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FLÁVIO APARECIDO DE ALMEIDA

ORGANIZADOR

RELIGIÕES
CIÊNCIAS DAS

UMA ANÁLISE TRANSDISCIPLINAR

editora científica
RELIGIÕES
CIÊNCIAS DAS

UMA ANÁLISE TRANSDISCIPLINAR

1ª Edição

2020

editora científica
Copyright© 2020 por Editora Científica Digital

Copyright da Edição © 2020 Editora Científica Digital


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SUMÁRIO
CAPÍTULO 01........................................................................................................................................... 12

A EXPERIÊNCIA DO TEMPO NAS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO

Vicente Artuso

DOI: 10.37885/201001634

CAPÍTULO 02........................................................................................................................................... 28

A INFLUÊNCIA DA FREQUÊNCIA A GRUPOS RELIGIOSOS NO IMC E NOS HÁBITOS ALIMENTARES


DE ADOLESCENTES

Teresa Helena Schoen; Maria Sylvia de Souza Vitalle; Helena Seibert

DOI: 10.37885/201001678

CAPÍTULO 03........................................................................................................................................... 40

A INFLUÊNCIA DO PAÑCATANTRA E DA VIDA DE BUDA NA LITERATURA EUROPEIA

Arilson Paganus

DOI: 10.37885/201001620

CAPÍTULO 04........................................................................................................................................... 56

A INTERFACE EVANGELHO E PRISÃO NA CONTEMPORANEIDADE

Antônio Lopes

DOI: 10.37885/201001778

CAPÍTULO 05........................................................................................................................................... 67

A MOTIVAÇÃO APOCALÍPTICA NA REDAÇÃO FINAL DO LIVRO DE JOEL: UMA LEITURA


LIBERTADORA CONTRA O IMPERIALISMO GREGO

Natalino das Neves

DOI: 10.37885/201001642

CAPÍTULO 06........................................................................................................................................... 75

A NARRATIVA RELIGIOSA EM SALA DE AULA:UMA TÉCNICA DIDÁTICA PARA ESTUDAR O MITO

Virgínia Macêdo de Souza Silva

DOI: 10.37885/201001638

CAPÍTULO 07........................................................................................................................................... 86

A RELIGIÃO E O CONTEXTO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Flávio Aparecido de Almeida

DOI: 10.37885/200801035
SUMÁRIO
CAPÍTULO 08......................................................................................................................................... 100

A TEOLOGIA E O SOFRIMENTO NO CONTEXTO PÓS-MODERNO: PISTAS PARA O


ACONSELHAMENTO PASTORAL

Aíla Luzia Pinheiro de Andrade

DOI: 10.37885/201001689

CAPÍTULO 09..........................................................................................................................................111

A VOZ PROFÉTICA DA IGREJA CATÓLICA E O ZELO PELO MEIO AMBIENTE

Ulysses Gusman Júnior

DOI: 10.37885/201001780

CAPÍTULO 10......................................................................................................................................... 131

AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES E O EXERCÍCIO DO MOVIMENTO DA TRANSFORMAÇÃO DOS


SEUS SABERES PARA O ENSINO RELIGIOSO

Sidney A. da C. Damasceno; Cláudia Patrícia F. da C. Damasceno; Marinilson Barbosa da Silva

DOI: 10.37885/201001608

CAPÍTULO 11......................................................................................................................................... 152

ATORES EVANGÉLICOS NO PARLAMENTO BRASILEIRO – DA PRESENÇA PROTESTANTE À PRESENÇA


PENTECOSTAