda que pode
atravessar as barreiras dimensionais que separam os dois mundos. Eis o tesouro que
ninguém rouba, a bolsa que não envelhece, da assertiva evangélica.
Sem dúvida alguma esse manto invisível de amparo foi o único responsável
pelo pronto restabelecimento de nosso amigo. Em breve, para surpresa nossa,
Alberto despertou e, abrindo os olhos, fixou-os serenamente em nós, denotando
perceber-nos a presença. Leve ar de interrogação se estampava em sua face e, de
pronto, interrogou-nos, em polido francês:
— Onde estou? No sanatório de Valmont? Ou Biarritz?
— Fique calmo, não há motivo para inquietar-se, você está de fato em um
hospital e entre amigos. Volte a dormir, mais tarde conversaremos.
Alberto, denotando os olhos ainda pesados, voltava a mergulhar no sono
profundo. Adelaide, admirada, questionava-me quanto aos nomes referidos em seu
curto diálogo, ao que anuí:
— De fato, recordo-me da existência de uma casa de saúde em Valmont, na
Suíça, junto aos Alpes, e Biarritz é uma cidade no sul da França, famosa pelas suas
estações de repouso. Certamente nosso amigo esteve internado nesses locais em
seus últimos dias de vida. Não convém, no entanto, delongarmos uma conversação
mais acurada com ele, pois ainda necessita do repouso para recompor-se.
Guardemos nossa curiosidade.
Em breve, Alberto passava mais tempo desperto do que dormindo e o
transferimos para as estâncias de hidroterapia, onde prosseguia em tratamento nos
banhos de imersão. A água, como sabemos, possui

ícaro Redimido -141


admirável capacidade de absorção vibratória, auxiliando a drenagem de fluidos
remanescentes do corpo físico, estacionados no psicossoma, completando a sua
retificação. Auxiliávamo-lo na prazerosa higienização perispiritual, amparando-lhe
os passos ainda vacilantes. Fraco e trêmulo, ainda não conseguia entreter uma
conversação prolongada conosco. Mantinha um olhar vago e perdido e falava muito
pouco. Em breve lhe pedimos que se pronunciasse em português por se achar entre
brasileiros. Embora eu tivesse ainda lembrança de minha origem francesa e pudesse
entendê-lo, o mesmo não se daria com os demais que o envolviam.
— Estamos em Petrópolis, então? Por favor, chame o dr. Sinésio Pestana que
está a par de meu caso — solicitava nosso amigo. — Meu sobrinho Jorge também
virá procurar-me em breve.
Nossa colônia depois nos informava que se tratava do médico que o atendera
nos últimos dias de vida na Terra e que, de fato, ele vivera em Petrópolis.
À medida que se recuperava, Alberto, no entanto, se retraía em mutismo
injustificado. Não queria mais saber onde se encontrava e não chamava mais pelo
dr. Sinésio ou pelo sobrinho, até o dia em que nos demos conta dos motivos do
laconismo.
— Vejo que vocês me querem bem e me ajudam mas, por favor, digam-me,
quem sou eu? Não sei sequer o meu nome. Vocês me chamam de Alberto, mas não
tenho certeza de que assim me denomino — dizia- nos bastante entristecido,
retornando ao acanhado e arredio mutismo.
Estávamos diante de um homem sem memória, que não sabia nem o próprio
nome. Uma patologia espiritual comum e esperada nestes casos se estabelecera: a
amnésia transreencamatória.
A memória, definida como a capacidade de registrar movimentos e fixá-los na
personalidade em forma de automatismos, estabilizando-os por ação prolongada, é
importante habilidade do espírito, ferramenta indispensável da evolução. Sem sua
atuação o progresso não se faria possível, pois o ser deveria reiniciar seus passos
na matéria sempre que tornasse a ela. Por isso a memória é recurso ativo na gênese
dos instintos biológicos desde os primórdios da vida. Na matéria bruta ela ainda
pode ser vista como a persistência da ação de forças que guardam a lembrança de
suas trajetórias e no efeito que sempre recorda a sua causa.
No plano espiritual estudamos essa poderosa força dividida em duas formas de
manifestação: a memória somática e a memória psíquica. A primeira, também
chamada memória cerebral, baseia-se em registros de impulsos de natureza elétrica
retidos pelos neurônios, do corpo físico ou perispiritual, a serviço da função
cognitiva e emocional que o espírito

142 - Gilson T. Freire I Adamastor


empreende no presente, no exercício da vida. Funciona qual impressão magnética
dos instrumentos que gravam sons e imagens, pois os neurônios especializados na
memória utilizam sistema idêntico, embora de muito maior complexidade pela
intricada rede de interações que estabelecem no aparelho cerebral. A memória
psíquica, denominada também extracerebral é tecida em substância espiritual,
consistindo de precisos registros de lembranças guardados na consciência
profunda, cuja natureza íntima ainda nos escapa à compreensão. Está
consubstanciada na sutil mecânica do pensamento, compondo forças espirituais na
complexidade da mente e não guarda dependência alguma com as células
neuronais perispirituais ou carnais. É chamada ainda de memória espiritual,
memória profunda ou inconsciente, sendo responsável pela cognição e pela
autoconsciência, a noção nata que o ser vivo tem de si mesmo e de sua própria
existência, que o acompanha ao longo de todas as suas muitas vidas.
A memória somática, à qual o espírito tem livre acesso, é instável e limitada no
tempo, guardando relação com o presente, enquanto que a memória psíquica é
extracerebral e está além do tempo, abrangendo todo o passado metafísico do
espírito. A primeira registra as informações no decorrer de uma encarnação e a
segunda, todas as informações decorrentes de todas as encarnações.
A memória espiritual é a força operosa que se projeta na massa neuronal física
ou perispiritual, configurando a memória somática, carreando informações
cognitivas, emocionais e sensórias que funcionam como impulsos-tendências ao
longo da trajetória evolutiva, superando o tempo e mantendo a continuidade da
vida do ser, através dos seus variados ciclos de renascimento e morte. Devido à sua
ação oculta é que os seres vivos não somente desempenham atividades sem
aparente conhecimento prévio, como reconstroem seus corpos copiando exatamente
a forma precedente, impondo-lhes as inovações quando necessário. A nossa
ignorância preferiu chamar essa propriedade de instinto, reconhecendo- lhe a
surpreendente sapiência sem questionar as razões da sua existência. O instinto nada
mais é do que força mnemônica do espírito, que sabe recordar o que foi aprendido.
A vida nos mostra com evidência a presença dessa memória pré-reencarnatória
agindo de forma inquestionável, sem a qual a experiência na matéria seria
impossível. Se a semente não guardasse a lembrança da árvore que já foi, não
saberia reconstruí-la com exatidão. E se o animal não rememorasse as habilidades
conquistadas, não agiria com destreza diante das exigências de sua vida. Embalde a
ciência humana irá perscrutar os escaninhos cromossômicos, na vã esperança de
encontrar os agentes genéticos responsáveis pela

ícaro Redimido -143


hereditariedade de tal sabedoria. A memória não é herdade física, é herança do
espírito que torna à vida, trazendo seu prévio aprendizado, prova contundente da
anterioridade de sua existência. Basta admitirmos fato tão simples para que tudo se
explique dentro de lógica irretorquível.
A memória supera a morte, transportando de uma vida para outra as
informações essenciais de que o ser necessita para prosseguir na evolução,
permitindo que as novas aquisições se agreguem às antigas, que nunca se perdem.
Trafegando entre os dois mundos nos quais realiza o progresso, o físico e o
extrafísico, o espírito necessita de uma consciência de continuidade para a sua
existência entrecortada de nascimentos e desenlaces. A memória espiritual, não se
sediando na matéria, resiste à morte e o acompanha nesta jornada, permitindo a
reconstrução da memória somática em cada novo renascimento, retendo o
conhecimento já alcançado. A recapitulação das fases biológicas do
desenvolvimento animal, durante a embriogênese, é expressão dessa memória de
natureza espiritual, manifestando-se na confecção da forma. Dessa maneira se
mantém a constância das linhas morfossomáticas bem como os traços do caráter e
dos hábitos, fazendo com que a personalidade se configure sempre sobre os
alicerces do passado. Carreia ainda os liames cármicos, unindo o efeito à sua
causa, permitindo a colheita fiel do que foi semeado, nutrindo o ser de dores ou
alegrias em perfeita conformidade com a natureza dos mananciais retidos em seus
registros.
A memória espiritual, de modo geral, não é de fácil acesso. Embora se
conserve constantemente ativa, mantendo permanente troca de informações com a
memória cerebral e sustentando as forças que integram a nossa personalidade, os
espíritos de mediana evolução não guardam a capacidade de penetrar-lhe os
preciosos arquivos. O pleno acesso ao seu conteúdo se verifica em altos patamares
da evolução, quando então o espírito conquista a capacidade de recordar todas as
suas existências entrecortadas em uma única linha de continuidade.
A ciência terrena, estudando a memória, viu nela também a existência de duas
partes distintas: uma de ação a longo prazo, chamada memória remota e outra de
curto prazo, denominada memória recente. A primeira é expressão da memória
espiritual e a segunda, da somática. Embora se reverbere em sítios de atuação
física, identificados pela ciência terrena nas estruturas cerebrais como o hipocampo
e partes do intricado sistema límbico, a memória como um todo é um complexo
sistema feito de impulsos imateriais e sem localização precisa na massa cinzenta.
Conquanto lesões físicas do encéfalo possam perturbar-lhe o funcionamento, como
as deficiências circulatórias do idoso, isso não pressupõe que sua origem

144- Gilson T. Freire/Adamastor


se encontre na matéria, pois é como o pensamento que, embora necessite do
aparelho encefálico para se manifestar, não lhe pertence.
Ao iniciar nova aventura na carne, toda a memória somática se retrai para os
níveis inconscientes da memória profunda, que passa a operar como poderosa
força, reconstruindo o presente com base nos impulsos do passado. A lembrança do
pretérito se apaga momentaneamente do consciente para que o espírito reconstrua
no livro da vida novos registros e conquiste mais elevado patamar na evolução,
experimentando e reexperimentando suas habilidades, fixando assim o aprendizado
em alicerces firmes e permitindo-se o reparo dos desvios de rota. Podemos
considerar que sem o resumo do que foi no passado, a personalidade jamais se
reconstruiria para prosseguir no rumo de novas aquisições. Esta lógica facilmente
compreensível da gênese dos dons natos, não pode ser contestada, por mais que
teimem os homens em negar-lhe a veracidade.
Ao desencarnar, contudo, o espírito deve manter na consciência a recordação
ativa de sua última experiência de vida, para que sua existência se dê na mesma
linha de continuidade e sua personalidade se mantenha. Desta forma, a
individualidade não se desfaz, mas é a exata continuidade do que foi na matéria
com seus mesmos automatismos, habilidades conquistadas e defeitos adquiridos.
Os laços afetivos seguem também fundamentados nas mesmas vivências da última
experiência de vida. Assim a memória somática refaz sua integridade no perispírito
logo depois do desenlace, permitindo a reconstrução de exata cópia do corpo físico,
retendo nele os mesmos impulsos que lhe foram impregnados na carne. Para que
isso se dê, a revisão panorâmica, no momento da desencarnação, é ferramenta
essencial à reconstrução da memória somática, quando a memória espiritual
transfere para os sítios mnemônicos do perispírito refeito todo o conteúdo de sua
última vida, para que o ser possa lhe dar perfeita continuidade.
Por tudo isso, ressurgir no plano espiritual não é nascer de novo, como o é de
fato quando se retorna à carne. Desta forma, enquanto que para o espírito a carne é
a esfera do recomeço, o Plano Espiritual é a esfera da continuidade.
Os registros de memória participam ativamente da reconstrução do ser depois
da morte, interferindo no processo a época em que ele desencarna e a sua potência
evolutiva. Aqueles que deixam a vida na fase intra-uterina ou mesmo falecem em
tenra idade, de modo geral, reconstroem tanto suas formas perispirituais quanto
suas personalidades, subordinando-se à memória profunda e não à somática,
refazendo-se, portanto, segundo o panorama consciencial e morfológico da
reencarnação

ícaro Redimido ■
145
anterior. Os arquivos mnemônicos referentes à última existência, retidos na
memória espiritual, permanecem inalterados, pois a memória somática, ainda em
formação, não é suficientemente capaz de alterar a prévia orientação das linhas de
forças morfossomáticas das malhas perispirituais. Devido a esse fato, a maioria dos
espíritos nessa condição volta ao que era antes de reencarnar. Entretanto, suicidas
com elevado grau de autodestrutividade e baixa condição evolutiva, como já vimos,
podem ficar detidos na embriomorfia pela incapacidade de acessar a memória
profunda.
Da mesma forma, aqueles que deixam a vida na primeira infância, período
considerado até os sete anos, podem retroceder à personalidade e à forma física da
encarnação anterior ou seguir na mesma linha de desenvolvimento do corpo físico,
fenômenos dependentes da capacidade de cada um em interferir no próprio destino.
Espíritos de maior gabarito evolutivo, de modo geral, reconstroem-se obedecendo
aos registros morfológicos anteriores, enquanto que aqueles de medianas
potencialidades continuam presos à memória somática e permanecem atados à
forma física infantil com que foram surpreendidos pela morte. A maioria desses
continua desenvolvendo-se e amadurecendo como se estivesse na carne, embora de
forma muito mais acelerada, atingindo o que chamamos patamar de comodidade,
quando então o espírito se estaciona até o próximo retorno à carne. Indivíduos
inseguros e temerosos comumente encontram este patamar de comodidade na
própria infância e nela se fixam, permanecendo como crianças estacionárias no
Plano Espiritual, até que nova reencarnação os tire do sonho de insensatez que
pensam desfrutar. Estes espíritos pouco aproveitam do rico estágio de vida após a
morte e normalmente reencarnam em curto período de tempo, retornando, quando
possível, ao seio familiar que deixaram na Terra.
A memória no desencarnado é muito mais passível de lesões do que no homem
terreno em decorrência da maior instabilidade das forças psicossomáticas que a
sustentam no Mundo Espiritual, destituídas do peso que a carne lhes impõe. No
entanto, é preciso considerar que o dano à memória espiritual, patrimônio
inalienável do ser, é impossível, pois esta faz parte da substância imaterial que
entretece o espírito. Somente a memória somática, sediada no perispírito, está
sujeita a prejuízos nas diversas peripécias do ser, tanto na carne quanto fora dela. O
desfecho precipitado e infeliz dos suicidas, impedindo a realização da revisão
panorâmica a contento, assim como os abruptos choques reencarnatórios das
mortes prematuras em fase embrionária, que obstaculizam a perfeita recomposição
dos registros mnemônicos, podem propiciar danos

146 - Gilson T. Freire / Adamastor


significativos à memória somática do desencarnado. Lesões suscetíveis de
perturbar, não somente a perfeita recordação do passado, mas bloquear o acesso à
memória profunda, impedindo a correta reedificação tanto da forma quanto da
personalidade, afetando os delicados mecanismos da cognição e da autoconsciência,
que terminam por estabelecer a grave perda da auto-identidade, base para o
assentamento das esquizofrenias.
— Os homens precisam de reconhecer a gravidade do autocídio e do feticídio60
— exclamou Adelaide. — São muitos os entraves e dores que provocam em nosso
mundo, depois da morte...
— E que irão repercutir por muito tempo, não somente na vida espiritual
como no transcurso da própria existência na carne. Guardemos a esperança de que
o homem terreno um dia se convença dessa realidade, Adelaide.
Observando a expressão de vazio e o profundo desvalimento estampados na
face macilenta de Alberto, amargurava-nos a alma reconhecer sua completa
impossibilidade de assumir qualquer direção em seu destino. Inteiramente perdido,
dependia completamente de nossa atuação ou da benevolência de entidades
superiores para a continuidade de sua vida. Um espírito que adivinhávamos
valoroso, pleno de possibilidades de crescimento, ali estava, inutilizado,
totalmente entregue à sua própria desdita. Se não encontrasse o socorro,
dificilmente se restabeleceria no Plano Espiritual, encaminhando-se para urgente
retorno à carne em lamentáveis condições de sofrimento. Condoídos de sua
situação, continuamos nossa troca de observações:
— Temos agora o quadro estabilizado e conhecemos suas necessidades
imediatas, Adelaide. Alberto manifesta uma amnésia transreencarnatória, uma
lesão que se estabelece naqueles que passam por processo desencarnatório
incompleto e não executam a recomposição adequada da memória ao migrarem de
um plano para outro. Ele não refez adequadamente os seus registros mnemônicos
pela falta da revisão panorâmica após o suicídio traumático, tendo acrescido ao
dano os prejuízos da desencarnação prematura na fase embrionária, infelizmente
necessária, para resguardá-lo do risco de ovoidização. Estes súbitos entrechoques
biológicos lhe afetaram a memória somática, sustentada pela massa de neurônios
do perispírito, somados à desorganização imposta pelas forças autodestrutivas
ainda em vigência. Ele manteve os registros operacionais de atividades
automáticas como a fala, os traços caracterológicos da personalidade e podia
recordar poucos fatos mais

60 O ato de se matar um feto.

ícaro Redimido -147


recentes que lhe restaram na lembrança fugaz, porém, em decorrência da perda do
acesso à memória remota, estes logo se desvaneceram. Como a lesão foi profunda,
ele foi perdendo paulatinamente o conhecimento que tinha de sua vida e a
consciência de si mesmo.
— A recordação plena de suas últimas experiências de vida estará
irremediavelmente perdida? Não haverá recuperação para ele no plano em que
estamos? — perguntou Adelaide, surpresa.
— Vamos trabalhar para que isso não aconteça. O quadro é esperado nos
suicidas que se recuperam através da embrioterapia. O dano neste caso não é
completo, pois afeta somente a parte consciente da memória. O amnésico mantém
em vigência os traços que compõem sua personalidade, as tendências adquiridas no
exercício das muitas vidas e as aptidões do caráter. Ele perde o acesso consciente à
memória remota, as lembranças do que ele foi e o que fez na última experiência
reencarnatória, o que o atordoa sobremaneira e pode levá-lo a uma crise severa de
despersonificação e loucura.
— Não poderemos então consultar as anotações que o Plano Espiritual mantém
das histórias individuais e com isso ajudá-lo a se lembrar antes que isso aconteça?
— Minha amiga, não é tão simples assim. Podemos consultar apontamentos e,
melhor do que isso, sob hipnose profunda nos é possível vasculhar a intimidade da
memória inconsciente do amnésico. Mas se o indivíduo não refaz as vias de acesso
próprio a essas informações, pouco valor têm. A reencarnação permanece como o
recurso seguro para os casos extremos, mas deve ser empreendida somente depois
do fracasso de todas as tentativas de recuperação, pois o renascimento, de modo
geral, traz novas dificuldades para o ser. Os amnésicos não são raros nas
enfermarias de Portais do Vale, já lidamos com eles há muito tempo e nossos
estudiosos, devido a isso, desenvolveram recursos para o seu tratamento. O método
consiste em propiciar-lhes a recapitulação das experiências passadas, única forma
de fazê-los resgatá-las completamente. Não precisamos desesperar-nos, o
prognóstico é favorável; somente temos que estar dispostos a longo trabalho pela
frente.
— E se não obtivermos êxito na tarefa? O que acontecerá com nosso amigo?
— Neste caso a reencarnação será a única via para seu reequilíbrio, embora
acarrete certos transtornos. O homem sem memória, ao renascer encontra sérias
dificuldades em situar-se na vida com proveito, pois a lesão que traz irá acarretar
graves perturbações na reconstrução da memória cerebral. Os laços afetivos se
refazem com certa eficiência, a personalidade

148 - Gilson T. Freire/Adamastor


se reestrutura sem maiores entraves, mas diversas deficiências intelectuais se
estabelecerão, refletindo-se em dificuldades de aprendizado na infância, fixando-se
a idiotia em suas variadas expressões, sem que se identifique a existência de lesões
orgânicas, sustentando tais alterações. Todas as funções mentais que se baseiam na
memória pregressa serão perturbadas, manifestando-se a dislexia61 e os distúrbios da
linguagem em todas as suas formas, inexplicáveis do ponto de vista puramente
orgânico. E se a lesão atingir a reestruturação da personalidade, obstaculizando a
identificação dos pendores do automatismo nato, poderá afetar a autoconsciência,
estabelecendo-se psicopatologias mais graves, como as síndromes de
despersonalização62e a esquizofrenia.
— Compreendo...
— Daí a necessidade de trabalharmos com afinco a fim de recuperá- lo da lesão
mnemônica. E não devemos perder de vista que todo este transtorno foi
desencadeado pela louca desventura da autodestruição.
— Entendo agora por que Heitor foi tão reticente em nos revelar o seu passado.
Ele estava apenas nos estimulando a tarefa, pois já previa que teríamos que ajudá-lo
a se reencontrar, não é isso, Adamastor?
— É possível, Adelaide, é possível...

61 Dificuldade de compreender e se expressar na linguagem escrita.


62 Distúrbio psiquiátrico no qual o paciente perde a noção de quem é, sentindo -se estranho a si mesmo.

ícaro Redimido - 149


Nas Estradas do Passado

“Alegra-te, mancebo, da tua mocidade, anima o teu coração nos dias da tua
juventude e anda pelos caminhos do teu coração e pela vista dos teus olhos; sabe,
porém, que por todas estas coisas Deus te trará a juízo. ”
Eclesiastes, 11:9

A cada dia notávamos Alberto mais acabrunhado e introvertido,


aprofundando paulatinamente seu estado depressivo. Caminhava
^sorumbático e entibiado pelos corredores da Casa de Amparo,
movido por passos lentos e indecisos. Olhar lânguido, vagueando pelo
infinito, perdido em si mesmo, procurava por respostas onde somente
encontrava interrogações insolúveis. Sem caminhos, não se dava mais
conta de quem era, o que devia à vida e para onde ir. Condoía-me vê-lo
completamente solitário e desvalido no plano em que se recolhera, embora
ciente de que a Misericórdia divina não desampara nenhum de seus filhos.
Nasceu-me então o desejo de acolhê-lo em minha modesta residência e
solicitei da direção de nossa colônia a conveniência de tal ato. Far-me-ia
companhia à solidão por sua vez e poderia, quem sabe, aconchegando-
me ao seu coração, melhor auxiliá-lo no reencontro consigo mesmo. E
passei a conviver com aquele amigo sem palavras, portando a ingenuidade
de uma criança, digno de cuidados. Seu olhar intimidado, carregando de
humildade sua compleição minguada e frágil, deixava transparecer um
coração que, mesmo tresmalhado em dores, transpirava bondade,
incitando-nos a ampará-lo como um verdadeiro irmão. Embalde buscava
entreter com ele um diálogo mais prolongado, pois sua memória
claudicante o impedia de manter a seqüência lógica de qualquer assunto,
por mais simples que fosse. Todo raciocínio lhe parecia por demais

150 - Gilson T. Freire / Adamastor


complexo para o parco entendimento. É penoso confessar que, ao mirá- lo, perdido
no completo desvalimento, um sentimento de piedade me invadia o coração,
esquecido de que a dignidade e o amor com que o Senhor da Vida nos confeccionou
a alma, jamais nos faz indigentes de Sua misericórdia.
Era imperioso iniciarmos um tratamento eficaz a fim de arrancá-lo do fosso de
amarguras em que se atirara, antes que se refugiasse em psicose de difícil solução.
Forçoso é reconhecer que se o choque amnésico é conseqüência de traumas
desencarnatórios como o suicídio, é também compreendido como recurso
inconsciente de defesa do “eu” diante de sofrimentos intoleráveis. Refugiando-se
no olvido, evade-se o espírito das dores que as lembranças amargas lhe suscitam,
apagando-as da memória. Porém, como é impossível fugir de si mesmo, os pesares
prosseguem em escala crescente. Por isso, amarfanhar a alma na irracionalidade da
insânia pode ser a única via para o insolúvel drama íntimo. Antes que esse passo
seja dado é preciso ajudar o fugiente, auxiliando-o a enfrentar com galhardia suas
amargas recordações, predispondo-o à conquista da saúde emocional. A psiquiatria
terrena identifica quadros semelhantes ao caracterizar as amnésias e as fugas nas
síndromes de transtornos dissociativos, verdadeiros, porém, inadequados
mecanismos defensivos da mente, quando o “eu” se vê na impossibilidade de
engendrar outros recursos mais eficazes na prevenção do desequilíbrio
consciencial.
O tratamento da amnésia transreencarnatória consiste em levar o paciente a
mergulhar em seu passado, revivendo-o sob orientação, permitindo-lhe refazer as
vias de acesso à memória profunda, recompondo assim o conteúdo da memória
somática. Chamado de recapitulação mnemônica dirigida ou dinâmica revivencial,
pode-se compará-lo às psicoterapias do homem moderno os quais, induzindo o
enfermo à vivência de seus traumas íntimos, capacitam-no para a reconstrução de
seu panorama emocional desfeito. Forçoso é reconhecer, no entanto, que é preciso
habilidade na condução do procedimento, a fim de que a vivência não aprofunde os
sofrimentos e nem redunde em mero lustre para o personalismo já doentio,
nutrindo-o com os valores errôneos da vaidade humana.
O conhecimento prévio da história do paciente é sempre recomendado para se
facilitar a condução do processo e neste momento já tínhamos em mãos registros
da vida de nosso amigo, obtidos no Departamento de Informações de nossa
colônia. Não convém que o terapeuta inicie o mergulho no passado sem esse
conhecimento, se ele não é suficientemente

ícaro Redimido •
151
capaz de perceber os entraves ocultos dos hábitos personalísticos do enfermo,
antevendo seus erros, pois ele corre o risco de se deixar levar por caminhos
inadequados em sua recuperação. Agrada a este, de modo geral, iludir-se de que
seja vítima de injustiças e não o artífice de suas próprias dores, o que o leva, ainda
que de forma inconsciente, a ocultar as culpas e a justificar seus erros nas
inconseqüências e maldades alheias, resguardando-se assim de denegrir a própria
imagem, exaltando-se-lhe o contumaz orgulho. Eis os riscos que a ciência da
Terra, ao empreender o mergulho no passado, precisa saber evitar. Por isso o
terapeuta, qual juiz prestimoso, deve examinar antecipadamente com cuidado os
laudos pertinentes ao caso particular que conduz, resguardando-se de se orientar
pela ética errônea de seu paciente e de assumir equivocados julgamentos das
tramas engendradas por ele.
A lei de causa e efeito deve ser chamada a justificar as dores encontradas,
mostrando ao enfermo sua real participação na semeadura dos males que sofre,
levando-o a arquivar as sábias lições da vida em favor de sua educação espiritual.
A dinâmica revivencial é empreendida no Mundo Espiritual mediante variadas
técnicas, porém todas empregam as energias adestradas do hipnotismo, capaz de
operar a orientação do pensamento do assistido. Podemos dizer que se trata de
verdadeira cirurgia psíquica, exigindo habilidade e conhecimento no manejo dos
tecidos emocionais de que se veste a alma. Serve-se ainda do auxílio de aparelhos
especiais como o projetor psicocinegráfico, espécie de espelho configurado em
matéria plástica altamente sensível que capta e dá forma às projeções da mente,
permitindo-se visualizá-las, sendo muito utilizado no plano em que atuamos.
Observando exatamente o que o enfermo vivência, o terapeuta tem melhores
condições de acompanhar o processo e interferir nele para a sua correta orientação.
Espíritos superiores mais habilitados na arte de operar a mente podem dispensar
aparelhos, sendo capazes de penetrar na intimidade do enfermo, enxergando
diretamente em sua tela mental as imagens que aí se desdobram.
O uso da psicometria é também recurso útil no processo, facilitando a muitos
espíritos o ingresso no passado, principalmente os mais resistentes à indução
hipnótica. Como sabemos, esta técnica consiste em aproximar o enfermo de objetos
que lhe foram alvo de devoção no passado e se impregnaram de suas energias
mentais. Os fetiches, de qualquer natureza, sempre exerceram poder sobre a mente
daqueles que lhes dedicaram atenção, por refletirem sobre eles as próprias energias
emocionais aí

152 - Gilson T. Freire / Adamastor


retidas e, por isso, quando existem e podem ser alcançados, são recursos de grande
utilidade no tratamento regressivo.
Pessoas que foram marcantes na vida do enfermo são elementos de grande
auxílio para trazê-lo à realidade, quando se pode contar com elas. Alberto,
naturalmente, tivera parentes e amigos, mas não formara uma família na última
encarnação e não dispunha de alguém que convivera intensamente com ele a fim de
ajudá-lo nesta empreitada. Seus pais encontravam-se já reencarnados, atravessando
agora a infância e não poderiam ser convocados sem que se dispusessem a largos
preparos e complicados procedimentos para retornar ao pretérito. Detínhamos em
mãos referências de algumas pessoas, em sua maioria ainda encarnadas, e
poderíamos recorrer a elas, caso fosse necessário.
Convém recordar que a terapia segue os mesmos princípios da revivência
panorâmica da desencarnação. Como vimos, esse processo se passa de modo
automático, logo após a morte física e refaz todos os momentos da vida do
indivíduo na ordem cronológica crescente dos fatos. Menos freqüentemente, esse
regresso mnemônico pode realizar-se na ordem inversa das ocorrências e ainda,
mais raramente, em saltos aleatórios pelas lembranças da vida. Nenhum incidente é
perdido. É a síntese da vida que se transfere para a memória profunda, em forma de
impulsos que irão influenciar as futuras experiências do espírito. Nos óbitos
súbitos, quando o indivíduo não se dá conta de que faleceu e continua a agir como
se ainda estivesse presente na carne, fenômeno que na verdade é um desdobramento
sem possibilidades de retorno, a revisão panorâmica não ocorre de imediato, sendo
adiada até o instante em que o desencarnado se retrai no esgotamento de suas forças
e mergulha no sono reparador. Em raras ocasiões pode ocorrer em indivíduos que
experimentam momentos de quase-morte, condição já reconhecida pelos
pesquisadores da Terra. Muitos ainda relatam não havê-la presenciado, mas nesses
casos se dá o mesmo que se verifica com os sonhos, que muitas vezes não deixam
recordação clara de sua ocorrência.
Contudo, nos casos patológicos em franca depleção das forças psíquicas, a
técnica recomenda evitar-se, em uma primeira etapa, a rememoração das
experiências mais pungentes, chamando à tona somente as lembranças mais felizes,
por isso a exata seqüência cronológica nem sempre é a mais indicada. As forças
psíquicas, ainda impregnadas dos impulsos autodestrutivos da psicólise, podem
aprofundar suas ações deletérias, motivadas por novas dores emersas do passado,
daí a imperiosa necessidade de se tornar a recordação o mais prazerosa possível,
preparando o enfermo

ícaro Redimido -153


para vivenciar posteriormente as plangentes realidades que matizam o seu íntimo.
Ao contrário da recapitulação espontânea, a induzida não segue a mesma
rapidez, pois não está automatizada de forma natural. À medida que o amnésico
mergulha nos escaninhos do inconsciente e revive suas lembranças mais marcantes,
as vias de acesso à memória profunda vão se refazendo, restaurando-se a
automática e constante alimentação da memória somática. Quando oportuno, se o
paciente se mostra em condições de enfrentar a própria penúria espiritual,
aproveita-se a sua lenta seqüência para estimular a adequada vivência emocional
dos fatos trazidos à superfície, tecendo-se uma elaboração racional e interpretativa
dos mesmos, a fim de que sejam devidamente solucionados e acomodados nas
camadas profundas da alma, inibindo-se-lhes o potencial enfermiço.
Numa primeira fase, a revivência é induzida hipnoticamente até que o amnésico
restabeleça o livre acesso às suas lembranças, quando então se passa à análise
consciente de suas recordações, concatenando-as em seqüência de causas e efeitos,
a fim de que as lições da vida sejam interpretadas em benefício de seu crescimento
espiritual.
Como um verdadeiro procedimento cirúrgico, a intervenção exige também o
adequado preparo do enfermo, para que seja proveitoso e não redunde em males
ainda maiores. A musicoterapia, para isso, é o recurso que utilizamos não somente
neste preparo, mas para o seu sustento em todo o processo. Ainda insciente no
mundo dos encarnados, tal recurso é um dos mais importantes procedimentos de
apoio terapêutico dentre aqueles empreendidos em nosso plano, para os doentes da
mente, especialmente os desmemoriados. A música é capaz de suscitar a
reconstrução de vias neuronais perdidas e auxiliar na dilatação dos limites da mente
humana. Basta observarmos os sentimentos que uma melodia antiga nos suscita,
trazendo à tona o mesmo panorama emocional vivenciado em sua época, e nos
daremos conta de sua fantástica capacidade de penetração em nosso mundo íntimo.
Pelas propriedades da ressonância, as ondas sonoras podem interferir no ritmo das
ondas mentais, impondo euritmia ou disritmia, segundo sua própria natureza.
Assim é que desde épocas remotas os primitivos as usavam como estímulo à luta,
imprimindo-lhes o frenético ritmo cardíaco, excitante das paixões. De igual modo
podem impor acalmia se a toância de seus acordes reverberam paz e quietude,
induzindo a mente desalinhada a ressonar na normalidade, quando perfeitamente
orientada para isso.
Registros de sons que fizeram parte da vida dos pacientes, do mesmo modo que
as músicas, são cuidadosamente estudados e usados como

154 - Gilson T. Freire / Adamastor


estímulos eficazes para direcionar o mergulho no pretérito. Sem essa orientação,
comumente estes enfermos se deixam atrair fortemente para os momentos mais
traumáticos de seu passado, pois os impulsos psicolíticos ainda lhes dominam o
cenário íntimo. Todos estes recursos e cuidados são necessários nesses casos onde o
acesso aos registros mnemônicos está obstaculizado pela depleção das forças
mentais, movida pela psicólise. Recordemos que estamos diante de casos
patológicos, necessitados destes estímulos, pois, em situações de normalidade, o
desencarnado mantém, naturalmente, a memória plena de sua última experiência na
carne, bastando ainda pequena indução hipnótica para que a recordação de outras
vidas venha à tona, o que pode mesmo ocorrer de forma espontânea nos espíritos
equilibrados, em nosso plano.
Alberto terminara a etapa de alijamento dos eflúvios negativos de sua unidade
psicossomática, deixando a terapia de imersão que cumprira o seu papel, e o
encaminhamos para o tratamento musicoterápico. Os campos da música, onde se
processa a agradável terapia, a exemplo de outras colônias do Plano Espiritual, são
locais extremamente aprazíveis, compostos de bucólicos jardins, onde se executam
as audições musicais, muitas vezes ao vivo. Profissionais de nosso plano,
especializados no procedimento, indicam para cada caso as melodias mais
convenientes, depois de pormenorizado trabalho de identificação das harmonias
necessárias ao equilíbrio mental. Aparelhos delicados tanto emitem as composições
diretamente ao enfermo, como identificam o teor de suas desarmonias íntimas e
suas necessidades.
O progresso de nosso companheiro era visível, pois o víamos a cada dia mais
refeito. Sua face ensandecida dava lugar a expressão mais serena, irradiando
confiança onde antes se via o desespero. A irmã Eurídice, quem o conduzia nos
campos da música, informava-nos que identificara algumas melodias do passado,
registradas em seus escaninhos mnemônicos e as utilizava para suavizar-lhe a
angústia íntima. Aproveitaríamos esses mesmos registros sonoros para conduzir a
sua recapitulação dirigida. Deliciando-se com os procedimentos suaves e seguros do
tratamento, Alberto encontrara conforto ouvindo peças de Mozart, Charles Gounod
e Offenbach, identificadas como aquelas de que mantinha recordações melódicas
precisas e às quais mais se afeiçoara quando encarnado.
Finalmente chegara o instante de iniciarmos o mergulho no passado, enquanto
prosseguia o tratamento no campo da música. Na companhia de Adelaide,
instalamos Alberto em confortável cama, a fim de que fosse induzido ao sono
hipnótico. Com a ajuda do refletor psicocinegráfico, minha estudante poderia com
facilidade acompanhar o

ícaro Redimido -155


desenrolar das visões projetadas de sua mente, pois não seria possível sustentar-lhe
o acesso direto aos panoramas mentais do nosso enfermo durante o processo.
Eurídice preparou-nos uma coletânea de sons registrados em sua meninice e que se
faziam acompanhar de emoções prazerosas, a fim de facilitar-lhe o acesso a essas
recordações, tornando sua revivência o mais real possível e orientando o nosso
trabalho segundo uma seqüência lógica, a fim de não nos perdermos nos labirintos
de suas reminiscências.
Convocando-o, por força hipnótica, a retroceder no tempo, colocamos o
aparelho de projeção sonora para reproduzir os primeiros sons que nos eram
recomendados, começando pelas mais ternas lembranças de sua infância.
A primeira seqüência de sons, a princípio mal identificada por nós, logo se fazia
compreensível, à medida que a visão de Alberto se esboçava no imenso espelho do
aparelho, em perfeita consonância com os rudes acordes. Víamos pequenas mãos de
um garoto de quatro a cinco anos ansiosamente tentando alçar-se no beirai de uma
janela, ao ouvir a lamuriante melodia que um carro de boi cantava
melancolicamente ao longe, anunciando sua chegada. Corria por largo terreiro,
tomado de entusiasmo, à espera do veículo que já se adentrava pela porteira. Um
senhor moreno o tomava então pelos braços e o colocava sobre a carroça, repleta de
grãos de café recém-colhidos. Enquanto os obedientes animais continuavam a puxar
a pesada carga, fazendo gemer suas rodas, ele se embriagava, chafurdando-se nos
prazeres proporcionados pela sua mágica piscina improvisada. No pátio de
descarga, chegava à apoteose de seu deleite, quando, ao abrir a portinhola, ele
escorregava junto com a avalanche de grãos, caindo imerso em um oceano
vermelho. Seu sorriso ingênuo nos encantava, despertando-nos as emoções que
experimentava.
— Conte-nos, Alberto, o que se passa? — interroguei, suscitando-o a vivenciar
as alegrias do momento.
— O Sr. Urbano é meu amigo. Sempre fico esperando que ele chegue com seu
carro de boi carregado de café. É uma delícia escorregar junto com as sementes
maduras, quando a portinhola da carroça se abre. Minhas irmãs correm para contar
para minha mãe, que, às vezes, parece não gostar disso, mas meu pai diz que não
tem importância. Passo horas aqui, nadando nesta lagoa de grãos, lutando com
dragões... imaginários, é claro! Veja como é gostoso escalar as dunas, depois
deslizar por elas, à maneira de um esquiador. Fui eu mesmo que aprendi a brincar
nestas montanhas de café. Às vezes, minhas irmãs Gabriela e Sofia compartilham
comigo essa brincadeira.

156 - Gilson T. Freire / Adamastor


— Onde você está, Alberto?
— Estou na fazenda de meu avô, em Casal, no município de Valença. Nós
moramos aqui. Sinto o cheiro gostoso dos grãos de café maduro e nada neste
mundo é melhor do que rolar neles.
— E as pessoas com quem você está Alberto? Fale-nos delas. Conte- nos
sobre sua família.
— Meu pai chama-se Henrique e minha mãe Francisca. Tenho uma grande
família. Meu irmão Henrique é o mais velho, Maria Rosalina também já é grande.
Virgínia, Luiz e Gabriela também são maiores, já a Sofia tem quase a minha idade
e é minha companheira de brincadeiras. Francisca é a menor. Gosto mesmo da
Virgínia, ela me defende quando os maiores querem me bater...
Denotando certo cansaço, atirava-se Alberto em sono profundo. Sua primeira
incursão nos porões do passado fora bem sucedida. A lembrança da família é o
alicerce sobre o qual a personalidade se constrói na vida, e talvez ele passasse,
doravante, a se recordar deles espontaneamente.
— Realmente nosso amigo passou a sua infância numa fazenda de café —
disse a Adelaide, consultando os registros que trazia. — Seu pai cuidava das terras
do sogro, onde plantava e beneficiava café. Descendia de franceses que vieram
para o Brasil em busca de diamantes e se formara em Engenharia na terra dos pais.
Aqui se dedicou à construção das primeiras estradas de ferro até que passou a
cultivar o café, com o qual fez grande fortuna. Seus filhos, educados na primorosa
cultura européia do fim do século dezenove, da qual ele nunca se desligou,
sentiam-se franceses radicados nas terras americanas. O café fez parte realmente
da vida de Alberto, responsável por toda a riqueza da família e por isso está
marcado em suas reminiscências. Já sua mãe era filha de um comendador
português que vivia em Ouro Preto, onde Henrique fora trabalhar e se conheceram.
Dentre os irmãos, realmente com Virgínia detinha ele maior afinidade. Alma de
sólida formação cultural, ela lhe ensinou as primeiras letras na infância e seguia
seus estudos com interesse, despertando-lhe o gosto pelas ciências e pela leitura.
Depois viemos a saber que realmente as preces desta irmã foram decisivas para
o sustento vibracional de nosso amigo, logo após o fatídico desfecho de sua vida.
Após breve intervalo, recomeçamos o processo com novos sons que traziam
agora um longo aulido de um lobo.
— O uivo comprido do lobo guará! Que medo! Ele vem junto com o frio da
madrugada e neste momento quero me aconchegar no colo de

ícaro Redimido -157


minha mãe. É o melhor lugar do mundo para se estar nestas horas. É gostoso e me
sinto seguro.
— Onde você está?
— Em Cabangu, na parada de João Aires... nasci aqui, na encosta da
Mantiqueira... Nossa casa branca de janelas azuis... meu pai está construindo uma
estrada de ferro... A locomotiva... tenho medo... parece um monstro pavoroso...
tenho vontade de esconder quando ela chega cuspindo fumaça...
Uma algazarra de ruídos de ferragens e polias o interrompia, situando- o em
seguida em outro lugar. Víamos um imenso galpão onde máquinas azafamadas
firemiam impacientes.
— A usina de beneficiamento de café da fazenda de meu pai, em Arindeúva,
meu lugar preferido de brincadeiras. Passo horas aqui, brincando com essas
máquinas. Admiro os seus movimentos e gosto de observar meu pai desmontá-las
quando estragam. Até já aprendi a consertar algumas delas. É divertido seguir a
viagem dos grãos correndo pelas esteiras, espremidos pelo despolpador, voando
nos secadores e sendo sacudidos pelas peneiras. Veja como sobem apavorados
pelos tubos furados do separador! Cada grão caindo em seu lugar certo, a moca
toda reunida em um mesmo reservatório. Os operários ensacam os grãos separados
e limpos, os coitados vivem aflitos, pois, a cada saco que fecham, lá vem outro
apressado já cheio. Depois todos ficam quietos nas grandes pilhas, onde somos
proibidos de subir, pois uma vez o Luiz ficou soterrado sob um monte deles que fez
ceder sobre si. Gosto de ver como tudo funciona perfeitamente, tudo bem
encaixado e em seus devidos lugares. Só as peneiras é que são antipáticas, vivem se
recusando ao trabalho. Elas balançam sem jeito, num tremeiique desengonçado.
Aprendi muito cedo com elas que as máquinas não gostam desse movimento de
sacolejo de vai-e-vem, ao qual não podem resistir por muito tempo... Meu pai me
falou que as máquinas são melhores do que os homens para trabalhar e um dia vão
dominar o mundo. Estamos na era das máquinas, diz ele, são poderosas e podem
fazer tudo por nós. Menos voar, não se esquece sempre de explicar.
O lamento choroso de um longo apito de locomotiva, em meio à sua rítmica e
típica troada, cortava-lhe as reminiscências para projetá-lo em novas vivências.
— É uma Balduína63 . Eu já sei manejá-la! Meu pai nem precisa ficar

63 Antiga locomotiva idealizada por William Baldwin, um engenheiro americano, e que pelo seu
difundido uso tomou-se sinônimo popular de trem a vapor, no final do século dezenove e início
do século vinte.

158 - Gilson T. Freire / Adamastor


ao meu lado, ele vai com Henrique a cavalo, na frente. Eu sou o maquinista! Gosto
de acionar a corda de seu apito, encompridando seu lamento até ouvi-lo ribombar,
choroso, nas montanhas lá longe. Sei que depois minha mãe vem me chamar a
atenção, dizendo não ser preciso tanto escândalo. Mas assim todos na fazenda
sabem que sou eu quem chega, trazendo o café. Montado neste dragão que cospe
fogo eu sou o maior de todos os meninos... olham-me com admiração... respeitam-
me... ninguém na minha idade é capaz de fazer isso.
Neste ponto notávamos o início de uma patologia do orgulho instalando- se,
mas não era ainda momento para ser trabalhada e deixamos que ele continuasse o
seu deleite pelo agradável passeio nas estradas do passado. Nossos apontamentos
indicavam que realmente seu pai fizera uma ferrovia particular a fim de facilitar o
escoamento de sua imensa produção cafeeira, em suas extensas terras em Ribeirão
Preto.
— Eu tinha ainda sete anos quando meu pai me ensinou a manejar a
locomotiva — continuava a relatar o nosso amigo. — Ele não resistiu à minha
imensa curiosidade, sempre junto ao maquinista, especulando-o. Não eram ainda as
Balduínas, eram outras, menores, com grandes rodas traseiras, desprovidas de
cabine, com uma chaminé muito alta. Ele porém não me deixava ir sozinho. De pé
ao lado da caldeira, segurava a manivela de aceleração, me vigiando. Achava ruim
aquilo, ele não confiar em mim, pois eu sabia muito bem quando a caldeira perdia
pressão e devia alimentar a fornalha com novos troncos de madeira cortados bem
pequenos. Nessa época elas não levavam café, mas apenas a lenha, que os
operários retiravam das matas. Todas as máquinas precisam da lenha para
funcionar, inclusive as que tudo fazem girar no galpão de beneficiamento, pois
funcionam graças à força do vapor e o fogo é que faz o vapor. São como cavalos de
vapor, me diz meu pai, porém muito mais fortes do que eles. Agora chegaram essas
novas locomotivas, mais modernas, mais ágeis e muito mais fáceis de manejar.
Meu pai construiu uma estrada de ferro só para transportar o café que produzimos...
tenho muito orgulho dele, devo dizer...
Com as pequenas mãos metidas em enormes e rústicas luvas, nós o víamos
abrindo a portinhola da fornalha, onde o fogo vivo lambia com vigor a madeira
seca, fazendo-a crepitar, enquanto o monstro de ferro gemia, relinchando nos
trilhos fiapos de grunhidos agudos.
— Já tenho doze anos e agora meu pai me deixa conduzi-las completamente
sozinho. É gostoso ver a chaminé comprida vomitando fumaça, suas rodas robustas
puxando os vagões carregados. Veja como gemem! Parecem reclamar do trabalho!
Que força! Seria preciso muitos

ícaro Redimido -159


cavalos para puxar todo esse peso. Uma maravilha! Está frio, mas é uma delícia
esse calorzinho gostoso da caldeira!.. Dizem que sou muito tímido, é verdade, mas
aqui esqueço minha timidez e posso ver a satisfação nos olhos de meu pai quando
sou o maquinista. Ele confia em mim, não é como os meninos da fazenda. Dizem
até que ele me protege e gosta mais de mim do que dos outros. Vendo-o orgulhoso
de mim fico muito feliz também...
Após breve intervalo, seu sorriso infantil se descoloriu e ele prosseguiu,
deixando aflorar pesares e rancores de uma alma em contida altivez:
— Sei que sou baixinho e fracote... Todos me chamam de nanico, é péssimo,
mas ninguém faz o que faço. Os garotos não me deixam participar de suas
brincadeiras, pois não dou conta de enfrentá-los, sei disso. Às vezes eles cedem por
imposição de meu irmão maior, mas me tratam com indiferença como se eu nada
valesse... prefiro ficar no meu canto, lendo meus livros de Júlio Verne... ou ir
brincar sozinho com as máquinas da usina de café... são companheiras, não
menosprezam a gente...
Interrompemos nesse ponto a sua digressão, pois a dinâmica de seu pensamento
evocava energias depressivas que no momento precisavam ser evitadas. Um
mecanismo de defesa, empreendido por uma personalidade carente de valor
pessoal, já se delineava nitidamente, porém não era o instante de deixar que os
núcleos de sofrimentos aflorassem e preferimos deter-lhe a marcha do regresso.
Induzimo-lo então ao sono reparador, sugerindo-lhe sonhar com as delícias do
passeio em sua locomotiva cuspinhando chispas de luzes, conduzindo-o por trilhos
entre relvas esplêndidas, planícies cobertas de paz e recantos enfeitados de
bucólicas paisagens. Seus lábios sorriam e sua alma se nutria das lembranças
sadias, carreando energias de positividade, entusiasmo e alegria para a
recomposição de suas forças mentais depressivas. Despertando, irradiava
serenidade pela primeira vez, embora ainda se estacionasse na amnésia e o olhar
vagasse perdido no vazio.
— Estamos diante de uma criança ferida — detive-me, explicando à Adelaide
— primeiro convém socorrê-la com o amparo amoroso, pensando-lhe os
ferimentos, para depois lhe chamar a atenção, mostrando a lição da dor para que
não recaia nos mesmos erros. Nosso amigo traz a alma atassalhada e necessita de
socorro antes que de corrigendas. Por isso é nossa obrigação, neste processo,
obstaculizá-lo na revivência dos momentos infelizes, por ora, para que não resultem
em um aprofundamento de suas lesões. Suas forças psicodinâmicas estão em nítida
fase depletiva e podem se desgastar mais ainda, agravando-lhe a enfermidade
mental.

160 - Gilson T. Freire / Adamastor


O passado é força operosa que ressurge sempre que as condições lhes favoreçam a correção de seus desvios. Se o convocamos
espontaneidade, é preciso saber conduzi-lo para que atue com proveito e sem prejuízos para o seu protagonista. A sabedoria da
o pretérito com o objetivo precípuo de poupar-nos o acúmulo de dores sem soluções na alma, trazendo-o em doses adequadas
nos liquidar as possibilidades de soerguimento e aprendizado. Daí a necessidade de que o condutor da terapêutica regressiv
dessas forças mentais, Adelaide.

ícaro Redimido - 161


Aventuras Inusitadas

“Anuncia-lhes o quanto o Senhor te fez, e como teve misericórdia de ti. ”


Jesus - Marcos, 5:19

P or alguns dias o víamos um pouco mais feliz, mas ainda não dava
mostras de ter reavido suas preciosas lembranças e não comentava
nada a respeito das experiências que revivera. Seguimos então
nossas sessões de recapitulação, a fim de que ele recompusesse a memória
perdida. Agora um outro apito de um trem surgia ressoando distante,
acompanhado de latidos de cães, perdidos em uma imensidão de silêncios.
Um céu vazio se desenhava em sua tela mental, em meio a nuvens estáticas.
Como uma imensa tigela, a terra se desenrodilhava, fugindo aos poucos
embaixo, salpicada de névoas e coberta de mantos brancos. Adivinhamos
que era inverno e embora o frio fosse intenso, o momento era de grande
deleite. Ele flutuava ao sabor dos ventos, suspenso no ar.
— Que aventura é essa, Alberto?
— Aqui só chegam os apitos das locomotivas e os latidos dos cachorros. Estou
fazendo com Machuron a minha primeira ascensão em balão. É deslumbrante.
Tudo é muito bonito, limpo e calmo. Veja como os raios do sol refletidos nas
nuvens criam jatos iridescentes de fantásticas luzes! É facílimo manejá-lo. Vendo o
aeronauta conduzir-se nas manobras acho tudo muito natural e simples. Tenho a
alma sobressaltada, é verdade, a respiração parece faltar-me em certos momentos,
mas não sinto absolutamente medo algum. Não nos dá uma gostosa sensação de
estar suspenso no vazio? Parecemos livres no espaço. Olhe para cima! Não vemos
mais o balão! Ele agora se escondeu no meio de densas nuvens.

162 - Gilson T. Freire / Adamastor


Opa! Não, não vamos cair, as nuvens mais pesadas o esfriaram, depositando sobre
ele grossas camadas de neve, fazendo-o precipitar-se abruptamente. É simples,
basta atirarmos fora um pequeno punhado de areia para recobrar o equilíbrio. Essa
sensação de medo junto com a ilusão de estar solto no vácuo me provoca um
arroubo de êxtase misturado com pânico, deixando-me a alma em suspense, num
sentimento mágico que não sei como descrever. Um misto de alegria e temor me
arranca arrepios da alma e o sangue parece fervilhar em minhas veias. É selvagem e
doce ao mesmo tempo. Estamos entregues ao sabor dos ventos, é verdade, mas
podemos dominar completamente a situação, subindo, soltando um punhado de
areia, ou descendo, liberando gás. É fascinante! Nada na Terra se compara a esse
poder de desafiar as alturas e subjugar o imponderável. Sinto que nasci para isso...
— Onde você está, meu arrojado amigo?
— Estou em Paris. Moro aqui agora e já sou maior de idade. Subir em um
balão foi um sonho que acalentei por muito tempo, desde quando
li os fantásticos romances de Júlio Verne. Um dia vi um balão cativo em São
Paulo e nunca mais desisti da idéia de subir em um deles. Agora o Sr. Lachambre e
seu sobrinho Machuron estão proporcionando-me esta aventura, da qual nunca mais
me esquecerei. E olhe que foi uma sorte encontrá-los! Vou pagar somente 250
francos, enquanto outros queriam cobrar-me uma fortuna por isso.
O badalar agudo e insistente de um sino de igreja repicava melancolicamente ao
longe, reconduzindo-o à reminiscência nítida do momento:
— É meio-dia, hora de nosso almoço—continuou, estampando sorriso de
imensa satisfação nos lábios estreitos, umedecidos pelos movimentos da língua,
como a se preparar para o banquete. — O que temos aqui? Uma garrafa de
champanhe, licores, frango e vitela, ovos cozidos, algumas frutas... Uma mesa
posta nas nuvens! Comer em meio a vapores em ebulição e jatos de gelos, a três mil
metros de altura é um privilégio de poucos! Nem mesmo os reis da Terra foram
agraciados com tal distinção! Pobres e efêmeros humanos, presos à superfície do
globo, não sabem como aqui somos grandes!.. Sinto-me na verdade um pequeno
deus... se devo confessar meus sentimentos...
Novamente a soberba aflorava de seu íntimo, mostrando a imperiosa e doentia
necessidade de sobrelevar-se, mas precisávamos dar-lhe o sabor dos prazeres do
passado a fim de que reconstituísse o seu panorama íntimo desfeito. Mais tarde
seria necessário trazê-lo à real medida destes

ícaro Redimido - 163


núcleos enfermiços de altivez, onde certamente se situava a etiologia de sua
penúria espiritual. Adelaide consentia com os olhos, compreendendo a necessidade
de enaltecer-lhe o desvalimento e continuamos ouvindo seus surpreendentes relatos
de ousadias:
— Meu pai mandou-me aqui para estudar e estou morando com meus primos
— prosseguiu com vivo entusiasmo. — Sou rico, ele colocou em minhas mãos uma
grande fortuna... Os automóveis de Paris me fascinam, na primeira vez que aqui
estive com meu pai, comprei um. Tivemos que ir à usina de Valentigney para
adquiri-lo: um Peugeot de quatro grandes rodas como uma carruagem, com três
cavalos de força. Aonde ia chamava a atenção dos curiosos que me cercavam para
ver essa maravilha moderna. Não foi difícil aprender a manejá-lo e mesmo
consertá-lo, mas este ficou no Brasil. Agora comprei outro, menor, um triciclo, mas
muito ágil, de três cavalos e meio de força. Com ele corro feito maluco pelas ruas
dessa cidade de meus encantos. Um sucesso! Não preciso trabalhar para viver e
posso comprar o que quiser. Mas é dos balões que gosto. Dirigir é fácil para quem
tem dinheiro, mas a aerostação exige uma grande coragem, como dizem, é preciso
ser verdadeiramente um homem para se meter nestas máquinas flutuantes. Na
barquilha64 de um balão me transformo de imediato, de um cidadão vulgar em um
explorador da ciência... Sou Phileas Fogg, dando a volta ao mundo! Sou Robur65, o
conquistador!.. Posso pesquisar em terras desconhecidas, visitar as regiões polares,
atravessar mares! Posso escolher a altitude e com ela aceitar ou não uma corrente
de ar que me leva a uma direção. Mas nunca se sabe onde se vai descer, que ventos
vão levá-lo e para onde, em que país se vai pousar. Posso freqüentar o céu acima
das nuvens, onde nenhum mortal jamais esteve, dar saltos de gigantes por sobre
montes e bosques e depois pular da cesta como um deus saído de uma nave de
outro mundo... Não, nada se compara a isso...
— Volte ao seu almoço. Termine o passeio no meio das nuvens que tanto o
encanta. Conte-nos mais.
— Já almoçamos e estamos voando há mais de duas horas. É hora de pousar,
pois nosso lastro já está acabando. Machuron confiou-me o controle da válvula...
estamos descendo... Opa! Um vento mais forte, segure-se! Não foi nada, somente
um pequeno solavanco, a corda-guia66 agarrou-se a um grande carvalho... mais um
punhado de areia e nos soltamos... Que

64 Nosso amigo utilizava o termo “nacelle”, como na época era costume, porém usaremos a sua
denominação mais conhecida na atualidade - nota do autor espiritual.
65 Phileas Fogg e Robur são personagens de Júlio Veme.
66 Chamado na época de “guide-rope” - nota do autor espiritual.

164 - Gilson T. Freire / Adamastor


salto enorme! Olhe! Uma floresta!.. É Fontainebleau, veja suas grandes árvores!
Machuron está dizendo que o outro lado do bosque, protegido do vento, é um ótimo
lugar para pousar... Vamos lá!.. A válvula já está totalmente aberta... A âncora...
Pronto! Sãos e salvos! Veja como o enorme balão se revolve no solo, parece um
grande pássaro abatido, revoltado por lhe determos o vôo... Puxa, sinto-me como se
chegasse de outro planeta!.. Não se pode imaginar o que é passear nas nuvens! Não
quero mais fazer outra coisa, nasci para voar! Um esporte muito caro, é verdade,
mas que importa se tenho dinheiro? Meu pai deixou-me muito mais do que
necessito para viver, não preciso trabalhar para sustentar- me, então por que não
voar?.. Sabe, ocorre-me uma idéia... Machuron faz, para o seu tio, ascensões em
balão para espetáculos públicos... vou oferecer-me para fazer este trabalho em seu
lugar sem nada pedir em troca... simplesmente voar, e de graça!.. Minha tia já ficou
sabendo do fato e foi logo escrever à minha mãe, acusando-me de relapso por
abandonar os estudos para me tornar exibicionista circense. Claro que isso a encheu
de desgosto, agravando-lhe o estado da alma, que já não anda muito bem depois da
morte de meu pai... Meus primos agora deram para me criticar e acusam-me de
extravagante. Que me importa se é isso que quero?... Vou mudar-me, vou tratar de
viver sozinho, fazendo o que gosto... Já posso dominar completamente um balão e
sou capaz de peregrinar sozinho pelas estradas de vento... já subi incontáveis vezes
em muitos lugares, mais de trinta ascensões... Um dia, em Péronne...
Repentinamente sua tela mental se enegreceu e o desespero tomou conta de sua
alma. E ele continuou, antes que pudéssemos intervir:
— Ouço trovões... relâmpagos cortam os céus ao meu lado... meu Deus, a
escuridão me envolve, estou perdido no meio de uma grande tempestade... sinto a
morte...
Seu peito arfava e sua mente atirava-se num torvelinho de imagens terrificantes.
Detivemos sem demora a sua entrada na vivência do drama que vertia de seu
pretérito de loucas aventuras, sugerindo-lhe que dormisse e não se lembrasse disso
agora. Com a destra sobre seus olhos, impusemos- lhe, por força magnética, pesado
sono restaurador, sugerindo-lhe novos sonhos com os momentos felizes. E o vimos
flutuando no caminho de brisa faceira, num minúsculo e transparente balão, feito
bolha de sabão, rolando por sobre extenso bosque mosqueado de matizes outonais.
Ainda em estado de sono hipnótico, pedimos que nos descrevesse a cena evocada
no sonho:
— Este é meu balão preferido, o menor de todos que já se construiu.
O único que tem um nome, chama-se “Le Brésil”. Vejam como tudo

ícaro Redimido • 165


nele é pequeno. Andei notando como os balões são feitos de materiais pesados. “É
por segurança”, me dizem, “não se pode arriscar nada em um balão”, justificam,
mas isso apresenta uma grande dificuldade no transporte ao fim da viagem, pois o
conjunto todo pesa muito mais de duzentos quilos. Reconheço que não sou forte o
bastante para ficar içando tanto peso. É um absurdo! Por isso empenhei-me na idéia
de diminuir em tudo um pouco, tornando o balonismo mais prático e mais fácil de
ser manejado, especialmente para os mais fracos como eu, não posso negar. O Sr.
Lachambre e seu sobrinho me criticaram e não acreditavam em meus cálculos,
diziam que o balão ia adernar, sem estabilidade. E consentiram em fazê-lo para mim
somente porque estavam certos de que não subiria. E vejam como se eleva e como
seu vôo é estável! E tem somente pouco mais de cem metros cúbicos de volume,
cerca de um quinto da cubagem de um balão ordinário. É de seda japonesa, muito
mais leve do que a chinesa, que normalmente se usa. Troquei a pesada âncora por
um arpão de três quilos e fiz a rede de cordas muito finas, porém de igual
resistência. Encomendei uma barquilha muito menor e mais leve. E para lhe dar
maior estabilidade, aumentei os cabos de sustentação e a corda-guia. Pronto! E aí
estou no menor dos balões, tirando também vantagem de meu pequeno peso. E não
está adernando ou girando como previram! Ainda assim dizem que os fortes ventos
o levarão com facilidade. Pois para quê preciso enfrentar os ventos fortes? Basta
subir em dias calmos. E ainda posso usar somente três ou cinco quilos de lastro.
Fantástico, não? Andam falando que posso até transportá- lo em uma mala, o que
naturalmente não é verdade, mas no final da viagem tenho todas as comodidades a
meu favor. Já fiz muitas e felizes ascensões com ele sem nenhum acidente. Só não
posso levar amigos, mas voar é coisa que se faz sozinho mesmo...
Adelaide, endereçando-me olhares de admiração, interrogava-se da realidade de
tudo aquilo. Aproveitando o intervalo em que ele se entregou a novo sono
profundo, disse-lhe:
— Realmente este foi o seu primeiro grande feito na navegação aérea que se
iniciava. Insistindo na substituição dos materiais, começava sua missão entre os
homens, Adelaide. Continuemos mais um pouco, aproveitando o seu entusiasmo e
a sua entrega, confiante, à nossa indução hipnótica.
Voltando ao comando de seu transe vivencial, pedimos-lhe que nos contasse
mais sobre suas intenções:
— Estou com uma secreta vontade que me domina o pensamento

166 - Gilson T. Freire / Adamastor


noite e dia... Sei que parece loucura, mas quero construir um dirigível! Ninguém fez
mais dirigíveis nessa cidade desde os fracassos de Giffard. Não deu certo porque ele
usou uma máquina a vapor, pesada e perigosa, para conduzir seu dirigível. Se ele
tivesse um motor menor teria conseguido... Estou pensando, o motor de meu triciclo
é leve e muito eficaz, um espetáculo da engenharia moderna. Três cavalos e meio de
força, mas vibra muito, iria despedaçar toda a estrutura de um balão, me dizem.
Falam que é loucura colocar um motor a explosão sob um balão de hidrogênio
altamente inflamável... mas penso em colocar as válvulas de gás bem atrás no balão,
não deve haver perigo. O Sr. Lachambre me disse que se eu quero suicidar-me é
melhor sentar-me em um barril de pólvora e atear fogo, pois é menos dispendioso.
Tenho que convencê-lo a tecer para mim o balão fusiforme, para que ele corte o ar...
Vai ser um balão fechado... insiste ele que não poderei mantê-lo em forma pela
contínua dilatação e contração do gás, nas subidas e descidas do aparelho, mas não
vou voar alto, somente uns cem metros e não mais... não haverá problemas...
Após pequeno intervalo, voltando a caminhar nas lembranças, continuou:
— Tive a idéia de acoplar dois cilindros do motor, em oposição, um sobre o
outro, a fim de que seus solavancos se anulem, alimentados por um único
carburador e uma só biela. Informaram-me que na rua do Coliseu havia um exímio
mecânico que podia fazer isso para mim... e ele conseguiu. Colocamos o motor de
volta no triciclo e funciona que é uma maravilha! Outro dia conduzi François até o
Bosque de Boulogne e içamos o triciclo em um forte galho de uma grande árvore.
Funcionei a máquina no ar e montei nela. Não senti nenhuma trepidação, nem fui
atirado longe... Com ele segui a distância uma corrida de carros e vi que poderia
ganhar facilmente mas não quis forçar o motor, pois tenho melhor destino para ele.
Sei que é arriscado, mas a idéia de colocá-lo para impulsionar um balão com
uma hélice não me sai da cabeça... Poderei morrer, é verdade, mas me sinto com
coragem para isso. Falam de um tal retorno de chamas, que pode explodir o
reservatório de combustível, mas este perigo existe mesmo em terra, com qualquer
automóvel e ninguém anda por aí com esse temor... Vou fazer funcionar o motor na
mais completa escuridão para examinar até onde ele pode projetar fagulhas para
cima, a fim de verificar a que distância segura deve ficar do balão... Depois quero
ainda suspender o motor em um balão convencional, fixado em cordas, acioná-

(caro Redimido -167


Io e sair de perto. Tenho certeza de que nada vai acontecer...vou conseguir... Se
Giffard e Tissandier tivessem um motor desse teriam feito o mesmo...
Depois de breve intervalo, ele prosseguiu em vivo entusiasmo:
— Suprimi o silencioso e dobrei o cano de descarga para baixo... Vejam! As
fagulhas ficaram grandes e se dirigem para o solo, nenhuma sobe... Vai dar certo!
Um pouco cansado, nosso amigo adormecia. Era hora de pararmos. Efetuamos
operações magnéticas em núcleos nervosos de seu cérebro, bloqueando-lhe por ora
as atividades oníricas, como o momento exigia, a fim de não forçar mais seu
aparelho mental, permitindo-lhe a recomposição das forças psíquicas.
Adelaide admirava-se, denotando o arroubo de imprudência de nosso amigo,
revelando já uma predisposição suicida, mostrando não se importar muito com o
perigo da aventura.
— Ele dá mostras de que não parou por aqui, Adamastor. Embora arriscada, a
empreitada o seduzia. Ouvi mesmo dizer destas aventuras na Terra. Terá ele de
fato voado em um dirigível movido por um motor?
— Realmente nosso amigo realizou esse surpreendente feito, Adelaide. Ele
subiu mesmo em um balão dirigível, conduzido por um motor a explosão. Foi o
primeiro a utilizar um propulsor deste tipo na navegação aérea, a princípio com
muitos insucessos e dificuldades, colocando em risco sua vida, mas ele conseguiu,
como veremos, e em muitas ocasiões. Movido pela ânsia do êxito e pelos aplausos
dos parisienses, ele se atirou a essa louca aventura, como pude ver nos relatos que
trago em mãos. Temos sob nossos olhos um pequeno homem, porém um intrépido
personagem, alguém que se embrenhou nessa exótica e arrojada tarefa na Terra. A
humanidade exigia de fato que se conquistasse a aeronavegação e sabemos que
muitos foram enviados à crosta com esta missão. Eis um deles, Adelaide. Estamos
agora envolvidos nessa história. Ele participou efetivamente do início da conquista
aérea e se dispôs a colocar em prática suas frágeis e arrojadas invenções de voar.
Ficou, por isso, famoso no mundo dos homens, venerado como um herói em sua
terra natal, embora no Plano Espiritual não seja reconhecido como um espírito de
destacada relevância. Este, Adelaide, é Alberto Santos Dumont.

168 - Gilson I Freire / Adamastor


Dias Gloriosos

“Não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e
nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já
receberam a sua recompensa. ”
Jesus - Mateus, 6:2

A lberto paulatinamente tornava-se mais amigo, mais próximo.


Embora bastante sóbrio, estampava na face sempre amargurada
feições mais temas, e seu olhar, deixando de fixar-se no vazio,
já parecia interagir com o ambiente, compartilhando um pouco da nova
realidade que o envolvia. As poucas sessões de dinâmica revivencial já
haviam surtido efeito, embora não mantivesse ainda na memória somática
a real lembrança de seu passado e a própria identidade permanecesse
oculta a si mesmo. Como verificávamos, trazia a alma maculada por
grandes dores, adornadas, não obstante, por soberbas glórias, e uma
grande vaidade deixava-se exalar em meio à dissimulada modéstia.
Pedia com simplicidade e muito pouco, porém, como um demente, esperava
sempre que o atendêssemos, realizando por ele o que a si mesmo competia fazer.
— Inconscientemente ele já se dá conta de que foi alguém de importância
entre os homens — ponderei com Adelaide. — Convém tolerarmos sua pequena
arrogância, exercitando-nos na humildade de servir com desinteresse,
considerando-o um enfermo. O orgulho é chaga crônica de difícil remissão em
nossa alma e aqueles que retornam da Terra engrandecidos por títulos eméritos,
muitas vezes imerecidos, não se acomodam na realidade com facilidade.
Comumente, em nosso trabalho

ícaro Redimido -169


assistencial, deparamo-nos com estes espíritos enlouquecidos e jactanciosos que,
mesmo completamente desvalidos e carentes de todos os cuidados, continuam a
exigir serventias especiais de seus socorristas, ordenando que seus caprichos
sejam atendidos, movidos pelas antigas e doentias disposições de arrogância.
Aprendemos a atendê-los, dispostos ao comedimento da própria presunção, até
onde não nos fira o bom senso, aguardando que abandonem o insano pendor,
enxergando a penúria espiritual em que se encontram.
Alberto mostrava grande habilidade manual e realizava com destreza pequenas
tarefas de manipulação que eu lhe solicitava. Muito metódico, sempre o via
organizando as coisas ao seu redor, obstinadamente, manifestando certo desagrado
quando as encontrava fora de seu lugar. Folheava livros, detendo-se longamente
em gravuras do início do século XX. Ainda não podia manter um diálogo por
muito tempo, mas voltou a querer saber onde se encontrava. E, para surpresa
nossa, por vezes chamava novamente pelos sobrinhos Jorge e Henrique.
Costumava presenciá-lo despertando à noite, como uma criança assustada,
quando me chamava para ajudá-lo e, por insistência minha, relatava seus sonhos,
sempre povoados de balões, alguns pavorosos em meio a tempestades e outros
muito curiosos onde se encontrava em meio a multidões, em estado de completa
nudez. Sonhos que, sem dúvida, refletiam cenas de seu pretérito e do estado de
seus dramas íntimos, que oportunamente analisaria com Adelaide.
Outro fato curioso que me despertou a atenção foi uma estranha e insistente
solicitação, a quantos dele se aproximassem, para que lhe arrumassem penas de
gansos, as maiores possíveis, pois intencionava confeccionar duas grandes asas,
alegando que voaria. Insistia com veemência no inusitado pedido, por mais que o
dissimulássemos, tentando fazê-lo esquecer a exótica tarefa. Dizia, com arrebatado
entusiasmo, que seria o mais sensacional de todos os inventos do homem e
requisitava a presença de Chapet, seu exímio mecânico, de sua oficina de Saint-
Cyr, para que o ajudasse na composição do motor. Esquecendo, às vezes, a insólita
rogativa, perguntava ainda pelos livros para encadernar e se apreciáramos os
últimos que havia feito.
Constatava, de fato, que em seus últimos anos, quando certamente já dava ares
de leve demência, dedicou-se a estudar as asas dos pássaros e despendeu largo
tempo confeccionando uma complicada asa, com a qual desejava empreender o
vôo individual. Certamente tal desvario era motivado por alguma grande frustração
que ainda não compreendíamos.

170 - Gilson T. Freire / Adamastor


E confirmava também que, quando internado no sanatório de Valmont, em uma de
suas crises de neurastenia, executara por muito tempo a tarefa de encadernação de
livros, a qual realizava com esmero. Sinal de que sua memória dava ares de aflorar-
se no consciente atual, alegrando- nos pelos resultados já alcançados. No entanto,
revivia ainda os momentos finais de sua vida passada, quando não se achava em
perfeito equilíbrio mental e a possibilidade de estacionar-se em um processo
psicótico continuava viável. Era hora de retomarmos às recapitulações dirigidas, na
tentativa de ajudá-lo a recobrar a memória.
Continuamos assim nossa incursão em seu pretérito, pesquisando ainda os seus
momentos de glórias, nutrindo-o com as lembranças dos sucessos a fim de
modificar-lhe a disposição francamente destrutiva das forças mentais. Mais uma
vez, posicionado para a sessão terapêutica, junto com Adelaide, acionei novos
ruídos na seqüência que Eurídice nos sugerira, a fim de situá-lo em outros instantes
prazerosos de sua vida. Ouvíamos aplausos e ovações de uma pequena multidão em
meio ao ruído de um motor rugitando surdo e contínuo.
Em sua tela mental desenhou-se imediatamente uma bizarra máquina voadora,
onde o víamos montado em um pequeno cesto de vime, rompendo o espaço,
contornando uma esguia estrutura de ferro que de imediato identificamos como a
Torre Eiffel. Um enorme balão fusiforme sustinha por finos fios de aço uma quilha
triangular de madeira, contendo um motor a explosão que fazia girar uma delicada
hélice de seda, esticada em uma armação metálica. Em meios a cabos e alavancas,
nosso amigo manobrava com volúpia seu estranho e frágil aparelho. Podíamos
ouvir o rangido da estrutura de madeira e alumínio vergando-se sob o vento e
sentíamos a sua ânsia, somada ao delírio de prazer, ao se ver ovacionado pelo povo
reunido ao pé e no alto da Torre. Agitados chapéus, lenços alvos e sombrinhas de
rendas frenéticas lhe acenavam, nutrindo-o do mais vivo entusiasmo. Uma
apoteótica imagem que, sem dúvida, ficou impregnada em sua tela mnemônica para
sempre. Abaixo notávamos a tira prateada do Sena, que rapidamente ficava para
trás, refletindo o sol do início da tarde. O vento soprava-lhe forte na face, jogando
seu aparelho para estibordo, forçando-o a dobrar o leme a fim de completar a volta
da torre. Agora o rio novamente aparecia e nosso amigo, transparecendo alívio,
mirava em frente, sem olhar para baixo.
— Essa é a parte mais arriscada da viagem, devo manter uma distância segura
da Torre. Meu medo era de que o vento me atirasse contra ela, mas felizmente ele
sopra do oeste, afastando-me dela. Agora vou enfrentá-

ícaro Redimido -171


que passar pelo marco de chegada era o suficiente para satisfazer as exigências da
prova. Esta foi a origem das polêmicas e controvérsias que se estenderam por
muitas semanas. Mas a maioria dos juizes finalmente votou a favor de nosso irmão,
forçados, é verdade, pela opinião insistente do povo de Paris, simpático ao “Petit
Santô”, como carinhosamente o chamavam. Foi um feito surpreendente para a
época, uma façanha apregoada nas primeiras páginas dos jornais do mundo todo.
Com ele o homem vencia a dirigibilidade dos balões, libertando-se do domínio dos
ventos. Era rompida a primeira barreira. Nosso pequeno amigo conquistou grande
fama. Recebeu telegramas e cumprimentos de eminentes personalidades da época,
como Thomas Edson, Marconi, presidentes e príncipes de nações. O povo
brasileiro, nesta época, viu-se orgulhosamente projetado no cenário mundial através
de seu pequeno e intrépido representante e o governo apressou-se a homenageá-lo,
enviando-lhe a igual quantia em dinheiro, junto com uma medalha de ouro,
marcando o grande feito. Nosso pequeno jovem vestiu-se das maiores glórias
possíveis ao homem encarnado. Eis a altura onde ele se dignou alçar seu vôo na
atmosfera das vaidades humanas, Adelaide!
— Não sei se ganhei! Meus nervos não agüentam outra tentativa... —
continuou Alberto, transparecendo indignação com a demora da decisão.
— Poderia, mas não vou concorrer novamente e já preparei a minha carta de
demissão do Aeroclube. Parecem deixar claro que não desejam que eu ganhe o
prêmio, pois passaram a exigir que o candidato, e no caso eu sou o único,
convocasse a comissão julgadora, por carta, com 24h de antecedência, sem que se
possa prever as condições atmosféricas na hora da prova. Uma temeridade, pois
uma vez requisitada a comissão, não se pode deixar de tentar a empreitada...
Denotando sentir-se ultrajado pela situação que feria sua dignidade, continuou:
— Cento e vinte e nove mil francos! Mas, já decidi, não quero esse dinheiro,
não vou deixar que pensem que fiz isso pelo vil metal. Não preciso! Vou distribuí-
lo entre os meus mecânicos e os pobres de Paris. Assim saberão que não estou aqui
pelo dinheiro, mas pelo prazer de vencer a prova. Já me aborreci bastante com a
diretoria do Aeroclube... Mudaram as regras do concurso somente para dificultar-
me. Certamente não querem que um estrangeiro vença a prova... Com o dirigível
nQ 6 tentei antes sem sucesso... Tentei outras duas vezes com o nQ 5... Uma vez
tive que descer nos jardins do Trocadero para consertar uma corda do leme que se
soltara... No dia 8 de agosto, no mesmo Trocadero...

ícaro Redimido -173


Meu Deus, estou caindo!.. Ouço uma grande explosão... Os céus me acudam! Vou
morrer...
— Vamos detê-lo antes que se impregne do pavor que vivência — disse à
Adelaide, apressando-me a inibir-lhe a excruciante recordação e induzindo-o
novamente ao sono profundo. — Os momentos traumáticos se instalam na alma
com maior sofreguidão do que os instantes de alegria, Adelaide, e se apressam em
vir à tona na primeira oportunidade que se lhes suscite a lembrança. São presenças
indesejáveis em nossa consciência, que deseja alijá-los de suas paisagens
interiores. Somos feitos para a alegria e, por isso, a dor e o mal que vivenciamos
são insistentes feridas do passado em permanente exercício de reparação. Nosso
amigo traz a alma povoada de arrojadas aventuras aéreas, que ocuparam toda a sua
encarnação, como vejo nos relatos que trago. Ele viveu alegrias e glórias, mas
também momentos de intensos perigos e decepções que lhe dilaceraram o espírito,
impregnando-o de enormes traumas. Seu balão nfi 5 caiu sobre os telhados da
cidade, o mais grave acidente que sofreu, dentre muitos que lhe sucederam. Esteve
realmente perto da morte
Após breve intervalo, em que o deixamos recompor as forças mentais,
retornamos, chamando-o novamente aos momentos de glórias. Ouvíamos agora
longos apitos de uma grande embarcação. Era manhã e ele estava no convés de um
navio. Estampidos de canhões se precipitavam dos montes que pontilhavam, ainda
indecisos, no horizonte enevoado. Muitos barcos se aproximavam do
transatlântico, ruidosos e festivos. Caía uma garoa fria... Gritos, acenos, bandas,
foguetes, novas aclamações!
— Estou aportando em minha terra. Vejam o que estão fazendo! Prepararam
uma grande festa para minha chegada. Tenho que conter minha vontade de chorar,
um aeronauta não pode demonstrar descontrole das emoções... Veja quanta gente
me espera no cais! Quantas embarcações vindo ao meu encontro! Nem a chuva os
impediu de virem... não sei o que dizer, essas recepções me deixam embaraçado...
Povo muito bom e que memória tem! Já se passaram dois anos que ganhei o
prêmio Deustch, mas eles o comemoram como se fosse hoje... Aqui é mesmo a
minha nação...
— Que dia é hoje, Alberto?
— 7 de Setembro de 1903. Como esse povo me admira! Não preciso sentir-me
mais um estrangeiro aqui. Eu vivo este dilema, como se não tivesse minha própria
Pátria. Na França me sinto um pária, um renegado, um estranho imigrante de país
de somenos importância, que ninguém conhece. Aqui me vejo como alguém de
fora, sentindo falta dos bulevares

174 • Gilson T. Freire/Adamastor


da grande Paris, seus modernos automóveis, o povo elegante e belo. Mas são
frios, distantes, estranham se lhes tocamos o ombro... mas hoje vejo que esta é
minha terra. Gente simples e hospitaleira! Não poderei esquecer esta demonstração
de veneração à minha humilde pessoa...
Imagens que realmente impressionavam perfilavam em sua tela mental. Um
luxuoso galeão, movido por dezenas de remadores fardados, o conduzia agora, com
pompas, para o cais. Bandas tocavam marchas militares... uma carruagem ornada
de orquídeas o carregava triunfante em meio a uma multidão em delírio... revoada
de pombos, confetes, foguetes, flores atiradas das janelas... discursos e
homenagens, trovas e versos desfilavam em sua mente como imagens inesquecíveis
de um dia de glórias.
Ouvíamos nesse momento uma modinha que cantava as glórias do rei dos ares:
“A Europa curvou-se ante o Brasil... Brilhou lá no céu mais uma estrela... E
apareceu Santos Dumont... Salve, Brasil, terra dourada, a mais falada no mundo
inteiro... Guarda teus filhos, lá nessa altura, mostra a bravura de um brasileiro!..”.
Alberto, dominado por vivas emoções, arrancadas dos recessos da alma, não pôde
conter as lágrimas silentes que afloravam abundantes nos olhos cerrados.
— Não imaginava que ele tivesse sido tão querido e idolatrado pelo povo —
admirou-se Adelaide diante das singulares imagens.
— Sem dúvida, sua alma deixou-se embevecer da fama. Efêmera alegria que,
ao alimentar as vaidades e exaltar o orgulho do indivíduo, pode imprimir doentio
rumo às forças do psiquismo, se não forem bem conduzidas. Por isso Jesus nos
aconselhou precaver-nos das glórias dos homens. Alberto tornou-se uma
celebridade em sua terra. Por onde ia era recebido com louvores e aclamações.
Governadores lhe homenageavam, discursos e ditirambos exaltavam seus feitos. A
voz do povo, falando de seus próprios anseios, sentia-se representar na pessoa deste
pequeno e intrépido aeronauta, exaltando seu orgulho no cortejo das nações. Festas
de fatuidades, ornadas de vaidades humanas e muito perigosas para um espírito em
trânsito na Terra, Adelaide... perigo maior do que arrojar-se nas nuvens e enfrentar
os ventos...
— O irritante é que esse povo bom, mas simplório, reclama insistentemente
por eu não ter trazido o meu dirigível, mostrando-se mesmo contrafeito—
prosseguiu o nosso amigo, evocando as dificuldades do momento. — Não
compreendem que eu não poderia fazer isso sem a

ícaro Redimido -175


máquina de produzir hidrogênio, os meus mecânicos, o hangar onde guardá-lo...
mas não se conformam... e como gostam de discursar! Não me chamem para fazer
discurso por favor... um público me espreitando para que eu fale algo é muito pior
do que desafiar as alturas...

176 - Gilson T. Freire / Adamastor


Momentos Históricos

“Todas as suas obras eles fazem a fim de serem vistos pelos homens. ”
Jesus - Mateus, 23:5

A lberto enlevava-se nas recordações dos seus dias de triunfos,


alimentando-se das alegrias vividas, deixando-se envaidecer pelos
efêmeros valores da notoriedade como se toda a ventura do
espírito se reduzisse em sobrepor-se aos irmãos de jornada. Vã pretensão!
Toda conquista, se não é embasada em contingentes morais, termina em
fatuidades e desenganos, deixando a alma dorida e vacante de suas reais
necessidades. As poderosas forças que nos constituem o espírito precisam
do equilíbrio para a elaboração do bem-estar e da saúde plena,
necessitando, para isso, afastarem-se tanto da orgulhosa satisfação de ser
mais do que os outros, quanto da destruição dos próprios e sagrados
patrimônios pessoais. Alberto ainda transitava entre a autodestrutividade
e a exaltada satisfação do orgulho, posições inadequadas para a solução
definitiva das profundas e pungentes desarmonias de sua alma. Era
imprescindível buscar-lhe a justa medida, para que se estabilizasse na
verdadeira saúde. O momento, porém, obrigava-nos a preencher-lhe o
vazio íntimo com as reservas do passado, repletas de inadequadas e
perigosas vaidades. Este não era, entretanto, o fim, mas apenas o meio
para se atingir o verdadeiro desiderato, a harmonia necessária à vida
mental saudável. Depois trabalharíamos para que a altanaria, identificada
na etiologia de suas dores, não produzisse novos danos. Por ora o caminho
era este: seguir os passos por onde trilhara, para depois refazer seus
equilíbrios perdidos.

ícaro Redimido - 177


Os momentos de glórias vividos por nosso impávido amigo pareciam não
terminar. Retomando o caminho das vivências, vimo-lo agora em pomposa
solenidade, recebendo uma medalha de honra ao mérito, que adivinhávamos estar
sendo entregue pelo governo francês.
Após novas e rápidas sucessões de imagens vivas, ei-lo então de pé, em cima de
uma barquilha, observando o povo que se amontoava ao seu redor.
— Ele está agora realizando um de seus habituais passeios aéreos e parece
deliciar-se, apreciando do alto de seu inusitado posto os franceses que acorrem
para admirá-lo de perto — mostrei à Adelaide, chamando- lhe a atenção para sua
atitude francamente soberba, em arriscado exibicionismo.
Um largo sorriso de orgulhosa satisfação se esboçava em seus lábios finos. Sua
pequena estatura, ornada de altivez, se projetava, elevando-se sobre os míseros
humanos adesos ao solo, prisioneiros da gravidade. Ele se fazia, seguramente,
naquele instante, o maior de todos os homens. Percebíamos seus pensamentos
transpirando o incontido desejo de que, diante de tão esplêndido e glorioso
momento, o átimo do tempo detivesse seu inexorável fluxo, deificando-o para
sempre.
— Desci aqui para tomar um café, em minha residência... Av. Champs Elysées,
esquina com a rua Washington... No futuro os homens se conduzirão assim... eu
sou o futuro! — dizia, exultando-se de triunfante deleite.
Acomodando-se em sua estrambótica máquina voadora, dava a partida e
gritava:
— Larguem tudo!
E puxava com delicadeza o cabo corrediço sob a quilha, a fim de inclinar a proa
do balão, forçando-o a subir. Suavemente a nave adernava e se elevava,
enovelando no ar suave bailado, encantando de admiração o povo que o
ovacionava com estridores de entusiasmo. Apoteótica satisfação lhe vestia a alma
altaneira, ao dirigir o olhar para baixo, a fim de apreciar a insignificância daqueles
que lhe acenavam em efusiva excitação, agitando lenços e cartolas.
— O “Baladeuse”, n°9, o mais querido de meus balões! Os franceses o
apelidaram assim... O menor e mais prático dos meus dirigíveis! Atingi a perfeição
de minhas máquinas aéreas! Fácil de manobrar, com ele faço passeios diários sem
precisar repor a mínima quantidade de gás... Somente uma única vez... eu voava
sobre o Sena... Meu Deus, um retorno de chama no motor!.. Está pegando fogo!..
Vou explodir!..

178 - Gilson T. Freire / Adamastor


Mesmo em meio ao susto e sem se deixar dominar pelo pânico, vimos nosso
jovem apagando o fogo do motor com admirável ousadia e sangue frio, abafando-o
com seu chapéu. Calmamente retomava o comando de sua aeronave, como se nada
tivesse acontecido, tratando de terminar o seu passeio. Sequer tive tempo de detê-lo
na vivência do terrificante momento, pois com habilidade e coragem impôs rápido
controle à situação, impedindo que a experiência se fixasse em traumática emoção.
— Salvo pelo meu chapéu... — sorria, demonstrando o mais perfeito
autocontrole.
— Compreendemos agora porque ele sempre era visto com este desabado e
deselegante chapéu, Adelaide! Ele o manteve como uma espécie de amuleto da
sorte por havê-lo salvo de terrível morte — comentei reservadamente com minha
pupila.
—Além de lhe ocultar as orelhas de abano, possivelmente, Adamastor
— completou a estudante, demonstrando acertado senso de observação.
— É verdade, Adelaide. E vemos que nosso amigo atravessou grave incidente
sem o menor constrangimento. O maior perigo, no entanto, que ele afrontou, sem o
saber, não estava em arriscar-se nestas alturas em tão frágil máquina ou enfrentar
um retorno de chamas no motor, mas em se deixar inflar pela exaltada propulsão
psíquica que lhe enfatuava a alma de grave arrogância. O espírito traz consigo
poderosas forças sustendo a personalidade e que necessitam de equilíbrio...
Tiros disparados por arma de fogo nos assustaram, interrompendo- nos as
confabulações. Logo víamos Alberto flutuando em seu dirigível, com revólver em
punho, e compreendíamos de imediato que ele realizava uma salva de tiros. Abaixo
uma extensa multidão se reunia em torno do que se nos apresentava ser um desfile
militar, pela presença de grande número de soldados cavalgando em pelotões
ordenados. Sobressaitados, todos miravam para cima, admirando o insólito
acontecimento.
— Não se assustem! É apenas a grande parada militar de 14 de julho em
Longchamps. Fui convidado para participar com o meu dirigível, demonstrando o
que será a mais formidável arma de guerra — dizia, fortemente entusiasmado e um
pouco temeroso de que os disparos desequilibrassem seu aparelho. — O presidente
Loubet, todos os seus ministros e autoridades de outros países estão presentes. Não
poderia deixar de vir...
O balão se aproximava agora da aglomeração. Muitos corriam, cavalos
assustados empinavam-se, revolvendo-se a turba em tumultuosa agitação,
apreciando a nave que adejava em baixa altitude. Vendo soldados e povos

ícaro Redimido - 179


alvoroçados diante do admirável aparelho, Alberto sorria intimamente, exibindo
nítida satisfação e não pôde deixar de exprimir com clareza a exaltação doentia do
orgulho que lhe movia a alma:
— Como daqui do alto todos são insignificantes! Generais, autoridades de
Estado, os homens mais eminentes desta nação, e os mais importantes do mundo, o
fabuloso exército francês, todos aqui prosternados aos meus pés. Poderia abater
com facilidade até mesmo o presidente Loubet se o desejasse... Fabuloso, não?...
Reservaram-me um local para pousar, mas acho melhor não descer. Causarei muito
tumulto, com tanta gente reunida... Vejam como se agitam...
Deixando a capital do planeta postada de admiração, moveu o contrapeso do
dirigível inclinando a sua proa e, imprimindo aceleração ao motor, subiu,
entregando os parisienses às suas parcas homenagens como a lhes dizer que ele não
fazia parte daquele mundo rasteiro, procumbido e aglutinado ao solo. Já havia
realizado o bastante para sobrelevar-se e assegurar a sua inquestionável
supremacia.
Segurando agora uma carta, dizia em vivo entusiasmo:
— Vejam! O General André respondeu à minha carta. O governo francês
aceitou minha oferta...
— O que você ofereceu, meu amigo?
— A minha frota de dirigíveis, em caso de guerra. Exceto contra as Américas,
é claro, uma hipótese muito improvável. Agora estão compreendendo a
importância de meus dirigíveis! O auxílio que prestarão a um exército será
inigualável! Poderão facilmente atirar cargas de dinamites sobre os inimigos. O
único problema será manter-se fora do alcance de suas balas... E qual poderá ser a
mais segura defesa contra os submarinos, senão um dirigível? Facilmente os
localizarão e poderão atirar explosivos sobre eles. Esta será a mais formidável
arma do futuro, as nações se curvarão ao seu poderio destruidor nas guerras...
Enviaram oficiais à minha oficina em Neuilly para observar meus inventos...
Pensam em construir, com minha ajuda, um grande dirigível, para ser usado em
caso de uma guerra...
Contudo, do vivo entusiasmo o víamos passar subitamente ao intenso pesar.
Sua tela mental se enegrecia novamente de eflúvios negativos e ele prosseguia,
com dificuldade:
— A guerra... não devia ter feito isso... Estão usando mesmo os dirigíveis e os
aeroplanos nesta guerra sem sentido... Dói-me pensar que cidades estão sendo
bombardeadas... inocentes civis morrendo... É inegável, tenho participação nisso...
mas eu queria apenas chamar a

180 ■ Gilson T. Freire/Adamastor


atenção do mundo para a importância da navegação aérea... não pensava que seria
tão sério... Meu Deus, o que eu fiz!..
Contivemos sua vivência, identificando importante passado de culpas incidindo
nas distonias do presente, que teríamos que convocar à realidade, porém em outro
momento. Era imperioso torná-lo ao caminho das glórias.
Acionando nosso aparelho sonoro, emitimos o próximo som na seqüência
sugerida. Um forte estardalhaço de um motor muito mais intenso que o rutilar
compassado que movia seus leves dirigíveis o conduzia agora a outra expressiva
vivência, interrompendo a angustiosa lembrança da guerra. Mais uma exótica
máquina aérea se desenhava em sua tela mental. Agora, porém, ele deslizava nas
asas de um avião de seda...
— Estou voando! Vejam, estou voando!
A imagem que se delineava em sua mente se esmaecia, desfeita em forte
emoção. Manipulando suas energias psíquicas, acalmamo-lo, sustentando-lhe a
revivência que se refazia paulatinamente, deixando-nos entrever em detalhes o
inusitado momento: um enorme papagaio feito de tecido encerado e bambu, agitado
por barulhenta hélice, freme em um instante de indecisão. Ele, agora o maior dos
homens, de pé, dentro da mesma barquilha roubada de seus balões, segura
complicados cabos e, sem hesitar, puxa e fixa o acelerador depois de acenar para
que a multidão se afastasse do grande pássaro. Uma indescritível ansiedade
afugenta todo receio e um exaltado autocontrole frena toda e qualquer hesitação. A
obstinação cega em vencer a gravidade! Voar! Fazer algo que ninguém jamais fez!
Ficar na História! Um sabor de celebridade misturado à audácia aflora de seus
sentimentos em suspense. Uma satisfação orgulhosa de se ver enfim um grande
homem. A nave branca ergue seu bico com suavidade, balança suavemente e se
eleva, enfim, como um imenso pato selvagem em fuga para a primavera. O galeio
do motor, o vento soprando forte em sua face. Sente que as rodas já não tocam
mais o solo. Ele paira no ar! A respiração se detém. A alma se enleva! Curva-se
ligeiramente a fim de equilibrar o veículo que ameaça adernar, descrevendo um
gracioso arco para a esquerda. Num movimento brusco, o aparelho inclina-se. Ele
apaga o motor e com leve solavanco sente resvalar-se no chão. Um mero minuto no
tempo dos homens, um marco na História! É a glória de muitos séculos que se
realiza. Sessenta metros no ar, três metros acima do solo.
Alberto chorava de emoção. Reviver a apoteose do seu primeiro vôo do mais-
pesado-do-que-o-ar era a exaltação máxima de seu ego. Atingira,

ícaro Redimido -181


no ápice da deificação de um ser humano, o ponto mais elevado de sua vida.
— Sou imortal, os deuses me saúdam! Todos me aclamam. Mas, por que eu?
Sentindo que suas combalidas forças íntimas recrudesciam, incendiadas por
ardente alacridade, revestia a alma, ainda denegrida pelas dores, com o esplendor de
uma conquista soberba, tresmalhando uma curiosa mistura de humildade e altivez.
A inédita façanha impregnara-o de exaltados sentimentos de elação, a máxima
glorificação do ego, porém a sensação de pequenez, impressa na alma ferida,
continuava a se manifestar com marcada expressividade. As frustrações de uma
personalidade apoucada e carente e os encargos assumidos com um passado de
culpa tingiam de amarguras o feito memorável, roubando-lhe o merecido júbilo. E
adivinhávamos que as reais alegrias que lhe bafejavam a alma naquele momento
não eram somente as da vitória sobre o impossível ou dos louros da glória que
orgulhosamente ostentava na fronte, mas do alívio que o cumprimento de uma
missão lhe entretecia no imo da consciência. Um débito para com a humanidade era
resgatado, devolvendo-lhe a liberdade do viver.
Novamente os jornais do mundo destacaram-no em primeira página. O homem
vencia enfim o espaço e escapava da prisão que a gravidade lhe impunha. Nova era
se iniciava para a humanidade. As distâncias se estreitariam, as culturas
encontrariam união. Um momento memorável na história da civilização!
— E estamos vendo este dia, Adelaide, revivendo-o com detalhes — disse à
minha amiga, um tanto emocionado pelo feito histórico que se desdobrava aos
nossos olhos.
— Ganhei o prêmio Archeacon! — exclamou Alberto, denotando ainda forte
estado de emoção. — 23 de Outubro de 1906, o dia mais importante de minha vida!
Uns dizem que foi um grande pulo, mas senti que planava e poderia ter continuado
meu vôo se não tivesse perdido a direção. Temi pelas pessoas que corriam
demasiado perto do aeroplano...
O povo se precipitava ao seu redor. Erguiam-no em triunfo. Ele escapulia e
voltava para examinar o aparelho. Sua curiosidade era enorme em averiguar as
avarias. Eufórico e ainda com a respiração em suspense, continuou:
— Apenas uma das rodas torcida, dois balaústres quebrados e o bambu do leme
partido. Nada a dever à fortuna dos deuses! Não posso dominá- lo muito bem, mas
vou tentar melhorar isso. A inclinação de suas asas

182 - Gilson T. Freire / Adamastor


tem que ser controlada, pois apenas o galeio do meu corpo não é capaz de mantê-lo
na horizontal... Preciso de mais velocidade, vou reduzir o peso de compensação
para aumentá-la...
Um pequeno homem envolvido em tamanha empreitada! O que a princípio nos
parecia uma simples aventura de alguém muito endinheirado, desejando apenas
divertir-se com a vida por não ter o que fazer, tornava- se de fato uma missão.
Contudo, aduzia que se somente o empenho em realizar tão importante tarefa em
benefício do progresso humano o movia nessas ousadas aventuras, ele não teria se
atirado no fosso de dores tão expressivas como as em que se encontrava. Outras
forças psíquicas estariam atuando em sua personalidade. A necessidade de
satisfazer as vaidades mundanas costuma ser o verdadeiro escopo que alimenta tais
empreendimentos, e nosso amigo as apresentava com clareza. Sua apoucada
compleição física certamente carecia de compensar-se através de outros arroubos
de valorização, mas questionava-me se somente isso justificaria sua coragem,
arrostando com tamanha temeridade os tremendos riscos de vida. Pressentia que
outras motivações silenciosas se combinavam em sua personalidade para conduzi-
lo à superação de si mesmo e dos limites humanos. Mas não era a hora de atender à
minha curiosidade.
Sua tela mental voltava a ser percorrida por rápida seqüência de outras imagens
do passado, detendo-me as conjecturas. Novamente no ar em seu papagaio de seda.
Outra conquista! Perfazia agora duzentos e vinte metros, oito metros de altura!
Outra vez ovações e homenagens! Um jantar de pompas! Depois, ao lado de um
pedestal, com uma placa comemorativa, onde se lia o seu nome, seu espírito se
enfatuava de admirável e perigosa ufania. Um discurso improvisado e sofrido
diante de autoridades eminentes, prova mais difícil do que voar... Aos poucos,
porém, seu panorama mental tingia-se de penumbras e ele continuava:
— Devo esquecer estes momentos... Querem convencer-me de que não fui o
primeiro a voar... Depois que me alcei aos ares na vista de todos, vieram dizer-me
que muito tempo antes de mim, já faziam o que eu fiz.... às escondidas... Não posso
compreender... Roubaram-me o título... Deus não quer que meu humilde nome
conste entre os pioneiros da aviação...
Uma vez mais a dissonância do pessimismo e da autodestrutividade retornavam,
conduzindo-o ao embalo enfermiço das forças psíquicas deterioradas. A
negatividade imperava doentiamente sobre todos os valores íntimos, amealhados no
esforço de auto-realização. Cada afluxo de energia de emotividade positiva induzia,
por reflexo, à vivência do insucesso, da

ícaro Redimido -183


negação e da dificuldade, situando-o outra vez na hipodinamia das forças mentais
em depleção.
— Sua alma traz uma ferida aberta, Adelaide, corroída por energia psíquica de
natureza degradante. Vemo-lo oscilando, na verdade, entre duas polaridades de uma
mesma potência que assume direcionamentos opostos, segundo a vontade do
espírito, quase sempre inconsciente. Movimentos que, quando muito acentuados,
manifestam-se com súbitas alternâncias entre a euforia e a depressão,
caracterizando patologia conhecida da psiquiatria terrena. Observamos com clareza
estas pulsões em ação em Alberto, nestas vivências. Sempre que sua alma se
posiciona na euforia do sucesso, a instabilidade vigente dessas forças o conduz de
volta ao pessimismo e à destrutividade, subordinando-o a um movimento qual o de
um pêndulo que sempre retorna, em seu balanço, ao oposto de sua posição inicial.
Frenando suas desditas, induzimo-lo a outras visões prazerosas, alimentando-o
de novas alegrias. E o vimos preparando-se para novo vôo, em um diminuto avião,
semelhante a uma grande libélula de asas transparentes.
— É a “Demoiselle”. Meu novo aeroplano, a mais perfeita de todas as minhas
invenções, a mais querida. O menor de todos, porém o mais ágil, o mais bonito e
fácil de manobrar. Com ele posso subir e pousar em qualquer lugar plano — dizia,
orgulhando-se de sua criação. — Com a “Baladeuse” fui muito feliz, mas com a
“Demoiselle” superei todos os limites... Vôo todas as tardes com ela... Consegui um
motor potente de apenas quarenta quilos, com dois cilindros opostos. Anzani afirma
que sua lubrificação ficou deficiente e que ele não resistirá por muito tempo, mas
seu equilíbrio é perfeito, a trepidação é quase imperceptível... Meus amigos
admiram minha coragem voando neste aparelho que julgam muito frágil. Dizem
que é loucura, que estou querendo me matar... Mas, um aeroplano precisa de leveza
e não de solidez.... uma queda lhe seria tão grave quanto para o robusto Blériot ou o
enorme Voisin... Agora de “Petit Santô” deram para me chamar de “Petit Fou”67 ,
mas não me importo, sinto-me feliz em minha pequena libélula...
Admirados, notávamos a sua grande ousadia, vendo-o assentado em seu
pequeno avião, apoiado em uma mera tira de tecido encerado, servindo- lhe de
banco, sob frágeis asas de seda, sustentadas por bambus...
— Minha família está completa... O balão, o dirigível, o biplano e o
monoplano... Sou o único aeronauta que, não somente sabe conduzir,

67 Pequeno louco, em francês.

184 - Gilson T. Freire / Adamastor


mas que construiu todos os tipos de aparelhos aéreos possíveis — locupletava o
amigo, orgulhoso de seus exóticos filhos.
— Máquinas! Apenas máquinas! Veja só, Adelaide! Nosso irmão cavou um
poço de solidão ao seu redor, por isso sentimos sua alma tão faminta de
afetividade—sussurrei-lhe aos ouvidos, a fim de não despertá- lo do transe
revivencial.
— Olhem! Voei de Saint-Cyr até o Buc... oito quilômetros em linha reta...
apenas cinco minutos!.. Noventa e seis quilômetros por hora!.. Incrível! Um recorde
imbatível! O potente monoplano de Blériot, considerado muito veloz, não ultrapassa
sessenta quilômetros horários... Minha “Demoiselle” é o mais perfeito dos
aeroplanos!.. Foi o mais elogiado na exposição do Grand Palais...
Silenciosos, Adelaide e eu ouvíamos o amigo exaltando orgulhosamente a sua
criação, notando o rompante de jactância vertendo-lhe perigosamente da alma.
Embora guardasse méritos em sua composição, o feito, seguramente, não era fruto
único de sua genialidade. Sabemos que equipes de operosos espíritos assediam os
homens em tarefas como essas, apoiando- lhes a instabilidade da idéia criativa em
prol do progresso humano. Alberto seguramente mostrava estar apenas executando
o que lhe ditavam essas magnas entidades que o apoiavam, mas convinha deter
nossas observações, permitindo-lhe revigorar-se nos sucessos que acreditava seus,
sem lhe roubar os merecidos lauréis, possibilitando-lhe embevecer-se, ainda que
momentaneamente, nas parcas alegrias que suas lembranças ainda lhe podiam
ofertar.
— Muitos vêm de longe para observar minha “Libellule” —continuou,
presunçoso, relatando suas peripécias. — Querem conhecer o pequeno aeroplano
que voa tão bem. Todos o elogiam e muitos se oferecem para comprar o projeto,
mas por que venderia? Nunca quis comercializar nenhum dos meus inventos;
sempre cedi meus planos, sem nada receber, mesmo que insistissem em pagar-me...
Nunca fiz questão de haurir lucros com eles. Tudo fiz e faço aos olhos de todos...
— É verdade, Adelaide, ele cedia suas criações sem nenhum impedimento,
sentindo-se feliz em ser copiado. Precisamos compreender esse aparente ímpeto de
desprendimento de nosso amigo, descobrindo as reais motivações de tão inédita
conduta. De qualquer modo, ele está se gabando diante de seus rivais, os norte-
americanos, que ocultaram suas descobertas a fim de explorar benefícios financeiros
com elas.
Contudo, novamente seu panorama mental se enegrecia de inopino e nosso
amigo prosseguiu, denotando a decadência do panorama íntimo, estendendo as
mãos que fremiam:

ícaro Redimido - 185


— Sinto-me um velho e acabo de completar apenas 36 anos de idade... Vejam
como estou trêmulo! Que vergonha! Um aeronauta! A insegurança está tomando
conta de minha alma, devo confessar. Em meu último vôo, atacou-me um medo
terrível de perder o controle... Não posso mais voar., o pânico me invade. Triste
realidade! Não tenho forças para vencer isso... Passei pelos piores acidentes, saindo
deles sem temer novos insucessos e atirando-me novamente nos mesmos riscos.
Quando meu n° 5 explodiu nos telhados do Trocadero, na mesma noite estava
rabiscando os projetos do n° 6. . . Todos admiram meu grande sangue-frio, minha
coragem, meu perfeito autocontrole... agora não tenho mais como ocultar minha
covardia... um simples passeio em minha Demoiselle, que antes me deleitava, agora
me dá fortes palpitações, tremores, suores frios, um grande abafamento que não me
deixa respirar... um enorme medo me domina, sinto que vou morrer... Já avisei
meus amigos, vou deixar a carreira... um profundo pesar, mas não tenho outro
caminho... se continuar, tenho certeza de que morrerei... Dia 18 de setembro de
1909, meu último vôo... estou tremendo, não sei se vou conseguir...
Interrompia-lhe a vivência que se consumia sob forte emoção, reconduzindo-o
às estradas felizes do pretérito. Suas forças psíquicas denotavam de fato precoce
desgaste, denunciando o estabelecimento de grave neurastenia. Sua curiosa conduta,
entretanto, fazendo questão de avisar aos amigos que não mais voaria, suscitava-nos
a idéia de alguém que, devendo obrigações à sociedade, pedia-lhe permissão para
encerrar seu compromisso. Fato que nos induzia a ver naquela arrojada e intrépida
existência o cumprimento de uma missão.
Outras cenas seguiam-se em sua tela mental, aflorando em profusão os nítidos
quadros do passado ainda vivo. Novas viagens, novas invenções, recepções
calorosas permeadas, contudo, por uma grande solidão e uma crescente angústia.
Um homem solitário, introspectivo, de poucos amigos. E, ao pé de um morro, atrás
de soberbo bambuzal, vimo-lo conduzindo a construção de uma casa, dando ordens
para os pedreiros, conferindo projetos, transparecendo, afinal, grande entusiasmo.
Cena interrompida de imediato por uma nova aclamação, onde o vimos sob
aplausos, ao lado de um monumento que mostrava uma majestosa figura em bronze
de um homem alado. Ele lia um discurso com visível nervosismo.
— Conte-nos, Alberto, o que se passa agora? Que monumento é este?
— A mais linda das estátuas! O escultor Colin a fez representando o lendário
ícaro com suas asas abertas, preparando-se para o vôo. Uma homenagem do
Aeroclube francês à minha humilde pessoa pelo meu pioneirismo na navegação
aérea. Um preito que não poderei esquecer...

186 - Gilson T. Freire / Adamastor


Ter uma estátua ainda em vida é uma honra que poucos mereceram, sei disso... Mas
não posso compreender. Deveria estar feliz, porém não consigo... Sinto-me abatido,
sem forças... tenho os nervos muito abalados, não sei o que se passa comigo... Meu
Deus, ler este discurso está sendo um grande esforço!... Todos podem ver como
estou tremendo exageradamente... Não consigo segurar o papel... que vergonha! Se
pudesse, me escondia da vista de todos... Que aflição! Um homem que controlou
todas as emoções, que enfrentou os piores acidentes possíveis com admirável
sangue-frio, sucumbe diante de um discurso... Não consigo ler mais... Falta-me a
voz...
Alberto chorava e, com a voz embargada, mal conseguia falar, fremido por
enorme ansiedade. Acalmamo-lo com energias apaziguadoras e ele continuou:
— Um aeronauta tem a obrigação de mostrar o mais perfeito autodomínio...
que vexame... Estão encerrando a solenidade, vendo o meu precário estado nervoso
que julgam motivado por excessiva emoção diante da homenagem, mas não é isso,
sinto-me sem controle, estou realmente muito doente...
— Embora se sentisse vexado pelo episódio, esta foi uma das últimas alegrias
de sua vida, Adelaide. Um grave quadro depressivo se instalava insidiosamente, e
não mais o abandonou até à morte. Vamos detê-lo, pois, doravante, irá reviver
somente dores, solidão, amarguras. Uma sensação de fracasso o acompanhou de
modo inexplicável, apesar de todos os surpreendentes êxitos. Os acidentes aéreos e,
sobretudo, a utilização do avião na guerra, culminaram por minar-lhe as forças
psíquicas remanescentes do imenso esforço despendido na execução de tarefas tão
arriscadas.
Alberto, porém, como víamos em nossos relatos, não mais se esqueceu desse
monumento e se gabava apresentando fotografias de seu imponente ícaro,
venerando com orgulho a imagem fortemente fixada na memória. Encomendou
inclusive uma cópia em tamanho real, fazendo dela um panteão para o próprio
túmulo.
Era preciso encerrar o proveitoso dia. Sua memória fora abastecida com os fatos
mais marcantes e felizes de sua vida e aguardaríamos uma franca melhoria do seu
estado. Tornei a induzi-lo ao sono repara dor, completando minhas elucubrações
com Adelaide:
— Agora compreendemos por que ele caiu em tamanha desventura.
— Nosso amigo galgou elevado patamar de projeção no mundo dos homens,
de onde se precipitou em profundo fosso de amarguras. Somente as almas
santificadas podem voar alto sem que o fogo da fatuidade lhes

ícaro Redimido -187


abrase as asas, atirando-as nos abismos das quedas humanas. Por isso nossos
heróis, na verdade, são movidos pelo sabor das glórias mundanas e aqueles que
realmente atuam motivados por santificados interesses passam despercebidos, sem
deixar nomes no rol da notoriedade.

188 - Gilson T. Freire/Adamastor


Valiosa Ajuda

“Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal ”


Paulo - Romanos, 12:10

A lberto, alimentado com as mais agradáveis reminiscências do


seu passado, dava ares de franca recuperação. Não recobrara a
lembrança plena de si mesmo, mas, dando-se conta
inconscientemente de que participara de fatos relevantes na vida e se
projetara acima dos homens comuns, fez-se altivo e, como um demente,
reconhecia-se alguém de importância.
Passou a pedir-me com insistência que lhe trouxesse os seus ternos listrados
com a camisa de colarinho alto, pois não achava conveniente que o vissem com
aqueles uniformes brancos e singelos de nossa colônia. E confiava-me ainda a
tarefa de lhe buscar as botas com saltos altos, dizendo que se não as encontrasse
poderia encomendar novas na rua “Turbigo”, onde havia um artesão que sempre as
confeccionava muito bem feitas para ele. Com o uso de tais artifícios que o faziam
parecer mais alto, denotava claramente que a pequenez física lhe era intolerável
castigo ao espírito altaneiro.
O costume que conservou, de se ver notado com ares de respeito e admiração
pelas pessoas, manifestava-se, imprimindo-lhe certa arrogância oculta em máscara
de reserva e timidez. Continuava a conversar muito pouco e em nossos pequenos
passeios se dizia receoso, temendo que alguém o reconhecesse e o chamasse para
alguma homenagem. Sentia-se cansado e, em definitivo, não iria atender a qualquer
pedido de cerimônia, adiantava-se, preocupado. Freqüentemente pedia para dizer
que não estava, se alguém o procurasse, alegando que desejava ser esquecido, pois
tinha os nervos em frangalhos e carecia sobretudo de paz. Voltou a perguntar

ícaro Redimido -189


pelo sobrinho, inquietando-se pela sua demora e questionava freqüentemente se o
conflito constitucionalista já havia terminado.
—Já soltaram o pobre do Antônio Prado? É preciso pedir a intervenção do
presidente, ele é um bom homem e não tomou parte na revolução, tenho certeza —
dizia, dando ares de que sua memória, paulatinamente, retornava.
Passou a atender quando o chamávamos de Alberto, sem demonstrar a evasiva
atitude de quem não se dá conta do próprio nome. Permanecia, no entanto,
profundamente amargurado e solitário. Chorava, por vezes, sem que atentasse para
os motivos de sua penúria, e não demonstrava disposição de compartilhar comigo
os seus sentimentos, talvez por não saber compreendê-los. Freqüentemente saía do
quarto, perscrutando o céu em busca de aeroplanos que dizia ouvir distante e,
preocupado, questionava se de fato o porto de Santos havia sido bombardeado.
Comparecia diante de estranhos como se todos já o conhecessem, não se
interessando em apresentar-se, embora ele não soubesse explicar quem era. Por
vezes voltava a conversar em francês para terminar fazendo perguntas desconexas,
sem se dar conta do que estava falando. Uma vez me disse que precisava ir embora,
pois queria preparar o seu dirigível n° 10 para uma jornada que faria ao Pólo Norte.
Seria a mais espetacular das viagens e ele se tornaria o primeiro homem a pisar o
local, explicava, enchendo-se de vivo entusiasmo, dando mostra de uma orgulhosa
demência nas raias da megalomania, onde buscava ainda, seguramente, forma de
projetar sua personalidade, frustrada em seus doentios anseios.
Em raros momentos de lucidez, perguntava-me sobre uma carta que escrevera,
pedindo para que terminassem a absurda guerra entre patrícios, questionando-me se
lera nos jornais informações de que alguém tinha lhe dado crédito, pois não
acreditava que fosse ouvido. Pedia notícias sobre a atuação da força
constitucionalista e se o coronel Euclides mantivera a promessa de não usar os
bombardeios aéreos, revelando as reais inquietações que o motivavam nos últimos
dias de vida.
Embora não soubesse onde se encontrava, identificava a colônia como uma
estação de repouso e elogiava o sossego do lugar, admirando-se do fato de não
ouvir os latidos noturnos dos cães e o canto matinal do galo, que tanto o
incomodavam nas noites insones. E alegrava-se por estar dormindo bem, sem ao
menos a necessidade de vendar os olhos para conseguir relaxar-se.
Ainda não restabelecera, contudo, o acesso pleno à auto-identidade.
Necessitávamos projetá-lo em uma vivência mais expressiva, recorrendo

190 - Gilson T. Freire/Adamastor


à psicometria ou propiciando-lhe relações com pessoas com quem compartilhara
experiências sentimentais na vida, a fim de que as energias da afetividade o
trouxessem à realidade do presente. Infelizmente os laços afetivos que ainda
entretinha na Terra eram insólitos. Seus pais, como já haviam informado nossos
técnicos, achavam-se encarnados. Seu irmão Henrique, desencarnado há alguns
anos, poderia ser convocado pois compartilhavam grande afetividade, porém
achava-se em preparo reencarnatório urgente e não convinha desviar-lhe a atenção
no momento. Outros parentes, como a irmã Virgínia, ainda não detinham equilíbrio
emocional para uma eficaz ajuda. Os técnicos de nossa colônia, contudo,
identificaram a possibilidade de socorro em uma humilde e valorosa pessoa, capaz
de auxiliá-lo com proveito: Eulália, amorosa criatura ainda encarnada. Servira-lhe
na vida como caseira, porém dedicara-lhe desvelado carinho maternal, sendo ainda
portadora de valiosos dotes mediúnicos, que muito nos poderiam servir.
Convidamos então nosso amigo para breve passeio, rumando para a crosta, onde
encontraríamos o socorro de que, mais uma vez, ele necessitava. Os dois mundos, o
espiritual e o físico, estão peremptoriamente entrelaçados e mutuamente se
dependem para a condução do espírito em evolução. Se as forças espirituais são
imprescindíveis para a construção dos destinos do mundo, as energias da
afetividade do encarnado são, por sua vez, recursos indispensáveis ao soerguimento
de almas em desespero no Plano do Espírito. O amor permanece como o liame que
aproxima os dois mundos, sustentando o ser em qualquer posição em que se
encontre. Sem essa força, verdadeiramente o cimento da vida, a evolução não se
consolidaria, por mais que a inteligência nos confira conhecimentos que nos façam
compreender as razões de nossos males. “Amai-vos uns aos outros como vos amei”,
redunda a palavra do Mestre com a sapiência que atravessa os séculos e a certeza de
que este é o suporte seguro para a alma que trafega nos caminhos da evolução. E
Eulália era capaz de amar. E isso bastava.
Partimos, acompanhados de Adelaide, rumo à sua antiga residência no mundo
físico. Tínhamos informações de que, ali, ele vivera anos de muita paz,
impregnando o ambiente de suas melhores irradiações mentais, o que nos facilitaria
os benefícios da psicometria. Sua alma se deixaria alimentar com as próprias
energias carnais retidas nos objetos de uso pessoal, despertando-o para o exercício
pleno da consciência. Uma pequena e bela residência, construída em estilo suíço,
surgia, incrustada num

ícaro Redimido - 191


morro, em uma cidade serrana do interior. A madrugada era fria e silenciosa,
favorecendo-nos o trabalho. Deparamo-nos, no entanto, ao adentrar a casa, com um
ambiente fora dos padrões que conhecíamos. Um único salão compunha todo o seu
interior, dividido em ambientes abertos, adaptados às diferentes finalidades de uma
residência. Móveis singelos, moldados aos cantos, uma lareira ao fundo, um
tablado superior onde se adivinhava o dormitório e escrivaninhas de trabalho
tornavam a casa muito mais parecida com um refinado estúdio do que com um lar
propriamente. E sabíamos que se tratara de um projeto próprio de Alberto, visando
atender às necessidades de um homem solitário e pensador. Alguns objetos de
adorno, livros e um retrato de mulher ainda descansavam em seus lugares. A casa
havia sido doada pelos familiares à municipalidade com a finalidade de se construir
uma escola, porém conservaram-na fechada com o propósito de estabelecer ali um
museu em sua homenagem.
Alberto, ao se ver em contato com o antigo ambiente em que vivera, sofreu leve
choque vibratório que o fez desfalecer. Acomodamo-lo no pavimento superior,
onde um móvel em forma de cômoda ainda retinha suas energias pessoais,
denotando ter-lhe servido de cama, embora nos estranhasse o fato. Envolvendo-o
em um nicho fluídico entretecido com suas próprias emanações, remanescentes da
vida carnal que ali ainda se demoravam, demandei à procura de Eulália, enquanto
Adelaide velava pelo seu sono.
Identifiquei-a em singelo casebre, num ambiente de penúria material. Eulália,
uma senhora de idade, semidesprendida do corpo físico que repousava, não
mostrou dificuldades em minha presença, reconhecendo prontamente minhas
intenções e recebendo-me com amabilidade. Expus- lhe os motivos de minha visita
e a necessidade de sua ajuda para o socorro de um antigo amigo. Ao pronunciar-lhe
o nome, disse espantada:
— O Sr. Santos Dumont! Sempre o trago na lembrança, bom homem. Eu
trabalhava em sua casa e o tinha por verdadeiro filho, vendo-o tão só na vida
apesar de pessoa muito famosa. Ele sempre teve muita paciência com meus
meninos e, apesar de bastante calado, tratava-nos com muito carinho. Ouvi dizer
que o pobre se matou, mas isso parece ser um segredo por aqui, cochichado apenas
nos ouvidos e eu mesma não sei os motivos disso. É verdade?
— É verdade, Eulália, e ele não se encontra muito bem. Precisamos de sua
ajuda para que se recupere. Queremos que você ore com ele.
— Mas já faz muitos anos que ele se foi e não está bem até hoje?
— Sim, minha amiga, ele vem lutando com dificuldades para se

792 - Gilson T. Freire / Adamastor


recuperar e até o momento não se reequilibrou, depois de sua morte traumática.
A modesta senhora, dando mostras de grande desenvoltura e lucidez no
desprendimento propiciado pelo sono físico, mostrava-se bastante consciente de
sua situação e da realidade do Mundo Espiritual, denotando possuir nobres
conquistas no campo do espírito e valoroso equilíbrio moral a despeito da
penuriosa situação material em que se encontrava.
Adentramos a antiga residência de nosso amigo, onde ele ainda se demorava em
estado de sono profundo em companhia de Adelaide. Despertamo-lo a fim de que
pudesse confabular com Eulália e, de forma proveitosa, haurisse benefícios no
contato com sua afetividade. Acordando com dificuldade e denotando certo
assombro ao mirar pela primeira vez uma figura familiar, Alberto dava ares de que
a conhecia. Enquanto procurava organizar os próprios pensamentos a fim de situar
sua mente no lugar devido, aguardava que ela lhe dirigisse a palavra.
— Sr. Dumont, que alegria revê-lo, há muito tempo não o vejo em sua casa. E
como o Sr. está remoçado! Que boa aparência!... Sentimos sua falta, eu e meus
filhos.
Alberto, olhando em derredor, parecia identificar a residência, pois dava mostra
de achar-se à vontade. A penumbra do salão não lhe permitia notar os seus
detalhes, porém os objetos irradiavam sobre ele as próprias energias acumuladas ao
longo dos anos em que ali vivera, nutrindo-o de confortável sensação. Sentia-se
familiarizado com a senhora que lhe dirigia a atenção de forma tão afável. Com os
olhos ainda fugidios e denotando certa confusão no pensamento, perguntou-lhe;
— Eu sei que a conheço, minha senhora, mas não me lembro bem de onde e,
desculpe-me, não consigo recordar o seu nome.
— Sou Eulália, Sr. Dumont, como pôde esquecer-se de mim? Estes amigos me
pedem para que eu ore pelo Sr. Recordo-me de que sempre me pedia que rezasse a
Mãe Maria pela sua recuperação e eu nunca me esqueci de suplicar a ela pelo seu
bem.
— Penso que não sei rezar... já tentei, mas não consigo, faltam-me as
palavras... gostaria mesmo de poder...
— Vamos rezar juntos, Sr. Dumont, tenho certeza de que o Sr. sabe, pois sua
boa mãe deve ter lhe ensinado.
Eulália, dando-lhe as mãos, proferiu singela, porém sentida prece. Seu amoroso
coração se iluminou de intensa luz que caía sobre Alberto, balsamizando-lhe a alma
exaurida. O ambiente em penumbra invadiu-se de reconfortante e suave luz.
Acompanhávamos-lhe a rogativa, enlevados

ícaro Redimido - 193


pelo desejo sincero de algo realizar em prol de nosso desventurado amigo. E, para
nossa surpresa, Alberto, abrindo desmesuradamente os olhos, dirigiu-se à amiga:
— Eulália! O que você está fazendo aqui?
— Vim visitá-lo, Sr. Dumont. O Sr. está bem?
— Sinto-me meio confuso, mas estou bem, Eulália. E estes amigos? Parece-me
que os conheço também.
— Sim, claro que os conhece, são médicos do espaço que estão tratando do Sr.
— Espaço?..
A um sinal nosso, Eulália se deteve, compreendendo que não devia explicar-lhe
ainda o que se passara com ele e sua condição atual.
— Não se preocupe Sr. Dumont, o Sr. está em muito boas mãos. Confie neles.
— Tenho fome, Eulália, você pode preparar-me um café?
— Vou fazer um café como o Sr. sempre gosta, Sr. Dumont. E já sei, sem broa
e sem pamonha, não se preocupe, não me esqueci de que não lhe agradam...
— Acredito que estava em uma clínica de tratamento, mas não me recordo
muito bem, Eulália... Em Biarritz, creio, onde o Antônio foi buscar-me. Eu lhe
havia mandado uma carta pedindo ajuda, sentia que ia morrer, tinha desejos de
matar-me... graças a Deus meu desespero passou... mas não sei como voltei...
Muitas pessoas me procuraram enquanto estive fora? Há cartas para mim? Você
tem notícia do Antônio? Ele continua exilado em Paris? E a revolução? Há muito
não leio jornais. Recordo-me de que as notícias me colocavam em estado de
angústia intolerável e proibiram-me de receber qualquer informação.
— Alberto, acalme-se. Você precisa descansar. — afiancei-lhe, induzindo-o a
voltar a deitar-se. — Guarde suas perguntas e procure não se preocupar com essas
coisas por ora. Acredite, tudo está bem no momento. A revolução já terminou e a
ordem impera no país. Seu amigo está bem. Você precisa dormir para se recuperar.
Sem dar-se conta ainda da realidade espiritual em que se projetara, Alberto
reconhecia-se em sua casa e enfim vencera a barreira do bloqueio mnemônico,
recuperando a própria identidade. A lesão mais grave que portava até o momento
iniciava seu fim. Doravante, com facilidade, sua memória se recuperaria
complemente. Aplicamos-lhe passes de reconforto e, agradecidos, oramos a Deus
pelos resultados alcançados, pedindo por Eulália e sua vida de dificuldades. Nosso
companheiro prontamente

194 - Gilson T. Freire / Adamastor


adormecia, sentindo-se reconfortado pela presença da amiga e o reconhecimento de
estar no próprio lar.
— Não há obstáculos para o amor em qualquer de suas expressões
verdadeiras, Adelaide. Eis a força mais poderosa que sustenta o universo!
— considerei, admirado, à minha companheira. — É verdade que as vivências
lhe soergueram as energias combalidas e lhe faltava pouco para tornar à
autoconsciência, mas este pouco não lhe poderíamos proporcionar em tão curto
tempo. Somente Eulália, com sua inusitada capacidade de amar, irradiando
verdadeiro ensejo do bem, pôde conseguir, com a eficiência do sentimento
purificado, o que demandaríamos maior esforço para atingir.
Conduzi Eulália à sua residência, reconhecido pela sua valiosa ajuda,
prometendo solicitar providências para as necessidades materiais que lhe
vergastavam a alma, esperando contar com sua colaboração, caso ainda fosse
necessário.
O dia chegou com sua luz baça, trazendo uma cerração gelada, e Alberto
despertou, incomodado com o frio que adentrava. Procurou por uma campainha
que chamava por Eulália, sem encontrá-la, pois havia sido retirada. Inconformado,
afirmava que ele mesmo a havia instalado e não admitia que mexessem em sua
casa na sua ausência, dando mostras de que se reintegrara em seu consciente
presente, embora ainda não desse conta da própria morte. Desejava acender a
lareira e tomar um bom café, porém, desviando sua atenção, suscitamos-lhe nos
mostrar os pertences e enfeites pessoais que adornavam a sua residência, a fim de
abastecê-lo com as vibrações aí depositadas. Com pouco entusiasmo e sem
compreender muito bem a necessidade do pedido, tecia comentários em torno de
algumas fotos e medalhas, estranhando o fato de não conseguir pegá-las. Ao tocar
os objetos, no entanto, notávamos que a sua psicosfera se nutria das energias
pessoais neles retidas, reconfortando-o. Com alegria observávamos que se
recordava com precisão de tudo, referindo-se a detalhes, de forma natural, sem
encontrar-se em transe hipnótico. Estava de fato curado da amnésia. O retrato de
uma mulher nos chamava a atenção e o questionamos para que nos informasse de
quem se tratava.
— Luiza, uma jovem que conheci em minha visita ao Chile e que se dizia
minha admiradora. A princípio senti-me entusiasmado pela sua beleza e trocamos
algumas cartas, mas confesso que com o passar dos dias esqueci-me dela.
Mantenho o seu retrato aqui, desde que queimei a fotografia de Aída, para que as
pessoas não se incomodem tanto pelo fato de me encontrar solteiro até hoje. Assim
desistem dessas inoportunas

ícaro Redimido -195


perguntas que me irritam. Sinto que não nasci para o casamento... Tive algumas
paixões, é verdade, mas sem nenhum entusiasmo suficiente para meter-me no
matrimônio.
— Não vamos então importuná-lo também com essas perguntas, Alberto.
Devemos partir. Você precisa continuar seu tratamento em nossa colônia, pois não
se encontra ainda curado dos nervos e se ficar aqui poderá ter recaídas, meu
amigo.
— Não quero voltar para Biarritz. Sinto-me perseguido e muito infeliz
lá!
— Não vamos voltar para a França, Alberto. Não se lembra de que você está
hospedado comigo?
— Sim, é verdade, recordo-me vagamente que estava em sua companhia.
Mas sinto a mente confusa, não consigo me lembrar com exatidão dos últimos
dias...
Devíamos retornar prontamente a nossa colônia, antes que ele se colocasse
mais aparvalhado quando se visse na impossibilidade de executar várias de suas
tarefas rotineiras. A fim de não assustá-lo com a volitação que empreenderíamos,
desequilibrando seu delicado estado íntimo, adormecemo-lo por indução
hipnótica, transportando-o inconsciente.

196 - Gilson T. Freire /Adamastor


Fisiopatologia da
Arrogância

“Qualquer, pois, que a si mesmo se exaltar, será humilhado. ” Jesus - Mateus,


23:12

F inalmente Alberto recuperara a lembrança de sua individualidade,


reintegrando-se ao autoconhecimento, embora não detivesse ainda
ciência da própria desencarnação, acreditando-se vivo na matéria,
em uma clínica de repouso. O risco do estabelecimento de uma grave
psicose estava definitivamente afastado e iniciava-se o soerguimento do
processo depressivo em que ainda se encontrava. Adentrávamos diferente
fase de abordagem no auxílio terapêutico, mediante as necessidades
prementes que seu reequilíbrio exigia. Doravante deveríamos ajudá-lo a
entrar em contato com sua nova realidade, a vencer as frustrações hauridas
no exercício da vida, superando em definitivo as marcas deletérias do
passado e a inibir os perigosos patamares altanados com que ainda nutria
doentiamente o personalismo.
Seu psiquismo fixava-se agora nos últimos anos de sua vida na carne, embora
seu perispírito continuasse a revelar a aparência física de um jovem. Entretanto, à
medida que os dias se passavam, acelerado processo de envelhecimento lhe
dominava a forma, fenômeno conhecido em nosso mundo, propiciado pela maior
plasticidade das linhas morfossomáticas perispirituais que se apressam a refletir o
perfil psíquico predominante no ser.
O desvalimento ainda se imiscuía em seu caráter e a insegurança semeava
incertezas em seu íntimo, conquanto o personalismo, doente de

ícaro Redimido -197


contida empáfia, o projetasse, por instantes, em limiar de perigosas arrogâncias. A
revivência dos dias gloriosos o ajudou a restaurar a memória, porém não lhe trouxe
equilíbrio ao dinamismo psíquico que passou a alternar momentos de euforia com
períodos de melancolia, caracterizando conhecido quadro da psiquiatria terrena,
onde a exaltação do entusiasmo e a apatia oscilam, intercalando-se em rápidas
sucessões68. Em todos os instantes, porém, insidiosa timidez insistia em mascarar-
lhe o caráter de aparente subserviência.
Nos momentos de enlevo apresentava-se como “o inventor”, gabando- se de
seus grandes feitos e se mostrava contrafeito ao perceber que as pessoas não o
conheciam, por não saberem quem era “Santos Dumont”. Nos instantes
deconstrição, revelando a contrafação da humildade, dizia- se esquecido do povo e
que de nada adiantara ter feito o que fez. Mostrando decepção e denotando que
mágoas importantes ainda enodoavam sua alma, comentava que depois que o
presidente da República dispensou seus conselhos, com respeito aos avanços da
aeronáutica no país, sentiu que sua opinião não mais importava e a relevância que
a nação dera ao seu nome havia terminado. Paris, apesar de ter erguido dois
monumentos em sua homenagem, também já não o reconhecia mais. Era agora um
esquecido. Sua vida não tinha mais a menor importância e já não o ouviam. A carta
que enviara ao embaixador brasileiro na Liga das Nações, sugerindo a interdição
do avião como arma de guerra, fora completamente ignorada. Caçoavam dele
quando dizia que não havia feito o avião para a guerra. O sobrinho desaparecera e
nem mesmo os amigos o procuravam mais. “Até o Antônio sumiu!” — exclamava.
E a tudo isso reputava o fato de ter sido roubado da glória do primeiro vôo mais-
pesado-do-que- o-ar. Arriscara a vida inutilmente, lamentava, pois seu nome havia
sido preterido pelos irmãos Wright. “Isso não era justo” — considerava,
profundamente aborrecido e inconformado com suas desditas e com o mundo que
parecia rejeitá-lo. Não havia mais lugar para ele na vida. Nos momentos de
intensos espasmos depressivos, chamava-me, em prantos, confessando que tinha
desejos de matar-se, pois não valia mais a pena viver.
— Se não continuarmos nosso exercício terapêutico, em breve assistiremos
ao estabelecimento de nova e profunda contração psíquica, semelhante a que o
levou ao suicídio, seguida de precoce e completo envelhecimento, perturbando-lhe
a saúde e a felicidade no plano espiritual, Adelaide — explicava à estudante. — As
doenças do psiquismo humano,

68 Atualmente denominado transtorno bipolar do humor.

198 - Gilson T. Freire/Adamastor


como a depressão, apresentam-se no Mundo Espiritual com muito mais pungência,
pois aqui as forças psíquicas desequilibradas não se encontram acomodadas ao
abafamento que a carne lhes impõe, nem atenuadas pelo olvido que normalmente
oculta ao espírito a realidade de sua indigência. Por isso podemos identificar
perfeitamente em Alberto a continuidade da mesma grave depressão que o
motivou nos últimos anos de vida na carne, levando-o, inclusive, ao auto-
aniquilamento. As forças remanescentes da autocatálise ainda se reverberam em
sua intimidade, minando-lhe a resistência psíquica, momentaneamente melhorada
pela revivência das vanglórias de seu pretérito e pela reconquista da auto-
identidade.
— Os valores do orgulho se misturaram então com a identificação das próprias
penúrias?
— Isso mesmo, Adelaide. O restabelecimento da memória, embora salutar e
necessário, trouxe também como conseqüência a conscientização da inópia íntima,
assomando suas dores e aprofundando assim suas angústias. Uma chaga de
fatuidade se mantém aberta em sua alma e ainda precisa de nosso auxílio.
Ulceração alimentada por perigoso orgulho ferido e marcada intolerância às
frustrações vividas, sentimentos que lhe mantêm a instabilidade das forças
psíquicas. Temos que ajudá-lo a reencontrar o equilíbrio na moderação destas
energias e a cicatrizar as feridas do amor-próprio que traz do passado, para que o
bem-estar espiritual se incorpore em definitivo ao seu panorama mental. Nossa
tática de trabalho, doravante, consiste em despertá-lo para a realidade do mundo
após a morte e depois propiciar-lhe uma confabulação consigo mesmo, diante dos
sucessos e fracassos da experiência carnal, permitindo- lhe a colheita das preciosas
lições que a vida lhe ofertou para a conquista da saúde espiritual. Se necessário,
empreenderemos novos mergulhos em passado ainda mais remoto, procurando
entrever as reais justificativas para as dores que a existência carnal lhe impôs e as
verdadeiras motivações das tarefas que cumprira na Terra.
— Como é delicado o processo de reestruturação de uma alma em
desequilíbrio! Ainda temos muito trabalho pela frente, quero crer...
— Sim, Adelaide, ainda estamos em meio à cirurgia psíquica de nosso amigo.
Cortamos-lhe os tecidos da alma e vemos agora a necessidade de aprofundar ainda
mais as incisões, a fim de fazer drenar os ofensivos fleimões que lhe injuriam a
alma, amontoados em regiões mais recônditas. Depois nos competirá ainda costurar
as malhas abertas e ajudá-lo na cicatrização das feridas emocionais. Eis delineado
nosso roteiro de serviço. Mas não se desalente, não fazemos mais do que nossa
obrigação. Se hoje

ícaro Redimido • 199


possuímos o psiquismo aparentemente em paz e desfrutamos certo equilíbrio
interno, devemos isso ao esforço ingente de amigos espirituais que trabalham
constantemente em nosso benefício, sem que atentemos para o fato. Por isso,
empenharmo-nos com afinco no socorro a Alberto ou a quantos vierem necessitar
de nossa modesta ajuda é apenas pagar à vida o que lhe devemos. E, ainda, como
você sabe, todos estamos propícios a cair em perturbações quais as que motivaram
a infelicidade de nosso companheiro e poderemos necessitar, por nossa vez, de
iguais cuidados no futuro.
— Vimos que ele se empenhou em tarefas bastante arrojadas quando na carne
e alimentou uma depressão de sérias conseqüências ao longo de extenso período de
vida, depois de viver tamanhas glórias. Podemos compreender, nesse caso, que tal
enfermidade e os desgastes dos constantes riscos a que se expunha na vida são os
responsáveis pelos seus sofrimentos atuais? E assim não seria de se admitir que foi
a depressão que o levou ao suicídio?
— Convém estudarmos com mais detalhes a delicada questão, Adelaide.
Adentremos um pouco na inquirição dessa intrigante patologia da alma, a
depressão, considerada como a causa de muitos padecimentos humanos. Nosso
Alberto de fato é tido na Terra como alguém que sofreu as conseqüências de uma
grave e inexplicável depressão nervosa que o teria mesmo levado ao auto-
extermínio, responsabilizando-se por todo o seu drama. Outros imputaram à doença
da degeneração mielínica69 a causa de todos os seus transtornos. Como vemos, a
medicina materialista ainda teima em considerar o homem vítima de indômitas
perturbações biológicas que o subjugariam, impondo-lhe imerecidas e
injustificáveis dores por mera obra do acaso.
A fim de compreendermos a verdadeira etiologia da doença depressiva,
situando-a no cortejo das forças endógenas que movem o espírito e aplicar tal
conhecimento para entender os enfermiços movimentos emocionais que abalaram a
vida de nosso amigo, convém demorar um pouco no estudo da dinâmica das pulsões
que fomentam o nosso psiquismo.
Como sabemos, todo o dinamismo que impera no ser, seja o conjunto das
energias que modelam o perispírito ou os impulsos que estruturam e sustentam o
mundo orgânico, emana da força mental, potência suprema a serviço do espírito em
evolução. Força que é um composto de oscilações energéticas projetadas pelo “eu”
espiritual, qual vórtice de irradiações tecidas ao seu redor, configurando-se como
um fulcro essencialmente

69 Conhecida como esclerose múltipla.

200 - Gilson! Freire/Adamastor


dinâmico, adensando-se no meio em que se projeta. Detendo em si todo o poder da
criação, sua máxima pujança não pode ainda ser estimada, cientes de que utilizamos
no momento uma ínfima parte de seu inapreciável potencial divino. A própria
matéria que nos sustenta, seja a do corpo físico ou a do corpo perispiritual, é
expressão diferenciada de adensamento desse poderoso fluxo dinâmico, motor do
universo.
Tal força magna da vida, sendo uma expressão energética, é regida pelos
mesmos princípios que orientam todos os impulsos dinâmicos que movem e
sustentam o mundo físico, pois a Vontade Divina se exprime com leis unitárias que
igualam em qualidade todos os seus fenômenos, diferenciando-os apenas em níveis
quantitativos de manifestação. E toda energia, por propriedade intrínseca de sua
natureza, é um composto de oscilações ondulatórias de potencialidades inversas e
complementares a que chamamos de fases, atributo indispensável do seu existir. Se
em uma onda há a predominância da fase dita positiva, ela tem caráter expansivo,
irrompendo-se em irradiações. Ao contrário, se a domina a fase oposta, a negativa,
ela se contrai, gerando trabalho de intenções exatamente opostas ao primeiro
movimento. Da harmonia entre estes dois impulsos em oposição, nasce toda a
fenomenologia da criação. Uma galáxia gera matéria em seu cerne por condensação
energética, para depois expeli-la por expansão compensatória de seu primeiro
movimento. Uma estrela, filha das mesmas leis, repete o mesmo movimento,
contraindo-se para fundir matéria que então se expande, por força de reação, em
irradiações luminosas e caloríficas, sustentando mundos. Na intimidade atômica, da
mesma forma, a matéria adensa energia até o seu máximo de condensação, para
depois irradiá-la como radioatividade, desintegrando-se para morrer.
Assim se revelam os fenômenos da criação que, em qualquer de suas
expressões, oscilam entre duas potencialidades de intenções opostas e
complementares. Aspecto que faz de toda substância uma unidade dividida em
partes opostas, compondo o dualismo universal, facilmente identificado em todo o
cosmo. A ciência, em todos os tempos, reconheceu esta dualidade nas
manifestações da natureza. Na íntima composição da matéria ela a enxergou na
unidade atômica, vendo-a um composto bipolarizado em uma eletrosfera negativa e
um núcleo positivo. Na energia, entreviu o movimento ondulado dividido em duas
fases distintas e alternantes. O pensamento filosófico, perdido nos tempos milenares
do conhecimento chinês, identificava a existência de duas forças em oposição, yin e
yang, atuando nos seres vivos. O decréscimo de uma, pressupondo o acréscimo da
outra, dentro de uma unidade complementar e polarizada, pensamento

ícaro Redimido - 201


esse que consubstanciou a filosofia do Taoísmo, do Confucionismo e da
Acupuntura até os tempos modernos. No mundo ocidental, Anaximandro de Mileto
identificou que a separação dos contrários, em eterno movimento cíclico, gera tudo
que existe. A fisiologia, assim que nasceu, enxergou também no metabolismo
orgânico, uma alternância de dois movimentos opostos, o anabolismo e o
catabolismo, responsabilizando-se, no mundo biológico, pelo crescimento e pela
degeneração, pela vida e pela morte, respectivamente. A psicologia, em üma de
suas visões, divisou também duas pulsões operando na intimidade do inconsciente,
as tendências do instinto erótico e as do instinto tanático, o primeiro caracterizando
o amor construtivo, o segundo a imposição da destruição e da morte. Seguramente
essas forças concebidas por todos eles são o reflexo do dualismo universal a se
expressar na existência de qualquer fenômeno, seja físico, energético ou psíquico.
Esse dualismo, fruto da unidade bipartida, embala todas as substâncias do
universo em um ritmo próprio de crescimentos e destruições. Dois movimentos que
se abraçam, sustentam-se e se complementam no divino dinamismo da criação,
fazendo de todo fenômeno um ato polarizado em duas fases opostas, a expressar-se
como uma dança de impulsos contraditórios. No mundo moral, o bem se alterna
com o mal e a alegria com a dor. No reino biológico, a vida com a morte, a saúde
com a doença, a vigília com o repouso, o crescimento com a decrepitude, o
anabolismo com o catabolismo. No plano físico, o caos com a ordem, a sombra com
a luz, o positivo com o negativo, o dia com a noite. A razão da existência do
fracionamento da potência criadora neste dualismo de oposições é estudada no
plano em que vivemos, porém não é motivo de nossas inquirições no momento,
extrapolando os limites destes modestos relatos.
Portanto, a força mental, em última análise, não poderia deixar de ser também
uma pulsão de igual comportamento. Ela se contrai e se expande em obediência à sua
própria essência, impondo seus ritmos a todas as manifestações que se lhe subjugam,
ou seja, ao corpo psicossomático e ao corpo físico. Por isso, estes são também
unidades pulsáteis, constituídas de fluxos alternantes de expansão e contração, de
crescimento e degeneração. Dilatando ou contraindo-se, o ser vivo repete, assim, os
mesmos movimentos que embalam todo o universo, o bailado cósmico, caracterizado
na mitologia hindu pela dança de Shiva.
Na matéria orgânica, assistimos a esses dois movimentos determinando ritmos
periódicos e alternantes de construção e destruição. A biomassa

202 - Gilson T. Freire / Adamastor


nasce, desenvolve-se, para depois degenerar e morrer, formando e quebrando-se em
seu constante e desassossegado metabolismo, feito de fases anabólicas e
catabólicas. Por isso o ser vivo alterna repouso com atividade, crescimento com
degeneração, vida com morte, movimentos impostos pela força mental que o
dirige.
O psicossoma, como veículo essencialmente energético, não poderia deixar de
ser o primeiro a responder a essas oscilações impostas pela força mental e, por isso,
como vimos70 , ele se contrai e se expande. Isso faz do corpo perispiritual uma
unidade consubstanciada por um equilíbrio de energias opostas de expansão e de
contração, de cuja troca de impulsos se origina o seu dinamismo vital. Assim é que
o vemos expandir-se após a morte física e contrair-se nos instantes que antecedem
a reencarnação, da mesma forma que vemos o corpo físico crescer após o
renascimento, para degenerar e derruir-se na iminência da velhice e do falecimento.
Dessa maneira, através da intermediação das energias psicossomáticas, a força
mental se manifesta no mundo fenomênico da forma, tecendo para o espírito a sua
vestimenta energética e física, embalada pelos seus mesmos ritmos, impondo-lhe o
seu funcionamento cíclico de crescimento e decrescimento. Ritmos que criam o
reciclar da vida em todas as suas expressões e, se permitem em si mesmo a morte, é
para que o arcaico se renove na constante restauração de todos os valores do ser.
No mecanismo da evolução, o velho precisa ser destruído para que o novo se
construa, promovendo-se o aperfeiçoamento constante do espírito. Por isso o
impulso de renovação está em permanente luta com a tendência de conservação.
Sem esse ritmo, a vida não estaria sujeita ao progresso permanente e o existir não
seria possível no substrato da matéria, obstaculizando-se em definitivo o evoluir.
Em decorrência desse fato é que admitimos a necessidade da destruição no seio de
uma criação permanentemente renovada.
O espírito em evolução é, portanto, uma unidade oscilante, alimentado por
forças bipartidas de contração e de expansão, embalando-o qual onda de fases
positivas e negativas, o que lhe caracteriza a caminhada por ciclos. A dinâmica da
personalidade — a consciência, o pensamento e a vontade — operando na
intimidade do ser, oscila igualmente na permanência entre estes dois pólos, em
equilíbrio instável de ciclos complementares e opostos. Viver na alternância entre a
positividade e a negatividade é a única possibilidade de existir no plano de
instabilidade em que nos projetamos.

70 Ver capítulo 6 onde, na verdade, se inicia o tema desenvolvido aqui .

ícaro Redimido - 203


Tais ritmos se manifestam também no Mundo Espiritual em que nos situamos,
pois as mesmas Leis Cósmicas que sustentam a vida na matéria, entretecem e
conduzem igualmente a nossa existência. Por isso o psiquismo e o perispírito, onde
quer que se manifestem, na carne ou fora dela, são embalados pelos mesmos
impulsos de retraimento e refazimento, submetidos ao mesmo metabolismo
evolutivo cíclico.
Para melhor compreender esta dinâmica do espírito e sua reverberação no
psiquismo e seus veículos, compararemos o seu movimento ao de um pêndulo, que
se agita em oscilações constantes entre dois extremos. Em um pólo, que
chamaremos positivo, domina o crescimento do ser, arregimentando valores, em
atividade de acréscimos e expansão rumo à Divindade. No outro, o negativo,
prepondera a quietude, o repouso, recolhendo-se o “eu” para o seu interior,
permitindo-se assim a elaboração e o amadurecimento das conquistas amealhadas.
Na aventura de construção de si mesma, a consciência dilata-se para assenhorear
bens, para depois se contrair e amadurecê-los na aparente quietude, em
desassossegado e recorrente frêmito de mutações. Eis a intimidade do
funcionamento cíclico do espírito, na carreira rumo à perfeição.
Assim segue a vida em ondas de ascensões e descidas periódicas, mas com
ganhos constantes na aquisição do progresso, pois as retrações recorrentes nunca
são suficientes para fazer deteriorar e perder os valores solidamente arregimentados
pelo ser. Fases dinâmicas que se alternam no exercício da vida, como norma do
existir nas dimensões atuais em que nos encontramos. Admitimos, na atualidade e
no plano em que nos manifestamos, que a sujeição a estes ciclos é provisória e um
dia findar- se-á, quando nos libertarmos das sucessões de nascimentos e mortes,
abandonando definitivamente a existência na matéria, ao adquirir a condição de
espírito puro. Patamar que, se vislumbramos como uma realidade, ainda é motivo
de conjecturas e suposições por se achar bastante distanciado de nossa condição
atual de discernimento.
Viver entre estes impulsos antagônicos faz parte do processo natural da vida, e
respeitar os seus limites é manter-se na saúde e equilíbrio máximos que nos é
permitido amealhar. Contudo, no exercício do livre- arbítrio, dado ao ser que
atingiu a maioridade, pode o mesmo ultrapassar, em certos patamares, as zonas de
normalidade, estendendo pretensões expansivas para além de suas naturais
barreiras. Antecipando a glória a que faz jus, o espírito em evolução anseia viver
permanentemente na máxima expressão de seus atributos natos, sem aguardar que o
paulatino crescimento e a meritória aquisição de conquistas o projetem na plenitude
da potência para a qual foi criado. A busca da felicidade, maior estímulo

204 - Gilson T. Freire / Adamastor


que justifica o existir e herança genuína do Criador, leva-o também a pretender, a
todo custo, a plenipotência de suas faculdades, como se ultrapassar as contingências
naturais do crescimento fosse a única possibilidade para o máximo prazer do “eu”.
Por isso, exceder todas as medidas que nos cerceiam constitui a motivação básica da
rebeldia que caracteriza o espírito nos baixos níveis evolutivos da consciência.
Exercer o egoísmo inadequadamente, enaltecer o próprio “eu” sem barreiras,
projetando-se como o maior dos seres da criação; vangloriar- se e ser idolatrado
como a máxima realização da Divindade, para depois competir com o próprio
Criador; submeter os semelhantes aos seus próprios interesses e fazer da existência
motivação única para a sua felicidade: eis a doentia utopia que move o espírito
rebelde nos patamares involuídos da vida, o egoístico sonho de toda criatura ainda
distanciada da realidade da Lei Divina. Doença básica, identificada na raiz de todas
as dores e dramas humanos em todos os tempos do passado e do presente. Eis
porque impor limites ao egoísmo e estabelecer o amor ao semelhante são os pilares
sagrados do ensinamento evangélico. Em nosso plano de estudo, tal inadequada
expansão da força mental é denominada hiperegotismo, ou seja, o exagerado
crescimento do ego. No exercício do hiperegotismo o ser utiliza atitudes e
empreende hábitos que em seu conjunto são chamados hiperpsiquia, caracterizada
por grande determinação, exagerada autoconfiança, exaltada busca de prazeres e
desmedida presunção, expressando-se a arrogância em toda a sua pujança.
Como se pode entrever, o hiperegotismo é doença que nos acompanha há
tempos na jornada da vida, tendo-se incorporado como um hábito em nossa
personalidade. Reflexo herdado da vida animal que nos entreteve por longo
período, o exercício pleno do egoísmo ainda nos abasta o “eu” de falazes alegrias.
Superar os demais em todos os aspectos, ser maior por simples deleite da vaidade é
sabor intensamente almejado por todos os anseios humanos em todos os tempos,
mesmo que para isso seja preciso roubar a alegria alheia e semear infortúnios, pois
liquidar aqueles que nos obstaculizam a cobiça sempre justificou os mais bárbaros
atos. Por isso a motivação excitante de todas as maldades empreendidas pelo
espírito na jornada dos séculos sempre se baseou nos arroubos do egoísmo e do
orgulho. Ao examinar a grave questão e trazendo à baila toda a história da
humanidade, vemos que a hiperpsiquia esteve sempre impulsionando todas as
aventuras e desventuras humanas, abonando todos os seus ímpetos destrutivos com
o único propósito de elevar seus protagonistas a patamares inadequados e
enfermiços de megalomanias.
Não fossem os naturais óbices que a Sabedoria divina nos impõe, não

(caro Redimido - 205


haveria fronteiras para a arrogância do espírito involuído. Arrogância que continua
sendo a motivação básica de nossos interesses doentios, onde quer que nos
expressemos, na carne ou fora dela, alimentando-nos o psiquismo hiperegótico com
permanente desejo de projetar-nos acima dos demais. Sentimento que sustenta a
competitividade, chaga da sociedade que, qual erva daninha, corrói os valores da
bondade, semeando todos os males possíveis. Tal impulso serviu ao ser numa época
em que ele, ainda inconsciente, necessitava da luta feroz, chamada seleção natural,
para despertar sua razão, porém, passou a ser contraproducente e indutora de
sofrimentos quando ele cresceu, tornando-se consciente de suas responsabilidades
perante os irmãos de jornada. A necessidade de sobrepor a própria personalidade
acima dos demais ainda supera a fraternidade genuína e lustrar o brilho pessoal da
vaidade justifica erroneamente todos os males dos sentimentos. Se nos tempos
modernos a força bruta paulatinamente vem perdendo sua utilidade, as armas sutis
da astúcia permanecem ativas, sempre prontas a solapar os valores alheios, a
serviço ainda da mesma exaltação enfermiça do “eu”.
Os males do hiperegotismo não se restringem à imposição de dores ao outro,
mas é capaz de trazer graves prejuízos para o seu protagonista, que, acreditando
amealhar vantagens em suas vãs vitórias, na verdade colhe prejuízos para si
mesmo. Em um primeiro momento, depois de aparvalhar o espírito de estouvada
satisfação, a força mental inadequadamente hiper-impulsionada irá embalar as
energias perispirituais, dinamizando-as inadequadamente. Instala-se a hipertrofia,
caracterizada pela exaltação desmedida de todos os veículos da força mental. Todo
o organismo é acelerado por exasperados estímulos que levam à imprópria e
exagerada excitação do sistema límbico e dos núcleos encefálicos, com
conseqüente superativação de todos os sistemas orgânicos a eles subordinados.
No perispírito irá determinar hipertonias destoantes a se refletirem em
dismorfias cumulativas no corpo físico, caracterizando os hiper- íuncionamentos
orgânicos e as hiper-formações celulares de toda e qualquer natureza. Crescimentos
teciduais inadequados gerando tumores, os mais diversos, insidiosamente se
instalam. Exagerados funcionamentos glandulares se apresentam como resposta
adequada à inadequada hipertonia perispiritual, doentiamente sustentada e
embalada pela arrogância. As patologias hipertróficas catalogadas pela medicina
terrena são realidade inquestionável do corpo físico, refletindo a natureza
hipertônica das forças espirituais, doentes de soberbia. Embora a ciência da Terra
busque

206 ■ Gilson T. Freire /Adamastor


justificá-las em aleatórias adulterações genéticas, não há outra etiologia para o
desequilíbrio da carne, mero espelho onde se reflete a alma humana, senão as forças
desequilibradas do próprio espírito. Movimentos que, no entanto, além de
representarem simples reflexo das incontidas forças perispirituais hipertróficas, são
vias de solução e compensação das distonias mentais, uma vez que seus potenciais
desequilibrantes são desviados para as vestes superficiais e provisórias do espírito.
Estampando no corpo físico a mesma errônea intenção que enodoa a alma, devolve-
se ao ególatra, em forma de dores, seus equívocos de condutas e sentimentos,
propiciando- lhe a colheita das sábias lições da vida, a fim de que o mesmo aprenda
a viver no necessário equilíbrio de suas poderosas forças psíquicas.
Uma vez, contudo, atingida sua máxima capacidade hipertrófica, as forças
espirituais dilatadas iniciarão a inevitável retração compensatória. Dilatando-se o
pêndulo psíquico para um de seus lados, o movimento compensador e de direção
oposta surge como necessidade, imposta pela lei de equilíbrio, que pede a toda ação
uma reação de igual intensidade e sentido oposto. O hiperegotismo se compensará
com o movimento oposto, ou seja, a inevitável e acentuada contração da força
mental. A retração psíquica será também exacerbada, carreando consigo todas as
energias perispirituais e físicas, situando-as nas antípodas das intenções
inicialmente pretendidas pelo ser, posicionando-o no hipoegotismo. A
personalidade se embalará de completa depleção de suas potencialidades. O sabor
das errôneas vitórias se torna pesar, configurando o que denominamos hipopsiquia
e na Terra se identifica como os distúrbios depressivos. Todo o organismo se veste
de doentio hipodinamismo, respondendo o mundo celular com a hipotrofia e a
degeneração de toda sua potencialidade.
O funcionamento orgânico torna-se deficiente e a perda de massa celular é resposta
condizente com o mesmo padrão hipotônico das forças perispirituais.
A arrogância perde sua expressão e o ególatra, de sua exaltada posição de valia,
precipita-se, embora não o desejasse, na deterioração dos bens roubados da vida,
configurando-se a derrocada da auto-estima. O orgulho se humilha na menosvalia e
a alegria foge da alma. As angústias que habitam os recessos profundos do
involuído despertam, convocadas para a sua educação, corroendo todos os seus
valores errôneos. O desânimo grassa terreno, o crescimento desmedido, por ação
reativa, é forjado ao recolhimento e à contração. Embalado aquém de seus limites
naturais, o ser termina por aviltar todos os patrimônios indevidamente amealhados.
Reconheceremos, portanto, que as causas reais e profundas da depressão

ícaro Redimido - 207


se encontram nos abusos do poder, na egolatria, na vaidade e na doentia exaltação
do ego. Partindo da arrogância e seus exaltados movimentos, compreenderemos
facilmente a fisiopatologia em vigência na depressão. A depleção de todos os
recursos orgânicos e psíquicos que caracterizam essa patologia é conseqüência
natural dos abusos do amor-próprio na aventura da vida. O desvalimento é a colheita
obrigatória dos excessos empreendidos, vicejando a menosvalia onde existiu a
supervalia11. Movimento de igual intensidade e sentido contrário da altissonante
expansão anterior. E toda a maldade que o ser empreendeu para manter o enfermiço
patamar de arrogância o levará, em igual potencialidade, para o pólo oposto de suas
intenções, forçando-o à colheita das dores semeadas e à aparente perda dos valores
angariados no jogo da vida. A alegria feita de penúrias alheias se tornará tristeza,
caracterizando a depressão em suas múltiplas manifestações na espécie humana. Eis
em última análise a causa dessa enfermidade, doença responsabilizada pela inibição
do potencial humano, mas fruto de seus próprios desequilíbrios e imposta a ele por
lei de compensação. Não admitimos, na atualidade de nosso conhecimento, outra
possibilidade de compreensão para a etiologia de tal doença, justificando a sua
existência e necessidade.
Aquele que se sente carente de valores pessoais e vive premido por angústias
depressivas inexplicáveis, encontrará sempre, em prévia e aparatosa exaltação
orgulhosa do seu “eu”, a causa da inaparente contração de sua personalidade,
identificada, comumente, em justaposta existência anterior.
Compreendemos assim que o egoísmo e o orgulho são, de fato, as verdadeiras
chagas do espírito e os fatores etiológicos da depressão e do suicídio. Não digamos,
portanto, que a depressão acomete o homem como se ele fosse mera vítima de suas
angustiosas e inexplicáveis patologias. Uma Lei dirige-nos a todos, conferindo
alegrias e dores conforme as semeemos no campo de nossas ações psíquicas. A dor
pertence sempre à colheita e nunca é por si só a causa primeira de nossos males,
pois não somos imolados pelo acaso, mas por nossa própria rebeldia diante das Leis
Divinas. Aquele que já nasce com a personalidade carente de valores pessoais,
necessários à vida, semeou ações e intenções opostas, determinantes de tal
condição, em existência anterior.
Quando, entretanto, o embalo hipertrófico é por demais exaltado, a hipopsiquia
reativa se encaminha inevitavelmente para a psicólise72 , ou

71 Neologismo próprio do tema, inserido em seu contexto.


72 Ver glossário no final da obra.

208 - Gilson T. Freire / Adamastor


seja, para a ativação dos mecanismos autodestrutivos do ser. A exaltada força vital
se converterá em impulso antivital. O potencial divinizante da vida será negado,
embora o ser não o queira. O desejo de morte, de modo intrigante, instala-se no
espírito, de forma consciente ou não. De outra maneira não se poderia explicar a
existência de tão antagônico sentimento, passível de se estabelecer em um ser que
foi criado sobretudo para a vida. Em desmedida contra-reação, as forças mentais
mal conduzidas irão se impor contra o seu próprio protagonista. E, no Plano
Espiritual, quando é sobremaneira intenso o primeiro movimento que motivou a
hiperpsiquia, o desvalimento da personalidade caminhará para a catatonia, a
catalepsia e a apsiquia, ou seja, a completa inibição do metabolismo da consciência,
caracterizando, no desencarnado, a morte ovoidal, fim da malfadada aventura da
arrogância humana.
Embora a fisiopatologia da arrogância se reverbere naturalmente na
continuidade da vida após a morte, exaltando o impulso autodestrutivo, este jamais
conduzirá à completa derrocada do ser. A substância da vida, patrimônio do
Criador, não pode ser anulada pela criatura, os embalos da poderosa força mental
não podem se deter jamais e o espírito não consegue, de fato, destruir-se. Ele se
erguerá, mais dia ou menos dia, para prosseguir na aventura do viver,
reconduzindo-se ao soerguimento de si mesmo, no refazimento evolutivo e na busca
de novos equilíbrios que lhe facultem alegrias genuínas. Admitimos apenas como
fato teórico a possibilidade de sua completa anulação, com o retorno da substância
que o compõe ao Seio Divino, pois a dor, recurso de salvação da Lei, será sempre
exaltada diante da intenção autocatalítica, impedindo a sua completa realização.
Depois que vimos a fisiopatologia da autodestruição73, podemos compreender
agora que a depressão, a psicólise e a ovoidização são fenômenos desencadeados
pelo próprio ser e se baseiam no dinamismo mórbido da arrogância, a
supervalorização doentia do “eu” que deseja ser mais do que é, ir além de seus
limites, crescer e projetar-se acima do outro, terminando no oposto de suas errôneas
intenções.
Toda felicidade roubada do bem-estar alheio, que deprime e menoscaba o
próximo a quem deveríamos aprender a exaltar, é-nos devolvida na mesma medida
da desvalorização imposta, sendo a motivação maior para a nossa própria desdita,
causa primária dos transtornos depressivos. Não há outra etiologia possível na
equilibrada Lei Divina para dores que, de outra forma, não se justificariam. Mesmo
as diversas circunstâncias que

73 Ver cap. 6.

ícaro Redimido - 209


forjam o abatimento na alma humana, como as grandes decepções, as perdas
afetivas e os insucessos variados sempre possíveis no jogo da vida, se são capazes
de conduzirem-na à grave contração depressiva, estão subordinadas às mesmas leis
que ofertam destinos em conformidade com as semeaduras e dores, segundo a
necessidade de correção dos abusos.
O que atesta que as causas da depressão estão nos desacordos com a Lei é o fato
de que o deprimido, sem uma aparente causa que o justifique, sente,
repentinamente, como se todas as forças do universo estivessem contrárias a ele,
sem entender que, na verdade, ele é que se antepôs a elas num primeiro momento.
Depois de semear arrogâncias, as florações da depressão vicejam nos terrenos da
alma como ervas daninhas, impondo a obrigatória colheita das mesmas
humilhações espargidas nos campos da vida. Eis por que o egoísmo definha e o
orgulho retrai na contração reativa das energias que sustentam o ser. Eis porque a
mensagem da Codificação Espírita nos revelou que o egoísmo e o orgulho são os
maiores obstáculos ao progresso, e as entidades superiores que nos instruem jamais
deixaram de nos alertar quanto aos perigos da soberba. A sagrada doutrina é
pródiga de mensagens nesse sentido, especialmente o Evangelho Segundo o
Espiritismo, dentre as quais podemos citar as sábias palavras do Espírito Adolfo,
sempre lembradas em nosso plano, alertando-nos de que “quando o orgulho chega
ao limite, tem-se o início da queda. De tempos em tempos Deus nos envia golpes
para nos advertir, contudo, se ao invés de nos humilharmos, revoltamo-nos, então,
uma vez cheia a medida, Ele nos abate completamente e tanto maior é nossa queda
quanto mais alto tenhamos subido”.74
Várias conseqüências da arrogância podem ser reconhecidas na psicopatologia
humana. A perda da auto-estima advém sempre, como reação, da excessiva
valorização de si mesmo. A insegurança e a timidez, de doentia autoconfiança. A
carência é fruto da ambição desmedida. O pesar, da alegria roubada de outrem.
Toda angústia é a reverberação de um sentimento de maldade. A coerção vem da
rebeldia irrestrita. O martírio da culpa se origina do ato inconseqüente. O
esgotamento, do abuso das forças. E, portanto, o que faz demisso o homem é sua
própria soberba. Estejamos certos, não há sofrimentos injustificáveis na Lei divina
e ninguém padece melancolias sem antes tê-las semeado nos corações alheios.
Eis delineada, em rápidas considerações, a real causa da depressão humana e
suas graves conseqüências. Sofrimento que se impõe por força

74 Questão 785 do Livro dos Espíritos e Cap. VII do Evangelho Segundo o Espiritismo.

210 - Gilson T. Freire / Adamastor


de lei compensatória e que responsabiliza o próprio espírito como seu
protagonista. Esta a razão, enfim, por que o Mestre nos asseverou com clareza que
“todo aquele que se exaltar será humilhado. ”75

75 Lucas 14:11

ícaro Redimido - 211


Depressão: Tempo de
Colheita no Campo do
Espírito

“E ele, sentando-se, chamou os doze e lhes disse: se alguém quiser ser o primeiro,
será o derradeiro e o servo de todos. ”
Jesus - Marcos, 9-35

A delaide admirava-se da irretorquível lógica nascida das reflexões


que aventávamos, pois confessava que jamais pensara em tais
possibilidades nas abordagens que trazia da Terra a respeito da
depressão e suas ignaras causas.
— Convém esclarecer, minha amiga — disse-lhe com sinceridade— que estas
considerações não são frutos, de minhas modestas perquirições, porém, conjecturas
entretecidas ao longo dos estudos empreendidos por adiantados instrutores de nosso
plano. Eu apenas lhe transmito o que me ensinaram e nada posso acrescentar além
do que me foi permitido apreender e observar como correlato da realidade.
Ensinamentos que na verdade não trazem novidades, pois Jesus, em sua sabedoria,
já nos enfatizava os perigos da arrogância. O Mestre não perdeu oportunidades de
nos ensinar que o egoísmo e o orgulho são as verdadeiras chagas da humanidade,
responsáveis por todas as nossas dores, apregoando o amor ao semelhante, não só
como a maior das virtudes, mas como indispensável recurso à saúde do espírito.
Não somente o bem nos cabe empreender ao máximo pelo próximo, mas a própria
projeção a que aspiramos para o nosso “eu”, deve ser igualmente desejada para
nossos companheiros de jornada.

212 - Gilson T. Freire/Adamastor


O brilho pessoal, sucessos e vitórias são atributos que nos agradam naturalmente
conquistar, mas são alegrias que necessitam ser igualmente compartilhadas com os
semelhantes e não podem se sustentar na coerção, nas derrotas e infelicidades
alheias. Eis a extensão dos preceitos evangélicos que não nos convém ignorar mais.
As disputas humanas precisam ser equilibradas por estes sábios princípios, se
queremos desfrutar felicidades reais e justas e estabilizar nossa força mental na
saúde máxima possível. Não são meras motivações morais, porém expressões de
uma Lei que se impõe por Vontade Divina e que visa sobretudo equilibrar o jogo
das poderosas energias que sustentam nossa personalidade. Tais conclusões são
bastante evidentes quando examinamos a vida do lado de cá, Adelaide, mas para os
espíritos na carne, o óbvio é imperceptível e precisa ser salientado.
— Compreendo. Não podemos conceber Deus como um Pai que tolere a
desigualdade entre seus filhos. Numa criação cuja Lei é equanime, todos detêm
idêntica potencialidade de realizações.
— Fidalgos e vassalos em todos os tempos invertem os lugares que ocupam na
vida, exatamente por força dessa Lei. Fracos e fortes, déspotas e dominados,
verdugos e vítimas, exploradores e injustiçados continuam alternando posições de
dores e ódios ao longo da estrada da vida até que aprendam verdadeiramente a se
equilibrarem na Lei do Amor. Todos são iguais aos olhos do Pai e não pode haver
derrotados e vitoriosos na criação.
— Crescer, porém em humildade e simplicidade. Renunciar às glórias do
personalismo ufano, exaltar o outro e não a si mesmo, compreendo...
— Não há dúvida de que Deus nos criou para esplendores inimagináveis e de
que somos herdeiros dos Seus poderes. Estamos porém em um universo onde todos
são irmãos e todos encontram iguais condições de se destacar, por isso somos
regidos por uma Lei que não tolera que uns se sobressaiam às custas do decesso de
outros. Atingimos a maioridade do espírito e não podemos mais negar essa Lei,
exigindo-nos novo regime de vida, felicidades e conquistas que não se apóiem na
desgraça alheia, e grandezas que não menoscabem a Realeza Divina que cada um
detém consigo. “Não façais tocar trombeta diante de vós como fazem os hipócritas
nas sinagogas e nas ruas, para serdes glorificados pelos homens”76, ensinou-nos o
Mestre. A sabedoria do Evangelho é bastante incisiva neste aspecto para que
duvidemos desses conceitos.

76 Mateus 6:2

ícaro Redimido - 213


— Inibir a arrogância! Eis, enfim, o segredo máximo do equilíbrio espiritual.
Parece tão simples...
— Sim, minha amiga. Recordemos especialmente aquela passagem em que os
discípulos retornavam de Cafarnaum, procurando pelo Mestre. O Senhor, havendo
percebido que no caminho vieram discutindo qual dentre eles era o maior, chamou-
lhes a atenção, dizendo-lhes que “no Reino de Deus o maior é aquele que se faz o
menor de todos”77. Essa importante lição ainda se aplica perfeitamente aos nossos
dias, Adelaide. Nos caminhos da evolução continuamos discutindo quem é o maior
entre nós, por isso, as disputas de hegemonias grassam em intermináveis jogos de
supremacia, às vezes sutis, porém sempre cruéis. Os regimes de permanentes
competições deterioram todas as nossas relações. Onde quer que nos reunamos, as
francas ou dissimuladas disputas de superação de uns sobre os outros tomam lugar,
como se toda a felicidade possível residisse na capacidade de nos sobrepor aos
demais. Aquele que se destaca, por méritos, justificados ou não, é sempre alvo de
nossas antipatias gratuitas, determinadas pela nossa inveja, e estamos sempre
prontos a açambarcar, unicamente para o próprio deleite, o brilho pessoal que o
outro parece nos roubar. Dominar e sobressair-se são as motivações silenciosas que
nos movem no exercício das relações humanas, nas mais variadas expressões do
comportamento, origem permanente, não só de intermináveis altercações e cisões,
mas, sobretudo, de dissabores e dores. Tal é nossa natureza ainda recalcitrante,
Adelaide. Como não aprendemos até hoje a praticar a justa medida do amor ao
semelhante, natural que diante da Lei soframos as conseqüências de nossas
doentias pretensões, pois ainda não somos capazes de desejar realmente para o
próximo a mesma exaltação que almejamos para a própria personalidade. E para
isso torna-se imprescindível a inibição de toda a arrogância que nos caracteriza os
hábitos do caráter, com todo o seu cortejo de egoísticos interesses, em detrimento
da instância alheia. Em síntese, nosso amor ao semelhante deve ser tal que nos
permita desejar para o outro a mesma posição de glórias e exaltações que buscamos
para engrandecer-nos. Tornar superior o outro sem pretender diminuí-lo para que
cresçamos. Esta é a Lei, o desiderato que ainda não atingimos, mas que a evolução
nos convoca a conquistar o mais rápido possível. Somente com a prática desse real
amor ao semelhante seremos verdadeiramente grandes e felizes. Enquanto tal não
se dá, colheremos decepções e amarguras, em forma de

77 Marcos 9:32-35

214 - Gilson T. Freire/Adamastor


enfermidades que oprimem o nosso eu, coagindo-nos à diminuição das satisfações e
dos valores erroneamente acumulados.
— Já somos capazes de inibir a maldade de nossas ações contra os semelhantes,
facilitar a vida daqueles que sofrem e compartilhar os bens que nos sobram, mas
não atingimos ainda a condição de ceder a importância que nos cabe em favor do
outro. Compreendo a extensão da Lei...
— Ambicionamos ainda ser maiores do que os outros, eis o problema a ser
superado e Jesus cuidou de identificá-lo com precisão. Entretecemos uma sociedade
de competições, baseada na ambição. Por herança do mundo animal ainda fazemos
do campo da vida um palco de permanentes rivalidades. E, comumente, se não
conseguimos superar os outros, fazemo- los pequenos, deprimindo-os pelo
menosprezo, pela calúnia ou, pior ainda, exterminando-os. Somente seremos
verdadeiramente grandes quando aprendermos a engrandecer o próximo sem
deprimi-lo em prol da nossa própria vaidade. Enquanto não assimilarmos esta lição
que a Lei nos pede com insistência, estaremos predispostos à colheita de nossas
depressões, forjando-nos à humildade, ainda que indesejada. Se menosprezamos os
outros, somos coibidos, pelo sofrimento depressivo, a menoscabar a nós mesmos,
comprometendo a própria auto-estima na exata medida da desvalorização imposta
aos demais.
— Recordo-me ainda de outra passagem do Evangelho, em que a mulher de
Zebedeu foi até Jesus pedindo-Lhe que seus filhos, Tiago e João, se assentassem ao
Seu lado, quando viesse o Seu Reino, pretendendo impor-lhes as melhores posições
e fazendo-os maiores do que os demais78...
— E os outros discípulos, ouvindo-lhe o pedido de privilégios e primazias, se
indignaram, cientes de que estavam sendo subestimados. Jesus, então, identificando
o perigo da soberba, chamou-os em particular, transmitindo-lhes novamente a
mesma lição: “aquele que quiser ser o maior, que seja o menor e último de todos”.
Mais uma vez Sua sábia lição, recomendando a inibição da arrogância, procurava
precaver-nos dos sofrimentos que isso acarreta.
— E nas bodas advertiu o Mestre dos perigos de se procurar os primeiros
lugares... — continuou a estudante, enchendo-se de entusiasmo ao apreender o
significado mais profundo da sabedoria evangélica.
— Sim, Adelaide, é inegável que Jesus conhecia profundamente a

78 Mateus 20:20-28

Icaro Redimido - 215


natureza dos males humanos. Infelizmente ainda não nos convencemos de que na
vida de relações é maior aquele que se faz o menor, e Sua lição permanece
inalcançável por não termos até então reconhecido o seu valor. No exercício da
humildade sincera, inibindo-nos os exaltados impulsos hipertrófícos,
proporcionaremos equilíbrio à força mental, ajustando-nos aos precisos limites que a
Lei nos comina. E nos faremos grandes e realmente felizes, pois nossa potência
espiritual equilibrada se dilatará adequadamente, tornando-nos poderosos na criação.
Eis o poder e a grandeza dos anjos, Adelaide! Não os possuímos porque nos
movemos ainda na arrogância e no cerceamento que o egoísmo nos constrange. O
poder que a Lei confere é proporcional a um perfeito cálculo de bondade e
responsabilidade, amealhadas pela alma em crescimento. Se ainda não conseguimos
utilizar em plenitude os fabulosos poderes divinos que detemos por herança Paterna,
deve-se ao fato de que ainda não somos o bastante humildes e sábios para merecê-
los. Recordemos que Jesus, expressando a realidade dessa assertiva, agradeceu ao Pai
por ocultar o verdadeiro poder aos grandes da Terra, revelando-o aos pequeninos.
Assim é que os sátrapas do mundo são forjados à parvidade e os módicos são
enaltecidos sob o ensejo da Lei, tornando-se os últimos, grandes em poder e alegria.
— Então a depressão, em qualquer de suas variantes, identificada pela
medicina terrena é sempre conseqüência da posição de arrogância cultivada pelo ser
na aventura de superar a si mesmo e aos semelhantes...
— Exatamente. E nesta desvairada carreira de superações deprimimos a
felicidade alheia, atitude comum a todos nós que desejamos permanentemente
ocupar posições acima de nossas reais possibilidades. E, quase sempre ainda,
exaltamo-nos diminuindo o outro, pois não podendo ser mais do que ele,
apressamo-nos a rebaixá-lo ou até mesmo a aniquilá-lo, caso se torne um obstáculo
à almejada posição de primazia. Justo que colhamos as dores do desalento depois,
pois, guardemos a absoluta certeza, toda felicidade sustentada pelo infortúnio alheio
é falaz conquista do espírito, roubo indevido na Lei de Deus, pronto a se converter
em meritórias melancolias e privações na primeira oportunidade.
— Compreendo a lógica desses raciocínios na etiologia da enfermidade
depressiva, mas não se pode negar a influência das perdas diversas nesses
transtornos. Certamente os traumas psicológicos e suas frustrações se
responsabilizam também pela gênese da enfermidade depressiva. Quantos não
adoecem por não suportarem o peso de acerbas dores, vergastando- lhes a alma
frágil, diante de danos afetivos ou prejuízos de qualquer

216 - Gilson T. Freire / Adamastor


natureza? E não há espíritos que renascem já carentes de todos os valores
necessários para o sustento saudável da personalidade? A insegurança, o temor, os
sentimentos de culpas não são também indutores de transtornos depressivos?
Alberto não adoeceu em decorrência de sua minguada compleição física, carente de
auto-sustento?
— Vejo que minha estudante está se tornando perspicaz na arte de inquirir,
deixando seu orientador em dificuldades. Sei que são sinceros desejos de
aprendizagem e são bem-vindos, pois muitas vezes o aprendiz, procurando apenas
menoscabar aquele que lhe ensina, deseja somente defender o próprio orgulho,
relutante diante da incontestável posição de ignorância. Intenção que impõe
obstáculo à permuta do conhecimento, pois a humildade sincera é a vestidura de
todo aquele que deseja aprender, e o que ensina deve sacrificar sua posição de
mestre, no desejo sincero de que o discípulo o supere na sapiência. Sem que tais
sentimentos embasem suas relações, a tarefa de ambos estará fadada ao fracasso.
Naturalmente que um e outro caso não são as motivações que nos entretecem a
relação neste momento, pois não me coloco no lugar daquele que instrui, porém de
mero veículo de transmissão de tudo quanto me foi ensinado. Mas, vamos ao que
nos interessa. Por força da Lei, sempre justa e adequada às necessidades de cada um
de nós, não se pode jamais imputar uma carência como a causadora de nossos
sofrimentos. Toda privação foi precedida de excesso de mesma natureza e os
constrangimentos que trazem são corretivos. A personalidade que não encontra em
si mesma os meios para se firmar como necessário na vida, perdeu-os por abusar
deles. Os tímidos e inseguros de hoje são os arrojados do passado. E a menosvalia
identificada em nós é sempre a exata medida da desvalorização imposta ao outro.
Não guardemos a menor dúvida, todos os valores roubados da felicidade alheia e
frutos da arrogância nos são forçosamente tirados, a fim de suscitar em nós a
correta maneira de se praticar o viver.
Recordemos a lição do pêndulo. O desequilíbrio que se instala na alma, depois
que a hiperpsiquia a remove de sua estabilidade, exalta-lhe a suscetibilidade,
deixando-a passível de sofrimentos desmedidos diante das perdas e danos da vida.
Assim é que a intolerância às frustrações e aos fracassos aumenta de forma
indevida no espírito hiperegótico, permitindo-lhe ferir-se por situações que de outra
forma lhe seriam inócuas ou facilmente suportadas. De modo que não há outra
causa para a depressão senão a arrogância. Posição, inclusive, que é a própria
motivação para que o indivíduo se exponha aos fatores que a suscitam. Eis por que
os mais suscetíveis às frustrações de toda natureza são exatamente os mais

ícaro Redimido - 217


orgulhosos. Os mais egoístas, mais apegados aos bens de toda sorte são os que
menos toleram suas perdas. Os mais altaneiros são os mais sensíveis ao menosprezo
e às ofensas. As grandes almas não se deixam ofender e nem se abater por essas
aparentes injúrias e quiméricas privações, por se acharem em posição de superior
compreensão e equilíbrio. Portanto, se alguém sofre um transtorno depressivo,
induzido aparentemente por uma grande decepção, ofensa ou perda, deve-se ao fato
dele já trazer na personalidade a predisposição exaltada pela sua posição
hiperegótica, amealhada anteriormente. A dor é sempre conseqüência das intenções
e ações errôneas e nunca causa dos males humanos, estejamos absolutamente
convencidos disso.
— E a obsessão, considerada umas das causas dos transtornos depressivos, não
é evidência de que ela pode se instalar por motivações externas?
— Novamente devemos aplicar a mesma lógica que nos dirige, Adelaide,
admitindo que são as atitudes de agressão ao outro, na defesa de nossos
equivocados interesses ególatras, que nos fazem vulneráveis ao ataque de nossas
mesmas vítimas, transformadas em algozes, em nítida inversão de posições, por
força de reação diante da Lei. E, mais uma vez, é a instabilidade gerada pelas
intenções hiperegóticas que destrói as naturais barreiras defensivas de nosso mundo
mental, subsidiando-nos o assédio obsessivo, expondo-nos ao subseqüente e
merecido esgotamento das forças psíquicas.
— Depois de tantas considerações minha pergunta inicial não mais se sustenta.
Compreendo perfeitamente que não foi a depressão que motivou o suicídio de
Alberto...
— Isso mesmo. As doenças não podem justificar os nossos atos,
simplesmente porque são nossos próprios atos equivocados que nos levam a
adoecer. Compreendamos a depressão de nosso amigo como conseqüência de seus
excessos em todos os campos de expressão de sua personalidade: vaidade
desmedida, arroubos inadequados de coragem, exibicionismo, orgulhosa
intolerância aos fracassos, excessiva confiança em si mesmo e a busca afanosa de
glórias e conquistas visando apenas ao enaltecimento da personalidade. Eis a causa
de sua sensibilidade aos insucessos e da guarida aos doentios sentimentos de
derrota que o martirizaram por longos anos na vida, após a colheita das meritórias
glórias, porém inadequadamente vivenciadas. Eis, em síntese, as razões de seu
transtorno depressivo. As forças mentais exaltadas se contraíram, embalando-o na
hipopsiquia que terminou na catálise do próprio “eu”: o

218 - Gilson T. Freire/Adamastor


suicídio. As demais motivações de seus pesares, como o descontentamento pelo
uso do avião na guerra, a sensibilidade à desconsideração de sua pessoa e,
finalmente, a sua grande dor perante a perda da primazia do pretenso invento são
cenários secundários que o feriram em decorrência da exaltação da suscetibilidade
e não podem ser, seguramente, imputados como causas primárias de seu processo
enfermiço. O quadro neurológico aventado como neurastenia se depreende como
natural desgaste das energias nervosas, submetidas a excessivo autocontrole em
suas arriscadas aventuras aéreas, empreendidas, sobretudo, no esforço de
sobrelevar-se acima do homem comum. Após sua morte, com a identificação de
alguns focos de desmielinização na intimidade do sistema nervoso central,
historiadores encontraram enfim a que imputar as desditas do mito nacional,
resguardando-o assim da ignomínia do ato suicida. A esclerose múltipla,
reconhecida patologia do sistema nervoso central descrita nos compêndios
médicos, embora de natureza ignorada, justificaria suas descabidas condutas,
indignas de um herói. Aqui, no entanto, perante a inquestionável realidade do
espírito, não podemos deixar de concluir que, mesmo a degeneração neurológica
ensejada como justificativa para seus males, é conseqüência e não causa de suas
fatalidades. A hipopsiquia, quando elevada à maior magnitude, incidindo na
intimidade da própria organização neurológica, é capaz de induzir a processos
degenerativos importantes, que facilmente podem ser encontrados em quadros
depressivos graves de longa duração. Entretanto, agrada ao homem e faz bem ao
seu orgulho inverter seus papéis na vida, situando-se como vítima das doenças,
negando-se, terminantemente, a reconhecer que a causa de seus males reside nos
próprios sentimentos e condutas adulteradas e distanciadas da Lei de equilíbrio que
vigora no universo.
— Contudo, não poderíamos aduzir que Alberto necessitava reagir diante da
pequenez física, empreendendo atos e atitudes que lhe soerguessem o abatimento
moral? A arrogância não se fazia necessária em defesa do ego apoucado? Não foi
exatamente esta menosvalia a indutora de sua altivez?
— Assim deduzindo, ele teria sido vitimado pelas circunstâncias biológicas
que lhe imputaram a deficiência orgânica e seu drama justificaria sua altanaria,
eximindo-o de culpas. Seu perspicaz raciocínio pode nos levar a errôneas
conclusões que facultarão ilibar todos os erros humanos. Convenhamos que, se a
ação desencadeia a reação, esta, por sua vez, pode induzir a novas reações, que, no
entanto, continuam a se justificar na primeira ação. A lógica da Lei em que estamos
inseridos nos leva a

ícaro Redimido - 219


entender que a dor somente pode pertencer ao reino das conseqüências e não ao das
causas. O espírito, em toda ocasião, é sempre vítima de si mesmo e não mero
produto da deficiência de seus veículos, que é sempre o reflexo de seus próprios
excessos. Devemos compreender sua reduzida estatura, portanto, como
conseqüência de outro passado, embasado também na prática da mesma arrogância.
— Quer dizer então que foi a mesma soberba, alimentada em existência
anterior, que o conduziu ao renascimento na minguada compleição física atual!
Compreendo...
— E o Plano Espiritual, prevendo que ele recalcitraria diante da imposição de
humildade, aproveitou-lhe o potencial de forte reação, para atiçá-lo no desempenho
da missão em benefício da humanidade. Nas Leis Divinas, Adelaide, mesmo o mal
e a dor devem trabalhar para o Bem. Se penetrarmos ainda mais em sua história
pregressa, seguramente encontraremos as motivações de tais deficiências que, de
outra forma, não se justificariam. A depressão não é a causa de seus sofrimentos,
como erroneamente podemos pressupor se analisarmos apenas o limitado espaço de
sua última encarnação; ela é conseqüência do rebote das forças exaltadas da
arrogância que o conduziu ao suicídio, e não a doença em si. Tudo se enquadra em
lógicos raciocínios na perfeição da Lei de Deus, onde não há lugar para acasos ou
sofrimentos injustos.
— Impossível não compreender, Adamastor. A depressão nasce da exaltação
doentia do “eu”, a menosvalia, da supervalia, a reação, da ação. Onde hoje há uma
carência, ontem houve um excesso...
— Minha dileta estudante enfim se deixou convencer da coerência
insofismável que move a Criação. Estamos imersos em um oceano de leis lógicas e
perfeitas, orientadoras de todos os fenômenos que se sucedem no seio do cosmos,
oriundas da Mente Divina. Temos um Pai que se expressa por Lei de Amor e
Justiça e nos subordina a uma ordem irretorquível, ordem que dita a felicidade de
cada um em conformidade com as suas obras e que não se deixa enganar jamais. É
possível a desordem, porém em espaços adstritos e contidos por uma Lei de
compensação que deixa toda ação restrita ao seu próprio âmbito de reações.
— Recordo-me de que a psiquiatria terrena em sua proposta de classificação
dos transtornos mentais, vê depressões que se comportam como distúrbios de
natureza unipolar e outras como bipolares...79
— Atentemos para o fato de que a ciência terrena tem para sua

79 A depressão bipolar é aquela em que os momentos depressivos se alternam com instantes de euforias
impróprias. Na unipolar há um permanente estacionamento na posição de melancolia.

220 - Gilson T. Freire / Adamastor


observação somente o reduzido intervalo de uma existência, Adelaide. Suas
conclusões são errôneas por não poder açambarcar a preexistência e a continuidade
da vida, onde os movimentos opostos e complementares forçosamente se
apresentaram ou se apresentarão. É necessário compreender que todas as depressões
são bipolares, pois todas são configuradas na dinâmica das forças mentais
bipartidas. A exacerbação da contração será sempre conseqüência da exaltação da
expansão, configurando os dois movimentos complementares, como vimos. A
alegria e o entusiasmo da fase maníaca, filhos da arrogância, se alternarão sempre
com a apatia da queda do humor, em qualquer situação. Na maioria das vezes,
contudo, a primeira fase, a da exaltação, não pode ser apreciada pelo observador
terreno, por se encontrar em existência pregressa, onde realizou seu movimento
inicial, deflagrador do quadro que se apresenta ao longo de toda uma encarnação,
sem uma causa que a justifique, aparentemente. O comprimento da onda mental,
excessivamente dinâmica e mutável, pode exceder nossa capacidade de observação
por se projetar em outro momento da vida, fora da limitada dimensão temporal do
homem encarnado. Qual onda onde somente se vê uma de suas fases, pode-se
facilmente deduzir que sempre uma oposta lhe antecedeu ou lhe sucederá. Naqueles
momentos em que a onda mental reduz sua freqüência, passamos a ver suas fases se
alternarem com rapidez, identificando facilmente a bipolaridade dos transtornos
mentais, sempre em obediência à mesma oscilação. Se não podemos, no entanto,
vislumbrar o movimento completo nos distúrbios unipolares, isso não pressupõe
que ele não esteve ou não estará presente e não podemos negá-lo pelo simples fato
de não tê-lo ao alcance de nossa análise.
— Nunca havia atinado para o fato de que a vida é uma imensa onda...
— Precisamente, Adelaide, porque a existência é produto da força mental que
se expressa como onda. E aqui podemos vê-la em amplitude, abrangendo em sua
trajetória muitas vidas e então notar com clareza suas oscilações de ascensões e
quedas. O estudioso terreno não pôde ainda antever os seus completos movimentos,
carreando a personalidade com seus transtornos aparentemente sem causas.
Acreditando que o homem é produto de uma única experiência de vida, não lhe foi
possível compreender que o deprimido de hoje semeou sua condição na inadequada
vivência da arrogância em existência anterior. No futuro, Adelaide, a ciência da
Terra será forçada a estas conclusões, por força da evolução, pois o homem não
tardará a atestar a existência do espírito, demonstrando esta

ícaro Redimido - 221


incontestável realidade pelos meios ditos científicos, trazendo solução para todas as
intrigantes contradições dos conhecimentos atuais.
Ante o assombro da amiga, cada vez mais deslumbrada diante da coerência do
tema abordado sob a ótica abrangente que a ciência do espírito nos permite,
continuei, completando minhas reflexões:
— E atentemos para o fato de que o movimento predecessor e indutor do
desequilíbrio não é identificado como uma doença entre os homens, que não
reconhecem o potencial enfermiço da arrogância se ela não atinge as raias da
megalomania. Não se considera como enfermo o espírito hiperegótico em livre
exercício da jactância, pois este se apresenta como um vitorioso em seu meio,
exibindo não somente dotes de conquistas fáceis, mas também exultante satisfação e
aparente bem-estar. Embora seu corpo denote muitas vezes a presença de patologias
hipertróficas, filhas da hiperpsiquia em vigência, a ciência médica terrena não
correlaciona essas alterações com o palco hipertroficamente desalinhado do
psiquismo. O organismo físico é, contudo, fiel indicador da real situação da
desarmonia que impera no panorama mental, reflexo seguro do doentio gradiente
hiperdinâmico. Somente quando se instala a hipopsiquia, reverberando a contração
das forças mentais com todo o seu exuberante cortejo de dores e angústias, acorre a
ciência médica, afoita, à procura de vilões que justifiquem o distúrbio, buscando-os
no campo das conseqüências. Sem conseguir identificar a hiperpsiquia como a
verdadeira etiologia de tais transtornos, não encontra ela outra alternativa do que
imputá-los às depleções neuroquímicas ou aos traumas psicológicos, como se nada
justificasse a suscetibilidade a estes males.
— Compreendo, contudo, ainda não abrangi todo o conhecimento de que
necessito para acalmar minha ansiedade. Como o indivíduo, muitas vezes, colhe os
reflexos de suas exaltações em outra existência e não pode recordar mais dos
excessos que motivaram suas carências, qual o valor em sofrer efeitos tão
distanciados de suas causas? Não se perdem as lições para o espírito?
— A limitada noção de tempo que flui de nossa razão não é a mesma que
determina o ritmo dos fluxos energéticos que vertem do espírito. A função letiva da
dor, embora aparentemente distante das causas que a determinaram, pode não ser
compreendida pela nossa limitada razão, circunscrita ao presente, mas é
seguramente apreendida e arquivada pelo inconsciente espiritual que, na verdade,
nos move na vida. Nossa memória extracerebral abrange toda a aventura do existir e
sabe arquivar experiências e corrigir seus impulsos pelos caminhos seguros da
intuição.

222 - Gilson T. Freire / Adamastor


Por isso, nenhuma lição se faz sem proveito, pois tudo percebemos e tudo
registramos, ainda que não guardemos a nítida consciência disso. A experiência é
arquivada devidamente e exercerá a sua ação corretiva de forma inconsciente, no
momento adequado, retornando sempre em benefício de nosso aprendizado.
Quando a evolução nos permitir dilatar a própria visão, abrangendo maior extensão
de nosso mundo íntimo, poderemos compreender com clareza todos os nossos
movimentos na jornada da vida, entendendo a necessidade de todas as dores
sofridas, por mais duras que nos tenham sido.
É verdade que muitas vezes assistimos a espíritos renitentes no mal, exercendo
livremente a rebeldia, despertando-nos a noção de que não há lei na criação para
detê-los. Desejamos, muitas vezes, em nossa ignorância, que a dor os visitasse de
imediato, suscitando-lhes a reforma necessária. Entretanto a Sabedoria Divina sabe
que não detêm condições de aproveitamento na escola da dor e o ensinamento em
hora imprópria seria baldado recurso. Por isso eles são entregues aos próprios
desatinos até que a evolução lhes proporcione condições de receber suas preciosas
preleções com proveito, como uma colheita que precisa ser amadurecida para se
prestar ao consumo. Assim é que muitas vezes vemos espíritos já renovados, que
aparentemente não necessitariam de corrigendas, colhendo grandes sofrimentos,
oriundos de causas muito distantes no tempo, exatamente porque este é o momento
mais propício para lhes tornar útil o necessário aprendizado.
— Ocorre-me ainda, Adamastor, que muitas vezes observamos indivíduos
situados em evidente instante depressivo, denotando entretanto a presença de
patologias hipertróficas no corpo físico. Como entender essa correlação que deveria
ser exata em toda situação?
— Lembremos, Adelaide, que o dinamismo da força mental é suscetível de se
movimentar em diversas freqüências, podendo passar, de um momento para o
outro, da exaltação à completa depleção da emotividade, enquanto que o corpo
perispiritual e muito mais o físico necessitam de tempo maior para se acomodarem
a esses doentios impulsos. Por isso poderemos apreciar uma patologia hipertrófica
em campo emocional hipopsíquico pelo fato de o psiquismo caminhar na dianteira
dos movimentos orgânicos. Atentemos ainda para o fato de que nossas forças
psicossomáticas obedecerão sempre ao gradiente de plenitude predominante no
dinamismo mental, que pode, em um momento, carreado pelas circunstâncias a que
se expõe, denotar movimento em direção oposta. É assim que um indivíduo em
franca hiperpsiquia, subitamente pode conduzir

(caro Redimido - 223


sua psicoenergética para a hipodinamia, motivado por falências ou frustrações
súbitas em suas pretensões, enquanto seus veículos psicofísicos continuam
obedecendo à resultante dos impulsos hipertônicos ainda predominantes. Assim
vemos que o quadro mental, muito mais dinâmico, estará se adaptando às
condições do presente, enquanto que o corpo físico continuará refletindo o passado,
até que, uma vez esgotado o primeiro impulso que o guiava, possa atender aos
últimos impositivos das forças psíquicas.
— E não se pode negar que vemos muitos enfermos apresentando patologias
hipotróficas no corpo físico, sem denotarem aparentemente um correspondente
campo mental depressivo. A hipopsiquia, nestes casos, encontra-se inaparente?
—É pertinente atentarmos para um outro fato importante. Os princípios divinos
que regem nossa organização atuam de forma a facilitar a transferência de toda
desarmonia da força mental para os corpos periféricos que nos compõem os
veículos de manifestação. Devido a isso, quanto mais saúde tem um indivíduo,
mais na periferia irá ele manifestar os desequilíbrios de sua vida mental. Desta
forma, os potenciais distônicos, tanto da hiperpsiquia quanto da hipopsiquia, serão
desviados, preferencialmente, para os departamentos orgânicos superficiais,
drenando- se a desarmonia interna e resguardando-se a mente dos sofrimentos
engendrados para si mesmo. Destruindo o corpo, reduz-se o potencial lesivo da
força mental desequilibrada, inibindo-a de voltar-se contra si mesmo. Quando,
entretanto, todos os intentos orgânicos são insuficientes para a completa
exoneração do mal ou sua drenagem física é obstaculizada de forma insuperável, o
distúrbio se concentra então em seu próprio cerne, desestruturando-se o psiquismo
nas mais diversas formas de enfermidades mentais. Desta maneira, desafogar a
pulsão depressiva nas degenerações físicas é reação defensiva da mente, minorando
em si mesma os efeitos de suas próprias distonias.
— Por isso, então, adoecer o corpo é curar a alma, como temos aprendido...
— Isso mesmo, Adelaide. Enfermar o corpo é defender o intricado
funcionamento psíquico e obstaculizar a enfermidade no corpo pode fazê- la
reverberar-se para o interior, de onde partiu.
— Tais princípios, bastante lógicos, levam-nos a graves conjecturas, ao
denotar a atitude do homem terreno sempre pronto a reprimir o desenvolvimento de
seus males físicos. Podemos concluir que se as doenças físicas não tivessem o seu
curso obstaculizado, permitir-se-ia uma maior

224 - Gilson T. Freire/Adamastor


acalmia dos transtornos mentais? Reprimi-las, neste caso, será impor maiores
dificuldades ao próprio reequilíbrio?
— A questão é realmente relevante, conduzindo-nos a sérias inquirições com
respeito à atuação da medicina praticada atualmente na Terra, que se esmera na
nobilitante tarefa de curar as enfermidades do homem terreno, porém sem questionar a
função biológica da patologia, muitas vezes necessidade premente para o equilíbrio do
espírito. Distanciada da realidade espiritual da vida e sem identificar as finalidades da
dor, empreende a nobre ciência a busca afanosa da supressão dos distúrbios orgânicos,
visando apenas ao conforto imediato daquele que padece, sem compreender que a
doença física é esforço curativo da mente, mera drenagem mórbida, visando à solução
para suas desordens e impedindo quase sempre o estabelecimento de males maiores.
Reconhecemos, na atualidade, que a simples repressão das patologias orgânicas,
embora proporcione imediato bem-estar ao que sofre, nem sempre é prática segura de
saúde para o espírito, podendo agravar-lhe as desordens internas. As energias
deletérias do perispírito permanecem contidas e deverão ser evacuadas através de
patologias ainda mais graves, pois a premência de se manter os mecanismos mentais
em funcionamento adequado supera o valor da integridade do corpo físico, sacrificado
em prol da integridade do espírito. A questão é grave, pois implica uma reformulação
dos conceitos médicos vigentes, para os quais o homem terreno ainda não está
preparado. Aguardemos o futuro, minha amiga.

ícaro Redimido • 225


Em Busca de Soluções

‘Não peques mais, para que não te suceda coisa pior Jesus - João, 5:14

delaide, admitindo estes novos conceitos que nunca havia


vislumbrado, reconhecia que a ciência do mundo ainda tem muito
a aprender no campo do espírito. O assunto exigia uma abordagem
mais aprofundada e, interessada em encontrar reais soluções para o drama
da doença depressiva, continuou a interrogar-me:
— Estas considerações, facilmente compreensíveis por nós, não poderiam,
contudo, atormentar aqueles que lutam com sinceridade paia curar as doenças que
acometem o espírito na carne? E como podemos orientar aqueles que tratam e os
que padecem os transtornos depressivos, na atualidade?
— Sabemos que a questão extrapola o momento atual da ciência materialista,
mas aquele que já conquistou um patamar de conhecimentos espirituais detém
condições de compreensão, Adelaide. Os que sofrem depressão ou mesmo outras
perturbações mentais deveriam tolerar, ao máximo, as pequenas e suportáveis
doenças superficiais que lhes apareçam, sem se arvorar em estancá-las com
excessiva carga de medicamentos supressores, pois seguramente são correntes de
drenagens de seus mabs principais e lhes trarão benefícios para a alma enferma. A
extração de patologias hipertróficas do corpo, como os tumores benignos,
simplesmente porque estão presentes, deveria deixar também de ser um hábito tão
freqüente na medicina humana. Essas patologias, produzidas pelo desvio das
energias hiperegóticas, deveriam ser toleradas ao máximo,

226 • Gilson T. Freire/Adamastor


pois representam um esforço curativo da mente que expurga de sua intimidade sua
própria morbidez, fazendo-a consumir-se na carne. Se reprimidas apressadamente
poderão induzir novas construções hipertróficas, ainda mais graves, ou farão refluir
o desequilíbrio para o interior, intensificando a hiperpsiquia com o conseqüente
aprofundamento de seu potencial lesivo, aumentando posteriormente o rebote
hipopsíquico. Ou seja, o distúrbio depressivo, que no futuro se instalará por força da
lei de compensação energética, será agravado. Por tudo isto, podemos então
perceber com clareza que, como regra geral, quanto mais o homem encarnado
tolerar seus males físicos menos irá padecer os transtornos de sua mente.
Nosso consolo baseia-se, entrementes, no fato de que muitos pensadores estão
reencarnados na atualidade com essa finalidade e várias escolas médicas na Terra,
consideradas ainda alternativas, já caminham a passos largos para estas conclusões.
Em breve elas serão reconhecidas pelo pesquisador terreno imbuído dos melhores
propósitos em solver os males humanos.
— Diante de tantos esclarecimentos, compreendo que seria uma parvoíce
imputar ao mundo fisiológico e suas deficiências os transtornos depressivos que
assediam nossa alma. No entanto, recordo-me de que a medicina terrena demonstra
com evidência que a deficiência de substâncias neuroquímicas e doenças orgânicas,
as mais diversas, produzem as alterações psicopatológicas sob nossa análise,
parecendo demonstrar que elas se assentam em uma base puramente material,
embora não se negue a importância dos traumas psicológicos em sua etiologia.
Como compreender estas deduções, fato inegável, principalmente diante da
evidência dos efeitos benéficos dos psicofármacos?
— As deficiências orgânicas, em qualquer nível que se manifestem, são sempre
meros reflexos da queda de potencial das energias espirituais, verdade para nós
incontestável diante da realidade em que vivemos. É de fácil compreensão que a
depleção dos neurotransmissores, as cerebrinas, imputadas como causa primária da
enfermidade depressiva, comparece como conseqüência natural da hipopsiquia que
atinge todos os departamentos da vida mental e física. Hipopsiquia, que já
compreendemos ser a resultante da hiperpsiquia, a malfadada aventura da
arrogância humana, na verdade o fator etiológico de todos esses transtornos. Como
é da lógica, todo esgotamento orgânico ou psíquico, de qualquer natureza, é
precedido sempre por inadequado e excessivo uso destes mesmos recursos. Tal
conclusão é irrefutável compreensão que a Lei de equilíbrio

ícaro Redimido - 221


nos faculta deduzir e que não pode ser contestada, pois a vemos funcionar no
mundo das causas e dos efeitos. Não há efeito sem causa, tal é o axioma
insofismável da Lei. Não se pode admitir a depleção dos neurotransmissores sem
uma causa que a justifique. Não se pode compreender a alma subjugada às
aleatórias deficiências da matéria. Somente um raciocínio puramente materialista
pode vindicar tais improcedentes e pueris hipóteses, conclusões precipitadas,
próprias daqueles que não são capazes de admitir a vida como um produto do
espírito. A incompreensão de que o homem, ao renascer na Terra, traz consigo o
reflexo dos abusos do passado, impossibilita ao estudioso sincero a visão das reais
causas das enfermidades em qualquer nível em que se manifestem.
Como já vimos, a doença é sempre efeito, nunca causa de nossas dores.
Costumamos raciocinar como alguém que corre até a exaustão e depois imputa às
dores do cansaço a sua impossibilidade de continuar correndo. A falha é anterior e
está no abuso que levou ao esgotamento das forças, evidentemente. Devemos
sempre buscar o erro nos excessos de toda natureza que empreendemos na aventura
da vida e não em nossas carências, sempre as conseqüências. O excesso leva ao
dano, que depois passa a exercer um impedimento natural ao prosseguimento dos
exageros, por imperiosa necessidade de reequilíbrio e não mero obstáculo ao nosso
desenvolvimento. O orgulho nos leva a acreditar, contudo, que a doença é o
obstáculo injustificável à continuidade de nossas loucas aventuras, pois encontrar
explicações fora do âmbito de nossos próprios erros agrada- nos sobremaneira e
abona nossas deficiências perante os companheiros de jornada, eximindo-nos da
responsabilidade pelos fracassos.
— Erroneamente o dano passa a ser visto como o agente causador de nossos
males. Compreendo. Não conseguimos ver que o abuso está na raiz de todas as
nossas carências, fruto de nossos egoísticos anseios...
— Somos o exato produto de nossa própria corruptela e toda dor é corretiva,
disto não podemos abrir mão, pois somos filhos de um Pai que é Amor e habitamos
uma Lei perfeita. Evidentemente é preciso reconhecer que espírito e corpo
compõem uma unidade, e interferências físicas de diversas naturezas, em qualquer
departamento orgânico, induzem alterações que podem obstaculizar o seu perfeito
funcionamento. Este fato leva o pesquisador materialista a interpretar
equivocadamente que a função é produzida pelo órgão, enquanto que na realidade a
função é ato do espírito e a perda do órgão não implica seu dano, mas apenas a
inutilização dos meios para a sua realização. Evidentemente, o espírito,

228 - Gilson T. Freire/Adamastor


destituído da integridade de seu ferramental orgânico, não pode se manifestar
adequadamente, assim como um músico não consegue executar sua arte com
instrumentos danificados. Se interferirmos no metabolismo dos neurotransmissores,
impondo meios químicos que atenuem ou acentuem suas ações, importantes efeitos
se farão refletir na mente, mas isso não pressupõe que determinadas funções
mentais sejam desempenhadas por tais substâncias, o que fere a lógica da vida. O
espírito, no exercício das funções psíquicas, serve-se destas delicadas substâncias
para se manifestar e sem que atuem corretamente não pode se expressar como
deseja. Portanto, a interferência na neuroquímica não pode curar a mente, assim
como não se endireita um músico agindo em seu instrumento. São capazes apenas
de interferência fugaz nos mecanismos bioquímicos que sustentam a tela mental, e
não na fonte do desequilíbrio que reside no espírito. O homem, contudo, se deixa
embalar pelo sonho vão de que basta ingerir pílulas para que milagrosamente se
cure. Doce ilusão, a vida com sua sabedoria continuará incidindo com suas dores
até que o ser conquiste o próprio equilíbrio. Não nos iludamos, Adelaide, a depleção
das cerebrinas se segue ao seu uso exagerado, assim como a degeneração da
personalidade é sempre conseqüência de sua doentia supervalorização.
— Como entender a necessidade do emprego dos psicofármacos neste caso,
Adamastor? Justifica-se a interferência química no intricado metabolismo das
células neuronais, tão em moda na Terra?
— Depreende-se que o homem, no momento atual, ainda não tem diferente
forma de agir diante dos transtornos mentais ou doenças de outras naturezas que lhe
acompanham a jornada terrena, a não ser introduzindo substâncias químicas
inibidoras ou estimulantes, suprindo necessidades imediatas, porém de ação
irrisória e às vezes até infeliz. Fugazes meios de reparação que não podem se
sustentar indefinidamente, sem que redundem em graves conseqüências para a
saúde. A economia orgânica, em qualquer departamento físico, funciona segundo
equilíbrios seculares e mantém a vida, graças à sua capacidade reativa diante dos
obstáculos e imperativos naturais da jornada terrena. A excessiva interferência da
farmacoquímica artificial dos tempos modernos, se consegue simular uma vitória
momentânea contra as doenças do homem, a longo prazo induz ao enfraquecimento
da constituição biológica, mesmo no campo psíquico. Diante dos mínimos sintomas
de ansiedades ou de angústias momentâneas, prefere o homem ingerir pílulas que
lhe inibam as salutares reações psíquicas de reequilíbrio, tornando-se
conseqüentemente cada vez mais vulnerável aos agentes emocionais que

ícaro Redimido - 229


suscitam tais sintomas. Se podem impor momentâneos bloqueios às perturbações do
psiquismo, não podem evidentemente curar o espírito, que segue carreando seus
distúrbios, exigindo reparos. Por isso, em que pese o nobre esforço do homem
encarnado em frenar suas enfermidades com o emprego dos dardos químicos, seus
males continuarão multiplicando-se até que a necessidade de corrigendas cesse
mediante a semeadura de novos equilíbrios para suas recônditas forças orgânicas e
psíquicas adulteradas. A seguir o curso em voga no planeta, o excessivo
bombardeio químico, sustentado por impróprias explorações econômicas, poderá
degenerar a reatividade do espírito perante às exigências imperativas da evolução,
retardando-lhe os passos do progresso. As situações estressantes que sempre
existiram e eram muito mais intensas, impondo ao homem a necessidade de
conquistar novas potencialidades para o espírito, serão paulatinamente menos
toleradas, se não houver uma urgente mudança de hábitos diante do abusivo
emprego dos psicofármacos. Produzir-se-á uma raça de psiquismos frágeis,
insuficientes para se sustentarem diante dos percalços naturais da aventura humana.
Cada vez mais os doentes, em número crescente, dependerão de novas drogas do
quimismo artificial que lhes suscitem um mínimo de bem-estar necessário à vida. A
situação é preocupante, Adelaide.
Ante o assombro da irmã, prossegui:
— Esquece-se o homem de que os recursos curativos mais preciosos estão
dentro de si mesmo, olvidando que, se a mente pode adoecer, é capaz igualmente, e
com muito mais propriedade, de curar-se. Portanto, os medicamentos, se
proporcionam aparente e momentâneo conforto ao que sofre, não podem
verdadeiramente sanar o espírito, este sim o verdadeiro enfermo e artífice da saúde.
Por isso, impor bloqueios à neuroquímica cerebral é apenas obstaculizar o curso dos
desequilíbrios, simulando uma acalmia para os transtornos que se mantêm, exigindo
cada vez mais o próprio reparo. Estejamos certos, o homem não é mero produto de
seu universo celular, não está subjugado à sua massa de neurônios e tampouco é
uma secreção cerebral, não podendo ser corrigido mediante simples ações de
natureza bioquímica. Não nos enganemos, os transtornos depressivos não se curam
com os psicofármacos, capazes de irrisória exaltação do ânimo abatido, propiciando
passageiro lenitivo que, não sendo real aquisição do espírito, não pode se manter.
O homem está sempre disposto a violar toda lei de equilíbrio e depois se ilude com o
fato de que basta ingerir pílulas para acalmar as reações livremente semeadas.
Dissemina dissabores, fazendo-se jus às angústias

230 - Gilson T. Freire / Adamastor


corretivas, mas prefere ignorá-las, entregando-se ao sabor do engodo, acreditando
que algumas pastilhas de felicidade, feitas da mais factícia química, estranha à
natureza da vida, irão lhe restituir as alegrias legitimamente desfeitas. Quimérico
artifício, seus padecimentos retornarão ainda mais aumentados, se não se apressar a
restabelecer os equilíbrios perdidos e a conquistar méritos para o bem-estar. A
sabedoria da Lei não se deixa ludibriar pela insciência dos homens e cobrará de
cada um a sua lição em forma de dor, até que aprendam a atuar nos limites do amor.
Lei que os quer perfeitos e por isso faz reverberar na intimidade de cada um toda
desarmonia imposta aos outros. Como o espírito é feito de substância divina e
habitante de um universo onde somente a ordem pode subsistir, não é capaz de
tolerar em si o mínimo desequilíbrio, estacionando-se na provação até que se
corrija.
E assim, com pesar, o Mundo Maior assiste ao homem moderno drogar-se sem
fundamentos, alguns enxurdando-se naquelas consideradas lícitas, enquanto outros
se inebriam nas proscritas, sem que saibamos exatamente onde está o limiar entre
umas e outras, entre a necessidade sincera e o abuso, entre o desejo de solver males
e o anseio de fugir da própria penúria espiritual, enquanto terceiros tratam de
auferir lucros fáceis, na desvairada inconseqüência humana onde todos são
chamados a participar. Lamentáveis enganos, pois toda droga de ação psicotrópica
induz ao empobrecimento da vida mental, queiramos ou não admitir o fato. A
entrega abusiva a elas degenera o delicado metabolismo cerebral, carreando
consigo a inópia para o espírito. Em nosso plano, a cada dia se constata mais a
relevância desta realidade, pois verificamos com assombro o crescente número de
almas inquietas e indigentes da alegria que aqui aportam, transportando
desequilíbrios muito maiores do que aqueles que os conduziram à carne, pois
agregam às carências da alma os vícios de um quimismo aviltante, desagregador do
bem-estar psíquico, exigindo reparos através de soluções ainda mais dolorosas e
demoradas do que os agravos iniciais.
Sempre que possível deveríamos evitar o abuso desse artificialismo
completamente estranho à alquimia da mente, que, se pode redundar em proveitos
imediatos, pode igualmente induzir a vícios, erros metabólicos e intoxicações
inadequadas, seviciando o espírito e adiando soluções verdadeiras para os seus
males, uma vez que apenas os camufla.
Não desejamos com isso destituir o valor nobilitante da medicina terrena que,
com sinceridade de propósitos, luta para aplacar as enfermidades humanas e nem
desestimular os que sofrem, eximindo-os

ícaro Redimido - 231


de buscar na nobre ciência a devida ajuda de que precisam. Justifica-se o uso dos
medicamentos, portanto, se não tem o homem ainda outra atitude a tomar, desde que
os utilize dentro dos limites do bom senso, usando-os o mínimo possível e não se
acercando deles como se fossem os únicos e indispensáveis recursos,
menosprezando as reais necessidades do espírito. São muletas que um doente deve
deixar logo que se veja em condições de andar sozinho, para não correr o risco de
ter suas pernas atrofiadas pelo seu uso inadequadamente excessivo. Sua situação
depois se tornará muito mais penosa, transformando-se em um mal o que era apenas
um meio. Os remédios não podem servir como desestímulo à reconquista do
equilíbrio perdido, inibindo no enfermo o empenho na correção das errôneas
atitudes que mantém a sua enfermidade, iludindo-o de que alcançará a cura com o
uso do agente externo.
Sem a urgente reforma dos atos e sentimentos, não se deve esperar benefício
algum de drogas introduzidas em nosso delicado metabolismo psíquico. Nosso
remédio mais urgente é a evangelização das condutas moralmente impróprias,
responsáveis pela semeadura de todos os nossos males.
— Entretanto, assistimos a muitos médicos sinceros, trabalhadores do bem,
induzindo seus pacientes, portadores de graves transtornos depressivos, ao uso
continuado de drogas que lhes realcem o ânimo abatido e imbuídos dos melhores
propósitos possíveis...
— E não temos o direito de condená-los, Adelaide. Não detêm ainda as
alavancas que podem mover a força mental. Por isso minha palavra é somente de
alerta e não um ditame de conduta ou uma repreensão. E apenas repito o que
abnegados instrutores espirituais, que intentam auxiliar o homem que sofre na
Terra, insistentemente nos têm advertido. Se até o momento não há outro meio
senão a indução de artificial conforto químico, saibamos, contudo, que tal recurso
deve se restringir ao mínimo possível e que não nos faça perder de vista a
necessidade de se estimular no deprimido o correto direcionamento da sua poderosa
força mental, corrigindo seus descabidos sentimentos. Que não cruzemos os braços,
cientes de que tudo está resolvido com a baqueta mágica da farmácia, como se
fosse tudo o que pode ser feito. A felicidade é uma conquista à qual se deve fazer
jus e incorporada de dentro para fora, jamais ao contrário.
— Não há como alertar os estudiosos sinceros, em esforço evolutivo na Terra,
sobre a grave questão?
— Não queremos menosprezar o valor do trabalho médico da

232 - Gilson T. Freire / Adamastor


atualidade, apenas salientar que a ciência ainda atua de forma equivocada, porém no
rumo certo da boa vontade de acertar. Quando olhamos para trás na História,
podemos observar os grandes erros da medicina, sem que isso condene sua
trajetória, sempre imbuída dos melhores propósitos em solver os males humanos.
Na atualidade, no entanto, o homem, com seus olhos fixos na matéria e incapaz de
perscrutar no campo do espírito, ainda atua fundamentado em muitos enganos que
somente o desenvolvimento futuro lhe permitirá reconhecer. Não somente o abuso
do quimismo artificial no tratamento das doenças mentais pode ser, até agora,
grande óbice à aquisição do equilíbrio espiritual do homem enfermo, mas a terapia
proposta para boa parte das doenças físicas ainda é equivocada, pois se baseia em
pressuposto materialista que não sabe reconhecer nelas um papel a cumprir,
acorrendo a suprimi-las o mais rápido possível. Atuando no imediatismo, colhe
soluções de cunho eminentemente provisório, eximindo-se de prognosticar o futuro
e sem compreender que a alma necessita de urgentes dores corretivas para os males
que continua semeando. Não podemos deixar, no entanto, de admitir que o espírito
carece de sustentar-se na carne o máximo de tempo possível e para isso é preciso,
muitas vezes, que, tanto a enfermidade mental quanto os transtornos físicos, tenham
seus cursos obstaculizados. Admitimos, sem sombras de dúvidas, que a carne ainda
requer cuidados médicos e necessita de reparos, permitindo-se ao encarnado a
continuidade de sua caminhada. Por isso, diante dos males infligidos a si mesmo, a
medicina do corpo ainda é campo sagrado de necessidades do homem, na exigência
dos cuidados que o Pai nos dispensa. Quando a ciência descobrir o espírito,
contudo, muitos de seus equívocos serão sanados e a medicina, curada do
materialismo renitente, será poderosa alavanca para o soerguimento da alma, no
rumo acertado da evolução.
— Quanto ainda temos a aprender! —exclamou Adelaide, assustada diante de
meu vivo entusiasmo na consideração dos erros humanos, como se detivesse de fato
o direito de condenar.
E com o firme propósito de encontrar reais soluções, perguntou a amiga,
ansiosa:
— Qual deve ser então nossa correta conduta, uma vez identificados os males
dos transtornos depressivos?
— Se compreendemos a fisiopatologia da arrogância, fácil é entender que a
humildade é de fato o recurso mais importante para o seu tratamento. Não a
submissão imposta por força dos impositivos reacionais que os transtornos
depressivos carreiam, vergando-nos a soberba ante a

(caro Redimido - 233


exacerbação das fraquezas que transportamos na alma, porém aquela que é sincera
expressão da personalidade. Faz-se necessário o exercício da humildade genuína e
evangélica, fruto da abnegação dos perniciosos interesses do “eu” ególatra. Jesus já
nos havia recomendado o precioso remédio, Adelaide, porém pensávamos tratar-se
de parvoíce ou apenas uma bela virtude para adornar o espírito, menosprezando o
mais valioso recurso para a profilaxia e a cura de nossos males. Projetar o outro
acima de nossa pretensa grandeza, fazendo-nos pequenos e servos de todos. Abdicar
dos primeiros lugares que nos enaltecem, dirigindo as luzes do destaque para o
outro, desviando-as de nossa enfermiça vaidade. Embargar a ambição desmedida na
conquista de arroubos pessoais que visam somente nossa jactância e nos projetar
acima dos outros. Eis os sábios conselhos que nos asseverou o Mestre,
indispensáveis ao nosso bem-estar, como já vimos, mas precisamos reiterar para
que não caia no olvido.
Receber a dor como corrigenda e procurar pelas suas sábias lições. Sujeitar-se,
com humildade, à imposição da angústia que a depressão suscita, na certeza de que
exaltando-nos às muitas carências e fraquezas, ela nos obriga a reconhecer as
genuínas necessidades da alma, que devem ser prontamente atendidas. Acatar com
sabedoria os males inevitáveis que a vida nos impõe em forma de danos, cientes de
que nada se perde em definitivo, pois não há na Lei Divina prejuízos que não
possam ser reparados. Compreender que a abstenção, ainda que danosa, seja do
afeto ou dos bens aquinhoados, é-nõs preciosa preleção de abnegação, corrigindo-
nos a morbidez da ganância e a sordidez do caráter adoecido de renitente cobiça.
Afastar-se da atitude de vítima e da revolta é também imperioso recurso
terapêutico. Chafurdar-se em queixumes e lamúrias, atitude comum ao que sofre na
Terra, apenas multiplica os males que nos acossam a alma. Cultivar a paciência e a
resignação, permitindo-se o esgotamento dos destrutivos impulsos da força mental.
Para isso é bom tolerar, na medida do possível, as desordens físicas conseqüentes à
energética psíquica alterada, cientes de que quando o organismo pode dirigir para a
superfície os seus próprios males, minora-se o seu potencial mórbido.
Impor reorientação segura para a conduta, os pensamentos e os sentimentos em
base aos preceitos evangélicos, a fim de semear novos e saudáveis equilíbrios às
potências do Espírito. O exercício da brandura não deve ser olvidado como de uso
contínuo, imposto ao caráter, reduzindo-se o manancial de rudeza. A bondade deve
brotar

234 - Gilson T. Freire / Adamastor


espontaneamente da alma, recordando que o efeito curativo do bem não é mero
sofisma, mas preceito inserido na sabedoria da Lei e que deve ser realizado da
forma mais sincera possível, pois a Lei sabe medir a lhaneza de um ato, a intenção
de um pensamento ou o escopo, ainda que exíguo, de um sentimento, não se
prestando aos ludíbrios tão comuns à psicologia de astúcia que ainda mora em
nossas intenções e permeia nossas atitudes. Sem olvidar que é sempre possível agir
no Bem, pois nada nos impede de exercitar a caridade da afabilidade e da
paciência, mesmo em meio à mais grave tempestade íntima.
Inibir a qualquer custo as atitudes expansionistas próprias da egolatria,
bloqueando com segurança a retroalimentação do Mal. Depor as armas da
arrogância e da defesa dos interesses imediatos de nosso egoísmo é convite para
que as forças do universo se precipitem em socorro às nossas necessidades,
conferindo-nos alegrias verdadeiras. Recordemos que as potências divinas que nos
sustentam na vida se cerram diante do egoísmo e do orgulho, doando-se àquele que,
com sinceridade de propósitos, sabe renunciar a si mesmo em favor do bem-estar
alheio. E não há na criação poder curativo maior do que o poder divino operando
em nosso favor.
Alimentar a alegria genuína e a esperança no futuro é de bom alvitre,
guardando a certeza de que brotarão no fértil campo da alma, se as semearmos
devidamente. Acovilhar o psiquismo nas leituras nobilitantes e não olvidar que o
apoio dos amigos, nas horas de íntimo desgosto, pode nos soerguer o ânimo
abatido. O valor da prece não deve ser subestimado, pois é recurso seguro para o
enlevo espiritual e sublime farol a iluminar as trevas interiores que nos
ensombreiam a felicidade. O trabalho, quando possível, não pode ser menosprezado
como elemento terapêutico valioso, pois a mente subordinada ao ócio é terreno
favorável à proliferação de ervas daninhas, deteriorando as energias reconstrutivas
do espírito.
Eis os segredos do equilíbrio, medidas sempre ao alcance de nossas mãos, na
profilaxia e tratamento dos transtornos depressivos, os quais representam genuíno
efeito curativo por atuarem na raiz do mal. Recomendações que são de fácil
dedução, embora consideradas simplórias e de valor secundário diante da
possibilidade efetiva de ação medicamentosa, na qual, erroneamente, confia-se
muito mais.
As terapias energéticas, como o passe empreendido nos templos espíritas,
representam na atualidade recurso terapêutico inigualável de apoio à alma enferma.
As psicoterapias, se bem orientadas, são também

ícaro Redimido - 235


sadios meios suscitantes de equilíbrios, uma vez que podem proporcionar ao doente
o reconhecimento das próprias fraquezas e necessidades de melhorias. Terão
inestimável valor se souberem ajudá-lo na reconstrução do panorama íntimo
desfeito, fundamentando-se na humildade e no aprimoramento moral. Contudo, se
atuarem nutrindo o ego menosválido com o cipoal da arrogância, embora se
obtenha aparente êxito em primeiro instante, persistirão suscitando os mesmos
males que sustêm a enfermidade, que seguramente retornará agravada no futuro.
A interferência na delicada química neuronal deve ser o último elemento
terapêutico a se aventar, diante da falha dos demais recursos e da imperiosa
necessidade de se obstaculizar o malfadado mergulho na autodestruição. E não se
deve olvidar que seu emprego seja o mais breve possível, evitando-se danosas
conseqüências no inextrincável quimismo espiritual que nos sustenta na jornada
evolutiva.
— E em nosso mundo, Adamastor, o que se faz para o tratamento destes
males?
— Como sabemos, a morte não nos faz sábios e pode apenas abastecer- nos a
visão com uma mais dilatada percepção da realidade. Por isso, os desequilíbrios que
trazemos da aventura na carne costumeiramente se avultam aqui, deixando-nos
entrever com mais clareza a própria penúria íntima. A consciência, sensibilizada pela
percepção da nova vida, ressente- se muito mais dos erros cometidos, exigindo
reparos. A alma, deixando pender suas máscaras, faz-se nua diante de suas fraquezas
e enormes necessidades. A pequenez do espírito se exalta diante da grandeza divina,
revelada em mais expressiva amplidão e excelsitude. O sossego é assenhoreado pelo
reconhecimento da extensão das faltas e maldades engendradas na satisfação de
egoísticos propósitos. A paz é perturbada pela lembrança do tempo irreversivelmente
consumido em inutilidades. Natural assim que a maioria, deparando-se com a
inquestionável realidade e suas novas exigências, deixe-se chafurdar em penosas
agruras, fazendo engrandecer no espírito as carências de toda sorte. O número de
aflitos, portanto, transportando transtornos depressivos, no plano em que estamos,
aumenta sobremaneira, demandando de nossos orientadores recursos assistenciais
muito mais expressivos.
Muitos, contudo, atravessando a existência em luta pela aquisição de títulos que
lhes enobreçam o personalismo, aqui aportam enlouquecidos, reclamando privilégios
como se os valores arquivados com base no menosprezo alheio compusessem
genuínas aquisições da alma. Sem compreenderem a premente necessidade do
aprimoramento espiritual rumo

236 ■ Gilson T. Freire / Adamastor


ao bem, para a aquisição da própria felicidade, prosseguem reverberando a mesma
arrogância, convertida em hábito personalístico, em lamentáveis exibições de
orgulho, ódio e revolta. Ensandecidos, sem se darem conta da própria indigência,
continuam disseminando maldades, impondo interesses egóicos para colher depois
os produtos mórbidos da semeadura, em forma de atrozes e profundas quedas
depressivas nas futuras reencarnações. Poucos são aqueles que realmente detêm o
beneplácito da humildade, encontrando a felicidade e o equilíbrio nos refolhos da
alma, aqui chegando.
Eis delineado o lamentável panorama da alma humana, depois do túmulo,
revelando o quanto ainda temos a percorrer para o encontro com a saúde mental
verdadeira. Compreensível que nos preocupemos com o tratamento, sobretudo
preventivo, dos transtornos mentais que se avolumam em nosso plano.
Como médicos do espírito, Adelaide, estamos empenhados na ciência de
orientação ao homem, urgente medida terapêutica e profilática da saúde mental.
Entretanto, como todos nos achamos submetidos aos mesmos imperativos dos
seculares vícios do orgulho, que nos adoecem, toda medida aplicável ao doente
deve começar por nós mesmos.
Embora cientes de que a saúde verdadeira somente se conquista de dentro para
fora, contamos com diversificados meios de suporte terapêutico, mas não temos
fórmulas mágicas ou remédios miraculosos no plano em que estamos, capazes de
suprimir todos os males que o espírito transporta. Embora habitemos uma realidade
sustentada em um substrato que ainda se pode considerar material, aqui não
utilizamos compostos químicos artificializados, tão ao gosto do homem terreno. Em
raras ocasiões usamos essências medicamentosas dinamizadas, destituídas de
qualquer substância física que interfira no sagrado quimismo da vida, à semelhança
da Homeopatia terrena e segundo os seus mesmos postulados. Os recursos mais
empregados são essencialmente de natureza energética, como os passes magnéticos,
a musicoterapia e a hidroterapia.
O uso de essências florais aspiradas diretamente de florações vivas é recurso capaz
de fornecer eflúvios benéficos ao perispírito desvitalizado e utilizado em nosso
plano, em jardins terapêuticos preparados para este fim. Casos mais graves, como o
de Alberto, necessitam de terapia regressiva, sendo este o mais eficaz tratamento
para os transtornos da mente, na atualidade. A terapia do amor, efetivada por almas
possuídas de grande capacidade de irradiar bondade, é recurso bastante eficaz, mas
que guarda méritos pessoais. Diante de patologias ainda mais sérias e

ícaro Redimido • 237


quando tudo falha, a reencarnação comparece como a única solução terapêutica
possível para os males da alma, permitindo-se a transferência para o corpo físico
dos mananciais mórbidos acumulados nas reentrâncias psíquicas do ser.
Estejamos cientes, no entanto, de que a base terapêutica mais elevada com que
devemos contar é a inibição da arrogância, primeira imposição no tratamento de
toda e qualquer patologia que o espírito transporte. Por isso assistimos às Leis da
vida, com sabedoria, impondo carências, sejam emocionais, orgânicas ou
circunstanciais, onde trazemos o hábito do abuso, confeccionando-nos destinos que
nos forjam a acomodação dos excessos de toda natureza condicionados na
personalidade. Assim é que partimos para a vilegiatura terrena, muitas vezes
enfrentando dificuldades e privações acerbas, com a única e precípua finalidade de
refazer o equilíbrio perdido.
— Um longo e doloroso caminho para a retomada do bem-estar... Sem dúvida,
lutar permanentemente para nos mantermos no máximo equilíbrio possível é o
melhor e mais seguro roteiro para a felicidade...
— Antes prevenir do que remediar, ensina-nos a sábia exigência do brocardo
popular. Sem sombra de dúvida, nosso maior escopo é manter a estabilidade do
espírito a todo custo, ainda que com o sacrifício dos prazeres irrisórios do egoísmo e
a abdicação das conquistas efêmeras do orgulho. Estamos vendo como nos custa
refazer a felicidade depois de barganhá-la pela arrogância. Afastar-nos da
estabilidade, onde quer que estejamos, é grande transtorno para a nossa saúde, por
isso o esforço em permanecer dentro das linhas de ação do bem é dever constante de
todo aquele que atingiu certa compreensão das Leis da vida. Viver na retidão do
dever e na abdicação que o amor nos exige é preservar a saúde da consciência,
Adelaide, o que nos favorece sempre com alegrias e equilíbrios genuínos, bens
imperecíveis, de inquestionável valor para a alma, os quais costumamos valorizar
somente quando nos vemos desprovidos deles.

238 - Gilson T. Freire / Adamastor


Nas Penumbras da Morte

‘Em verdade vos digo que, se alguém guardar a minha palavra, jamais verá a morte.
” Jesus - João, 8:51

s dias avançavam céleres enquanto nosso amigo, recolhido em


nossa colônia, seguia seu roteiro de reequilíbrio, agora consciente,
porém, ainda ignorante de sua condição e da nova realidade que
o envolvia. Aparentava nítidos sinais de melhoras, embora sua conduta
continuasse denotando rebuçado e contido orgulho. Comprazia-se em
longas caminhadas pelos arredores e, intrigado, questionava as razões da
existência das nuvens de chumbo obumbrando permanentemente o
horizonte vizinho. Dizendo-lhe que as almas aflitas que ali se reuniam o
ensombreavam, ele não alcançava a sua plena compreensão e não podia
ainda esclarecê-lo como convinha.
Em nossas vias públicas encontra-se sempre número expressivo de enfermos
estropiados, muitos enfaixados, lembrando uma tropilha de mutilados de guerras,
em decorrência das seqüelas perispirituais dos suicídios. Alberto, assustado diante
do fato, questionava se, por ventura, não estaríamos enganando-o com respeito à
revolução constitucionalista, pois suspeitava que aqueles infelizes eram feridos
oriundos do absurdo enfrentamento entre os patrícios.
Embora sempre introvertido, iniciava contatos mais intensos com os habitantes
de nossa cidade, trocando com eles impressões sobre o lugar onde agora se
achavam. Com quantos se encontrava e podia entreter um diálogo, voltava sempre
ao tema, perguntando se teria havido de fato

ícaro Redimido - 239


bombardeios, pois estava certo de que estávamos ocultando-lhe a verdade, em
decorrência dos nervos abalados. E, para sua decepção, a maioria, entretanto, dizia
não se recordar da revolução a que ele tanto aludia. No jardim terapêutico que
freqüentava diariamente, confabulava com companheiros que revelavam condições
idênticas às suas e, algumas vezes, retornava trazendo inquietantes indagações que
ouvia dos circunstantes. Conquanto a maioria deles ainda não detivesse uma clara
percepção de onde estava, alguns asseveravam, peremptoriamente, que todos
haviam morrido e que isso justificava a intrigante ausência da parentela ainda
encarnada, fato comum a todos ali reunidos. Outros relatavam, perplexos, que
estavam recebendo visitas e cuidados de antigos parentes que se achavam mortos
há muito tempo. Algo confuso, sem encontrar respostas seguras para tais estranhas
considerações e, premido por confusos raciocínios, não conseguia mais acomodar a
mente diante das inusitadas questões. Que lugar era aquele que então habitava?
Onde estaria de fato? O que era feito dos amigos e parentes que sumiram? Antes
que ele se entregasse ao desespero e a fim de lhe imprimir maior conscientização
de suas prementes necessidades, convocamo-lo para o prosseguimento de nossas
sessões de tratamento. Fazia-se urgente, agora, invocá-lo à revivência traumática da
morte, para situá-lo no novo ambiente em que se projetara, permitindo-lhe
completa recomposição de si mesmo.
É fato comum que o recém-desencarnado ainda ignaro da ciência do espírito
demande certo tempo para perceber a realidade da própria morte. Somos
projetados em um mundo em tudo semelhante ao que deixamos e comumente
despertamos portando o mesmo aspecto físico e, inclusive, as mesmas queixas e
sinais da patologia que nos consumiu a carne. O corpo perispiritual, após o túmulo,
nutre-nos com sensações idênticas às que nos mobilizavam no périplo terreno.
Movemo-nos, percebemos o ambiente ao redor, comunicamo-nos e
desempenhamos as mesmas funções fisiológicas do organismo físico, sem que nos
deparemos com um mundo feito somente de energias livres. Não somos seres
diáfanos envolvidos por lençóis fluídicos e não caminhamos no ar, como muitos
poderiam supor. Nossa esfera, embora entretecida em matéria sutil, tem as mesmas
bases atômicas dos compostos físicos e guarda as suas mesmas propriedades, de tal
modo que aqui nos encontramos como se estivéssemos na crosta do planeta.
Envolvidos por um meio em tudo semelhante ao que habitávamos, não nos
surpreendemos com a nova existência, o que não deixa de ser um conforto, pois
uma mudança radical em nosso plano de manifestação seria um grande óbice à
continuidade do processo evolutivo que prossegue sem interrupção.

240 - Gilson T. Freire / Adamastor


O entorpecimento que nos acomete habitualmente no instante do traspasse inibe
nossos mecanismos proprioceptivos e sensoriais, obstaculizando-nos o nítido
registro das sensações do momento. Embora tal deficiência perceptiva se apresente
como um empecilho para a exata compreensão do fenômeno, nas desencarnações
traumáticas é bênção divina, impedindo a reverberação do pânico, que poderia
privar o recém - desencarnado do sossego necessário ao seu refazimento. Como a
maioria dos desenlaces se realiza ainda em ambiente consciencial inseguro e ínscio
da sublimidade do processo, natural que a obnubilação do momento funcione como
uma defesa contra as agruras que poderiam ser inadequadamente vivenciadas.
Destarte, é forçoso reconhecer que ainda não sabemos morrer como convém.
Duvidamos da sobrevivência e não confiamos nos cuidados que o Senhor nos
assegura. Um dia, contudo, o homem encarnado compreenderá a excelsitude do
fenômeno e a ele se entregará com naturalidade e fidúcia, vivenciando-o sem
traumas, dores ou temores. Enquanto isso não se dá, as doenças prolongadas e
consumptivas, permitindo um falecimento lento e progressivo, ainda são recursos
benéficos e necessários para propiciar um conveniente desligamento do espírito,
preparando-o para a nova jornada, permitindo-lhe maior bem- estar e melhor
conscientização do seu futuro estado.
Reunidos novamente em nossa sala de trabalho, convocamos Alberto para a
revivência da morte, pois seu pleno contato com a nova realidade não podia ser mais
adiado. Embora excessivamente traumática, fazia-se necessário enfrentá-la,
absorvendo-lhe o impacto, librando sua consciência, facilitando assim a mais
completa reconquista de seu reequilíbrio. Induzido ao transe hipnótico, invocamo-lo
à lembrança dos últimos momentos de vida na Terra.
— Tenho me preocupado com esse conflito. Dizem que haverá bombardeios.
Que absurdo!.. — comentou, uma vez situado nos derradeiros dias que vivera no
mundo, reverberando a sua presente idéia fixa, com riscos de progressão para uma
verdadeira monomania.
— Não se preocupe com isso, a revolução constitucionalista já acabou e o país
está em paz agora. Não houve bombardeios, você esteve fora por muito tempo e não
soube das notícias. Queremos conversar sobre a morte, vemos que você anda
pensando muito em pôr um fim na vida...
— A morte... é verdade, tenho pensando muito nela, não posso negar. Várias
vezes estive perto de morrer, mas nunca tive medo... Tenho a vida marcada pelos
mais terríveis acidentes... fui arremessado contra árvores, enfrentei tempestades
em pleno ar, o horror da queda livre,

ícaro Redimido - 241


fogo no motor do dirigível... Caí nos telhados do Trocadero... Afrontei a morte
diversas vezes, expus-me às situações mais perigosas que um ser humano pode
enfrentar... por isso hoje tenho os nervos em frangalhos. Mas não bastou ter feito
tudo isso, hoje sou um esquecido, ridicularizado, até dizem que dou azar... Meu
nome não consta mais no rol dos pioneiros do ar, fui preterido por outros. Não tenho
mais motivações para viver. O passado já se foi e não pode mais voltar. Não me
importo, se morrer, já vivi o bastante. Hoje a amargura tomou conta de minha
alma...
— Não deixe que sua mente se fixe nos dissabores, para não aumentá- los ainda
mais. A morte o perseguiu, mas você sempre se saiu bem ao enfrentá-la com sangue
frio e sobreviveu a todos os acidentes. É preciso reconhecer a sorte de haver
superado as dificuldades e agradecer a Deus por isso, olhando para o passado com
mais otimismo. Sabemos que você anda muito doente, e queremos ajudá-lo, mas é
necessário que você comece por ajudar-se a si mesmo, esforçando-se para soerguer
o ânimo. Você tem desejado a morte como uma solução definitiva para os seus
males, mas não lhe ocorre que o túmulo seja apenas uma porta de entrada para outra
realidade, onde seus dissabores poderão se exacerbar? O homem perante o ocaso da
vida encontra-se diante de um mistério, jamais de uma certeza, e aí, ele deve
depositar sua soberba e entregar-se aos desígnios divinos, pois nada lhe atesta que
realmente se defrontará com o seu fim. A sua intuição, em todos os tempos,
afirmou-lhe ser um espírito imortal e todas as religiões teceram elucubrações sobre
a vida no Além, suscitando- lhe a veracidade. Rendamo-nos por isso às evidências e
convençamo-nos de que o sepulcro não é o fim. Se a própria matéria é indestrutível
e as energias apenas se transformam, que se dirá da consciência, o fruto mais
precioso da vida?

Ante o silêncio do irmão e com o propósito de alimentar-lhe a mente com a


crença na imortalidade, preparando-o para enfrentar sua nova e inquestionável
realidade, prossegui:
— Não creia, portanto, que o túmulo poderá libertá-lo de seus dissabores.
Entregue-se confiante a Deus, para que Ele cumpra com seu destino, pois somente
Ele sabe o que melhor nos convém. Receba as dores que a vida lhe presenteia como
necessidade de correção do orgulho e não pense que refugiando-se no féretro
encontrará o olvido definitivo dos fracassos ou a paz almejada. Seu medo da morte
parece superado, porém não por tê-la sobrepujado com a crença na imortalidade,
mas por já não encontrar em si valor para continuar vivendo. Se é um erro temê- la,
maior equívoco é desejá-la. Este sentimento não lhe convém à alma doente, que
continuará enferma enquanto não se libertar de tais errôneas

242 - Gilson T. Freire / Adamastor


intenções, agravando-se sobremaneira sua situação. Situemos sua mente na
realidade que você vive hoje, para que possa compreender o que estamos lhe
dizendo. Vamos vivenciar juntos o que lhe ocorreu e você sentirá a verdade,
dispensando as vias da razão para se convencer dela. Comece por retroceder sua
lembrança aos últimos dias em que você esteve com alguém de sua família ou em
sua casa, antes de vir a ter conosco. Recorda-se de onde estava?
— Não me lembro... Sei que estou muito esgotado... não quero ir a lugar
algum. As longas conversas me cansam. Meu sobrinho Jorge convidou-me para
passar uns dias longe. Ele agora não me deixa sozinho, pois andei pensando de fato
em matar-me... eles temem que eu concretize o ato... Devo confessar, a vida já não
tem mais nada a me oferecer, não vale a pena continuar vivendo... nada me prende
a ela. Colhi somente decepções... Estou só... Tanto esforço para nada...
Aos poucos sua tela mental, sob indução hipnótica, esboçava a quietude de uma
manhã de inverno. O horizonte distante desenhava a linha do oceano e podíamos
ouvir o chocalhar do mar, próximo ao qual caminhava. Um céu límpido irradiava
suave claridade, sua mente, porém se empalidecia. Indizíveis angústias enevoavam
de lúgubres presságios a cristalina atmosfera marinha que o envolvia.
— Onde você se encontra, Alberto?
— Estou em Guarujá... Hotel de La Plage... quarto 152... A praia está fria,
deserta... Pelo menos assim é melhor, tenho mais sossego... longe dos conflitos.
Estão falando que a Federação vai bombardear o porto de Santos. Será possível? O
coronel Euclides comprometeu-se a não usar a aviação, mas já não podemos
acreditar mais nisso. Escute! Não é o barulho de um aeroplano? Estão vindo para
cá. Já me descobriram aqui... Não agüento mais, não posso viver assim. Se eu
morrer talvez desistam disso... é o único jeito de ficar livre dessa agonia sem fim...
Minha cabeça! Não consigo pensar mais...
Tomado de enorme aflição, mal conseguia respirar e, com dificuldade,
continuou:
— Não quero mais a vida, que Deus me perdoe... É melhor colocar já um fim
nisso tudo...
Um ronronar distante atestava realmente a presença de algum avião voando nas
imediações.
Cabisbaixo, recolhia-se ao quarto onde a figura de um jovem se desenhava,
espreguiçando-se na cama, ainda meio adormecido, embora o sol a meio caminho
do zênite denotasse já o fim da manhã. Certamente tratava-se de seu sobrinho,
convocado pela família para vigiar-lhe os

ícaro Redimido - 243


passos, diante de suas constantes ameaças de pôr fim à existência. Ressumando
tédio e certo mau humor, retirava-se o rapaz em busca de cigarros, sem perceber
que o tio, com a alma em frangalhos, chafurdava- se em um fosso de amarguras,
movendo-se rumo à derrocada final da vida e, esgueirando-se, silente como sempre,
fingia preparar-se para o banho.
Acrisolando o âmago vencido, subjugado nas raias da derrota, encerrava-se em
si mesmo. Não mais ouvia ou via o que lhe passava ao redor. Não conseguia mais
acomodar os pensamentos em torvelinho na mente. O desiderato da morte, com
sofreguidão, ocupava-lhe por completo no drástico instante. Pesadas e aflitivas
lágrimas lhe banhavam a face lívida e sem expressão. A mente se aprisionava
definitivamente na idéia fixa: morrer. Evadir-se enfim das agruras de uma vida de
intoleráveis fracassos. Impossível ver, querer ou sentir, anestesiado pela dor que
lhe assenhoreava todas as emoções. Somente a morte podia lhe concretizar a fuga
em desespero. Aflito, vasculhava as malas em busca das gravatas. Os pulmões
arfavam na impossibilidade de sorver o ar. Suas mãos tremiam enquanto todo o
corpo fremia na ânsia de executar o insano propósito. O coração batia forte e
descompassado e uma onda de pavor lhe tomava de sobressalto a alma, porém a
fuga em iminência lhe sobrepunha coragem para o ato. Uma vertigem tomava conta
da consciência, afastando-lhe qualquer associação lógica. Tudo estava
irremediavelmente perdido. Não havia o que pensar nem mesmo o que sentir. Com
determinação amarrou duas gravatas ao cano do chuveiro. Atou-as ao pescoço.
Atirou-se no vazio...
Sua face agora modelava o instante doloroso. Os estertores da respiração
sufocante assumiam ruídos pavorosos. Suas mãos se levavam instintivamente ao
pescoço em um esforço inútil de deter o infamante ato. Os olhos estáticos pareciam
saltar das órbitas, espargindo imenso assombro. Enquanto seu corpo se retesava nos
últimos suspiros, deixando a língua pendente, cianótica, sua consciência sensória se
apagava completamente. O alento da vida se esvaía e a alma se debatia, álgida,
alquebrada por imensa agonia e indescritível dor. Dor que reverberava a revolta do
espírito contra a bênção da vida. Um torvelinho de energias degradantes e caóticas
arrebatava-lhe o eu para as profundezas do subconsciente em indescritível sensação
de queda num abismo sem fim. Sua tela mental se enegrecia, apagando-se para a
realidade.
— É triste acompanhar o drama de um suicida de forma tão viva e tão próxima
a nós, Adelaide, porém este é nosso trabalho — dizia, constrito,

244 - Gilson T. Freire / Adamastor


observando que a amiga se deixava vestir pela amargura do momento.
— Busquemos em Deus forças para não sucumbir ao pesar, perdendo assim a
condição mental de sustento que o enfermo nos suscita.
A fim de impedir a reverberação das reações psicopatológicas, desagregando-
lhe a mente, despertamo-lo do sono hipnótico, permitindo- lhe ainda uma mais
exata percepção da lembrança revivenciada. Semidesperto e sentindo-se ainda vivo,
ele se debatia em completo desespero, diante da impossibilidade de respirar,
balbuciando flébil pedido de socorro, com os olhos esgazeados, tomado de
completo pavor.
— Estou morrendo... socorram-me, por Deus... não consigo respirar... Não
posso ver nada... Que terrível escuridão... Que frio pavoroso! Por caridade,
aqueçam-me... sinto o corpo rígido, gelado, não posso mover- me. Meu peito... que
dor enorme... tenho o peito aberto... Ajudem-me, por Maria Santíssima. Não vejo
ninguém... ninguém me ouve, ninguém pode me socorrer... quero gritar, mas a voz
não me sai... Onde estou? Que enorme silêncio... só vejo trevas ao meu redor. Até
quando, meu Deus? O que se passa? Por favor, acudam-me...
— Acalme-se, amigo, tudo isso já acabou, você está apenas se lembrando do
que ficou para trás. Não é mais realidade, respire fundo. Estamos ao seu lado.
Retorne ao presente e verá que já terminou.
Aplicamos-lhe passes de alívio, enquanto Adelaide proferia sentida prece em
seu favor. Entorpecido, procurava desvencilhar o psicossoma das impregnações
deletérias do instante revivido, retornando aos poucos à sua condição atual e,
despertando em seguida, ainda bastante assustado, exclamou:
— Tive um pesadelo terrível, vi-me enforcado. Que coisa pavorosa! O que é
isso, meus amigos?
— Não se trata de um pesadelo. Procure recordar com mais clareza. Sinta a
realidade da lembrança...
Alberto, proferindo horripilante grito, assumia a lembrança clara da vivência.
Lágrimas abundantes lhe abrolhavam da alma opressa, diante do incontestável
realismo do acontecimento ainda vivo na memória.
— Meu Deus! Será verdade? Como? Vejo a realidade, eu me enforquei! Mas
como pode ser isso se continuo vivo?
— Você está se lembrando de sua desencarnação. Ela de íato aconteceu. Seu
infeliz ato se concretizou. Você se suicidou, meu amigo. A morte, contudo, não é o
fim e você continua vivo na dimensão maior do espírito. Eis, enfim, a verdade.
Você desencarnou e está agora no Mundo dos Espíritos. Doravante você poderá
compreender melhor tudo que se passa

ícaro Redimido • 245


ao seu derredor. Somos todos mortos, porém vivos em outra realidade, na dimensão
que se segue ao túmulo.
— Eu suicidei! É verdade, não posso negar o ocorrido. Eu desejei a morte e
me recordo agora que a busquei. As gravatas... o cano do chuveiro.... posso
recordar com clareza... Que Deus me perdoe... Agora compreendo, posso ver a
verdade. Cavei um poço de infelicidades para mim mesmo...
— O espírito sobrevive, Alberto, pois Deus não iria permitir a destruição de
Sua mais nobre criação. Eis a realidade que para nós é imenso consolo.
— Mas se morri, não devia estar diante de Deus? Onde está Ele? Devo estar
no purgatório, pois não vejo demônios. E por que tudo ao meu redor é tão concreto,
não estamos no mundo das almas?
— Você alimentou idéias falsas com respeito ao panorama da vida no Além e
não se preparou convenientemente para esta nova dimensão, por isso tardou tanto a
se desvencilhar da inconsciência e a cientificar-se da atual situação. Nossa esfera é
em tudo semelhante ao plano que deixamos, não se espante com isso e nem a
negue, a fim de vivê-la com intensidade. Você esteve por muitos anos retido em
prolongado sono, mas agora já pode perceber a nova existência e suas diferentes
necessidades.
— Mas como pode ser isso?
— Acalme-se, pois em breve tudo se acomodará em sua mente de forma natural.
No momento você precisa repousar para recuperar-se do transe revivido. Depois você
se inteirará da evidência dos fatos.
Alberto, ainda em prantos, acalmava-se plenamente ciente dos acontecimentos
que vivenciara e que agora trazia vivos na memória. Adormecia, enfim, exaurido
pelas intensas energias vertidas nas emoções afloradas.
— Quanta dor em uma alma! Não teria sido melhor deixá-lo ignorando o
ocorrido?
— É fato comum depararmo-nos aqui com suicidas ocultando de si mesmos o
árduo drama vivido. O espírito, entretanto, não pode evadir- se da própria realidade
indefinidamente, sepultando suas faltas amargas como se não as tivesse praticado.
Ignorar a própria inópia por tempo prolongado é correr o risco de cavar para si mesmo
os graves transtornos dissociatiyos descritos pela psiquiatria terrena, pois os traumas
do passado continuam ativos, embora momentaneamente afastados do palco do
consciente. Reconhecê-los é ir ao encontro de soluções seguras que os acalmem
definitivamente. Acrescido ao choque reencarnatório, Alberto

246 - Gilson T. Freire / Adamastor


apresenta também um destes quadros, a amnésia dissociativa, recurso defensivo e
impróprio, engendrado inconscientemente pelo “eu” para afastar da lembrança um
trauma excessivamente doloroso, a fim de proteger-se do sofrimento que julga
insuportável e insuperável. No entanto, tal equivocada defesa, verdadeira fuga do
“eu”, é um primeiro passo, como vimos, para a morte ovoidal. Evadir-se é solução
impossível, pois o trauma permanece como fonte atuante de impulsos deletérios,
desorganizando os delicados tecidos da alma. Precisam vir à tona para a restituição
do equilíbrio, o que somente pode ser feito mediante a sua plena recordação,
enfrentando a realidade com galhardia, diante da própria consciência e de Deus.
Não há outro caminho possível, Adelaide.
— Porém, o reconhecimento do ato danoso, com a imensa culpa que ele
comumente acarreta, não lhe aprofundará o quadro depressivo?
— É uma ilusão pretender que a dor seja sempre um dano, minha amiga.
Reconheçamo-la como recurso divino a nosso favor. Pode soerguer- nos o ânimo
abatido, se soubermos aproveitar-lhe o imenso potencial de regeneração da alma.
Se a vivemos com desespero e revolta é que pode, aparentemente, aumentar-nos o
peso das aflições, não por intenção precípua da Lei, mas porque somos nós mesmos
que nos colocamos em atrito com o seu sentido regenerador e corretivo.
Reconhecemos que o trauma espiritual experimentado pelo nosso amigo foi
muito mais grave, injuriando-lhe extensos territórios da alma. Sabemos que seus
padecimentos não se restringiram ao martírio do suicídio, um dos maiores
tormentos que o espírito humano pode experimentar, mas foram acrescidos de uma
distanásia imposta pela ignorância dos homens. Embora pouco conhecido, o termo
no mundo é usado para indicar a morte lenta, embasada por grandes sofrimentos:
aqui, contudo, utilizamo- lo para designar as desencarnações obstaculizadas por
diversos motivos, prolongando-se indevidamente o desligamento do espírito. O
excessivo apego à matéria, a crença no vazio absoluto após a morte, as aflições de
parentes revoltados agarrados à figura do morto são fatores etiológicos comuns
deste quadro de dores, detendo na carne por tempo excessivo o espírito em
processo de libertação. Estes não foram, entretanto, as motivações da distanásia em
nosso amigo. Seu corpo foi embalsamado, hábito completamente indevido e
especialmente contra-indicado nos casos de suicídio. Além da possibilidade de
facultar ao inditoso desencarnante as sensações desagradáveis das incisões de suas
carnes, o procedimento o retém preso por tempo indeterminado â roupagem
orgânica em inadequado processo de conservação. Temos notícias de que os
obreiros

ícaro Redimido - 247


da desencarnação, aqui chamados obiatras, foram bem sucedidos no bloqueio de
suas percepções sensórias, ainda íntegras depois da morte física, devido à
persistência dos liames que o prendiam à veste corpórea, impedindo-o de sofrer as
atrozes dores do ato necrópsico. Porém não obtiveram êxito no seu pronto
desligamento, em decorrência da isenção dos fenômenos da decomposição. O
estranho hábito humano de render tributo póstumo ao corpo perecível muito
contribuiu assim para dificultar sua partida da crosta, imantando-o ao ambiente de
venerações a que se habituara na vida. Em conseqüência disto ele ficou atado ao
féretro por cerca de um ano, quando então os obiatras o alijaram do pesado e inútil
fardo orgânico, livrando-o do encargo de aflitivas sensações. De nada valeram as
honrarias de chefe de Estado com que foi sepultado, o infeliz esteve retido no
ambiente inóspito do cemitério como um demente, vivenciando pesadelos
inenarráveis, até refugiar-se na inconsciência profunda, quando então foi recolhido
às Cavernas do Sono, no Vale dos Suicidas, de onde o resgatamos.
Compreendamos contudo que, infelizmente, ele semeou este amargo destino para
si mesmo em demérito de sua condição.
— Não imaginava que o embalsamento pudesse afetar desta forma a
desencarnação...
— Para a maioria dos homens de mediana evolução, Adelaide, a preservação
do corpo físico por tempo indeterminado é obstáculo aos seus primeiros passos no
Além, a não ser que se trate de alguém de elevada envergadura moral. A
indumentária carnal permanece como poderoso atrativo do espírito após o
desenlace e por isso sua dissolução é fenômeno favorável à sua libertação. Povos,
como os egípcios, que imortalizaram seus faraós embalsamados em sarcófagos,
promoveram dificuldades para os espíritos, pois alguns deles permaneceram atados
aos seus restos mortais por dezenas de anos. As famosas lendas de maldições
envolvendo as múmias, isentando-se os exageros das fantasias humanas, guardam
por isso certa veracidade do ponto de vista espiritual, pois elas realmente retêm
reminiscências vibratórias das entidades que as habitaram. Quanto à autópsia,
sabemos perfeitamente que espíritos muito materializados e imbuídos de grandes
maldades podem sofrer a interferência em seus despojos mortais logo após a
desencarnação, por permanecerem fortemente jungidos aos mesmos, por período
indeterminado. A grande maioria, entretanto, não se ressente destes procedimentos,
devido à intermediação ativa dos obiatras. Contudo, os suicidas deveriam receber
tratamento diferenciado por parte dos

248 - Gilson T. Freire / Adamastor


encarnados, logo após a morte, pois normalmente guardam dificuldades e
demandam muito maior tempo para se desligarem de seus restos orgânicos. Sempre
que possível dever-se-ia evitar autópsias, cremações e, sobretudo, impedir
formalmente a embalsamação, em obediência à caridade e ao respeito às
dificuldades que podem acarretar para esses espíritos na continuidade da vida. Se
não estamos autorizados à prática da eutanásia, por muito maior razão, não nos
convém ser os protagonistas da distanásia.
A tarefa chegara ao fim. Aguardaríamos as reações do amigo diante do novo
panorama da vida que se estendia diante de seus atônitos olhos. Finalmente ele
poderia realmente assumir a completa conscientização de seu estado atual e de suas
urgentes e novas necessidades. Reconhecidos a Deus pelos resultados alcançados,
proferimos nossa prece de agradecimento, aplicando passes de alívio em nosso
amigo, que ainda dormia, encerrando nosso proveitoso dia.

ícaro Redimido - 249


Confissoes da Intimidade

“Há eunucos que pelos homens foram feitos tais, e


outros há que a si mesmos se fizeram por causa do
reino dos céus. Quem pode aceitar isso, aceite-o’’
Jesus - Mateus, 19:12

A pesar de açoitado por enorme decepção e supliciado pela mais


expressiva culpa que pode opugnar um homem ao se reconhecer
vivo após o ignominioso ato suicida, Alberto reagira muito
bem. Ao contrário dos receios de Adelaide, sua recuperação fora mais
rápida do que poderíamos supor. A verdade chegara em hora devida,
ensinando-nos que esta tem sempre o seu momento propício para se
revelar, a fim de não imputar ao espírito dores que não possa suportar.
Por isso, o longo período de inconsciência que domina o autocida, após
a sua desencarnação é, na realidade, bênção divina em seu favor,
resguardando-o de sofrimentos que ainda não está preparado para assumir.
Como esperávamos, por muitos dias esteve ele recolhido em si mesmo,
profundamente envergonhado, e respeitamos o seu silêncio, sustentando-
o com nossa tácita compreensão e as preces em seu favor, aguardando
pacientemente que ele se refizesse e retomasse à nossa relação. Confiantes na Lei,
cabia-nos deixá-lo entregue às próprias confabulações. E não tardou muito para que
ele assumisse completamente sua nova situação, assenhoreando pleno e consciente
contato com a irrefutável realidade com a qual se deparara, encontrando no próprio
imo as forças regeneradoras para soerguer-se. Estampando serenidade no olhar,
embora ainda cabisbaixo e intimidado, voltava aos poucos a dialogar conosco,
retomando sua vida. Em breve o víamos regressar aos jardins terapêuticos, trocando
impressões, agora mais seguras, com os companheiros de igual

250 - Gilson T. Freire/Adamastor


desdita e já cientes de suas condições, momento de expressiva importância para o
suicida, funcionando em nossa colônia qual verdadeira terapia de grupo. De longe o
assistíamos, observando que a cada dia ele rapidamente se recompunha e superava o
amargo transe.
E, logo, a conscientização da realidade tornou-se para ele o mais salutar estímulo
à plena recuperação. Um novo horizonte descortinou-se aos seus olhos, estimulando-
lhe inquietantes e profícuas questões pertinentes à sobrevivência do espírito. O
panorama infinito da vida, trazendo a idéia segura da paternidade divina, reacendeu-
lhe na alma desvalida um viço de religiosidade, nascido em sincero anelo de
reencontro com o Sagrado. Genuflexo diante da grandeza de Deus, incendiado por
renovada fé, finalmente o víamos orar com lisura.
Novo brilho luzia em seus olhos, denotando o seu completo retorno à razão e a
conscientização plena de sua situação. Reconhecendo suas muitas carências diante
dos reais valores do espírito, ansiava agora por sol ver os ensinamentos que lhe
facultassem um transcurso seguro e feliz na nova existência que de fato assumia.
Sua face, embora ainda vestida de melancolia, contristada pelos acerbos
sofrimentos acumulados em prolongada agonia, coloria-se enfim, revigorado pela
esperança de um futuro promissor, diante da certeza da imortalidade da alma.
Inovadas motivações passaram a ocupar-lhe a mente e os assuntos pertinentes à
existência que ficou para trás foram substituídos paulatinamente por benfazejos
interesses referentes à Vida Maior do espírito.
Acoimando o renitente orgulho, apressava-se a obtemperar os hábitos,
higienizando a alma com salutar recato. Acelerado ritmo de recuperação imprimia-
lhe agora rápido refazimento, de modo que tínhamos motivos para felicitar-nos
diante do esforço desprendido em sua melhoria. O envelhecimento perispiritual
detinha-se, frente ao inopinado dinamismo, revigorando a força mental.
Nossos diálogos passaram a ser mais freqüentes e mais coerentes, atendendo
sempre a sua inusitada curiosidade na constituição do novo mundo e as novas
questões que se delineavam em sua mente, diante da insciência do espírito.
Assuntos como a organização da vida no Além, as muitas vidas da alma, a jornada
evolutiva, Deus, céu e inferno passaram a ocupar intensamente suas inquirições,
aguçando sua sede de saber, perante a qual o matriculamos, sem demora, no curso
de preparação espiritual desenvolvido em nossa colônia, que passou a freqüentar
com grande interesse. Logo se integrou também com entusiasmo às reuniões

ícaro Redimido - 251


no Templo de Oração de nossa colônia. E não tardou para que, reverberando os
antigos interesses que o motivaram na Terra, inquirisse sobre a existência de
veículos em nosso plano. Sobretudo mostrava-se ansioso por conhecer nossas
aeronaves, porém, aconselhamos-lhe a se dedicar ao espírito, sua máxima e urgente
necessidade. Posteriormente poderia satisfazer sua velha curiosidade, examinando
com detalhes nossos aparelhos de vôo e o maquinário que também nos serve às
necessidades da vida.
— Estejamos, contudo, cientes do fato de que ainda é necessário acompanhar-
lhe o desenvolvimento espiritual, ajudando-o a reconstruir o caráter em bases
genuinamente evangélicas — dizia à Adelaide, em momento oportuno. — É
forçoso admitir que ele ainda pode recalcitrar no antigo orgulho, uma vez superado
o trauma das plangentes lembranças. Ainda devemos orientar-lhe os passos
vacilantes na nova vida, minha amiga. Se aceitamos a tarefa com boa vontade, é
imperioso concluí-la da melhor forma possível.
— Continuaremos nossas regressões terapêuticas, então...
— Agora não temos mais necessidade de um estado ampliado de
consciência, sob indução hipnótica, pois seu acesso à memória está completamente
restituído. Doravante poderemos confabular com ele plenamente intermediado no
presente. Devemos ajudá-lo a haurir o máximo de benefício possível de suas
frustrações, retirando delas as lições que a vida lhe proporcionou, nossa mais
segura orientação para o refazimento espiritual. Vamos refletir juntos sobre seus
erros e suas necessidades, respeitando, contudo, os limites de sua intimidade. E, se
nos primeiros passos de nosso procedimento terapêutico, sua posição francamente
depressiva e autocatalítica exigia que os momentos traumáticos do seu passado
fossem evitados, agora ele deve enfrentá-los, assumindo a responsabilidade pelos
seus erros, sob a ótica da nova realidade. Objetivaremos, portanto, a leitura das
verdadeiras motivações que realmente o conduziram no périplo terreno, induzindo-
o a identificar na posição de arrogância a causa de todos os seus males. Assumir os
equívocos é o primeiro passo para se conquistar o equilíbrio da consciência,
Adelaide. Naturalmente que as Leis divinas favorecem ao espírito esta auto-análise,
especialmente após a desencarnação, quando o novo panorama da vida o excita a
reflexões profundas sobre suas desventuras terrenas, exaltando- lhe a preinência
das reformas. Porém, se podemos apressar-lhe os passos nesta caminhada e temos a
devida orientação para isso, nossos lucros são evidentes. Eis nosso roteiro de
trabalho, lembrando sempre que, se

252 - Gilson T. Freire / Adamastor


ajudamos, seremos ajudados, pois nossas necessidades ainda são igualmente muito
extensas, como você bem sabe.
— Reconheço que temos uma função sobretudo de orientação moral na
reestruturação dos hábitos que o espírito traz da experiência terrena, interferindo
ativamente em seus sentimentos e condutas. Contudo, não seria isso contrário ao
que nos recomendam muitos estudiosos da psicologia, na atualidade?
— Aqui, estamos no cenário real da vida e não no palco das experimentações
da carne; por isso nossa técnica difere da usada nas psicoterapias terrenas,
essencialmente no que diz respeito à interferência nos hábitos morais de nosso
assistido. Atuando ativamente nas considerações dos fatos vivenciados, achamos
por bem não aguardar pelas próprias conclusões do paciente, por diversas razões.
Sua urgente necessidade de reequilíbrio não pode ser adiada, pois é grande o risco
de que se refugie nos porões da loucura, acreditando-se impossibilitado de se
recuperar, diante da intolerância às dores íntimas, característica daquele que ainda
não se comprometeu com a Providência Divina. Os veículos de percepção do
espírito estão aguçados ao máximo possível e, se ele não pôde até então alcançar a
compreensão de suas necessidades, é preciso que lhe sejam mostradas com clareza.
Direcionando e apressando-o rumo às considerações de ordem coerciva, certamente
aceleramos sua disposição à reforma, dinamizando-lhe o potencial evolutivo no
Plano Espiritual, evitando-se assim o desperdício de importantes oportunidades de
crescimento, proporcionadas pela nova vida.
Nosso contumaz orgulho, sobretudo, enceguecendo-nos a razão, induz- nos a
errôneas conclusões ao fixar-nos a posição de vítima como justificativa para todos
os nossos males, eximindo-nos de assumir, diante da Lei, o cabedal de culpas
necessário ao aproveitamento das lições corretivas que a vida nos oferece. Um
observador externo detém melhores condições para identificar estes erros, pois,
como nos asseverou o Evangelho, somos capazes de notar um argueiro no olho do
irmão, sem perceber a trave no próprio80. Por tudo isso, em nosso plano, o
aconselhamento terapêutico de ordem moral é o mais indicado para o espírito ainda
pouco amadurecido. Ajudando-o a desvencilhar-se dos empecilhos ao juízo de si
mesmo, contribuímos para que seu sofrimento seja o menor possível.
O terapeuta no mundo terreno não assumiu ainda esta posição moralizante
diante do paciente, porque a ciência psíquica, ainda em

80 Mateus 7:3

ícaro Redimido - 253


desenvolvimento na Terra e insciente das realidades do espírito, não se predispôs a
ver na desobediência à Lei a causa de todos os males do ser. Prefere inquirir
complexos mecanismos da consciência, identificando em traumas ou erros ignotos
de formação da personalidade as causas de seus desajustes, justificando
interferências de ordem duvidosa no campo emocional, sem resultados eficazes no
seu crescimento rumo à Divindade. Toda terapia, para ser proveitosa, deveria ser,
antes de tudo, essencialmente um apostolado moral orientado para o Bem. E o
psicólogo, por premente exigência de sua área de atuação, precisa ser o primeiro a
aplicar a si próprio uma ética elevada de vida, a fim de tornar-se um agente
terapêutico eficaz a serviço da Lei. No futuro, as terapias irão evoluir para um
aconselhamento de implicações sobretudo morais. Se a nobre ciência não investir
em uma solução dessa ordem para os problemas humanos, diante da Lei inserida na
consciência de cada um, todos os seus intentos serão falazes, provisórios ou mesmo
contraproducentes. Reajustar-se com a Lei é o único caminho possível para a
felicidade e para isso justifica-se aguçar todos os instrumentos cognitivos, volitivos
e emocionais do espírito na prática do amor e da renúncia ao doentio personalismo.
Na atualidade, praticamos em nosso plano o que chamamos de orientação
espiritual, processo terapêutico que visa, não apenas a sobraçar amorosamente o
assistido, mas, sobretudo, distender o seu horizonte consciencial, fazendo-o ver os
erros e os imperativos de reforma íntima, ampliando seu conhecimento da Lei e
desenvolvendo-o ativamente rumo à maturação moral, o que é exatamente o escopo
maior da evolução e processo no qual todos, queiramos ou não, estamos
empenhados. Qualquer terapia que não atenda a esses propósitos tem resultados
irrisórios e está fadada a inevitável fracasso, não nos iludamos. A vida, não
somente no Plano do Espírito mas onde quer que se manifeste, trabalha ativamente
para atingir esses mesmos objetivos, pois, como sabemos, renascer no corpo físico
é expor-se a situações, dificuldades e dores que visam sempre à correção dos vícios
do personalismo. Isso faz da jornada terrena muito mais do que uma simples escola
que educa, mas, sobretudo, verdadeira psicoterapia para a alma, satisfazendo na
justa medida a todas as suas necessidades de ajustes e crescimento. Naturalmente
que, continuar pesquisando nos remanescentes do passado os indutores de traumas
e conduzindo o paciente a reencontrar-se com os próprios erros, propiciando- lhe
soluções adequadas, é de proveito para qualquer assistência de auxílio à ordem
emocional, procedimento intensamente utilizado em nosso plano.

254 - Gilson T. Freire/Adamastor


Sem olvidar que a orientação espiritual não pode dispensar a premente necessidade
de se transformar o assistido em assistente, induzindo-o a ser agente terapêutico de si
mesmo, tornando-o senhor de suas ações e ciente das conseqüências de seus atos.
Condizentes com estes promissores auspícios, programamos novas sessões
terapêuticas e na data aprazada reunimo-nos novamente, em nosso ambiente de
trabalho. Alberto, agora sob novas motivações e desejoso de refletir sobre suas
façanhas terrenas, abria sua alma para nossa análise, sem intimidar-se.
— Hoje sei que trago um passado de muitos erros, cometi o maior deles que foi
o ato covarde de abandonar a vida, negando suas lições e minhas necessidades de
aprendizado. Por isto devo agradecer aos amigos e peço a Deus recompensá-los pelo
muito que me têm proporcionado — dizia Alberto, em plena consciência de si
mesmo e da tarefa que desempenhávamos junto a ele.
— Estamos reunidos para ajudá-lo e sermos ajudados também, amigo, pois
certamente suas experiências de vida nos serão preciosas lições. Todos somos
necessitados diante da Grandeza Divina e da pequenez que nos reveste a alma e, sem
distinção, gostaríamos de alimentar-nos apenas das glórias e dos sucessos do
passado. Por isso nos agrada ocultar a humilhação dos fracassos e os traumas dos
grandes erros, evadindo-nos das intoleráveis lembranças que nos suscitam. Nossa
posição de inferiorizado orgulho, no entanto, ainda requer que essas dores forjem
nossas almas a fim de que a enfermiça arrogância não continue incitando- nos a
futuras aflições. Sejamos, portanto, corajosos o bastante para enfrentar a própria
penúria que nos macula o espírito. Deixemos que se nos esfacele a contumaz
petulância, diante das lições de humildade que a vida nos suscita.
— Estou pronto a desnudar-me, da melhor maneira possível. Sou um homem
renovado e sei que trago um fosso de dores e desacertos na alma.
— Retroceda então aos seus momentos mais amargos na vida e nos fale sobre
as dificuldades que se contrapuseram à sua felicidade na experiência carnal.
Surpreendido diante da clareza das lembranças que evocava, Alberto se
admirava da facilidade com que podia agora recordar-se, ciente das dificuldades
que até então lhe obscureciam a mente. A evacuação das emoções mórbidas,
retidas em seu psiquismo, permitia-lhe agora maior nitidez da visão mental,
embora ainda não detivesse toda a potencialidade mental comum ao desencarnado
em equilíbrio, em nosso nível evolutivo.

ícaro Redimido - 255


0 espírito despojado de suas grandes dores e liberto do abafamento que a carne lhe
impõe pode experimentar grande amplitude psíquica, sabor maior de nossa vida na
Erraticidade.
— Minha primeira grande frustração na vida foi reconhecer minha pequenez
física, sentindo-me franzino, sem condições de enfrentar as mínimas disputas
infantis. Inseguro, preferia desistir delas a ver-me derrotado. Todos me olhavam
com desdém como se pelo pouco tamanho eu nada valesse. Além do mais, as
horríveis orelhas de abano e a cabeça desproporcionada me deixavam
consternado...
— Isso o fez recolher-se em si mesmo. Temos aqui uma primeira lição.
Seguramente você reencarnou com importante cerceamento físico, limitando sua
atuação na vida, por ter-se habituado a extrapolá-la em outras experiências
reencarnatórias, meu amigo. Os espíritos que se agigantam de soberba são levados
comumente a renascimento em organismos frágeis, inibindo-se-lhes a falsa
grandeza. Induzido à insegurança e à timidez, você apenas recolhia os reflexos de
arrojos inadequadamente alimentados no personalismo, exageros perigosos para o
seu equilíbrio evolutivo e sua saúde psíquica. Você engendrou para si mesmo, em
outro momento, essa necessidade e mais tarde poderá compreender isso. Sua mais
importante lição na escola terrena foi, seguramente, aprender a respeitar os próprios
limites, inibindo antigos vícios de arrogância com que alimentou a alma. Tenha a
certeza ainda de que a frustração física serviu-lhe como poderoso estímulo para a
conquista de outros valores na vida, na medida que deixou sua alma vazia de
satisfações primárias, excitando-o a preenchê-la com a exaltação da criatividade,
conduzindo-o ao melhor cumprimento de sua missão, meu amigo.
— Compreendo... Tímido, acabrunhado, precisava sempre da proteção de
meus irmãos, especialmente do Henrique, da Virgínia e do meu pai, em favor de
minha pequenez, e acomodei-me no âmbito seguro da família. Mais tarde, quando
meu genitor mandou-me para a Escola de Minas de Ouro Preto, a fim de fazer-me
um engenheiro, como todos em casa, senti-me extremamente inseguro e não
suportei a ausência da proteção do lar. Minha timidez me impedia de conversar
com qualquer um que gentilmente se aproximasse, procurando ajudar-me. Tomado
pela covardia, abandonei a escola, enfrentando a recriminação dos meus pais e as
críticas de meus irmãos. Confesso que não dei conta de ficar longe, principalmente
de meu pai, meu refugio seguro diante da extremada insegurança. Meu genitor,
sempre bondoso, compreendeu-me. Meus irmãos, entretanto,

256 - Gilson T. Freire / Adamastor


humilharam-me ainda mais diante do primeiro fracasso na vida. Depois deste dia, vi
que meu pai não acreditava mais que eu viesse a me tornar um homem de verdade,
sentia isso em seu coração, o que se tornou motivo de grande sofrimento para mim.
— Sabemos que seu genitor, notando-lhe a personalidade frágil e temendo que
você não se realizasse na vida, intuitivamente resolveu investir na confiança em você,
dando-lhe logo carta de emancipação, mandando-o sozinho para estudar em Paris.
— Sempre reconheci que sem o seu incentivo nada teria realizado na vida. Sou-
lhe imensamente grato e gostaria de reencontrá-lo e agradecer tamanha generosidade
para comigo. Sua carta de emancipação foi para mim um verdadeiro atestado de
confiança em minha pessoa e sem este estímulo não teria de fato me tornado alguém,
embora hoje julgue que me fiz mais um fantoche de glórias mundanas do que um
homem de fato.
— Temos notícia de que seu pai se encontra reencarnado, o que não o impede de
revê-lo. Certamente esse reencontro se dará quando você estiver mais bem preparado
para isso. Aguarde com paciência. Seu recolhimento entre pessoas alheias ao seu
antigo convívio familiar lhe é no momento necessidade de refazimento dos
panoramas desfeitos da alma.
— Reconheço que fiz da vida, depois disso, um constante teste para provar a mim
mesmo e mostrar ao meu pai que podia me tornar um grande homem...
— Em sua primeira vitória na vida, ao ganhar o prêmio Deustch, recordamos
que você lamentava a sua ausência...
— E nos momentos de fracassos também, via-me diante dele, como a lhe dever
obrigação de acertar sempre, pois passei a viver na intenção de corresponder à
confiança que ele havia depositado em mim.
— Embora assim justifique tal sentimento, nesse compromisso de acertar
sempre você atendia, na verdade, ao desejo de superar a frustração do orgulho,
tentando, sobretudo, suplantar as deficiências identificadas e mal toleradas na
personalidade. Na verdade você recalcitrava diante da necessidade de impor limites
à egolatria, sedento de projeções na vida, recapitulando velhos hábitos do
personalismo doentio.
— Um castigo, então, por algo ainda anterior que eu tenha feito?
— A vida na carne, Alberto, não consiste em mero rol de punições para o
nosso passado delituoso. Seguramente todos comparecemos nela para o
desempenho de tarefas visando sempre ao nosso engrandecimento e melhoria, e
para isso cumprimos sempre com um plano previamente traçado de tarefas. As
dificuldades são planejadas, não para nos inibir o

ícaro Redimido - 257


potencial de progresso, mas para a correção dos rumos, coibindo antigos abusos.
Isso faz de toda vida uma missão, ainda que objetive unicamente a própria
regeneração. Você renasceu com a tarefa de reformar os errôneos valores
arquivados do passado, mas devia também dar sua colaboração em prol do
progresso humano. Haverá motivos para isso em seu pretérito e os conheceremos,
se possível.
Após breve silêncio, Alberto umedecia os olhos, trazendo à lembrança novos
pesares que o moveram na romagem terrena. Vencendo a barreira da natural
inibição e confiando plenamente em nosso apoio, deixava verter dos recessos mais
profundos da alma o seu mais acerbo drama, oculto nos disfarces de dissimulado
personalismo. Denotando sinceridade na intenção de reequilibrar-se e deixando-nos
antever a grande frustração que de fato o movera na vida, espargia sua dor,
dizendo-nos:
— Sempre me senti muito mal comigo mesmo, não é fácil ser um baixinho...
mas... devo confessar... meu maior desapontamento foi verificar que meus genitais
não cresciam... Uma grande preocupação tomou conta de mim, mas nunca tive a
coragem de contar o fato para ninguém, sequer para meu pai. Escondi de todos, não
pode haver vexame maior para um homem...
Alberto chorava, estampando a vergonhosa realidade que impregnava de
opróbrios a alma sensível. Além da compleição apoucada que a vida lhe
presenteara, a estrutura física, uma criptorquia81 somada a um irreversível
hipogonadismo82 congênito, impusera-lhe um precário desenvolvimento aos órgãos
sexuais. Uma prova seguramente necessária que lhe inibira definitivamente a vida
sexual, nutrindo-o de permanente frustração e cujas causas se enraizavam,
seguramente, em passado ainda mais remoto. Teríamos que buscar a compreensão
dos motivos de tão importante deficiência, imposta por um destino que somente
pode nos pretender o bem, a fim de lhe mostrar a necessidade da dura lição.
Entendíamos naquele momento que estávamos diante de um espírito dono de
importantes conquistas no campo da inteligência, portando aguçada criatividade,
mas que envergara na vida grave inibição sexual. Servira- lhe, no entanto, como
preponderante fator excitante das funções criativas da alma, colocando-o a serviço
do progresso humano. Sabemos que das dores mais acerbas, a sabedoria de Deus
tira os maiores proventos, não somente para o seu protagonista, mas para o bem
comum. Sua personalidade, inibida nos mais genuínos anseios humanos, viu-se
desta

81 Ausência de testículo no escroto, normalmente unilateral.


82 Baixo desenvolvimento das gônadas e dos órgãos genitais.

258 - Gilson T. Freire / Adamastor


forma compelida a arrojar-se em aventuras incomuns, numa afanosa busca de
realizações pessoais que lhe compensassem o insolúvel malogro.
— Entendemos seu desgosto, Alberto. É realmente lastimável assistir a um
jovem tecendo a vida com lídimos sonhos, frustrar-se em seus mais legítimos
desejos. Devemos, porém, aceitar que nada nos acomete por acaso, meu amigo.
Nascemos com o peso de muitas necessidades de aprimoramento e sem dúvida esta
foi uma imposição que visava a inibir- lhe antigos vícios e protegê-lo de
sofrimentos ainda maiores, tenha a certeza disso. As grandes dores que nos
assediam a alma trazem sempre importantes lições para o nosso crescimento. Se a
vida lhe impôs este aprendizado no campo de expressão da sexualidade, o irmão
deve agora aproveitar, sedimentando o ensinamento para que no futuro não venha
recair em erros do passado. O Mestre nos recomendou não tornar a pecar para que
não nos suceda sofrimentos ainda maiores do que daqueles que sanamos.
— Não me era possível compreender a necessidade de tamanha dor, como
ainda não a entendo muito bem, mas fui obrigado a vivê-la. O que podia fazer?
Nascera assim e sabia que ninguém poderia me ajudar... Isso me fez um homem
infeliz, arredio dos contatos femininos, transportando o fardo do opróbrio que me
vergava a alma, plena de secretos desejos, jamais satisfeitos. A solidão passou a ser
a companheira de minha desdita. Vivia rodeado das mulheres mais belas do planeta,
muitas delas se insinuavam com interesses pela minha humilde pessoa, mas não
podia enamorar-me... Nascera para o celibato compulsório, podia apenas sonhar...
— Embora lhe pareça uma aparente crueldade da vida, isso representava uma
vantagem e uma proteção contra novos erros, que certamente lhe habitaram os
hábitos do pretérito. Capitulando diante dos alvitres de uma vida de prazeres, você
era incitado a desenvolver outras potencialidades de sua alma. Era rico, mas isso
não bastava para projetá- lo com destaque na refinada sociedade parisiense onde
desejava sobressair- se. Fez-se portanto um desportista de arrojos, na necessidade
de sobrelevar a apoucada personalidade no cenário das projeções humanas. Voar!
Eis a solução para assoberbar a pequenez! Fazer algo que somente os grandes
corajosos podiam fazer. Crescer na ousadia de enfrentar os fortes ventos. Desafiar a
morte nas alturas. Arrojar-se nas nuvens e fazer imensa a pequenez humana diante
da vastidão dos céus. Depois empreender o inusitado, projetando-se na filieira dos
homens ilustres e inscrevendo o seu nome na História...

ícaro Redimido - 259


— Nunca havia pensado nisto... é possível, é possível... — respondia o amigo,
sem conseguir ocultar a decepção em si mesmo, encobrindo-se, porém, de salutar
humildade.
Estavam assoalhadas naquele momento as profundas dores de um espírito em
trânsito na História dos homens e completado o panorama íntimo que o projetara no
heroísmo compulsório. Frustrações e dores que o excitaram a galgar patamares de
superações além das fronteiras humanas, sobrelevando-se doentiamente diante de si
mesmo e da vida. Eis o nosso ícaro despido diante de sua dura realidade. Embalou
dessa forma as forças psíquicas de sua personalidade na inadequada expansão que,
em seu rebote compensatório, o arremeteu à contração de si mesmo, no completo
desvalimento do espírito. Eis por que o impulso contrativo foi tão grave. O
reconhecimento e a compreensão dos mecanismos vicariantes e defensivos, que
engendrara para proteger o ego doente, ajudá-lo-iam na busca do reequilíbrio,
sedimentando-lhe no imo da consciência a dura lição, protegendo-o com segurança
de novas quedas e estimulando-o a viver doravante na moderação necessária à
felicidade.
Era conveniente encerrarmos o proveitoso trabalho e deixá-lo a sós, permitindo-
lhe salutar reflexão em torno das importantes questões amealhadas nas
rememorações do dia.
Adelaide, condoída diante da dura realidade vivida por Alberto, interrogou-me,
posteriormente:
— Estive pensando, Adamastor, não aprendemos que a carência sempre se
segue à hipertrofia? Neste caso, não foi a deficiência sexual que o induziu a
exaltação compensatória das energias psíquicas? Certamente que se ele não tivesse
vivenciado tão importante frustração não teria se expandido além dos limites,
acomodando a personalidade ao cerceamento natural de suas potencialidades.
Confesso que estou confusa diante da lição aprendida.
— De fato, Adelaide, ação e reação se interligam em efeitos e contra- efeitos,
confundindo-nos às vezes na identificação do que é primário e secundário. Por isso,
muitas vezes somos levados à interpretar a carência como a indutora das errôneas
hipertrofias da psique. O raciocínio é por demais pertinaz e pode nos conduzir a
falsas conclusões, principalmente porque agrada ao espírito humano ver-se imolado
sem justificativas pelas pretensas falhas da vida. Somente entenderemos o aparente
paradoxo, analisando o fenômeno da personalidade humana ao longo de muitas
existências e enxergando com clareza os seus impulsores fundamentais. Mas, não
nos enganemos, o erro e o abuso sempre antecedem a deficiência,

260 - Gilson T. Freire / Adamastor


é da Lei. Deficiência que, por não ser devidamente tolerada, irá gerar novas
reações defensivas, de natureza compensatória, incorporadas na personalidade
em forma de outras inadequadas hiperpsiquias. No caso de nosso amigo,
encontraremos seguramente os excessos que legitimaram sua deficiência
sexual em passado mais remoto, interpondo assim a dor em seu devido lugar,
ou seja, no campo dos efeitos e nunca no das causas. Aguardemos a evolução
dos fatos e compreenderemos melhor, não se impaciente.

ícaro Redimido - 261


Lições Para a Eternidade

“A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito precede a queda ”


Provérbios, 16:18

A história dos homens, sem que eles o saibam, é um processo na


verdade conduzido pelo Mundo Espiritual, e os grandes vultos
que desempenham os papéis principais em seus cenários são
apenas executores dos planos de nobres entidades que nos governam os
destinos. Os saltos evolutivos são sempre movimentos previstos e
desempenhados por missionários devidamente preparados para este fim.
Entretanto, os protagonistas da história nem sempre são espíritos
superiores, oriundos de esferas elevadas, porém personagens do próprio
roteiro planetário, chamados a contribuir, muitas vezes, sem se darem
conta do fato, por se acharem em situação adequada ao desempenho da
tarefa. É que os orientadores dos destinos humanos, cientes das
necessidades do progresso e carentes de elementos que executem arriscadas
tarefas desbravadoras, utilizam-se comumente de espíritos submetidos a
estas imposições, aproveitando-lhes os impulsores ocultos, a fim de fazer
valer seus objetivos. Assim nascem heróis, resgatados entre figurantes
do palco da vida, forjados muitas vezes por secretos deméritos,
vergastando-lhes a soberba e movendo-os do patamar de comodidades
em que gostariam de repousar.
Alberto fora um destes próceres, nascido da necessidade de ressarcimentos
pessoais. Por compromissos assumidos em passado que até então não
vislumbráramos, investiu-se de tal mandato corretivo que o situou no cerne da
importante questão da conquista aérea. Motivado

262 - Gilson T. Freire / Adamastor


ainda por acerbas dores, diante da pequenez física e da sexualidade inibida, viu-se
estimulado à máxima exaltação do já extremado ímpeto inventivo. Não queremos
com isso destituir o mérito de seus avançados empreendimentos, mas apenas revelar
que o espírito humano, em nosso nível, é ainda premente de necessidades evolutivas
e não se deixa conduzir somente por sentimentos nobres em seus atos épicos, coisa
possível de encontrar-se somente dentre aqueles que atingiram a santidade. Isso nos
mostra ainda a beleza da Lei divina, que faz com que todo sofrimento e até mesmo o
Mal cumpram funções precisas na evolução, contribuindo para o progresso de todos.
Sabemos que todos os escolhidos para o desempenho de tarefas importantes no
rol das necessidades humanas têm suas encarnações cuidadosamente planejadas pelo
Plano Espiritual, que designa espíritos para lhe seguirem os passos. Por isso Alberto
teve seus riscos calculados e suas possibilidades previamente medidas para que tudo
se realizasse conforme um programa a seguir. Porém, não é somente o curso
daqueles considerados indispensáveis ao progresso que são devidamente preparados,
pois toda encarnação é uma missão, mesmo que objetive à própria melhoria. Todos,
dessa forma, recebem a ajuda necessária visando ao máximo aproveitamento da
experiência terrena. É um erro conceber-se a vida, em qualquer nível que se
desenvolva, como uma sucessão aleatória de fatos ao sabor do acaso, pois todos
somos assistidos e acompanhados por auxiliares do bem comum que nos incentivam
ao progresso, influindo decisivamente em todos os momentos de nossa história
individual e coletiva. Importa considerar, destarte, que, se nos consorciamos aos
comparsas da maldade, movendo-nos nas cadeias do ódio ou nos sujeitamos ao
assédio contumaz de inimigos atrozes do passado, estamos apenas usando a
liberdade de ação que a Lei nos faculta, fatos que podem ser previstos mas jamais
programados pelo Mundo Maior, que visa sempre à nossa reintegração nas fráguas
do amor.
Nosso amigo agora se refazia rapidamente. A exposição de suas frustrações no
campo da sexualidade e o reconhecimento de sua profunda insegurança, assumindo-
os como exercício necessário à inibição do orgulho desmedido, fora-lhe novo alento
para a recuperação. As energias emocionais desfeitas iniciavam sua regeneração,
incitando-o à eficaz cicatrização dos tecidos da alma, lesionados pelas farpas da
arrogância. Entretanto, cabia-nos continuar ajudando-o na reestruturação dos
panoramas íntimos, a fim de consolidar os ensinamentos que a escola carnal
sabiamente lhe ofertara.

ícaro Redimido - 263


Cientes dos novos fatores que interferiram em sua personalidade e conhecendo
melhor agora sua psicologia de ação, continuamos nosso diálogo:
— Entendemos seus intensos dissabores vividos na Terra, Alberto, mas não se
sinta constrangido diante dos fatos revelados. Não detemos motivos para considerá-
lo em posição inferiorizada pelas inibições que o conduziram no educandário
terrestre. Todos, sem exceção, somos igualmente necessitados de duras lições na
vida, a fim de corrigir a rebeldia secular que nos move.
— Sinto que pesado fardo me foi alijado da alma, depois que lhes relatei minha
dor. Agradeço-lhes a carinhosa ajuda. E tenho me esforçado para compreender a
necessidade de tamanho sofrimento...
— Reputemos a Deus a sua melhora, pois somos apenas instrumentos da
assistência divina, sempre presente em nós. Continuemos, contudo, nossas
considerações em busca de sua recuperação, cientes de que nossas dores nunca são
superiores à nossa capacidade de tolerá-las e se adaptam sempre às necessidades.
Entretanto, convém esclarecer-lhe alguns fatos que lhe farão bem em conhecer.
Embora eivada de dissabores, sua vida foi uma missão. Nobres entidades do nosso
plano, interessadas na melhoria da vida humana, planejaram-na cuidadosamente,
prepararam-no devidamente antes do nascimento e acompanharam seus passos,
orientando- o para o cumprimento dos fins propostos. Por isso, ainda que sempre
tenha se sentido um homem só, você não esteve, em momento algum, entregue a si
mesmo e foi amparado em toda situação de dificuldade. Entretanto, não se admire
disto, pois não há vida que não seja um apostolado do espírito, guardando toda
existência a sua importância diante dos propósitos do Criador e se executa sempre
dentro de objetivos nobres a serem atingidos.
— Reconheço que me via sempre atiçado ao trabalho e não encontrava sossego
íntimo no repouso. Percebia mesmo que algo me impelia. Não fosse isso teria
desistido em diversas ocasiões, mas não me sentia cumprindo um mandato...
— Sua alma era compelida à tarefa, um impulso íntimo que não se silenciava
impedia-lhe a inação e a incúria não encontrava lugar em sua consciência. A
verdade, amigo, é que a equipe espiritual que o assistia estava sempre atenta,
orientando-o devidamente nos caminhos da vida, pronta a atender às suas
necessidades. Atiçavam-lhe a alma, ocupando- lhe a mente com profusão de idéias
que não lhe davam sossego enquanto não as concretizasse. Situaram-no no rico
ambiente de Paris, por aí se

264 - Gilson T. Freire / Adamastor


encontrarem os meios adequados aos seus empreendimentos. Conheciam, no
entanto, os riscos da devassidão a que você se expunha e trataram de afastá-lo da
frívola sociedade de então, daí seu fácil fastio perante a desregrada vida social
parisiense, o lugar mais arriscado para um jovem endinheirado como você. Para
isso,ainda, contaram com a inibição imposta à sua sexualidade e, portanto, o que lhe
parecia um dano, fora, na verdade, precioso auxílio.
Diante do assombro de nosso amigo, continuei:
— Analisemos seus passos na vilegiatura terrena. Comecemos pelo malogro na
Escola de Ouro Preto. Esta foi de fato a primeira e séria objeção ao cumprimento do
programa traçado. Seu grande sofrimento, diante da sujeição à insegurança, era o
indício seguro de que seu caminho na vida estava ameaçado. Nossos desejos
antecedem nossos passos e nossos atos na vida, Alberto, pois o coração fornece
sempre a orientação segura para a jornada, fomentando-nos de angústias quando
ameaçamos mudanças de rumos e comprazendo-nos, ao acertá-los. A formação em
Mecânica deveria facultar-lhe maior segurança profissional para o melhor
desempenho do trabalho que lhe competia realizar e seu pai estava certo ao desejar
lhe fazer um engenheiro. Diante da capitulação, seus prestimosos amigos espirituais
cuidaram de suplantar a dificuldade inicial, encaminhando-lhe, mais tarde, o
professor Garcia, homem culto e de sólida formação moral, terminando igualmente
por proporcionar-lhe a mesma orientação de que você necessitava para o
desempenho da tarefa.
Sua relevante insegurança, contração de antiga e orgulhosa confiança em si
mesmo, era na verdade, um dos maiores óbices à efetivação de sua tarefa. Nesse
sentido, a carta de emancipação de seu pai desempenhou importante papel,
conferindo-lhe adequado desenvolvimento à autoconfiança. Tratou-se, no entanto, de
incisiva sugestão da espiritualidade que o assistia, prontamente atendida pela
generosidade de seu genitor. A perigosa quantia de dinheiro que ele depositou em
suas mãos, intuindo que logo desencarnaria e pensando ser esta a única forma de
recrudescer- lhe a apoucada personalidade, atendia ao mesmo objetivo. Facultando-
lhe viver por toda a vida sem o esforço do trabalho, ele se arriscou a transformá-lo
em um títere de luxúrias, porém, não é de se admirar o fato de que você nunca se
entregou ao ócio? Não o surpreende ter sido esta a exata quantia de dinheiro de que
você necessitou para a construção de suas dispendiosas máquinas aéreas? Isso
demonstra que essa fabulosa reserva monetária não visava proporcionar meios para
inúteis aventuras de um jovem tresloucado, mas ao cumprimento de uma missão.

ícaro Redimido - 265


— Devo confessar que ainda não compreendo bem estas alegações do amigo,
mas não posso duvidar delas, pois aqui estou, diante da realidade surpreendente
desta nova vida e me admiro do conhecimento que vocês detêm de acontecimentos
que pertencem unicamente à minha intimidade e jamais os revelei a alguém.
Realmente, depois do fracasso de Ouro Preto, pensei que não me realizaria na vida
e conduzir locomotivas ou reparar máquinas de beneficiamento de café seriam as
únicas atividades que daria conta de desempenhar. E, de fato, a carta de
emancipação de meu pai impressionou-me sobremaneira e reconheço que sem ela
teria sucumbido à insegurança. Nada posso negar.
— Saiba ainda que seus amigos invisíveis permaneceram ao seu lado durante
toda a sua vida, cuidando de detalhes de que você nunca se deu conta e sem os
quais sua empreitada não teria sido possível. Por exemplo: na meninice quando
você se refugiava na casa de beneficiamento de café, por não se ver valorizado nas
brincadeiras com outras crianças, estava na verdade sendo por eles adestrado,
preparando-se para o futuro, desenvolvendo um precoce interesse pelas máquinas.
Seu pai o incitava ao estudo da mecânica, obediente às sugestões que eles lhe
ditavam à intuição. Foram eles que lhe entregaram em mãos os preciosos livros de
Júlio Verne, a fim de enriquecer sua criatividade no campo das ciências. E você
não se encontrou com os baloeiros Lachambre e Machuron por mero acaso,
acredite, pois também lhe foram conduzidos. Os mecânicos que lhe serviram
mereceram cuidadoso adestramento no Plano Espiritual, pois, sem suas
inigualáveis perícias, você estaria correndo sérios riscos em suas máquinas aéreas.
Especialmente o exímio Anzani, o mais habilidoso deles, fora treinado no
desenvolvimento de motores com a potência e a leveza que suas aeronaves
requeriam. Antonio Prado era orientado para lhe dar suporte na administração
financeira, escolhido pela irretorquível honestidade, pois se lhe faltasse o
indispensável sustento monetário, sua missão estaria seriamente ameaçada. A
bondosa Eulália, sua caseira, havia se comprometido a ampará-lo na velhice
desvalida que, no entanto, não chegou. Todos atendiam ao convite da
espiritualidade que, com inestimável solicitude, zelava por você, meu amigo.
Rendamos graças a esses tutores desconhecidos que não medem esforços para
disponibilizar-nos os recursos imprescindíveis ao cumprimento de nossos papéis na
vida.
Alberto, ao se convencer dos cuidados de que fora objeto, silenciava- se,
atônito, diante da realidade da vida na carne, um processo muito mais conduzido e
orientado do que podemos imaginar, quando imersos nela. Continuando,
convidava-o a novas reflexões:

266 - Gilson T. Freire / Adamastor


— Prossigamos, contudo, ouvindo-lhe um pouco mais a história viva, estampada
em sua alma. Abra-nos o coração e prossiga relatando-nos os seus momentos mais
difíceis vividos na carne.
Agora, sem denotar intolerável desespero e demonstrando maior equilíbrio nas
emoções que afloravam nas lembranças ainda vivas, seguiu o relato de suas maiores
dores:
— Minha primeira grande dificuldade aconteceu em Péronne. Depois dela
cheguei a pensar em abandonar a aerostação.
— Você a mencionou em uma de suas regressões, porém não entrou em
considerações pormenorizadas. Conte-nos o que lhe aconteceu.
— Cheguei nesta cidade, ao norte da França, já era quase fim de tarde, para
fazer uma demonstração em balão livre, num espetáculo público, cumprindo com
minha determinação de trabalhar de graça para o sr. Lachambre. Uma pequena
multidão logo se aglomerou ao meu redor, admirando não só o balão que se inflava,
mas sobretudo a minha coragem, pois nuvens ameaçadoras se acumulavam no
horizonte próximo, prometendo forte tempestade. Muitos se colocaram receosos por
mim, tentando dissuadir-me da aventura, dizendo que se eu era obrigado a ir, que
levasse comigo o dono da festa. Estava de fato pensando se valia a pena tal arrojo,
quando ouvi alguém considerar que “não acreditava ser aquele pequeno homenzinho
capaz de tamanha audácia”. Podia ser pequeno, mas não admitia que duvidassem de
minha coragem pelo simples fato de ser miúdo. Não disse nada, mas não podia
tolerar um desafio sem enfrentá-lo e, sem vacilar, pulei para dentro da barquilha,
ordenando que largassem tudo. Estava certo de que bastaria deixar-me levar pelo
vento, até encontrar um local seguro para pousar.
— Apressando-se a atender ao amor-próprio ameaçado, meu amigo, você
colocou-se refratário aos espíritos que o assistiam e não pôde mais ouvir seus sábios
conselhos. A verdadeira coragem consiste em reconhecer as próprias limitações.
Você deveria ter tido a ousadia de humildar-se, mostrando seu temor.
— Pensava que um verdadeiro aeronauta não podia revelar medo. E, em breve,
estava no seio de terrível tormenta, açoitado por ventos fortíssimos, agitando-me de
frenético pesadelo. Agarrado desesperadamente ao pequeno e frágil cesto de vime,
nada podia fazer a não ser entregar-me ao pavor. Não havia como descer, apenas
deixar-me conduzir pela fúria dos elementos atmosféricos, até que a noite envolveu-
me em assustadora escuridão, cortada por relâmpagos estridentes. Suspenso na
imensidão negra, sem noção do tempo e do espaço, e nem mesmo da altitude,
molhado e enrijecido pelo frio, esbaforido e tomado pelo terror,

ícaro Redimido - 261


esperei pela morte, até que desfaleci, vergado pelo esgotamento das intensas
descargas de pânico. No outro dia pousei entre assustadiços camponeses. Estava na
Bélgica.
— Eis que você se acovardou diante do orgulho, optando por enfrentar a
tormenta, exibindo uma bravura que não detinha. Preferiu desafiar a morte a expor-
se à vergonha. A vida costuma devolver ao imprevidente do orgulho a humilhação
do dano físico ou o malfadado trauma do extermínio do corpo, meu amigo. Mas o
que importa agora é reconhecer o seu erro e assumi-lo com lealdade.
— Sim, reconheço que errei, não precisava ter enfrentado tamanho perigo e se
o fiz foi realmente em defesa do amor-próprio. Arrependi-me logo no primeiro
minuto ao me ver tomado pela fúria do temporal, quando já era tarde. Machuron
chegou a julgar-me morto e minha tia, muito aborrecida, depois de passar a noite
em vigília esperando por mim, alegou que não tinha nervos para tolerar minhas
loucas aventuras aéreas e não me quis mais sob sua custódia. Sem ambiente em
casa, tive que apressar minha mudança.
— Depois disso, a morte passou a ser uma ameaça constante em sua vida...
— Meus amigos sempre admiraram minha valentia, mas devo confessar que
valorizava muito pouco a minha vida e não importava em expor-me ao perigo. Sei
que na verdade isso não representava coragem alguma, mas fazia-me bem que
pensassem assim...
— A inibição sexual lhe roubava todo valor pessoal, imputando-lhe soturna e
significativa perda da auto-estima. Os espíritos sabiam que isso o levaria a arrostar
a morte e, embora tal sentimento fosse uma desconsideração pela dádiva da
existência, em seu caso foi um mal bem aproveitado, pois as primeiras experiências
aéreas precisavam de alguém que as enfrentasse. Você, no entanto, foi bafejado por
invejável autocontrole, suficiente para não lhe permitir a entrega ao pânico, o que
muito o ajudou para sair incólume dos muitos riscos a que se expunha. Contudo,
você não pode olvidar a equipe de espíritos que esteve sempre ao seu lado,
ajudando-o nesses momentos e deve muito a eles, não só pelos sucessos, mas por
ter se saído sempre bem nas horas de risco. Seu autocontrole apenas lhe permitia
estar atento às suas sugestões que tantas vezes lhe salvaram a vida.
— Devo agradecer, então, aos seres invisíveis que estiveram ao meu lado.
Poderei encontrá-los ou são como os anjos, habitantes de um céu inacessível?

268 - Gilson T. Freire/Adamastor


— A intuição nos diz que estivemos com um deles e, possivelmente, você não
tardará a conhecê-lo. Na desastrosa experiência de Nice, quando você foi
arremessado para fora de sua barquilha, guarde a certeza de que foram eles que o
impediram de encontrar a morte, retalhado nos galhos das árvores contra os quais a
furia dos ventos o atirou. Em Bagatelle eles se apressaram a lhe sugerir o socorro com
os rçieninos que brincavam...
— Recordo-me perfeitamente. Meu balão fusiforme dobrou-se em dois, por falha
da bomba de ar que deveria sustentar o balonete de compensação. Comecei a perder
altitude rapidamente e pressenti a morte, quando me ocorreu a idéia de pedir aos
garotos que me puxassem como a um papagaio, amortecendo minha queda.
— Aqui temos um ponto relevante a considerar: a sua pressa em se justificar
diante dos fracassos. Sua alma reluta em aceitar o fato de sermos todos falíveis, meu
amigo. Eis uma importante motivação para o orgulho que deve ser combatido
veementemente. É erro pretender acertar sempre, alimentando-se permanentemente
de sucessos, sobretudo visando nos vangloriar diante dos demais. A aceitação da
condição de falibilidade deve se incorporar, sem demora, em sua personalidade, pois
não estamos mais nos ensaios da experiência carnal e a nova realidade do espírito nos
concita a diferente postura para as condutas e pensamentos. Analise os fatos com
sinceridade e julgue você mesmo as suas falhas, aceitando-as.
— Realmente reconheço que foi uma temeridade ter subido a quatrocentos
metros, como o fiz, naquela ocasião. Minha intuição me dizia que eu não poderia ir
além dos cem, a fim de evitar a contração do gás na descida. Foi uma imprudência da
qual tive perfeita consciência, pois sabia que não conhecia muito bem o
comportamento de um balão fusiforme. Não dominava ainda o uso do balonete de
compensação e não estava usando a quilha triangular para sustentar a instável forma
de meu balão. A falha foi minha, não da bomba de ar.
— E ao se chocar contra as árvores, no primeiro vôo, você imputou o erro aos
aeronautas presentes que lhe recomendaram subir a favor do vento...
— Devo confessar que ao ceder aos seus conselhos, pus-me de acordo com eles
e errei também. Não acreditei em minha intuição que recomendava subir contra o
vento. Não assumi esse equívoco, é verdade...
— Você aproveitou-se do fato para exaltar sua inteligência e sagacidade em
detrimento da ignorância deles. É grave erro do orgulho, avultar nossa
personalidade desvalorizando os demais. E o malfadado n“ 2, que nem chegou a
subir?

ícaro Redimido - 269


— O gás contraiu-se logo na subida, dobrando-o ao meio. Um vexame. Sei que
me precipitei em não aguardar um tempo bom para subir. O balão já estava a meio
de inflar-se completamente, quando começou a chover, mas eu devia ter ouvido
minha intuição e desperdiçado o gás, teria sido melhor do que perder o balão, quase
a vida e a confiança em meu sucesso. Além do mais, devo dizer, era o dia da
Ascensão e queria ser bem sucedido em minha experiência justo nessa data, uma
grande bobagem, reconheço... Depois desse segundo fracasso, por pouco não desisti
do intento, ouvindo os amigos que reafirmavam ser impossível manter um balão
fusiforme sempre rígido, devido às constantes variações da pressão do gás...
— Os orientadores espirituais, entretanto, continuavam ao seu lado e não lhe
permitiram desistir. Incitavam-no ao trabalho, aproveitando seu afã de aplausos. E,
quando, na Exposição de Paris de 1900, você passou a voar de fato com o nD 4,
ostentando seu sucesso diante das personalidades mais eminentes do mundo,
embevecidas, frente à sua enorme audácia, o Mundo Espiritual o assistia também,
preocupado, não com uma possível queda com danos físicos, mas com a
sobrelevação do orgulho que poderia lhe danificar a alma, de modo muito mais
grave, meu amigo.
— Reconheço que exagerei, não precisava exibir-me assim. Devo confessar
que me fazia muito bem arrancar admiração das pessoas, principalmente ao verem
minha ousadia, apoiando-me em um pequeno selim de bicicleta, suspenso por finas
cordas de piano. Admito que o propósito de chamar a atenção me estimulava e ter
nos pedais o controle do arranque do motor não era o único motivo para usar aquele
modelo. Ele era inconveniente e perigoso e minha intuição logo me fez abandoná-
lo. Reconhecer o quanto fiz visando somente enaltecer a minha pessoa é hoje
amarga lembrança que me fere e gostaria de apagar da memória!
— Você começa a perceber como é essencial para o equilíbrio do espírito,
sobretudo na Erraticidade, acomodar nos limites da modéstia a altivez que nos
habita o personalismo. E está sentindo ainda como aqui nos incomoda notar que na
jornada terrena nos deixamos ludibriar por errôneos valores, tornando-nos meros
fantoches a serviço da arrogância. Observemos a sua indisposição inicial com o
recém-fundado Aeroclube de Paris. No episódio do prêmio Deustch, o amor-próprlj
ferido quase o levou a um sério rompimento com essa entidade, pois você se sentia
doentiamente prejudicado por ela. Indignado, você escreveu ofensiva carta dirigida
aos seus diretores, mas seus amigos espirituais, sempre atentos, obrigaram-no a
reescrevê-la em termos mais amenos, pois o apoio da nova sociedade era
indispensável ao êxito de sua missão.

270 - Gilson T. Freire / Adamastor


— Senti que o Aeroclube me menosprezava como se não quisesse que um
estrangeiro vencesse a prova. Munido de melindres infelizes pedi o meu
afastamento da associação e cheguei a escrever, de fato, petulante e agressiva
missiva aos amigos, procurando defender a honra ameaçada. Reveses da vaidade!
Hoje vejo que estava cego de orgulho. Não poderia realmente prosseguir sem o
apoio dos leais companheiros do Aeroclube. Os dois monumentos erigidos em Paris
em homenagem à minha humilde pessoa foram iniciativas deles que, na verdade,
nunca me desconsideraram...
— Apesar das polêmicas, você terminou por ganhar o prêmio que lhe
proporcionou os primeiros sabores das glórias do mundo. E recebeu uma fortuna,
cento e vinte e nove mil francos, que tratou rapidamente de distribuir entre os
pobres de Paris e seus mecânicos, conforme foi amplamente divulgado na imprensa
do mundo, na época. Um gesto nobre de sua parte...
— Nada posso ocultar perante minha própria consciência e devo revelar- lhes
que não guardo mérito algum neste feito. Na verdade, não foi generosidade o que
me levou a doar tal fabulosa quantia aos desempregados e, embora saiba que os
amigos estejam perfeitamente cientes disso, exponho-me ao julgamento, neste
momento...
— Julgue-se a você mesmo. Não nos faça juizes de sua vida, não estamos aqui
para condená-lo, mas somente para ajudá-lo a enxergar os próprios erros a fim de
que você refaça seu equilíbrio.
— Mais uma vez o orgulho me movia, eis o fato, embora preferisse não admiti-
lo. Devo superar a imensa vergonha que me veste a alma, para revelar que o
tamanho de meu amor-próprio era tal que não me permitiu desfrutar do prêmio. Não
queria que pensassem que eu estava competindo e brigando pelos meus direitos,
unicamente pelo dinheiro e, por isso, em defesa de minha doentia dignidade é que
doei a importância. Não me movia qualquer genuíno sentimento de bondade.83
— Na verdade, seu maior interesse era saborear os louros das vitórias humanas,
que lhe valiam muito mais do que o dinheiro...
— Eu não era humilde o bastante para admitir qualquer necessidade material,
sei disso. E, ademais, Antônio Prado havia me adiantado que o governo brasileiro
estava disposto a enviar-me igual valor, não somente visando a auxiliar-me nos
dispendiosos experimentos, mas como um consolo diante do malogro da difícil
prova, tendo em vista a inicial

83 Rever o capítulo 17, onde há referência ao prêmio Deustch, para maiores detalhes do fato aqui
narrado.

ícaro Redimido - 271


recusa dos juizes em favorecer-me com a vitória. E, afinal, com a mesma
importância em mãos, podia me dar ao luxo de menosprezar o dinheiro deles. E
ainda seria, sem dúvida, mais um nobre feito para engrandecer meu nome...
— Jesus nos recomendou não dar esmolas somente para vangloriar o próprio
personalismo, por tratar-se de ato que nos impulsiona a grave enfermidade da alma.
Efetivamente você agiu em defesa do próprio orgulho e por isso, além de não deter
méritos diante da Lei de Deus, terminou por avultar mais encargos doentios ao
psiquismo, o que contribuiu para aumentar sua derrocada emocional. Contudo, o
Mestre nos aconselhou ainda que praticássemos o bem, mesmo que com os
recursos da iniqüidade e pelo menos você proporcionou benefícios para muitos que
realmente precisavam, cujas preces e sentimentos de gratidão em seu favor muito
contribuíram para minorar seus padecimentos após a morte. Trate, entretanto, de
não repetir a falta, tendo em mente que é grave erro fazer do bem mero lustre para
nossa vaidade, ainda que praticá-lo, sob quaisquer condições, sempre se justifique.
— O orgulho mais uma vez... Como me dói a lembrança dos erros cometidos
apenas para satisfazê-lo...
— Somos ludibriados pelos doentios impulsos, dominando-nos
completamente a alma, maculando-nos de insanos desejos. Reconhecer isso é para
nós imensa dor. Tratemos de assimilar a lição, mesmo que tardiamente, colocando-
a em prática desde já, preservando nosso futuro. E o grave acidente do hotel
Trocadero, a que você se referiu em uma de suas regressões? O que o amigo nos
conta do ocorrido?
— Meu pior desastre, por pouco não morri. Caí com o dirigível n° 5 nos
telhados do Trocadero, quando tentava, mais uma vez, ganhar o prêmio Deustch.
— Sabemos que os espíritos que o assistiam, notando que uma das válvulas do
balão perdia gás, avisaram-no prontamente. Você, atento às sugestões que eles lhe
veiculavam pelas vias da intuição, pôde notar o problema a tempo de descer antes
que o pior acontecesse. Mas você não atendeu ao forte apelo do bom senso, o que
se passou?
— É verdade, vi que o balão perdia gás, porém não ficava bem decepcionar o
povo e os juizes do Aeroclube novamente. Seria vergonhoso, pois em três ocasiões
seguidas não consegui retornar, deixando-os à minha espera e mais uma vez seria
muito deselegante. Resolvi arriscar, tentando chegar antes que a pressão
insuficiente do gás terminasse por dobrar o meu balão. E acelerei mais minha
máquina. Mas as cordas

272 - Gilson T. Freire / Adamastor


começaram a se romper por diferença de tensão, tive que desligar o motor e
comecei a perder altura rapidamente. Pensei que seria o meu fim... Os telhados de
Paris, com suas chaminés ameaçadoras... sabia que um dia teria que enfrentá-los!
Nunca pude mirá-los quando sobrevoava a cidade, preferia a segurança dos campos
e dos bosques, onde se pode descer em qualquer lugar. De repente ali estava,
precipitando-me velozmente sobre eles, o pior lugar para se cair. Não tive tempo
para nada... Senti-me envolvido por uma estranha sensação que não sei definir, o
pavor parecia paralisar-me não somente o raciocínio mas também os sentidos...
quando dei por mim, estava sendo içado pelos bombeiros. Todos os jornais
noticiaram o acidente, virei uma espécie de escândalo... Até hoje me envergonho
do fato. E por tanto querer olvidá-lo, eliminei o número oito de minha vida, pois ele
aconteceu no dia 8 de agosto. Não era superstição, era vergonha. Tomaram porém
essa minha estranha atitude como um sinal de crendice... Como nos dói aqui a
lembrança das inutilidades que nos ocuparam na vida! ... Hoje vejo que na verdade
foi meu dia de sorte por não ter morrido. Não soube valorizar este fato na época. E
ainda tive a fraqueza de imputar o acidente à péssima qualidade da válvula de gás
enquanto que o erro foi meu, reconheço. Se tivesse descido imediatamente, nada
teria acontecido. Porém não tive um arranhão, devo agradecer a Deus e aos amigos
espirituais, então...
— Muito mais do que à medalha de São Benedito que você trazia presa ao
punho. Mas deve reconhecimento também à sua intuição por ter empregado as
resistentes cordas de piano e sua quilha triangular na confecção de seus dirigíveis
fusiformes.
— Sem dúvida, se minha barquilha ainda fosse sustentada por cordas comuns
teria me precipitado contra o telhado e morrido, certamente. A quilha me reteve
entre a parede e as telhas, resistindo fortemente ao impacto. Mas não bastou ter
sobrevivido ao grave acidente e me exposto às críticas sensacionalistas da imprensa.
Madame Denicau, a proprietária do hotel, moveu sem demora um processo judicial
contra mim. Errei por não tê-la procurado a fim de ressarcir os danos causados em
seu telhado. Não fui antes por acanhamento, admito. Claro que iria pagar pelos
estragos, que não foram tantos assim, cento e cinqüenta francos somente... Mas,
devo confessar, o acinte daquela demanda constrangeu-me ainda mais, aumentando
o dissabor do vexame...
— Vemos que você temia mais a vergonha dos fracassos do que a própria
morte, pois arriscando para se safar deles, expunha-se aos piores desastres. E não
admitindo a possibilidade de falhar, justo que tenha

ícaro Redimido - 273


sofrido decepções muito superiores ao seu real significado. Por isso você se
indignava diante dos jornais que sempre noticiavam em primeira página, com
estardalhaço, os seus acidentes. Você os via como falhas suas, maculando de erros
imperdoáveis a vaidade enaltecida, diante da inadmissível falibilidade. Daí ainda a
obstinação cega em vencer todos os obstáculos,a qual lhe caracterizava a
personalidade. Esta é outra obra do orgulho que nos move a alma, meu amigo, e
que o envenenava aos poucos, vergastando-lhe o ânimo. Somente os espíritos
altaneiros se envergonham de se expor ao insucesso. Eis por que procurar pela
humildade, aceitando os próprios equívocos, é preciosa lição que nos livra de
muitos dissabores. E acolher o engano é ainda a melhor maneira de não repeti-lo.
— Devo reconhecer, não admitia o erro. Meus amigos consideravam- me de
fato um obstinado, devido a isso. A vergonha do fracasso tomou conta de mim em
várias ocasiões. Em Mônaco, por exemplo, vivi um dos meus maiores vexames,
cuja lembrança sempre me maltratou. Saí do hangar com o balão vazio e afundei
na baía.... Envergonhado, desisti de minhas experiências por lá e passei a carregar
uma mágoa de Aimé, por isso, é verdade. Ele não podia ter deixado de pesar o
balão antes de liberá-lo para o vôo, não viu que ele tinha perdido gás de um dia
para o outro. Penso que neste episódio a culpa realmente tenha sido dele, mas os
jornais não contaram nada disso e o fiasco ficou por minha conta.
— Naturalmente você não queria fazer um papelão, logo em Mônaco! Mas é
preciso que saiba que não foi Aimé o responsável por isso, mas sim os seus amigos
espirituais. Eles resolveram colocar um fim em suas futeis aventuras em Monte
Cario, onde você se exibia para príncipes e potentados, flutuando sobre a baía da
Côte d’Azur, unicamente para lhe servir de cartão postal. E havia um outro grave
motivo para dissuadi-lo disso. Você, na verdade, estava se preparando para realizar
a travessia do Mediterrâneo, voando até a Córsega, inédita façanha que lhe seria
um equívoco fatal.
— De fato, desejava ardentemente essa primazia para o meu nome. Ela me
cobriria de glórias, faria com que todos esquecessem o acidente do Trocadero e
reconhecessem o poder e a segurança de meus dirigíveis.
— Por isso a azáfama que o fez retirar-se de Mônaco lhe foi auspiciosa ajuda,
meu amigo. Sua frágil aeronave não poderia resistir aos fortes ventos do mar
aberto e sua altivez não lhe permitia ver o óbvio. Mesmo que barcos o
acompanhassem, o risco era grande e desnecessário. Os espíritos então cuidaram
de distrair Aimé, impedindo-o de perceber que

274 - Gilson T. Freire / Adamastor


o balão não estava completamente cheio. Nesse caso você muito deve à sua
distração. Sem olvidarmos que, alguns dias antes, por pouco você não explodiu
sobre a charrua do príncipe, ao sobrevoar tão próximo às suas chaminés que
expeliam fagulhas invisíveis e perigosas para seu balão de hidrogênio. Se o príncipe
não tivesse caído ao tentar reter a sua corda-guia, você teria ido pelos ares, meu
caro. Vemos que, em suas peripécias, você deu muito trabalho aos espíritos que o
assistiam na Terra.
— Vi o perigo a que me expus, porém muito depois. Sei que foi uma grande
imprudência querer mostrar-me para a corte de nobres que acompanhava meus vôos
na baía. E reconheço que minha intenção era realmente cruzar o Mediterrâneo até a
Córsega. Recordo-me de que não desisti fácil de semelhante empreitada, pois por
muito tempo, depois do acidente de Mônaco, acalentei a idéia de efetuar a travessia
do canal da Mancha, apenas para vangloriar-me o nome. Com minha Demoiselle só
não intentei a façanha porque meus amigos, sobretudo Aimé, persuadiram- me do
grande perigo da jornada. Como a vaidade nos coloca em risco, é verdade...
— Risco muito maior para o espírito do que para o corpo, Alberto. Este pode se
lesar, impondo-nos danos físicos, ou mesmo a morte, porém passageiros. As
abrasões carreadas pelo orgulho, contudo, são capazes de nos lacerar
profundamente a alma, coagindo-nos ao encargo de árdegos sofrimentos para a
restituição da saúde. Guarde a certeza de que todos os seus pesares, inclusive o
maior deles, a fuga da vida, advêm dos hábitos inadequados do personalismo e não
das circunstâncias a que você se expôs na vida. Porém, veja neste fato novamente a
atuação dos amigos invisíveis, através ainda de Aimé, alterando significativamente
o rumo de suas aventuras. Mas, certamente outras decepções lhe habitaram a alma,
continue a recordá-las.
— Aída foi uma grande decepção. Realmente deixei-me entusiasmar pela sua
beleza e pelo seu enorme interesse pelas minhas máquinas aéreas...
— Consta-nos que foi a única pessoa que você permitiu voar em um de seus
dirigíveis, coisa que não consentiu nem mesmo aos seus mecânicos. Entretanto,
mais uma vez este não era o seu caminho e você sabia disso.
O afastamento dela foi providencial, suas dores seriam ainda maiores, porém a
própria vida encarregou-se de separá-los, não culpe os espíritos neste caso. Você
detinha direitos de entretecer relações afetivas com quem desejasse, porém a
inibição da sexualidade o constrangia

ícaro Redimido - 275


sobremaneira, impedindo-o de aprofundar as relações amorosas, sabemos disso.
— Os pais dela não viam com bons olhos nosso relacionamento, mas minha
decepção foi grande ao perceber que se tratava apenas de uma jovem desvairada em
busca de aventuras inéditas. Não detinha nenhum amor verdadeiro pela minha pessoa
e somente brincava com meus sentimentos...
— As pessoas que se fixam em nossos corações com facilidade, exaltando-nos
as afeições sem que saibamos devidamente a razão disso, são, de fato, construções
afetivas remanescentes de outras experiências de vida e constituem verdadeiros
reencontros. Mas Aída não era um reencontro e não havia em sua programação de
vida planos para um enlace amoroso estável. Como você bem sentia, não nascera
para o casamento, pois deveria dedicar-se com exclusividade à tarefa com a qual se
comprometera. Sua alma, contudo, ressentia-se de uma afetividade genuína que lhe
sustentasse o coração amargurado, afugentando-lhe as angústias da solidão. Isto era
uma necessidade, meu amigo, mais tarde poderemos compreendê-la melhor.
— Minha família terminou por ser minhas máquinas, bem sei... Prezava de fato
meus balões e meus aeroplanos, sobretudo a Demoiselle, mas reconheço que não
podiam preencher-me a sede de afeto, e a solidão era um vazio insustentável para
minha alma desvalida. Num espasmo de agonia, certa vez, cometi o descalabro de
pedir a filha de Voisin, cujos encantos me fascinavam, em casamento, mas me movia
pelo desespero e não sabia o que estava falando. Janine era trinta anos mais nova do
que eu, sinto que cometi um grande vexame, deixando o amigo embaraçado e
envergonho-me até hoje do episódio.
Alberto silenciava por um momento, refletindo nas lições que a vida lhe exigira,
haurindo delas inegáveis e valiosos aprendizados. Apreciando- as do lado de cá,
vemos como são fugazes, por maiores que nos pareçam quando estamos na carne.
Um sentimento de covardia e pesar nos assalta a alma, ao lançar os olhos para a
retaguarda e reconhecer-nos fracos diante de provas que se desvanecem tão
rapidamente como castelos esculpidos nas areias do movediço destino, conduzindo-
nos na incansável esteira do tempo, em ondas de ascensões e quedas.

276 - Gilson T. Freire / Adamastor


Sombras de Um Homem

“Se dissemos que não temos pecado nenhum, enganamo-nos a nós mesmos e a
verdade não está em nós. ”
I João, 1:8

P rosseguindo na compilação das lembranças mais contumazes de


sua vida, reformulando-as como preciosas lições para a eternidade,
Alberto continuou relatando suas maiores fraquezas amealhadas
no exercício da altivez entre os homens:
— Sinto a culpa do orgulho que me conduziu em tantas ocasiões no desejo
incontido de glórias, nas vaidades nunca satisfeitas... Sou um homem torturado
pelo arrependimento e não há nada capaz de me restituir a paz perdida... Tenho
medo de que a angústia volte a tomar conta de minha alma, ajudem-me, por Deus...
— Em qualquer momento é sempre possível alijar a opressão da auto-
recriminação, mediante o desejo sincero e o empenho efetivo na reforma das
condutas e sentimentos, impondo coercivos limites à vaidade e ao orgulho, as
verdadeiras motivações que nos movem às contravenções, e reais causas de nossos
tormentos íntimos. E não olvide, se a Lei nos constrange às culpas é porque nos
pede, com insistência, solução para os enganos. Basta enfrentá-las com a mesma
bravura com que você desafiava as alturas, porém munido da humildade que a
consciência lhe suscita, e a paz lhe será companheira definitiva,,meu amigo.
Relate-nos os motivos de seus maiores tormentos e juntos buscaremos o lenimento
definitivo para acalmá-los.
— No ano de 1904 transportei meu dirigível de corrida, oií7, para a Exposição
Universal de Saint Louis, nos EUA, a fim de concorrer em um torneio aéreo, mas
lá chegando, intimidado diante da grandiosidade

ícaro Redimido - 277


daquela nação, achei por bem não participar. Temia uma derrota e hoje reconheço
que meu orgulho não a podia tolerar. Como não tinha motivos que abonassem
minha covarde capitulação em tão última hora, vergonhosamente aleguei que um
pequeno rasgo no invólucro do balão, provavelmente decorrente de mero acidente
de transporte, teria sido fruto de uma sabotagem. Embora perfeitamente
recuperável, justifiquei assim minha desistência e meu rápido retorno à Europa.
Hoje vejo que utilizei um subterfúgio apenas para defender o meu amor-próprio,
eximindo-me de impor qualquer diminuição à personalidade. Não admitia
demonstrar sentimentos negativos, como medo e insegurança, para não macular o
meu nome diante do mundo que ainda me ovacionava pela conquista da
dirigibilidade aérea. E como me pesa também ter empregado tempo e tanto
dinheiro em um dirigível dispendioso somente para embalar-me em sonhos de
vitórias, em competições sem fundamentos com o fito exclusivo de enaltecer-me a
vaidade. Fúteis ilusões! Quantas nulidades empreendemos na vida! Quanto esforço
sem proveito e quantos recursos desperdiçados!..
— Podemos ocultar nossas fraquezas aos companheiros de jornada, no
equivocado exercício de exaltação do personalismo, mas não conseguimos
escondê-las de nós mesmos perante a Lei, sem dilacerar a própria consciência, feita
de substância divina. Entretanto, pelo menos o irmão não prejudicou ninguém além
de si mesmo neste episódio. Seu erro, mais uma vez, foi do orgulho que o levou a
apresentar-se como um falso herói entre seus compatriotas, mostrando-se como um
homem valoroso, portador de invejável coragem, sem máculas ou fraquezas. Os
filhos das nações ainda apreciam exemplos assim para simbolizar seus anseios de
hegemonia e fazer valer seu orgulho no concerto dos povos. Contudo, os tempos
mudarão rapidamente e dia virá em que nossos maiores próceres serão os santos,
pois estamos a caminho da angelitude e carecemos muito mais do exemplo de
bondade e do heroísmo da renúncia do que da bravura dos audaciosos onde nos
espelhar.
— Sim, reconheço que me fiz um herói sem fazer jus a tal título e minha pátria
venera o meu humilde nome sem que eu o mereça. Desejaram fazer-me inclusive
general honorário, coisa absurda e que apressadamente tratei de renegar. Recuei,
assustado diante do convite, ao perceber que realmente construí na opinião pública
uma falsa imagem, sem o mínimo respaldo em minha realidade íntima, e penso que
essa mesma figura continua a ser venerada em meu país e seguirão enaltecendo
meus feitos como se fossem frutos de um heroísmo verdadeiro. Quando na carne,

278- Gilson T. Freire / Adamastor


isso me era motivo de orgulhosa satisfação, alimentando doentia vaidade, mas
agora, ao ver-me coberto de mentiras, vestido de falsidades e delitos diante da
imensa penúria espiritual, vergo-me abatido pelo opróbrio, pela vergonha, pela
culpa. Ferido por essa imensa dor, não encontro paz em meu íntimo. Desejaria
trocar tal sofrimento pela maior das dores físicas possível a um homem.
— As dores morais são os mais expressivos martírios para um espírito em vias
de atingir a maioridade, Alberto. E transformá-las em padecimentos físicos
realmente é possível e às vezes única possibilidade para solucioná-las, o que se faz
transferindo-as para a carne. Eis por que renascer com doenças atrozes é
necessidade para a cura da alma, meu amigo. Entretanto é possível apaziguá-las
ainda agora, assimilando as lições, no exercício de sincera humildade, precavendo-
se de males futuros.
Alberto agora deixava que lágrimas lhe marejassem os olhos, premido pelo
conteúdo das faltas que ainda lhe espicaçavam a alma, diante da violação da
conduta não condizente com as exigências de sua consciência sensibilizada pela
evolução. E, imbuído da coragem suficiente para enfrentar seu mais acerbo
remorso, expressava-o, enfim:
— Por pouco não me deram o título de general... Que absurdo!.. Recordo-me
que, pávido, escrevi sem demora ao Antônio, pedindo-lhe que interferisse junto ao
presidente, evitando o que seria um erro injustificável e mais um grande dissabor
para mim. Esse título não somente era uma imerecida homenagem ao herói
mentiroso que me fiz, mas, sobretudo, associaria meu nome à aviação de guerra.
Isso se tornou o meu maior pesadelo, martirizando-me a consciência de dores
insuportáveis. O emprego do avião nas guerras, se antes me era motivo de pesar,
converteu-se dessa data em diante em um verdadeiro suplício, dilacerando- me as
fibras da alma. Devo confessar a enormidade de minha falta. Devo pedir perdão a
Deus e aos homens...
Nosso amigo abandonava-se ao pranto como uma criança arrependida diante
das peraltices, ao perceber a gravidade dos atos inconseqüentes e prosseguiu, após
breve intervalo:
— Minha dor não foi somente por ver o aeroplano sendo empregado como a
mais formidável arma de destruição já pretendida pelo homem do nosso século,
mas justamente porque eu fui o responsável por isso. Quando me dei conta do
grave erro e passei a combater com todas as minhas forças tal absurdo, não
compreenderam minha atitude. Uns pensavam que eu não estava de fato cônscio de
minhas faculdades mentais. Outros ainda me outorgaram mais um imerecido título:
o de pacifista.

ícaro Redimido - 279


Os mais achegados debochavam de mim, dizendo ser grande bobagem sofrer por
uma questão que não me dizia respeito. Eu não detinha o direito do uso daquilo que
não era meu, pois sequer era mais considerado o seu inventor... Entretanto, ignoram
o que eu realmente fiz no passado... Não podiam ver os fundamentos de minha
enorme culpa...
— Temos notícias dos fatos, mas gostaríamos que os relatasse para avaliarmos
o real peso de sua responsabilidade nesse grave acontecimento...
— A verdade, amigos, é que eu sugeri pela primeira vez o uso militar para o
dirigível. Queria exaltar sua utilidade e achava que assim despertaria o interesse do
mundo por aquilo que considerava meu invento... Em 1902, quando fui à América
do Norte a convite dos organizadores da Exposição de Saint Louis, a fim de
verificar os seus preparativos, dei longa entrevista em importante jornal de Nova
Iorque, evidenciando o uso das máquinas aéreas em operações bélicas. E, o que foi
mais grave nessa ocasião, em decorrência disso fui chamado para uma reunião
secreta com o presidente Roosevelt, onde discutimos, juntamente com altas patentes
do Exército, da Marinha e o presidente da Liga Aérea das Américas, as enormes
possibilidades das máquinas voadoras na guerra. Envaidecido pela inusitada
posição em que me encontrava, deixei que o orgulho conduzisse minha disposição
íntima e enalteci, com o mais vivo entusiasmo, as indiscutíveis vantagens das
aeronaves nos conflitos armados, alegando ser elas que decidiriam, doravante, o
resultado final dos embates. Cego, diante da descabida presunção, não percebi a
enormidade do erro que estava cometendo...
Movendo-nos a condolência diante de tão exacerbada dor, compreendíamos
naquele instante que seu potencial autodestrutivo fora incrementado pela intenção
de autopunição, contribuindo para agravar- lhe a reverberação das forças
hipopsíquicas. Ele se impusera, de fato, o maior dos castigos por acreditar
sinceramente ter causado grande malefício à humanidade. E prosseguia o amigo em
verdadeiro ato confessional:
— Daí em diante fui dominado por essa errônea idéia. Em 1904 tive a
pretensão de escrever um livro, só para exaltar meus feitos e nele cometi o erro de
dedicar um capítulo inteiro às vantagens dos dirigíveis nas guerras. Convencido da
excelência das minhas concepções, sugeria inclusive que seriam as únicas defesas
contra os submarinos, pois não somente poderiam divisá-los do alto como
facilmente destruí-los com cargas explosivas. Felizmente o livro terminou por ser
um fiasco de vendas, mas estava dito e não podia mais voltar atrás. Anos mais
tarde,

280 - Gilson T. Freire / Adamastor


quando já havia dado conta da gravidade do fato, convidaram-me para assumir
uma cadeira na Academia de Letras de meu país, mas não podia dar-me ao luxo de
aceitar, não somente por não me admitir com dotes de literato, mas, sobretudo, por
renegar veementemente o que escrevera, não sendo merecedor de honra alguma
por tal feito. Ressumando na face extremada consternação prosseguiu, após breve
intervalo:
— Mas não é tudo, meus amigos. Não posso esquecer a parada militar de 14 de
Julho de 1903, em Longchamps. Outra imensa infelicidade! Garbosamente exibi
meu dirigível como a mais avançada arma de guerra do mundo perante chefes de
Estados e representantes das mais importantes nações da Europa. E ainda executei
uma salva de vinte e um tiros... Depois do meu desfile, os jornais da Europa
passaram a discutir essa nova possibilidade, admirados diante da realidade que
todos agora podiam antever. O General André enviou oficiais do exército à minha
oficina em Neuilly, visando à construção de um poderoso dirigível para uso
exclusivamente bélico, o “Patrie” e, infelizmente, eu participei ativamente dos
planos dessa primeira aeronave de guerra, que se manteve sob sigilo militar. Foi
justamente isto que levou o governo francês a condecorar- me com o grau de
Cavalheiro da Legião de Honra, em 1904, embora tal motivo não tenha sido
divulgado e o projeto não tenha encontrado aplicações práticas.84
— Em 1905, ainda movido por esses mesmos graves equívocos, escrevi longo
artigo para os jornais, exaltando a utilidade dos dirigíveis no porvir. Previa que
poderiam viajar por mais de mil quilômetros, levando explosivos para despejar
sobre inimigos ou mesmo canhões lança-torpedos, a ar comprimido, e tornar-se-
iam as mais temíveis armas de guerra do futuro. E foi exatamente o que aconteceu
em tão curto espaço de tempo. Penso que se eu não os fiz assim, pelo menos lancei
as idéias pelas quais me sinto inteiramente responsável hoje...
— Alberto soçobrava, movido pelos intensos remorsos. Sustentávamos- lhe a
fronte, procurando acalmá-lo diante das faltas que lhe afloravam da consciência
ferida, mas era preciso continuar ouvindo-o:
— Não guardo a menor dúvida, contribui decisivamente para que a guerra
aérea se tornasse uma realidade... Devo ainda considerar que, mesmo sem a
precípua intenção, exerci influência na construção das máquinas aéreas alemãs,
largamente empregadas na grande guerra, pois certa feita oficiais germânicos
vieram visitar minha oficina em Saint-

84 Veja maiores detalhes do episódio no capítulo 18.


ícaro Redimido - 281
Cloud em busca de observações e eu, ingenuamente, mostrei-lhes o progresso de
minhas idéias. Voltaram mais tarde, em Neuilly, quando minha Demoiselle fazia
sucesso, a fim de conhecê-la e examiná-la. Diziam- se interessados na compra de
minhas patentes, tiraram fotos... Motivado pelos eloqüentes elogios ao meu
pequeno aeroplano e com o desejo de agradar, presenteei-os com os meus projetos,
visto que nunca pretendi auferir lucros com meus inventos. Um inocente ato de
grande infelicidade, pois, sem dúvida, foram úteis na construção de seus aviões de
combate. Sempre muito discretos, pouco falavam, mas foram notados por muitos
circundantes, o que motivou, no inicio da ofensiva alemã, os parisienses a
suspeitarem que eu contribuía com os beligerantes inimigos e, injustamente,
acusaram-me de espionagem. Foi quando, muito aborrecido, coloquei fogo em
todos os meus projetos, para que não mais se prestassem a nenhuma guerra, porém,
já era muito tarde.
Com a intenção de apaziguar-lhe o ânimo exaltado na autocondenação, aduzi,
segundo as informações que havia verificado:
— Temos notícias de que pelo menos o Mundo Espiritual vê algo de positivo
em sua participação neste doloso episódio. É bem possível que seu nome ainda seja
evocado para homenagear as forças aéreas de combate, o que lhe seria um grande
pesar, mas sua veemência em negar tal associação e seu empenho em obstaculizar o
uso do avião na guerra certamente serão lembrados como um estímulo para que a
concórdia se estabeleça entre os povos. Através dessa atitude, você conquistou
importantes méritos espirituais, guarde esta certeza...
Caminhando, contudo, para o desespero, o inditoso companheiro não mais me
ouvia, prosseguindo:
— A verdade dos fatos é que eu colaborei com o morticínio favorecido pela
aviação, eis a dura realidade, meus amigos, peso enorme para uma alma frágil e
doente como a minha. Quanta destruição, quantas mortes não se deveram aos tristes
bombardeios! Em uma tentativa de apaziguar minha consciência, cheguei a enviar
carta à Liga das Nações, pedindo a interdição do avião como arma de guerra e
sugeri um concurso de redação entre os jovens, premiando o melhor trabalho sobre
o assunto. Foram providências tardias e inúteis a que ninguém deu ouvidos e que
não me aliviaram a consciência oprimida pelos equívocos. Não há dor maior para
um homem, pobre de mim que mereço os mais terríveis castigos de Deus...

282 - Gilson T. Freire/Adamastor


— Acalme-se, amigo, Deus não nos aniquila pelos erros, mas nos dá sempre
oportunidades para corrigi-los. Refugie-se nas orações e juntos iremos buscar
soluções para apaziguar-lhe a consciência ferida...
Nosso amigo, entretanto, não detinha mais condições de confabulação, o pranto
incoercível tomava conta de seus sentimentos, restando-nos o silêncio da prece
diante das pungentes comoções vertidas de suas lembranças. Cientes de que o choro
esvazia a alma de seus pesares, era conveniente deixá-lo entregue a si mesmo,
aguardando que as feridas emocionais abertas entrassem em processo de
cicatrização, a fim de prosseguir nosso auxílio terapêutico.
Adelaide, novamente compadecida diante das cruciantes dores conscienciais
expostas pelo companheiro, questionou-me, na primeira oportunidade:
— Se a Direção Espiritual pode nos proporcionar todas as informações da vida
de nosso amigo para nossa análise, faz-se realmente necessário expô-lo a
rememoração de tamanhas aflições, na condição de restabelecimento em que ainda
se encontra?
— É certo que podemos nos dar por satisfeitos, consultando apontamentos
históricos das experiências vividas pelo nosso irmão ou mesmo lê-los sob indução
hipnótica em seus próprios registros mnemônicos; no entanto, nosso objetivo não é
a satisfação de nossa curiosidade, porém compreender para ajudar e permitir-lhe
haurir benefícios das revivências emersas. Fazendo-nos uma referência através da
qual ele possa ajuizar-se dos erros cometidos e enfrentar os dissabores arquivados
do pretérito, estaremos proporcionando-lhe uma verdadeira catarse espiritual e
ajudando-o na busca de soluções verdadeiras para os seus dramas, tenha a certeza
disso. Ciente de suas necessidades e cerceado por uma moral estruturada no âmbito
de seu patamar evolutivo, as emoções doenúüiiiente vivenciadas se acomodarão nos
limites do juízo crítico, deixando de exercer efeitos desagregantes em sua
consciência, permitindo- lhe assim a conquista da indispensável saúde da mente.
— Porém, o peso do remorso aflorado com intensidade não irá agora lhe
obstaculizar o soerguimento ? Seu quadro depressivo não se agravará com essa
conscientização?
— A Lei divina permite que o remordimento nos puna a consciência sempre
que transgredimos os preceitos de conduta já incorporados à bagagem moral, por
isso se ajusta sempre ao grau de responsabilidade que nos cabe diante da vida.
Embora nos oprima com as acrimoniosas dores conscienciais, o arrependimento
vivido com o sincero desejo de

ícaro Redimido - 283


reforma é força segura, orientando-nos no ressarcimento das dívidas. A culpa
martiriza somente quando não se fundamenta em mudanças de atitudes ou é
produto das exigências do orgulho, frustrado em suas realizações de soberba,
bloqueando-nos o sossego íntimo. E, à medida que a consciência se vê satisfeita na
aquisição dessas reformas, minora- se-lhe o remorso, adequando-o ao necessário,
pois as cobranças do “eu” superior são sempre uma resposta aos impositivos da Lei
que nos concita constantemente a seguir na rota segura da perfeição.

284 - Gilson T. Freire / Adamastor


Contenda Inútil

“E suscitou-se entre eles uma discussão sobre qual deles seria o maior. ”
Lucas, 9:46

O s grandes erros que comumente enxovalham nossa consciência


se nos fixam na memória espiritual de modo indelével e passam
a habitar nosso interior quais fantasmas de agonias, exigindo-
nos todos os esforços para o seu reparo. Dessa forma, o remorso se
avoluma no espírito em vias de atingir a maioridade, assomando-se-lhe
como os mais pungentes acúleos do constrangimento, diante de si mesmo
e da Lei. Embora o espírito, sensibilizado pela evolução, sofra muito
mais pelos seus erros do que aquele que ainda age nas sombras da
ignorância e da rebeldia, tal dor lhe é salutar recurso de recuperação,
permitindo-lhe ascender na escalada evolutiva, conquistando novos limiares
de felicidade e equilíbrio.
A culpa, se bem aproveitada, é defesa segura contra o continuísmo de antigos
vícios e hábitos que alimentamos ao longo dos séculos, perpetuando-nos a condição
de doentes da alma. E como toda emoção, sua simples elisão dos planos
conscientes é ilusório recurso de alívio, adiando a imprescindível arbitragem da
Lei. Inteirar-se plenamente dela, conquanto aparentemente nos açoite com a
pungência do arrependimento, é o primeiro caminho para configurar-lhe solução
definitiva, favorecendo- nos o ressarcimento das dívidas. Por isso, a confissão,
sacerdotal ou não, realizada com a sinceridade de propósitos, sempre foi ato de
beneméritos auspícios para o infrator, em todos os tempos, servindo-lhe como o
mais salutar estímulo para o apaziguamento da consciência.

ícaro Redimido - 285


Alberto agravou-se muito com o emergir de suas recônditas culpas depois da
última incursão em suas memórias. Retirado em seus aposentos, não se dispunha
aos passeios diários pelos jardins terapêuticos que vinha freqüentando e, lacrimoso,
desviava seu olhar de todos que lhe dirigiam a palavra amiga, entibiado e adstrito
aos próprios pensamentos. Poucos dias se passaram e Adelaide, movida por
preocupações, buscou ouvir-mc com respeito ao recrudescimento de seu estado.
— Nosso irmão piorou muito. Há muitos dias não o víamos tão abatido —
dizia a amiga, algo pesarosa. — O que eu temia aconteceu, seu quadro se agravou...
— Os pontos fracos integrantes de sua personalidade, assoalhados em nossa
análise, doravante se encaminharão para o seu fortalecimento, porém apoiados em
novos e salutares propósitos que dispensem as defesas equivocadas da arrogância,
na imposição do bem-estar íntimo. Fizemos até o momento o que nos era possível.
Aguardemos agora a atuação da Lei, na certeza de que a cura real não nos compete.
Precisamos compreender, Adelaide, que a Providência Divina atua
permanentemente em nós, a despeito da nossa incerteza, tomando todas as medidas
de que necessitamos. Jesus nos alertou sobre isso ao se referir aos cuidados que o
Pai nos dispensa, da mesma forma como alimenta os pássaros e veste os lírios.
Ante qualquer agravamento da saúde, acorre o homem ignorante e aflito a suplicar
pela intercessão de recursos miraculosos de Deus, insciente de que Ele conhece de
antemão todas as nossas necessidades e sabe acudir-nos com todas as diligências
urgentes e cabíveis, antes que formulemos nossos petitórios. Por isso, preocupar-se
excessivamente com os males que nos acometem, como se não nos fossem cabíveis
ou estivéssemos entregues ao abandono, não é atitude condizente com aquele que
já conquistou a crença na amorosa Assistência Divina. Nosso amigo precisa destes
momentos de reflexões e reajustes consigo mesmo até que suas energias
emocionais, ainda desalinhadas, acomodem-se em novo patamar de equilíbrio. Não
se desespere, ele agora está perfeitamente ciente da nova realidade que o envolve e
conta com forças suficientes para suportar o difícil transe das dores conscienciais
em que se detém. Nossa melhor ajuda no momento é a compreensão do silêncio e o
aprazimento da prece.
Adelaide, contudo, não se deixava persuadir pela minha argumentação, desejosa
de que interviéssemos o mais rápido possível, levando-me a prosseguir:
— Convém ainda entender que o amor de Deus age em nosso favor

286 - Gilson T. Freire/Adamastor


diferentemente da pieguice que nos caracteriza a atuação no auxílio ao que
sofre. Ele nos ampara, muitas vezes, em um primeiro momento, recrudescendo-
nos a dor, a fim de extingui-la depois de forma definitiva. A exacerbação
inicial, parecendo abater-nos a possibilidade de soerguimento, remete-nos
muitas vezes ao desespero, quando não à revolta, por não compreendermos a
atitude coerciva e corretiva da Sua Providência. Esta sabe que precisamos da
agitação das forças íntimas para fazer emergir as energias deletérias que
enlameiam as profundezas de nossa alma, assim como para se extra irem as
impurezas do fundo de um poço é necessário revolver-lhe as águas, turvando
sua aparente limpeza e, da mesma forma, a atmosfera deve se inquietar no
tumulto da tempestade a fim de se ver alijada de seus perigosos acúmulos
magnéticos. O alívio que o final do processo proporciona é demonstrativo de
que a comoção inicial se faz necessária e visa sempre a soluções e não a danos.
Assim funciona a Lei e por isso quase sempre, no campo dos sofrimentos
humanos, também é preciso experimentar a piora para se banirem
definitivamente os seus males. Eis por que o agudizar de toda enfermidade é
prenúncio de sua resolução, e as doenças crônicas que não se agravam
caminham para a incurabilidade, exatamente por perderem essa capacidade. Na
esfera moral se aplicam estas mesmas leis e os tormentos dos grandes
remordimentos prenunciam o apaziguamento da consciência, encaminhando
soluções definitivas, pois é da Lei que à tempestade suceda sempre a bonança.
Adelaide se convencia, enfim, da necessidade de esperarmos que o
temporal das emoções incônditas se aplacasse na alma de nosso amigo e o
deixamos momentaneamente entregue a si mesmo, para que o penoso exercício
confessional diante de si próprio e da Lei o refizesse. Aguardamos
pacientemente a ingerência do tempo, confiantes na ação das forças curativas
que nos assistem o espírito, na certeza de que, na tarefa de tratar, nos compete
apenas o papel de instrumentos e não de artífices da cura.
Sabíamos, contudo, que não vasculháramos a totalidade das penúrias que
lhe obstaculizavam a saúde plena e ainda nos cabia prosseguir em busca de
outros erros e suas lições. Ante seus primeiros sinais de melhora, sem denotar
contudo completa recuperação, tornamos à nossa conversação, a fim de
apressar-lhe a conquista do equilíbrio e consolá-lo como nos era possível.
— Guarde a certeza de que o fardo que lhe oprime a consciência será
alijado à medida que você se esforçar com sinceridade para modificar-se,
Alberto — dizia, procurando retornar ao tema de nossa última conversa.

ícaro Redimido - 287


— Aceite com humildade suas faltas, procurando sedimentar na alma as lições que
a dor lhe induz, corrigindo suas atitudes para colher alegrias no futuro.
Dando mostras de que a procela se apaziguava em seu íntimo, nosso paciente,
enfim, continuava suas confissões, como se o recolhimento de muitos dias não
tivesse interrompido nosso diálogo:
— Sei que trago a alma inundada por clamorosos erros. Alimentei vaidades
sem limites e tudo fiz para enaltecer meu nome entre os homens, sem que detivesse
valor para isso. Contribuí com a guerra aérea e o bombardeio de inocentes. E
depois, cometi o maior dos pecados contra Deus, tirando-me o Seu mais precioso
dom, a vida. Não sou digno dos cuidados e da acolhida carinhosa que me
dispensam... Deveria estar sendo consumido pelo fogo do inferno que, no entanto,
não encontrei em nenhum lugar...
— Trazemos o céu ou o inferno na própria consciência, meu amigo, e nesse
momento você se encontra nele, embora não visualize os próprios demônios,
representados pelas forças da autopunição, que lhe infligem as penas que se acha no
demérito de sofrer. Deus não nos castiga, se Sua Lei nos constrange com dores é
porque o Seu amor nos deseja reconduzir aos caminhos corretos do devenir. Afaste
de sua alma a autocondenação que destrói e erga-se para a vida. Construa em si
mesmo novos valores que o tornem merecedor da felicidade para a qual Ele nos
criou.
— Tentarei, porém sinto as forças combalidas e sem ajuda não poderei soerguê-
las. Devo confessar-lhes que meu orgulho ainda teima em admitir a realidade das
enormes faltas que povoam minha alma. Preciso contrariar meus propósitos íntimos
para trazê-las à baila e, principalmente, para expô-las à consideração dos amigos.
Mas sei que se trata de uma necessidade para o meu reequilíbrio e estou me
esforçando para ser o mais sincero possível comigo mesmo.
Superando sua natural timidez, desnudava-se diante de si mesmo, continuando:
— Depois do reconhecimento de meus graves erros com respeito à guerra,
senti que minha existência não tinha mais sentido e o viver tornou- se uma
constante punição. E parecia que Deus de fato me castigava nas mínimas
ingerências da vida. Em 1928, o povo de minha nação, sabendo- me doente,
preparou-me outra calorosa recepção, quando desembarcava no Rio de Janeiro. Um
hidroavião batizado com meu humilde nome deveria sobrevoar o navio que me
trazia, entretanto, precipitou-se, às nossas vistas, na baía de Guanabara, matando
todos os seus ocupantes,

288 - Gilson T. Freire / Adamastor


homens ilustres que me homenageavam. Foi um golpe brutal para minha pobre alma,
que não podia tolerar mais decepções... Só podia ser mais um látego do destino
repreendendo-me as ousadias e as clamorosas faltas...
Mas não é tudo, amigos, diante do altar da consciência devo confessar que estas
decepções não compunham o meu principal tormento. Há outro ainda maior e do
qual me envergonho a ponto de escondê-lo até onde pude. Logo depois que meu
Canard85 elevou o seu primeiro vôo, quando os jornais noticiaram o memorável
feito em todo o mundo, vieram dizer- me que eu não fora de fato o primeiro no
mundo a empreender a façanha. Que outros, três anos, antes já realizavam, às
ocultas, experiências bem sucedidas com aeroplanos motorizados, cabendo-lhes a
primazia do invento.
Denotando sinceridade de atitude diante da revelação mais pungente de sua
vida, sem dúvida o ápice de suas agruras, e sentindo que a barreira inicial no
enfrentamento da importante questão havia sido rompida, relatou:
— No início acreditava que ninguém daria ouvidos àqueles que me
requisitavam o título, os irmãos Wright, pois por mais de cinco anos não se teve a
menor notícias deles, os jornais do mundo não o noticiaram, não haveria então
motivos para tal absurdo e sequer existiam provas que atestassem os
acontecimentos. Como afirmavam voar desde 1903, se na Exposição de
Aeronáutica de Saint Louis em 1904, bem próximo de onde realizavam suas
pretensas experiências, ninguém os mencionava? Não se fazia a mínima referência
aos seus nomes. Diziam ter uma fotografia, porém que prova se obtém de um
retrato? Era um absurdo aquilo! Entretanto, pouco depois a dúvida foi se dissipando
em favor dos embusteiros. Um golpe desleal dava-lhes o aval de que careciam. Em
1909, François Peyrey, um jornalista que se dispôs a escrever a história da
conquista aérea desde os seus primórdios, requisitou-me o prefácio de seu livro.
Mal sabia, entretanto, que estava caindo em ardilosa cilada contra mim mesmo. Sua
obra atestava a primazia do invento aos americanos e, prefaciando-a, colocava-me
de acordo com a revelação. Somente me dei conta da armadilha em que caíra,
depois que o livro já estava impresso e distribuído. Foi um ato desleal e intolerável
e, segundo os boatos, ele havia recebido dos irmãos Wright vultosa quantia de
dinheiro para o difamatório trabalho. Profunda mágoa ocupou meu coração da qual
não pude mais me libertar e sequer tive a coragem de revelar a alguém. Pensava em
processar o traiçoeiro, porém não havia provas de

85 Termo que em francês significa ganso e que foi usado para denominar o bizarro 14-Bis, que voava
com o leme para frente, assemelhando-se à esta ave, com seu longo pescoço.

ícaro Redimido - 289


que ele me ocultara o verdadeiro propósito do livro e os amigos convenceram-me
da inutilidade da empreitada. Como conseqüência disso, os almanaques franceses,
depois de 1913, passaram a ignorar o meu nome dentre os pioneiros da conquista
aérea. Estava concretizado o fato. Minha glória havia sido roubada, fui
impiedosamente varrido dos anais da história em completo descaso para com os
meus esforços. Foi um golpe mortal para minha pobre alma...
Hoje sei que o ocorrido molestou-me sobremaneira por açoitar a vaidade da
qual doentiamente me alimentava. Eis a dor maior que não pude tolerar, a mais
amarga e insuportável lembrança da qual não consegui mais me evadir. O
invencioneiro era eu, o blefe estava revelado e atestado. O falso herói estava
finalmente desmitificado, intimidando-me sobremaneira perante o povo de minha
nação que, contudo, prosseguia idolatrando o meu humilde nome, relutante em
aceitar a infâmia sem que eu merecesse tal prova de lealdade. Minha vida tornou-se
um suplício, somando-se a isso a participação na guerra e os vexaminosos fracassos
do passado. Envergonhado, passei a desejar a morte como solução para os meus
enormes tormentos... E acabei cometendo o maior dos pecados contra Deus...
Lágrimas de inconformismo abundavam em sua face, deixando-nos entrever o
enorme orgulho ferido e a gravidade da mágoa estampada na memória de forma
indelével. Observando a ingente chaga que se avultava em sua alma, disse-lhe,
condoído:
— Acalme-se, Alberto. Não permita que o desespero tome conta de seu
coração. Enfrente com galhardia a pungente lembrança e aproveite a sábia lição que
a vida lhe ofertou. Sem dúvida nos encontramos aqui com o ponto central de seu
adestramento espiritual, porém há razões que justificam o incompassível revés em
sua carreira de glórias, inigualáveis nos cânones da História, ferindo gravemente
sua sensibilidade. Analisemos os fatos com mais cuidado, retirando deles o que nos
é necessário ao aprendizado e enriquecendo-o com algumas revelações oportunas.
Temos notícia de que tal contingência abateu, não somente você, mas a
soberania de uma nação que se engrandecia com seus surpreendentes feitos.
Admitamos, contudo, que existem razões mais profundas para que você tenha se
exposto a essa decepção e cabia-lhe receber a notícia com humildade,
compreendendo-a como precioso medicamento para a arrogância que lhe minava a
alma, haurindo do episódio benefícios para o seu crescimento e não angústias que
lhe destruíssem o ânimo. A Lei de Deus conhece nossos méritos e sabe medir
nossos esforços e apenas

290 - Gilson T. Freire / Adamastor


diante dela devemos esperar a recompensa pelos nossos trabalhos e, não, perante os
irmãos de jornada. Não se pode negar que você fez jus aos seus títulos, porém
alimentava com eles errôneos valores da altivez, utilizando-os para sobrelevar-se
acima dos demais. Eis o equívoco que a Lei não tolera em nós, pois deveríamos
desejar para os companheiros de jornada a mesma distinção que pretendemos para
nós. Todos somos feitos da idêntica substância divina e igualmente meritórios da
máxima importância. E a vida realmente nos quer grandes, porém não na grandeza
confeccionada em fatuidades, mas na realeza divina que equilibra poder e
simplicidade, dispensando a doentia necessidade de se posicionar o espírito acima
dos valores alheios. Eis o erro que gerou a necessidade da lição, recurso divino a seu
favor.
Suscitando alguns curiosos fatos de seu passado, a que os homens deram pouca
relevância na história de nosso amigo e que então se tornavam mais claros,
continuei:
— Diante de sua imensa frustração, podemos agora entender perfeitamente por
que você, quando internado em Glion, dando mostras de uma leve demência,
investiu improfícuo esforço na construção de um exótico e descabido par de asas
mecânicas, feitas de penas de ganso, visando empreender o vôo individual. Na
verdade, você desejava ardentemente reconquistar a primazia perdida, verdade que o
seu orgulho relutava em aceitar. E o mesmo sentimento o movia, quando, nos seus
últimos anos de vida, sentindo-se já esquecido de todos, você maquinava um
impossível vôo até o Pólo Norte com seu dirigível n° 10, objetivando ser o primeiro
homem a realizar o grande feito. Você necessitava urgentemente de novas proezas
que tornassem a lhe engrandecer o nome.
E também se nos esclarece a motivação oculta que alimenta os seus repetitivos
sonhos de achar-se despido em público, molestando-o com arraigados sentimentos
vexatórios. São reflexos dessas emoções adversas que você angariou indevidamente
por longo tempo e que ainda lhe perturbam o inconsciente, exigindo reparo. Você
carreia, na verdade, imensa vergonha diante de si mesmo por se ver desmascarado
perante aqueles a quem desejaria continuar nutrindo a falaz imagem do herói sem
máculas. Vergue-se diante da sabedoria divina que lhe suscita a renúncia ao orgulho
vil e aceite sem relutância a necessária lição de humildade, embora intolerável ao
espírito ainda altivo. Somente assim suas aflições encontrarão alívio, meu amigo.
Ante o seu silêncio e na tentativa de persuadi-lo da realidade dos fatos,
prossegui, enriquecendo minha argumentação:

ícaro Redimido - 291


— Sabemos que a disputa pela primazia gerou calorosas polêmicas na
tentativa de demonstrar quem realmente fora o inventor do extraordinário aparelho
voador. Discussões que certamente ainda não terminaram e bem cedo findarão,
pois, quando a supremacia de um povo está em jogo todos os meios justificam a
sua defesa. Há, contudo, uma realidade maior que permeia as páginas de sua
história e que lhe fará bem em conhecer. Como já lhe afirmamos, a vida, em
qualquer nível que se manifeste, é um processo que se realiza em dois mundos.
Existe uma ativa e permanente corrente de pensamentos entrelaçando seus dois
planos e, a bem da verdade, o real condutor das descobertas que entretém o
progresso humano é a Esfera Espiritual, enquanto que o domínio da carne é apenas
o campo de sua aplicação. Por isso é forçoso reconhecer que as grandes invenções
que beneficiaram a humanidade, em todos os tempos, não são meras descobertas ou
criações realizadas ao acaso pelos encarnados, porém, obras programadas por
aqueles que nos dirigem. Assim é que não há inventores de fato no Plano da Carne,
mas apenas homens que se colocam em condições de captarem as idéias que
trafegam entre as duas esferas. A concepção do avião foi desenvolvida no Mundo
Espiritual e, em prol da verdade, não tem idealizadores no plano físico. Eis a
surpreendente realidade!
Não é de se admirar o fato de que, em diferentes lugares, o início do século XX
tenha se agitado de frenético entusiasmo pela conquista da navegação aérea?
Exatamente porque os espíritos que nos conduzem movimentavam as idéias,
semeando-as em todos os lugares e entre todos os povos, à espera de que
frutificassem, em contato com aqueles que se achavam em condições de dar-lhes
guarida e o devido desenvolvimento. Victor Hugo reconheceu isso ao nos afirmar
que uma idéia chegada no seu tempo é mais poderosa do que todos os exércitos.
Você e os irmãos norte-americanos Orville e Wilbur Wright foram os mais
receptivos e aptos a recolher essas sugestões e concretizá-las no mundo físico,
apenas isso. Não somente vocês, mas todos aqueles que compuseram o rol de
pioneiros e se arriscaram ou mesmo perderam a vida nas arrojadas empreitadas
iniciais, obedeciam ao comando dos espíritos. Portanto, não há motivos para se
digladiarem em busca de privilégios e hegemonias que não se justificam, pois
todos apenas cumpriam com o que lhes determinava a influente voz da intuição,
que a ninguém pertence. Se uns chegaram primeiro do que outros, isso pouco
importa e interessa apenas

292 - Gilson T. Freire/Adamastor


à nossa vaidade, meu amigo. A contribuição de cada um perante a Lei de Deus é
idêntica e eivada dos mesmos valores.
Alberto emudecia-se, pasmo, diante da revelação. A fim de alijá-lo das
infundadas frustrações que ainda vicejavam em sua alma, agreguei:
— Naturalmente que você detinha valores para o desempenho da tarefa,
conquistados em existências anteriores, porém, sem a orientação do Plano Espiritual,
nada teria realizado, guarde esta certeza. O trabalho já estava determinado e você
apenas se colocou, por mérito próprio, em condições de executá-lo. Não nos
convém, portanto, pleitear, unicamente para deleite da vaidade, o direito dos
inventos, como se fôssemos os únicos detentores do processo criativo. Como não
temos a exclusividade da primazia de nada que criamos, essa reputação não nos
pertence e não nos pode ser roubada. E, se convém a outros a utilizarem para o
próprio engrandecimento, sejamos humildes o bastante para ceder-lhes o mesmo
bem que queremos para nós.
Sentíamos que Alberto, embora ainda silente, assimilava a lição, acalmando-se
diante da uma compreensão maior da vida e sua real participação no processo
inventivo a que se achava no direito de posse. Continuei, acrescentando informações
que lhe fariam bem conhecer:
— É preciso considerar ainda que seu trabalho, na verdade, foi um
empreendimento desenvolvido pelo esforço de uma equipe de encarnados e
desencarnados, sem a qual nada teria sido possível. Os benfeitores ocultos que o
orientavam fizeram-lhe companhia constante aos pensamentos e habitaram seus
sonhos, desempenhando papel importante em sua missão, fazendo da genialidade do
amigo obra de esforço conjunto. Eles o instruíam e lhe apresentavam projetos
durante o seu sono físico, quando é possível ao espírito encarnado entrar em contato
com a nossa realidade, embora você não tenha guardado nítida lembrança disso.
Desta forma, podemos considerar suas invenções como fruto de inspirada intuição,
oriunda do esforço de dois mundos que se abraçavam em auxílio ao progresso
humano. Analise com sinceridade os seus passos no processo criativo que você se
incumbiu e retire suas próprias conclusões, atestando a verdade que lhe revelamos.
Embora denotasse espanto, o amigo não se animava a retrucar-me, irradiando
ansiedade pela continuação do meu relato. Cuidando de ser o mais sincero em
minhas palavras, ante seu olhar curioso, segui perfilando

(caro Redimido - 293


os dados fiéis que recebera do Departamento de Informações de nossa colônia,
facilitando-me a argumentação:
— Não se pode olvidar ainda que os planadores já existiam, quando você
desenvolveu o seu avião. Eles aguardavam somente alguém que lhes adaptasse um
poderoso propulsor e tivesse coragem para elevar-se no ar. Você apenas detinha
esta condição, conhecia os princípios da aeronáutica que já estavam muito bem
estabelecidos e arquivara a rica experiência dos vôos aerostáticos. E ainda convém
ressaltar que, como vemos em nossos registros, você não estava muito interessado
em despender esforços no mais-pesado-do-que-o-ar, por não acreditar em seu
sucesso. Como você mesmo afirmara certa época, não cabia ao homem copiar as
construções da natureza, desenvolvendo máquinas que imitassem os pássaros.
Assim, continuava empregando tempo desnecessário na construção de balões, que
já haviam atingido o máximo possível de aprimoramento para a época, atrasando
seus passos na empreitada do avião. Os espíritos que precisavam do seu trabalho
estimulavam-no ao caminho correto, porém você, obstinadamente, recalcitrava,
acreditando ainda na superioridade dos dirigíveis, investido na realização de um
aparelho híbrido, uma espécie de balão alado que não seria em nada conveniente.
Foi então preciso que seus amigos espirituais o demovessem da renitente
obstinação, servindo-se da sugestão de Léon Lavavasseur a fim de atiçá-lo à tarefa.
Sem este estímulo você nunca teria se empenhado nesta conquista, nesse momento,
como não o fizera em-oportunidades anteriores. Sem considerarmos ainda que você
nunca relevou devidamente a prestimosa ajuda de seus colaboradores encarnados,
sem os quais nada lhe teria sido possível.
Denotando enfim laivos de humildade, Alberto redargüiu:
— É forçoso reconhecer que tive importantes contribuições na construção de
meu aeroplano e pouco as mencionei para não obscurecer a minha participação
exclusiva. E devo confessar que não confiava no sucesso do mais-pesado-do-que-o-
ar, concentrando ainda meus esforços nos dirigíveis, quando, ao assistir a uma
corrida de lanchas, surpreendi- me com o potente motor Antoniette. Interessado em
sua aquisição e explicando a finalidade para a qual o queria, Lavavasseur, seu
criador, de fato sugeriu-me utilizá-lo em um aeroplano ao invés de num balão, certo
de que ele detinha potência suficiente para isso. Acreditei na possibilidade e
animei-me a testá-la. Foi nesse exato momento que senti

294 - Gilson T. Freire/Adamastor


minha mente invadida pela idéia do veículo voador, que passou a dominar- me
completamente o interesse e, vislumbrando um grande feito, passei a estudar a
concretização das idéias que realmente já existiam. Assim surgiu a concepção do
avião, é verdade, não fosse isso não teria me empenhado em sua realização.
— E não se pode também negar a relevante colaboração de Voisin,
disponibilizado pelos seus amigos espirituais, imprescindível ao seu sucesso. Seus
conselhos lhe foram realmente valiosos e você pouco considerou isso em sua
história de vida, pois seus compatriotas desconhecem o fato. E sem as habilidades
de Anzani, montando os cilindros do novo motor em “v”, dobrando-lhe assim a
potência, você não teria saído do chão. Não olvidando que, contrariando a decisiva
orientação espiritual que o assistia, seu bizarro aparelho voava com o leme na
dianteira, ameaçando gravemente a sua estabilidade.
— A verdade me faz muito bem à alma e lhe agradeço por ressaltá-la aos meus
olhos que nunca puderam admiti-la, temeroso de que viesse roubar a grandeza que
pretendia impor ao meu nome. Não posso negar a imprescindível ajuda de Voisin e
devo confessar que ele muito insistiu, desde o começo, para que eu invertesse a
orientação de meu aparelho, colocando o leme atrás. Entretanto, minha obstinação
não me permitia ouvi-lo, acreditando que na frente suas aletas me ergueriam com
mais facilidade e precisei experimentar o equívoco para atestar sua inviabilidade.
— Apesar dos contratempos, seu 14-Bis voara e você se embeveceu dos
aplausos e pompas do mundo, os quais merecia, porém não convinham à desmedida
elação da personalidade. E você desconsiderou a participação importante dos
companheiros por imposição de exclusivista sede de glórias. Natural que a
corrigenda destes abusos se fizesse necessária e somente o sofrimento e a decepção
poderiam lhe demover do patamar de altivez em que se projetara. Agradeça,
portanto, as dores que lhe vergaram a alma doente, encaminhando-o à correta
posição diante da vida, meu amigo, embora você, recalcitrante, não as tenha
aproveitado devidamente. Não culpe, portanto, os reveses da vida por um roubo
daquilo que você não detinha o direito pleno de possuir, reconhecendo que seus
sofrimentos não se justificam.
Alberto, acabrunhado, recolhia-se aos próprios pensamentos, absorvendo as
importantes lições que a vida lhe propiciara. Era preciso deixá-lo, mais uma vez,
entregue a si mesmo, a fim de que a meditação

ícaro Redimido - 295


lhe favorecesse a acalmia das desalinhadas forças emocionais. Nova tempestade
se fazia indispensável, porém a bonança logo lhe seria precioso beneplácito ao
espírito aflito. Forçado a admitir a inquestionável realidade dos fatos,
consideraria sua participação muito mais passiva do que ativa no processo
inventivo em que se empenhara, acalmando suas infundadas frustrações e
pesares.
Adelaide concluiu nossa reunião com sentida prece, pedindo a Deus para
aplacar em todos nós os terríveis males do milenar orgulho, corroendo-nos as
possibilidades de crescimento rumo ao Pai. Sedenta de esclarecimentos, a irmã,
findo o dia de trabalho, ainda me questionou ao deixar o companheiro entregue
aos refolhos da alma:
— Surpreende-me o fato da conquista aérea ter sido empreendida por uma
equipe de espíritos atuando ativamente ao lado dos encarnados. Recordo-me de
ter lido informes sobre o assunto, mas não presumia atuação tão direta...
— Sim, Adelaide, conhecemos aqui a verdadeira história da aviação e
quem de fato inventou o avião, porém aguardemos o desenrolar dos fatos para
agregar ao nosso amigo novas revelações. Deixemos que ele acate a realidade
em doses paulatinas, abandonando progressivamente a sua defectível visão dos
eventos vivenciados.
— Todas as grandes conquistas da história terrena se dão exatamente desta
maneira, com a decisiva participação do Plano Espiritual?
— Não há dúvida, minha amiga, todos os acontecimentos da vida
planetária são assistidos e orientados de perto pelo Mundo Maior. Nunca lhe
ocorreu os motivos que levam a história na Terra a caminhar em nítida e lógica
seqüência de fatos? Será por um acaso que as criações humanas sempre
ocorreram de modo simultâneo em diferentes pontos do planeta? Povos
diversos, em distantes locais, sempre desenvolveram ferramentas extremamente
idênticas. Analisemos alguns simples exemplos: o machado de pedra, o primeiro
invento do homem, foi criado em uma mesma época e era confeccionado de
forma idêntica, com o mesmo material, uma lâmina de sílex amarrada a um cabo
de madeira, em todos os continentes. Os artefatos de cerâmica, de ferro ou de
bronze, onde quer que surgissem, na Europa, na África ou no Oriente, seguiam a
mesma inexplicável verossimilhança. Sumérios e chineses, astecas e etruscos,
maias e assírios, todos fabricavam utensílios e artefatos e construíam
monumentos de maneira incrivelmente semelhante. E, não

296 - Gilson T. Freire / Adamastor


somente na moldagem de objetos, mas também no âmbito cultural e artístico, se
observa roteiro idêntico para todos os povos. Filósofos e artistas compuseram, numa
mesma época, mas em locais remotos e sem que se conhecessem, modelos
ideológicos incrivelmente coincidentes. Os astecas construíam suas pirâmides como
se as copiassem dos egípcios. Os profetas hebraicos ensinavam os mesmos
princípios filosóficos propalados pelos pensadores gregos, enquanto Sidarta
compunha-os para os hindus e Confúcio os professava na China.
Essa inverossímil coincidência que permeia o roteiro da vida nunca pôde ser
explicada pelos historiadores. A verdade, entretanto, é que desde a pré-história,
todos os inventos e todos os avanços que se realizaram na dimensão física foram
sugestões do Mundo Maior. O itinerário terreno, minha amiga, é processo
inquestionavelmente conduzido e não se dá ao acaso. Por isso não se pode contar a
história da humanidade sem considerar a participação ativa e efetiva do Mundo dos
Espíritos. E os grandes gênios, em todos os tempos, nada inventaram, foram apenas
aqueles que se capacitaram para a leitura das correntes de pensamentos emanadas do
Plano Espiritual, concretizando-as no mundo das formas. Rendamos, humildemente,
graças à Direção suprema da vida que, atenta às nossas necessidades, esteve sempre
presente, protagonizando o progresso na superfície do orbe. Sem sua ajuda e
entregues a nós mesmos pouco teríamos avançado e seguramente ainda estaríamos
intentando a invenção da roda até hoje.
Isso faz ainda da vida um processo único e dirigido, não somente em nosso
limitado orbe, porém em toda a criação, de modo que, em qualquer lugar do
universo, deparar-nos-emos sempre com os mesmos modelos, idênticas invenções e
ensinamentos semelhantes, pois uma mesma fonte, o influxo da Mente Divina, se
irradia de forma igualitária em todos os seus infinitos rincões.
Atenta, como sempre, ao desenvolvimento lógico das idéias e interessada no real
esclarecimento das questões abordadas, Adelaide, com muita propriedade,
perguntou ainda:
— Parece-me compreender, pelas suas explicações, que nada é possível criar no
reino da matéria e, na verdade, não existiriam inventores entre os encarnados,
obedientes sempre às sugestões do Mundo Espiritual. Isso não retira todo o valor
dos grandes gênios da humanidade, colocando- os como meros receptores de idéias
que na verdade nunca lhes

ícaro Redimido - 297


pertenceram? E as invenções que objetivam unicamente a destruição e a maldade,
são também produtos dos espíritos?
— Suas questões têm real fundamento, Adelaide. Compreendamos que a vida
é ação permanente de uma vontade criadora única que se desenvolve em dois
mundos, evoluindo em permanente intercâmbio de idéias que fluem e refluem entre
os dois planos, em verdadeiro entrelaçamento e interdependência de valores.
Contudo, desde que o espírito dominou o pensamento contínuo e passou a
desenvolvê-lo com maior potencialidade após a morte, a escola da carne
transformou-se no terreno de aplicações práticas e adestramento das idéias,
originadas sempre no reino do espírito. Portanto, a bem da verdade, a esfera física
raramente detém originalidade de concepções e descobertas, pelo simples fato de
que o espírito liberto do subjugo da carne encontra-se com seu potencial criativo
muito mais aguçado, nutrindo-se de maior criatividade inventiva e inigualável
percepção intuitiva da realidade. Desta forma, o Mundo Espiritual assumiu o
comando da vida planetária, passando a ser a verdadeira fonte mantenedora dos
campos de idéias que entretecem a vida humana. Daqui partindo todo o
conhecimento, o nosso plano passou a preparar, antes do nascimento, aqueles que
se mostravam mais aptos ao desempenho da função inventiva, a se expressar em
todas as áreas do pensamento humano, enviando-os periodicamente à carne, como
missionários, a fim de apressar e orientar o progresso da humanidade. Portanto, em
tempo algum, os gênios foram meros produtos do meio físico e aparições casuais
nos cenários da vida planetária. Embora, muitas vezes, sejam forjados na premência
de superação dos limites que obstaculizam a expressão de suas personalidades,
trazem sempre de suas experiências passadas o mérito na aquisição das habilidades
a que se prestam, não sendo detentores de excepcionais e injustificáveis dons
divinos.
Convém esclarecer, contudo, que a criatividade humana se realiza nos mesmos
moldes da mecânica mediúnica, pois as idéias irradiadas da esfera extrafísica
somente são percebidas e manipuladas pelas mentes que se encontram aptas a
trabalhá-las, dando-lhes tão perfeita guarida no campo psíquico que as confundem
com os próprios pensamentos. Este fenômeno, funcionando segundo as mesmas leis
físicas da ressonância, coloca o receptor participando da elaboração criativa com
idêntico juízo de responsabilidade e igual mérito no seu desenvolvimento.
Exatamente

298 - Gilson T. Freire / Adamastor


por isso, aquele que cria ou inventa, como todo médium, não pode acomodar
sugestões e concepções que não detenha potencial de gerar, tornando assim o
processo intuitivo um conúbio de mentes que se entrelaçam em propósitos
comuns, onde todos participam com seus inquestionáveis valores e contribuições
pessoais. Isso faz de todo cientista, pensador ou gênio, um intermediador de
idéias, portanto um medianeiro, na acepção espírita da palavra.
Os espíritos superiores que nos transmitem correntes de sugestões, por sua vez
as captam de níveis ainda mais superiores, de modo a considerarmos que, no
sentido absoluto, somente a Deus compete o ato criador em seu processo
genuinamente primário e a Mente Divina já concebeu tudo que se pode realizar no
mundo das formas que habitamos. Entretanto, quis o Senhor que fôssemos
partícipes ativos de Sua obra e não meros executores de Sua Vontade, por isso, em
qualquer nível, desde que atinjamos as condições indispensáveis, qualquer um
pode dar perfeita guarida às idéias criativas que inundam o cosmo, fazendo-se
também co-criador no plano menor.
Os gênios do mal no reino humano, em todos os tempos, são igualmente
inteligências consorciadas aos sicários das Trevas, em serviço de destruição e
maldades, em idêntico processo de funcionamento. Admitimos, entretanto, que a
Lei de Deus estabelece limites naturais ao desenvolvimento do conhecimento,
permitindo que os Seus segredos somente se revelem àqueles que conquistam a
nobreza da bondade, pois a sabedoria só se adquire com dotes do amor verdadeiro.
Assim o Altíssimo protege a criação e os protagonistas do mal são cerceados pela
própria ignorância, restringindo-se-lhes o desenvolvimento pleno das
potencialidades.
— Estou convencida de tudo isso, contudo, não fomos muito incisivos com
nosso amigo, destituindo-o do valor próprio nas conquistas sobre as quais detém
de fato méritos pessoais?
— Compreendemos que Alberto trazia importante genialidade e sua
contribuição ao progresso é inegável, entretanto, temos que reconhecer que ele,
com sua grande habilidade mental, apenas tornou prático o avião e não o inventou.
Suas proezas são realmente consideráveis e sua participação meritória de destaque
na história humana, contudo, ele fez disso motivo para engrandecer a vaidade e
errou ao desejar ardentemente a exaltação do próprio nome, desconsiderando todos
quantos o ajudaram.

ícaro Redimido - 299


Este foi o seu equívoco e o motivo de sua desdita. Possivelmente você interprete
como dura-a palavra de orientação que lhe dirigimos, destituindo- o do real valor
de seu trabalho, porém, nesse momento tudo indica ser esta a sua necessidade. É
preciso que ele se recolha na humildade e promova o crescimento espiritual em
nova direção. Eis nossa função neste instante junto ao seu desvalimento. O passado
é força poderosa a se refletir no presente em forma de continuísmo, se não
interpusermos nossa vontade no redirecionamento das tendências que o cerceiam.
Assim, antes que o orgulho contumaz se instale novamente, reverberando-se como
atitude automatizada em aviltantes hábitos personalísticos, trazendo riscos de
novas quedas e dores, tratemos de impor-lhe a moderação e a modéstia como
normas indispensáveis ao equilíbrio. Este é o objetivo mais nobre no serviço de
orientação espiritual que empreendemos, exigindo-nos a superação do pieguismo
que sempre nos caracterizou a errônea maneira de prestar auxílio. Daí a
necessidade de mostrar-lhe os deméritos, salientar suas faltas e erros, a fim de
permitir-lhe o reajustamento consigo mesmo e com a Lei, conformando-o nos
limites imprescindíveis à saúde do espírito.
Adelaide dava-se por satisfeita e partimos para a execução de outras atividades
que nos concitavam ao esforço comum, igualmente urgentes, pois a vida seguia seu
séqüito de necessidades sempre prementes, em muitos campos de expressão de
nossas atuações, na profícua realidade do espírito.

300- Gilson! Freire/Adamastor


O Senhor dos Canhões

"A noite é passada e o dia é chegado, rejeitemos pois as obras das trevas e vistamo-
nos das armas da luz. ”
Paulo - Romanos, 13:12

tempestade dos grandes dramas humanos, quando favorecida


pela colheita de seus valores edificantes, cede lugar à bonança e
à quietude do espírito, redirecionando-o para novas aquisições
nos infinitos panoramas da vida. As confissões de Alberto foram as mais
sinceras possíveis, entregando-se ao nosso juízo e ao julgamento da Lei
de Deus, gravada no imo da própria consciência. Novamente andou por
muitos dias sorumbático e taciturno, intimidado em nossa presença, mas
não tardou a retornar à vida social, buscando-nos para o beneplácito do
diálogo. Voltava agora a estampar serenidade no olhar, assegurando-nos
que o Senhor, por misericórdia, opera milagres em nós, cicatrizando-nos
as feridas por mais acerbas que sejam, pedindo-nos apenas o exercício
do bem verdadeiro como único medicamento para todos os nossos males.
Retomava aos jardins terapêuticos, porém, denotando, finalmente, decisiva
mudança de atitude íntima.
Não o víamos mais com a máscara da angústia, nem envergando a
túnica do orgulho, a envenenar a alma de perigosa ufania. Deixando
pender os trajes que o enfeitavam de fatuidades, suscitavam o respeito e
a admiração humana, sentia-se desnudar diante de si mesmo e da vida, e
reconhecia a necessidade de cobrir agora a nudez da alma com o
comedimento e abrigar-se com as vestes da simplicidade.
Após alguns dias em que o deixamos meditar nas preciosas lições

ícaro Redimido - 301


rememoradas e quando novas interrogações brotaram em sua alma, suscitando-lhe
esclarecimentos mais profundos acerca de si mesmo, convidamo-lo para o
prosseguimento de nossas tertúlias, amadurecendo o aprendizado recebido.
Preparávamos para a continuidade de nossa tarefa, quando agradável surpresa
nos interrompeu a rotina de trabalhos: Heitor, o estimado amigo, deu entrada em
nosso gabinete de serviço para grande satisfação nossa.
— Salve, amigos, Deus seja conosco — saudou-nos o prestimoso
companheiro. — Apraz-me enorme alegria tornar ao encontro de vocês e desta vez
com motivações de contentamento e gratidão. Venho agradecer- lhes pelo ingente
tratamento realizado em favor de nosso querido Alberto, agora uma alma desperta
para a realidade. Vejo que nosso ícaro finalmente se ergueu das cinzas,
transformado em verdadeiro Fênix86 .
Alberto deparava-se pela primeira vez com seu desconhecido benfeitor. Sem
dar-se conta de que estava em presença do benemérito protetor, recolhia-se em
admiração e mutismo, porém inundando a alma de indizível felicidade que não
sabia de onde emanava. Sem entender o que se passava, deixava-se fascinar diante
da portentosa figura do seareiro iluminado que sempre nos suscitou a impressão de
ter ante os olhos alguma lendária figura apostólica.
— Sou Heitor e você pode considerar-me seu tutor espiritual, Alberto, pois sou
muito mais do que um simples amigo e não guardo qualificações suficientes para
ser seu benfeitor. Alegro-me por vê-lo já refeito, depois de tantos anos de dores na
colheita dos atos inconseqüentes e agradeço a Jesus reencontrá-lo no caminho de
franca recuperação.
Embevecido pela aura de simpatia do magno espírito, Alberto o acomodava no
coração como a um verdadeiro pai, nutrindo-lhe imediato apreço, jamais
experienciado de forma tão pura, não conseguindo expressar em palavras os seus
sentimentos. Sua alma sorria, exultante de indizível alegria vertida das profundezas
do espírito, ainda sedento dos encantos expressivos do amor sincero, por se ver
tanto tempo carente dos afetos na penosa jornada de dores e solidão. Heitor,
notando-lhe o embaraço, continuou:
— Não desejo substituir a segura orientação terapêutica que nossos amigos
empreendem a seu favor, Alberto, porém apenas compartilhar

86 Figura mitológica da tradição egípcia, em forma de um pássaro que, queimado, renascia das
próprias cinzas.

302 - Gilson T. Freire/Adamastor


com você deste precioso ágape espiritual, se me permite, como paciente também,
pois boa parte de seus dramas igualmente me pertence. Julgo que poderei, de uma
melhor forma, ajudar na restituição do verdadeiro roteiro transcorrido em sua
história, pois participei ativamente de alguns de seus momentos, aqueles
normalmente ignorados pelos homens e por você mesmo, pertinentes ao lado de cá.
— Então o senhor é aquele a quem os amigos se referiram como tendo sido o
meu guardião na vida? Esperava conhecê-lo com muito anseio, para lhe agradecer...
— Por favor não me trate por senhor, não deixemos que as irrisórias reverências
humanas apartem o sentimento de verdadeira fraternidade que nos une — respondeu
Heitor com sincera modéstia. — É possível que eles se referissem a mim, pois me
viram muito interessado em seu caso em particular, mas, se algo fiz em seu favor,
não foi mais do que minha obrigação e não venho em busca de reconhecimento, pois
apenas cumpri com uma tarefa que me foi confiada.
Adelaide, espargindo inquietações silenciosas, denotava compartilhar comigo
enorme curiosidade por saber notícias de Catherine, porém guardamos respeito pela
reserva de nosso amigo. Certamente havia ela retornado à França, aconchegando-se
ao seio familiar, a fim de prosseguir sua evolução junto aos seus, encerrando sua
participação no drama a que assistíamos.
— Seus pensamentos buscam por Catherine, é verdade, pois a associaram à
minha pessoa, bem sei—disse-nos o amigo, completamente ciente das impressões
mentais que irradiávamos. — Nossa irmã ainda se recupera do doloroso transe e
repousa em outros campos do espírito. Não se preocupem, pois a temos sob
cuidados. Embora sua trajetória na vida tenha se caracterizado pela iniqüidade e
abjeção, trata-se de uma alma nobre, merecedora de nossas mais puras afeições.
Tratemos contudo de nosso Alberto e em outro momento tornaremos à nossa boa
companheira, dando-lhes a conhecer as tramas que compartilhamos nas teias do
destino.
Depois de trocarmos ligeiras impressões sobre os trabalhos gerais que nos
requisitavam a atenção, Heitor, dando mostras de estar plenamente ciente de todos
os passos até então trilhados, inseria-se naturalmente em seu curso, sem nada
perturbar em seu andamento. Sem maiores delongas e dando prosseguimento ao
mesmo trabalho que vínhamos realizando, tornava à consideração das aventuras
terrenas de Alberto, aduzindo:

ícaro Redimido - 303


— Está na hora de conversarmos como convém a um pai diante do filho que
cresceu e precisa reconhecer as peraltices praticadas na inconseqüência da
adolescência, preparando-se para a madurez do espírito. Isso o ajudará a se
recompor diante de si mesmo e da vida. Para isso estou aqui. Você sente que já me
conhece e é verdade, somos velhos companheiros e comungamos larga experiência
de vida no passado. Gostaria de abraçá-lo, agradecendo a Deus pela oportunidade
de nosso reencontro, mas antes é necessário externar nossa gratidão aos amigos a
quem devemos a sua recuperação. Que o Senhor da vida lhes recompense pelo
inapreciável esforço de trazê-lo à consciência de si mesmo. Sem essa colaboração
não estaríamos dialogando, neste momento e um dia você poderá compreender
melhor isso, pois esteve à beira de aflitiva e grave queda na inconsciência. Temos
muito que conversar e devemos consentir que nossos amigos participem conosco
deste precioso momento de confabulações, necessário ao nosso equilíbrio, mesmo
sabendo que iremos tratar assuntos de nossa intimidade e falar das mazelas que
ainda nos habitam. E, certamente, ainda não podemos dispensar suas orientações
terapêuticas em favor de nossas fraquezas.
Embora sua alusão à nossa atuação me suscitasse uma correção quanto ao seu
real valor, não me dispus a interferir em suas abalizadas e notórias considerações.
Reconhecendo que tais evasivas, muitas vezes, cumprem apenas mero papel de
polimento social em nossas relações, o que realmente importa é nossa verdadeira
modéstia diante de Deus, cabendo-nos aceitar que somos simples auxiliares, jamais
artífices da cura de quem quer que seja. Destarte, sua magnitude nos inibia
qualquer altercação e continuamos a sorver-lhe a irradiação de simpatia e a
verdadeira humildade nas singelas, porém, sábias palavras, condenatórias de sua
elevada condição espiritual. Sem tergiversar, prosseguiu o nobre companheiro:
— Ao envergar a roupagem terrena, todos, sem exceção, somos
acompanhados por equipe de amigos espirituais, no desempenho das diversas
tarefas que nos cumprem realizar, ainda que objetivem nossa própria reforma. E
você teve também o seu programa de vida pré- estabelecido. E eu, por ter
amealhado pesados débitos, obstaculizando o progresso humano, em passado
delituoso, assumi a participação em equipe espiritual de trabalho em prol da
melhoria da vida terrena. Em decorrência de circunstâncias outras que em breve
veremos, fiquei incumbido, especialmente, de acompanhar-lhe os passos de perto a
fim de auxiliá-lo.

304 - Gilson T. Freire / Adamastor


Estive assim presente em todos os seus percalços e aventuras na Terra, Alberto.
Sofri junto com você seus fracassos, seus desgostos, alegrei-me com suas vitórias e
tudo fiz para ampará-lo como convinha. Conheço portanto sua vida como ninguém,
pois ela se confunde com a minha própria. Isto me autoriza a esclarecer-lhe muitos
fatos ainda nebulosos para você e para os observadores da história dos homens.
Ante o assombro de Alberto, emudecido diante das realidades ocultas da vida,
continuamos a ouvir Heitor, providos de imensa curiosidade:
— De fato o amigo, em que pesem seus desmandos, sua grave intolerância aos
fracassos e sua lamentável queda nos abismos do autocídio, desempenhou com
proveito sua missão na Terra, pela qual lhe devemos nosso enaltecimento. Mas,
não nos convém entender que realizamos verdadeiros atos heróicos ou
surpreendentes feitos de genialidade entre os homens, por magnitude de sabedoria
ou elevada condição de missionário, pois, na maioria das vezes, somos todos ainda
mendigos da luz divina, em busca da solvência de pesados débitos do pretérito e do
abono de acerbas culpas, apanágios daqueles que muito mal fizeram à humanidade.
Por isso, estejamos certos, se algo realizamos é porque somos verdadeiros
devedores do bem comum e nada fizemos além de nossa obrigação.
Vejo que você já expôs com sinceridade as fraquezas da alma, deixando
entrever com humildade os martírios íntimos da intolerável pequenez física e,
sobretudo, os opróbrios indizíveis da deficiência genital. São, sem dúvida, os mais
importantes açoites que lhe vergastaram o espírito ao longo da jornada terrena,
nublando-o de inclementes desgostos. Nossos amigos acertadamente deduziram
que foram, entretanto, nada mais do que reações reverberadas do passado, no qual,
se você nos permite, gostaríamos de penetrar, a fim de fazê-lo compreender as
reais causas que fomentaram tais desvalimentos.
Alberto, completamente entregue às sugestões do amigo, anuiu ao convite na
certeza de que sua atuação visava apenas ao seu bem, acelerando- lhe a aquisição
do necessário equilíbrio. Heitor, ciente de sua função naquele instante, com
expressão carregada de amabilidade e modéstia, suscitou-nos a apoiá-lo na tarefa
que se iniciava e, dirigindo o olhar para o Alto, evocou:
— Oremos antes ao Senhor do Universo para que nos abençoe o propósito de
acelerarmos os passos rumo ao Seu amplexo de amor.

(caro Redimido ■ 305


Proferindo sentida prece, elevando-nos a sensibilidade e favorecendo- nos a
percepção da presença do Divino em nós, iniciamos os trabalhos do dia, agora
dinamizados por novo alento, deixando-nos conduzir pela palavra amiga e
abalizada do providente seareiro da Luz. Com sua incomum sabedoria, prosseguiu:
— Como sabemos, para se compreender a vida de um homem e a direção de
suas intenções é preciso retroceder na linha do tempo, em busca das causas que
deflagraram e ainda fazem mover as poderosas forças do destino. Por isso ébom
que comecemos sua história em um dia perdido em priscas eras, porém ainda vivo
e estuante em sua meméria, pois o espírito jamais olvida. Naquele tempo em que
as ferocidades de nossas disputas se resolviam pela força da espada e as cruentas
lutas nos maculavam de opróbrios. Ódios estupendos se acumulavam, imensos,
indissolúveis como a rocha em nossos corações, e a bênção da vida se enodoava do
sangue de nossos irmãos a quem deveríamos amar sem restrições. Tristes dias
aqueles, cujas rememorações nos suscitam as mais amargas lembranças e tudo
daríamos para varrer definitivamente dos peremptórios escaninhos da memória.
Tocando de leve a fronte de nosso companheiro, manipulando o magnetismo
hipnotizador com maestria, Heitor o conduzia ao pretérito. Paulatinamente sua
imagem corporal, projetada na tela mental sob nossa análise, modificava-se,
deixando-nos entrever a figura de um homem rude e corpulento, assustando-nos
pelo contraste com a roupagem física que envergava no presente. Notando-nos o
assombro, Heitor esclareceu:
— Aqui vemos nosso amigo em uma de suas transatas encarnações em que se
vestia com a personalidade de Zennon du Mont, homem cuja influência
estabeleceu uma linhagem de artesões e escultores famosos na época pela
realização de importantes trabalhos artísticos na França, no final da Idade Média e
início da Era Moderna. Iniciava ele nesse então a árvore genealógica da família
Dumont, a mesma que o recebera mais tarde, obedecendo às afinidades que
vencem o tempo. Zennon era, destarte, um artesão de armas, o mais famoso
armeiro da região, cuja habilidade e perícia, moldando o ferro bruto, produzia as
mais formosas e perfe tas armas em uso na época.
Um pictórico vilarejo, emoldurado por tosca vegetação despida pelo inverno,
desenhou-se nas linhas ideoplásticas do projetor telecinético, compondo um
bucólico quadro, pincelado pelas perfeitas reminiscências

306 - Gilson T. Freire/Adamastor


de seus registros mnemônicos profundos, vencendo os séculos, enquanto nosso
benfeitor continuava a nos explicar:
— Estamos no século quinze, em uma pequena aldeia nos arredores de
Valenciennes, ao norte da França. Transcorria a Guerra dos Cem Anos, que se
aproximava do seu fim, quando franceses e ingleses se engalfinhavam em
sangrentos e despropositados combates. Zennon, com seu porte agigantado e
seus músculos proeminentes, trabalhados pela força do martelo golpeando a
bigorna, era muito conhecido pelos guerreiros da época. Muitos vinham de
longe para adquirir suas famosas espadas cujo corte afiado jamais se perdia e
armaduras que reuniam leveza e resistência. Já utilizava na época o aço de
cadinho, misturando carvão vegetal ao ferro, conferindo-lhe a dureza próxima
dos aços modernos, três séculos antes de Benjamin Huntsman redescobri-lo.
Alabardas, floretes, lanças, punhais, adagas, clavas, escudos, enfim todo o
requintado arsenal de armas brancas usadas naqueles tempos de contendas
cruentas, ele materializava em seus fornos de fundição com a habilidade
escultural das formas precisas. Com seus poucos ajudantes, podia, em curto
tempo, armar todo um exército de cavaleiros com as mais perfeitas ferramentas
de ferir e matar.
Uma fulva cruz flamejando chamas vivas subitamente emergiu de suas
reminiscências, ardendo no alto de uma grotesca e pequena igreja, e podíamos
ouvir, nas minúcias de sua projeção telemental, o crepitar do fogo que se
apressava em consumir o símbolo do Crucificado na Terra. A imagem parecia
poderosa o bastante para impressioná-lo, pois de imediato converteu os olhos
em poços de lágrimas candentes.
Como o quadro demorasse em sua tela mental, Heitor nos esclarecia:
— A cruz do Cristo arde, infamante, em sua memória até os dias de hoje,
como a lhe exigir o reparo das ações escabrosas do passado e que desperte,
enfim, para as luzes do Evangelho, abandonando os hediondos e lutuosos
caminhos do ódio. Retroceda-mos, contudo, um instante mais para compreender
o que se passa.
Um céu desbotado de cinzas paulatinamente se afigurava agora em sua tela
mental, nimbado de presságios sombrios, como se feito para encenar
horripilante espetáculo. Ele conduzia uma carroça de lenha, sem dúvida para
alimentar suas vorazes fornalhas, quando, subitamente, divisou ao longe
copioso novelo de fumaça, alarmando o constrito horizonte de inesperado
assombro. Seu semblante se tingiu de sobressalto, sofreando

ícaro Redimido - 307


seu animal de inopino, para em seguida chicoteá-lo, atiçando-o na caminhada. A
estrada, enlameada pela neve que se derretia, prenunciando o final do inverno,
exigia esforço do animal, fazendo-o avançar com vagar, apesar das chibatadas que
estalavam forte em seu dorso. Impaciente, deixava, enfim, o veículo para correr ao
encontro da vila, tomado por imenso desespero. Podíamos ouvi-lo trêfego e
ofegante, ansiando atingir o seu destino. Alguns poucos amigos, ocultos pelos
arbustos ressequidos das imediações, acorriam assustados ao seu encontro. Não
havia a menor dúvida do ocorrido. A aldeia, em sua ausência, havia sido atacada.
— Os malditos ingleses! — proferiu Alberto, entre dentes, oprimido pelo ódio
que emergia dos recessos infecundos de seu coração.
A cena que agora se delineava em sua mente era estarrecedora. Corpos
estraçalhados atirados por todos os cantos, em meio ao fogo que consumia os
casebres, completavam o triste cenário. Gritando desesperadamente por Constança,
debruçava-se enfim sobre uma mulher com o crânio esfacelado, que adivinhávamos
a esposa, trazendo ainda, jungido ao colo, o corpo dilacerado de uma criança com
os cabelos d’ouro encaracolados de sangue vivo. Seus ajudantes, espetados em
lanças, agonizavam nos últimos suspiros de vida. O filho, morto, trazia o tórax
retalhado e de seus lábios abertos parecia ainda ouvir o grito de socorro, enquanto
os olhos esbugalhados se afiguravam fixados em imenso pavor. Gritando
desesperado pela filha que não via, procurava por todos os lados para, em seguida,
ouvir de um jovem ferido que os facínoras a haviam levado.
— Os bárbaros a seqüestraram para seviciá-la — concluía, entre gritos e
grunhidos, em frêmito de execrável fúria e monstruosa indignação, domando-lhe
todas as fibras da alma.
Ainda desfeito no furor das paixões mais vis que um homem pode nutrir, de
joelhos, apertando ao peito a esposa dilacerada, seus olhos fixaram a cruz no cimo
da pequena igreja que tremulava em fogo vivo, irradiando mágico convite ao
Evangelho Divino. Em meio às caóticas forças do ódio que atiravam sua alma em
verdadeiro inferno, parecia ouvir no imo da consciência o brado divino,
convidando-o para o Bem, único caminho para que aqueles tétricos espetáculos
fossem banidos do planeta. Um anseio de paz lhe tomava de assalto a alma, porém
a veemência da ira, assenhoreando-se de toda a sua capacidade de discernimento,
aniquilava a mágica atmosfera que o nimbava, provinda de entidades elevadas,
condoídas daquele homem macerado pelas barbáries das mais frementes paixões
que assolavam a Terra de incontidas maldades.

308 - Gilson T. Freire / Adamastor


Agora a fulgente sanha dava lugar à consternação, e as lágrimas abundavam em
seus olhos, desfeitos em imenso burel de desolação. Aquele homem rude era capaz de
chorar e lamuriava um vagido ruidoso, feito animal ferido, entre grunhidos e urros. E
logo o víamos, regado por fina chuva que caía espargindo terrível frio, abrindo as
covas para enterrar o que lhe restara da família. Sensibilizados pela chocante cena,
podíamos sentir o algor intenso que lhe assolava as costas molhadas, envergado no
afã de terminar a penosa tarefa, enrijando-lhe os sentimentos na promessa de cruel
vindita. Realmente era um quadro por demais comovente para nossos olhos,
compungindo-nos às lágrimas, fazendo- nos recordar que todos, sem exceção, na rota
dos séculos, protagonizamos dramas como aquele. Inundava-me o ser do mais sincero
desejo de ocultar das lembranças, arquivadas para sempre na memória espiritual, as
máculas do passado assombroso que nos constrita e ainda nos encerra nos círculos da
selvageria, obstaculizando-nos a entrada definitiva nas elísias esferas da paz.
Agradecia intimamente a Deus por hoje já possuir a bênção de pressentir as dores que
ainda somos capazes de infligir a outrem, inibindo- nos o potencial de maldade que
detemos por automatismo de arraigados hábitos.
Emudecidos diante do cenário vivo desfraldado para nossa análise, ouvimos
Heitor continuar, com serenidade, a descrição do momento evocado:
— Eis apenas um dos isolados dramas que todos trazemos das tragédias
humanas. Se agora o situamos na posição de vítima, não podemos esquecer,
contudo, que no palco da vida, invertemos constantemente nossos papéis, pois
seguramente é a permanente atitude de algoz que nos faz meritórios das mesmas
maldades que seriamos igualmente capazes de praticar, se ocupássemos, naquele
momento, o lugar de nossos verdugos. Agrada-nos, entretanto, registrar com
intensidade o instante do mal que nos é imposto e não de nossos erros, justificando
assim todos os nossos equivocados atos de vingança, retendo-nos por tempo
indeterminado nos círculos das ações e reações. Eis por que perdoar aos inimigos é
o único meio de evadir-se deste conúbio de ódio e dor. E não podemos olvidar que
Zennon disseminava com suas armas o propósito de ferir e matar, esquecido de
que o Mestre nos asseverou “que aquele que com espada fere, com espada será
ferido ”.
Nosso amigo, como era de se esperar, não atendeu naquele momento ao apelo
sutil das forças superiores da vida que, sensibilizadas pela sua

ícaro Redimido - 309


amarga experiência, convidavam-no aos caminhos do Bem. Envenenado pelo fel da
própria cólera, enceguecido pelo ódio, passou a alimentar impetuoso desejo de
vingança. Reergueria sua oficina e construiria as mais terríveis armas a fim de
liquidar com os seus atrozes inimigos. Atraiu com isso a atenção de formidandos
acólitos das Sombras, mercenários do mal, movidos pela mesma ira de retaliação.
Espíritos inditosos que, encampando a vingança em monoideísmo e advogando a
própria causa, faziam-se piores do que seus próprios algozes, protagonizando a
destruição em massa. Consorciando-se-lhes por identidade de intenções, colocou sua
inteligência e habilidade a serviço de seus nefandos propósitos, sem compreender
que a parceria lhe traria graves danos ao destino, comprometendo-lhe a felicidade
por longos anos. Empenhado ativamente na idéia fixa, guiado pelos cicerones das
Trevas, terminou por desenvolver realmente o mais admirável e funesto instrumento
de guerra daqueles febricitantes dias e que dominaria os campos de batalhas pelos
próximos séculos. Zennon, queridos irmãos, inventou nesta época o canhão!
Realmente, podíamos vê-lo agora em sua tela mental, empenhado na confecção
de uma grande peça de ferro fundido, à semelhança de um longo cilindro.
A um leve gesto da destra de Heitor, Alberto, sem conseguir ainda deter o fluxo
das emoções afloradas em profusão, tornou parcialmente à superfície da
consciência, emerso do sono hipnótico. Perfeitamente ciente do que vivenciava e
emudecido pelo êxtase das insofreáveis recordações, colocava-se atento às palavras
magnetizantes de Heitor, que continuou a ler nas páginas vivas do passado:
— Embora a História não tenha registrado o seu nome, Zennon pode ser
considerado, de fato, o criador do canhão. No século em que se desenrolavam as
cenas vivas sob os nossos olhos, já se conhecia a pólvora, trazida da China, que
então era utilizada em um instrumento rudimentar, a bombarda, construída com
tiras de ferro, presas por aros, da mesma forma como se fazem os tonéis. Através
de pequeno furo, o “ouvido”, se introduzia um bastão de metal ao rubro,
inflamando a pólvora, depositada no seu fundo, que, explodindo, arremetia pedras
nos inimigos. Zennon transformou esse primitivo instrumento em uma única e
resistente peça cilíndrica fundida em ferro. Substituiu a haste em brasa pelo prático
e rápido mecanismo do pavio, eas pedras, por esferas de ferro, perfeitamente
ajustadas ao calibre da boca do canhão. Acomodou ainda a pólvora em

310- Gilson T. Freire / Adamastor


pacotes de pano já prontos, a fim de agilizar a recarga e instalou a peça sobre
grandes rodas de carroça, facilitando o seu rápido transporte. Como podemos
deduzir, nosso amigo aumentou a eficiência da rudimentar bombarda,
transformando-a no canhão, de prático uso em assaltos rápidos, popularizando-o
como a mais formidável arma de guerra de seu tempo. E, com exaltado orgulho,
passou a se gabar como sendo o criador deste fantástico instrumento de destruição.
Tornando-se famoso em sua época, dedicou o resto de sua vida à fabricação
exclusiva de canhões, armando incontáveis exércitos e navios de combate. E, de
fato, os franceses venceram os ingleses na decisiva Batalha de Castillon, pondo fim
à Guerra dos Cem anos, graças aos seus poderosos canhões, consolidando sua
vingança. Estava inaugurada a guerra moderna, meus amigos, e os enfrentamentos
humanos nunca mais seriam os mesmos. Eis onde se posicionou nosso estimado
Alberto! Transformou-se no pai das armas de fogo e comprometeu-se com as
guerras, algemando-se ao peso de grandes responsabilidades e associando-se aos
maiores dramas que o homem de nossa era pôde engendrar para si mesmo.
Compreendíamos naquele instante, com a lucidez que a lógica da vida nos
ensina, os fundamentos das culpas de Alberto, relacionadas ao uso do avião na
guerra, mas não era ainda a hora de entretecermos considerações a este respeito,
pois o benfeitor, consternado diante das amargas recordações, prosseguiu:
— Conquistando significativa fortuna com o comércio de seus admiráveis
canhões, Zennon estabeleceu-se em um pequeno castelo, em Valenciennes, onde
constituiu outra família, fundamentando de fato a genealogia dos Dumont. Sempre
em contendas com aqueles que lhe invejavam as regalias conquistadas junto à corte
dos nobres, terminou por morrer em luta contra salteadores que lhe invadiram a
residência, atraídos pela grande riqueza acumulada. No Plano Espiritual, como era
de se esperar, precipitou-se nas regiões excruciantes que retêm aqueles que, após a
morte, encontram-se com o próprio ódio que transportam na alma. Enlameado com
o equivocado escopo das vítimas que empreendem a maldade para fazer valer a
própria justiça, ainda insaciável no desejo de honrar os familiares barbaramente
assassinados, juntou-se de fato à plêiade de justiceiros das Trevas, com os quais já
se achava unido, transformando-se naquilo que realmente pretendeu durante toda a
vida, o “Grande Vingador”, em grave rebeldia contra as Leis Divinas do Amor.
Ovacionado pelas hordas de espíritos guerreiros que desde as regiões

ícaro Redimido - 311


infernais do Mundo Espiritual inferior já o admiravam, foi condecorado com o
ignominioso título de “Senhor dos Canhões”. Consorciando-se com suas execráveis
intenções se fez presença altaneira nas plagas dantescas, respeitado e disputado
pelos asseclas das Sombras e conselheiro de guerra dos déspotas dos exércitos
Umbralinos. Um nome desconhecido dos homens, mas que se fundamentou como
um fanal das batalhas no Mundo dos Espíritos, promovido a “General das Trevas ”
e que se mantém na memória dos protagonistas da destruição, grafados nos
proscênios sinistros que o tempo teima em não olvidar, eivando de ódios e dores o
escoar dos séculos, até que transformemos nossa residência planetária em estância
da paz e reduto dos mansos.
Por anos perambulou o infeliz pelos escabrosos caminhos da guerra, espargindo
devastação e lamentos em torno de seus passos. Continuou, no Plano Espiritual,
movendo atroz perseguição aos detestados ingleses até o dia em que, extenuado,
enfastiou-se de tanta vindita, atordoando-se com o tédio das maldades sem
objetivo. Desejou com sinceridade evadir- se dos sangrentos campos de lutas
infindas, librando-se dos pungentes dramas que pareciam não ter fim, quando então
se fez permeável aos convites de Constança, a antiga esposa, que jamais o
abandonara e, mesmo habitando plano superior, tudo fazia para resgatá-lo dos
báratros sombrios. Respondendo ao apelo feminino, e aflito por reencontrar-se com
a amada que o incitava com promessas de uma vida feliz, o “Senhor dos Canhões”
dignou-se então se curvar diante das forças superiores da vida, suplicando por
caminhos outros de paz, por onde palmilhar sua alma extenuada de dores. A cruz
do Cordeiro finalmente reluzia em sua memória e um longo passado de batalhas se
findava. Entregou-se, enfim, aos propósitos do Cristo, terminando por convencer-
se de que a intercessão divina é possível ainda que para os sequazes da impiedade.
Ao desfazer, contudo, os véus do ódio que lhe conspurcavam o coração, sua
consciência foi assaltada por culpa imensa, um remorso indizível, reconhecendo-se
o responsável pelas atrocidades das guerras que devastavam a casa planetária.
Aflitivo pesar lhe sobrepujava toda a capacidade de acalmar a alma onde ainda
fervilhava a vileza das imensas crueldades disseminadas e reverberava a dor dos
inimigos, semeada nos campos das paixões insofreáveis das sevícias. Tinha imensa
sede das blandícias de uma prece, ainda impossível de verter do coração
insensibilizado na rudeza das mais vis atrocidades subumanas de que se

312 - Gilson T. Freire/Adamastor


habituara a alimentar. Suas mais santas aspirações espirituais, suscitadas pela esposa,
estavam sepultadas sob o guante de abjetas adversidades. Um único caminho se lhe
estendia aos pés: entregar-se ao sacerdócio, renegando tudo que a vida podia lhe
brindar de prazeres, dos quais não se julgava mais merecedor.
A paz almejada não tinha preço e cercear a consciência denegrida nos limites da
renúncia monástica, refinando a alma empedernida nas sacrossantas libações da
Teologia, era a única forma de aplacar as imensas chagas abertas no espírito.
Implorou assim à direção da vida o ingresso nas lides sacerdotais e a vida,
complacente, respondeu, proporcionando-lhe a experiência requisitada, acomodando-
o nos infinitos ensejos que sobejam na Lei para a redenção do espírito caído.
Ainda que anelando o retorno à família, Constança, abdicando-se por amor e
ciente de que não poderia desfrutar das felicidades celestes sem compartilhá-las com
o companheiro, segui-lo-ia no ministério religioso, a fim de fazer-lhe companhia à
desdita, na esperança de conquistarem, juntos, os páramos luminescentes que
vislumbrava. Reencontrar-se-iam em reencarnação posterior, a fim de reconstruírem
o lar desfeito, quando a paz tornasse a visitar-lhes o coração depois de reedificada a
alma.
Em meados do século dezessete, ambos partiram para nova aventura terrena, sob
o beneplácito dos condutores espirituais e sob os olhos misericordiosos do Cristo,
balsamizados por sacrossantas esperanças e agradecidos à Providência Divina, que
jamais nega oportunidades de regeneração às ovelhas perdidas.

ícaro Redimido - 313


O Padre dos Inventos

“Ah! se tu conhecesses, ao menos neste dia, o que te poderia trazer


a paz! Mas agora isso está encoberto aos teus olhos. ”
Jesus - Lucas, 19:42

A incursão nos périplos terrenos para o espírito que estagia na


evolução é a mais abençoada escola da vida, entesourando-lhe
valores eternos para a perfeição e, sobretudo, proporcionando-
lhe os recursos seguros para a correção de seus grandes erros. Analisando
as desventuras de nosso amigo, agora enriquecidas pelos novos fatos
resgatados do seu pretérito, podíamos sentir a enormidade da Providência
Divina a seu favor, compreendendo que sem as oportunidades da
reencarnação, permitindo-nos corrigir o passado e refazer o futuro,
reconduzindo o feixe de forças poderosas que nos veste a personalidade
para novos rumos, ainda estaríamos perambulando pelas Trevas,
algemados à ignorância, chafurdados nas maldades e vergastados por
dores infindas.
Renascia Alberto, servindo-se agora do beneplácito do sacerdócio a fim de
insculpir na consciência denegrida a rota da redenção, sob o signo do Cordeiro.
Novamente acompanhado de Constança, a personagem que agora encontrava lugar
na trama viva a que assistíamos. Reconhecendo o valor de sua intercessão amorosa
e seu belo gesto de renúncia em favor do esposo dileto, completamente tresloucado
pelo ódio e extraviado nos sombrios caminhos da vingança, concitava-nos ao
respeito, despertando- nos simpatia e interesse pela sua história.
Heitor, ainda mantendo nosso amigo sob dirigido sono hipnótico, em complexa
operação energética, continuou a manipular suas reminiscências

314 - Gilson T. Freire / Adamastor


transreencarnatórias, fazendo-as verterem novos conteúdos do passado, na
seqüência sob nossa análise.
Agora nosso amigo aparecia nas feições de um sacerdote, de pé em um púlpito,
diante de enorme público que, em atitude de respeitoso silêncio, denotava ansiedade
para ouvir-lhe o sermão do dia. Com o olhar percuciente podia identificar que as
primeiras fileiras acomodavam pessoas galhardamente paramentadas, ostentando a
riqueza dos ornamentos régios. As fileiras seguintes guardavam numerosos
nababos, enfeitados de espampanantes vestuários, adornados por bastas cabeleiras
postiças, cacheadas de branco. Não havia dúvidas: estávamos perante uma fina
aristocracia de potentados da era barroca, esquecida de que o Mestre nos
recomendou a simplicidade para que as portas do Reino de Deus se nos abram.
Sua aparência nos afigurava as feições de um rapaz de singular formosura. Os
cabelos longos e negros, partidos ao meio, emprestavam- lhe a mágica mistura da
beleza helênica adornada pela masculinidade dos traços latinos. O queixo
proeminente, denotando força de expressão, sustentava lábios estreitos e bem
traçados, deixando entrever muito pouco do que fora o rude e barbado Zennon.
Estávamos, seguramente, diante de uma bem proporcionada figura masculina, de
porte altivo e belo, aparentando pouco mais de vinte anos. A larga destra apoiada no
parapeito do púlpito nos fazia, entretanto, recordar as agigantadas mãos do antigo
armeiro. O conjunto, contudo, surpreendia-nos pela metamorfose a que fora
submetido o portentoso Senhor dos Canhões, convertido agora em um preletor
ciceroniano de expressão fina e inteligente, moldado, sem dúvida, no recolhimento
dos longos estudos catedráticos. Notando-nos o assombro, Heitor nos esclarecia:
— Apresento-lhes o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, ontem Zennon e
hoje Alberto. Três encarnações de um mesmo espírito em trânsito na romagem
humana. Estamos em Lisboa, no início do século dezoito. Nos primeiros bancos da
igreja, como os amigos podem notar, identificamos D. João V, o rei de Portugal, a
rainha, a esguia arquiduquesa
D. Maria Ana de Habsburgo e sua corte de nobres. O jovem sacerdote, recém-
chegado do Novo Mundo, comparecia pela primeira vez diante da distinta platéia, o
que lhe exigia perfeito controle da ansiedade. Já trazia, contudo, a fama de ser um
noviço de inigualáveis recursos de inteligência e memória surpreendente, servido
por invulgar erudição sacra e profana.
A insegurança diante do primeiro sermão no Velho Mundo, para onde se dirigiu a
fim de completar sua formação monástica, o excitava, porém

ícaro Redimido - 315


era facilmente suplantada pela enormidade de sua autoconfiança, afugentando todo
e qualquer temor, embora a distinção do público pudesse apavorar o mais hábil
orador. Entretanto, deixemos que sua mente vagueie com liberdade pelos campos
das reminiscências suscitadas, situando-se onde melhor lhe aprouver.
De imediato, vimo-lo num aposento às escuras, despertado por golpes pesados
na porta cerrada. Denotando assombro e medo, levantava-se apavorado,
permanecendo silente, até que ouviu, de uma voz roufenha, alguém que proferia:
— Nossa Senhora Virgem Maria nos salve.
Tratava-se, sem dúvida, de uma senha, pois imediatamente ele abriu a porta,
identificando um emissário de confiança do rei, que lhe trazia urgente mensagem:
— Sua Majestade El Rei, que Deus o guarde, manda avisar a Vossa Senhoria
ser preciso que parta imediatamente, pois o Cardeal da Cunha já expediu ordem
para prendê-lo logo pela manhã, levando-o, sem demora, ao tribunal do Santo
Ofício.
Assustado, despedia o discreto mensageiro, despejando algumas moedas em sua
mão. Embora imerso na escuridão quase completa, apanhou apuradamente, como
podia, alguns pertences, preparando-se para imediata retirada. Em uma pira ateou
fogo a vários papéis e livros, saindo em seguida, ocultando-se sob o véu da noite
que já avançava pela madrugada. E logo o víamos esgueirando-se por licenciosa e
sombria rua de antiga cidade, acompanhado de outro homem, envolvidos em
longas túnicas escuras.
Heitor, compreendendo perfeitamente a cena evocada, esclarecia- nos:
— Nosso amigo está em precipitada fuga, pois se acha ameaçado de morte,
diante de graves acusações. Vemos aqui como o espírito se fixa com maior ênfase
nos instantes em que se vê vitimado pelos outros, tentando evadir-se da recordação
dos próprios erros que lhe justificam a posição. Retornemos, mais uma vez, em
nossa história, a fim de compreendermos o que se passa. Deixemos, porém, que ele
nos acompanhe com a mente semidesperta no presente, pois num relance já se deu
conta de todo este seu pretérito.
Alberto, mostrando estar complemente ciente das cenas que lhe abundavam na
memória, deixava-se arrebatar pela surpreendente rememoração que não lhe
permitia a mínima dúvida de estar diante de inquestionável realidade vivida e não
mero sonho. No mundo dos

316- Gilson T. Freire /Adamastor


encarnados tais recordações, arremetidas de passado tão distante, comparecem
como imprecisas visões mentais, sugerindo tratar-se de meras fantasias,
diferentemente do nosso plano, onde são vivas e reais.
O nobre benfeitor, ainda sustentando-lhe a fronte com a destra, prosseguiu:
— Nosso irmão renasceu em terras brasileiras, na Vila de Santos, no século
dezessete, albergado em uma família que trazia a missão de formar grande
número de sacerdotes. Embora seu pendor não partisse de sincera devoção às
coisas santas, deixou-se conduzir pela destinação da maioria dos irmãos, pois,
dos doze filhos do casal, oito foram encaminhados à ordem sacra. Sem o saber,
contudo, dava cumprimento à determinação a que se impusera, desde o Plano
do Espírito.
Logo foi enviado para o Seminário de Belém, na Bahia, para efetuar os seus
estudos eclesiais, apadrinhado pelo amigo da família, o padre Alexandre de
Gusmão, de quem tomara emprestado o sobrenome, como era costume na
época. Destacando-se entre os estudantes por demonstrar inusitado dote de
memória, acurada inteligência e grande habilidade manual, logo chamou para si
a atenção dos clérigos que o dirigiam.
O Seminário de Belém sofria com a falta de água, exigindo dos párocos e
seminaristas penosa caminhada até a distante fonte, em vertente de difícil
acesso. O jovem Bartolomeu, inspirando-se na ciência de Arquimedes com a
qual se encantara desde cedo, desenvolveu engenhoso mecanismo hidráulico,
em que a própria força da queda d’água fazia subir parte dela por um
encanamento até a instituição, ganhando com isso imediata admiração dos
cônegos.
Revelava singular pendor pelas ciências físicas e mecânicas, muito mais do
que pelos estudos teológicos, mostrando de fato um espírito ainda pouco
amadurecido para a vocação monástica. Favorecido, entretanto, pelo seu
protetor, tendo em vista a exemplar dedicação aos estudos e os prodígios de
memória, recebeu permissão para completar sua formação em Lisboa,
coadunando o forte desejo que lhe movia os interesses.
Na longa viagem rumo ao Velho Mundo, admirando-se do improfícuo
esforço dos marujos em recolher a água que permanentemente alagava os
porões do navio, imaginou de imediato um eficaz instrumento para aspirá- la
automaticamente. E logo desenhou com esmero o seu projeto, intitulado “Modo
de esgotar sem gente as naus que fazem água”, utilizando-se de um parafuso de
Arquimedes, que, girando pelo movimento da própria embarcação, evacuava a
água, liberando os pobres homens de tão árdua

ícaro Redimido -317


tarefa. Em Portugal tratou de pedir privilégios para o invento, conseguindo do rei o
subsídio para suas experiências, contudo, não despertou interesse naqueles que
detinham condições de executá-lo.
Embora seus sermões fossem famosos e muito apreciados na época, vivia muito
mais interessado nos estudos eruditos e em suas experiências do que nas práticas
religiosas e jamais deteve sua carreira de invencionices. Rememorando
precocemente o lídimo gênio inventivo do “Senhor dos Canhões”, que ainda
brandia, infrene, na intimidade consciencial, dava vazão à voz do espírito que lhe
pedia realizar benefícios em prol do progresso humano com o qual se sentia
compromissado. E encontrou na ciência de Arquimedes as inspirações para suas
criações. Criou uma embarcação dotada de rodas de pás movidas por pedais,
através de eficiente mecanismo de polias e roldanas, coisa que somente mais tarde
seria novamente reinventada. Contudo, muitas de suas invenções eram realmente
estapafúrdias, típicas dos excêntricos, sem olvidarmos que é preciso sair do comum
para fazer brotar os laivos da genialidade no processo de maturação do
pensamento. Com um estranho conjunto de lentes e espelhos dizia assar carnes com
a luz solar, aparelho sem utilidade e muito ridicularizado por aqueles que não
podiam compreender o alcance de suas criações. Trabalhou por muito tempo na
tentativa de fabricar carvão mineral artificial, tentando resolver o problema de sua
carência, levando ao forno misturas de barro com capim, projeto que jamais deu
certo. Intentando desenvolver medicamentos para os males humanos, misturava
ervas ao acaso, em completo desconhecimento de suas ações, sem conseguir
resultado algum. Devido a este prolifero e inexplicável empenho em criar
utilidades, algumas exóticas e improfícuas, recebeu apropriadamente do povo o
título de “Padre dos Inventos ”.
Fascinado, sobretudo, diante das propriedades da pólvora, despendeu largo
tempo procurando afanosamente descobrir algum uso benéfico para ela. Nada
conseguiu com o explosivo, porém desenvolveu com sua habilidade alguns tipos de
fogos de artifícios, ainda em uso nos dias de hoje e que lhe valeram outras
alcunhas, como o “Cônego da ordem dos artilheiros ” e “Pároco dos foguetórios ”,
dentre as muitas que lhe outorgaram.
Esses ingentes esforços nos incitam a admirar a força de expressão de um
espírito investido em suplantar o passado culposo, a qualquer custo, revelando-nos
que os remorsos não se calam facilmente, retidos nos recessos sempre ativos do
inconsciente, embora contidos pelo esquecimento temporário.

318 - Gilson T. Freire/Adamastor


Após breve e oportuno silêncio, permitindo-nos assimilar o interessante
desenovelar das aventuras de Alberto, continuou o benfeitor:
— Afável de gênio, douto em ciências, de imediato provocou grande impressão
no rei, ao ouvir os seus belos sermões. E foi logo convidado a freqüentar o palácio
real, convocado para as homilias particulares e serviços sacerdotais da corte. Era o
início de uma amizade que se estenderia por alguns anos, mas que lhe atraiu
enormes dificuldades, pois despertava de imediato grande inveja nos clérigos que
ambicionavam os privilégios régios e a abastança dos palácios monárquicos.
Passou a freqüentar a Universidade de Coimbra e doutorou-se em Cânones,
fazendo-se logo amigo das maiores notoriedades intelectuais da monarquia. Por
ordem do rei, que lhe passou a devotar grande estima e admiração, foi indicado para
a Academia Real de História e nomeado Fidalgo Capelão da Casa Real,
consolidando uma posição invejável, praticamente impossível de ser alcançada por
um desconhecido filho de plebeus, oriundo de somenos colônia de Portugal.
Gozando de todas as prerrogativas do soberano foi empregado no Ministério de
Estrangeiros, encarregado de tarefa da maior importância. Era comum nas cortes
européias de então a violação das correspondências diplomáticas dirigidas aos seus
representantes, a fim de que os governos pudessem se ajuizar das reais intenções dos
outros Estados. O recurso para se evitar isso era o envio de cartas cifradas e para
entendê-las era necessária grande perícia. Fiando-se na inteligência de Gusmão, D.
João V confiou-lhe esse espinhoso mister. E tão bem se saiu nele que não havia
código que não decifrasse, prevenindo a Coroa portuguesa dos negócios com as
outras nações.
O monarca lhe abriu as portas do palácio real, onde encontrava sempre a mesa
posta e passou a viver em insolente fausto, andando em carruagens luxuosas,
sendo bem visto e cortejado também pelos principais da Corte. Não tardou, desta
forma, a despertar imediata atenção dos potentados da Igreja, que não podiam
admitir que um mero e jovem pároco, de origem modesta, pudesse sobrepujá-los
com tamanha rapidez, subestimando o natural carreiro de ascensão clerical. Estava
armado o cenário para infundadas perseguições, validadas pelos mais abjetos
sentimentos de inveja e despeito. E foi exatamente esta animosidade que lhe
obstaculizou o profícuo progresso dos valores natos do intelecto, somados ao
desejo de realizar algum benefício em prol da humanidade.
Embevecidos, deixávamo-nos embalar pelo enredo, sem animarmo- nos a
interromper o benfeitor com as considerações que nos assaltavam.

ícaro Redimido - 319


Mostrando enorme conhecimento dos fatos, prosseguiu o prestimoso amigo:
— De suas estranhas invenções, contudo, a mais famosa foi o aeróstato de ar
quente, como todos sabem. Conhecendo o empuxo arquimediano, compreendeu que
os vapores que escapavam de uma chama eram mais rarefeitos do que o ar, fazendo
elevar na atmosfera objetos leves atirados sobre eles. Imaginou então um modo de
contê-los em um recipiente fechado a fim de que pudesse por si só ascender no ar.
Armou uma pira de fogo sob um balão de papel encerado e o fez flutuar
milagrosamente, concluindo, acertadamente, que bastaria aumentar o tamanho do
artefato para que conseguisse elevar a si próprio e navegar pelos ares. Surpreendido
diante do que poderia ser a mais espetacular máquina do mundo e depois de
assegurar o seu sucesso nas experiências preliminares, tratou de pedir privilégios à
Coroa pelo aparelho que iria revolucionar a vida no planeta. Prevendo o futuro,
dizia que tal instrumento de voar poderia transportar trinta ou mais pessoas,
avançar por mais de duzentas léguas e levar recursos para os exércitos, imaginando
de início aplicação bélica para o seu invento.
E, com efeito, na presença do monarca e sua corte, no pátio da Casa da índia,
em 8 de agosto de 1709, obteve êxito com uma miniatura do balão que, subindo,
terminou por incendiar as cortinas do salão, causando, entretanto, enorme
impressão entre os presentes. D. João, entusiasmado com o extraordinário aparelho,
interessou-se em financiá-lo. Dizendo que em breve voaria, Gusmão tornou-se
verdadeira celebridade na época, recebendo o título que de fato o caracterizou na
história dos honens: o “Padre Voador ”. Embora muitos historiadores afirmem que
nosso amigo tenha voado, não se trata de uma verdade. Ele não chegou a se elevar
como queria em seu aeróstato, mérito que realmente coube aos irmãos Montgolfier,
na França, cerca de oitenta anos mais tarde, embora tal proeza tenha erroneamente
lhes imputado a primazia do invento. Um triste motivo, meus amigos, induziria o
fim de tão belo sonho e o fracasso de seu arrojado projeto, e gostaria de revelar-
lhes.
Parecendo assediado por amargas lembranças que não puderam sucumbir sob o
peso dos séculos, Heitor, suspirando mais fundo, continuou, agora com forte tono
de emoção embargando-lhe as palavras:
— Nesta época ainda ecoavam as grandes perseguições da Inquisição, meus
queridos, e dramas horríveis se desenrolavam sob o guante da equivocada Santa Sé.
Portugal neste então contava com um rígido clérigo, leal defensor dos interesses da
Madre Igreja, o Cardeal da Cunha. Homem

320 - Gilson T. Freire / Adamastor


implacável e sem piedade, com punho firme e coração enrijecido, perseguia a muitos
e muitos já havia levado à fogueira, em nome de infundados crimes contra a fé
católica.
O Cardeal da Cunha não podia tolerar tanta insolência por parte de um mísero
padreco, afrontando as regras clericais às custas de um imerecido valimento real.
Embora respeitasse o poder político, a Igreja lhe estava acima e o hierarquismo
clerical não podia se sujeitar aos seus caprichos. E passou a procurar artifícios que
justificassem roubar os prestígios do petulante jovem e recolocá-lo em seu devido
lugar.
Ora, o Cardeal trazia títulos que o sobrepunham ao Voador, pois era o Defensor
Geral do Conselho do Rei e do Real Despacho e primeiro Capelão do Estado. E,
sobretudo, era o Inquisidor Mor do Tribunal do Santo Ofício em Portugal, detendo
em mãos ilimitado poder, temido e respeitado pelos meios políticos e religiosos de
então. Diante das estroicines do ousado estrangeiro que descabidamente teimava em
voar, o Cardeal, reunindo um concilio, convocou-o para esclarecimentos e
retaliações. Ele e a junta de eminentes prelados estavam convencidos de que não
convinha a um representante da Santa Sé dedicar-se a traquinagens tais, divertindo-
se com pólvoras e estranhos objetos voadores. Suas tropel ias e desazadas idéias não
se coadunavam com os interesses da Madre Igreja, cuja imagem iria macular,
denegrindo-a junto ao povo. Julgando-as inadequadas a um religioso que devia
sobretudo servir a Deus e cuidar das coisas santas, esqueciam-se de que também se
serve ao Altíssimo, auxiliando-se o progresso dos homens e, enceguecidos pela
inveja e ambições insatisfeitas, não puderam compreender o alcance científico da
descoberta. Com a autoridade que o caracterizava e que ninguém ousava desafiar, o
Defensor Mor proibiu-o terminantemente de continuar tais exóticas experiências,
ameaçando bani-lo da congregação, fazendo-o tornar às suas humildes origens. E,
sobretudo, advertiam-no de que tais diabruras bem podiam ser interpretadas como
bruxarias, suficientes para sujeitá-lo a um grave processo inquisitorial cujas
conseqüências não poderiam ser previstas. Diante de tamanha ameaça, não coube ao
Voador outra alternativa senão silenciar-se.
O rei, contudo, achava-se entusiasmado com as suas experiências e disposto a
financiá-las, porém o Cardeal tratou de convencê-lo da inutilidade de tal
empreitada, que somente faria cair no ridículo a nobre corte portuguesa.
Como o fato havia despertado enorme interesse na comunidade local e de
outros países, de onde pediam notícias dos boatos que lhes chegavam,

fcaro Redimido - 321


restava calar as repercussões do inusitado feito. Decidiu então o imprevidente
Cardeal, em nome dos interesses da Madre Igreja, que uma falsa e absurda estampa
seria mostrada para que todos se dessem conta da impropriedade de tal
contingência, encerrando definitivamente o episódio. Dessa forma idealizaram o
documento iconográfico estrambótico e irreal, que ficou conhecido como a
Passarola. Uma versão inverossímil e vergonhosa do extraordinário invento,
divulgado rapidamente na Europa, como se fora a máquina de voar do injustiçado
padre, anulando seus direitos perante a opinião dos pósteros. Qualquer um que a
examinasse com atenção veria que não podia ser levada a sério, ensejando ridículas
impressões sobre o infausto inventor. Alguns historiadores julgaram ter sido isso
obra do próprio Bartolomeu que, com o fito de proteger os seus direitos autorais,
tratou de depredar sua originalidade, porém não foi exatamente isso que ocorreu.
Na realidade ele foi coagido a aceitar o embuste e a ocultar a verdade.
Portanto não foi a queda de seu balão e o incêndio das cortinas do salão do Paço
que o levaram a desistir de seus acertados intentos. Tampouco era o temor de ser
considerado feiticeiro, mas de fato foi a inveja dos potentados da Igreja, movidos
pelo implacável Cardeal da Cunha, que o inibira de prosseguir na genial carreira de
inventos. Desgostoso, não teve outra alternativa do que encerrar o projeto. Não
fosse isso, teria de fato se tornado o primeiro argonauta da humanidade. Como
sabemos, à maneira de outros graves episódios da história, mais uma vez o
progresso humano teve seu curso obstaculizado pelos equivocados interesses da
Fé.
Apesar de sua primeira vitória, o Cardeal não se dava por satisfeito e, movido
unicamente pelo despeito, buscava meios que não se valessem de suas inofensivas
estultices, de eliminar o insolente sacerdote, dado a ridículo talhe de inventor.
Alberto, assumindo a personalidade de Bartolomeu e situando-se com clareza
nas transatas reminiscências, perfeitamente ciente do enredo que Heitor perfilava,
retorquiu:
— Acusava-me o déspota, injustamente, de apóstata, leitor do Alcorão e que eu
era adepto do Molinismo87, pregando-o com o fito de atrair a concupiscência
feminina, procurando com isto infundados motivos para me levar ao Tribunal...
— É verdade, amigos. Alberto, incitado pelas indignidades que o

87 Doutrina criada por Luis de Molina, que pretendia conciliar a liberdade humana com a graça divina,
combatida na época pelas principais ordens do Clero dominante.

322 - Gilson T. Freire / Adamastor


imolaram no passado, recorda-se com clareza da perfídia que lhe movia o
procaz Cardeal — continuou Heitor. — Contudo, logo o inclemente inquisidor
descobriu fatos consistentes que justificavam processá-lo. Foi visto
aproximando-se dos judeus que haviam sido degredados do Brasil, expulsos
pelo bispo do Rio de Janeiro e que estavam em Lisboa sob rigorosa vigilância,
aguardando um veredicto. Sua atitude amistosa para com estes semitas era o
bastante para acusá-lo de simpatia pelo judaísmo e de tolerância para com as
práticas mosaicas, graves transgressões para um sacerdote da época.
— Não se tratava de verdades e tudo não passava de ardilosa trama
objetivando unicamente romper a proteção e a amizade que o soberano me
dedicava — rememorou Alberto, constrito. — Porém tive que fugir, pois temia
que sequer o rei pudesse impedir minha condenação...
— Ninguém era louco o bastante para enfrentar a autoridade do Cardeal, no
terrível Tribunal da Inquisição, quando então, investido do poder temporal,
sobrepujava o domínio régio — completava Heitor. — Capitulando diante da
força do poderoso inimigo, refugiou-se Bartolomeu na Holanda, em 1713, a
despeito da proteção real e do caráter infundado das incriminações que lhe
imputavam.
Expressando condolência nas palavras e convidando-nos à análise das ações
e reações que movem o espírito imortal no campo da evolução, reverberando
motivações para dores e ajustes na escola da vida, prosseguiu Heitor:
— Imaginamos o grande desgosto do jovem brasileiro, tentando
sobressair-se no clero e na vida social de Portugal, tendo que viver como
adeleiro em outros países. Na Holanda buscou negociar seu instrumento de
assar carne ao sol e seu aeróstato de ar quente, interessado em auferir lucros
com eles, sem conseguir convencer os arrogantes protestantes de suas sinceras
intenções e da praticidade de seu balão, influenciados que se achavam pela
esdrúxula e mentirosa estampa, anteriormente divulgada. Em Paris vendia suas
imprudentes misturas de ervas curativas, que não logravam benefício algum
para seus usuários. Sempre atento, o implacável Cardeal seguia-o em outros
países, requisitando notícias aos cônegos locais, procurando saber se havia se
casado ou circuncidado, em busca de fatos que o incriminassem de modo
definitivo.
Admirados, seguíamos o impressionante relato, perguntando-nos se
porventura Heitor não faria parte daqueles cenários, em decorrência da precisão
dos detalhes com que os entretecia, tonalizando-os de uma indubitável
veracidade. Alberto, o protagonista, silenciava-se, deixando

ícaro Redimido - 323


que as emoções lhe aflorassem em forma de lágrimas ardentes. Os olhos vagantes
denotavam que acompanhava o enredo, vivenciando-o nas paisagens imorredouras
da alma, exumando inenarráveis sensações. Sem denotar fastio pelo longo enredo,
continuou Heitor, dedilhando as páginas do livro da vida:
— D. João V, inconformado, passou a maquinar ardilosas negociações para
trazer de volta o estimado sacerdote, cuja companhia não podia dispensar. E não
tardou para obter êxito, subornando poderosos chefes da Igreja, capazes de se
imporem ao Defensor Mor, envenenando-o de profuso ódio por ver sua autoridade
sobrepujada por interesses superiores. Afinal, pensava o monarca, todos já haviam
olvidado os malogros do Voador, cujas peraltices a maioria julgava inofensivas.
— Devo confessar, meus amigos, havia outros motivos para que Sua Alteza me
mantivesse em sua presença... — declarou Alberto, constrangido, agrilhoado pelas
faltas do passado.
— De fato, você já se deu conta de tudo. Relate-os você mesmo aos nossos
amigos.
— Infelizmente não posso negar a verdade. D. João não podia dispensar-me,
por ser eu o comparsa de suas aventuras libidinosas. Sendo seu confessor particular
e ouvindo suas insistentes revelações de infidelidades, reconheci sua insopitável
volúpia sexual, terminando por envolver-me com suas libertinagens. Queria
angariar a todo custo o seu apreço irrestrito e fazer valer a sua proteção, a qual
julgava necessária às minhas ambições e vaidades. Desta forma barganhava com
ele estima por prazeres da sexualidade desenfreada, servindo-lhe, às ocultas,
amantes arrebanhadas dos conventos. Tratava de convencê-las das vantagens do
conúbio real, recompensando-as com prestígios e valias ilícitas.
— Eram fatos graves e estes realmente justificavam sua condenação à fogueira
— completou Heitor, com o único propósito de nos enriquecer os ensinamentos. —
O impudico monarca já tinha fama de obsceno e libertino, mas o clero não sabia
que um de seus membros estava mancomunado com suas abjetas orgias. Isso
explicava por que Bartolomeu gozava de tanta intimidade com o rei e este lhe
conferia tantos e injustificados benefícios. Deu-lhe foro de fidalgo e o mantinha às
expensas do palácio real, chegando mesmo a conceder-lhe os incabíveis
rendimentos vitalícios das minas de Vila Rica, extremamente vultosos na época.
— Reconheço que não tive a coragem de cercear-me ao celibato e, diante das
facilidades que se me apresentavam, capitulei ainda aos prazeres do sexo
desenfreado.

324 - Gilson T. Freire/Adamastor


— As religiosas, por serem mulheres proibidas, exerciam sobre o devasso
monarca especial atração — explicava Heitor. — Servindo-se das portas sempre
abertas no palácio e simulando sermões particulares ou longas penitências,
Bartolomeu conduzia freiras e noviças para participarem, na verdade, de
nefandos banquetes carnais. E tamanho opróbrio não poderia andar às ocultas
por muito tempo, pois os serviçais do palácio logo se deram conta do fato,
espalhando boataria que freqüentava os mexericos da comunidade, chegando
aos ouvidos das autoridades eclesiais. O recato das esposas do Senhor não devia
ser desrespeitado e tal afronta não podia ser tolerada, numa época em que se
apregoava tão falso moralismo. Como, entretanto, o caso demandava os
interesses de Sua Majestade, era preciso agir com cautela para não se colocar a
própria cabeça em risco, pois sabia-se que outros potentados da Igreja poderiam
interferir em defesa do monarca. O Cardeal da Cunha, interessado em desvendar
a verdade de tais bulícios e, sabendo que o móvel de suas desavenças, o padre
Bartolomeu, poderia de fato estar implicado nas graves incriminações, expediu
ordens para que os cenóbios femininos fossem rigorosamente vigiados. Ele
contava com as artimanhas de um leal comparsa, o Desembargador João
Marques, fiel executor de seus caprichos, cumprindo suas ordens com o mesmo
implacável rigor, ainda que muitas vezes raiassem ao absurdo. O
Desembargador terminou por descobrir que realmente o Voador, com freqüência
deixava seus aposentos altas horas, com a desculpa de fazer observações
astronômicas, para ser visto saltando as grades do Convento de Santana.
Inopinadamente, Alberto, tomado de assalto por súbita lembrança, como se
surpreendido por ter olvidado durante tanto tempo um nome que jamais poderia
ter esquecido e, cingido por viva emoção, exclamou:
— Irmã Paula! Onde está aquela que guarda minha alma no altar da mais
pura afeição?
Admirávamos tal vigor de sensações, embriagando-o de recônditos
sentimentos, enquanto se lhe estampava no painel mental a imagem de uma
delicada e alva face feminina, emoldurada pelos alentos de um toucado freiral,
expressando afável encantamento.
— Apresento-lhes a figura da madre Paula de Souza, meus amigos — falou
Heitor. — Vocês devem reconhecê-la, pois aí vemos Constança de quem não
poderíamos nos esquecer. Naturalmente que se reencontraram e, como haviam
programado na Erraticidade, ela também se vestiu dos hábitos freiráticos a fim
de apoiar o amado esposo em sua romagem de renovação. Entretanto não
puderam vencer os rogos da paixão que os

ícaro Redimido - 325


alimentava desde outros séculos e se apressaram às trocas da afetividade sexual,
rompendo com seus votos de castidade. E as frias e solitárias paredes do Convento
de Santana passaram a testemunhar suas ilícitas conjuras de amor.
Como três das irmãs de sua amada eram também freiras, Bartolomeu tratou de
aproximá-las de D. João a fim de facilitar os seus encontros. Felizmente Sua
Majestade se apaixonara de imediato por uma delas, a madre Antônia de Souza, do
Convento de Odivelas, selando-se o conúbio de infandos prazeres carnais, regrado
pelo interesse às cobiçadas, porém incautas, vantagens régias.
— Infeliz de mim, devia ter mantido fidelidade à minha querida, mas os
insofreáveis desejos sexuais me dominavam... — confessava Alberto, entre o
pranto que se lhe misturava às palavras.
— Sim, meu amigo, faz-nos bem ser fiéis à própria consciência. Você não
somente mantinha encontros amorosos nas penumbras das abadias, mas a lascívia
desregrada, exercida às ocultas nos luxuriosos aposentos reais, assenhoreou-se de
seus mais nobres ideais e o fez prisioneiro dos vícios do sexo, dissociando-o da
salutar vivência conventual que deveria nutrir-lhe a tão almejada reforma
espiritual. Adotando procedimentos indignos com seu estado sacerdotal, maculava
a alma de desregramentos libidinosos, renovando as culposas lesões e semeando
novas reações coercivas. Motivado pelos insanos desejos carnais, envolvia- se não
somente com noviças e dominicanas, mas com esposas probas que, diante de seus
assédios sexuais irresistíveis, desfaziam os votos de lealdade matrimonial, cedendo
aos seus apetites insopitáveis, acobertados pelo manto sacerdotal.
E como o amigo veio se inteirar somente depois de sua morte, mediante a
prática do sexo irresponsável, terminou por engravidar uma jovem desposada,
pouco antes de seu trágico falecimento. O marido traído, mais tarde, deu-se conta
do triste incidente, terminando por desfechar grave delito, numa época em que os
escândalos deste tipo se resolviam da forma mais inadequada possível.
Estes foram os novos dramas semeados no campo da vida pelo nosso
imprevidente Alberto, distante ainda da ciência do espírito, não obstante as
sacrossantas promessas de renovação proferidas ao partir para a jornada terrena.
Diante de tanto abuso e tamanha irresponsabilidade, aviltando as potências
sagradas da alma e sem conhecer os seus graves riscos, evidente que as forças da
vida reagiriam com vigor na tentativa de coibir seus

326 - Gilson T. Freire / Adamastor


desmandos, resguardando-o de males ainda maiores na semeadura dos destinos
futuros.
Um fato logo iria deter sua carreira de obscenidades e irrisórios prazeres, para
sorte do Cardeal que o espreitava, aguardando o melhor momento para desferir-lhe
golpe certeiro.
— Recordo-me perfeitamente — completava Alberto, fortemente
emocionado. — Sua Majestade, sentindo-se vivamente atraído pelas criadas
mouras que trabalhavam no Convento de Odivelas, recomendou-me que lhas
trouxesse a fim de servir-lhe aos ocultos desejos. Como não era conveniente levá-
las às escondidas ao Palácio Real, achei por bem utilizar a casa da Bica... Não
podia imaginar que teria tão drásticas conseqüências...
— Nosso amigo havia alugado uma pequena estância na Bica do Sapato onde,
às expensas da Coroa, fingia continuar as experiências com seu malogrado carvão
de lama. Empreitada que despertava as piores impressões pois, na verdade, como
muitos desconfiavam, ele fazia do lugar um infame latíbulo de fornicações. A
visita de Sua Alteza ao distante sítio, embora feita na maior discrição possível,
com a desculpa de andar vistoriando os progressos do Inventor, fez levantar
suspeitas nas irmãs Souza, pois, por ordem real, as serviçais foram convocadas
para tarefas domésticas no local. Perspicazes, elas já haviam notado que a volúpia
manava dos olhos do rei, admirando as atraentes trigueiras. E foram até lá para se
inteirarem do que ocorria. Estava armado o escândalo que não pôde se conter nos
limites dos conventos. Ultrapassando suas grades, foi ter aos ouvidos do
Desembargador João Marques e daí ao austero Cardeal da Cunha.
Enciumadas e extremamente ofendidas por se verem suplantadas pelas indignas
criadas e, mesmo temendo as graves conseqüências do fato, as irmãs Souza
terminaram por confessar a violação dos votos de castidade, delatando ao Cardeal
toda a artimanha do padre e sua parceria de concupiscência com o lúbrico
monarca, mesmo porque o inquisidor possuía a arte de fazer falar qualquer um que
quisesse.
A fim de resguardar a imagem e os interesses da Santa Igreja, o caso deveria
ser resolvido no âmbito da própria congregação, ocultando-se do povo os
verdadeiros motivos do processo. O envolvimento de Sua Majestade não poderia
tampouco ser ressaltado, pois o choque de interesses entre o Estado e a Igreja não
era de modo algum conveniente à §anta Sé. Ardilosamente, o Defensor Mor
engendrou outras razões para encobertar a verdade: o Voador iria à fogueira sob
acusação de práticas demoníacas

ícaro Redimido - 327


e embruxamento do rei, induzindo-o à degradação dos valores morais com o fito de
lhe explorar valimento indevido e luxuriantes privilégios. Para as transgressões de
Sua Alteza não havia mandato nem magistrado para o juízo e este seria apenas
informado do caso, recorrendo-se à autoridade papal se porventura ele viesse a se
opor às decisões. Como D. João se encontrasse bastante envergonhado do ocorrido
diante do imenso escândalo das irmãs Souza, deixou-se silenciar, tratando apenas
de avisar o fiel comparsa, sem demora.
No dia seguinte todos os envolvidos foram levados ao cárcere do Santo Ofício,
exceto o transviado padre. Altas horas da noite anterior, um mensageiro de
confiança do rei batia às portas de seus aposentos, como os amigos certamente se
recordam. Eis, enfim o que motivou a sua precipitada fuga, na companhia de seu
irmão mais novo, o frade carmelita João Álvares, pois, quando o réu escapava, era
uma prerrogativa lícita da Inquisição aplicar a mesma pena ao seu parente mais
próximo. Os soldados encontraram numa pira de cinzas os restos de todos os seus
papéis queimados, desenhos e projetos valiosos que poderiam ter servido ao
progresso humano, convencendo a História da genialidade de seus inventos. Ali
soçobraram os ricos esboços, muito bem feitos, de seu curioso balão voador, tal
qual teve que ser reinventado mais tarde, na França. E ali um dos homens de
confiança do Cardeal colocara, sorrateiramente, seguindo suas ordens, um Alcorão
aberto e anotado, a fim de servir como mais uma prova de heresia contra o
malfadado pároco.
Nosso ícaro, alçado a tamanha altura, graças ao fulgor de onímodo talento,
infelizmente desacompanhado da elevação moral, sofria a queda de seu pretensioso
vôo pela primeira vez, pelas tramas do sexo e em decorrência da inveja daqueles
que não toleraram seus privilégios e sua pujança na sociedade de então.
Alberto, estampando na face a vergonha, chorava como uma criança
arrependida, novamente surpreendido por outros graves delitos do passado. A
vexação se lhe sobrepunha à indignação, pois, certamente, sua dor era acrescida do
remorso por haver imposto tão grandes dissabores à sua fiel companheira, que lhe
acompanhara na renúncia sacerdotal apenas para auxiliá-lo na reforma dos
aguerridos instintos.
— Mais uma vez o apóstata se lhe escapava das férreas mãos — prosseguiu
Heitor,—porém, o Cardeal, enceguecido pelo ódio e incontido desejo de vingança,
mantinha a irmã Paula na clausura, pois temia que ela fugisse para se encontrar
com o amado. À madre Antônia impôs pesadas penitências em três anos de
clausura e as mouras foram expedidas

328 - Gilson T. Freire / Adamastor


para serviços em outras comarcas. Novamente, contudo, a sorte parecia bafejar
suas errôneas intenções. Decorridos dois meses, o fugitivo enviou sentida
missiva à sua amada, através de mensageiro de confiança do rei. O intrépido
inquisidor, porém, tinha meios de interceptá-la, inteirando- se dos fatos.
— Recordo-me — explicava Alberto, admirado de suas nítidas e amargas
lembranças.—Eu lhe reafirmava meu amor e lhe rogava perdão, pedindo-lhe
que aguardasse com paciência até que os eventos se acalmassem e D. João
pudesse interditar em nosso favor, afastando o indesejado Cardeal que tão
duramente nos castigava.
— Para grande irritação do Defensor, o infeliz, entretanto, não deixava
traços de seu paradeiro e a carta lhe chegava por uma serva, a mando do palácio
real, que seguramente desconhecia a sua direção. Seria inútil impor a sua arte de
torturas à inocente criatura — continuou Heitor, ressumando pesar nos olhos. —
Então o incansável perseguidor, utilizando- se de astuciosa insídia, propôs à
sóror encarcerada que escrevesse ao seu amado, dizendo-lhe que o Santo Ofício
iria libertá-la dentro de poucos dias e partiria imediatamente ao seu encontro,
acompanhando-o na fuga. Ela iria de fato, contudo, deveria se comprometer a
colocar em sua comida um pó que o faria dormir, a fim de que fosse facilmente
preso pelos seus soldados. Feito isso, ambos seriam julgados e banidos da
congregação, mas somente lhes seria imposta a pena do degredo em terras
brasileiras e não a fogueira. Distantes dos tumultos que ambos semearam, esta
seria a única forma de encontrarem a almejada felicidade. Empenhando sua
palavra, em nome do Sagrado, comprometia-se a cumprir a promessa, custasse o
que fosse. A pobre irmã, temendo a masmorra ou coisa pior e motivada ainda
pela imensa mágoa que lhe constrangia a alma ferida, aceitou a proposta,
tratando de enviar o mentiroso alvitre.
Sabia ela ainda que Sua Alteza caíra enfermo de grave melancolia,
recolhendo-se aos seus aposentos, de onde não desejava mais sair. Certamente
por se ver cerceado nas libertinagens, uma vez que lhe tomaram o ministro de
prazeres fáceis, e, humilhado, teve a sua autoridade sobrepujada pelos interesses
do Santo Ofício, sem que pudesse contestar. Temendo que o monarca não se
recuperasse a tempo de salvá-los, não lhe cabia de fato outra alternativa diante
da gravidade da situação. E guardava ainda a intenção de que seu petulante
amante fosse de alguma forma castigado pela infidelidade, pois, extremamente
magoada, não se sentia merecedora de tamanho desgosto diante do dedicado
amor que lhe votava.

ícaro Redimido - 329


Dentre em breve, fria e silente madrugada assistia à partida de uma diligência
levando a freira, agasalhada de esperanças, conduzida secretamente pelos serviçais
do Gardeal e acompanhada a distância por alguns soldados do Santo Ofício.
Seguiram pela estrada do Arronches até Aviz, onde, em um albergue, nas margens
do rio Caia, aguardava-a o acossado padre. Obedecendo às rigorosas ordens do
Cardeal, colocou ela um estranho e esbranquiçado pó na sopa do amado. Antes do
alvorecer do dia seguinte, deixava-o, misturando-se ao manto da noite, prestes a se
dissipar na aurora outoniça, aproveitando-se do pesado sono do companheiro. Os
soldados tratariam de pegá-lo pouco depois e mais tarde ela lhe explicaria toda a
artimanha que objetivava libertá-los, embora lutasse ainda por dissimular o viço do
rancor que lhe conspurcava o coração.
Para grande constrangimento da irmã, o desfecho dos planos não era bem o que
lhe fora prometido e em breve descobriu que caíra em grave engodo. O veneno que
administrara ao amado era, intencionalmente, uma dose letal de arsênico, ao qual
ele não sobreviveria. Mal teve tempo o infeliz de chegar aos portões de Toledo,
conduzido pelo irmão, em grave estado, onde veio a encontrar a sua trágica morte.
Estava deflagrado o funesto conluio e, sem o saber, havia assassinado aquele a
quem tanto amava. O Inquisidor por fim estampava na face o sorriso dos
vencedores que se deleitam com a destruição daqueles que odeiam. A injustiçada
madre, recolhida à clausura, foi condenada à prisão perpétua. Inconformada,
remoída pelo ódio, condoída pelo desconsolo e pelas dores do remorso, terminou
por enlouquecer na masmorra.
O desditoso Bartolomeu, desencarnando, compreendeu pelos sentimentos o que
se lhe passou, reconheceu seu verdadeiro assassino e se uniu àquela que lhe atraía
pela sinceridade do afeto, buscando refugio em seu coração, única porta de alívio
que encontrou no Plano do Espírito. Após breves anos a desventurada sóror veio
também a falecer, motivada por tísica galopante88, em meio a pungente quadro de
loucura e jungida ao amado que se lhe abraçava à alma.
De súbito, Alberto, aprofundando-se nas tristes reminiscências, proferiu, em
aflitiva inflexão:
— Paula, Paula! Onde estás, minha querida?
Com o semblante contrito, porém transpirando tranqüilidade, Heitor aduziu:
— Acalme-se, amigo, retorne ao presente e não evoque o nome daquela

88 Tuberculose pulmonar de desenlace rápido.

330 - Gilson! Freire/Adamastor


cuja presença você ainda não detém condições de desfrutar. Deixe que as
lembranças lhe sirvam de proveitosa lição para o espírito imortal, porém não
faça delas motivação para destruir-lhe o bem-estar. Certamente que o destino
cuidará de lhe cingir ao coração a amada esposa de outras eras, porém não é
ainda o momento propício. Saiba esperar com paciência e crie méritos para que
esse instante não tarde a lhe bafejar a alma, sedenta de afetos.
Alberto, contudo, estampando profundo espanto na face, como se terrível
imagem lhe saltasse de inopino dos recessos do espírito e denotando aparente e
repentina perda da razão, proferiu, dirigindo-se a Heitor:
— Crápula, o que fizeste de minha amada? Facínora! Minha querida haverá
de habitar o Céu, se a mataste, mas nós iremos juntos para o fogo do inferno!
— Não se desespere—apressou-se Heitor a acalmá-lo. —Tudo isso já
passou e não é mais realidade. Guarde a certeza de que somos seus
companheiros leais e estamos aqui para ajudá-lo. Rejeite, em nome do
Altíssimo, o ignominioso manto do ódio que lhe abate e perdoe o inimigo de
longas eras, hoje transformado e arrependido... Não malsine mais nossos
amargos destinos. Transmutemos o rancor em amor verdadeiro...
Assustado, porém, agarrou-se às minhas mãos e contorcendo-se em
desespero, o azoinado amigo, diante de inusitada crise alucinatória emersa do
passado, suplicou-me, em prantos:
— O assassino me ameaça e irá matar-me também... Socorre-me, por
Deus...
— Nosso companheiro, com justa razão, sente-se intimidado nesta hora de
recordações amargas — continuou Heitor, suspirando profundamente. —
Tratemos de tirá-lo do transe doloroso, antes que desorganize ainda mais o seu
mundo emocional.
Enquanto manipulávamos as energias psicomagnéticas, a fim de deter suas
vivências acerbas, fazendo-o adormecer, o insigne benfeitor, deixando que
pesadas lágrimas lhe vertessem dos olhos, com o semblante submisso e
consternado, enfim, revelou-nos:
— Irmãos, sinto decepcioná-los, mas é forçoso que vocês saibam. Sou eu a
quem ele teme, neste momento, pois vocês estão diante do antigo Inquisidor
Mor do Santo Ofício de Portugal, o Cardeal Nuno da Cunha...
Perante a inesperada revelação, admirávamos a expressão de humildade do
digno seareiro, deixando-nos entrever fatos sobremodo dolosos de seu passado,
não se intimidando diante do nosso juízo que poderia denegrir-

ícaro Redimido - 331


lhe a imagem. As grandes almas não mascaram a verdade e detêm a coragem
suficiente para se diminuírem perante a opinião alheia, quando assim a realidade
se lhes apresenta. Os altaneiros distorcem fatos e se escondem em hipocrisias
apenas para se afigurarem mais do que representam aos olhos dos outros.
Alberto finalmente entrava em sono profundo. Pelo que antevimos, ele ainda
trazia significativos resquícios de ódio de longa data, a serem enxotados da
intimidade consciencial, daí a necessidade de revivenciar o transe doloroso, a fim
de superá-lo, definitivamente, pois a alma, para assumir o domínio da angelitude,
rumo à perfeição, não deve conter a mínima nódoa de inferioridade. Deixamo-lo
recolhido aos refolhos dos próprios sonhos, para se refazer, diante das intensas
paixões afloradas em desalinho, ameaçando desestabilizar-lhe o íntimo.
Era preciso encerrar o proveitoso dia. Heitor, em respeitoso silêncio que não
ousávamos interromper, dirigia o olhar para o alto, estacionando- se ante
surpreendente visão que não lográvamos alcançar. Viva emoção se lhe aflorava da
sensibilidade exaltada. Emanando do coração dúlcidas vibrações, desfazia a alma
em prece de extremado fervor:
— Senhor, no transcurso dos evos, empreendemos maldad.es injustificáveis,
conspurcando-nos a pureza com que nos criaste. Hoje, refeitos, depois de palmilhar a
dor, compreendemos que são a infâmia do egoísmo e a vileza do orgulho, vestindo-nos
de desonradez e opróbrios, que nos fazem paupérrimos em meio a vasta abundância
que prolifera em todos os rincões de Tua Criação.
Caminhantes da vida, filhos do tempo, algemados às correntes do relativismo,
progredimos na trajetória evoluta da vida para descobrir que, assincrônicos com a
Tua Lei, somos trânsfugas do Teu Amor, exigindo-nos urgente correção de rumos.
Hoje compreendemos que nossa jornada é de redenção e, por isso, não Te rogamos
por iméritas comodidades. Não Te pedimos o perdão sem que o esforço ingente de
reforma dos sentimentos nos consubstancie a atitude de renovação. Não Te
suplicamos que nos afastes os inimigos, mas que nos ajudes a transformá-los em
irmãos diletos do coração. Não Te imploramos por felicidades que ainda não
merecemos, porém pela bênção do trabalho, capaz de transmudar nossos errôneos
valores em bens para a Eternidade. Não obsecramos a libertação das dores
necessárias e meritórias, mas que nos auxilies a abraçá-las como um convite para a
corrigenda dos equivocados rumos da insensatez. Não queremos que o desterro nos
abandone o ser, cientes de que somos aqueles que nos banimos do Teu

332 - Gilson T. Freire / Adamastor


Lar pela corruptela da própria vontade. E ousamos pedir-Te que nos inundes com a
nostalgia de Tua afeição, a fim de apressarmos o passo rumo ao Teu coração
magnânimo.
Não pedimos a sabedoria sem antes aprender a tomá-la proveitosa para a
ignorância que prolifera ao nosso redor, nem a alegria sem que saibamos primeiro
distribuí-la aos demais. E não nos dês a benesse do conforto antes que nos
apressemos a reconfortar aqueles que, ao nosso lado, desarvoram-se no desespero.
Não queremos mais o engodo das estradas largas das vacuidades humanas, mas
a trilha estreita do sacrifício e da renúncia, enfrentando as grandes tempestades das
paixões vis que ainda assolam nosso mundo íntimo. Ansiamos por banir os desertos
de insensibilidade que teimam em nos enrijecer as afeições, solapando-nos as
melhores intenções. Almas sedentas de paz, anelamos por drenar, pelo esforço
próprio, os charcos da inferioridade que ainda enlameiam nossas paisagens
interiores. Onde semeaste apenas luzes, por desleixo próprio e desmedido apego ao
egoísmo, cultivamos as ervas daninhas do orgulho e da vaidade.
Sentimo-nos apartados de Ti, Senhor, como se fosse possível ao Pai o abandono
do rebento, sem compreender que vivemos a ilusão do Filho Pródigo, pois os
distanciados somos nós, pela veleidade inconseqüente e hoje sabemos que jamais
divorciaste do nosso degredo. Não incorremos mais no erro de buscar-Te alhures,
nas alturas do incomensurável, pois sabemos que, qual Pai amoroso, estás ao nosso
lado, no plano da vida comum, ombreando com a miséria que ainda viceja em
nossos passos. Cientes de que não podemos fugir da própria penúria, onde
seguramente Te encontras, deixa-nos sangrar os pés nos pedregulhos da maldade
que ainda somos capazes de empreender e enfrentar com boa vontade os acúleos da
incompreensão e da adversidade alheias, a que nos fazemos jus.
Como gotas de orvalho que anseiam por reencontrar o oceano, queremos
abraçar todo o Universo, ser Uno Contigo, sendo uno com a Criação e todos os
seres. Queremos desfazer o labéu de ignomínias que nos distancia de Ti e acolher o
Teu chamado de Amor. Queremos despedaçar a rudeza da improbidade que enodoa
a pureza com que nos fizeste, apossando-nos do poder ilimitado que nos reservas.
Queremos fazer morrer o “eu ” ególatra, eivado de erros milenares, para renascer
como fagulhas de fulgurante amor em Teu seio imaculado.

ícaro Redimido - 333


Deixa-nos embriagar nas paixões desse enleio com que nos acalenta as dores,
nulificando a inferioridade que ainda teima em dominar-nos todas as emoções.
Ajuda-nos a abandonar definitivamente as barreiras do egoísmo que nos separa uns
dos outros e, depois, somente depois, consente-nos consumir nas chamas do Teu puro
Amor.
Descortina-nos os olhos enceguecidos pelos ódios seculares, sintonizando-nos
com as verdades que nos ressoam do Infinito, a fim de que nos embale um sadio e
apressado estímulo de ascensão. Somente conhecendo a enormidade de nossa
indigência espiritual, convencer- nos-emos de que apenas um gigantesco esforço de
superação dos hábitos da inferioridade e um imenso amor pelo bem podem nos fazer
alçar aos altissonantes patamares de Tua Eterna Glória.
Sê para nós o alento de esperança que faz brotar nova aurora depois de toda
noite, que sopra a bonança depois da tempestade e faz renascer a vida após cada
inverno. Sê nosso refugio de paz e nosso recanto de refazimento. Sê o farol nas trevas
que ainda nos assolam os inóspitos campos do espírito. Sê o sustento para nossa
frágil fé, ignorantes de que depositaste em nosso âmago todo o poder da Criação.
Cientes de que Tua Providência supre-nos de todas as necessidades, mesmo antes
que as denotemos, ousamos ainda suplicar-Te, Senhor: que não nos faltem as
bênçãos das oportunidades a fim de desfazer em nós as execráveis tramas das
nefandas paixões que nos divorciam de Teu Amor.
Heitor aquietou-se, pleno de luzes a irradiar-se do peito. Miríade de cintilações
caíam do Infinito quais estrelas fulgurantes, espargindo gotas iridescentes,
inundando-nos de inefável plenitude espiritual. Extasiados diante das emanações
que nos abrilhantavam a alma, despedimo-nos para reencontro em breve, sem que
as últimas ocorrências desfizessem em nós os sentimentos sublimes que nos
irmanavam.
Adelaide e eu, respeitosamente, recorremos ao silêncio, pois não nos cabia
qualquer altercação e, muito menos, condenação ao luminar tutor que nos brindava
com um gesto de significativa hombridade. Já era noite e as estrelas, como
escrínios de diamantes incrustados em veludo negro, faiscavam melodias
sublimes, adornando-nos de paz e convidando-nos ao recolhimento. Devíamos
encerrar o proveitoso trabalho do dia, continuando-o em outra oportunidade.

334 - Gilson T. Freire / Adamastor


Sanando as Chagas do
Passado

“Não ambicioneis coisas altivas mm acomodai-vos à humildade ” Paulo -


Romanos, 12:16

S incera curiosidade nos motivava a continuar ouvindo o enredo


das transatas aventuras de nossos amigos, mas deveríamos aguardar
agora, pacientemente, que Heitor nos convocasse para novo
encontro.
Não tardou para que Adelaide me concitasse a visitar Alberto a fim de nos
ajuizarmos de seu novo estado, após a intensa crise revivencial. Enquanto nos
dirigíamos ao seu encontro, suscitava-lhe algumas considerações:
— Estamos presenciando momentos decisivos na história de nosso irmão e
podemos antever que a sua cirurgia psíquica está por terminar. Chaga de profundo
e arraigado ódio se lhe estampa agora, drenando fel de sórdido rancor dos recessos
da alma, revelando-nos que ainda estava ativo e necessita de ser tratado a fim de
lhe proporcionar verdadeiro alívio. É fato comum na medicina terrena que
auxiliares preparem o enfermo, abrindo-lhe os tecidos até o local mais delicado do
procedimento operatório, quando então o médico principal comparece para atuar
com sua insubstituível habilidade. Somos os assistentes desta cirurgia mental,
Adelaide. Clivamos os planos teciduais de sua alma até o ponto mais profundo.
Agora devemos entregá-lo a Heitor, o cirurgião mestre, a fim de que execute o ato
decisivo que irá de fato propiciar-lhe a cura. Depois, como fazem os ajudantes,
iremos proceder à sutura dos tecidos abertos. Nossa tarefa está chegando ao fim,
minha amiga.

ícaro Redimido - 335


— Deparamo-nos, enfim, com a explicação para a deficiência sexual de sua
última encarnação e visualizamos os reais motivos de sua missão
— deferiu a irmã, compreendendo que razões mais profundas justificam todas
as nossas carências e dores. — Surpreendeu-me igualmente a revelação de Heitor...
— Todos, sem exceção, trazemos do passado iguais desventuras e atos
condenatórios, pois somos espíritos falidos, Adelaide, em busca da reconquista dos
valores divinos depositados nos arcanos do ser e não detemos o direito de julgar
quem quer que seja. O orgulho, o egoísmo e o instinto inato de rebeldia nos
motivam doentiamente nos enredos da vida, dilapidando-nos a pureza de origem,
fazendo de nossas experiências reencarnatórias uma via de redenção para o espírito
imortal. Aceitemos ou não, esta é a realidade incontestável da existência, o que
justifica o seu rol de exigências para conosco. O passado nos macula a todos,
entretanto não podemos vivenciá-lo como um atavismo retendo-nos nas fileiras
primevas da jornada evolutiva. Como traste inútil, deve ser deixado à beira da
estrada, depois de sublimarmos as forças que o geraram, transformando-as em
virtudes divinas para a eternidade...
Alberto, contudo, divisando-nos de longe, apressava-se ao nosso encontro,
interrompendo-nos o colóquio. Irradiando tranqüilidade, entregou-se ao nosso
abraço, reconfortado, para grande alívio nosso. Embora ainda constrito pelas
soturnas delações, estava plenamente cônscio do presente e ciente do caráter
revivencial das emoções que lhe dominaram o cenário íntimo no dia anterior.
Perguntando-nos por Heitor, ansiava pela presença do distinto amigo, pois queria
entabular com ele novos entendimentos com respeito às experiências do passado,
que tão vivamente também o impressionaram. A despeito do funesto pretérito que
juntos compartilharam nas teias do destino, o nobre mentor lhe suscitara os mais
sinceros sentimentos de verdadeira afetividade.
Para nossa alegria, no mesmo dia recebíamos uma mensagem de Heitor
convidando-nos para nova reunião ao entardecer. E no momento aprazado
encontramo-nos, dispostos à continuidade de nossas ricas confabulações.
— Salve, amigos — cumprimentou-nos efusivamente o preletor, abastecendo-
nos de auspiciosos alvitres, sem denotar as canhestras atitudes daqueles que, ao
desvendar-se-lhes as fraquezas, sofrem por se verem submetidos ao julgamento
alheio. — Espero que se tenham refeito das soturnas emoções que lhes
tresmalharam o coração no último dia, inundando-os de pesarosas sensações. Sinto
envolvê-los neste funesto drama, porém um único fim nos leva a chamar de volta
tão amargas

336 - Gilson T. Freire / Adamastor


lembranças: sanear nossas paisagens conscienciais e fazer calar sombrias angústias
que ainda nos premem a alma, a fim de que a luz divina, que em nós moureja,
brilhe com todo o seu fulgor. E para isso contamos com a compreensão e o
prestimoso apoio dos irmãos.
Abraçando fervorosamente Alberto, e sem maiores preâmbulos, passou a relatar-
nos a continuidade dos fatos:
— Os amigos, perfeitamente cientes do vilão de nossa história, haverão de
perdoar-me as imensas mazelas do passado, o qual não posso ocultar sem ferir
minha própria dignidade. Faz-me bem que me vejam como realmente sou, alguém
necessitado de equilíbrio moral e que luta para superar grandes erros, cuja extensão
vocês não podem ainda aquilatar. Continuemos este sórdido enredo em busca de
minha indispensável resipiscência, única via capaz de nos proporcionar a elísia paz
que almejamos.
Ante nossa silenciosa atenção, seguiu o mentor:
— Somente a desencarnação dolorosa foi capaz de deter-me nos graves delitos
praticados em nome de uma fé equivocada, mesmo sabendo que o Evangelho nos
pede o perdão e o amor irrestrito aos inimigos, como solução para todos os males
das relações humanas. A verdade diluía-se- me ante os olhos fixos no orgulho vil e
na crueldade contumaz. Aguardava com a morte minha entrada triunfante nos
páramos celestes, como representante que era do poder divino na Terra e esperava
que o próprio Deus viesse receber-me com pompas, agradecido pelos serviços que
Lhe prestara. Grave equívoco que somente alimentou-me de novas revoltas.
Projetado na inquestionável realidade do Além, onde cada qual encontra a vida que
semeou nas paisagens interiores, atraído fui de fato, como se referiu Alberto, às
furnas abissais a fim de consumir as imensas maldades acumuladas na consciência.
Porém, o injustiçado amigo não me acompanhou na jornada de trevas e dores,
resguardado que se achava pelas forças operosas do Bem, em decorrência de sua
posição de vítima, facultando-lhe méritos para o socorro. Após permanência em
regiões umbralinas purgatoriais, desvairado pelas energias sexuais em desalinho e
ainda sob os olhos atentos de sua amada, terminou por ser recolhido pelos obreiros
do Senhor e cuidado como enfermo em planos de refazimento.
Quanto a mim, surpreendido pela imensa penúria espiritual, fui envolvido por
satânicas entidades e açoitado pelos numerosos desafetos que buscavam vingança,
pois um inimigo jamais se destrói. Era joguete em suas mãos, recebendo de volta,
merecidamente, todos os golpes de

(caro Redimido - 337


crueldade e insensatez que os alvejara em vida. Tanta dor me supliciava a alma que
exorei, desfeito em sincero arrependimento, piedade aos Céus, implorando por
imediato refugio na carne. Todo sacrifício seria pouco para evadir-me das ardentes
chamas que me abrasavam no altar da consciência. Sedento de luz e paz, requisitei
reencarnação em dolorosa condição de escravo. E dentre em breve renasci em terras
brasileiras, em humílima senzala, envergando, destarte, a mesma petulância da qual
me investira no passado. Entretanto, não fui capaz de me subordinar à autoridade
imposta pelos senhorios e não me adaptei à rotina de trabalhos forçados, recebendo
por isso atrozes castigos. O pelourinho reteve-me por diversas vezes, as chibatas
freqüentemente me abriam feridas no dorso e as algemas me acorrentavam
permanentemente, mediante as repetidas tentativas de evasão. Diante da renitente
incorreção, restou-me como uma última punição ser enterrado vivo, com a cabeça
para fora, a fim de que a morte lenta me abrandasse o irredutível caráter. Perante
tamanho suplício, vergastado pelo desespero e acossado ainda pelas enormes culpas
do passado, ao retornar novamente ao Plano Espiritual fui constrangido a lembrar-
me do Amor Divino, que a ninguém abandona, clamando por misericórdia e
oportunidades de regeneração. E o Divino respondeu-me com a bênção do trabalho
dignificante.
Profundamente renovado pelos imanes sofrimentos, pude reassumir o domínio
de minhas conquistas anteriores e, sensibilizado pelo drama da escravidão, passei a
trabalhar ativamente em prol do ideal abolicionista. Identificando-me com os
deserdados da sorte, por ter sido um deles, empenhei-me com fervor na defesa de
seus direitos, iniciando-me verdadeiramente na escola do Evangelho. Após anos de
dedicação à digna tarefa consegui refazer o espírito e retornar às meditações e
estudos teológicos que tanto me apraziam, auxiliado por benfeitores que sabem
tolerar a ignorância e o orgulho daqueles que caminham na retaguarda dos
impositivos morais.
Com a alma transmudada para o Bem e sedenta da luz divina, inteiramente
ciente dos grandes malefícios praticados nas encarnações anteriores, desejei
ardentemente o perdão dos inimigos do passado a fim de angariar novos valores
para o espírito. Identificando no casal Bartolomeu e Paula as maiores vítimas de
minha improbidade, supliquei à Direção Espiritual da vida oportunidade para
empenhar-me em favor de suas felicidades a fim de poder transformá-los em
verdadeiros irmãos e filhos do coração. Este foi o início de uma tarefa à qual passei
a dedicar minha vida na Erraticidade e que se unia à intenção de algo

338 - Gilson T. Freire / Adamastor


realizar em prol da humanidade, a cujo progresso impusera injustificados
obstáculos. Motivado por estes sinceros propósitos pude então me aproximar dos
queridos companheiros, que se achavam socorridos em esferas espirituais de
refazimento.
Alberto, admirando-se dos relatos, rememorava o seu interlúdio reencarnatório,
dando-se conta do cenário ainda efusivo que se lhe aclarava na memória espiritual.
Heitor, agora mais aliviado por penetrar fase mais auspiciosa de seu pretérito,
desanuviava o pesar que lhe descoloria a face e prosseguiu:
— Nesta época, meus queridos, áulicos prepostos do luminar espírito
Leonardo da Vinci arrebanhavam colaboradores para o desempenho de uma
importante tarefa: a conquista da navegação aérea, indispensável ao futuro da
civilização. E Bartolomeu, em decorrência do aquilatado gênio inventivo e suas
bem sucedidas experiências com o balão voador, chamou- lhes a atenção. Ele
perfazia todas as exigências necessárias para o empreendimento, além de se achar
comprometido com a humanidade, em decorrência da investidura nas guerras,
quando se conduzia como o armeiro Zennon, como já vimos. Desta forma ele foi
convidado a trabalhar nas linhas de frente, integrando-se ao corpo de pioneiros da
nova era que se iniciava. Consubstanciando esses interesses, havia o fato de que
Bartolomeu, como vimos, desde cedo se encantara com os ensinamentos de
Arquimedes, cuja ciência se esmerou em aplicar em seus inventos, como vocês
devem se recordar, consorciando-se desde aquela época com os adidos deste
magno espírito. E, recordemos, como certamente não é novidade para vocês, que o
ilustre grego e Leonardo da Vinci são reencarnações do mesmo espírito que
retornou ao proscênio terreno, juntando-se à plêiade de missionários que
compuseram a profícua desenvoltura renascentista, programada para libertar-nos
do subjugo das trevas medievais.
Como todos sabemos, foi Arquimedes, então Leonardo da Vinci, quem fundou
na Terra a ciência do vôo mecanizado. A possibilidade do homem alçar-se às
alturas já o fascinava desde épocas remotas e chegou em vida a idealizar várias
máquinas voadoras, das quais a mais famosa é o Omitóptero. Inspirado nos
pássaros, nunca chegou a ser construído, porém com ele o cientista estabeleceu
verdadeiramente os princípios básicos da aviação. Desta forma, ele foi o
verdadeiro precursor dos estudos aeronáuticos e na Esfera Espiritual continuou a
trabalhar pela implantação de suas idéias, então amadurecidas o suficiente para o
êxito do intento. Reunindo diversos espíritos auxiliares e seguindo a direção

ícaro Redimido - 339


espiritual de nosso Orbe, passou então à execução de seus planos, porém, desta feita
sem que participasse diretamente, permanecendo como o foco central de inspiração
dos trabalhos. Por isso, no Mundo dos Espíritos, como nossos queridos amigos não
ignoram, consideramo-lo o mentor da aeronavegação na Terra, pois dele partiu a
orientação de todas as idéias que sustentaram o seu surpreendente desenvolvimento
em todos os tempos.
Bartolomeu se engajara na tarefa com afinco e vivo entusiasmo, coadunando
sua necessidade de ressarcimento com os interesses de sua aguçada inteligência.
Quanto a mim, por bênção divina, renovado e cônscio dos graves compromissos,
tive minha solicitação atendida, passando a trabalhar na tarefa regeneradora em prol
do antigo inimigo e do progresso humano. Aproximei-me assim do companheiro,
com sincero anseio de redimir minhas pesadas culpas, convencendo-o de minhas
boas intenções. Ciente de que lhe competiria missão de elevado risco nas linhas de
frente do projeto, quis ajudá-lo fervorosamente na concretização dos planos que eu
mesmo obstaculizara seriamente no passado. Desejei torná-lo grande e lutar pela
sua glória entre os homens, fazendo-os reconhecer sua lídima genialidade que eu
havia tratado de denegrir, por indigna inveja. Eu o acompanharia na jornada terrena,
porém do lado de cá, cuidando para que seus desígnios se efetivassem e, mesmo
sem deter qualidades para isso, seria o seu protetor, zelando, não somente pelas
suas idéias, mas também pela sua segurança, resguardando-o dos acidentes que
poderiam ser graves a ponto de lhe impedir a tarefa. Eis, irmãos, como as forças do
destino se armaram para a solução dos dramas que havíamos semeado na
imprevidência do pretérito. E eis como me envolvi na empreitada que competia a
Alberto e para a qual não detinha condições intelectivas.
Unidos nestes propósitos passamos a freqüentar os cursos de adestramento
desenvolvidos pela equipe de Da Vinci, iniciando laço de amizade que nos
encobriria os laivos do passado. Guardo como feliz recordação as vezes que
pudemos, juntos, assistir às preleções do iluminado espírito que, desde os Planos
Elevados, nos comandava, visitando-nos diretamente e dirigindo-nos a palavra a
fim de orientar e incitar-nos ao trabalho. Em meio a grande número de outros
prestimosos companheiros, igualmente convocados para a tarefa, fomos todos
bafejados por relicário de luzes, arregimentando-nos os mais nobres sentimentos de
dedicação e sacrifício em prol do desenvolvimento da ciência.
A irmã Paula, desta feita, não se integrara diretamente a estes planos, pois não
se envolvera com compromissos tais. Não o acompanharia, pois

340 - Gilson T. Freire / Adamastor


Bartolomeu, incorrido em grave perturbação da sexualidade, deveria impor aos
desregramentos renovados hábitos coercivos. Ela renasceria de volta na França,
palco dos novos empreendimentos de Alberto, porém cerca de trinta anos depois,
evitando-se assim que se consorciassem, desenvolvendo sua experiência carnal a
distância segura do companheiro. Não se reservando, contudo, vida matrimonial,
aguardaria mais uma vez para a reconstituição do almejado ninho doméstico,
renunciando aos seus anseios em favor das prementes necessidades do amado
esposo.
Como todos permanecíamos emudecidos, aguardando a continuidade da
estuante narração, Heitor, ainda pleno de entusiasmo, prosseguiu:
— Ele seria investido de uma grave inibição da sexualidade, que inclusive o
auxiliaria decisivamente no sucesso de sua missão. Em decorrência da premente
necessidade de corrigenda neste campo, teria obstaculizada a vazão das forças
sexuais pelas suas vias naturais, desviando todo o seu potencial para a criatividade
intelectiva. Sim, queridos, como era de se esperar, Bartolomeu renasceria, por
sugestão dos prepostos que nos assistiam, incapacitado para as trocas genésicas,
medida providencial imediatamente acatada por ele, ciente que se achava dos
infrenes desvios arregimentados nesta área. A deficiência sexual que o acompanhou
torna- se assim naturalmente compreensível, depois de desveladas suas
irresponsáveis peripécias no mercantilismo dos prazeres carnais, pois recordemos
que Jesus nos recomendou entrar na vida sem os órgãos que nos facilitam a
perdição moral. Sem olvidarmos que, por força da lei de compensação, os excessos
de toda natureza que impomos a um seguimento orgânico terminam por
determinar-lhe natural hipotrofia, uma vez esgotado o estímulo hipertrófico inicial.
Adelaide, titubeante, porém acenando com o contentamento do aluno que se
depara com a confirmação do ensinamento recebido, bafejando- lhe a razão,
acrescentou:
— Aprendi, de fato, que o excesso leva à carência, Lei que se expressa em
qualquer campo fenomênico, seja no universo físico ou no âmbito de manifestações
do comportamento moral. Acabo de receber esta lição e não posso olvidá-la.
Heitor, denotando satisfação, na certeza de que coadunávamos inteiramente com
seus preceitos, seguiu seu interessante relato:
— Ciente de que os grandes erros requerem grandes renúncias, o próprio
Bartolomeu solicitou do Plano Espiritual providências seguras, temeroso que se
achava de incorrer em males ainda maiores, diante dos insopitáveis convites da
sensualidade carnal, semeando novas dificuldades.

ícaro Redimido - 341


Ele ansiava por impor correção às desalinhadas energias sexuais que ainda lhe
causavam inconvenientes perturbações perispirituais, impedindo- lhe o equilíbrio e
a felicidade. Estejamos definitivamente convencidos de que toda atividade, em
qualquer expressão do comportamento, realizada com o propósito de satisfações
egóicas, baseada, porém, na infelicidade alheia, embora nos proporcione irrisórios e
fugazes prazeres, é lesiva para o nosso próprio bem-estar. Por isso, no delicado
campo da sexualidade, se gerimos danos à moral e à probidade alheia, ferindo os
sentimentos daqueles que nos dedicam a sinceridade do afeto, estamos lastimando
de modo grave a nós mesmos. E para males acentuados, fazem-se necessários
remédios amargos. Por isso Bartolomeu aceitou o árduo alvitre da castidade,
imposta por impedimentos biológicos, diante da qual não poderia evadir-se. Assim
compreendemos também por que Jesus nos disse que há eunucos que a si mesmos
se fazem, a fim de ingressarem mais depressa no domínio das virtudes divinas que
nos consubstanciam a alma.
— Que seria do mármore bruto se rejeitasse o martelo que lhe esculpe a beleza
das formas? — disse, como que para mim mesmo.
— Sem dúvida! De igual forma, como arrancar o brilho da gema tosca sem o
atrito do buril? Por isso a carne não atende nunca a aleatórios impulsos, como se o
acaso lhe dominasse as manifestações. Ao alcançarmos uma compreensão mais
dilatada, entendemos que ela é orientada a cumprir sempre com as necessidades do
espírito eterno. Ao renascer, contudo, olvidamos os fatos e o impropério da revolta
passa a dominar-nos, insubordinados, como sempre, diante das aparentemente
incompreensíveis limitações, obstaculizando-nos o exaltado anseio por prazeres—
agregou Heitor, visando a repassar ensinamentos especialmente para Alberto.
Nosso amigo permanecia extasiado, admirando a sábia arquitetura da vida,
plenamente ciente de todo o enredo com que Heitor nos brindava. Nutrindo-se com
as pertinentes informações, remia-se diante da Lei Divina, precavendo-se de seu
indevido juízo e sanando a revolta suscitada pela ignorância, haurindo
surpreendentes benefícios para sua estabilidade emocional. Tínhamos que admitir
os seus elevados méritos por se fazer jus a tamanha dádiva, pois a grande maioria
dos desencarnados passa pelo interstício reencarnatório sem se darem conta de suas
experiências em vidas passadas. Heitor, contudo, continuava:
— Além da inibição sexual, Bartolomeu precisava desvestir o caráter dos
excessos a que se habituara. Receberia um corpo de reduzida expressão

342 • GilsonT. Freire/Adamastor


física, a fim de fazer vergar a renitente altivez. A robustez que vimos em
Zennon, alimentada por excessiva confiança em si mesmo, contraiu-se na pequenez
corpórea e a beleza helênica das formas de Bartolomeu, exploradas de forma
inadequada para a sedução do sexo oposto, investiu- se das desproporções
fisionômicas de Alberto, conformado em cabeça avolumada em relação ao pequeno
corpo e nas orelhas de abano que tanto o incomodavam.
— E entendemos até mesmo que seu cabelo, insistentemente partido ao meio,
era um costume anterior, habituado que se achava em assim pentear a longa
cabeleira—adiu Adelaide, investida das minúcias que as observações femininas lhe
facultavam.
Heitor, esboçando discreto sorriso e perfeitamente ciente das necessidades de
esclarecimentos de nosso amigo, prosseguiu:
— Sua personalidade, desestabilizada por exagerada autoconfiança, alimentada
em outras existências, filha de engrandecida valia de si mesmo, utilizada em prol da
opressão e da maldade, contraiu-se na insegurança e no acanhamento que o
caracterizaram, apesar de ter amealhado grande capacidade intelectual na vivência
monastérica. Compreendemos desta forma como o habilidoso e seguro orador sacro
de então se fez intimidado e temeroso de qualquer apresentação pública,
caracterizando Alberto exatamente no oposto de onde se habituara ao exagero. A
despeito das inibições, ele contaria com meios para sobrepujar as dificuldades e
empreender sua tarefa com sucesso. Recursos extraordinários seriam movidos e
disponibilizados a seu favor para que pudesse superar com êxito essas deficiências
e encontrar o equilíbrio das pulsões psicodinâmicas, convidando-o a acomodar o
espírito nos limites da humildade. Investido destes impositivos de reforma, nosso
amigo ingressou na vida, ciente do seu papel a cumprir na História, falando-lhe alto
no âmago da consciência intuitiva.
— As energias psíquicas também se contraem quando, atingindo os limites de
seus excessos, se desgastam. A retração neste caso comparece como correção
necessária à contenção de novos e intoleráveis desregramentos — ousei agregar,
procurando aliviar Alberto ainda constrangido pelas suas limitações. — Vemos
assim como as forças psicossomáticas se reverberam, por rebote reacionário,
estacionando-se nas antípodas de seus exageros. Na Lei Divina tudo se concatena
em princípios irretorquíveis, Alberto. As carências nos servem de coerção aos
abusos, ensinando-nos a viver na equanimidade e temperança necessárias à saúde
do espírito.

ícaro Redimido - 343


— Nossos amigos, devidamente formados na ciência do psiquismo, entendem
muito bem que a personalidade de nosso amigo se constringiu na exata proporção
de seus excessos — anuiu Heitor com a intenção de fixar ensinamentos valiosos
para todos nós. — Compreendemos que os espíritos capazes, destituídos porém da
correta orientação que a modéstia nos impõe, necessitam dessas inibições, sem as
quais prosseguiriam pelos incautos caminhos da jactância em que se comprazem.
Por isso são recursos da Misericórdia Divina a nosso favor e não mandatos de
castigo. E não podemos olvidar que essas importantes limitações físicas, na
verdade, auxiliaram-no na condução da missão, pois, gerando frustrações,
franquearam mecanismos de compensações, levando-o a preenchê-las com o
inusitado. Ainda que, diante da revolta do orgulho insatisfeito e da contingência de
suas poderosas forças mentais, ele tenha terminado por induzir-se a novas e
errôneas defesas hipertróficas do psiquismo, sucumbindo depois pela intolerável
frustração da vaidade, vergastando- lhe os valores, malbaratados pela insana fuga
da vida.
Admirávamos a riqueza do relato de Heitor, em cujos enredos íamos
encontrando as explicações para todos os entraves e aptidões que havíamos
verificado em Alberto. Adelaide, em respeitoso silêncio, freqüentemente buscava-
me com o olhar percuciente, dando-me a entender que, enfim, compreendia as
motivações ainda inexplicáveis para as desventuras que o amigo narrara em suas
digressões. Todo o roteiro de sua experiência terrena ia se coadunando em perfeita
lógica, na egrégia arquitetura da vida, demonstrando-nos que a Lei Divina nos
entretece a existência com base nos enganos e méritos do passado, favorecendo-nos
com a bênção da oportunidade para o refazimento dos erros e a conquista de valores
genuínos para a eternidade. Não há dores injustificáveis e inúteis, como não há
dons gratuitos, dentro da notável ingerência da Lei, dirigindo com perfeição, nos
recônditos do complexo e amplo conjunto da criação, cada caso em particular, na
exata posição e dimensão de suas necessidades.
Voltando-se agora particularmente para Alberto, Heitor reiterava informes que
lhe valeriam como valiosos recursos curativos, indispensáveis para a cicatrização
das chagas ainda abertas na alma:
— Agora você pode compreender muito bem todo o contexto de sua vida,
Alberto. Nas imprudências vividas no campo da sexualidade, como Bartolomeu,
estão as razões mais profundas para o cerceamento de sua sexualidade, e no ódio
destrutivo de Zennon encontraremos seu impulso de abdicação em prol do bem
comum. E você pode também entender que suas limitações eram recursos em favor
de seu equilíbrio, urgentes e

344 - Gilson T. Freire / Adamastor


indispensáveis necessidades para o seu completo soerguimento. Eis em síntese a
revelação dos planos que antecederam a sua reencarnação. Premências e danos que
foram cuidadosamente programados, e eu me investi da tarefa de ajudar a efetivá-
los em sua vida. Participei ativamente junto de você, em todas as suas peripécias, e
por isso conheço sua história como você mesmo. Fiz-lhe companhia aos arriscados e
solitários vôos, embarcando em suas frágeis máquinas voadoras, torcendo pelo seu
sucesso. Se não lhe pude evitar os acidentes, tudo fiz para minorar seus efeitos.
Chorei com seus fracassos como se fossem meus. E habitei seus sonhos, nutrindo-o
com os projetos que aprendíamos da equipe que nos assistia e que você depois
executava com fidelidade, graças aos dotes de preciosa inteligência e perspicaz
intuição. Não havia recursos para se testar a estabilidade e eficácia dos incipientes
aparelhos voadores e este era o meio de que dispúnhamos para empreender-lhe
ajuda efetiva a fim de se evitar malogros perigosos, dificultando o progresso da
conquista aérea. Contudo, como lhe disse, não venho em busca de reconhecimento,
pois nada de mais fiz que não estivesse computado nos meus imensos débitos para
com você e com o progresso humano.
Após silêncio oportuno, permitindo-nos assimilar as sábias ponderações,
admirando a perfeita lógica do roteiro de redenção que a sabedoria da vida nos
propõe visando unicamente ao nosso bem, prosseguiu o preletor, repassando as
lições ante o crescente interesse de Alberto:
— Destarte, é preciso que você reconheça que a ajuda emanada do Mundo
Espiritual Superior não é exclusivista e não participa de nossas afanadas disputas e
contendas, que objetivam unicamente doentia hegemonia. Como você, toda uma
equipe de espíritos igualmente capazes era objeto de cuidadoso acompanhamento
no desenrolar dos planos, cuja finalidade era dar asas aos homens. Todos se
reuniam durante o sono físico, em memoráveis encontros onde discutiam e
recebiam instruções dos espíritos responsáveis pela condução das idéias, que
posteriormente funcionavam como acertadas intuições, solucionando
adequadamente os naturais empecilhos. Os mais habilitados na arte da mediunidade
onírica iam à frente, sem que tirassem os méritos daqueles que tardavam um pouco
mais a perceber o caminho correto. Dentre estes pioneiros nos recordamos de
George Cayley, o verdadeiro precursor, quem fez de fato o primeiro aeroplano bem
sucedido; Otto Lilienthal que, perseguindo obstinadamente o que antevia em seus
sonhos, perdeu a vida nos seus experimentos; Otávio Chanut, que efetuou centenas
de vôos planados, não tripulados; Samuel Langley, que postulou todos os
indispensáveis

(caro Redimido - 345


princípios físicos da aeronáutica, orientando todos os demais operários do vôo
humano, e dos famosos irmãos Wright, aqueles que empreenderam de fato o
primeiro vôo motorizado. A contribuição de todos esses valorosos companheiros
foi indispensável ao sucesso da empreitada, verdadeiro esforço de equipe em que
os espíritos se consorciavam aos encarnados no objetivo comum, interessados em
angariar benefícios para a humanidade e não ressaltar egóicas ufanias.
Alberto, ao ouvir a referência aos irmãos Wright, emitia destoante onda mental
que a contragosto tentava sofrear, imediatamente percebida por todos nós,
revelando que desajustado sentimento ainda estava ativo e continuava a lhe ferir a
alma. Diante de tamanha dissonância emocional, Heitor se detinha, qual médico
meticuloso que, percebendo o exato local que acomoda uma patologia, ali
concentra sua acendrada atuação. Fazendo ligeira pausa, como a arrebanhar
elementos de persuasão e irradiando certo pesar, continuou a lhe dirigir a palavra,
qual pai diante do filho imaturo:
— Alberto, debele com sofreguidão esses impulsos insopitáveis do orgulho
ferido, antes que o lesem ainda mais. Sei que lhe foi duro golpe ter que ceder as
glórias da primazia aos irmãos norte-americanos, quando o mundo ainda o
ovacionava pela inusitada conquista. Reconheça, contudo, que tal providência lhe
foi valioso medicamento para a exaltada e perigosa vaidade. A altivez é chaga
funesta para a alma e deve ser combatida a qualquer custo, meu amigo. Os irmãos
que o assistem vêm lutando no afã de debelá-la em você desde longa data e é
chegada a hora de fazer a sua parte.
É inquestionável, os Wright voaram primeiro e lhes cabe a prioridade do
invento na ingerência do tempo, mas não na valorização eterna dos préstimos da
Lei, os quais compartilham em igualdade de condições com você. Isto em nada lhe
tira os proventos espirituais, pois ser o primeiro é efêmero valor que interessa
apenas às vaidades humanas e seus doentios nacionalismos separatistas. Aos olhos
da vida, o curto espaço na escala do tempo que lhes separa não é suficiente para
roubar méritos a nenhum de vocês, visto que seus resultados não foram copiados
uns dos outros e todos cumpriram suas missões a contento, respondendo
adequadamente ao apelo do Mundo Espiritual. O que realmente importa é o enorme
bem que vocês proporcionaram à humanidade. E você colaborou decisivamente
para tornar a aviação uma realidade prática, saldando antigo débito para com o
progresso terreno. Eis sua surpreendente conquista e o que realmente lhe diz
respeito! O restante interessa apenas à nossa falaz vaidade, a qual devemos
combater com todas as forças da alma.

346 - Gilson T. Freire / Adamastor


Nossos irmãos americanos, embasados por ambições desmedidas, na mesma
errônea satisfação da jactância, moveram-lhe silenciosa e injustificável guerra de
supremacia, na qual todos, na verdade, foram derrotados. Vendo-se ameaçados pelo
seu inconteste sucesso na Europa, cuja primazia ninguém ousava discutir, pagaram
de fato ao Peyrey para destituí-lo da merecida glória, ocupando-lhe o lugar. Isso
contudo não lhe deve ser motivo de mágoas, porém problemática que a eles
compete. Convém pôr-se de acordo com a Lei, meu amigo, admitindo a lição como
necessária ao seu crescimento espiritual. Deixe que o mundo idolatre os heróis do
mundo, pois Jesus nos recomendou dar a César o que é de César e nos disse que os
glorificados pelos errôneos valores terrenos não o são na apreciação da Lei divina.
As honrarias da Terra nela devem permanecer e nos interessa apenas ser aureolados
por Deus no altar da própria consciência.
Como Alberto emudecia-se, envergonhado diante da realidade, Heitor agregou:
— Ante o espírito ainda imaturo, você se deixou conduzir pelas dores da
mágoa. Refratário aos insistentes convites à modéstia, ver seu nome destituído do
rol de heróis da aviação foi-lhe duro golpe, bem sei. Também me doeu, pois eu
estava empenhado em sua felicidade, mas não podia mancomunar-me com o erro de
ensoberbecer-se de maneira tão desmedida. Sei que você merecia o destaque pelo
imenso esforço empreendido e pela inquestionável genialidade, porém, a lição de
humildade lhe era urgente medicamento para a alma. Nossos prepostos orientaram-
me para dissuadi- lo do injustificável processo judicial que você intencionava mover
contra os irmãos americanos e o comparsa francês, e tratei de fazê-lo logo, pois eles
detinham de fato o direito à primazia e, ademais, estas armas não convêm ao
espírito cristão. Jesus não nos indicou como grave erro pretender sobrepujar os
irmãos de jornada, recomendando-nos como justa a posição de servo e menor de
todos? Sua insistência em sobrepor-se- lhes fê-lo acometer-se de séria lesão
emocional, arremetendo-o à dolorosa depressão, como muito bem já identificaram
os companheiros que o assistem.
Adentremos novamente um pouco nos desconhecidos bastidores da questão, a
fim de esclarecer os fatos sob os olhos da realidade espiritual, embora muito já lhe
tenha sido revelado. Os irmãos Orville e Wilbur Wright são os mesmos Joseph e
Étienne Montgolfier, os franceses pioneiros da aerostação, porém não os
inventores do balão, como já vimos. Renasceram na América empenhados na
continuidade de suas tarefas e participaram juntos com você do mesmo esforço de
equipe.

ícaro Redimido • 347


Como todos que compunham o quadro de trabalhos, compreendiam perfeitamente
que o intento inventivo, na verdade, não lhes pertencia e, vendo ainda que os
espíritos nobres trabalhavam pelo bem comum, renunciando às perigosas vaidades
do destaque pessoal, não se importavam com quem de fato iria merecer a glória da
primazia. Isso não interessava a ninguém, embevecidos que se achavam pelos
enlevos espirituais que os moviam. Leonardo da Vinci é quem detinha os
verdadeiros méritos. Seus servidores semeavam as idéias à espera de que
florescessem em campo fértil, não importasse quem as germinasse primeiro. Não
nos é surpreendente o fato de que vocês, em locais distantes e em tempo
aproximado, tenham desenvolvido trabalho em tudo semelhante? Isto prova que
estas idéias não se restringiam aos seus próprios domínios mentais, elas se
irradiavam da Esfera Espiritual, portanto ninguém as detinha; não há direitos a
supremacias entre os encarnados e suas honrarias são irrisórias e fictícias. Eis a
realidade, meu amigo.
— É verdade, Alberto, aqui, no Mundo Espiritual, quem de fato consideramos
o criador do avião e é venerado como o pai da aeronavegação, com justa razão, é
Leonardo da Vinci. Como muito bem nos esclareceu Heitor, ele abdicou do próprio
nome, cedendo as glórias aos inventores da Terra, fato meritório de nossa
admiração e que caracteriza os grandes espíritos — apressei-me a reforçar as
alegações do mentor, convencendo-o da realidade dos novos fatos que entreteciam
sua história.
Com a intenção de convencer o amigo de seus equívocos, persuadindo- o a
abandonar definitivamente a contenda, Heitor revelou ainda;
— Ademais, convém ainda relembrar-lhe que, ao envergar a personalidade de
Zennon, você se gabou em demasia do título de inventor do canhão, desfrutando
doentia arrogância do afamado epíteto que lhe conferiu destacada posição no
Mundo Espiritual Inferior, permitindo-lhe decisiva atuação na manutenção das
guerras. Nutrindo-se por tanto tempo de tão perigosa elação, explorando o
malfadado atributo no exercício da crueldade, você terminou por compreender os
males que ele lhe causara, ao despertar para as realidades do Espírito. Diante do
fracasso da renúncia sacerdotal e temendo novos danos à consciência eterna, antes
de reencarnar você solicitou, com instância, dos prepostos que o orientavam, a
destituição das glórias do invento do avião, resguardando-o de novas quedas pelo
orgulho. No esquecimento da carne, contudo, você não tolerou a experiência letiva,
resvalando-se para o despenhadeiro da revolta e do amor-próprio ferido, sem que os
valores da simplicidade pudessem amparar-lhe a fragorosa derrota no autocídio.

348 - Gilson T. Freire / Adamastor


Como Alberto se recolhia, demisso, diante da lembrança que, finalmente, tomava-
lhe de assalto a memória, Heitor, comovido, seguiu desfiando agora palavras de
consolo:
— Renegue de vez a irrelevante questão, filho. A visão abrangente da realidade
que a morte nos proporciona capacita-nos a entender as aberrações que praticamos na
vida em defesa de nosso orgulho. Nosso personalismo exclusivista nos estimula a
inúteis contendas e nossos países na Crosta despendem esforços improfícuos na
imposição de hegemonias, excitantes de perigosos chauvinismos que tantos males
têm causado à humanidade. Abandonemos definitivamente tais errôneos propósitos.
Deixemos os homens da Terra entregues às suas intermináveis e indignas discussões
em torno de questões de somenos importância, que não dizem respeito aos valores
genuínos do espírito.
Santos Dumont é um nome que ficará na idolatria de sua nação terrena, porém
você não o deterá por muito tempo. Uma vez que partir para nova aventura na carne,
envergando uma personalidade renovada, sepultará no passado o inventor do 14-Bis,
o ganhador do prêmio Deustch, fatos que não mais lhe interessarão e você não
continuará pleiteando para si tais conquistas. Coisas que o tempo procumbe, meu
amigo. Tratemos nós, pois, de cuidar do amanhã, semeando no presente nossa
felicidade futura, entregando ao pretérito seus males e suas falácias.
Estejamos convencidos, as glórias que mais nos engrandecem não são as do
intelecto e muito menos aquelas que se embasam na superação dos valores alheios,
mas sim as do amor, consubstanciadas na doação de nós mesmos em favor dos
demais, entretecidas pela renúncia à nossa hegemonia. Recordemos que a exaltação
do individualismo egóico pode nos proporcionar alegrias fugazes na Terra, porém é
capaz de nos impor lesivos impulsos hipertróficos ao psiquismo. A satisfação dos
vencedores, quando fundamentada na humilhação dos vencidos, é semente perniciosa
que fará germinar fruto nocivo para quem a granjeou. Os vitoriosos do mundo,
embora sejam ovacionados pelas massas, comumente são envenenados pelas invejas
daqueles que se sentem usurpados em suas pretensões, perpetrando soezes obstáculos
às suas venturas. E, além do mais, estaremos cumprindo com os preceitos
evangélicos se nos empenharmos, com sinceridade, para que os valores da
supremacia beneficiem nossos irmãos americanos, meritórios de nossas melhores
considerações. Jesus nos recomendou, como recurso indispensável à bem-
aventurança, desejar aos outros todo o bem que queremos para nós mesmos. Portanto,
as honrar ias e a importância que pensamos nos ser

ícaro Redimido • 349


indispensáveis à felicidade, aprendamos a cedê-las aos demais, abdicando- nos do
milenar egoísmo.
— Não tolerei o roubo da glória, é verdade. Deixei-me resvalar para o
despenhadeiro do desespero por ato de extremada covardia diante da vergonha que
se me impunha — confessava Alberto entre lágrimas de sincero arrependimento.
— Sim, meu filho, admitir a verdade nos faz bem— redargüiu Heitor.
— Você desafiou as alturas e resistiu aos fortes ventos sem esmorecer,
arriscou-se às mais intrépidas aventuras sem titubear, mas sucumbiu ao orgulho
ferido. A destituição da primazia lhe foi mais grave do que a queda nos telhados do
Trocadero, onde quase morreu. Lembro-me de que, ao lhe fazer companhia nos
solitários vôos, sentia, com você, como a vastidão do céu nos fazia insignificantes,
suscitando-nos sentimentos de providencial humildade. Permutávamos impressões
mudas, porém clamorosas, embevecidos diante do majestoso palco de suas
aventuras. Não havia como renegar os sentimentos de lealdade aos imperativos do
espírito que nos irmanavam. Naqueles páramos solitários era fácil dialogar com
você, pois você julgava estar confabulando consigo mesmo. As promessas de
renúncia ao personalismo eram as mais sinceras possíveis. Você se comprometia a
não haurir benefícios com aquelas surpreendentes máquinas, na certeza absoluta de
que não lhe pertenciam. E, de fato, um grande desprendimento dos valores
monetários lhe embasou a carreira de inventos, mas você não pôde ceder aos
convites da idolatria que as pompas humanas lhe ofertavam. E nossas digressões
não foram o bastante para demovê-lo dos engodos da jactância. Ao experimentar
as glórias do mundo, não mais quis se desvencilhar delas. Olvidava que os
inusitados feitos já conquistados, imorredouros na memória dos povos, eram por
demais surpreendentes e impossíveis a um homem comum realizar, suficientes o
bastante para imortalizá-lo na galeria dos grandes heróis da humanidade e
satisfazer-lhe as vaidades. Porém você não se deu por contente, lastimavelmente.
A conquista da dirigibilidade, que selou de modo convincente a possibilidade do
vôo motorizado, e a primazia do aeroplano autopropelido foram conquistas suas de
inquestionável mérito. E que imenso sucesso foi o “Demoiselle”! Nele você
realmente se esmerou, copiando com perfeição o modelo que os amigos espirituais
lhe ditavam durante o sono físico, com reduzidas necessidades de reajustes
posteriores. Todas as futuras construções da aviação se basearam em suas linhas-
mestras. Mas não lhe bastaram à alma sedenta de eloqüentes notoriedades que o
convencessem dos valores divinos de que não se julgava possuidor.

350 - Gilson T. Freire / Adamastor


O espírito, feito de substância sagrada e herdeiro da ventura eterna, desejaria
viver na felicidade plena das realizações gloriosas, imune a toda e qualquer
frustração ou fracasso. Por isso, aqueles que experimentam os louros das vitórias
não se conformam em descer do pedestal de ilusões em que se comprazem,
sofrendo de modo desmedido qualquer imposição de nivelar-se ao plano comum
dos homens. Qual ícaro, com as asas abrasadas pelas luzes da altivez, você se
precipitou nos abismos da ignomínia. Frustrado, sentindo-se de maneira descabida
um falido, você preferiu refugiar-se na depredação dos tesouros mais nobres que
trazia no espírito, impondo-se o auto-extermínio. Sinto não ter podido evitar o
drama maior que pôs fim à sua aventura terrena, meu amigo, porém lhe asseguro
que tudo fiz para persuadi-lo a mudar o panorama íntimo. Unido ao seu coração,
sentia seus sofrimentos como se fossem meus. Sua decepção diante dos fracassos,
naturais percalços do caminho, era imensa e despropositada porque seu orgulho não
admitia que as falhas pudessem lhe macular o soberbo espírito. Eis em síntese o que
o levou ao suicídio, Alberto. Os companheiros que o assistem já caracterizaram
muito bem essas ocultas causas de seus sofrimentos e não precisamos mais ressaltá-
las aos seus olhos.
Recordo-me das muitas vezes que, rogando fervorosamente aos Céus recursos
suplementares, conseguia persuadi-lo a evadir-se do intento de pôr fim à vida, mas
não alcançava retirá-lo do imenso fosso de infundadas decepções e dores que você
mesmo impunha à alma. Por vezes meu esforço diante de sua sensibilidade exaltada
era tanto que o levava a denotar-me a presença na visão espiritual. Contudo, você
me identificava como o antigo algoz do passado, o assassino cruel, suscitando-lhe
infundados temores e a ilusão de estar sendo perseguido por inimigo invisível,
deixando-o à mercê de julgamentos errôneos por parte dos encarnados que passaram
a considerá-lo com a razão comprometida.
— Pobre de mim, não conseguia sentir suas boas intenções em minhas
desalinhadas percepções — considerou Alberto ainda constrito. — Hoje sei que
somente podia divisar o ódio, e o temor tomava conta de minhas emoções.
Reconheço que não pude suportar a perda da primazia e a vivi como enorme
decepção. Foi uma dor intolerável, porém hoje ainda sofro por ter capitulado diante
de um fato que deveria ter aceitado com hombridade e vivenciado como preciosa
lição de humildade. Vejo que dei guarida a um sofrimento indigno e injustificável, o
que agora me abate ainda mais com a amargura do arrependimento. Ajude-me,
benfeitor, quero soerguer as forças combalidas de minha alma...

ícaro Redimido - 351


— Não se intimide diante da queda—prosseguiu Heitor, com invulgar
sabedoria, — todos nós, sem exceção, subimos e descemos ao longo da linha da
evolução, pois, na verdade somos almas em reconstrução na jornada evolutiva em
busca dos valores divinos que desbaratamos. Neste encalce, a cada incursão na
carne, conseguimos uma ínfima parcela de sucesso, pois a ignorância ainda viceja,
soberana, menoscabando nossas melhores intenções. Por isso nossa romagem
terrena se compõe de pequenos êxitos e grandes fracassos, até que os recursos
empreitados pelo socorro divino nos permitam a inversão de tal realidade. Isso faz
de nossa caminhada não uma escalada contínua e retilínea de ascensão, mas
circunvoluções progressivas, periodicamente entrecortadas por quedas, quando nos
precipitamos nas contrações das dores corretivas e na necessária derrocada dos
errôneos valores acumulados. Em seu conjunto, contudo, o ganho ascensional
termina por predominar sobre os declínios e conseguimos progredir sempre.
Como Zennon, você caiu pelo ódio, apesar das conquistas da habilidade e da
arte. Na pessoa de Bartolomeu, pelo sexo desvirtuado, a despeito dos ganhos no
campo da erudição e do conhecimento, e, como Alberto, sucumbiu pela vaidade
excessiva, embora tenha adquirido patrimônio excedente de inteligência. Em nosso
plano costumamos chamar estas quedas de Mal de Hybris, em referência ao herói
que, na tragédia grega, cai pelo orgulho e arrogância excessivos, mal a que todos
estamos ainda sujeitos na vida e que se cura facilmente com a imposição da
modéstia, da aceitação de nossas limitações e, sobretudo, da valorização do outro
em detrimento de nossas vaidades.
Destarte é forçoso ainda considerarmos que todos os artífices do vôo humano,
na realidade, fracassaram no campo moral, a despeito do grande sucesso
tecnológico. Você pela intolerância à primazia subtraída e os Wright pela ganância
excessiva. Estes, interessados em auferir proventos com o invento, esconderam-no,
aguardando que o aparelho se tornasse viável e aparecessem interessados em
comprar-lhes a patente. Enquanto isso, você fazia questão de tudo revelar aos
interesses do mundo, pois tinha pressa em saldar seus débitos com o progresso.
Você já era rico o bastante e buscava somente a exaltação de seu personalismo, a
fim de compensar as ocultas deficiências no campo da sexualidade frustrada. Por
isso nada vendia e tudo cedia com aparente desinteresse. Você pecou pela vaidade,
aqueles erraram pela cobiça.
Não seja, contudo, imprudente consigo mesmo, impondo-se sofrimentos inúteis
e destruidores dos recursos que a Divindade mobiliza a seu favor.

352 - Gilson T. Freire/Adamastor


Soerga o ânimo abatido e permita-se o paulatino crescimento rumo às lídimas
conquistas do espírito. Não aumente sua dor, que ainda irá reverberar-se como eco
dos erros do passado até que, convertida em força renovadora para o bem, esgotar-se-
á nos abscônditos recessos do inconsciente. Sua paz será fruto de esforço próprio na
aquisição dos valores evangélicos, única porta de acesso à cura definitiva dos males
do orgulho. Humildade, bondade irrestrita e aprendizado constante são seus mais
preciosos medicamentos neste momento. Não aguarde por recursos milagrosos que
não podemos ministrar-lhe, mas faça sua parte, espargindo sementes de esperança e
renovado otimismo.

ícaro Redimido - 353


A Força do Perdão

“Perdoai não sete vezes, mas setenta vezes sete ” Jesus - Mateus, 18:22

A lberto acomodava-se, refazendo o seu panorama íntimo diante


das sábias lições da vida. Menos acabrunhado e interessado em
verter da alma todas as suas dores, animou-se a considerar,
após breve intervalo:
— Agradeço imensamente as recomendações do amigo que tanto me consolam
e o esforço de todos, pois sei que hoje aqui estão reunidos com o único fim de
propiciar-me alívio e equilíbrio. Guardarei suas sábias palavras, utilizando-as para
o meu soerguimento. As verdades que os irmãos me estampam à razão são
inquestionáveis e saberei usá-las para reconforto íntimo, pedindo a Deus que os
tesouros da humildade se incorporem em minha alma. Preciso, porém, superar
outras imensas culpas que me pesam a consciência, pois, como o benfeitor já sabe
e, certamente, contrariando suas orientações, incentivei o uso do avião nas guerras.
Hoje reconheço que não podia ter empreendido tão grave equívoco, revendo o
passado que vocês me ajudaram a reencontrar. As imorredouras lembranças da
época em que investi no aprimoramento do canhão ainda premiam minha
consciência à correção de rumos, e sei que
o amigo muito deve ter feito para dissuadir-me da empreitada, porém não fui
forte o bastante para resistir ao destaque que queria imprimir à própria
personalidade. Percebo que meu infeliz invento de destruição investe-se até hoje
contra mim...
— A guerra o martirizou sobremaneira, bem sei. Era o rompimento de um voto
sagrado que hoje podemos compreender melhor pela visão

354 - Gilson! Freire/Adamastor


de sua história pregressa. Recordo-me ainda que, reunidos sob a égide do
iluminado Da Vinci, comprometíamo-nos a trabalhar em prol da paz,
envidando todos os esforços possíveis para que o extraordinário invento não
servisse tão cedo como arma de combate. Vã esperança! Imbuímo- nos do
nobre intento, porém sabiam nossos orientadores que isso seria impossível.
Apenas nascia e o aeroplano, dadivoso bem do mundo espiritual, ainda
frágil e mal iniciando seus primeiros passos, já era armado para a luta pelo
milenar instinto guerreiro do homem terreno—sombria realidade que a todos
nos diz respeito e não a um ou outro dentre aqueles que conduzem os destinos
da humanidade, na Terra. Com todo o respeito aos nossos irmãos pioneiros,
dos quais não queremos denegrir a imagem e nem menoscabar os preciosos
feitos, todos fracassaram no intento de resguardar a invenção das disposições
belicosas do homem. Em 1909 o Mundo Espiritual assistia com pesar os
Wright venderem a patente do extraordinário veículo para o Exército norte-
americano para a construção do primeiro avião militar da História, traindo a
consciência de modo muito mais grave do que você, que ainda teve fôlego para
investir contra tal intenção, atendendo aos insistentes apelos das culpas já
assoberbadas. Blériot, Voisin e Farman igualmente enriqueceram-se
produzindo aviões para a guerra, enquanto o conde Zepellin cuidava de
aperfeiçoar rapidamente seus dirigíveis para o bombardeio em massa das
cidades inimigas. E todos os governos apressaram-se a armar seus aeroplanos,
subvertendo as nobres finalidades para que foram criados. Suas asas
incorporaram canhões mortíferos e metralhadoras assassinas, e passaram a
transportar criminosas bombas de destruição, ante o olhar pesaroso do Plano
Espiritual Superior e para grande desgosto de Leonardo da Vinci e sua equipe
de trabalhadores. Todos assistiam, constritos, às injustificáveis devastações,
multiplicadas pelo potencial da aviação, embora o fato fosse perfeitamente
previsível. Este é apenas um retrato do homem da Terra e não conseqüência de
suas imprudentes idéias, Alberto, que não fizeram falta para ressaltar o que
sobressaía aos olhos de qualquer um.
— Mas não deixei de contribuir para o equívoco, pobre de mim. Fui o
primeiro a participar de uma parada militar com uma máquina voadora, em
nítida alusão ao seu emprego como arma de combate. Longchamps89 ainda me
dói como fino punhal penetrando-me o coração! Não precisava ter dado tanta
ênfase ao fato, associando meu nome à indigna sugestão.
— Reconhecemos, contudo, seu justificado desespero ao perceber,

89 Rever capítulo 18 e 26 para outros informes pertinentes ao fato.

ícaro Redimido - 355


um pouco tarde, que havia deflagrado a associação do dirigível com o militarismo.
Você, relendo as tristes reminiscências que trazia indeléveis na memória espiritual,
não queria mais se consociar ao esforço bélico do homem. Era o passado que
voltava e você não podia mais tolerá-lo, ciente das atrozes dores vivenciadas nos
horrores das guerras nas zonas umbral inas. Recordo-me de sua comovente carta à
Liga das Nações90 , inútil apelo à empedernida aptidão marcial do homem
inferiorizado, interpretado como fragorosa ingenuidade, porém com imensa
repercussão no Mundo Espiritual, onde surtiu efeitos surpreendentes, suscitando
simpatias a seu favor, apesar de seus equívocos anteriores.
A despeito de tudo e de todos, o avião terminaria, de qualquer modo, sendo
empregado nos enfrentamentos fratricidas, o Plano Superior sabia disso; era
inevitável. Você, porém, acalentado pelos mais sublimes ideais aprendidos das
elevadas entidades que nos assistiam na tarefa, nutriu no coração, sedento da paz
verdadeira, a ilusão de que poderia evitar este seu danoso uso. O propósito se lhe
firmou com tal magnitude que seu sofrimento foi desmedido e inevitável diante do
fracasso do intento. Assomado às outras frustrações, terminou por contribuir para
precipitá- lo na soez queda do auto-extermínio.
— Meus amigos muito já me fizeram ver a respeito destes funestos insucessos.
Como aqui nos crescem as culpas, constrangendo-nos a intolerável remorso!
Gostaria de libertar-me de tamanhas aflições... O arrependimento do suicídio me é
ainda dor insuportável... Gostaria de ocultar-me no sono permanente, iludindo-me
de que não dei guarida a tantos erros... Dizem que na carne esquecemos todos os
males, apagando- os da memória. Retornar ao plano dos homens não seria a única
solução para meus sofrimentos, digno mentor?
— É grave engano pensar que refugiando a consciência na amnésia você estará
assegurado contra os malefícios que reverberam do passado. O pretérito não pode
ser simplesmente olvidado, pois não é mera coletânea de inconsistentes imagens
amealhadas na retina espiritual, é força poderosa a se refletir no presente em forma
de alegria ou dor, conforme o anemesso efetuado. Não podemos deter-lhe o
impulso, atirado qual bólido veloz, porém reorientar sua trajetória, minorando-lhe
os efeitos e cuidando de granjear renovados bens para o futuro.
Exerça a complacência consigo mesmo, admitindo que sua tarefa foi executada a
contento, em que pesem as dificuldades íntimas e o fim

90 No capítulo 26 o assunto foi mencionado com mais detalhes.

356 - Gilson T. Freire / Adamastor


dramático que impôs à vida. Embora nada justificasse seu ato danoso contra si
mesmo, esteja ciente de que o Senhor nos permite as oportunidades de
refazimento e de regeneração, bastando que você siga com boa vontade os
caminhos que os nossos irmãos lhe indicam, agradecendo a Deus pela valiosa
ajuda que eles lhe trazem, pois, reafirmamos, far-lhe-á muito bem à alma o
recolhimento na humildade.
Eu também não fracassei no intento de ajudá-lo? Não pude impedi-lo da
derrocada final e senti-me também um falido. Desesperado, recorri ao socorro
das Esferas mais altas, porém as nobres entidades que nos assistiam o
cumprimento do ideal também tiveram que deixá-lo entregue às reverberações
dos próprios equívocos, pois eram frutos de inadequados sentimentos de
orgulho ferido. A lição se faria por caminhos mais longos e infaustos,
infelizmente. Depois de vê-lo estirado na morte infame, junto com os obreiros
do nosso Plano, ainda tentamos desvencilhá-lo dos restos mortais, sem sucesso.
Você esteve, meu amigo, por largo período atado às vestes orgânicas em
inadequado processo de conservação, nutrindo-o de agonias indescritíveis,
cujas lembranças, graças à Misericórdia Divina, você recolheu nas camadas
mais profundas do inconsciente. Desesperançado, ingressei-me nas caravanas
de socorro que operam no Vale dos Suicidas, certo de que esta seria a sua
direção, aguardando que o tempo o bafejasse com o desprendimento do
espírito. Precisava cumprir a contento a tarefa da qual me incumbira e ansiava
por conquistar o seu perdão para os meus clamorosos e remotos erros. Sua
condição, contudo, fazia-se muito mais grave do que quando entrara na carne e
o alvissareiro futuro de paz que juntos almejáramos se desfazia mediante seu
desastre íntimo.
Sejamos, contudo, fortes o bastante para enfrentar as próprias fraquezas,
reconhecendo-nos carentes da Misericórdia Divina, o que nos fará muito bem à
consciência. E, sobretudo, trabalhemos pela paz e pela vitória do bem,
angariando medicamentos seguros para a superação de todas as nossas dores,
meu amigo. Igualmente não as tenho e muito maiores?
— Vejo agora o quanto lhe devo... Não detenho méritos para receber
tamanha dedicação e amizade. Reconheço que se algo realizei na vida foi
graças à sua sabedoria suplantando minhas incapacidades. A memória se me
aclara e posso ver o passado, identificando-o como o conselheiro fiel e
ponderado, o amigo de todas as horas. Sinto tê-lo guardado tanto tempo como
terrível inimigo a quem devia temer ou liquidar. Mas hoje sei que minhas
parcas conquistas lhe pertencem e não encontro palavras para agradecer-lhe...

ícaro Redimido - 357


— Nada mais fiz do que minha obrigação, Alberto. E não me impute virtudes
que ainda luto por conquistar — respondeu Heitor, com humildade. — Não mereço
a sua gratidão, pois, como lhe falei, visava ao saneamento de meu nefasto passado e
tampouco vim em busca de reconhecimentos que não posso suscitar, mas sim
recolher seu precioso afeto, pois preciso do aprazimento do seu amor para cicatrizar
as profundas feridas que ainda trago na consciência. O pretérito ainda nos macula,
distanciando-nos dos sentimentos verdadeiros de fraternidade...
Neste ponto do desenvolvimento das confabulações, como Heitor silenciasse,
ousei interferir com as informações que detinha, colaborando como convinha:
— É bom que você saiba, Alberto, um pouco mais do que lhe ocorreu após a
sua morte, embora muito já lhe tenhamos revelado. Após largo período de
indescritíveis agonias, jungido ao corpo embalsamado para inadequada veneração
dos homens da Terra, você finalmente foi recolhido às Cavernas do Vale do
Suicídio pelas mãos valorosas de Heitor. Ali você dormiu o sono dos aflitos por
alguns anos, até que seu prestimoso amigo efetuou o seu resgate para nossa colônia,
há pouco tempo, quando iniciamos a tarefa de soerguê-lo para a Vida Espiritual.
Convém inteirar- se de que, neste intervalo, você passou por rápida e frustrada
investida na carne, a fim de alijar morbíficas emanações que lhe envenenavam a
intimidade psicossomática. Sem condições de permanência no útero materno, foi
abortado na primeira oportunidade, contudo o processo lhe foi benéfico recurso
para a pronta recuperação e sem essa providência divina, você ainda estaria preso
nas malhas da inconsciência, meu amigo.
— Sinto pelo dissabor que causei a todos e peço a Deus que os recompense.
Não sou merecedor de tamanha dedicação e amizade — respondeu Alberto, com
submissa inflexão na voz, profundamente sensibilizado diante dos novos informes
que lhe clarificavam a penosa, porém, lídima situação. — Esforçar-me-ei para
corresponder a tamanha dádiva com a reforma sincera dos equivocados
sentimentos...
Alberto se calava em atitude de profícua reflexão. Profundo silêncio reinava no
cenário de nossas altercações. Todos os fatos estavam finalmente esclarecidos e
todas as chagas do passado, estampadas e expostas com clareza no campo cirúrgico
de nosso enfermo. Heitor, o cirurgião principal, auxiliando-nos no delicado ato
operatório da alma, com humildade se imiscuía em seu próprio processo, fazendo-
se ao mesmo tempo alvo de sua operosa ação.
Envolvido em sacrossantas emoções que não ousávamos interromper,

358 - Gilson T. Freire / Adamastor


Heitor, enovelando poderosas energias ectoplasmáticas, transmudou-se
vagarosamente no Cardeal da Cunha, mediante fantástica operação de metamorfose
psicossomática. Ajoelhando-se em uma das pernas, curvou- se diante de Alberto,
proferindo em sensibilizadas palavras:
— Filho, rogo-te o perdão sincero pelos intensos males que causei à tua
felicidade e daquela que te devota inexcedível amor, em passado ignominioso, o
qual desejo soterrar definitivamente sob o beneplácito da Misericórdia Divina.
Com a alma assoberbada pelos insumos do ódio, semeados em tantos séculos de
ignorâncias e crueldades, desejo renovar- me diante daqueles a quem tanto ofendi.
Anseio o valioso prêmio de tua complacência, embora não o mereça de fato, a fim
de alijar da alma o pretérito escabroso, permitindo-me continuar a jornada do
espírito na retaguarda de teus passos.
Alberto, de inopino, domado pelas mesmas portentosas forças que se
irradiavam de Heitor, transformou-se igualmente, vestindo-se do porte garboso de
Bartolomeu. Vertendo da alma sinceros sentimentos que o nimbavam de suave paz,
retorquiu:
— Não posso perdoar-te, magno mentor, pois não encontro mais a ofensa nas
entranhas escuras de meu ser. Hoje sei que foi ilusão senti-lo como o inimigo
atroz, quando eras na verdade apenas o necessário instrumento da Lei, investido de
força corretiva, pois em meus execráveis desmandos eu não merecia melhor
tratamento por parte daqueles a quem ofendia pela indignidade das atitudes.
Alimentado por vaidades imensas, mercadejando ignóbeis sensações carnais e
transportando ainda as mazelas das crueldades cometidas no pretérito de guerras,
que mais poderia esperar da vida e dos companheiros de jornada? Levanta e deixa-
me chamá-lo de meu pai, meu irmão, meu amigo. Deixa que eu me curve diante de
ti, agradecendo-te todo o bem que, de teu amoroso coração, emanaste a meu favor,
sem que eu o merecesse. Devo-te minha vida, minha glória, meu nome...
Envolvidos por diáfana luz, ambos se abraçaram, genuflexos, debulhando
copiosas lágrimas, com as almas desfeitas em sublime amor. Sob o impacto de
poderosas energias divinas, transubstanciavam-se e vimos Alberto luzir pálida
chama no coração. Era o sinal de que finalmente, superando as chagas do ódio que
transportara por longos anos, redimia- se diante de Deus e da própria consciência.
As preciosas tertúlias com Heitor chegavam ao fim, redundando em valorosos
proventos para ambos. Enfim, as agruras do passado encontravam sua cura real na
intimidade consciencial de seus protagonistas,

ícaro Redimido - 359


e as algemas do ódio se convertiam em sacrossantos laços de puro amor, fundindo-
os em verdadeira irmandade.
Se o homem comum conhecesse a força curativa do perdão, apressar- se-ia a
praticá-lo sem restrições, escusando com sinceridade os inimigos, por maiores que
lhes sejam as faltas. Prefere, contudo, alimentar perigosas nódoas de mágoas,
permanecendo na senda da vindita, como se a destruição do inimigo pudesse lhe
reconfortar a sede de justiça. Grande equívoco! Não é possível derruir um oponente
e a infelicidade alheia jamais endossará nossa alegria, pois a Lei somente nos
permite o júbilo na exata medida em que o distribuímos.
Agradecidos ao Senhor, sublime médico de nossas almas, em muda oração,
suplicamos para que o fel do ódio abandone definitivamente o coração humano,
cientes de seus imensos males, capazes de envenenarem os séculos, exigindo-nos
árduos esforços em sua superação. Reservadamente demandamos o exterior, sem
despedir-nos, pois as emoções nos embargavam as palavras. Devíamos deixá-los
para que os sagrados sentimentos que os envolviam operassem o divino milagre da
cura do espírito, quando o amor se desabrocha com seu ilimitado poder dé
regeneração.

360 - Gilson T. Freire / Adamastor


Enfim, o Trabalho

‘Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também. Jesus - João, 5:17

admirável como a Sabedoria Divina transforma o ódio em pura


afetividade, unindo os maiores desafetos em laços de genuína
fraternidade, através do trabalho regenerador e do perdão.
Somos protagonistas de grandes erros e enormes males, porém a Lei é
profícua em corrigi-los na paciente esteira do tempo, convertendo-os em
tesouros para a eternidade. E toma-se compreensível como o amor é
benéfica força operante da alma, capaz não somente de precaver-nos de
enormes dores, como também de sanar todos os prejuízos granjeados na
semeadura de crueldades, sem qualquer possibilidade de fracasso.
Entendíamos, observando nossos amigos e suas agruras nos proscênios terrenos,
como o espírito transporta consigo as mágoas por tempo indeterminado,
aguardando soluções definitivas na senda do Bem. E como o ódio é força
perniciosa que se volta sempre sobre quem o alimenta, lesando-o de forma muito
mais grave do que o alvo de suas intenções. Prolifera como erva daninha em nossa
intimidade psicossomática, roubando-nos o bem-estar e a paz, não nos
abandonando até que as luzes das realizações espirituais a extirpem
verdadeiramente de nossos cenários interiores. Como um pesado grilhão, dificulta-
nos a caminhada evolutiva, cerrando-nos as portas do progresso e postergando
nossa conquista dos lídimos tesouros divinos. Somente a energia curativa do
perdão ou a escola da dor podem saná-lo verdadeiramente, consumindo-se para
isso, bastas vezes, largas porções de nossos destinos. São reflexões que nos

ícaro Redimido - 361


conduzem a conclusões relevantes e nos fazem calar com sofreguidão todo impulso
de crueldade que ainda teima em dirigir-nos os atos e a habitar-nos as intenções, a
fim de nos poupar precioso tempo e dores na própria edificação, rumo às supremas
realizações do espírito.
Heitor se despedira com a promessa de futuro reencontro e não tivemos mais
notícia do magno amigo, embora a saudade antecipadamente já nos acuasse o
coração no desejo de revê-lo em breve. Certamente outras prementes necessidades
o convocavam ao trabalho nos Planos Superiores e não nos competia retê-lo em
nossa colônia, local pouco aprazível para as entidades elevadas. Tampouco nos
proporcionou notícias mais concretas de Catherine, certificando-nos de que não era
ainda o momento ou não era mais pertinente retornar à sua história.
Alberto acomodava-se, finalmente, no máximo equilíbrio possível e suas
exasperadas forças psíquicas deixavam paulatinamente seus inadequados extremos
para oscilarem em busca da normalidade, encontrando a acalmia necessária ao seu
bem-estar. As lições de humildade calaram-lhe fundo na alma, reverberando-se em
sua consciência em forma de ensinamentos imorredouros. A bonança, enfim,
bafejava suas paisagens conscienciais, aplacando-se as tempestades das imensas
culpas e silenciando em definitivo suas acerbas angústias. Sem dúvida que ainda
havia importantes teores vibratórios remanescentes em seus tecidos perispirituais,
entretanto, doravante não lhe perturbariam sobremaneira os passos na Erraticidade
e somente poderiam ser completamente drenados através dos filtros da carne, em
futura reencarnação. A vida exige-nos perfeição nos moldes estabelecidos pelo
Criador, por isso a substância divina que nos compõe não pode subsistir retendo em
suas malhas resíduos de desamor e dissonâncias de fragorosas culpas, compelindo-
nos às provas e expiações na matéria até que as virtudes se nos fixem como
automatismos natos, na precípua aventura de reconstrução de nós mesmos.
Detendo definitivamente o subjugo aos embalos enfermiços da
autodestrutividade ou da supercompensação do eu, nosso amigo calou o
menosprezo a si mesmo, frenando as lamúrias diante dos sofrimentos e inibindo a
afanosa busca de inadequadas exaltações para compensação de sua apoucada
personalidade. Felicitava-o agora a certeza de que suas dores se justificavam
perante a precisa identificação dos graves delitos do passado e o reconhecimento de
que o orgulho lhe fora na vida o grande vilão, responsável por todos os seus
sofrimentos. Não reclamava

362 - Gilson T. Freire / Adamastor


mais direitos imerecidos, assinalando-nos que reingressara, enfim, no caminho
da temperança indispensável à felicidade. Ciente de suas enormes carências
espirituais, perante a nova realidade que vivenciava, desejava, agora, albergar a
mensagem evangélica como norma indispensável para a conquista dos
elevados patamares da evolução.
A alquimia do amor efetuara profundas transformações, não somente em
seu psiquismo mas também em sua aparência externa. Seu perispírito se
restituía completamente, moldando-se em perfeita mistura dos traços
alimentados do passado com os do presente, sanando-lhe a minguada
compleição. Uma nova vestidura exterior passou a lhe enfeitar a alma de
suaves contornos masculinos, harmonizando-lhe as formas, demonstrando- nos
que somos potentes criadores de nós mesmos e temos por herança divina o
direito à beleza, desde que a mereçamos, abdicando-nos de usufruí-la
unicamente para o deleite da vaidade.
Imensamente agradecido à vida, Alberto afinal podia sorrir aliviado,
contagiando-nos com sua singela alegria. Os antigos familiares e amigos
continuavam ausentes, porém novos companheiros se lhe compunham o
séqüito de relações, enriquecendo-o com a benesse de fraternidade sadia,
estimulante de propósitos elevados. Envolvido por sacrossantas motivações,
prosseguia agora seus estudos na escola de educação espiritual que
freqüentava, com renovado entusiasmo, incrementando sobremodo seu
interesse nas questões pertinentes a Deus e à magnitude da criação. Preciosos
livros lhe chegavam às mãos, alimentando-o com o Pão Divino que sacia para
sempre. Era-nos recompensador vê-lo engendrado na correta senda da
regeneração, distanciando-se a cada dia de suas imensas angústias.
Agradecíamos a Jesus pelo êxito de nossa tarefa socorrista, sem pretender
mérito algum no processo, pois sabíamos estar apenas cumprindo com a
operosa vontade divina, da qual somos meros agentes. Nosso objetivo fora
alcançado depois de prolongado, porém profícuo labor. No entanto, faltavam-
lhe ainda conquistas indispensáveis para concretizar, de fato, sua melhora,
encaminhando-o para a alta assistencial. Como auxiliares do processo
cirúrgico, competia-nos agora cerrar-lhe os tecidos abertos na alma,
propiciando-lhe o completo refazimento.
Na terapia orientacional que empreendemos, a interposição de dois recursos
é imperiosa para se efetivar a completa assistência ao enfermo, depois de
atender às suas primeiras necessidades: o trabalho e a instrução. Esta última já
era objeto de seu desvelado interesse, faltando-lhe o

ícaro Redimido - 363


primeiro, indispensável ferramenta de auto-aprimoramento. Com estes dois
estupendos lenimentos do arsenal terapêutico divino, alcançamos a excelsitude das
conquistas evolutivas. O labor, quando realizado com desinteresse em favor do
próximo, converte-se em altruísmo. A instrução, aplicada em benefício da
ignorância alheia, torna-se sabedoria. Compõem assim as duas asas da angelitude,
imprescindíveis em nosso vôo rumo ao infinito. Somente mediante o franco
exercício destas duas poderosas alavancas da evolução é que se finaliza a tarefa
assistencial, quando o assistido se converte em assistente.
O trabalho tornava-se agora para Alberto medicamento imprescindível e era
preciso, sutilmente, incentivá-lo no seu devido uso, permitindo- lhe, porém,
liberdade na escolha dos próprios caminhos, obedecendo aos seus pendores íntimos.
As sutis forças da vida tratariam de conduzi-lo ao campo de expressão de suas
necessidades, competindo-nos apenas afinar a intuição para ouvi-las e orientá-lo,
devidamente, no momento preciso.
A praxiterapia em nosso plano segue molde semelhante à empregada no mundo
carnal, porém, no nível em que estamos, o labor mais importante não é o que
desempenhamos em prol do próprio interesse, porém aquele que realizamos em
benefício de outrem. A fim de efetuarmos a correta tecelagem do panorama mental
distorcido do passado, dissolvendo concreções psíquicas doentias, o serviço deve
atender aos pendores e necessidades de aprimoramentos individuais, mas não à
fome de ganhos pessoais e objetivos puramente egóicos. Não deve servir à
autopromoção da vaidade ou ser veículo de exibicionismo de competência, porém
realização de precípuo benefício humanitário. Deve inserir-se no contexto das
necessidades coletivas e para isso precisa ser especializado em funções
complementares, evitando-se os contraprodutivos entrechoques da competição. O
salário mais valioso para o seu executor é a desagregação de ondas mentais
enfermiças, sanando chagas retidas do pretérito e angariando forças curativas para o
próprio equilíbrio. Recurso indispensável em qualquer tratamento, a laborterapia
consolida ensinamentos e fixa lições, habilitando o espírito para o exercício da vida
no concerto dos povos, junto aos quais caminha na evolução, pois, como
determinou o Senhor, não se pode progredir isoladamente. Aquele que segue à
frente deve sempre se voltar, trabalhando pelos que permanecem na retaguarda, pois
não há felicidade possível para o hedonista nos Páramos Celestes.

364 - Gilson T. Freire / Adamastor


Para a maioria dos encarnados, a faina ainda, é uma imposição da
existência, atendida como obrigação e da qual eles gostariam de evadir- se a
qualquer custo, quando não lhes é móvel de ganâncias injustificáveis. Em
nosso plano, contudo, o serviço é função social, o qual aprendemos a atender
por amor ao bem comum, fazendo-nos peças indispensáveis ao organismo
coletivo e habilitando-nos para a conquista de todas as qualidades necessárias
ao crescimento espiritual.
Em decorrência de seus antigos pendores, Alberto freqüentemente nos
dirigia insistentes pedidos para conhecer nossos veículos voadores, desejoso de
estudar-lhes o mecanismo de funcionamento, convencido de que algo poderia
fazer para lhes impor reformas e melhorias. Ansiava de fato pelo trabalho e
julgava que deveria continuar exercendo sua função no campo da mecânica
arquimediana, onde detinha sua vocação, empenhando-se em servir às
máquinas das quais sentia falta. Minha intuição, contudo, dizia-me fortemente
que este não era o seu caminho, pois podia sentir-lhe o coração vazio das
expressões do afeto, indispensáveis à vivência equilibrada do espírito.
Recomendava-lhe que aguardasse pacientemente, pois o destino lhe
determinaria o roteiro de atividades, o qual não tardaria a se manifestar, desde
que ele estivesse preparado e disposto ao serviço. Competia-lhe por ora
estudar, o que devia fazer com empenho e boa vontade.
A vida fluía vicejando oportunidades, permitindo ao nosso amigo
enriquecer-se de nobilitantes valores culturais, sedimentando-lhe a sabedoria.
Inúmeras vezes entretecia comigo ricas considerações, inteirando-se de
conhecimentos preciosos referentes à dinâmica espiritual da vida, o que lhe
despertava antigos interesses na área da Teologia. As grandes interrogações
que nos premem o existir acossavam-no, excitando- o a salutares perquirições e
pesquisas. E, freqüentemente, encontrava-o admirado diante dos novos
ensinamentos, bafejando-lhe o frio intelecto com as calorosas luzes das
verdades sublimes, que nos aquecem a alma e reconfortam-nos na caminhada
evolutiva. Diluía assim, paulatinamente, os antigos interesses que trazia da
aventura terrena, estendendo os horizontes da mente para além das acanhadas
instâncias de outrora.
Até um dia em que, mencionando-lhe estar atendendo aos “cianóides ”
mostrou-se muito curioso em conhecer esses enfermos, pois ouvira falar que
nossa colônia os albergava em grande número. E não tardou para que,
encontrando-o desocupado, convidasse-o para nos acompanhar em

ícaro Redimido • 365


uma de nossas atividades corriqueiras, a fim de que pudesse se inteirar mais de
perto de nossa rotina de trabalhos.
Chamamos aqui de “cianóides”, os suicidas assistidos em nossa colônia,
motivados pelo vício do tabagismo. Em decorrência da forte cianose91 que se lhes
estampa na configuração perispiritual, emprestando-lhes o característico tom
azulado, receberam essa denominação pelos nossos enfermeiros, freqüentemente
também chamados de “homens azuis", embora nossos superiores relutassem em
adotar tais alcunhas como de uso oficial, sendo de fato cognominados suicidas
tabagistas.
Os fumantes inveterados da Terra desencarnam de fato como autocidas e são
atendidos em nossa colônia, em enfermarias especiais, pois, freqüentemente, são
resgatados do Vale dos Suicidas, onde estagiam por tempo indeterminado, porém
normalmente prolongado. Não há quem duvide de que o estranho hábito de aspirar
inadequados gases tóxicos do tabaco promova graves males ao organismo físico,
impondo-lhe patologias destrutivas e minando-lhe as forças vitais. As doenças
decorrentes do tabagismo são já muito bem descritas pela medicina terrena,
entretanto poucos se dão conta de que tal condição é capaz de atravessar o túmulo,
acarretando sérios danos à vida do espírito na Erraticidade.
Demandamos importante nosocômio de nossa cidade, como sempre
acompanhado de Adelaide e agora de Alberto, que atendia à sua curiosidade em
conhecer os estranhos “homens azuis”. Adentrando a instituição, sempre repleta de
trabalhadores e enfermos, dirigimo-nos para o seu subsolo, onde, em local isolado e
pouco aprazível, localiza-se a “Câmara dos cianóides”. Uma grande sala,
hermeticamente fechada, permitindo reduzida renovação do ar ambiente, acomoda
enorme número deles, trescalando forte e intolerável emanação recendente a
tabaco. Necessita- se munir de suficiente autocontrole, pois aqueles que não se
habituaram ao estranho vício experimentam fortes náuseas em contato com o
ambiente. Adelaide já se achava parcialmente adaptada e eu, como ex-fumante, não
encontrava grande dificuldade no local. Alberto, contudo, mesmo advertido do
incômodo, exprimia sua natural repugnância, ensaiando náuseas incoercíveis.
Máscaras especiais são usadas pelos que assistem estes doentes a fim de não se
contaminarem com suas nocivas exalações, porém não são capazes de completo
isolamento, exigindo-se força de vontade para a permanência no local.
A necessidade de se manter indivíduos enfermos em tão inóspita

91 Termo comum de uso médico que designa a. coloração azulada da pele, principalmente das extremidades,
decorrente da presença de elevados teores de gases carbônicos no sangue.

366 - Gilson T. Freire / Adamastor


atmosfera explica-se pelas exigências patológicas que seus vícios, arregimentados
ao longo da vida, impõem às suas delicadas constituições psicossomáticas.
Habituados à inalação constante dos venenosos insumos do tabaco, encontram como
único e fugaz alívio a permanência em tão insalubre salão, impregnado dos eflúvios
pestilentos emanados por eles mesmos, satisfazendo a doentia dependência
arquivada no perispírito. Aí permanecem por tempo indeterminado, despendendo
valiosas oportunidades da rica vida espiritual, agastados na vivência de aflitivas
sensações, algemados às conseqüências da própria imprevidência. É lamentável e
incompreensível a ignorância do homem moderno, deixar- se dominar desta forma
por tão ignóbil vício, mesmo ciente dos grandes males que infringe à sua
organização.
Dirigindo meu olhar para o passado, envergonhava-me, perante Deus e a própria
consciência, por ter sido um deles, entregando-me a tão aviltante e atoleimado
prazer. A duras penas suplantara a triste condição e sentia-me compelido a
colaborar com os inditosos irmãos da retaguarda, relembrando os benefícios
recebidos no passado. Adelaide, por extremada abnegação, acompanhava-me
diariamente no penoso labor, dominando com boa vontade o intenso mal-estar que o
contato com o repugnante lugar lhe suscitava. Alberto titubeava, porém, não
declinou da intenção inicial, dispondo-se a nos seguir.
Nossa tarefa consistia em aplicar aos enfermos ali reunidos passes de evacuação
miasmática, fazendo-os drenar os remanescentes vibratórios das toxinas do fumo
ainda impregnadas no corpo perispiritual. Todos, desencarnados por patologias
próprias do tabagismo, mal conseguem respirar e, hebetizados, não se dão conta da
própria condição em que se encontram. Muitos suplicam por cigarros, em franco
desespero, enquanto outros, em afligentes ataques de loucura, exigem por eles.
Alguns logram, mediante automática e ingente operação ideoplástica que lhes rouba
preciosas energias psíquicas, mentalizar cigarros, os quais imaginam tragar,
desfrutando enganoso deleite. Todos vivenciam a idéia fixa de fumar como única
solução para suas angústias, triste obsessão da qual demandam longo período para
se desvencilhar, causando sérios prejuízos aos seus progressos espirituais.
Possuídos de lastimável e imensa penúria orgânica, demandam largo período
de recuperação nestas enfermarias especializadas. Os delicados tecidos
pulmonares perispirituais, seriamente lesados pela intoxicação nicotínica,
imprimem-lhes pesadas e aflitivas angústias respiratórias, dignas de pena para
quem os assiste. Alguns mal conseguem conversar,

ícaro Redimido - 367


dominados pela dispnéia e quando o fazem é para suplicar por cigarros, como se
fosse tudo que precisam para se acalmar. Triste condição que nos leva a meditar no
imenso disparate de tão nefasto vício ao qual o homem da Terra se atira com
avidez, sem dar-se conta do tamanho malefício que se está infligindo. O perispírito
é sobremodo sensível às substâncias nocivas e inadequadas que usamos em demasia
quando na carne, fixando-as em forma de aguilhões vibratórios, exigindo-se árduos
e prolongados tratamentos para bani-los. O corpo físico, confeccionado em
adequada robustez, é capaz de maior resistência a este dardejamento químico
aviltante, porém com a morte, os males que nos ocasionam, agravam-se, devido à
tenuidade da tessitura psicossomática, ampliando- se seus assoberbados efeitos
negativos, coagindo o incauto viciado a desequilíbrios e sofrimentos ainda maiores.
Após longos anos de permanência em tais enfermarias, todos ainda continuam
registrando o dano nas malhas perispirituais, imprimindo-as depois no futuro corpo
físico, ao reencarnarem, estabelecendo enfermidades de difícil remissão como a
asma brônquica, as fibroses idiopáticas, os tumores, as pneumonias de repetição e
outras patologias pulmonares crônicas.
Decididamente, em sã consciência, não se pode compreender tamanha estultice
do homem em se comprazer aspirando os nocivos dejetos químicos da combustão
do tabaco. Nossos dirigentes nos informam que o inadequado costume, aprendido
dos indígenas americanos, somente se justifica como hábil mecanismo utilizado,
em seus primórdios, pelos espíritos obsessores dos encarnados, interessados em
lhes sugerirem hábitos nocivos com o firme propósito de lhes imporem prejuízos.
Posteriormente, retornando à vida física, incorporaram o mesmo mal que
imputavam às suas imprevidentes vítimas, perpetuando assim o desregramento que
se transformou em crônico vício social.
Embora a maioria dos tabagistas, após a morte física, encaminhe-se para o Vale
dos Suicidas, muitos permanecem na crosta planetária, jungidos aos encarnados,
aos quais se consorciam em doentio conúbio obsessivo a fim de continuar o sórdido
prazer, induzindo a sua perpetuação, compondo assim outro lamentável panorama
das tristes conseqüências de tão estranho costume.
Observando a infausta condição destes enfermos, não podemos deixar de lançar
um apelo àqueles que ainda residem na carne e que detêm a condição de abandonar
desde já o inadequado hábito, evadindo-se a tempo dos implacáveis sofrimentos
pós-morte. Não há esforço que não compense nosso bem-estar no Mundo
Espiritual, permitindo-nos a aquisição de

368 - Gilson T. Freire / Adamastor


importantes acervos evolutivos, habilitando-nos a vivência no máximo equilíbrio
possível. Contudo, sabemos que muitos não responderão a estes nossos ditames, e
somente aqui os compreenderão, pois a vida na matéria nos inunda, por vezes, da
ilusão de que importa apenas o presente, e as conseqüências de nossos atos no porvir
não nos dizem respeito. Seguramente seus padecimentos serão motivos de imensos,
porém tardios arrependimentos a se refletirem em futuras reencarnações.
À medida que terminávamos os passes de drenagem, os enfermos vertiam
vômica repugnante, mal cheirosa, pela boca e narinas, após acessos de tosse
incoercíveis, requerendo imediata limpeza a fim de não sufocarem com as próprias
secreções. Sem conseguir dar conta de atender a todos, fazíamos o que nos era
possível. Alberto, embora constrangido e expressando aversão diante da triste
condição dos enfermos, presenciava nosso ingente esforço e, timidamente, tomou
nas mãos os apetrechos de limpeza e passou a nos ajudar na difícil empreitada.
Profundamente sensibilizado pelos padecimentos que observava, finalmente o
víamos decidido ao trabalho, pois no dia seguinte me procurou oferecendo-se para a
tarefa, caso o julgássemos em condições para isso. Prontamente recorremos à
direção do hospital, requerendo sua inscrição entre os trabalhadores da instituição,
admirando sua íntima disposição de dedicar- se ao árduo empreendimento. Assim é
que Alberto se fez um auxiliar da enfermaria de ex-tabagistas, sua primeira tarefa no
Mundo Espiritual. Aceitando com boa vontade o singelo, porém difícil labor, aos
poucos foi superando a repugnância que lhe suscitava, vencido pela consternação
diante de tanto sofrimento. E em breve solicitou-me orientação, demonstrando
interesse em estudar com mais detalhes a condição dos pacientes que assistia.
Enfim víamos que o amigo encontrava seu lugar em nossa comunidade de
serviços aos semelhantes e com humildade anuía à imposição do destino, embora
muito distanciado das vocações que ainda estuavam de seus antigos pendores,
advindos de suas últimas experiências terrenas.
Felicitando-o pela iniciativa, dizia-lhe:
— Acreditamos sinceramente que agora você está atendendo realmente às suas
mais prementes necessidades espirituais, Alberto. Sentimos, na verdade, que seu
coração está saturado das máquinas e anseia pelos valores dos sentimentos, por isso
lhe convém fortemente dedicar-se àqueles que precisam mais do que você, como
roteiro seguro de crescimento espiritual. Temos urgência em desenvolver as asas do
espírito, feitas de amor e sabedoria, meu amigo, e somente o empenho em tais
atividades,

ícaro Redimido - 369


desprendendo-nos do secular comodismo, pode nos favorecer o aprimoramento
dos instrumentos espirituais indispensáveis ao vôo para o infinito. O refinamento
de seu mundo emocional é no momento necessidade maior do que o
desenvolvimento de aparelhos que atendam ao conforto humano, embora também
estejam, indiretamente, a serviço do nosso bem-estar espiritual. Por isso ficamos
felizes por vê-lo na senda que nos parece a mais acertada, compreendendo a
extensão dos ensinamentos que lhe chegam.
— É verdade, devo confessar, Adamastor—respondeu, algo aliviado, por estar
se engajando em nossas atividades, devolvendo à colônia os benefícios recebidos.
— Apesar das imensas dificuldades, sinto uma alegria que nunca pude
experimentar na vida. E já estou me habituando ao serviço e encontrando imenso
conforto íntimo, não me permitindo a mínima dúvida de que este é o meu caminho
e minha necessidade maior.
Adelaide congratulava-se comigo ao ver que nosso assistido finalmente iniciava
passos seguros rumo à concretização de sua melhoria e à sua transformação final
em assistente.
A tarefa ensinar-lhe-ia, sobretudo, a valorizar a vida na carne e o respeito pelo
precioso bem que é o corpo físico ao qual devemos nossa evolução. Os suicidas
necessitam desta importante lição, prevenindo-se de futuras recaídas em posteriores
reencarnações; por isso o trabalho junto aos companheiros de igual desdita,
resgatados do mesmo ergástulo de dores de onde proviemos, é nosso mais sagrado
recurso de recuperação e depositário da gratidão às bênçãos que a vida nos
favorece.
As melhoras de Alberto se consolidavam rapidamente a cada dia enquanto nos
entregávamos às tarefas socorristas nas intensas atividades de nossa colônia.
Crescíamos todos, arquivando tesouros para a eternidade, entretecendo sempre
diálogos proveitosos para nós, quando trocávamos observações pertinentes ao
nosso trabalho. Alberto se esmerava na aquisição de conhecimentos que estabilizas-
sem sua reforma e se empenhava no labor, com dedicação, adestrando-se no amor
cristão.
Alimentando salutar entusiasmo, aos poucos se envolvia com os “homens
azuis”, nutrindo-lhes verdadeira afetividade e assistindo-os com desvelado
interesse. Freqüentemente recorria ao nosso modesto conselho em busca de
providências para determinados companheiros que lhe requisitavam recursos
diversos, às vezes, pedidos impossíveis de serem atendidos em benefício de si
mesmos. Em breve o víamos estudando com afinco o assunto que lhe motivava a
atenção a fim de aprimorar-se na tarefa, executando-a acima de suas obrigações. E
freqüentes vezes

370 - Gilson T. Freire / Adamastor


pudemos presenciá-lo levando a passeio um ou outro enfermo, com a devida
permissão para isso, apoiando seus hesitantes passos.
Atestando seu progresso, certa feita procurou-me a fim de que o ajudasse em
algumas questões suscitadas pela sua tarefa. Bastante modificado, com a mente
ventilada por novos e divergentes interesses, questionou-me:
— Adamastor, sei que minha dúvida pode não ter fundamento, porém tenho
aprendido em meus novos estudos que as enfermidades são todas produtos de nós
mesmos, sendo criações mórbidas dos nossos pensamentos e sentimentos,
inadequados à Lei de Deus. Vejo extrema lógica nisso, porém, diante dos cianóides
não há como negar que eles adoeceram gravemente pela introdução de fator externo,
qual seja o fumo. Como compreender o fato, diante das evidências irretorquíveis de
nossos ensinamentos?
— Sua questão realmente procede, meu amigo, e nos faz ver que você tem
avançado em seus estudos, esmerando-se para atender às necessidades da nova
tarefa da melhor maneira possível. Jesus nos afirmou, com efeito, que não é o “que
entra pela boca que adoece o homem, mas o que sai dela, pois o que sai procede do
coração'’92, isto é, provêm dos nossos sentimentos e pensamentos os verdadeiros
agentes etiológicos de toda e qualquer enfermidade. Contudo, não podemos deixar
de entender que existem duas vias para se imputar males a nós mesmos, a via
interna e a externa. A interna responde pelos danos que procedem de nossas
intenções equivocadas, distanciadas do amor, normalmente interpostas pelo ódio.
Esta via responde pela totalidade de nossas doenças naturais. A externa é decorrente
dos malefícios que introduzimos no organismo, como aqueles oriundos dos diversos
vícios a que nos permitimos, inoculando desequilíbrios no nosso delicado mundo
fisiológico. Esta via causa mazelas espúrias, verdadeiros acidentes biológicos ou
doenças artificiais. Na famosa assertiva evangélica, Jesus se referia ao adoecimento
natural, pois o que ingerimos pode nos intoxicar e danificar o corpo físico e
perispiritual, mas é incapaz de nos adoecer a alma. O que procede do espírito, em
forma de pensamentos, sentimentos e atos inadequados é que nos fere de dentro para
fora, representando nossas verdadeiras enfermidades. Portanto poderíamos
completar o ensinamento evangélico, considerando que o que sai da boca nos
adoece e o que entra, desde que impróprio a nossa natureza biológica, acidenta-nos
o organismo, perturbando-lhe o funcionamento.

92 Mateus 15:11

(caro Redimido - 371


Muitos fatores externos que nos prejudicam o equilíbrio orgânico são oriundos
de agentes planetários, ditos naturais, como as irradiações nocivas a que estamos
sujeitos, ou mesmo aqueles produzidos pela ignorância do homem, embora
veiculados pelas suas boas intenções, como por exemplo os pesticidas agrícolas e
as substâncias tóxicas do quimismo moderno. Outros são produtos que sabidamente
nos danificam, mas nos permitimos usar por equivocado deleite ou intenção de
fuga da realidade, como o são o álcool, o fumo e outras drogas. Estes, na verdade,
refletindo o desleixo pelo nosso bem maior que é o corpo físico, interagem com as
intenções doentias de nossa vontade e incorporam-se em nossa intimidade
perispiritual, transformando-se em patologias de caráter misto. Assim tudo se
explica dentro da Lei de Deus, pois se os prejuízos que imputamos aos outros se
revertem contra nós mesmos, os danos que infligimos à própria organização
biológica, comprometendo o seu delicado e preciso metabolismo, se incorporam
também na lei cármica, refletindo-nos como perturbações orgânicas e dores. Não
poderia ser de outro modo, pois do contrário não aprenderíamos a valorizar o
divino santuário físico, indispensável à aquisição dos bens imorredouros da
perfeição. Assim, continuamos colhendo o que semeamos no campo de
experiências da vida.
Alberto deu-se por satisfeito, prosseguindo feliz nas atividades que o
enriqueciam de preciosos recursos para a plena recuperação. Finalmente ele
compreendia que a felicidade não consiste meramente na conquista de glórias
efêmeras ou na construção de patamares onde projetar a própria personalidade,
porém nas atividades mais simples da vida, desde que as realizemos embasados por
verdadeiro amor ao semelhante. Aí estabeleceu nosso Criador os reais fundamentos
da beatitude e a única possibilidade de engrandecimento do espírito para a Vida
Maior.
Vendo-o perfeitamente integrado à tarefa de enfermeiro, perguntava- me o que
pensariam os encarnados se soubessem que o herói do passado, feito símbolo
glorioso de uma nação, convertera-se em modesto auxiliar de enfermagem,
prestando serviços humílimos de higiene. Certamente negar-me-iam qualquer
crédito à informação, julgando-a absurda e inverídica, pois a veriam
completamente inadequada a um homem de gênio, a quem imputariam tarefas da
maior importância e posição de destaque no mundo do Além. Pois saibam,
definitivamente, que as vias do espírito não se fazem pelos refulgentes caminhos
humanos e as portas do progresso se fecham àquele que se veste de fatuidades com
a intenção de adentrar os elevados patamares da vida. A evolução caminha para a

372 - Gilson T. Freire / Adamastor


santidade e a verdadeira genialidade somente se conquista com a perfeita comunhão
com o Pensamento Divino, exigindo do aprendiz de sabedoria o domínio da ciência
do amor. Os atributos que nos glorificam não são os do intelectualismo, dado à
produção de comodidades ou erudição, mas os da bondade, conquistados com a
prática do altruísmo, pois somente os sentimentos moralmente elevados podem nos
confeccionar alegrias perenes e proporcionar inexaurível potência de ascensão para a
alma.
Compreendam ainda que a morte muda a perspectiva com a qual enxergamos a
vida e, ansiando pela paz verdadeira, abdicamo-nos facilmente dos transientes títulos
que a Terra nos confere, pois nada é capaz de suprimir em nós o anelo pela ventura
espiritual. No serviço desinteressado ao semelhante, Alberto encontrara o caminho
para suplantar suas carências e conquistar o pretendido bem-estar íntimo. E o seguia
com enorme alegria. Eis a realidade.
O tempo escoava, proporcionando-nos valedouro roteiro de ganhos espirituais,
quando fato surpreendente interrompia nossa rotina de trabalhos. A velha Europa, na
crosta, iniciava grave conflito armado entre suas nações, prevendo-se a
desencarnação em massa de grande número de pessoas por espaço de alguns anos. O
Plano Espiritual se preparava para o devido socorro aos inditosos guerreiros,
requisitando trabalhadores em todas as instâncias possíveis. Não sabíamos ainda que
a contenda se tornaria o mais desastroso embate a que o mundo já assistira, a
Segunda Grande Guerra, mas todos podíamos pressentir as mefíticas vibrações que
infectavam a atmosfera planetária, eivando-a de funestos presságios.
Nossos alto-falantes proferiam melancólicos apelos, convocando os homens de
bem para o trabalho socorrista em auxílio à nossa desvalida casa planetária e aos
infelizes irmãos de jornada. Como guardava ainda profundos liames com o velho
continente, onde se demoravam corações queridos do passado, apressei-me a
responder ao chamado. Mantivera também extensa participação na medicina de
guerra no pretérito e devia atender à minha consciência ainda necessitada de
ressarcimento de passado culposo. Suspendia assim meus trabalhos em Portais do
Vale e me preparava para a partida imediatamente. Devia despedir-me, com pesar,
dos queridos amigos, especialmente de Adelaide e Alberto, com quem ainda
compartilhava o lar. Afeiçoara-me a ambos de modo significativo, lamentando
sobremodo deixá-los, porém a gravidade do momento me convocava a urgente
atividade. A amiga de todas as horas, sem titubear, manifestou o ardente desejo de
acompanhar-me e, satisfazendo todas as

ícaro Redimido - 373


condições mínimas exigidas para a tarefa, imediatamente se integrou à equipe que
se formava.
Alberto, recebendo a notícia, mostrou-se pesaroso, pois se nos afeiçoara como
verdadeiro irmão e nos tinha como únicos amigos com quem compartilhar sua vida
íntima. Por alguns dias andou sorumbático e taciturno, apesar de nossa promessa de
breve retorno e de que seria encaminhado para compartilhar a moradia com outros
companheiros em quem poderia igualmente confiar. Porém, dentro em pouco, fui
surpreendido pelo seu insistente pedido, desejando ardentemente nos seguir na
empreitada, ainda que preocupado em encontrar outro serviçal para substituí-lo na
Câmara dos Cianóides. Argumentava veementemente que, por conhecer muito bem
o francês e se servir com certa facilidade do inglês, poderia contribuir como
intérprete nas enfermarias de socorro, além de ajudar nos cuidados básicos aos
recém-desencarnados. Acorremos então a solicitar a anuência de nossos dirigentes,
pois Alberto, embora já engajado no serviço, até então se encontrava sob cuidados
e não albergava ainda o título de assistente.
Para a nossa alegria, o seu pedido fora prontamente aceito, fazendo- nos
recordar que realmente sua participação mais expressiva neste empreendimento lhe
era bastante conveniente em decorrência de seu comprometimento com as guerras
no passado, sendo-lhe importante oportunidade para o refazimento da consciência
denegrida.
Enfim, a Misericórdia divina o convocava ao ressarcimento do pretéri:o, ainda
no Plano do Espírito, com o concurso do trabalho e da renúncia, convencendo-nos
de que, no educandário da vida, a Lei sabe dispensar o sufrágio da dor e prescindir
do guante da coerção, para a redenção do espírito que desperta para a prática do
bem verdadeiro e se entrega, confiante, às diretrizes do Evangelho.

374 - Gilson T. Freire/ Adamastor


Nos Bastidores da Guerra

“E ouvireis falar de guerras e rumores de guerras; não


vos perturbeis, porque forçoso é que assim
aconteça; mas ainda não é o fim. ”
Jesus - Mateus, 24:6

niciamos prontamente os adestramentos necessários à assistência

I espiritual na guerra, tendo em vista que Alberto seria promovido a


auxiliar da desencarnação, ajudando-me diretamente na tarefa de
recolher os espíritos nos campos de batalhas, desde que se adaptasse ao
penoso mister, que exige perfeito controle das emoções diante da visão
de corpos estraçalhados e de espíritos impregnados de pavor. Nosso
amigo, no entanto, subordinado à imensa boa-vontade de servir, submetia-
se com entusiasmo aos treinamentos, suplantando, em pouco tempo, a
completa falta de aptidão para o inusitado empreendimento.
Nossa colônia reunia grande número de companheiros dispostos à empreitada,
pois habituamo-nos a atender espíritos em pânico, vivenciando intensas agonias de
mortes traumáticas e portando corpos desfigurados, tomando-nos especialmente
indicados para o serviço assistencial de guerra. Mentores dos Planos Superiores
compareciam freqüentemente para nos instruir, reunindo-nos em imensas
assembléias, durante os poucos dias em que nos preparávamos para a jornada.
Traziam-nos os princípios irrevogáveis que deveriam nortear nossa atividade,
afirmando-nos, peremptoriamente, em iluminadas preleções, que não se precisava
mais de louvor à pátria, porém de amor ilimitado à Humanidade, sendo
indispensável romper os restritos liames que ainda nos prendiam à nação

ícaro Redimido - 375


terrena de origem, transformando-nos em verdadeiros filantropos. Não haveria
amigos para defender e inimigos para atacar, porém companheiros em desespero
para acudir, não nos convindo perder de vista que, em qualquer enfrentamento
bélico, todos estão enganados e a ninguém compete dar maior parcela de razão.
Nossas armas seriam as da bondade e da caridade cristã, e nosso eficaz escudo, o
pensamento constantemente em prece, sob a intenção do Bem, insígnias sublimes
que nos fariam soldados do Cristo e recursos indispensáveis ao bom êxito da tarefa.
Qualquer vítima seria meritória de iguais cuidados, não importando sua
nacionalidade, pois do lado de cá da vida não há adversários ou aliados, sequer
estrangeiros ou compatriotas, porém apenas irmãos em contendas, merecedores de
iguais cuidados. Seria imperioso impedir que a indignação se nos convertesse em
raiva, diante das barbáries presenciadas, pois, se nos deixássemos contaminar por
estas baixas emoções, sintonizar-nos-íamos com a hostilidade, expondo-nos aos
intensos choques vibracionais do ódio que domina em tais ambientes, perturbando-
nos a ponto de nos incapacitar para o serviço. Competia-nos assim, como irmãos de
uma realidade maior da vida, compreender e aceitar o homem como um ignorante
dos princípios que regem a criação, infeliz pelo próprio mal que é capaz de praticar,
deixando à Lei a tarefa de julgá-lo pelos seus inconseqüentes atos.
Seriamos vergados pelo clamor de muitas dores, agastados pelos atritos de
imensas rivalidades e abatidos pelo dardejar altissonante da furia e do desespero,
porém que permanecêssemos atentos e fiéis ao Bem, pois invisíveis entidades
angelicais estariam ao nosso lado, sustentando-nos a fragilidade da alma, trazendo-
nos o beneplácito do Amor Divino para suporte de nossas fadigas e consolo das
desditas humanas. Enfim, altruísmo sincero deveria nortear nosso trabalho, acima
de toda adversidade, combatendo-nos a acídia que, peremptória, assolar-nos-ia o
ânimo. Trabalharíamos sobretudo para aplacar nos corações dos homens o
potencial de crueldade, semeando sentimentos de paz, concórdia e fraternidade.
Estes eram os lemas indispensáveis à nossa missão e que deveríamos seguir com
profundo e abnegado amor cristão.
A guerra já havia começado e assumia proporções nunca vistas, assustando-nos
a todos diante dos relatos daqueles que a presenciavam de perto. Era-nos penoso
ver o homem terreno, qual criança rebelde e imprevidente, atear fogo ao próprio
lar, precioso bem que a Misericórdia Divina nos concede, em nome de orgulhos
injustificáveis e ambições desmesuradas. A Direção Espiritual do planeta se
apressava para socorrê- lo, convocando todos os trabalhadores disponíveis. Portais
do Vale, assim

376 - Gilson! Freire /Adamastor


como outras colônias, desdobrava-se para atender aos apelos do Alto e todo
colaborador que satisfazia às condições mínimas exigidas deveria ser
aproveitado, devido à grande extensão das necessidades, pois milhares de
espíritos recém-desencarnados jaziam nos campos de batalhas à espera de
urgente socorro e aguardava-se ainda o desenlace da ordem de dezenas de
milhões de pessoas, entre civis e militares, até o fim do conflito. Nossa missão,
conforme os treinamentos recebidos, consistiria no recolhimento desses
desencarnados, pois a maioria deles não podia estar entregue ao relento,
assistindo à decomposição do corpo físico, por não guardarem deméritos para
tais sofrimentos.
Grande curiosidade nos assaltava com respeito aos motivos de tão
descomunal conflagração e, embora se aventassem causas imediatas para a sua
irrupção, nossos superiores nos advertiam que sua verdadeira origem residia
nos orgulhos nacionalistas, aviltados por intoleráveis interesses chauvinistas.
Os sentimentos humanos, ainda inferiorizados, acumulam discórdias
insopitáveis ao longo da caminhada evolutiva, desabando em enormes
tormentas de ódios, gerando-se a necessidade da deflagração de tais conflitos
expurgatórios. Por isso, esses grandes embates são, comumente, o resultado de
hostilidades seculares, que somente podem ser resolvidas pelo caminho mais
afanoso, ou seja, o enfretamento fratricida. Embora seja a solução mais difícil
e dolorosa, na luta, os inimigos, ainda que a contragosto, conhecem-se,
aproximam suas culturas e acabam por se fundirem na dor que ambos
disseminam, terminando na compreensão e no apaziguamento de suas
rivalidades. Fato que nos atesta a excelsitude da Lei divina, capaz de retirar,
ainda que do Mal, realizações imorredouras para o Bem.
Além dessas causas ocultas, todo conflito humano nunca se limita à
dimensão terrena, mas se estende ao outro lado da vida, envolvendo ativamente
o Mundo Espiritual, tanto as Esferas Superiores quanto os domínios do Mal.
Enquanto os Planos Iluminados, ainda que chorando a desgraça dos irmãos
encarnados, cuidam de lhes amparar a desdita, socorrendo-lhes as
necessidades, as regiões tormentosas se consorciam à maldade, tratando de
auferir proventos da crueldade e da vingança nas quais se comprazem.
Envolvem-se ativamente no conflito, assumindo partido nas disputas humanas,
como se integrassem nações da dimensão terrena, obedecendo aos mesmos
propósitos que movem o homem na carne. E, muitas das vezes, as querelas
terrenas não são mais do que prolongamentos de atritos que, na verdade,
iniciam-se nestas esferas. Embora não se possa eximir os encarnados de sua
parcela de culpa e de suas equivocadas intenções, a participação das Trevas é
decisiva em tais

ícaro Redimido -3 77
embates, seja excitando-os ou servindo-se deles para execução de nefandos
propósitos. Porém, de qualquer forma, são os sentimentos ainda barbarizados dos
homens que os afinam com os Planos Umbralinos, mantendo-se-lhes o estreito
conúbio de ignóbeis escopos.
Não podemos olvidar ainda, como já consideramos que, assim como na Terra,
os desencarnados se organizam em grandes comunidades, onde mantêm os
costumes e os idiomas aprendidos na jornada da carne, configurando no espaço
espiritual os mesmos limites políticos dos países de origem, em um nível
dimensional denominado Espaço das nações. As rivalidades oriundas do Plano
Carnal atravessam a barreira da morte e prosseguem nestas regiões, pois os
homens, embora envergando nova roupagem, continuam portando os mesmos
sentimentos que os moviam na romagem física. Somente em dimensões muito
elevadas é que são suplantados esses nacionalismos, unindo-se os espíritos pelos
imperativos do amor sublimado, aplacando-se todas as desavenças, e onde os
óbices da comunicação falada são superados pelos intercâmbios puramente mentais.
O Mundo Espiritual inferior, destarte, ainda é dominado por grandes impérios
regidos por precária ética de relações, fixada na involuída moral dos tempos
medievais, na qual ainda se estacionam. Comandados por poderosas entidades
chamadas de Dragões, compõem exércitos infernais, ávidos de conquistas e práticas
de atrocidades. E também deflagram guerras, disputando territórios de influências e
massas humanas para exploração de seus baixos interesses. Dirigentes da Terra,
imprevidentes e gananciosos, pensando agir em nome de suas próprias ambições,
na verdade, afinados com esses Dragões das Sombras, respondem às suas
ignominiosas sugestões, excitando-se nos instintos aguerridos, fazendo da casa
planetária uma arena de lutas sangrentas nos dois planos da vida.
Nossos orientadores informavam que a Segunda Grande Guerra Mundial, na
verdade, era apenas uma continuação da primeira, que prosseguira sem solução na
Esfera Espiritual. Grande número de espíritos, desencarnados no conflito anterior,
reverberava no Além os ódios acumulados, ansiando por revide, acicatando os
compatriotas terrenos à vingança. Menoscabados pelo incontido orgulho ferido e
distanciados da real compreensão da vida, ainda que habitantes do Plano do
Espírito, não se conformavam com a humilhante derrota. Estimulavam pretensões
colonialistas nos companheiros da retaguarda a fim de satisfazerem seus propósitos
de dominação e crescimento desmedido. Assim, germânicos, franceses e ingleses
continuavam praticando hostilidades desde o Mundo do Além, demonstrando-nos
que a guerra, na verdade, era motivada

378 - GilsonT. Freire/ Adamastor


pelos inadequados interesses de hegemonia dos povos de ambos os lados da vida,
refletindo a natureza inferior e orgulhosa do homem onde quer que se encontre.
Embora se possa ainda imputar nomes responsáveis pela deflagração e condução do
grande conflito, suas atuações jamais teriam sido possíveis sem a corresponde
ganância de seus dirigidos, tanto na dimensão física quanto na espiritual, em perfeita
sintonia com seus nefandos propósitos. Desta maneira, dever-se-ia atribuir tamanha
hecatombe à própria natureza inferior e rebelde do espírito humano e sua
belicosidade, oriunda da instintividade animal que ainda o domina, no Mundo Carnal
ou fora dele.
Os soviéticos, com seu descomunal império, bravateando domínios para além de
suas incontidas fronteiras, eram outra ameaça que intimidava os gananciosos, na
carne ou fora dela, obstaculizando-lhes as imoderadas ambições. A supremacia da
raça perfeita, a imposição de uma nova ordem social ao mundo e o extermínio
contumaz e cruel das populações consideradas inferiores eram apenas motivações
secundárias, atrativos engodos, alvitrados pelos espíritos trevosos, sedentos de
execrandas vinditas e ávidos do exercício de infrenes crueldades. O bolchevismo
judaico, pretensamente consorciado às aspirações comunistas, completava o errôneo
pretexto, tornando-se alvo das injustificáveis maldades que somente as inimizades
do passado e a própria natureza humana podem explicar.
A situação havia se agravado sobremaneira desde o aparente fim da Primeira
Grande Guerra e o Plano Espiritual inferior se agitava assustadoramente,
irrompendo mórbidos e febricitantes sentimentos que somente seriam apaziguados
mediante a disseminação de destruições em massa. O momento era um dos mais
graves já vivenciados pela casa planetária, que ameaçava ruir sob o guante de
equivocados déspotas, apregoando falaciosas promessas. Previa-se o envolvimento
de cerca de trinta nações da Terra, segundo as estimativas de nossos dirigentes. Os
mais pessimistas prenunciavam o fim do mundo, contudo, estávamos confiantes e
esperançosos no seu apaziguamento, pois o Plano Espiritual Superior envidava
imensos esforços para minorar ao máximo a grande tragédia. E, seguros de que a
Lei conduz os nossos destinos, sabíamos que não seria permitido ao homem
ultrapassar os limites impostos por sua própria maldade.
Encarnados e desencarnados, consorciados em interesses comuns e alimentados
por inimizades seculares, deflagraram assim o conflito, motivado por disputa de
supremacia entre os potentados dos dois planos. Por isso, a guerra estendeu seus
embates para além dos horizontes

ícaro Redimido- 379


humanos, ampliando-se a crueldade, alçada às raias do absurdo. Enquanto os
encarnados, armados de todos os modos possíveis, estraçalhavam seus corpos em
imensa loucura coletiva, hostes de espíritos barbarizados digladiavam-se também
nas regiões trevosas, juntando-se-lhes aos horrendos enfrentamentos, utilizando
armamentos semelhantes e ferindo- se mutuamente como se ainda participassem
das mesmas sensações da carne. A Segunda Grande Guerra tornou-se, deste modo,
um despautério fratricida de dimensões inimagináveis pelo historiador terreno,
fazendo- nos ver que, tanto no nível individual quanto no coletivo, continua o
homem a disputar quem é o maior, principal causa de todas as suas desditas, uma
vez que tais errôneas intenções levam à destruição do semelhante, espargindo
desgraças ao seu derredor e semeando infortúnios em seu destino.
Túrbidas nuvens de vibrações negativas enovelavam-se na atmosfera e nas
regiões espirituais imediatas à crosta, disseminando agruras e comprometendo todo
o equilíbrio do Orbe, contaminando desde os ambientes físicos até os seus campos
magnéticos e espirituais. Contudo, os serviços assistenciais se intensificavam
sobremaneira, coibindo a extensão do mal. Desde as Esferas Superiores que
comandam a humanidade, providenciavam-se recursos salvacionistas, solvendo as
necessidades imediatas de todos os envolvidos, em ambas as dimensões, a fim de
que a civilização não sofressse graves danos e o planeta pudesse prosseguir
cumprindo sua missão no cortejo da evolução.
O trabalho urgia e nossos treinamentos não podiam se estender por muito tempo.
Os menos hábeis no socorro espiritual deveriam seguir os mais experientes, fazendo
do serviço ativo a real prática do aprendizado. Alberto, apesar da imensa boa
vontade, ainda não demonstrava plena capacidade para a tarefa, porém
comprometia-me a vigiar o seu desempenho, acompanhando-o de perto e
interrompendo sua atuação se a julgasse inadequada a si mesmo ou aos nossos
assistidos.
Em breve partíamos rumo ao Velho Mundo, embarcando em um grande hospital
itinerante. Alberto consumia-se em imensa curiosidade a respeito dos mecanismos
de navegação da inusitada casa voadora. Pouco podia esclarecer-lhe, porém
informava-lhe estarmos utilizando processo desconhecido dos homens, pois não
trafegamos na mesma dimensão espacial do mundo físico e usamos propulsão de
natureza eletromagnética. Viajaríamos por lugares de grande turbulência vibratória e
necessitávamos de proteção para atravessá-los. Como nossos corações se achassem
constritos e carregados de infaustos presságios, éramos envolvidos por coral de
harmônicas vozes femininas, enovelando melodias sublimes que

380 - Gilson T. Freire / Adamastor


nos enlevavam e nos resguardavam dos imensos choques fluídicos que nos
atingiam.
Chegando ao continente europeu, nosso hospital se estabeleceu em região
espiritual correspondente a Portugal a fim de nos afastar um pouco dos focos de
conflitos situados ao Norte. A atmosfera, contudo, era angustiante, refletindo as
ominosas emanações mentais dos encarnados, submetidos ao doloroso transe
expiatório. Os vários grupos de tarefeiros, apoiados pelo hospital de Portais do
Vale, deveriam montar acampamentos móveis nas diversas regiões onde se
desenvolviam as frentes de batalha e dirigimo-nos imediatamente para a capital
francesa, onde estabeleceríamos nosso posto socorrista.
Alberto pisava o solo francês depois de largos anos, emocionando-se sobremodo
ao contato com o palco de suas antigas aventuras terrenas. A Torre Eiffel esboçava-
se ao longe, entre brumas entristecidas, despertando- nos nostálgicos sentimentos.
Espantado diante das profundas mudanças, admirava-se dos novos modelos de
automóveis e perscrutava os céus em busca dos aeroplanos modernos, tomado por
imensa e incontida curiosidade, atendendo seus antigos interesses. E, como eu, ele
desejava rever logo os locais que lhe marcaram as últimas experiências de vida,
buscar pelos antigos amigos, porém as condições eram sobremaneira adversas e não
mais correspondiam à época em que ali vivêramos e, tampouco, havia tempo para
breve deleite, pois a premência do serviço nos concitava à atuação imediata.
A Igreja de Saint Philippe de Roule foi indicada para nos sediar em seu
ambiente vibracional. Em complexa operação, técnicos de nossa colônia armaram
uma rede de proteção vibratória em torno do espaço ocupado pelo alojamento, a fim
de se resguardar o máximo possível de paz e tranqüilidade, necessárias aos
desencarnados em estado de intenso trauma e que ali seriam acolhidos.
Segundo nos informavam, a guerra já assumia proporções assustadoras,
atingindo a península dos Balcãs, a fronteira da França, os Países Baixos, o Canal
da Mancha e o Norte da África, onde se travavam sangrentos combates. E o conflito
não tardaria a se estender pela Ásia até a Oceania, pois previa-se que logo os
soviéticos e os japoneses se somariam aos embates. Os homens então haviam feito
evoluir as armas de guerras, aumentando sobremaneira seu poderio destruidor. Os
alemães estavam em vias de dominar toda a Europa, em quase um ano de guerra, e
agora seus inimigos começavam a se organizar para a reconquista dos territórios
perdidos. O momento de fato era penoso e grave.
Os campos de batalha espalhados por diversas regiões já contavam

ícaro Redimido - 381


com grande número de desencarnados, retidos em seus restos mortais, aguardando a
caridade cristã para se desvencilharem de suas tristes condições. Os trabalhadores
de nosso Plano não alcançavam atender a todos e, exaustos, desdobravam-se no
penoso mister, requerendo ajuda sem demora. Formadas as equipes de socorro,
demandamos à região de Dunquerque, ao norte da França, envolvida em
horripilante luta. Milhares de soldados ingleses e franceses estavam sendo acuados
em direção à costa e cruelmente dizimados pelo poderoso exército alemão.
Informavam- nos que providências urgentes estavam sendo adotadas para que o
comando germânico aplacasse a intenção de exterminar em massa os Aliados,
permitindo a evacuação do que restara de suas tropas para a Grã-Bretanha, evitando
que o conflito assumisse proporções inadequadas e o domínio da Alemanha se
estabelecesse de forma irreversível e desastrosa no panorama geopolítico dos
encarnados.
Atiramo-nos à tarefa, somando nosso pequeno esforço aos grupos que já
atendiam ativamente no local. A movimentação em nosso Plano era intensa e por
todos os lados víamos espíritos transportando desencarnados, a maioria em grave
estado, a fim de acomodá-los onde fosse possível. À medida que nos
aproximávamos da linha de frente, as vibrações reverberavam-se em nosso íntimo
como ondas de choque, exigindo-nos grande controle das emoções. Turba de
trânsfugas, abatidos e estropiados, cruzavam por nós, em grande número, desfeitos
em desespero, configurando ainda os severos traumas físicos que os levaram à
desencarnação, compondo verdadeiro exército de flagelados, enquanto outros,
tomados por loucuras coletivas, corriam esbaforidos sem rumos em meio a grande
algazarra de espíritos inferiores. O céu brumoso, pejado de altos teores de aflições,
assustava-nos sobremaneira, como prenunciando descomunal tormenta.
Guardávamos a sensação de estar em frágil embarcação em mar revolto, agitado
por terrível borrasca. O horizonte distante se vestia de luto, ferido por violentos
relâmpagos magnéticos, refletindo o acúmulo do imenso ódio humano. O teor das
vibrações morbíficas no ambiente era de tal monta que as fazia precipitarem,
caindo sobre nós sob a forma de pequenas floculações gríseas, quais cinzas
vulcânicas, desfazendo-se ao nosso contato, sem causar-nos, aparentemente,
sensação tátil alguma. Imperceptíveis aos olhos dos encarnados e das entidades
barbarizadas, são capazes, porém, de veicular funestos sentimentos nos espíritos
que se lhes afinam e podem se acumular perigosamente na organização perispiritual
dos trabalhadores ainda incautos, envenenando-os paulatinamente e incapacitando-
os para o serviço.

382 - Gilson T. Freire / Adamastor


Ao atingirmos o local dos renhidos entrechoques, o cenário se tornava ainda
mais aterrador. A soturna paisagem desfeita em ruínas se locupletava com o
ribombar dos canhões, os estampidos dos fuzis e a matraca das metralhadoras,
compondo patética sinfonia de lágrimas, furor e pânico, acompanhada pelo coro de
alaridos estridulosos dos espíritos inferiores que se compraziam com a algazarra,
ovacionando a morte e a destruição. Bandos de sicários desencarnados, trajando
truanescas vestimentas, brandindo armas medievais e blasonando vitupérios,
lutavam ao lado dos combatentes humanos, estendendo seus ferozes embates para o
outro lado da vida. Matilhas de ferozes cães adestrados, atiçados pelos guerreiros
das Trevas contra os oponentes, compunham por vezes o horripilante espetáculo.
Cenas pavorosas de extensões jamais vistas fixavam-se em nossas retinas espirituais
de forma imorredoura. Em meio ao assombro, elevávamos permanentemente nosso
pensamento em súplica ao Altíssimo para que viesse em socorro da casa planetária,
transformada em báratro colossal.
Se os homens pudessem divisar esses tétricos quadros que preenchem o
invisível, acompanhando-os no gládio da morte, aterrorizados evadir- se-iam
apressadamente, reconhecendo, na sua extensão, o grande erro da guerra, acorrendo
a abraçar os inimigos, em busca dos tesouros divinos da paz e da concórdia.
E logo o longo e agudo silvo das bombas atiradas de aviões chamava a atenção
de Alberto, que, dirigindo seus olhos para o alto, via pela primeira vez os modernos
aeroplanos, transmudados em aves de rapina, pondo ovos de fogo, arrancando-lhe
lágrimas de estupenda comoção. Ali estavam suas máquinas diletas, seus inocentes e
frágeis aparelhos de deleite, convertidos em águias de aço, feitas para derruir e
assassinar. Atônito diante do espetáculo, precisei deslocá-lo a fim de demovê-lo da
perplexidade em que se estacava.
Com o coração em pranto, atiramo-nos ao trabalho, em meio à bátega de
projéteis e explosões, a fim de cumprir nossa missão. Assustado, Alberto seguia-me
de perto, enquanto Adelaide permanecia no alojamento de Saint Philippe, cuidando
dos desencarnados que não paravam de chegar.
Deixávamos que o fragor dos prélios se esvaísse para depois atendermos como
possível aos que tombavam em combate. Muitas vezes fazíamos dormir os
atormentados, a fim de recolhê-los mais tarde, providenciando o desprendimento
espiritual daqueles que já guardavam condições para isso, entregando-os aos
padioleiros para serem atendidos nas enfermarias. Muitos agonizavam, gementes e
aflitos, poucos catam na inconsciência, enquanto outros, vivenciando relutante
desdobramento, em pleno desespero

ícaro Redimido - 383


diante do próprio corpo retalhado, procuravam reunir suas partes estraçalhadas sem
compreenderem o que realmente se passava. Os mais afoitos e imbuídos de imenso
ódio, mesmo sem suas vestes orgânicas, prosseguiam combatendo, como se ainda
continuassem vivos na carne, engalfinhados em luta corpo a corpo, sem se darem
conta de que estavam no outro lado da vida e sem que tombassem diante dos
sucessivos e inúteis golpes mutuamente desferidos. Por estes, nada podíamos fazer
até que seus furores se aplacassem na exaustão e, cessando a emancipação
transitória, caíssem na inconsciência, terminando o inusitado transe.
Por muitos dias trabalhamos intensamente em meio à tempestade de sangue, até
que a fuga precipitada dos sobreviventes para a Inglaterra acalmou a situação em
Dunquerque. A espetacular e bem dirigida operação de resgate contou com
significativa ajuda do Plano Espiritual, minorando os imediatos efeitos de uma
atroz e desproporcional devastação. Então os arredores de Paris passaram a sofrer
intensos bombardeios e para lá dirigimos nossos esforços socorristas. Não tardou,
porém, para que a França capitulasse diante do poderio alemão, temerosa de se ver
cruelmente dizimada pelo inimigo. Assistimos com pesar aos germânicos
marcharem sobre Paris, desmembrando o país, obrigados, contudo, a olvidar nossas
origens e calar, a todo custo, os inadequados sentimentos nacionalistas que ainda
teimavam viger em nossas almas. Pesava-nos presenciar o povo constrito,
acomodado na desesperança, abatido pelo orgulho ferido, porém era forçoso
adaptar o coração à nova realidade em que nos encontrávamos, pois como
tarefeiros espirituais não nos convinha mais tomar partido nas disputas terrenas.
Sem demora os exércitos precipitaram-se, em grande azáfama, buscando novas
direções, seguindo as incontidas ambições de seus protagonistas. A saga
sanguinária seguia outros rumos, dizimando cidades e ignorando os valores da
comiseração, como se os povos que julgavam inferiores fossem meros bandos de
animais. Mediante volitação, excursionávamos pelos campos, acompanhando os
movimentos dos embates, à cata dos recém-desencarnados, o que nos fazia
recordar a lenda das Walquírias, o mito que numa época povoou a lenda nórdica,
que apregoava que mulheres, em corcéis alados, compareciam nos locais de
batalha, recolhendo os guerreiros mortos, levando-os para o Walhala, a morada dos
deuses, fato que atesta que o imaginário humano sempre refletiu as verdades do
Invisível.
Por longo tempo trabalhamos nas frentes de combate, recolhendo
desencarnados. O penoso trabalho nos exigia o desprendimento das comodidades,
contudo, vibrações sublimes, advindas dos Planos

384 - Gilson T. Freire /Adamastor


Superiores, nos sustentavam a jornada, confeccionando-nos o bem-estar
indispensável ao espírito. E não estávamos sós, pois, no esforço comum, fazíamos
muitos amigos e, apoiando-nos uns aos outros, superávamos as dificuldades da
árdua, porém necessária tarefa.
Alberto auxiliava-me como podia, com boa vontade, sempre ao meu lado,
fortalecendo-se na penosa atividade. Muitas vezes o via desalentado ou assustado,
porém, quando os seus olhos se cruzavam com os meus, aquietava-se e se mantinha
equilibrado, revelando que se prestava ao serviço, superando sua acídia e sua
completa falta de habilidade para a tarefa. Por vezes ainda o via marejando
lágrimas ocultas e lançava-lhe o apoio do meu pensamento, ciente de suas
fragilidades, pedindo a Deus para que ele não se combalisse diante das imensas
dificuldades. Paulatinamente se adaptava ao hostil ambiente, auxiliando os
necessitados com denodo, expondo-se ao entrechoque das energias aviltantes com
disposição para servir, embora muitas vezes alquebrado pelas exigências do penosc
mister. Distanciava-se a cada dia de seu imenso interesse pelas máquinas,
sobejando a alma vazia com genuínos anseios cristãos. Adestrando-se na
capacidade de amar, convertia suas forças depressivas em renovadas energias para
a felicidade, refazendo o equilíbrio desfeito pelo suicídio. Convertido em
verdadeiro enfermeiro de guerra, em quase nada nos fazia mais recordar o genial
“Inventor” dos tempos passados. O poderoso “Senhor dos Canhões”, o magno
“General das Trevas”, que fora no pretérito jazia prosternado, silenciado pelas
lições de humildade que a vida lhe conferira. E a dedicação ao sofrimento alheio
cuidava de lhe modelar agora a alma, matizando-a com os adornos dos sentimentos
nobres, necessários à confecção da angelitude.
Por onde íamos, o panorama era o mesmo, multiplicando-se a cada dia o
infortúnio, a dor e o ódio. Prantos e lamúrias imanes, reverberando nos míseros
corações em apressado trânsito entre os dois mundos, feria- nos profundamente a
sensibilidade, diante de tamanhas e inúteis barbáries. Paisagens em escombros,
povoadas por corpos esquartejados e almas dementadas, esboçando-se quais
tétricos e esquálidos fantasmas em meio às brumas vibracionais, turvavam-nos as
retinas espirituais com plangentes e dantescas imagens, arrancando-nos
indescritível melancolia, exigindo- nos imenso esforço para não nos abater o
ânimo, obstaculizando em definitivo nossa capacidade de atuar em benefício da
triste situação. Por vezes, diante da enormidade da tragédia humana que se nos
estampava com toda sua dura realidade, nossos passos fraquejavam e, aspirando por
paz, ansiávamos por evadirmo-nos rapidamente do hostil meio em que nos
encontrávamos, porém, ao pensar nos inditosos espíritos, presos aos

ícaro Redimido - 385


cadáveres desfeitos e nos exaustos companheiros de trabalho, convencíamo- nos
da importância de continuar na tarefa que precisava de alguém para ser cumprida.
O que mais nos constrangia no serviço de guerra era observar os tétricos
quadros espirituais que se seguiam ao furor das batalhas. Quando o terrível
matraquear das metralhadoras e o ribombar assustador dos canhões se calavam,
bramidos de dores prorrompiam o funesto silêncio que se estampava, propalados
pelos espíritos em pânico. Em meio às brumas carregadas do cheiro de sangue
misturado ao odor da pólvora queimada, figuras hediondas saíam das sombras,
completando a triste desolação dos escombros. Eram hordas de vampiros,
verdadeiros bandos de hienas que, invadindo o palco de atrocidades em busca das
presas fáceis, refestelavam-se em macabro banquete de sangue, saqueando com
avidez os restos fluídicos dos corpos dilacerados, sem que nada pudéssemos fazer
em defesa das imprevidentes, vítimas devido ao alto teor de ódio conspurcando-
lhes as sacrossantas energias vitais. Passavam como um vendaval destruidor,
deixando uma tropilha de esquálidos molambos agonizantes, em meio às
emanações de fúria e pesar inenarráveis. Mas não era tudo, logo que a algazarra
desses cérberos afoitos e ferinos se acalmava, uma segunda leva de monstros
latrinários, freqüentemente isolados, transportando exóticas e hórridas zoantropias
que nos faziam recordar diabólicas figuras mitológicas, percorriam, calmamente, os
campos de sangue, em busca do que restara dos remanescentes cadavéricos.
Enquanto churdas aves negras, assemelhando-se a enormes abutres, pousavam
sobre os corpos abandonados, à procura dos eflúvios vitais das carnes em adiantado
processo de decomposição, multiplicando sobremaneira as aflições das chacinas
humanas, envolvendo-as em burel de extensões jamais presenciadas.
Uma agonia infinda invadia nossos corações, exigindo-nos imenso esforço para
manter o pensamento conectado às Esferas Superiores, suplicando pelos
beneplácitos do Bem a fim de apaziguar nossa sofrida humanidade, renitente no
ódio e na revolta, fazendo jus a tal desdita pelo distanciamento da Lei divina do
amor. Compreendíamos o imenso equívoco da guerra, inútil e descabida solução
para as contendas humanas, servindo apenas para multiplicar suas aflições e nutrir
o futuro com dissabores muito maiores do que aqueles que os levam aos embates da
morte. Contudo, mesmo em meio às emanações da ira e das aflições, sentíamos que
invisíveis seres angelicais nos sustentavam a jornada, amparando-nos os passos
frágeis e vacilantes, única alegria que podíamos nutrir no penoso serviço.

386 - Gilson T. Freire / Adamastor


Freqüentemente penetrávamos as ruínas, em meio a bombardeios, a fim de
recolher os desencarnados, ainda presos aos escombros, quase sempre civis em
desespero, infelizes e aparentemente inocentes, no meio do grave conflito.
Construções seculares ruíam sob os bombardeios assassinos, de ambos os lados
da guerra, que não poupavam hospitais, escolas, crianças, mulheres ou idosos,
matando apenas para produzir efeitos morais, disseminando a revolta nas
regiões inimigas, minguando- lhes a confiança em suas forças, na esperança de
que capitulassem ante o poderio do atacante.
De outras feitas vasculhávamos as ferragens retorcidas de aeronaves
abatidas, socorrendo pilotos sobressaltados, nos interlúdios da morte, sem
compreenderem o que se passava ou completamente inconscientes, fortemente
presos aos restos mortais carbonizados ou intensamente desfeitos em
fragmentos irreconhecíveis, como único refugio no transe doloroso.
Assustados, diante do poderio armamentista do homem, rogávamos
constantemente a Deus para que o sanguinário prélio encontrasse o seu fim,
mas os dias se seguiam, longos e terríveis, agônicos e inditosos, amontoando
dores e amarguras, acumulando ruínas e somando ódios, sem que muito
pudéssemos fazer em prol do imensurável drama terreno.
Convém esclarecer certas particularidades da tarefa que desempenhávamos,
a fim de que o estudioso da ciência do espírito se inteire dos fenômenos que
regem a criação em seus variados planos de manifestação, ainda que no venda
vai desenfreado das grandes paixões humanas. Diferentemente do óbito por
enfermidades ou outros acidentes, o espírito que desencarna submetido a
condição de violência, no intenso fragor da luta, desencadeia um quadro aqui
denominado cacotanásia. As pungentes emoções do ódio, vivenciadas no
trágico momento, o elevado índice de catecolaminas circulantes no universo
orgânico, configurando as reações de pavor e fuga, o entrechoque das funestas
vibrações antagônicas do ambiente e a presença dos espíritos inferiores
atuantes no adverso cenário de hostilidades projetam o recém-desencarnado em
um nicho fluídico diferenciado, configurando particularidades que interessam
àqueles que o assistem.
Como ocorre na maioria dos desenlaces dos homens de mediana evolução
moral, de modo geral eles não podem ser removidos, de imediato, de seus
restos mortais, requerendo tempo variável para isso, em torno de dois a cinco
dias. Espíritos profundamente apegados à matéria e inseguros nos primeiros
passos no Além, podem demandar semanas até que se libertem das vestes
carnais, e permanecem nos campos de batalhas em

ícaro Redimido - 387


estado de completa inconsciência, até que possam ser recolhidos pelos obreiros da
desencarnação, os obiatras.
Muitos que tombam em pleno combate, movidos por intenso ódio, comumente
não se dão conta .da condição em que se encontram e prosseguem como mortos-
vivos, na Dimensão do Espírito, sem ressentirem a morte física. Continuam
perseguindo o inimigo e atracando-se com ele em acirrado prélio. Estes participam,
na realidade, de conhecido fenômeno de desdobramento e ainda não se
desvencilharam, em definitivo, de seus restos mortais. Uma vez que se lhes
desvanece o ímpeto de agressão, caem em imenso torpor, sendo reconduzidos
automaticamente ao corpo físico e, sem conseguir despertá-lo para a continuidade
da vida e sem entender o que sucede, entram em desesperante pesadelo. Assim
permanecem até que se lhes sobrevenha a inconsciência da morte, quando então
iniciam, de fato, as etapas naturais da desencarnação. Alguns, na impossibilidade de
recorrerem à defesa do sono profundo, candidatam-se à ovoidização, em
decorrência da adversa condição em que se encontram, se não recebem socorro
eficaz. Daí a importância do socorro espiritual em auxílio a esses infelizes. A
indução do estado de inconsciência é premente necessidade para estes espíritos,
resguardando-os destes graves quadros, representando as maiores dificuldades para
os obiatras, pois as condições adversas de trabalho e a intensa agitação que os
domina dificultam sobremodo a necessária concentração de energias hipnóticas
para o êxito do socorro.
Os aflitos que sucumbem abruptamente em meio a descomunal susto, como
aqueles surpreendidos por uma explosão, também vivenciam idêntica condição de
emancipação transitória e permanecem tentando recolher o corpo esfacelado, sem
compreender o que se passa, em estado de completa demência, requerendo o
mesmo tipo de urgente assistência. O pavor, sobrepondo-se ao ódio, no entanto,
faculta-lhes facilitado mergulho na inconsciência da morte, demonstrando-nos que a
crueldade é força coerciva de ação caótica, desalinhando-nos o mundo íntimo com
muito maior intensidade.
Em muitas ocasiões, principalmente quando o desencarnante detém méritos que
lhe facultem um desprendimento ameno, o óbito traumático requer o chamado túnel
de escape, fenômeno pouco conhecido que convém descrevermos com detalhes.
Trata-se de um verdadeiro canal de transição, entretecido em matéria ideoplástica,
que envolve o espírito em processo de desprendimento, usado para isolá-lo do
ambiente dimensional terreno e projetá-lo, de imediato, na realidade espiritual.
Muitos daqueles que experimentaram o fenômeno de “quase-morte”, conseguindo
retornar ao

388 - Gilson T. Freire / Adamastor


corpo físico no último instante, quando ainda é possível reassumir a vida,
puderam visualizá-lo, descrito como um longo e escuro tubo, quase sempre
intensamente iluminado em sua abertura final, para onde são atraídos,
favorecendo-se o traspasse com agradável sensação de plenitude espiritual.
Comumente parentes e amigos de nosso Plano os aguardam do outro lado,
projetando-os, em decorrência da diferenciada arquitetura espacial que sustém
o mundo do Além, em lugar aparentemente distante de onde se encontram. Os
obiatras são adestrados na confecção deste adutor de emancipação,
proporcionando grande lenitivo aos traspasses excessivamente traumáticos.
Vítimas presas em meio aos escombros de bombardeios, às vezes consumidas
por chamas, atadas às ferragens de aeronaves ou sufocadas no interior de
embarcações levadas a pique, devido aos elevados cabedais morais
conquistados no exercício da bondade encontram neste recurso eficiente meio
para um desenlace confortável. Infelizmente, porém, poucos eram os que
guardavam condição para utilizá- lo com proveito.
Muitos combatentes, excessivamente arraigados ao ódio, ao se
desvencilharem de seus restos mortais, são arrebatados para o contingente de
desencarnados que servem aos exércitos umbralinos, sem que se possa impedi-
los. Compõem exóticos batalhões de soldados esquálidos, estropiados e
dementados, comandados por hábeis generais das Trevas, que seguem
guerreando nas regiões infernais, aprazendo-se em assustar os incautos, excitar
a destruição e fazer prisioneiros aqueles que se lhes afinam pelos laços da
crueldade, escravizando-os para fins indignos.
E outros há que, após o traspasse, buscam seus algozes ainda encarnados,
quando podem identificá-los, jungindo-se-lhes ao plano mental, em mordaz e
prolongado assédio obsessivo. Transformados em verdugos, continuam, desde
o Plano do Espírito, a urdidura de vinditas, perpetuando o duelo, até que o
amor os transforme em amigos, na incansável esteira do destino.
Vemos, assim, de forma inquestionável, que a guerra continua no nosso
mundo com idênticos requintes de barbaridades e fundamentada nos mesmos
injustificáveis interesses da Terra, perpetuando a destruição, espargindo dores
e prosseguindo a semeadura de infelicidades.
A guerra no Além guarda, portanto, íntima correspondência com a praticada
no Plano Carnal, comumente se lhe associa aos propósitos e, inclusive, utiliza
armamento muito semelhante. Os enfrentamentos são igualmente brutais a
ponto de produzirem danos aos organismos em luta. Obviamente, no Mundo
Espiritual a vida do inimigo não pode ser aniquilada, contudo, o psicossoma é
passível de sofrer lesões à semelhança

ícaro Redimido - 389


do corpo físico. Tal lesão, porém, guarda íntima relação com o grau de densidade
da tessitura perispiritual. Quanto mais embrutecido é o espírito, mais densa é sua
matéria constitutiva, tornando-a suscetível de sofrer danos em sua contextura,
enquanto que entidades de grande envergadura evolutiva são completamente
imunes a qualquer agressão externa. Por isso os espíritos inferiores são capazes de
se ferir como se estivessem na carne e, sofrendo traumas extensos, que ultrapassem
a elevada capacidade regeneradora do perispírito, podem entrar em estado de
colapso da consciência, encaminhando-se para os fenômenos da ovoidização.
Naturalmente que não é possível a completa anulação da individualidade, tampouco
a destruição do aparelho psicossomático que veste o ser em evolução; este,
contudo, é passível de se retrair a patamares inferiores de organização,
acompanhando a degradação do psiquismo, segundo os imperativos que
determinam a segunda morte9i.
Ademais, os projéteis e explosões dos artefatos humanos podem também
contundir entidades inferiorizadas, excessivamente materializadas e sintonizadas
com o ambiente carnal, promovendo-lhes iguais lacerações perispirituais. Devido a
este fenômeno, o lamentável resultado das guerras, comumente, não é somente a
multiplicação das mutilações e mortes físicas mas também a proliferação de
traumas espirituais que podem evoluir para graves contrações da consciência,
resultando em elevado número de ovóides nos ambientes de batalhas.
Não se surpreenda o estudioso diante desta revelação. O instinto aguerrido
acompanha o ser no Além, onde as rivalidades são tão expressivas quanto as
praticadas no palco terreno. Disputas de hegemonias, conflitos de interesses
divergentes e práticas de vinganças fazem do submundo do Além um reino de
atritos e rixas constantes, envolvendo todos os que se lhe subjugam ao domínio das
aviltantes emoções. Aos vencidos, como na Terra, impõe-se o cárcere, a escravidão
e a ignóbil exploração de recursos vitais, em perpetuação de ódios que varrem os
séculos e se estendem ao plano físico, onde prosseguem disseminando seus dramas
até se desfazerem na dor e no amor.
Os conflitos terrenos, destarte, são ainda passíveis de promoverem perturbações
nas Esferas Extrafísicas. Guerras de grandes proporções podem contaminar o
campo vibratório do planeta pela disseminação dos eflúvios do ódio e dos
sofrimentos, perturbando a vida do espírito em qualquer nível em que se encontre.
A intensa absorção das energias mentais degradadas acomete os espíritos incautos
que se lhes sintonizam,

93 Ver glossário.

390 - Gilson T. Freire / Adamastor


ocasionando-lhes lesões fluídicas, caracterizando patologia própria do
psicossoma com manifestações variadas. Os casos mais leves se expressam
com sintomas de náuseas e mal-estar, evoluindo para o aparecimento de
máculas cutâneas arroxeadas, e os mais graves caminham para um quadro
onde está presente a mesma fisiopatologia do choque e dos quadros tóxico-
infecciosos da carne.
Tarefeiros inexperientes, imbuídos da intenção de servir, porém ainda
necessitados de aprimoramento moral, que costumeiramente não conseguem
manter postura de imparcialidade nos conflitos, podem sofrer esse contato
fluido, requerendo afastamento de suas atividades e tratamentos específicos.
Muitos recém-desencarnados, impossibilitados de pronta remoção para planos
de refazimento e sem o isolamento vibracional de nossas enfermarias, também
se contaminam com essas emanações, agravando-se-lhes a recuperação. Por
isso os trabalhadores de nosso Plano, comumente os menos habilitados, como
Alberto, periodicamente necessitam afastar-se do ambiente de atividades para a
descontaminação fluídica, pois, de forma bastante variável absorvem-nas a
ponto de lhes comprometer a saúde perispiritual. Recorrem à hidroterapia,
recurso capaz de eliminar com eficiência esses eflúvios negativos, impedindo
que se acumulem em níveis perigosos. Porém, é forçoso confessar que, em
maior ou menor grau, todos nos deixávamos contaminar pelas vibrações
reinantes, sofrendo-lhes as conseqüências e somente os espíritos muito
superiores podem servir, incólumes, no hostil ambiente das batalhas humanas.
Esses altos teores de emanações psíquicas da guerra, provenientes dos
entrechoques das torpes emoções humanas, aglomeram-se ainda,
perigosamente, na atmosfera planetária e, ao atingirem níveis inadequados,
desabam em espantosas tempestades vibracionais, imperceptíveis aos olhos
humanos. Rompendo o equilíbrio espiritual do orbe, explodem em
espetaculares relâmpagos de fogo, reverberando nas regiões magnéticas do
Plano Espiritual como reflexo dos imensos dramas humanos, acumulados em
perigosos eflúvios de ódios. Fonte de imensos sofrimentos para as entidades
inferiores, são precisamente previstas pelos nossos técnicos, que nos avisam a
tempo de nos recolhermos em abrigos seguros a fim de não sermos
surpreendidos por elas, em meio aos espavoridos guerreiros desencarnados que
prorrompem em estridentes fugas. Embora causem danos ao ambiente
espiritual inferior do planeta, são recursos de reequilíbrio da Lei Divina,
impedindo-se males maiores e irreversíveis.
Muitas vezes, envolvidos em demasia com o fragor das contendas e
assoberbados pelas intensas atividades socorristas, podíamos sentir as

ícaro Redimido - 391


vibrações dos explosivos bélicos dos homens, e os estilhaços em movimento nos
atingiam causando-nos estranhas e assustadoras sensações, se nos encontrássemos
muito próximos a eles, devido à persistência, no perispírito, de reflexos
condicionados oriundos da vida física. Os menos avisados, como Alberto, por vezes
precisavam ser apoiados, pois se sentiam desfalecer. Com o tempo, porém,
adestrávamos as emoções, dominando-as completamente, evadindo-nos da
sintonização com a balbúrdia que imperava na ribalta de nossas atividades.
O terrível panorama da guerra, visto do Além, multiplicando-lhe o penoso
realismo, deveria coibir no encarnado a sua prática, estimulando- lhe a apressada
busca de soluções pacíficas para suas contendas. Os recursos gastos e o dispêndio de
esforços seriam suficientes para fazer feliz todo o planeta, suprindo todas as suas
necessidades. Mas prefere o homem deixar-se imolar pela aspiração de domínio e a
ilusão de que o desenvolvimento de armas poderosas poderá lhe facultar a almejada
paz e segurança na Terra. E, acreditando que a morte é o fim de tudo, guarda ele,
fixado em renitente materialismo, a estranha ilusão de que seja possível eliminar os
oponentes, simplesmente matando-os, impondo no cenário terreno os seus interesses,
livres de toda e qualquer oposição. Triste engodo, jamais se liquida quem quer que
seja; e do Plano do Espírito a pendenga segue seu mesmo rumo, muitas vezes
agravada, aguardando solução real na Lei Divina. Saibam os homens que a
destruição dos inimigos não é solução definitiva para suas querelas, pois a vida
continua carreando suas desavenças para além da morte; por isso as guerras jamais
resolvem desentendimentos e animosidades entre os povos. Nunca terminam com a
capitulação do opositor, mas somente quando vencidos e vencedores estabelecem a
fraternidade e o colaboracionismo por norma de relação.
Sem olvidarmos ainda que as crueldades praticadas na guerra, onde o homem
sente que lhe é lícito o exercício de toda maldade, geram a necessidade, em futuras
reencarnações, dos grandes desastres coletivos, quando a dor comparece a fim de
propiciar a colheita dos frutos semeados, conferindo preciosas lições aos espíritos e
fixando ensinamentos necessários ao equilíbrio dos povos.
Por tudo isto, estejamos absolutamente cientes de que não há vitoriosos na
guerra, onde todos são derrotados e somente o amor é arma poderosa o bastante para
apaziguar todas as contendas e vencer definitivamente os inimigos, transformando-os
em verdadeiros irmãos.

392 - Gilson T. Freire / Adamastor


Um Pedestal Vazio

‘Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração.


Jesus - Mateus, 6:21

ranscorria ainda pouco tempo de nossa chegada e Alberto mantinha-


se ansioso por rever os locais e os amigos de sua convivência
terrena. Sentia saudades dos seus mecânicos, de Antônio Prado,
o conselheiro das horas difíceis, de Sem, o companheiro que o retratara
tantas vezes nas caricaturas, contribuindo para popularizá-lo nos meios
parisienses e muitos outros que lhe entreteceram, agradavelmente, a
romagem física. Contudo, a vida é uma onda em permanente renovação
e somente as construções na eternidade permanecem imutáveis. Muitos
dos amigos tomaram rumos diversos e o panorama lhe era agora muito
distinto dos antigos tempos. As uniões imorredouras somente são aquelas
que transportamos no coração e que o trânsito pelas diferentes dimensões
do existir não pode jamais apagar.
— Não se preocupe em procurá-los, Alberto. Aqueles que se fixaram ao seu
destino de forma definitiva, tornarão sem que se esforce por reencontrá-los — dizia-
lhe, na tentativa de consolá-lo. — Todos, indistintamente, trazemos nossas
nostálgicas lembranças terrenas e gostaríamos de rever os antigos ambientes com que
nos comprazíamos quando encarnados, porém muitos deles não podem ser refeitos,
pois a ação inesgotável do tempo a tudo modifica. Acalme-se e tratemos do serviço
que nos compete, sem exigir da vida outro pagamento que não a paz da consciência.
Destarte, nosso amigo, dominado por fáusticos sentimentos, insistia para que pelo
menos revisse os locais de sua preferência. A antiga

(caro Redimido - 393


residência na rua Washington, sua oficina de Saint-Cyr, onde tinha o seu hangar,
deveriam estar intactos, porém, sobretudo, desejava estar novamente diante do seu
ícaro alado, a estátua que tanto o impressionara e que permanecia indelevelmente
delineada em sua memória, como a mais alta homenagem que recebera na Terra.
Diante de sua insistência, anuí ao seu pedido, pois de fato o amigo trazia o coração
ainda fixado nos falazes dividendos terrenos. Adelaide, convidada a nos
acompanhar, não pôde nos seguir em decorrência de suas atividades na enfermaria
e demandamos, sem demora, a praça de Saint-Cloud, por onde iniciaríamos nossa
pequena excursão e onde se erigia sua majestosa escultura em bronze, sobre um
pedestal que lhe ostentava a esfinge e as inscrições, exaltando suas pioneiras e
surpreendentes conquistas na aeronavegação.
Ao atingirmos o local, Alberto estancou de chofre. O olhar extasiado fitava o
inesperado, enquanto o assombro se estampava em sua face. O pedestal estava
vazio! Constrito pesar lhe vestiu a alma de decepção. Lágrimas discretas lhe
rolaram de imediato pelo rosto e, cabisbaixo, não se animava a tecer qualquer
comentário.
Seu amado ícaro sucumbira, possivelmente abrasado pelo sol da vileza humana
que varre de sua memória os valores superados pelo tempo. Tácito, diante do
monólito que restara de seu monumento, a idéia que de imediato perfilou em sua
mente era a de que ele não merecera mais o título que lhe conferiram os homens,
pois outros, de fato, haviam se assenhoreado de seu lugar na História. A mais cara
recordação que deixara na Terra havia desaparecido, seu nome e os registros de
seus feitos estavam, definitivamente, banidos da memória da humanidade.
Desconcertado, intentava disfarçar, desairosamente, sem conseguir, o imenso
desapontamento que lhe tomara de assalto. Concitando-o à ponderação e à
superação de seu injustificável desvalimento, disse-lhe:
— Não se intimide desnecessariamente diante do malogro, Alberto, como uma
criança que acaba de perder um precioso brinquedo. Compreendo que você o
guardava como egrégia relíquia, lembrança definitiva entre os homens de suas
memoráveis façanhas e jamais acreditou pudesse ser derruído. Mas tudo é possível
no transitório reino das formas. Olvide seu esplendoroso passado e retornemos ao
serviço, único caminho que pode preencher a inação que por vez nos abate a alma.
— Acredito que pelo menos me restará a cópia, embora imperfeita, que deixei
no túmulo da família...
— Não se esvaia diante da lição de desprendimento, Alberto. Recorde que
Jesus nos recomendou não estacionar o coração nos bens perecíveis da Terra, onde
os ladrões os podem roubar e a traça roer, pois quem se

394 - Gilson T. Freire / Adamastor


fixa nessas possessões perecedouras está sujeito a recolher desilusões e
sofrimentos inadequados. Somente os tesouros espirituais são eternos, por isso
aceite a corrigenda e olvide definitivamente as efêmeras referências humanas.
Entreguemos ao mundo, decididamente, o que é do mundo, como nos disse o
Mestre, se não queremos fazer da existência um amontoado de desilusões.
Esqueça os epítetos que lhe deram e os triunfos que você conquistou,
inumando-os definitivamente na memória do tempo, tratando de confeccionar
novo futuro em base aos reais bens do espírito. Eis a única maneira de
desvencilhar-se também das lembranças amargas que tanto o constrangem.
Recorde-se das sábias palavras que Heitor lhe deixou.
Procumbido, Alberto se deu por vencido, esforçando por se desfazer das
recordações dos esplendores vividos. Deixando exaurir por completo o
entusiasmo de rever o palco de suas preciosas conquistas terrenas, parecia
conformar-se. Recolhi-me no silêncio, caminhando ao seu lado, de volta aos
nossos afazeres.
Após longo intervalo o irmão, enfim, refeito de seu dissabor, animou- se a
considerar:
— Obrigado, irmão, por dividir comigo as dores de minha alma.
Infelizmente precisava desse choque para assimilar o aprendizado no qual tanto
os amigos insistem. Compreendo que não posso mais me sustentar nas gloriosas
conquistas do passado, como alimento necessário à alegria do espírito,
nutrindo-me de continuada arrogância. Devo esquecer o nome que enverguei e
o que ele representou na Terra, cientificando-me de que colaborei com o
progresso humano apenas por lhe ser devedor e nada mais. Fixei-me na ilusão
de que fui um homem ilustre, portador de genialidade acima dos comuns, porém
hoje sei que nada inventei e nada fiz demais.
Ante minha admiração, por ver que, enfim, a lição surtia o seu efeito de
forma quase instantânea, continuei a ouvir suas reflexões, amadurecidas nas
peias da dor:
— Sustentado por essa errônea convicção, desejava prosseguir, gabando-
me dos mesmos doentios enganos do pretérito, perpetuando os seus males. Meu
pecado chama-se, com efeito, orgulho, pois tudo que realizei foi mero devaneio
para lustrar-me a vaidosa personalidade e não posso vangloriar-me de alguma
coisa ter inventado. Agora vejo que as sábias palavras dos amigos e suas
abalizadas orientações de pouco me valeram. Foi preciso que eu me deparasse
com a dura realidade dos fatos para convencer-me da falácia de meus
propósitos. Eu careço olvidar, decididamente, de uma vez por todas, as máculas
do passado, mesmo o

ícaro Redimido - 395


galardão da fama, que me lastima tanto quanto a lembrança dos fracassos. E hoje
pude verdadeiramente alijar de meu coração o fascínio pelo pretérito e, de cabeça
erguida para a luz do Cristo, quero percorrer novas estradas da realização interior,
evadindo-me das perigosas rotas das quiméricas conquistas exteriores... Sinto que
libertei enorme peso da consciência. Não desejo mais fazer-me vítima de minhas
memórias, prisioneiro de meus devaneios, cativo de meus pretensos inventos... fui
um mero inventor de ilusões e nada mais... Encerremos o assunto, pois sei que já o
cansei sobremaneira com minhas inconvenientes rememorações, e os meus
próprios dissabores já me bastam...
— Alegro-me por vê-lo, finalmente, cedendo às evidências e terminando por
assimilar o bom senso indispensável ao seu completo soerguimento. Deixemos de
cuidar das prerrogativas do ego se queremos ser felizes. Rumemos para o porvir,
entregando o que fizemos de bom para a vida, agradecidos a Deus pelas
oportunidades de algo realizar em prol da humanidade. Renunciando às
notoriedades do pretérito, certamente os momentos de amarguras e os equívocos
que lhe martirizam a lembrança também evadir-se-ão de seu íntimo, permitindo-lhe
novas e felizes aquisições para o espírito, meu amigo. Jesus sem dúvida o
abençoará nesse propósito. Sigamos para frente, a passos decididos na trilha do
Evangelho, deixando ao passado seus próprios dissabores e suas fugazes
conquistas. Quem vive de ilusões colhe decepções.
Alberto voltava a sorrir, denotando que o preceito fora assimilado em plenitude.
Entrementes, recordei-me de curiosa notícia que ouvira de amigos, dias atrás,
compreendendo, num átimo, o que se passara. Não pude evitar de lhe chamar a
atenção para a ocorrência, embora duvidasse, em breve relance, se isto era
efetivamente o melhor que lhe convinha. Algo aliviado, agreguei:
— Alberto, você não se deu conta de que há outras estátuas em falta nesta
cidade? Nossos amigos alemães estão ávidos por matéria prima para confeccionar
munições e andaram recolhendo algumas daquelas que não lhes demonstram
significativo valor, para se prestar a esse fim. A sua foi uma delas, simplesmente
isso. Não se trata de mera aversão à sua memória, seguramente. Seu belo ícaro foi
reduzido a projéteis para alimentar canhões, meu amigo, os mesmos a que outrora
dedicara tamanho empenho em construir e cuja lembrança, depois, tanto o
martirizou!
— Meu ícaro transformado em balas de canhão! Vejo que o malfadado invento
me persegue até hoje!..
— Que estranha ironia do destino, seu mais precioso bem terreno convertido
em objeto de destruição! Podemos, entretanto, ver neste fato

396 - Gilson T. Freire / Adamastor


de aparente casualidade um insigne óbelo da sabedoria da vida, que não
desperdiça oportunidades para nos fazer crescer.
A lição, destarte, já havia sido assimilada e Alberto denotava, de fato, haver
superado a sua decepção. Aliviados, adentramos em nossa enfermaria, a fim de
cuidar daqueles que precisavam muito mais do que nós, deixando ao mundo o
que a ele pertence e permitindo ao império do mal satisfazer a sua ânsia na
confecção de ruínas, até que a Lei o detenha no cadinho das inevitáveis
reações.
Relatamos o ocorrido a Adelaide que, embora lamentando a perda de seu
relicário, reconhecia que fora salutar providência do destino, demonstrando-lhe
a inconveniência de percorrer as faustuosas rotas do passado, somente para
degustar novamente os trunfos da glória. Em breve Alberto se olvidava do fato,
retornando à sua habitual diligência, demonstrando-nos que o esforço no
serviço era precioso medicamento para lhe sanar a fixação no pretérito.
Tornando aos campos de combate, prosseguíamos na charrua redentora,
recolhendo os famigerados desencarnados, preparados para lutar, porém não
para morrer. Devíamos dirigir toda nossa atenção para o socorro aos aflitos,
onde quer que estivessem e a que lado pertencessem. Deixando que o Mal
destruísse a si mesmo, cabia-nos edificar na eternidade, espargindo valores
imorredouros do Bem, cujas recordações jamais nos ferissem a alma.
Nossa enfermaria se apinhava de estropiados, muitas vezes inimigos
mortais, colocados lado a lado, em meio à névoa tênue, flutuante, acima dos
leitos, impregnada de eflúvios mefíticos, que poucos podiam denotar. Os
cuidados que os recém-desencarnados requerem nestas condições se
assemelham em tudo aos traumatizados humanos, necessitando de curativos,
ataduras ou até mesmo verdadeiras cirurgias de recomposição de tecidos
esfacelados e ossos fraturados. Seus organismos psicossomáticos se impregnam
das mesmas lesões físicas que os levaram à desencarnação, até que, assumindo
a consciência da nova condição em que vivem, conseguem desvencilhar-se
destas seqüelas, demonstrando-nos que o fato guarda íntima relação com os
fenômenos da mental ização e que o corpo perispiritual, embora entretecido em
substrato celular é, na verdade, uma construção ideoplástica do espírito.
Muitos necessitavam de ser induzidos ao sono profundo diante dos
sofrimentos insuportáveis e a impossibilidade de compreenderem a situação em
que se encontravam, enquanto outros careciam apenas de palavras de consolo.
As diversas nacionalidades de nossos assistidos transformavam nosso ambiente
de trabalho em verdadeira Babel, exigindo-nos grande

ícaro Redimido - 397


esforço na lida dos muitos idiomas envolvidos. Neste aspecto é compreensível,
como já nos referimos, que a morte não situe o espírito de mediana evolução, de
imediato, em contato com as comunicações puramente mentais dos planos
elevados, e prosseguimos usando o mesmo mecanismo da fala para nos
entendermos. Somente aqueles moralmente muito adiantados conseguem, em curto
prazo, adentrar a linguagem dos sentidos em avançado processo de percepção das
correntes de pensamentos.
Com a prestimosa ajuda de Adelaide, Alberto adestrava-se no trato com os
feridos de guerra, desenvolvendo, paulatinamente, novas aptidões, bastante
distanciadas do papel que desempenhara na jornada terrena. O novo panorama, que
a vida na Erraticidade abre para a dilatada consciência espiritual do desencarnado
em equilíbrio, projeta-o, quase sempre, muito além das acanhadas perspectivas
terrenas, levando o homem comum, muitas vezes, a duvidar de nossas
diferenciadas prerrogativas. Não nos surpreendia, por isso, ver nosso amigo
convertido em autêntico enfermeiro de guerra, pensando os feridos, dirigindo-lhes
palavras de reconforto, distanciando-se a cada dia mais do que fora na Terra,
Santos Dumont.
Sem dúvida, sentia ele que este era o único caminho que podia preencher-lhe o
vazio que trazia na alma, e empreender o vôo do espírito era agora seu máximo
anelo. Um novo sonho de ícaro lhe ocupava a mente, voar por entre os espaços do
amor e sobre as planícies do saber, albergando o Divino na alma e saciando a fome
de sentimentos que uma vida assoberbada de máquinas e mecanismos lhe
impregnara. Enredando renovados valores para a Vida Eterna, seguramente se
preparava para outros misteres no futuro, segundo as premências que a evolução
nos concita a fim de nos conduzir para a perfeição.
Vendo-o estampar um sorriso para cada ferido que encontrava, consolando com
palavras doces os desesperados, admirava o verdadeiro milagre que se operava em
sua alma, rememorando a precária cor.dição em que o recebemos em nossa
colônia. Agradecia a Deus pela sua recuperação, caminhando a passos rápidos para
o completo restabelecimento e alta da condição de assistido. E, recordando as pa
avras do apóstolo Pedro, certificava-me de que servir aos que sofrem é o mais
precioso medicamento para sanar todas as chagas de nosso pretérito.
A guerra prosseguia em sua saga sangrenta, em direção agcra às plagas
soviéticas, pois os beligerantes germânicos, rompendo seu pacto de interesses
egoísticos com os russos, intencionavam dilatar suas fronteiras por toda a Ásia,
demonstrando que suas ambições eram excessivamente desmedidas e impróprias
para a paz mundial. As forças do destino atuam segundo os Planos Superiores que
nos regem a evolução, e os protagonistas

398 - Gilson T. Freire I Adamastor


da vida lhes obedecem, muitas vezes acreditando estar agindo segundo seus
próprios anseios. Por isso, achávamo-nos seguros de que tomando essa nova direção
as potências do Eixo94 estavam, na verdade, seguindo sugestões do Invisível,
selando seu esboroamento, na medida que dividindo seus exércitos em novas frentes
de ataques se enfraqueciam. Seguramente não poderiam vencer o gigante russo pois
as condições climáticas lhes eram adversas e, apesar do sacrifício de milhões de
vidas, esta era uma solução para minar os recursos da guerra, fazendo com que o
Mal fosse derrotado pela sua própria ganância.
Embora não nos fosse dado tomar partido no conflito, sabíamos que nossos
irmãos alemães excediam em suas ambiciosas pretensões, baseadas em equivocadas
e orgulhosas utopias. Distanciados do bem comum e do respeito aos irmãos em
humanidade, pleiteavam de fato a completa dominação do orbe, objetivando a
exploração econômica, a escravização dos vencidos e a desapiedada eliminação das
raças consideradas inferiores, como os humildes povos asiáticos, os ciganos e os
judeus, reputados como estirpes desprezíveis e indignas de participarem da nova
ordem social que imporiam ao mundo. Aqueles que lhes disputavam as aspirações
colonialistas, como os bolchevistas russos e os impérios capitalistas ocidentais,
deveriam também ser destruídos e dominados. Deliberações estas que
correspondiam às malignas sugestões das Sombras e que não se coadunavam, em
absoluto, com os ideais superiores que nos dirigem a vida.
Nesta arena de disputas, o pacto nazi-soviético era, de fato, uma grave ameaça à
ordem mundial, pouco avaliada pelos observadores da História, pois a união dos
dois grandes gigantes em um esforço conjunto de conquistas os tornaria imbatíveis,
estendendo a Grande Guerra para limites insuportáveis pelo planeta, impondo-se
imensos sofrimentos à humanidade. Os encarnados não se deram conta do risco que
corriam e dos esforços envidados pelo Plano Espiritual superior para desmantelar
este desequilíbrio de forças, coibindo a inadequada aliança. Felizmente esse
desiderato foi facilmente atingido, pois as desmesuradas ambições que os
motivavam impediam-lhes de se consorciarem em um objetivo comum. A
associação entre russos e Aliados era, neste momento, a melhor maneira de se evitar
um desproporcional conflito entre as grandes potências bélicas, sedentas de
conquistas, entretanto, os antagonismos existentes entre os ideais comunistas e os
interesses capitalistas tornavam essa união difícil e delicada. As constantes ameaças
de ruptura de suas

94 Alemanha, Itália e Japão formaram, nesta ocasião, uma coligação assim denominada.

Icaro Redimido - 399


relações aparentemente amistosas eram sobrecarga para a Direção Espiritual,
interessada em manter-lhes a coalizão, que somente se justificava mediante a
identificação de um inimigo comum.
Os imensos conflitos entre as Forças Aliadas, convivendo com objetivos
divergentes e disputas de domínio contraproducentes, sofriam, a todo instante, a
interferência dos espíritos elevados, que se esforçavam para manter a situação no
melhor equilíbrio possível, evitando-se danos maiores para o progresso humano. A
dificultosa situação tornava-se grave em muitos momentos, quando ambas as
partes, capitalistas e comunistas, sentiam-se prejudicadas em seus anseios de
conquistas territoriais e na doentia valorização dos nacionalismos em jogo.
Não podemos, contudo, deixar de considerar que não havia uma facção do Bem
em luta contra uma do Mal, pois, todos, indistintamente, achavam- se distanciados
do amor evangélico e intencionavam também a expansão de domínios, almejando
inadequadas explorações colonialistas, em franco desrespeito aos direitos de que
cada povo irmão é meritório. Se o Plano Inferior tomava decisivo partido nas
contendas humanas, o Mundo Maior não se posicionava contra quem quer que
fosse, mas somente em oposição à maldade descabida, onde estivesse, interferindo
com recursos apaziguadores, como um pai diante dos filhos em altercação.
Iniciavam-se ainda os ataques no Pacífico, envolvendo diretamente os povos
americanos, estendendo-se o teatro da guerra para uma amplitude mundial, em
proporções jamais vistas. O planeta de fato era incendiado pelo despropósito
humano, convertendo-se em imensa furna de tormentos infernais.
Como os embates prosseguiam, avolumando-se nos territórios em que
atendíamos, não fomos convocados para trabalhar nestas novas frentes orientais de
combates, onde sofrimentos inenarráveis eram-nos descritos como os mais bárbaros
da Grande Guerra. Em Stalingrado, pereciam milhões de almas em triste urdidura
assassina e a cidade sucumbia em meio às ruínas, onde a vida valia bem pouco
diante da imensa maldade humana. Enquanto isso a fome, o frio e a crueldade sem
limites solapavam as amofinadas populações européias, exauridas pelos extensos
bombardeios e sufocadas pelo ribombar incessante dos canhões. Penava-nos ver
tamanho morticínio em nome de insofreáveis orgulhos nacionalistas,
completamente distanciados das realidades espirituais da vida.
Presenciamos cenas imorredouras, tecidas com requintes de inenarráveis
crueldades jamais vislumbradas na Terra. Enquanto os germânicos cuidavam de
derruir as cidades inglesas com fantásticas e

400- Gilson T. Freire/Adamastor


terríveis bombas voadoras, disseminando o pânico e a dor, os Aliados respondiam
com a operação cognominada “ataque exterminador”, empregando centenas de
bombardeiros que enxameavam os céus sobre as populações inimigas, despejando
milhares de bombas, muitas incendiárias, em centros urbanos e indefesos,
assassinando impiedosamente populações civis que, aparentemente, não se
coadunavam com as disputas de seus governos. Acorríamos, em equipes formadas por
espíritos de variadas nacionalidades, em socorro aos pretensos inimigos, mortos aos
milhares em chamas pavorosas, em Hamburg, Colonia, Dresden, Essen, Bremen e
outras localidades. Os brutais ataques, porém, causavam plena e incompreensível
fruição de prazer naqueles que os protagonizavam, atestando-nos que o
distanciamento do Amor Divino se responsabilizava por todas as desabridas cruezas,
praticadas em ambos os lados da guerra.
Populações inteiras eram dizimadas barbaramente, aos milhares, sem uma razão
que o justificasse senão o completo domínio do coração humano pelas Trevas,
assenhoreando-lhe os sentimentos e aflorando-lhe o potencial de agressividade,
denotando-nos o quanto ainda temos que palmilhar no caminho da dor para
transformar a casa planetária em um reduto de paz. Massacres que se constituíam em
verdadeiros banquetes de sangue, festejados com requintes diabólicos pelas entidades
que os suscitavam, fazendo da Terra um prolongamento dos Abismos avernais.
Lamentávamos a pobre humanidade, divorciada dos propósitos do amor fraternal,
digladiando-se por valores tão efêmeros, pois a morte a todos surpreendia, solapando-
lhes os füteis ideais de conquistas e o soberbo patriotismo, convocando-os à vivência
da inanidade que a insensibilidade e a inclemência cavam no espírito. Multiplicando-
lhes abundantemente a miséria, o único galardão de suas pretensões eram o desespero
e a inconsciência, até que a Providência Divina disponibilizasse os recursos da dor
para a correção dos graves equívocos a que se entregavam.

ícaro Redimido - 401


Quando o Passado
Socorre o Presente

“Enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos. ”


Paulo - Gálatas, 6:10

A pós um dia de intensas atividades, ao retornar ao nosso posto em


Saint Philippe, fomos surpreendidos pela visita de Heitor.
Informado de nosso paradeiro, aguardava-nos junto a Adelaide,
enchendo-nos de satisfação, em meio às aflições do momento. Vinha não
somente para rever-nos, mas para nos solicitar, humildemente, a
colaboração em urgente tarefa que nos explicaria no seu transcurso.
Acompanhados por Adelaide e Alberto, partimos sem demora, após o
devido encaminhamento de nossas inadiáveis obrigações, sem imaginar
que participaríamos de surpreendente feito. Estacionamos em Bordeaux,
demandando imediatamente nobre residência, envolvida nas sombras
soturnas da madrugada, onde nos deparamos com um cavalheiro do plano
físico, cabisbaixo, assentado na cama, ao lado de uma dama de nossa
esfera, envolvida em vestes de freira, que identificamos imediatamente.
Para imensa surpresa nossa, ali estava, dirigindo-nos expressivo olhar,
Catherine Lyot, a amiga de quem não tivéramos mais notícias. Adelaide,
tomada de admiração, dirigia-me muda interrogação, enquanto Heitor,
sem se fazer esperar disse-nos:
— Nossa querida Catherine não os conhece, porém, sente-se em presença de
amigos queridos, pois, indubitavelmente os identifica, pelos liames do coração,
como irmãos de longo convívio de outros tempos e sabe que muito lhes deve.
E, dirigindo-se à irmã, continuou:

402 - Gilson T. Freire/Adamastor


— Apresento-lhe os companheiros de quem muito lhe falei. Estes são
Adamastor e Adelaide, conhecidos que a assistiram desde o Mundo do
Invisível, no doloroso transe que a arrebatou da carne.
E, apontando para Alberto, a quem envolvia em paternal abraço,
completava:
— Quanto a este outro amigo falar-lhe-ei em breve. Aguardemos nosso
entendimento diante deste inusitado e providencial encontro, pois nossas
necessidades não são prementes e podem muito bem esperar. Urgente tarefa
nos convoca à caridade cristã, para a qual solicitamos a todos a concentração de
nossas atenções.
Abraçamo-nos rapidamente, enquanto Catherine e Alberto trocavam
significativo olhar, interrogando-se intimamente de onde se conheciam,
atraídos por poderosa onda de mútua simpatia. Entretanto não nos cabia
qualquer altercação que desviasse nosso precípuo objetivo e continuamos
atentos ao nosso estimado mentor, cujas palavras ansiávamos ouvir novamente:
— Amigos, devo informá-los de que também estamos em tarefa nestas
plagas de dores, atendendo ao apelo de nosso passado, ainda bastante
devedores do Velho Continente, onde guardamos nossas origens e
entesouramos ricas aquisições evolutivas na carreira de tantos séculos. Assumi
compromisso junto a trabalhadores de minha colônia, em socorro às especiais
vítimas desta injustificável guerra: os judeus. Estes nossos irmãos, como
certamente já sabem, estão sendo recolhidos e enviados para campos de
concentração na Polônia, onde começam a ser brutalmente assassinados. Serão
alvo de atrocidades inimagináveis, mortos aos milhões, e formidandos meios de
exterminação em massa já estão sendo providenciados, em obediência a
funestos planos, aventados pelos desapiedados protagonistas deste conflito. Já
pudemos presenciar alguns destes massacres, assustando-nos sobremaneira pelo
fragor de desumanidade com que se realizam, comovendo-nos às lágrimas.
De fato, ouvíramos notícias do ocorrido, mas não sabíamos que o Mal
atingiria proporções tão assustadoras. Ante nosso assombro, prosseguiu o
benfeitor:
— Em uma operação intitulada “solução final”, nossos irmãos alemães
intencionam aniquilar todos os semitas por considerá-los raça desprezível e
indigna de participar da nova ordem que pretendem impor ao mundo.
Denominados “insetos infectantes”, com requintes draconianos, estão sendo
maltratados, escravizados e entregues a experiências funestas, como se fossem
míseros animais. Estamos envidando esforços para minorar- lhes os
padecimentos e evitar o que for possível.

ícaro Redimido - 403


Atendendo às inquietantes interrogações que, tacitamente, percorriam nossas
mentes, ousei perguntar-lhe:
— Entendemos que o equívoco obedece à maldade dos homens, consorciados
às sugestões das Trevas, mas haverá, amigo, na Lei Maior, motivos que justifiquem
tamanha barbárie? Alguma coisa fez este inditoso povo para merecer tão execrável
e aparentemente gratuita agressão?
— Sem dúvida existirão razões mais profundas que nos escapam à
compreensão, pois a Lei é perfeita e não lhe podemos imputar acasos, mesmo que o
homem tenha liberdade para agir, dentro de certos limites, em prol do Bem ou do
Mal. Os povos, assim como os indivíduos, semeiam destinos coletivos, e no
passado sempre encontraremos as justificativas seguras que colocam cada qual no
seu justo lugar. As ações humanas, por isso, obedecem às invisíveis sugestões que
permeiam seus sentimentos e entretecem o concatenar de suas vidas. E, embora a
maldade não se justifique jamais, dela se serve a Lei, como instrumento de coerção,
uma vez que o ser é livre para exercê-la nos patamares inferiores da evolução.
Portanto, é nossa inerente condição de inferioridade, aliada ao nosso passado de
crueldades, que nos coloca no lugar de vítimas, entregues aos desmandos de uma
sociedade ainda involuída e afeita a atrocidades. No caso em questão, vemos nos
agressores o despropósito de um povo que, considerando-se raça superior, pretende
dominar o mundo, expurgando- o de toda imperfeição, refletindo a natureza
extremamente rebelde do homem, que se coloca egoisticamente como centro de
referência para a vida. Por outro lado, os semitas, desde eras remotas, nutrem
doentio orgulho, julgando-se também povo eleito e destinado à supremacia, o que
tem sido motivo de antipatias e agressões por parte daqueles que não puderam lhes
suportar o inconsciente sentimento de elação. Percorreram os tempos em busca de
uma Terra Prometida e não se acomodaram no seio de outras culturas, não se
permitindo, com facilidade, a miscigenação com outros irmãos. Reservados,
cultivaram hábitos de se infiltrarem nas organizações estrangeiras com intenção de
exploração econômica, mantendo-se presunçosamente recluídos em núcleos
separatistas. Isso estimulou, em todos os tempos, a antipatia gratuita das demais
etnias, que nunca lhes toleraram o soberbo e insistente isolamento racial, em
decorrência de suas próprias e orgulhosas discriminações. Entrementes,
justificando-se ou não as dores imputadas, como seareiros do Bem, somos
compelidos a minorar ao máximo o sofrimento alheio, empregando os meios
possíveis ao nosso alcance para sufocar o clamor de maldade que ainda vigora em
nós.

404 - Gilson T. Freire / Adamastor


Embora o assunto nos suscitasse um debate mais profundo, satisfazíamos nossa
indignação diante do imenso massacre e não ousávamos intervir, delongando
considerações, pois o amigo tinha premência em dar cumprimento à importante
atividade. Com a sensibilidade que o caracterizava, prosseguiu Heitor, agora com a
voz embargada de emoção:
— Precisamos evocar o passado para agir com eficiência no presente e para
isso necessito de que os amigos me auxiliem na composição de painel ideoplástico a
fim de envolver nele o nosso caro amigo Aristides, aqui presente, aproveitando-nos
de sua proverbial aquiescência e bonomia. Como vocês vivenciaram comigo parte
de meu pretérito e detêm o conhecimento técnico para isso, muito poderão ajudar-
me. Como podem denotar, ele se acha envolto em grave questão que o mobiliza por
completo, impedindo-lhe o sono.
De fato, o irmão encarnado, aturdido, sustentando a cabeça entre as mãos,
chafurdava-se em um nicho de impressões que vivenciava no momento, dominado
por acerbas preocupações, completamente insone, apesar de exausto e da adiantada
hora que já adentrava a madrugada. Convidando-nos a envolvê-lo em vibrações de
simpatia, após breve pausa, continuou a nos falar Heitor:
— Expliquemos, contudo, o nosso plano de ação e a necessidade da tarefa.
Como certamente observaram, a cidade de Bordeaux vive instante de intensa
agitação. Verdadeira multidão de judeus aqui se aglomera, na esperança de se
evadir da atroz perseguição nazista. A única saída no momento é para a Espanha ou
Portugal, onde estarão seguros, porém, os dirigentes dessas nações lhes negam
sistematicamente vistos de entrada em seus domínios e os franceses impedem a
evasão daqueles que não possuem autorização de transferência, trazendo os
corações empedernidos, obedientes ao governo provisório de Vichy que,
infelizmente, denota também atitude anti-semita e certa complacência com os
interesses germânicos, para desgosto de muitos.
Aristides é cônsul de Portugal e pode homologar permissão de entrada em seu
país, salvando estes pobres refugiados de inditoso destino. Já conseguimos fazer
com que grande número de petições chegasse até ele, porém a dúvida domina-o e
ele recalcitra diante da possibilidade de fazer o bem, pois seu governo já lhe proibiu
formalmente a chancela de qualquer ato com este fim. Naturalmente que ele teme
por seu cargo e sua integridade política, desobedecendo às ordens de seus
superiores. Precisamos urgentemente convencê-lo a superar as ordenações humanas
transitórias, abdicando-se das prerrogativas pragmáticas da vida na carne,

ícaro Redimido - 405


em prol da vitória do Bem e da própria felicidade. Eis nossa missão, irmãos.
Certamente os amigos se recordarão dele, pois estamos diante do
desembargador João Marques95. Foi ele o implacável juiz, na mesma época em que
eu envergara a trágica personalidade do Cardeal da Cunha. Era meu cúmplice de
prevaricações e dele me servia no indigno ofício do Tribunal da Inquisição, como
já lhes dei a conhecer, na exposição de minhas transatas desventuras,
compartilhadas com o padre Bartolomeu e Sóror Paula. Na direção do alcácer,
cumpria ele, com enérgica determinação, as minhas execráveis ordens, exorbitando
muitas vezes em sua execução, atendendo aos requintes da própria crueldade.
Juntos realizamos implacáveis perseguições a incontáveis judeus e simpatizantes
do semitismo, condenando-os ao degredo, à reclusão ou mesmo à fogueira. Não
posso olvidar os pobres inocentes que, sob hedionda tortura, confessavam crimes e
práticas demoníacas que jamais haviam cometido, habituados que nos achávamos a
manobras espúrias, visando unicamente à instância de estelionatos abjuratórios,
acafelados por mentirosa defesa da Santa Sé. Carregamos na lembrança tamanho
passado de opróbrios que precisamos escoimar da consciência a fim de trazer paz à
alma. Somente a prática sincera do bem pode nos permitir este desiderato,
justificando para isso a renúncia aos interesses falaciosos da vida. Por isso,
iniciemos, sem demora, a tarefa que nos compete.
Compondo sentida prece, Heitor evocava a ajuda divina para a excelsitude do
serviço. Sob sua orientação, entorpecemos a mente do irmão encarnado, fazendo-o,
finalmente, adormecer. Contudo, o cônsul não se dispunha à emancipação do
corpo, estando fortemente atado à mente física, assoberbada por graves
inquietações. Após grande esforço, operando energias magnéticas de elevado teor,
conseguimos desprendê- lo da veste orgânica, porém, o amigo não podia perceber-
nos, ainda entorpecido pelos eflúvios de baixo quilate que o envolviam e tivemos
que ativar sua visão espiritual, permitindo-lhe divisar-nos com clareza. Diante de
sua absoluta tranqüilidade, identificando de imediato nossas amistosas intenções,
entretivemos com ele proveitosa confabulação, considerando a relevância dos
últimos acontecimentos que lhe ocupavam por completo o pensamento.
Convidando-o ao recolhimento para que pudéssemos ajudá-lo no delicado
momento que vivia, iniciamos a mentalização de um quadro da época, seguindo a
tecelagem ideoplástica emanada de Heitor, enquanto

95 Ver capítulo 29.

406 - Gilson T. Freire/Adamastor


este se transmutava no Cardeal da Cunha. Em breve, achávamo-nos envolvidos
por um recinto cuja decoração adivinhávamos tratar-se do Tribunal do Santo
Ofício. Tocando-lhe a mente e subjugando-a por poderosas energias hipnóticas,
proferiu o mentor, com forte inflexão de voz:
— Desembargador João Marques, desperte das profundezas do tempo e
recomponha a memória nas lembranças que não morrem jamais. Sou o Cardeal
da Cunha e venho convocá-lo do passado para mais uma de nossas missões.
Paulatinamente, Aristides se metamorfoseava na figura do antigo
desembargador, sem denotar assombro, pois sua mente se acomodava
passivamente ao influente magnetismo de Heitor. Enquanto fornecíamos
energias ectoplasmáticas necessárias à sustentação da tarefa, prosseguia o
insigne preletor:
— Amigo, sei que, como eu, pesa-te neste instante a rememoração das
tamanhas barbaridades que juntos praticamos, quando envergávamos estas
tristes personalidades que ora nos vestem o ser. São tantos aqueles que fizemos
aflitos e que ainda choram as desditas que lhes imputamos! Trazemos até hoje a
consciência acoimada por suas dores, desejando ardentemente libertar a alma
do calabouço de improbidades que criamos para nós mesmos e somente um
caminho nos é possível: a realização de um grande bem com o sacrifício de
nosso conforto imediato e de nossos interesses mundanos. Neste comenos de
desabridas angústias que vivenciamos, exoro o pretérito, não com o intento de
acicatar-lhe a alma, já reformada para o Bem, mas porque, compungido, ouço o
apelo de muitos, batendo às portas do teu coração, suplicando-te por socorro.
Se não fizeres nada para salvá-los, serão deportados para os campos de
concentração da Polônia, onde serão cruelmente assassinados, tu sabes disto.
Não deixemos o espírito sufocar-se no despautériò da insensatez, pois não
renascemos na carne unicamente para a satisfação do mundanismo, mas nela
comparecemos a soldo da Unção Divina, a fim de refazer todo o mal praticado
e atender aos imperativos da reconstrução da angelitude em nós.
— Compreendo, magno Cardeal. Compadeço-me deste pobre povo que me
pede ajuda, vejo crianças chorosas e famintas, mulheres aflitas, velhos tristes e
lamento seus destinos, mas meus superiores proíbem-me qualquer atuação e
não me convém contrariá-los, pois, lhes sou subordinado.
— Devemos nos subordinar apenas à vontade do Cristo e não temos outro
compromisso senão atender aos apelos do bem. Os poderes temporais

ícaro Redimido - 407


são irrisórios e passam como os ventos fortes, porém transitórios, causando apenas
movimentos das massas. Somente o Bem é força poderosa o bastante para construir
valores sempiternos, imprimindo-nos reformas imorredouras ao espírito e
modelando-nos para a perfeição. Por isso não podemos deixar que a oportunidade
de executá-lo se esvaia nos despropósitos vãos de nosso orgulho e de nossos
infundados receios. Transformemos cada átimo do tempo em uma ação para a
eternidade, fazendo de nossa vida uma missão e encontraremos a tão almejada paz.
— Sinto de fato o coração pejado de aflições e o clamor das minhas muitas
vítimas suplicando piedade ainda ecoa nos ouvidos de minha alma, solapando-me o
sossego espiritual. Sei que devo fazer o bem, porém sou fraco para abdicar-me das
prerrogativas de minha posição no mundo. Ajuda-me, honorável cardeal! Tu
conheces os caminhos do Céu.
— Sou teu comparsa de torpes desventuras e indigno do sacrário cristão,
amigo, pois se me fiz representante do Cordeiro na Terra e preguei em Seu Santo
nome, jamais Lhe segui os passos e palmilhei, na verdade, as tortuosas rotas de
Satanás. Não mereço as alcunhas das honrosas referências humanas e ser chamado
simplesmente de irmão me é, no momento, o maior título que posso pleitear. E
como tu, também ignoro os caminhos do Paraíso, pois, acumpliciado com as
Sombras, perdi o contato com as miríficas claridades do Evangelho, mas sei que
Cristo já no-los indicou. Para segui-los, porém, é preciso renunciar às credenciais
que os homens nos emprestam e sair de nosso comodismo. Como demandar as
estradas alvissareiras do Divino, se o egoísmo permanece conspurcando-nos a
consciência, impedindo-nos a atuação em favor daqueles que naufragam nas peias
da ignomínia?
— Mas sou o cônsul, homem de confiança de Salazar e lhe devo irrestrita
obediência. Como não cumprir com sua determinação, se ele já me proibiu de
qualquer interferência nos assuntos dessa Guerra? Poderei colocar em risco a
neutralidade de minha nação. Serei eximido de meu posto e execrado pelos meus,
pobre de mim...
— Sabemos que tua atitude não será compreendida na Terra, porém o Céu a
acolherá com imenso júbilo, preenchendo-te a alma de indizíveis alegrias. Confie
em minhas palavras, pois não há outra direção a seguir na encruzilhada em que te
encontras. Comprometo-me a ajudar-te como possível, pois sou ainda um homem
endividado com a dor alheia e não podemos desbaratar a oportunidade de
ressarcimento de um débito comum. Perseguimos incontáveis judeus, sem uma
justa razão senão a nossa perfídia, cometendo ainda o sacrilégio de apregoar, pelo
exemplo, uma

408 - Gilson T. Freire/Adamastor


falsa moral cristã. Hoje precisamos dar mostras de que estamos mudados e o Cristo
verdadeiramente habita nossos corações, recompondo o grave delito. Os primeiros
cristãos não se imolaram nos circos romanos por amor ao Mestre e para que Sua
Palavra sobrevivesse na eternidade dos tempos? Preocupas-te com a posição que os
títulos terrenos te conferem, porém o cognome de Paladino de Jesus não te parece ser
o mais alto epíteto que podemos almejar na Terra?
Aristides, um pouco combalido, vergado pelas indecisões do grave instante que
vivenciava, a custo conseguia manter-se desperto, acompanhando o inusitado
diálogo, misto de remoto passado com o presente. Premido pela impossibilidade de
imediata decisão, mostrava-se desejoso de evadir-se da freima de sofreguidão que lhe
dominava o mundo íntimo, mergulhando no torpor. Seus olhos se fechavam e não
podíamos mais sustentá-lo no transe, em decorrência das tumultuadas vibrações do
ambiente, as quais não conseguíamos isolar de todo. Era prudente interromper a
vivência, despertando-o na carne, propiciando-lhe ainda uma clara recordação do
momento, alimentando-o com as efusivas sensações de realismo do precioso sonho
vivenciado.
Ao acordar, o cônsul chorava abundantemente, sem compreender a excelsitude do
instante que presenciara. Sentia o coração preenchido com os mais elevados
sentimentos já nutridos na vida. A inquestionável autenticidade da lembrança, ainda
esfuziante na memória, e a nítida sensação de nossa presença arrancavam-lhe
lágrimas de insopitável emoção. Uma profunda alegria lhe banhava a alma com
inebriantes albores de paz, embora compungido por uma imensa culpa de que não
lograva identificar a origem. O enorme salão do Tribunal do Santo Ofício se lhe
desenhava na mente, com minúcias, e divisava, na tela mental, a figura excelsa de
Heitor, compondo-lhe palavras que julgava vir de Deus. Não podíamos, no entanto,
deixá-lo entregue às próprias confabulações e prosseguíamos apoiando-o nos
propósitos que nos reunia, envolvendo-o em um dúlcido clima de tranqüilidade.
Trancafiamo-nos com ele, em seus aposentos, enquanto Heitor seguia seu diálogo,
iluminando-lhe a consciência na tentativa de persuadi-lo à tarefa. Vivenciando
inefáveis sensações espirituais, não se animava a sair para atender aos compromissos
rotineiros, receando privar-se do clima que o envolvia, em meio ao vendaval das
paixões desenfreadas que o aguardava lá fora. Seus serviçais, cansados de bater à
porta, temendo que algo se lhe havia passado, deixaram-no finalmente, depois de
ouvirem dele, repetidas vezes, que tudo estava bem, mas que não desejava ser
molestado. Sequer comera

ícaro Redimido - 409


algo, tamanho o envolvimento espiritual que assenhoreava por completo todos os
seus sentidos.
Após o terceiro dia, saiu, enfim, com a firme resolução de fornecer autorização a
todos que o procurassem, indistintamente. Sem atinar sobre as razões de sua arrojada
e incompreensível atitude, instalou seu gabinete de trabalho em plena rua e se pôs
ativamente à emissão de vistos e providenciando, inclusive, para que todos fossem
levados à fronteira. Salvou do holocausto milhares de judeus e, embora não se tenha
registrado com ênfase o fato, foi aquele que, individualmente, conseguiu ajudar o
maior número de pessoas de que se tem notícias na história dos homens. Sua façanha
ficou registrada nos anais do Mundo Espiritual como um dos maiores atos heróicos
da Guerra, um exemplo vivo e convincente de que o amor evangélico tudo pode.
Obedecendo aos nobres imperativos da consciência, amadurecida por verdadeiro
sentimento cristão, desacatou as ordens de seus superiores, sacrificando sua posição
social e abdicando- se dos valores humanos. Retornando ao seu país, foi condenado à
prisão, arruinando-se-lhe a carreira diplomática e a própria vida, vindo a morrer na
penúria em um mosteiro franciscano, nimbado, contudo, por benfazejos eflúvios
espirituais e enriquecido de inapreciável relicário divino. Foi recebido como um
prócer em nosso Plano, por milhares de espíritos reconhecidos pelo enorme bem que
praticara. Muitos daqueles a quem socorreu, sensibilizados pelo exemplo de renúncia
cristã, converteram- se aos propósitos da Boa Nova, convencidos da poderosa força
do amor ao semelhante e do exemplo do Cristo. Refugiaram-se, mais tarde, no
continente americano e, imbuídos de tamanho entusiasmo pela fé renovada,
comprometeram-se, entusiasticamente, com a semeadura do Evangelho redivivo nas
terras do Novo Mundo, trabalhando com entusiasmo nas fileiras desbravadoras do
Espiritismo cristão, para a reconstrução de uma humanidade verdadeiramente feliz.

410 - Gilson T. Freire / Adamastor


Reencontro Memorável

“Tornaste o meu pranto um regozijo, tiraste o meu cilicio, e me cingiste de alegria ”


Salmo, 30:11

H eitor exultava de contentamento pela tarefa cumprida.


Sensibilizados pela excelsitude da empreitada, assistindo ao
passado socorrer eficazmente o presente, reconhecíamos a força
da Misericórdia Divina atuando em socorro de quantos possuem méritos
inseridos em Sua Magna Lei de causa e efeito. Gostaríamos de permanecer
junto ao prestimoso mentor, conduzindo aquele sofrido povo até aportar
em terras seguras, porém nossas obrigações nos chamavam de volta às
atividades habituais que necessitavam de nosso modesto concurso. Ao
nos prepararmos para a partida, o dileto amigo ainda nos disse, movido
pela modéstia que caracteriza os espíritos superiores:
— Somente Deus poderá recompensá-los pela prestimosa ajuda, sem a qual
nada me teria sido possível. A alegria da consciência redimida não tem preço e
jamais olvidarei a colaboração dos amigos. Certamente nos encontraremos em
breve, pois irei visitá-los quando possível. Por ora o dever nos chama ao trabalho e
não podemos adiar nossas obrigações. Antes que partam, preciso, no entanto, pedir-
lhes mais um favor. Catherine, que finalmente puderam rever depois do interstício
de nosso silêncio, necessita novamente do precioso concurso de vocês. Ela fez
questão de acompanhar-me no atendimento às vítimas do holocausto, porém sua
sensibilidade a tem impedido de atuar como convém, diante dos atrozes
sofrimentos que vem presenciando. Tenho que continuar assistindo este sofrido
povo, junto à minha equipe de socorro, e gostaria

ícaro Redimido • 411


que a levassem para trabalhar ao lado de Adelaide nas enfermarias de Saint
Philippe, domiciliando-a em seus afetuosos corações.
Ante nosso aceno de anuência ao afável pedido, prosseguiu o amigo:
— Nossa boa irmã sente-se profundamente constrangida na presença de vocês,
ciente de que lhe conhecem o delituoso passado, o qual deseja encobrir. Logo que
se deu conta de sua atual condição, acoimada por imenso sentimento de culpa e
cientificando-se, por nosso intermédio, de sua vida transata e dos motivos que nos
unem, ocultou-se no hábito freiral que vestia no pretérito, a fim de evadir-se de si
mesma. Intentando retroceder à sua anterior reencarnação, ensejava eliminar
definitivamente da lembrança os opróbrios perpetrados em sua última experiência
carnal e solicitou-nos que a tratássemos pelo antigo nome. Porém, como não
podemos fugir indefinidamente de nós mesmos, aconselhamo-la a enfrentar com
galhardia a penúria íntima, fixando imorredouras lições para o futuro, reassumindo
sua personalidade atual.
Adelaide, comovida, envolveu-a em acolhedor abraço, externando- lhe profunda
compreensão e carinho, desfazendo instantaneamente seu injustificável desconforto
em nossa presença. A amiga, entibiada, esboçava acanhado, porém meigo sorriso,
completamente distanciada da expressão orgulhosa que antes deixava exalar de sua
altaneira personalidade, em meio às extravagantes fragrâncias francesas de outrora.
Heitor, registrando os nossos pensamentos, sorria, continuando a nos dirigir a
palavra:
— Contudo, não posso deixá-los, sem apresentá-la devidamente a Alberto.
Como vocês certamente já se deram conta, há profundas razões nas teias do destino
que os reúnem neste momento. Não nos convinha antes esta revelação, pois nossos
amigos precisavam do recolhimento a fim de se refazer dos dolorosos dramas que
confeccionaram para si mesmos. Destarte, a hora é chegada.
E, diante do novo assombro que nos tomava o espírito, achegando-se
carinhosamente à sua pupila, abraçando-a com desvelado amor e indicando
Alberto, revelou, enfim:
— Catherine, minha querida, eis Alberto, aquele que você colheu no seio
materno para depois rechaçar do corpo por ato impensado, indigno do seu coração,
pouco antes de seu retorno à pátria do espírito... Alberto, irmão dileto, esta é aquela
a quem você deve a recuperação integral da consciência e a evasão das dores do
suicídio doloso, renegando a bênção da vida... Filha, este é ainda Bartolomeu de
Gusmão, de quem lhe falei e com quem você compartilhou juras de paixão, em
Portugal, no século dezoito, emboraenvergassem hábitos sacerdotais... Bartolomeu,
estáéa irmã Paula, quem o acolheu no coração e soube honrar o amor que lhe

412 - Gilson T. Freire/Adamastor


devotava e quem você procurou por tanto tempo, ansiando saciar a imensa fome de
amor que lhe devorava a alma... Irmã Paula, este é ainda Zennon, aquele que
inventou a mais destrutiva das armas humanas e empreendeu a guerra, somente para
se vingar dos bárbaros que a roubaram de seu coração... Zennon, estaé, enfim,
Constança, quem lhe ensinou as primeiras lições de afeto, domando-lhe o espírito
rude e guerreiro e aquela ainda que o libertou do pesadelo de sombras que o retinha
nos abismos do ódio... Regozijemo-nos, irmãos, e agradeçamos ao Senhor a
oportunidade deste memorável reencontro.
Os dois amados se reviam, afinal, após longas peripécias do destino, emudecidos
e extasiados ante a inesperada revelação, justificando-se os sentimentos recíprocos
que inexplicavelmente os atraíam naqueles poucos dias de agradável convivência.
Com a voz embargada de emoção, continuou Heitor:
— Aprouve o Senhor reuni-los em minha presença, pois, fui eu quem os separei
drasticamente, causando-lhes enormes males, dominado pela doentia personalidade
do Cardeal da Cunha, há tantos anos, cujas lembranças não podemos olvidar. Duas
almas comprometidas pelos laços de genuíno amor, superando os séculos e a
maldade alheia, hoje se reencontram, ainda que em local tão impróprio, embora
irmanados pelo ideal cristão. Imensamente agradecido a Jesus por patrocinar-me
esta oportunidade, ainda lhes suplico o perdão pelo passado de inomináveis
crueldades que equivocadamente lhes impus. Acolho-os como verdadeiros filhos do
coração e espero que me considerem em seus sentimentos de piedade, dignificando-
me perante suas consciências e ajudando-me em minhas muitas necessidades.
Desfeitos em ardentes lágrimas, os três se abraçaram, enleados por imenso júbilo
e entretecidos por elevados sentimentos, arrancando-nos profundas emoções de
gratidão a Deus, Incansável Reconstrutor de nossas almas. Admirávamos a ação
persistente das forças da vida, que se utilizam de intricados caminhos para tecer os
fios do destino, enlaçando todos aqueles que se comprometem com o desamor ou
com a afetividade sincera, unindo-os em indissolúveis cadeias sedimentadas pelo
amor verdadeiro. Era um instante memorável e somente a prece silenciosa podia
ocupar nossos corações que, mesmo em meio ao torvelinho das mais infrenes
paixões humanas que o mundo já presenciou, inundavam-se de inefáveis eflúvios.
Estava revelada, enfim, toda a trama que envolvia nossos amigos e entrelaçava
suas vidas, tudo se explicando em lógica irretorquível.
— Como vêem, amigos — finalizava Heitor, profundamente

ícaro Redimido - 413


emocionado, — grande ventura concede-me hoje o Senhor, permitindo- me,
conjuntamente, o ressarcimento de duas grandes dívidas de meu pretérito, num
mesmo momento, mesmo em meio às acerbas infelicidades que nos cercam. Vemos a
vitória do Bem por intermédio de Aristides, salvando milhares de irmãos de inditoso
destino e duas almas se reencontrando nos descaminhos da vida. Quiçá prossigam,
agora refeitos de tantas dores e tamanhos erros, nas pegadas do Cristo, reconstruindo
futuro promissor de alegrias. Agradeço-lhes imensamente por me haverem auxiliado
nesta hora de importantes conquistas e desejo que o Bem continue a iluminar-nos no
firme propósito de prosseguir na trilha de nossa redenção.
Abraçando-nos, despedimo-nos, reconhecidos à Providência Divina, capaz de nos
recompensar todo o esforço despendido no trabalho socorrista, com multiplicadas
bênçãos de reconforto, ainda que as tormentas das Trevas nos ameaçassem a paz do
espírito. E, com os corações embriagados de pura afetividade, partimos em busca do
serviço que nos aguardava, convencidos de que o Amor vence os séculos, supera
todas as distâncias, aplaca e transforma o ódio por maior que seja, ultrapassa todas as
barreiras dimensionais para unir as almas em indissolúvel conúbio divino.

414 - Gilson T. Freire / Adamastor


37 capítuIo

Em um Campo de Luzes

‘Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque
tu estás comigo, a tua vara e o teu cajado me consolam. ”
Salmos, 23:4

ornando às nossas atividades em Saint Philippe, Catherine e


Alberto mal conseguiam dissimular a explosão de sentimentos
que lhes dominavam o coração, e seguiam, embevecidos, porém ao nosso lado,
empenhados na tarefa comum. Reassumimos nossas visitas diárias às frentes de
batalhas, executando nossa tarefa, como programado, e sempre que retornávamos
podíamos vê-los permutando amistosos diálogos, sem, contudo, demonstrarem as
paixões comuns dos enamorados. O longo período que os apartara, certamente
rompera com a intimidade que antes entreteciam e necessitavam de novo convívio
para refazê-la. Além disso, certamente Catherine inibia-se diante da recordação de
sua última experiência terrena, trazendo o coração conspurcado pelas leviandades
afetivas a que se rendera e a consciência oprimida pelas culpas dos atos
impensados, devendo esforçar-se por cicatrizar as feridas ainda abertas na alma.
Em nossas confabulações, revelava a amiga que se achava imensamente
reconfortada, sobretudo, por estar diante daquele contra quem, sabidamente, havia
praticado um irrefletido ato de maldade. Tinha plena consciência de que
assassinara Alberto, cruelmente, no próprio seio, embora trouxesse a nítida
impressão de que se tratava de alguém a quem muito queria, fazendo-me recordar
da visão que vertera de sua memória

ícaro Redimido ■ 415


profunda, no instante de seu desenlace96. Por muito tempo ansiara reencontrá-lo a
fim de desculpar-se e algo fazer em seu benefício, conquanto Heitor, sempre
disposto a consolá-la, lhe solicitasse paciência e resignação, prometendo-lhe que
esse dia não tardaria a chegar. Em suas orações pedia a Deus essa bendita
oportunidade, embora a vergonha a suscitasse ao recolhimento, ocultando de todos
o terrível passado.
Confessava assim seu alívio, afirmando, entretanto, que sua surpresa maior foi
deparar-se com um homem já feito e não uma criança, como esperava. Somava a
isso o enorme espanto de encontrar na mesma pessoa o amado de outros tempos,
levando-nos a refletir que, na iminência de se praticar o aborto criminoso, deveriam
os homens ao menos pensar na possibilidade de estarem diante de alguém muito
querido, contra quem jamais teriam a coragem de cometer a inclemência de
qualquer ato. Alegrava-se por estar perante ele, porém não se sentia imbuída de
instintos maternais para acolhê-lo como um filho rejeitado, encontrando-se
decididamente com suas emoções femininas bastante confusas, mediante as quais a
aconselhamos aguardar que o tempo lhe favorecesse a acomodação dos
sentimentos. Arrependendo-se amargamente de todas as ações impensadas de sua
vida, ainda se sentia envergonhada perante o companheiro de longas eras, por não
lhe ter mantido a fidelidade.
Alberto, com sua característica timidez, aproximava-se aos poucos da amada de
outros tempos, sem conseguir esconder seu profundo contentamento por
reencontrar aquela a quem tanto buscara em prolongados e penosos anos de solidão.
Embora o imenso interregno sem vê-la e os choques transreencarnatórios tivessem
lhe esvaído da memória a sua nítida recordação, estes não foram suficientes para
apagar completamente os sentimentos que nutria por ela. Contudo a afetividade, por
tanto tempo reprimida na última solitária incursão terrena, distanciara- lhe também
do exercício da afeição, exigindo-lhe que o coração se acomodasse paulatinamente
aos novos anelos que agora voltavam a vicejar em sua alma. Destarte, as
circunstâncias no momento eram adversas e ambos deveriam se empenhar com
afinco em prol dos sofredores da guerra, aguardando que a paciente obra do tempo,
que opera milagres em nós, refizesse-lhes as relações de estima, vigorosas, porém
ainda adormecidas no coração.
O espírito desencarnado detém as mesmas expressões de sentimentos da vida na
carne e permanece imbuído de idênticas atrações amorosas que nos entretecem as
construções afetivas. Podemos, inclusive, afirmar

96 Ver final do capítulo 13

416 - Gilson T. Freire / Adamastor


que a maioria das uniões conjugais duradouras se estabelece no Plano Espiritual,
onde se constroem as verdadeiras afeições e se confeccionam os sonhos de amor, os
quais prosseguem na vilegiatura terrena. Portanto, não é de se estranhar que as
famílias se formem no Mundo dos Espíritos, tal como se organizam na Terra, e os
casais que realmente se amam continuem compartilhando objetivos, estabelecendo
lares e comungando a vida na Erraticidade, sem levarmos em conta que o amor é
sobretudo imorredoura e estreme expressão da alma, transportada de uma existência
para outra, sem que o esquecimento temporário da carne desate os poderosos laços
que o sustêm.
Catherine servia com esmero aos desencarnados de guerra, adaptando- se ao
penoso serviço, ao lado de Adelaide, demonstrando excelentes qualidades no
exercício de enfermagem. Alberto, à medida que vencia a barreira de sua natural
timidez, com vivo entusiasmo, interessava-se em relatar à companheira suas últimas
façanhas terrenas, esmerando-se para não exibir presunção, enquanto a amiga
permanecia reticente em lhe abrir o coração, não lhe expondo os motivos de suas
penúrias que iam além do ato criminoso do aborto, pois se revestiam das execrandas
e inditosas experiências de cortesã, como sabíamos. Respeitávamos sua reserva,
aguardando que ela se superasse, retratando-se como lhe convinha. Entretanto, ante
os insistentes pedidos de Alberto, sobejamente interessado em saber quem fora seu
pretenso pai e se a irmã havia constituído uma nova família, a amiga terminou por
relatar-lhe suas malfadadas peripécias, imbuída de laudável humildade. Sem
conseguir ocultar a decepção, Alberto, demonstrando ainda a subjugação ao
condicionamento humano, andou novamente constrito e arredio, esforçando-se para
dissimular o desgosto que lhe invadira a alma. Porém seguia entretendo relações
amistosas com aquela que paulatinamente voltava a lhe habitar o coração e sabíamos
que superaria o cioso transe, pois já albergava certo equilíbrio emocional e suficiente
compreensão para isso. Envidando esforços para superar o homem velho, permanecia
em sua companhia, porém sem desejar tornar ao assunto, demonstrando o quanto a
notícia lhe admoestara a alma, conquanto Catherine prosseguisse correspondendo-lhe
com significativa candura, ainda que mesclada de vergonha e pesar. Compungia- nos
vê-la tristonha, pois sabemos que para o espírito desencarnado a revelação dos
grandes erros praticados na romagem terrena é uma de suas maiores dores,
sobrepujando qualquer outro sofrimento. O atendimento aos enfermos, destarte,
valia-nos como preciosa terapia para

ícaro Redimido - 417


os males albergados na consciência e, aguardando a sábia ação do tempo, não nos
animávamos a interferir na delicada questão pertinente aos seus corações.
Heitor, porém, em sua primeira visita ao nosso acampamento, interessado em
acompanhar os progressos de seus pupilos, denotou, de imediato, a distonia que se
estabelecera entre ambos, e convidou Alberto a refletir, com seriedade, na
embaraçosa dissensão que parecia dominar sua capacidade de reação. Em nossa
presença, asseverou-lhe como um verdadeiro pai:
— Filho, quando você irá abrigar-se, definitivamente, nas assertivas
evangélicas? Ouço seu coração nublando-se de indignação, assumindo a postura do
atirador de pedras, diante da sincera confissão de Catherine que, com humildade,
expôs-se à sua compreensão. Na vivência essencial que já desfrutamos e no patamar
de conhecimentos que já adquirimos, não nos convém estacionar nos melindres
humanos inferiores, vivenciando ciúmes injustificáveis. Não olvide que sua parcela
de responsabilidade nas transatas desventuras de nossa irmã é considerável, pois sua
irrefletida infidelidade, ao envergar a promíscua figura do padre Bartolomeu, eivada
de improbidades sexuais, maculou-lhe o digno coração de mágoas e forneceu o
exemplo para desmandos de igual natureza. Como lhe exigir fidelidade em uma
união que você mesmo se apressou a desrespeitar? Você foi o primeiro a se
prostituir nas peias da libido infrene. E recorde ainda que foi você quem dela se
distanciou por imposição da castidade compulsória, necessária ao seu reequilíbrio.
Sob o duro guante da solidão e alinhando na memória intuitiva a lembrança da
traição, a irmã se viu lidimada a arrostar as tortuosas veredas do heterismo.
Sabemos que a um mal nunca se responde com outro e um erro não corrige o que o
motivou, porém como não lhe perdoar os deslizes, se você foi o primeiro a semear a
devassidão em seu coração, estimulando-lhe a reação? Nossas vidas, filho, estão
peremptoriamente entrelaçadas em conúbio mantido pelas nossas ações e intenções,
de forma que nossas atitudes indevidas se voltam sempre contra nós mesmos,
impregnando-nos das mesmas dores que imputamos ao outro. O fato ainda nos
deixa entrever, mais uma vez, a sábia ação da Providência Divina que, pela Lei do
retorno o força a colher agora mais uma lição, embora advinda de tão distante
passado.
Ante o constrangimento do companheiro, o estimado preletor, acolhendo-o em
afetuoso olhar e abraçando-o, continuou com a autoridade

418 - Gilson T. Freire/Adamastor


que lhe competia, coagindo-o a realinhar os sentimentos de acordo com as
recomendações evangélicas:
— Constrita-me sobremaneira vê-lo em atitude de reprovação e injusta
cobrança de fidelidade. Desfaça a máscara de ignomínia que lhe veste a alma e
acolha no coração aquela que lhe é verdadeira alma gêmea. Aprenda a amar sem
caprichos, a fim de que seu amor não se converta em amargo fel, oprimindo a
pessoa querida. Na escola evangélica que freqüentamos é impossível pretender a
compreensão sem antes compreender, o respeito sem antes respeitar, o perdão sem
antes perdoar, como em prece tão bem nos ensinou o santo de Assis.
Alberto corou-se acabrunhado e, dirigindo-me o olhar complacente, buscava o
apoio de minhas palavras, que, no entanto, não lhe pude dispor. Calando-se diante
da realidade, sem ter o que dizer em sua defesa e, apercebendo-se perscrutado pelo
pensamento do magno espírito, tratou apressadamente de modificar os sentimentos.
E, em breve, víamo-lo remindo os danos do coração, retornando ao bom humor.
Irradiando alegria diante de sua amada, para alívio de todos nós, denotava que
rapidamente superara o desabrido transe emocional.
Nossa tarefa aumentava a cada dia, à medida que os conflitos se assomavam,
atingindo o seu ápice. As forças aliadas invadiam o sul da Itália, iniciando a cruenta
reconquista dos territórios ocupados pelo Eixo, deixando-nos entrever que os
embates se intensificariam, assustadoramente, por tempo prolongado. Os planos de
uma grande invasão na costa noroeste da França se estabeleciam como inevitáveis e
compreendíamos que somente um estupendo enfrentamento das forças em conflito
poderia colocar fim ao mesmo. Todas as possibilidades de um armistício, sugeridas
pelo Plano Espiritual Superior e que poderiam ser ouvidas por aqueles que detinham
o bom senso, encontraram-se com o fracasso. Na frente oriental, o povo soviético,
apesar de sofrer imensa devastação, reagira ao morticínio e avançava a passos
largos, adentrando-se nas regiões ocupadas pelos inimigos, sofreando-lhes a
inadequada sede de conquistas.
Os dias se escoavam, amargos e tristes, lentamente, na pasma ampulheta do
tempo, parecendo não ter fim o ciclópico pesadelo humano. O desalento por vezes
parecia nos abater, dominando-nos completamente a capacidade de servir. Destarte,
espíritos superiores, em atitude de imenso esforço se manifestavam, por vezes, ainda
que debilmente, ao nosso lado, em meio às emanações da barbárie humana,
cuidando-nos com imenso carinho e sopesando-nos o ânimo combalido. Exortando-
nos ao trabalho, traziam- nos palavras de reconforto, acalentando nossas tristes
horas com o bálsamo

ícaro Redimido - 419


da esperança e demonstrando-nos que a luz crística continuava a brilhar por sobre a
sombria furna humana, onde se chafurdava a maldade sem limites.
Os desencarnados se somavam aos milhões e nossos acampamentos e hospitais
logo se tornaram insuficientes para a acomodação do elevado número de
necessitados. Muitos sucumbiam de fome ou frio, em completa situação de
desamparo, sem que nada se pudesse fazer, enquanto outros eram
desapiedadamente maltratados até a morte nos formidandos campos de
concentração, em injustificáveis exibições de crueldade. Lares de encarnados, desde
que possuíssem um mínimo de equilíbrio espiritual, passaram a receber aqueles que
não tinham onde ser acomodados. Os óbitos em condições trágicas, em proporções
jamais presenciadas, exorbitavam nossa capacidade de serviço e infelizmente
muitos tardavam em encontrar o socorro, pois não alcançávamos atender a todos.
Trabalhávamos incansavelmente, dia e noite, orando com extremado fervor para
não fraquejar ante o assédio das poderosas forças do Mal em ação no Orbe.
Certos de que por cima do céu tempestuoso, resplendia ainda, sereno e
imperturbável, o sol de todos os dias, cuidávamos de fazer o bem que nos competia,
sem esmorecer, apesar da exaustão. E sob o caos da destruição, a sabedoria da Lei
prosseguia confeccionando destinos em conformidade com as semeaduras de cada
um, onde quer que se encontrasse. As forças mantenedoras da integridade da vida
continuavam a suster o planeta, e o Plano Espiritual, atento aos movimentos
inadequados das massas enfurecidas, tomava providências para que os danos se
limitassem ao menor possível e a paz tornasse a resplandecer em seus benfazejos
rincões. As turbas humanas, desvairadas, comandadas pela loucura e norteadas pelo
ódio, seriam frenadas por suas próprias inépcias e insopitáveis ânsias de conquistas.
Heitor, que de contínuo nos visitava, sempre nos trazia notícias de seus
assistidos, relatando-nos os ingentes sofrimentos a que se submetiam os famígeros
semitas. Vítimas de inenarráveis maus-tratos, eram mortos aos milhares em
câmaras de gás ou simplesmente fuzilados aos montões. Aqueles que denotassem
saúde para trabalhar eram escravizados e submetidos a árduas tarefas, e poucos
sobreviviam por tempo considerável. Enquanto outros ainda eram usados em
exóticas e terríveis experiências médicas, como se fossem meros animais de
laboratório. Diante do imenso pesar que nos invadia ao imaginar que havia naquela
guerra cruel infortúnios e dores ainda maiores do que aqueles que presenciávamos,
o

420 - Gilson T. Freire / Adamastor


estimado tutor, certa feita convidou-nos a conhecer de perto o seu posto
assistencial, visitando um campo de refazimento dos imolados no holocausto.
Foi assim que demandamos a seara de trabalhos cristãos de nosso querido
preletor. Atingimos uma região situada em um vale cercado por montes
alpinos, encimados por delicados capuzes de neve, onde se divisava um imenso
pórtico, escalado por trepadeiras floridas, porém sem que nada mais se
denotasse ao redor. Contudo, ao entrarmos por ele, um imenso ádito se
entreabria aos nossos atônitos olhos. Uma bucólica paisagem se derramava a
perder de vista, qual diferenciado mundo dimensional além do espaço que
ocupávamos. Imediatamente fomos tomados por acolhedora temperatura e
envolvidos por inebriantes essências florais. Uma mirífica planície se
debruçava em um horizonte longínquo, onde um rio serpentava por entre
campos verdejantes. À medida que nos aproximávamos, o cenário divino se
enriquecia de belos detalhes. Rebanhos de ovelhas pastavam em nostálgico
campo pastoril, sob cálido sol, em meio a reconfortantes sombras. Um lago
cristalino, espelhando infinito azul, beijava docemente uma enseada, onde
barcos pesqueiros descansavam mansamente. Oliveiras enfileiradas enfeitavam
os montes próximos e singelas casas bordejavam por entre jardins esplêndidos,
matizados de tons multifários e luzidios. Transeuntes serenos percorriam as
alamedas amplas, acolchoadas de relvas macias e crianças corriam alegres e
despreocupadas, sob o olhar cândido de mulheres afáveis. O clima transpirava
imensa calma, adornado por melodias de pássaros, sobrepondo- se a fundo
musical de cascatas, preenchendo o silêncio da paz que de imediato nos
invadia.
Heitor nos recomendou fixar o pensamento nas sugestivas imagens que
divisávamos, afastando firmemente qualquer idéia desalinhada que nos
assaltasse, a fim de não perturbar a sustentação do ambiente. Ante nossa
perplexidade, informou-nos:
— Encontramo-nos, amigos, em um verdadeiro “campo de concentração”
de forças do Bem. Confeccionado em uma fenda dimensional, este espaço,
inspirado nos dias pródigos do mar da Galiléia, é na realidade uma construção
ideoplástica edificada e sustentada por poderosas entidades superiores,
condoídas dos acerbos sofrimentos impostos aos irmãos semitas. Como um
autêntico limbo da teologia cristã, este ambiente os acolhe, nutrindo-os com
poderosos recursos de refazimento, preparando-os convenientemente para a
vida no Além.
Pasmos, diante do inusitado campo de forças mentais, não tínhamos
palavras para expressar nosso assombro e continuamos a ouvi-lo:

ícaro Redimido - 421


— Famílias são aqui reunidas e recebem a palavra consoladora de preletores
que se lhes apresentam como antigos profetas bíblicos, despertando-lhes recônditas
emoções, em base à fé que professam. Vivem aqui um verdadeiro interregno entre
a vida física e a espiritual, percebido como um sonho real, afigurando-se-lhes a
verdadeira “Terra Prometida” que por tanto tempo lhes acalentou os anseios.
Realmente estávamos em um genuíno oásis em meio ao inferno em que todos
vivíamos. Prosternados, reconhecíamos o imenso poder do Bem que, sob o broquel
divino e desde que haja mérito, é capaz de superar todos os empecilhos do Mal.
Antes porém que perguntássemos, Heitor nos esclareceu:
— Não se iludam, não estamos o tempo todo em trabalho neste páramo de
inefável quietude, enquanto os amigos servem em meio aos adidos infernais, sob o
fogo acirrado da ira. Nosso atendimento tem-se feito principalmente junto ao
sofredor ainda na carne ou prestes a desvencilhar- se dela. Como certamente os
irmãos haverão de se recordar, habilitei-me na arte da tortura nos afligentes tempos
da Inquisição e agora estou me adestrando no ofício do bálsamo, envolvendo os
supliciados em fluidos anestesiantes e assistindo-os em suas mortes, muitas vezes
lentas e penosas. Para este pórtico de paz são trazidos aqueles que detêm condições
de aqui permanecerem sem perturbar excessivamente o ambiente. Como puderam
notar, a maioria dos que aqui se aloja é composta de crianças, mulheres e idosos,
pois, boa parte dos flagelados não guarda condições de se albergar neste cenáculo
sublime. Muitos jazem ainda adormecidos em câmaras de regeneração, enquanto
que os mais revoltosos compõem exércitos de vingança e acorrem ao encalço de
seus algozes, arrastados por extremado furor, algemados ao ódio.
Seguindo Heitor, ganhamos o interior de uma das casas, construída na beleza
rústica de pedras naturais. Adentrando-a, aspiramos de imediato reconfortante
fragrância de sândalo, que, segundo nos informava o tutor, é capaz de arrefecer os
eflúvios do ódio. Enfermeira de aspecto angelical assistia um velho esquálido,
recém-desencarnado, sem dúvida submetido a atroz e prolongada fome, tendo ao
lado uma senhora de cabelos alvos, sustendo-o no colo,' que o preletor nos indicava
tratar-se de sua esposa desencarnada e já recomposta do transe.
Em respeitoso silêncio deixamos o paradisíaco local, reconhecidos ao estimado
amigo por proporcionar-nos momento de refazimento e consolo, assegurando-nos
que, por maior nos pareçam a desdita e a maldade humana, o Senhor provê recursos
suficientes para suplantá-las.

422 - Gilson T. Freire / Adamastor


Assoberbados pelas excessivas crueldades que presenciávamos,
respirávamos, enfim, em um campo de elísia paz. Extasiados diante do
imenso poder do Bem, tornamos, refeitos, aos nossos prementes afazeres.

ícaro Redimido - 423


Nas Teias do Destino

“Então retribuirá a cada um segundo as suas obras. ”


Jesus - Mateus, 16:27

V ivíamos naquele então horas decisivas na Grande Guerra. Enorme


conjunção de forças aliadas se alinhava na costa inglesa,
aguardando o momento para desferir crucial desembarque nas
praias da Normandia. O fragoroso ímpeto fratricida prometia atingir o
seu ápice, apesar da assombrosa destrutividade já demonstrada até então.
O Plano Espiritual Superior, destarte, movia-se, impávido, diante do
mal necessário, tratando de tomá-lo o menor possível. A inclemência do
tempo, refletindo o perigoso acúmulo das crueldades humanas, desabava
em incessantes tempestades, obstaculizando o deflagrar do assalto final
da guerra. Foi preciso que espíritos superiores expedissem ordens,
influenciando intuitivamente aqueles que detinham a capacidade de
deliberação. Stagg, o meteorologista escocês que fazia previsões do tempo
para os Aliados, de fato foi subjugado por estas operosas correntes
espirituais, no comando dos destinos humanos, orientando-o a fim de
apressar o fim do tormento planetário, garantindo uma correta previsão
de um dia claro, adequado à decisiva invasão, impedindo-se desastres
maiores para todos os envolvidos.
Estivemos na praia de Omaha e presenciamos os assombrosos embates corpo a
corpo entre as forças em choque, persuadidas a ganharem terreno à custa de
valorosas e inumeráveis existências humanas. Centenas de corpos jaziam
espalhados entre os formidáveis penhascos da bela paisagem marinha, maculada
pela dor e ultrajada pelo menosprezo ao dom divino da vida.
Em meio às brumas do desterro e da desilusão que a todos nos envolvia,

424 - Gilson T. Freire/Adamastor


notícias alvissareiras nos convocavam, por vezes, ao otimismo, acariciando-nos a
alma com o beneplácito da esperança na vitória da concórdia. O exército alemão,
estabelecido na famosa Fortaleza Europa, ameaçava derruir os diques de Zuider Zee,
promovendo imensa devastação nas terras holandesas, quando a Esfera Superior,
interferindo decisivamente na intimidade dos envolvidos, abrandou os corações em
luta, levando-os a negociarem um armistício parcial, comprometendo-se os Aliados
a não atacarem os inimigos sediados na Holanda em troca da preservação dos
diques, amenizando-se as precárias condições de subsistência do povo daquela
nação, onde milhares morriam de terrível fome. Formidáveis reuniões se realizavam
no Plano do Espírito, convocando-se generais e dirigentes dos países, durante o sono
físico, para confabulações em presença de magnas entidades, interessadas em
apaziguar os absurdos enfrentamentos fratricidas. Alguns se davam conta da
magnitude espiritual que vivenciavam nesses egrégios encontros e levavam para a
carne as reminiscências das orientações recebidas, assumindo condutas
apaziguadoras que terminavam em benefícios para todos, impedindo males maiores,
enquanto muitos, completamente dominados pelas entidades malignas, não podiam
sequer ser persuadidos a comparecer nessas luminares assembléias.
Estarrecemo-nos quando as Trevas, reagindo à atuação do Alto, respondiam,
incentivando o comando alemão à descabida “política da terra arrasada”, através da
conhecida “Operação Nero” que determinava às suas tropas a destruição de tudo que
pudesse ficar para os inimigos e a execução imediata dos timoratos que se negassem
a lutar até a morte. Atitude que nos revelava o imenso disparate da guerra,
demonstrando- nos que a ganância de seus dirigentes era o seu único e verdadeiro
móvel, pois uma vez que se viam impedidos de alcançarem seus egoísticos
propósitos, não mais se interessavam pela sorte de seus comandados, preferindo
fazer ruir a própria vida e a deles, a se curvarem diante dos vencedores. Fato que
estampava ainda a imensa maldade que permanece dominando o coração humano,
eco de clamorosa revolta que reside em nossos hábitos desde tempos imemoriais,
denegrindo a nobreza da substância divina que nos compõe.
Contudo, o Mundo Maior, recorrendo à ajuda do Cristo, conseguia demover de
muitos, que ainda guardavam o bom senso, a cruel determinação de tudo destruir,
impedindo inúteis devastações e um número ainda mais elevado de mortes em
diversos pontos do conflito. O Führer de fato havia expedido a ordem explícita de
reduzir a capital francesa a um monte de escombros, assustando-nos diante da
terrível ameaça que

(caro Redimido - 425


reverberava das Trevas. Porém ele não foi obedecido, graças à atuação
preponderante do Plano Superior, que mais uma vez se esforçou para comover o
que restava de hombridade nos corações de seus empedernidos generais,
macerados pela inevitável derrota. Aliviados, assistimos à Cidade Luz retornar à
normalidade, após a capitulação das forças germânicas, sem maior derrame de
sangue, denotando-nos que, finalmente, o bom senso prevalecia na alma humana e
a paz vencia.
Apesar de algumas vitórias da Luz sobre as Trevas, os combates se avultavam
com o avanço dos Aliados em direção às terras alemãs. E nosso trabalho também
se redobrava, parecendo exceder nossa capacidade de atuação, quando significativo
fato sucedia na vida de nossos amigos Alberto e Catherine, convocando-nos
novamente a voltar-lhes nossa atenção. Vários irmãos desencarnados, provenientes
de tropas brasileiras em luta nos territórios europeus, foram-nos encaminhados,
tendo em vista nossa origem comum. Dentre eles havia um soldado, que de
imediato chamou a atenção de Catherine, sem que ela soubesse o motivo. O
homem havia desencarnado em decorrência da explosão de uma granada que lhe
ferira profundamente a face, destruindo-lhe os olhos, impedindo-o de enxergar e
desfigurando-o por completo. Sua voz, contudo, trazia-lhe recordações imprecisas
de familiaridade. Ele, que ainda não se dera conta da própria morte, parecia
corresponder a essas mesmas impressões, pois freqüentemente lhe solicitava
cuidados, dizendo-se impressionado com seu sotaque francês que muito lhe fazia
recordar alguém de seu passado e que, se não a soubesse morta, afirmaria tratar-se
da mesma pessoa.
Revelando-se invadida por estranhos sentimentos em sua presença, a amiga nos
convocou a lhe explicar o que se passava. Reunimo-nos, assim, diante do
companheiro que trazia o rosto envolto por uma faixa. Interrogando-o, ele
retorquiu:
— Soldado Sampaio, 6° Regimento da Ia Divisão de Infantaria Expedicionária
Brasileira, senhor. Acredito que fui ferido pela explosão de uma granada, como me
informaram, pois nada vi na hora. O doutor acredita que voltarei a enxergar?
Estamos seguros aqui, senhor? Ainda ouço canhões...
— Acalme-se soldado, você ficará bom. Encontra-se em uma enfermaria,
entre amigos, e nada há a temer.
— Não posso morrer agora, doutor, tenho uma esposa grávida aguardando-me
em meu país e preciso ficar bom para cuidar de meu filho que em breve irá nascer.
Sob as ordens do General Mascarenhas, estamos lutando no Vale do Reno, em
companhia do 5Q Exército dos

426 - Gilson T. Freire / Adamastor


Estados Unidos, onde os alemães nos surpreenderam. Desejo recuperar- me
prontamente para voltar ao combate, não podemos deixá-los escapar, senhor,
esses brutamontes miseráveis precisam ser eliminados a qualquer custo...
Procurando afastá-lo do ódio, resguardava-o com palavras de consolo e,
fixando-o atentamente, sentia também a nítida impressão de já conhecê- lo.
Tocando-lhe a fronte, concentrei-me, procurando penetrar-lhe a intimidade e
estarreci-me ao identificá-lo prontamente. Heitor precisava ser informado de sua
presença entre nós e não me convinha qualquer comentário a respeito do
inusitado personagem, antes que nosso preclaro tutor examinasse a situação.
Atônito, solicitei paciência aos irmãos, convocando imediatamente a sua
presença para que melhor nos esclarecesse sobre aquela arguta peça do fadário
que nos dirige.
Assim que lhe foi oportuno, Heitor novamente compareceu junto a nós,
abraçando-nos e cumprimentando-nos com o efusivo carinho que lhe é peculiar.
E bastou-lhe ligeiro olhar para que identificasse de imediato o espírito sob nossa
análise. Com significativo brilho nos olhos, denotando que fora subitamente
invadido pela luz de sublime compreensão, recomendou retirarmo-nos, a fim de
que o assustado irmão não acompanhasse o diálogo para cujo entendimento
ainda não se achava preparado. Sorrindo, dirigiu-nos a palavra, eivada de
benevolência:
— O amigo fez bem em convocar-me para dar seguimento às nossas
demandas do passado, pois vejo que atingimos outro delicado momento em
nosso roteiro de redenção. Eis que o destino nos traz um verdadeiro presente...
E, suspirando profundamente, emanando complacência no olhar, completou:
— Estamos diante de Abelardo97, meus queridos!
Catherine, ouvindo o nome do antigo amante, aquele que lhe abandonara
covardemente ao engravidar-se de Alberto, estampou lívido assombro no rosto.
Ali estava, perante o mesmo homem que lhe ferira profundamente os
sentimentos femininos e por quem nutrira imensa mágoa por longo tempo, a
qual demonstrava ainda não haver de todo superado.
— Vejam como o acaso também tem suas leis! — refletia Heitor. —
Convém tecermos considerações pormenorizadas a respeito deste companheiro
que, seguramente, não se consorciou às tramas de nossos caminhos por mera
casualidade. Estamos diante de uma peça viva de

97 Ver capítulo 9 para maiores detalhes sobre este personagem, cuja verdadeira identidade está
oculta sob pseudônimo - nota do autor espiritual.

ícaro Redimido - 427


nosso passado, não somente da última encarnação de Catherine, porém de
personagem atinente à nossa transata história, perpassada ainda no século dezoito.
Ante nossa surpresa, o preletor continuou a explicar-nos:
— Como certamente os amigos se recordarão98, Alberto, então Bartolomeu,
desencarnou sem saber que havia engravidado uma de suas últimas amantes, Maria
Coutinho, jovem esposa de um de seus amigos, Miguel de Lara. Eram cristãos
novos, residentes em Lisboa, degredados do Brasil e mantidos sob severa vigilância
do Santo Ofício, em decorrência das idéias revolucionárias que apregoavam.
Bartolomeu, procurando por notícias de seu saudoso país, deles se aproximou e
passou a freqüentar- lhes a residência. Dados a inadequadas festividades noturnas,
Bartolomeu aproveitou-se da embriaguez do companheiro para seduzir, em uma
oportunidade, Maria Coutinho, atraído por sua beleza juvenil. Após o sumiço do
padre, a traição veio a ser descoberta pelo marido que, movido por grande
indignação, roubou-lhe a vida, apesar de ainda se achar grávida, passando a devotar
ingente, porém inútil, ódio ao infamante cônego, que então já havia deixado a
Terra. Pois estamos diante de Miguel, o esposo traído de outros tempos, que, por
obra do destino, uniu-se, em oportuna urdidura carnal, a Catherine, com o precípuo
intento de se vingar do antigo pároco, favorecido pelas rédeas que conduzem
nossos destinos. Convocado pelos enlaces do passado, seduziu-a também,
aproveitando- se de seu desterro, desfechando com ela os episódios que todos já
conhecemos. Vemos como a vida, em sua surpreendente arquitetura, prossegue o
seu dédalo de coligações, sempre obediente aos liames do pretérito, embora muitas
vezes nos pareçam tão distanciados no tempo. No âmbito da Lei, amigos, nossas
faltas não são jamais olvidadas e somente o infatigável escoar dos séculos nada
pode subtrair de nossos compromissos. Por isso, credores e devedores estão
inexoravelmente fixados nas teias do destino, até que convertam em legítima
fraternidade as adversidades que os unem.
Alberto mais uma vez se deixava dominar pelos torpes sentimentos humanos,
achando-se diante de um possível rival a lhe competir a afetividade da amada,
ferindo-o de substancial ciúme, que mal conseguia dissimular. Além disso,
surpreendido por fato tão longínquo que acreditava definitivamente esquecido,
ainda reverberando no presente, compreendia a extensão da Lei divina, exigindo-
nos, em qualquer tempo, a completa correção dos delitos e, constrito, admitia a
falta, corando-se de genuína

98 Ver capítulo 29.

428 - Gilson T. Freire / Adamastor


vergonha. Heitor, acolhendo-o na ternura de sua compreensão, instava-o ao
equilíbrio:
— Filho, de fato, a dor do arrependimento, refletindo nossas ações
impensadas, acompanha-nos através das experiências transreencarnatórias, fazendo
do opróbrio nosso maior sofrimento, por mais que o esquecimento temporário na
carne nos alije do palco da consciência a sua penosa recordação. Por isso não se
pode ir adiante sem encontrar soluções definitivas para o passado delituoso e a Lei
nos conduz sempre de volta aos campos onde semeamos a fim de ceifar a
indisponível colheita. Assim é que, mais uma vez o Senhor lhe pede a superação de
suas emoções humanas ainda imaturas e que aceite com alegria o convite para a
completa renovação dos valores do coração. Não aprendemos que quando o servo
está pronto o serviço lhe aparece? Pois, com alegria, podemos lhe afirmar que este
será o primeiro assistido de vocês na faina evangélica que iniciam, pois solicitamos
a Catherine o irrestrito apoio a esta empreitada, superando as antigas mágoas que
ainda dilaceram o seu nobre coração. Enquanto que no mundo nossa alegria se
esvai na busca de conquistas efêmeras da matéria, no afã de galgar posições de
destaques sociais ou na aquisição de diplomas que nos lustre a vaidosa
personalidade, aqui o que nos apetece e de fato nos felicita é fazer todo o bem que
podemos. Socorrer aquele que sofre e está ao nosso alcance é por isso nossa
prioridade máxima. Assim determina o Senhor da vida, pois, não se pode desfrutar
das venturas que Ele nos reservou, deixando na retaguarda os desafetos que
semeamos e as infelicidades que perpetramos. Compomos uma grande família
espiritual e um irmão detido em queda moral é um embaraço à nossa própria
ascensão; por isso, voltar-se para socorrê-lo é recurso indispensável ao próprio
avanço e à verdadeira alegria. Agradeçamos, portanto, a preciosa oportunidade de
redenção que a Providência Divina nos envia, a qual não podemos menosprezar.
Sem dúvida, podemos imputar o regalo como uma resposta do Alto ao esforço de
vocês na superação de suas mazelas e à dedicação ao serviço cristão que vêm
desenvolvendo em meio às crueldades deste ingente conflito.
Admirávamos os sutis caminhos que a Lei nos invoca, movendo-nos quais
meras limalhas de ferro imantadas pela inexorável teia magnética do destino.
Ciente de que a obediência e o labor compõem nossa via de redenção, o amigo
locupletou:
— Assim, ainda sob a orientação de nossos abalizados companheiros, a quem
solicitamos a continuidade da ajuda, irão amparar Abelardo em sua nova realidade.
Retribuindo à vida o mesmo que receberam, deverão dirigir os seus primeiros e
inexperientes passos na jornada do espírito.

ícaro Redimido - 429


Contribuindo com o seu crescimento e albergando-o na fraternidade genuína, torná-
lo-ão amigo leal do coração. Catherine lhe perdoará a infeliz incúria por havê-la
entregue à gravidez desvalida e Alberto se desculpará, mediante o trabalho em seu
favor, do delituoso desrespeito à sua amizade e confiança, no passado, quando ela o
induziu ao hediondo crime, no qual teve infeliz participação. Ambos irão ainda
amparar Maria Coutinho, a jovem viúva, ainda encarnada, e seu futuro filho,
aprendendo a amar sem caprichos e trabalhando para que seus destinos se cumpram
conforme a vontade da Lei. Amparando-lhe o infortúnio e auxiliando-a na inditosa
gestação, Catherine estará ainda reconstruindo os sentimentos maternais que
renegou. Lembrem-se, filhos, vocês já armazenaram o suficiente para poder
distribuir e, como o servo zeloso, convém agora multiplicar os tesouros divinos que
angariaram, sem olvidarmos que não há bem maior do que poder saldar as dívidas
com o trabalho, dispensando o sufrágio da dor.
E, interessado em extrair o máximo de ensinamento do encontro providencial,
explicou, lendo a sabedoria da vida:
— Vemos ainda, meus amigos, no episódio sob nossa análise, como a Lei,
refletindo a exata extensão de nossas faltas, não perde oportunidade de fazer da
experiência do viver, em todos os planos, uma permanente escola de sublimes
aprendizados. Abelardo, impregnado do erro da paternidade irresponsável, quando
abandonou Catherine no momento em que mais necessitava dele, deixa-se agora
apenar na impossibilidade de estar junto ao filho que antecipadamente já ama. Pela
morte violenta, resgata ainda o crime passional, e Maria Coutinho, sofrendo o
desterro, reconhecerá o valor da fidelidade. São males necessários para a correção
do espírito imortal, até que aprenda a acertada maneira de agir, segundo os padrões
ínsitos na própria consciência. Ninguém se evade do dever sem arcar com as
conseqüências, pois estamos sob constante vigilância do Senhor que, por nos amar
e nos querer perfeitos, vigia e nos educa, preparando-nos para o excelso destino
que a todos reservou.
Orando sentidamente, agradecemos a magnitude divina que, mesmo diante de
nossa imensa capacidade de perpetrar o mal, não se cansa de nos presentear com as
insignes oportunidades de refazer os descaminhos do erro. Exorando ainda o fim
dos sofrimentos daquela ignara guerra, despedimo-nos, tornando, reconfortados, às
nossas labutas diárias.

430 - Gilson T. Freire / Adamastor


De Volta à Colônia

“Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens de boa vontade ”
Lucas, 2:14

m meio aos esmolambados exércitos das Sombras, já exauridos

E de tanta crueldade, prosseguíamos recolhendo os desencarnados,


que pareciam não ter mais fim, seguindo a trilha da descomunal
ruína de todos os valores da vida. Contudo, com o avanço dos Aliados
pelas terras germânicas, a Grande Guerra prenunciava o seu ocaso e um
aceno de esperança passou a inundar-nos a alma, ávida de paz.
Ainda que o morticínio excedesse todas as medidas, as Trevas, insaciáveis,
transpondo as fronteiras da loucura, continuavam ditando normas aos incautos, pois
os exércitos enfurecidos, indiferentes à devastação que lhes seguia os passos e
desalmados pela insensibilidade perante tanta dor, agitavam-se ainda, movidos por
recalcadas vinditas, indignas do ser humano. Desapiedadamente, o que restava dos
inimigos era eliminado com idênticos requintes de crueldade que os mesmos
praticavam, igualando-se-lhes à barbárie. O massacre se multiplicava em
injustificável afã, como se os combatentes, ainda que exaustos, apressassem-se para
satisfazer seus incontidos instintos agressivos, antes que o fim determinasse a sua
suspensão, esboroando-se todas as injunções morais, exigindo das Esferas Superiores
redobrados esforços na contenção das infrenes maldades. No estóico avanço, as
Forças Aliadas ainda guardavam fôlego para disputar entre si a quem caberia o golpe
de morte final nos comandos nazistas, pleiteando inútil supremacia entre seus
generais, ávidos das glórias mundanas, demonstrando-nos que os louros da vitória
eram tudo que almejavam, enquanto comunistas e capitalistas,

ícaro Redimido - 431


em manobras espúrias, disputavam acirradamente os territórios de ocupação,
dificultando sobremaneira o estabelecimento do equilíbrio necessário à paz do
mundo, prometendo perpetuar a incontida altercação entre as garridas arrogâncias
em busca da hegemonia em que se compraziam.
Iniciava-se, enfim, a Batalha de Berlim, derradeiro entre-choque dos
remanescentes em guerra, quando novo e surpreendente fato nos chamou a
atenção. Por entre os densos cúmulos que permanentemente ocultavam o sol no
cenário espiritual da Guerra, resultantes dos imensos aglomerados de eflúvios
mefíticos do ódio, divisamos, certa manhã, um esmaecido clarão no horizonte.
Reunidos diante do intrigante fenômeno, qual o luzir de um desconhecido astro
invadindo a estratosfera terrestre, perguntávamo-nos do que se tratava, quando
amigos acorreram a nos informar que esferas celestiais se aproximavam da Terra,
penetrando nosso contrito cenário a fim de saneá-lo com suas poderosas luzes. Era
o “sol da paz” que se atirava às Sombras, ávido por acalentar o coração humano
enrijecido na luta e na dor, aplacando todo o fragor da maldade que ainda teimava
em vicejar nas paisagens do mundo. A cada dia o inusitado luzeiro se engrandecia,
até que, vencendo as nuvens de chumbo, precipitou-se sobre nós, em cascatas de
floculações luminosas, neutralizando as cinzas que se enevoavam
permanentemente ao nosso derredor, arrancando-nos lágrimas de incontida
emoção. Conquanto que os humanos e os espíritos inferiores, envolvidos ainda nas
fráguas dos embates nada denotassem, os mais atentos podiam sentir leve sensação
de alívio e bem-estar, desde que se aquietassem, permitindo-se aspirar as supremas
energias do Bem que se irradiavam em busca de corações sinceros para, enfim,
fecundá-los de paz genuína.
Desde este dia, suave lenitivo passou a refrigerar-nos a alma, inundando-nos de
aprazível fulgor, e a certeza de que o imenso pesadelo de morte estava prestes a
encontrar o seu fim. E não tardou para que o fenômeno atingisse o seu auge,
delineando deslumbrante panorama ante nossos atônitos olhos, dominando-nos
todas as emoções. De súbito, sobre as ruínas da capital germânica, as densas trevas
se espargiram e as nuvens fugiram, desairosas, entreabrindo-se para dar passagem
a um imenso séqüito de verdadeiros anjos, formando um coral de milhares de
vozes celestes, entoando hosanas, qual jogral de luzes, anunciando que o reino do
Bem voltava a predominar no coração humano. Compreendíamos de imediato que
a ignara Guerra chegara ao fim. Indizível alegria inundou- nos a alma e, inebriados
pela excelsa beatitude, ajoelhávamos à passagem

432 - Gilson T. Freire / Adamastor


do séquito angelical, dizimando as Trevas. Espetáculo sublime que os enceguecidos
pelo Mal não deram conta de registrar, entretidos que se achavam ainda em seus
baixos interesses. Muitos encarnados imbuídos de boas intenções, ainda que
hebetados pelo caos, puderam, sem dúvida, divisá-lo na tela da imaginação e se
exultaram com sua presença.
A Grande Guerra capitulava diante da arremetida das operosas forças do Bem. Os
grandes Dragões dos Abismos recolhiam-se às suas furnas, saciados de sangue e
crueldades. Os maltrapilhos exércitos de desencarnados se acomodavam, extenuados,
e, ainda em alarido, retornavam às suas alcovas sombrias. Silenciavam-se a revolta e
o ódio secular dos insensatos, enquanto os belígeros mercenários das Trevas,
exauridos de ânimo, ansiavam pelo repouso, mas não pelo Bem. A vingança ainda
vicejava na alma dos temerários, porém deviam arrefecer, por ora, seus instintos
barbarizados, pois as luzes do Cristo lhes obstaculizavam agora as belicosas
intenções.
E, logo, inexprimível júbilo assistia aos preparativos para o encerramento de
nossos trabalhos. Restava-nos terminar de recolher os que remanesciam entre os
escombros da morte e direcionar aqueles que não nos acompanhariam, para os
espaços espirituais de nosso convívio. Embora desejosos do pronto retorno à nossa
saudosa colônia, permanecemos no teatro da Guerra por certo tempo, desfazendo
nódoas de sombras, consolando corações amargurados, pensando feridos e
encaminhando os deserdados de toda sorte.
Convém esclarecer que espíritos de grande potencial evolutivo conseguem
emancipar-se do meio em que se encontram, projetando-se, pelos fenômenos do
desdobramento, em lugares de seu interesse, não importa a que distância estejam,
com relativa facilidade. Tal fenômeno, embora ao alcance de muitos que serviam
na Guerra, era imensamente dificultado pelas implacáveis vibrações que nos
assediavam, oprimindo- nos de forma a impedi-lo. Desse modo, a grande maioria
dos tarefeiros permaneceu reclusa no ambiente de trabalho, concentrando todos os
esforços na indispensável assistência espiritual, justificando-se assim a saudade que
a todos nos tomava de assalto.
Embora a Guerra ainda prosseguisse no Pacífico, não nos competia o
atendimento naqueles rincões, e os espíritos superiores nos prometiam que em
pouco tempo ela encontraria também o seu fim. Infelizmente, apesar dos esforços
do Alto para impedi-la, em breve assistíamos, estupefatos, ao desencadear da
hecatombe nuclear com as estupendas explosões atômicas nas terras nipônicas,
ocasionando formidando e

ícaro Redimido ■ 433


injustificável extermínio com graves repercussões para o equilíbrio do orbe, tanto
no plano físico quanto no espiritual. Conquanto o fato tivesse encontrado larga
repercussão nas esferas espirituais, disseminando incertezas e alarmando os mais
incautos, o desastre não nos atingia diretamente, exceto pelos sentimentos de
repulsa à insensibilidade humana e a perplexidade diante do poderio destruidor
que o encarnado atingia, ainda pouco amadurecido moralmente para penetrar nos
insondáveis poderes da criação. Confiantes, contudo, na direção da vida
planetária entregue às mãos do Cristo e a Quem pertence o nosso futuro,
aquietávamo- nos, cientes de que não há percalços injustificáveis na Lei e não
havia motivos para infundados temores.
Ante o mundo em escombros, saciado de revolta e sensibilizado pela dor, os
dirigentes espirituais da humanidade encontravam agora um ambiente mais
propício para se aproximarem dos encarnados, e as Esferas Elevadas se
movimentavam ativamente, determinando providências urgentes para que a ordem
se restabelecesse o mais depressa possível, evitando-se desastres ainda maiores no
porvir. Estejam seguros os homens, eles estiveram presentes na Conferência de
Yalta, alimentando-a com o amistoso clima em que se desenvolveu, contribuindo
para as concessões que os ocidentais faziam de boa vontade para os soviéticos e
inspirando a criação de uma nova união dos países, onde se pudessem resolver os
futuros conflitos, depois do fracasso da Ligas das Nações. Entretanto, este
ambiente de promessas apaziguadoras não se manteve e, uma vez que o Mundo
Superior se afastou, o clima de rivalidades se reacendeu, quando os marxistas
substituíram os inimigos nazistas pelas potências capitalistas do Ocidente e estas os
trocaram por aqueles, perpetuando-se as graves disputas entre os irmãos que
deveriam se amar como um só povo. Dividiu-se o orbe novamente em dois grandes
blocos antagônicos, amontoando cada qual, perigosamente, armas de grande poder
destrutivo, em permanente ameaça à paz mundial. Novos e ingentes esforços
seriam exigidos dos diretores espirituais do Orbe para que os propósitos do Cristo
se cumprissem, ao longo de nossa História, entretecida em conúbio de ambições e
dores.
Enfim, o hospital itinerante nos aguardava para o retorno definitivo e, depois de
acomodados devidamente os enfermos sob nossa custódia, iniciamos a viagem de
volta. Nossa chegada em Portais do Vale foi marcada pela discrição, embora
muitos acreditassem que seriamos recebidos como verdadeiros heróis de guerra.
Amigos diletos acorreram para nos dar as boas vindas, irradiando vibrações de
simpatia e consolo,

434 - Gilson T. Freire / Adamastor


dessedentando-nos a imensa saudade. Finalmente podíamos respirar, aliviados,
a longos haustos e repousar na paz do dever cumprido.
No trabalho cristão, angariamos numerosos amigos de outras terras,
inigualável prêmio da Divindade em recompensa ao nosso singelo esforço. E,
para nossa alegria, muitos deles, embevecidos pelos alvitres de Jesus, decidiram
nos seguir rumo às alvissareiras plagas do Cruzeiro, onde poderiam concretizar
almejadas conquistas no campo do crescimento espiritual. Soterrando pesaroso
pretérito de ignomínias na Velha Europa, formaram expressivo contingente de
seareiros, que se somou às fileiras do Espiritismo cristão, enriquecendo-o de
novos valores.
Heitor retornou à sua colônia deixando conosco Catherine perfeitamente
ambientada em nosso coração e, principalmente, no de seu amado, com quem
restabelecera completamente seus antigos laços afetivos. Abelardo, assistido
cuidadosamente por eles, fora recolhido em nossa enfermaria, onde
continuariam ministrando-lhe carinhosa atenção. Não tardou para que a
quietude nos acomodasse na rotina que nos satisfaz as necessidades de
realizações espirituais, fazendo-nos retornar à normalidade. Somente a prece
poderia encetar nosso reingresso à colônia e, em breve, nosso governador nos
convocou para uma grande oração coletiva de graças, no Templo Central.
Reunidos sob a égide do Cordeiro e o beneplácito dos dirigentes de nosso
núcleo, fomos agraciados pela visita de magnas entidades de luz, contando
entre eles o nosso amado Heitor. Nosso dirigente dirigiu-nos a palavra em
prece, elevando o pensamento a Deus, agradecendo a bênção do serviço
regenerador e a volta dos seareiros, enriquecidos pelo trabalho e pela renúncia
em prol dos necessitados. Cintilações cristalinas nos bafejavam a face,
inundando-nos de dúlcidas emoções, condecorando- nos com os eflúvios da
alegria. Eminente mentor, provindo de Alta Esfera, realizou preciosa preleção,
abordando a mais titânica das lutas que ainda nos competia enfrentar: o
combate aos arraigados hábitos da própria personalidade falida. Em seguida,
espalhados pelos aprazíveis jardins musicais de nossa cidade, congratulamo-nos
em imensa festa de receptividade, encerrando nossa reunião de boas-vindas sob
os encantos do zimbório estrelado cintilando luzes que, quais estupendos fogos
de artifícios, pareciam comemorar conosco o término do imenso pesadelo
terreno.
Por fim, recompostos, reassumimos nossa faina diária, felizes,
principalmente por assistir aos amigos Alberto e Catherine, encetando, de fato,
a condição de trabalhadores fiéis do Bem. Era chegado o momento,

ícaro Redimido - 435


enfim, de conferir-lhes o alvará de assistentes, determinando-lhes a alta da condição
de assistidos e integrando-os definitivamente ao rol de servidores de nossa colônia.
Solicitamos então de nossa direção a oficialização da medida, encerrando de fato o
serviço de tutoria que nos fora incumbido. Naturalmente, continuaríamos ao lado
deles, dispostos a ajudá-los no que fosse possível, cientes, contudo, de que a cada
dia eles se tornavam suficientes às próprias injunções no desempenho das tarefas
que lhes competiam. A genuína recompensa pelo nosso trabalho consiste em
verificar que nossos assistidos nos superam as possibilidades de auxílio e,
dispensando-nos a ajuda, se convertem em fiéis executores da vontade divina.
Os planos para o futuro eram os mais promissores possíveis. Alberto e Catherine,
embora ainda não tocassem no assunto, consorciar-se-iam em breve, iniciando a
reformulação de nova família terrena, fundamentada nos imperativos do
aprimoramento espiritual. Ambos trabalhariam ativamente em favor do núcleo
doméstico de Abelardo, fragmentado pelo seu prematuro desenlace. Catherine
compreendia que devia socorrer, urgentemente, as irmãs de desventura que deixara
na carne, especialmente sua querida Rosa99 a quem tinha por filha amada e precisava
instar novos caminhos. A jovem persistia atada às tristes urdiduras da prostituição a
que ela, Catherine, induzira, trazendo-lhe o fato pesaroso remorso, a usurpar-lhe a
paz de consciência. O serviço urgia e Alberto se comprometia em acompanhar-lhe
os passos na obra regeneradora, compreendendo, feliz, que seu novo roteiro se faria
de entrega total aos genuínos anseios de realizações espirituais, no campo das mais
puras expressões da fraternidade, olvidando, em definitivo, as suas idolatradas
máquinas. O atendimento aos sofredores do Vale dos Suicidas lhe era ainda convite
salutar, a fim de saldar seus compromissos com a vida, aprendendo a valorizá-la
devidamente.

99 Ver capítulo 9.

436 - Gilson T. Freire/Adamastor


O Canhão da Paz

“Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a Terra. ”


Jesus - Mateus, 5:5

O tempo transcorria, recompondo-nos a paz, quando, para grande


surpresa nossa, fomos convidados para uma das mais desusadas
solenidades já ocorrida em nossa colônia. O governador decidira
erguer um monumento em homenagem a Alberto. O fato, decididamente,
surpreendia-nos sobremaneira porque, como de hábito, as esferas
espirituais, que já se voltaram para os ideais superiores da vida, não se
dão a instrumentos de culto à personalidade, tal qual ainda ocorre no
mundo físico. Não idolatramos heróis, muito menos aqueles arrebanhados
dentre os que se destacam pela supremacia dos valores humanos ou
simplesmente pela execução de tarefas programadas na senda do progresso.
Comumente fazemos nossos próceres entre os homens santos que
desempenham serviços nobilitantes no Bem e atravessam a vida na came
sob o manto do anonimato e investidos de sincera humildade. Por isso
fomos tomados de imensa curiosidade, diante do surpreendente
acontecimento.
No dia aprazado, uma manhã domingueira enriquecida de eflúvios divinos nos
acolhia diante de uma edificação oculta por um manto, como nos moldes terrenos,
em um dos nossos jardins terapêuticos. Éramos poucos amigos e, junto com
dirigentes de nossa colônia, Heitor se fez presente, irradiando contentamento,
enquanto Alberto, demonstrando nítido acabrunhamento, relembrava os momentos
em que se via o alvo das atenções nas cerimônias da Terra.
Após um coral de vozes argênteas suscitar-nos a presença do Divino, o diretor
de nossa colônia, tomando a palavra, falou-nos, com entusiasmo:

ícaro Redimido - 437


— Amigos, reunidos sob a tutela de Jesus, convocamos a alegria para estar em
nosso meio, nesta pequena solenidade que haverá de nos renovar o ânimo para a
continuidade de nossas vidas.
Em seguida, convidando Catherine a descerrar o véu que o encobria,
surpreendemo-nos ainda mais, admirando o incomum monumento. Contraído em
marmórea matéria branca, um largo e baixo pedestal sustinha um belo homem
alado, à feição de um anjo, ao lado de uma espécie de canhão, com suas grandes
rodas, à moda das antigas peças de artilharia. Três alvos pombos pousavam sobre a
estrutura, um deles com as asas ainda abertas e um quarto alçava vôo das mãos
entreabertas do áleo e garboso ente que adejava meigo sorriso na face, delineada
em delicados traços helênicos. Em sua retaguarda, as ruínas de uma platibanda,
bordada por trepadeira florida, lembrava-nos os horrores da guerra, e, abaixo, letras
em relevo intitulavam a bela obra: “Canhão da Paz”. Findo o nosso espanto inicial,
o diretor continuou:
— Como vêem, não os convidamos aqui para homenagear um homem que se
fez herói na Terra, mas para nos alegrarmos com uma surpreendente proposta de
paz, nestes dias que ainda reverberam a agonia da imeisa Guerra que devastou a
Europa e os corações humanos.
Indicando com os olhos nosso intimidado amigo, prosseguiu:
— Alberto, que todos aqui conhecem e aprenderam a estimar, é um dos
socorridos do Vale dos Suicidas, de quem hoje nos orgulhamos em elevar à
condição de assistente. Poucos conhecem a sua história, porém podemos lhes
adiantar que este homem, em idos tempos, filiou-sc à disseminação da guerra,
aperfeiçoando e incentivando o uso do canhão como instrumento de destruição na
Terra, favorecendo a multiplicação da maldade. Depois de peregrinar pelas veredas
das Sombras, estimulando batalhas memoráveis entre os irmãos terrenos, iniciou o
caminho da regeneração, dedicando-se à missão de dar asas aos homens, como
todos sabem. Porém, o que muitos não se deram conta é que a sua mais
surpreendente invenção não foi propriamente o aeroplano, mas sim um outro
canhão. Este, porém, muito especial, pois se prestava a salvar vidas e não a destruí-
las. Sim, amigos, este instrumento, retratado fielmente nesta estátua que estamos
admirando, é um paradoxal canhão salva-vidas, a última de suas engenhosas
criações na jornada terrena. Sua finalidade era atirar bóias flutuantes no mar, à
beira das praias, em direção àqueles que lutavam para vencer as águas, ameaçados
de afogamento e por isso foi denominado Canhão Salvador. E temos notícias que o
aparelho chegou a salvar, de fato, duas vidas na França. O ser alado que o
locupleta,

438 - Gilson T. Freire / Adamastor


criação artística de nossos artesões, é ainda o mesmo ícaro da lenda antiga, porém
redimido e recuperado de sua estridulosa queda dos patamares da altivez. O mundo
da carne, fascinado ainda pelos rumores da guerra e embriagado pelos anseios de
ambição, não deu o devido valor ao invento e seguiu adiante no seu afã de
conquistar instrumentos de demolição e não de auxílio. Permaneceu o artefato
completamente esquecido e menosprezado pelos homens. Não se deram conta de
que, embora vestida de ingenuidade, estavam diante de sua mais significativa
criação para a regeneração de sua consciência imortal. Contudo, espíritos
iluminados se reuniram na praia de Biarritz, admirados do invento, pois, ainda que
vertida de uma alma que se encaminhava para a derrocada, simbolizava a redenção
de seu passado, comprometido com a destruição e, naquele momento, ele convertia
o seu malfadado canhão de outrora em arma de salvação e suscitante da paz.
Pudessem os homens, espelhando- se neste exemplo, transformar seus poderosos
arsenais de guerra em veículos de socorro e o Reino de Deus far-se-ia na Terra.
Desde aquele dia, entidades superiores identificaram em Alberto o pendor
apaziguador que o dominava e recolheram seu sincero desejo de ressarcir o
pretérito delituoso e aguerrido, através da alquimia evolutiva do espírito. Sua
contribuição à paz foi arquivada como genuína lembrança para os pósteros e
passaram a incentivar a sua luta contra a guerra. Embora eivado de bons propósitos,
em decorrência do ambiente de elevado teor espiritual em que passou a respirar, o
mensageiro da concórdia não foi ouvido com seriedade. Sua carta à Liga das
Nações foi ridicularizada e o prêmio, que instituíra para coibir o uso do avião na
guerra, a ninguém interessou, parecendo advir de alguém que já não estava no uso
pleno de sua razão. Os dirigentes dos povos, entorpecidos pelas injunções da
inferioridade e obedientes aos apelos das Sombras, preferiram seguir na soturna
faina da acirrada luta de interesses egoísticos, acumulando armas de terrível poder
destruidor, redundando no infeliz desfecho que abalou o mundo.
E, voltando-se particularmente para Alberto, perfilando palavras sinceras de
estímulo e não de evasivos elogios, tão ao gosto humano, acresceu:
— Nosso amigo merecia ter sido de fato condecorado pela contribuição à paz,
muito mais do que pelo desempenho em sua missão de cunho eminentemente
tecnológico junto à humanidade. Eis então que decidimos homenagear a paz,
mesmo cientes de que não nos convém a perpetuação do hábito de lustrar
personalismos com inadequadas idolatrias.

ícaro Redimido - 439


Estaríamos fazendo-lhe imenso mal e não um bem, estampando seu nome ou
sua efígie sob o monumento. Mas deixaremos aqui a sua lembrança, com seu arpão
salvacionista orientado para o Vale dos sofredores, fazendo-nos recordar que
nossos esforços devem permanentemente se voltar para o mar revolto do desespero
humano, onde se afogam os imprevidentes e em cuja direção temos que atirar as
bóias de nossa boa-vontade de servir.
A escultura possui áreas de sensibilidade psicométrica e, caso o irmão nos
permita, gravaremos em seus sítios de irradiação a sua história em forma de ondas
mentais coaguladas. Todo espírito sensível e que guardar interesse em conhecer a
motivação desta edificação, tocando-a, poderá ler o enredo de suas últimas
encarnações. Não queremos, contudo, entronizar o homem velho, sem dúvida ainda
aspirante à suntuosidade que a todos nos compraz, por isso não exaltaremos seus
feitos heróicos na Terra, pois se o fizéssemos, muitos outros nomes teriam que
igualmente ser lembrados no desempenho de sua missão. Porém, evidenciaremos o
relato de seus erros e suas fragorosas quedas, para que, espelhando-nos nelas,
possamos nos convencer, decididamente, de que o orgulho é fel venenoso que,
vertendo de nossa arrogância desmedida, é capaz de nos arremeter aos mais
profundos abismos da desdita e da dor. Compreenderemos que a vingança e a
guerra nos trazem imensos prejuízos evolutivos, consumindo largas porções de
nossa destino na correção de seus inquestionáveis equívocos. E ainda que,
finalmente, por mais lesada se encontre nossa consciência, a Lei nos favorece
sempre ensanchas para a recuperação, mediante o trabalho em prol do Bem e a
reforma sincera dos hábitos segundo os preceitos evangélicos. O seu roteiro de
regeneração servirá, não somente para soerguer os caídos de toda sorte, mas,
principalmente, para nos precaver das quedas pela arrogância, sem olvidarmos que
o seu esforço para a superação do instinto aguerrido será precioso exemplo,
exortando em nós a prática da concórdia e, quiçá, instigando os homens de boa-
vontade a transformarem suas armas em símbolos de mansuetude, fazendo da Terra
o reduto da paz celestial.
Convidando Catherine, escondida na simplicidade de meigo olhar, a amparar-se
sob o seu terno abraço, continuou, arrulhando aprazimento:
— O momento é propício ainda para darmos as boas vindas a esta valorosa
companheira que se integra ao nosso corpo de servidores e nos enriquecerá com
sua jovialidade, trabalhando pelo bem comum. E temos ainda a satisfação de
conferir-lhes, a Alberto e Catherine, nossa carta de alforria que os autoriza a
atuarem, doravante, como assistentes em nossa

440 - Gilson T. Freire /Adamastor


colônia, concedendo-lhes definitiva alta da condição de enfermos, embora todos
continuemos doentes diante da Lei, assistidos permanentes da Paternidade Divina e
carentes da redenção definitiva aos valores da perfeição. Convocamos as forças
superiores para lhes assegurar êxito nos novos e alvissareiros planos para o futuro,
em que as necessidades mais prementes do espírito falarão mais alto.
E, dirigindo-se com graça para Alberto, finalizou:
— Não se preocupe, irmão, não exaspere sua ansiedade diante da marcada
timidez. Não lhe daremos a palavra para que nos fale em defesa de sua imerecida
posição de homenageado e exalte, diante de nós, sua aspiração à sincera humildade.
Estamos reunidos para homenagear a Paz e não em nome de nossos arraigados
personalismos. Por isso pedimos apenas que Deus o abençoe, amparando sua nova
vida.
Envolvidos por sentida prece que Heitor nos teceu, convocando a concórdia na
Terra e exorando as bênçãos do Cristo para o sustento de nossos ideais, encerramos
a pequena festividade.
Exalando genuína alegria, congratulamo-nos, em meio às flores exuberantes
que, parecendo corresponder às nossas emoções mais puras, trescalavam perfumes
sublimes, envolvendo-nos em atmosfera de doce encantamento.
Adelaide, sorridente, comentou:
— Imagine o dia em que os canhões não terão outra finalidade do que servir de
poleiro para as aves!
— Neste dia os mansos de fato herdarão a Terra! Oremos para que esse
memorável momento não tarde a se concretizar em nossa História
— respondeu Heitor, irradiando sublime contentamento.
— Sinta-se recompensado, Alberto, pela perda de seu idolatrado ícaro. Que
Colin100 nos perdoe, mas, convenhamos, este é muito superior àquele que os
alemães lhe usurparam—completei, buscando ainda consolá-lo, recordando-me das
últimas ocorrências terrenas.
Sob o caricioso sol da manhã e os corações abastados pela mais sincera
amizade, desfrutamos do passeio pelo imenso parque florido que nos acolhia com
afabilidade, balsamizando-nos com dúlcidas emoções. Em meio à agradável tertúlia
que nos regrava de viva afetividade, Heitor, ornamentando o prazeroso encontro
com suas abalizadas considerações, proferiu:
— Um longo caminho se fez necessário para chegarmos até aqui,

100 Artista que criou a estátua de ícaro erguida na praça de Saint-Cloud, em Paris, e posteriormente
destruída pelos alemães. Ver capítulos 18 e 34.

ícaro Redimido - 441


porém temos sobejos motivos para nos alegrar e agradecer a Deus pelos resultados
obtidos. Embora nossa luta no afã do aprimoramento não cesse, podemos respirar
aliviados e mirar auspicioso futuro pela frente. Imbuídos dos melhores propósitos,
abandonaremos, sem dúvida, as equivocadas veredas da maldade e do orgulho e,
tendo solvido definitivamente parte de nosso doloso pretérito, podemos doravante
aplicar o nosso potencial evolutivo na conquista de valores eternos, dedicando- nos
com penhor ao sofrimento alheio, no encalce dos mais genuínos propósitos cristãos
que nos mobilizam todos os anseios e sonhos.
Elevando seu proficiente olhar para o alto, acrescentou, profetizando as rotas
do porvir:
— Alberto, que vemos entediado do passado, abandonará as máquinas para
que outros continuem seu esforço e o veremos avançar, feliz, empenhando-se no
aprimoramento do espírito e no socorro àqueles que carecem mais do que ele. Seus
vôos não se farão mais nas débeis álulas de seda e bambu, mas nas asas soberbas
do Evangelho, abrigado em alcovas alcandoradas de sólidos conhecimentos
espirituais que o protegerão de novas quedas. Estamos seguros que ele e Catherine
marcharão por esta trilha de redenção, edificando um legado de venturas,
acalentados pelos sublimes propósitos de renovação e anelos que atendam,
sobretudo, às novas necessidades de suas almas. Juntos reconstruirão o lar desfeito
há tanto tempo e os veremos encaminharem-se para a concretização destes
elevados ideais. Não tardarão retornar à carne, em decorrência da premente
necessidade de fixarem no espírito as insignes lições recebidas. Porém, ambos,
assoberbados pelas faltas do pretérito, indelevelmente marcadas na memória,
distanciar-se-ão dos falaciosos alvitres do mundanismo e temos certeza de que os
imperativos de reforma moral, peremptórios, guiar-lhes-ão de agora em diante os
resolutos passos. Neste sentido, os anos que serviram como enfermeiros de guerra
serão decisivos na escolha de seus novos roteiros de vida e de trabalho.
Acolhendo os irmãos em amoroso afago, expressou, auspiciando-lhes:
— Não se preocupem, vocês não se perderão nas veredas do vindouro, pois já
guardam o farol do Cristo no coração. Ademais, estaremos de prontidão para
alertá-los quanto a possíveis tentativas de evasão de rumos. Sem dúvida que, como
todos, acossados pelos hábitos daninhos do passado, terão que lutar contra os
crivos da personalidade ainda doente e viciosa no continuísmo dos equívocos
egoísticos, contudo, eles serão facilmente suplantados pela nova fé que hoje lhes
robustece o espírito. A dedicação ao homem, à família, a redescoberta dos afetos e
da ciência do espírito

442 - Gilson T. Freire / Adamastor


lhes serão seguros beneplácitos para que sedimentem na alma o almejado título que
todos buscamos: o de Seareiro de Jesus.
E, dirigindo-nos particularmente cândido olhar, aduziu:
— Nosso maior contributo a esta aventura de soerguimento do passado
delituoso foi ter angariado novos e leais amigos, enriquecendo-nos a alma de
inapreciável tesouro. Eis o pagamento da Lei, relicário que ultrapassa todo o meu
mérito. Selemos agora, irmãos, o compromisso de nos fazer uma só família,
jungidos pelos benfazejos desígnios que comungamos.
Abraçamo-nos enternecidos e, comovidos diante da imensa expressão de lídima
fraternidade que nos abastecia o coração de reconfortantes blandícias, ouvimos de
Heitor, finalizando o inesquecível encontro e para nossa imensa satisfação:
— Irmãos, trago assente autorização para que partamos, todos, em excursão de
entretenimento e repouso em esfera elevada, a fim de recompor a exaustão do
trabalho. Os amigos devem apressar diligências, transferindo suas inadiáveis
obrigações para outros servidores, pois devemos seguir viagem imediatamente. Os
colegas de labor saberão tolerar suas ausências por breve período, sabendo que
retornarão com forças redobradas e renovado entusiasmo para o prosseguimento das
indispensáveis atividades.
O infinito azul do firmamento e o solfejo dos pinheiros agitados por brisa amiga
expressavam nossa gratidão a Deus pelo final feliz de mais uma jornada em prol do
Bem. Invocando o Seu nome para nos sustentar na estrada da redenção rumo à Sua
Casa de Amor, retiramo-nos, para jamais nos apartar.

ícaro Redimido - 443


Glossário

Esta pequena coletânea de termos e expressões contém aqueles considerados


mais difíceis ou mesmo inexistentes nos dicionários habituais, preparada pelo
medianeiro, a fim de facilitar a revisão durante a leitura e a análise mais
aprofundada do estudioso. Foi utilizado o Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa para a definição da maioria das palavras mais comuns e aquelas em
itálico são neologismos oriundos desta obra.

Amnésia transreencamatória - esquecimento parcial ou completo das experiências


de vida da última encarnação que acomete espíritos em trânsito no Mundo
Espiritual por suicídio ou desencarne durante a vida intra-uterina.
Apsiquia - a completa inibição da atividade da consciência, caracterizando, no
desencarnado, a segunda morte.
Autocatálise - impulso autocatalítico - impulso de natureza autodestrutivo.
Cacotanásia - a morte que ocorre sob condições extremamente traumáticas do
corpo físico, em meio à intensa exasperação do desencarnante, como aquela que
acontece durante uma batalha.
Catalepsia - estado de inanição, rigidez muscular e contração da consciência
simulando a morte física.
Catatonia - tipo de esquizofrenia caracterizada por intenso negativismo e completa
inanição da consciência.
Cianóides - também chamados homens-azuis, assim são denominados em Portais
do Vale, os suicidas do tabagismo, por se apresentarem com o perispírito azulado,
em decorrência do elevado teor de gás carbônico aspirado em vida, impregnando
suas delicadas malhas fluídicas.
Desovoidização - ensaios biológicos reencarnatórios promovidos para a cura dos
ovóides, induzem comumente a malformações embrionárias.
Distanásia - designa os tormentos das desencarnações obstaculizadas por diversos
motivos, prolongando-se indevidamente o desligamento do espírito.
Efeito telessomático - ação do pensamento à distância sobre o organismo de
outrem.

444 - Gilson T. Freire/Adamastor


Embrióides - espíritos que desencarnam na fase de desenvolvimento embrionário e
fixam o molde perispiritual na forma carnal que abandonaram, por tempo
indeterminado.
Embriomorfia - estágio delicado em que se apresentam espíritos abortados, depois
da morte, quando a histogênese perispiritual se estaciona na fase do
desenvolvimento embrionário detido, impregnando-se suas malhas da aparência de
fetos dismorfos.
Feticídio - ato de assassinar o feto, aborto criminoso.
Hiperegóico - o indivíduo embalado pelo hiperegotismo, expressando- se com os
hábitos da arrogância, prepotência e orgulho desmedidos.
Hiperegotismo - o exagerado crescimento do ego, o egoísmo exacerbado,
extrapolando-se o eu para além de seus limites de contenção evolutiva. Caracteriza-
se por todas as atitudes de exaltação da própria personalidade como a arrogância e
o orgulho. Nos casos extremos configura a megalomania. No plano físico determina
crescimentos celulares exagerados, as hipertrofias, como os tumores e os
hiperfuncionamentos orgânicos diversos.
Hiperpsiquia - o conjunto de hábitos personalísticos que distinguem o
hiperegotismo, caracterizado por grande determinação, exagerada autoconfiança,
exaltada busca de prazeres e desmedida presunção, expressando-se a arrogância em
toda a sua pujança.
Hipoegóico - o indivíduo dominado pelo hipoegotismo, estado psíquico
caracterizado pela diminuição da expressão do ego, em todas as suas
possibilidades.
Hipoegotismo - acentuada contração das forças que sustêm o ego, situando o ser nas
antípodas do hiperegotismo, ou seja, a redução do ânimo, da alegria, da auto-
estima, da autoconfiança e todo o conjunto de valores cultivados pelo eu na jornada
evolutiva. No plano físico determina hipofuncionamentos e degenerações celulares
e no plano mental induz à hipopsiquia com seu cortejo de sintomas.
Hipopsiquia - o conjunto de hábitos personalísticos que caracterizam o hipoegótico,
distinguido por falta de determinação, perda da autoconfiança, negação dos
prazeres e baixa auto-estima, expressando-se como o distúrbio depressivo em todo
o seu conjunto sintomatológico. Em casos extremos evolui para a apsiquia, a
paralisação das atividades psíquicas conscientes, estado que, no Mundo Espiritual
antecede a ovoidização.

ícaro Redimido - 445


Histogênese perispiritual - fase final da desencarnação caracterizada pela rápida
recomposição dos tecidos perispirituais desfeitos no processo inicial do desenlace.
Auto-reconstrução que se processa segundo o molde previamente desfeito,
obedecendo os registros morfológicos retidos no campo estrutural da forma,
recompondo um corpo semelhante ao da vida física.
Histólise perispiritual - fase inicial da desencarnação, em que o perispírito
processa a destruição e a contração de suas malhas teciduais.
Ideoplastia - ação exercida pelo pensamento sobre a matéria. Ato de se
confeccionar formas visíveis com substâncias sutis do pensamento.
Impulso auto catalítico - ver autocatálise.
Impulso histogênico - ver histogênese perispiritual.
Impulso histolítico - ver histólise perispiritual.
Miniaturimção ou restringimento - processo de redução do perispírito,
mormente antecedendo o início da reencarnação. Quando ocorre fora do útero
acarreta o fenômeno da ovoidização.
Morte ovoidal - o mesmo que pseudomorte ovoidal ou ovoidização - o
encistamento ovoidal do espírito em fuga de si mesmo e da vida (ver ovoidização).
Obiatras - espíritos obreiros da desencarnação, especializados na assistência
imediata à morte.
Ovo hipoativo - óvulo fecundado que tem a movimentação e o desenvolvimento
lentos, sem que a medicina da Terra identifique os motivos disso. Decorre da
encarnação de espíritos imbuídos de baixa atividade energética perispiritual, como
os suicidas.
Ovoidização - o estabelecimento da forma ovóide em espíritos desencarnados,
regredidos na forma. A conformação humana se perde, reduzindo-se o perispírito à
um cisto de dimensão de um crânio. O processo se estabelece em decorrência de
dois tipos de impulsos: o autodestrutivo, no qual impera o desejo da não
continuidade da existência no Plano Espiritual; e o monoideísmo, movido pela
fixação em intensos sentimentos de vingança. Transforma-se o desencarnado em
um parasita do psiquismo humano, fixando-se nas mentes dos incautos, de onde
retira os eflúvios vitais de que necessita para o seu metabolismo. Esta grave
patologia da alma somente é curada através de reencarnações, restituindo-

446 - Gilson T. Freire/Adamastor


se a forma do perispírito em dolorosos processos que envolvem abortamentos e
malformações embrionárias importantes. É o mesmo que morte ou pseudomorte
ovoidal.
Projetor psicocinegráfico - ou projetor telecinético - espécie de espelho que
colhe as imagens mentais do enfermo, configurado em matéria plástica altamente
sensível às projeções da mente.
Pseudomorte ovoidal - o mesmo que morte ovoidal - o encistamento do espírito
em fuga de si mesmo e da vida (ver ovoidização).
Psicólise - termo de origem espiritual que significa a autodestruição do
psiquismo, ou seja, do próprio eu inferior. É empregado para designar o
movimento autodestrutivo que continua a embalar o suicida após o seu desenlace.
Psicolítico - indivíduo embalado por impulso autodestrutivo, suicida. Termo de
origem espiritual oriundo de psicólise, já definido, significando aquele que, no
Mundo Espiritual, continua se autodestruindo, negando a vida. O suicida do
espírito.
Psicometria - embora o termo, em psicologia, designe a mensuração possível dos
processos mentais, na ciência espírita é empregado no sentido que lhe confere
André Luiz, na obra Nos domínios da Mediunidade: “nos trabalhos
mediúnicos, essa palavra designa a faculdade de ler impressões e recordações ao
contato de objetos comuns”. Compreende- se, portanto, que a matéria é suscetível
de captar registros vibracionais emitidos pelas pessoas que a manipulam, servindo-
se como uma fonte de informações e sensações para indivíduos sensíveis, capazes
de lê-los, através da mediunidade psicométrica. Neste trabalho vemos que os
objetos de uso pessoal podem ser uma fonte de energias restauradoras para o
espírito que os utilizou, prestando-se a auxílio terapêutico específico a certas
necessidades, como a amnésia transreencarnatória.
Psicosfera - a aura, a emanação de origem biomagnética que se irradia em torno
do perispírito, o mesmo que campo bio-magnético.
Psicossoma - o mesmo que perispírito.
Restringimento - ver miniaturização.
Revisão mnemônica, revivência mnemônica ou recapitulação
panorâmica - recapitulação das etapas vividas na última encarnação, logo após a
morte. Tal fenômeno é visto como uma projeção cinematográfica tridimensional e
se passa em fugazes minutos, embora

ícaro Redimido - 447


seja percebido em uma outra realidade, parecendo demandar longo tempo. Este
período corresponde à reconstrução da consciência e do perispírito (histogênese
perispiritual) preparando o ser para a nova vida que se inicia.
Segunda morte - estado de perda da consciência ativa do espírito após a morte
física. Utilizado como sinônimo de ovoidização, pseudomorte ou morte ovoidal, na
realidade é estado ainda mais avançado de inconsciência caracterizado pela
estagnação perispiritual, como o resultado de aprofundamento do psiquismo em
estados primitivos do ser. Gravíssima e rara patologia da alma desencarnada,
acomete espíritos com alto quilate de rebeldia e maldade, levando ao completo
embotamento da consciência, com a total paralisação do metabolismo orgânico e
psíquico, conhecida também como a petrificação perispiritual. No entanto, tal
fenômeno não pressupõe a plena anulação do espírito, fato inadmissível diante da
indestrutibilidade divina da vida que o nutre. Paulo de Tarso se referiu à segunda
morte e suas modalidades, quando nos afirmou que o “salário do pecado é a morte”
(Romanos 6:23).
Suicida do espírito - o desencarnado em processo de fuga de si mesmo, negando
a continuidade da vida após o túmulo. Embalando-se em um impulso
autodestruitivo, termina por se promover a ovoidização. Naturalmente que o termo
é apenas uma força de expressão e não pressupõe o aniquilamento da
individualidade.
Teratogenia ou teratogênese - a produção de formas monstruosas durante o
desenvolvimento embrionário. Segundo a medicina deve-se a defeitos genéticos
graves de natureza aleatória, mas segundo o conhecimento espírita, sua causa
reside nas aberrações perispirituais, engendradas pelo próprio ser.
BO

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Mensagem de Santos
Dumont

Amigos, Deus vos recompense.


A lembrança da prece me comove as fibras mais íntimas. O espírito liberto
esquece o homem prisioneiro. A alvorada não entende a sombra.
Tenho hoje dificuldades para compreender a luta por que passei e, não fosse a
responsabilidade que me enlaça ainda no campo humano, em vista das aflições que
me povoaram as últimas vigílias na carne, preferiria que as vossas recordações,
ainda mesmo carinhosas e doces, não me envolvessem o nome de lutador
insignificante.
Descobrir caminhos foi a obsessão do meu pensamento. Reconheço hoje,
porém, que outra deve ser a vocação da altura. Dominar continentes e subjugar
povos, através dos ares, será, talvez, extensão do domínio da inteligência perversa
que se distancia de Deus. Facilitar comunicações às criaturas que não se entendem,
possivelmente será acentuar os processos de ataque de surpresa e morte. Nas
desventuras da guerra dolorosa é a situação do missionário da ciência que se vê
confundido nos ideais superiores. Atormentada vive a cultura que não alcançou o
cerne sublime da vida.
Terei errado buscando rotas diferentes? Certamente não. O mundo e os homens
aprenderão sempre. A evolução é fatal.
Todavia, recolhido presentemente à humildade de mim mesmo, procuro
caminhos mais altos e estradas desconhecidas, no aprendizado do roteiro para o
Cristo, Senhor de nossas vidas. Não há vôo mais divino do que o da alma. Não
existe mundo mais nobre a conquistar, além do que se localiza na própria
consciência, quando deliberamos converter-nos ao Bem supremo. Sejamos
descobridores de nós mesmos. Alcemos corações e pensamentos ao Cristo.
Aprimoremo-nos para refletir a vontade soberana e divina do Alto por onde
passarmos.
Crescimento sem Deus é curso preparatório de queda espetacular. Humilharmo-
nos para servir em nome de Deus é o caminho da verdadeira glória.
De qualquer modo, agradeço-vos. O trabalhador, que repara as

Icaro Redimido - 449


possibilidades para ser mais útil, jamais se esquecerá de endereçar reconhecimento
às flores que desabrocham na senda.
Crede! Não passo de servidor pequenino.
Que o Senhor nos enriqueça com Sua divina bênção.

A. Santos-Dumont

NOTA DO MEDIANEIRO:
Mensagem recebida por Francisco Cândido Xavier, em Pedro
Leopoldo, na noite de 20 de julho de 1948, em resposta à carinhosa
prece que o grupo ali reunido enviara ao grande inventor,
recordando o dia de seu aniversário.
Ela nos mostra que Santos Dumont já havia se recuperado,
embora tivessem decorrido apenas 16 anos de sua trágica morte,
tempo considerado curto, tendo em vista a habitualmente longa
recuperação dos suicidas. O teor de suas palavras nos atesta que ele
já se movia rumo à aquisição de nobilitantes conquistas, sobremodo
distanciadas dos antigos interesses que o motivaram na vida física,
comprovando-se as revelações aqui expostas.

450 - Gilson T. Freire/Adamastor

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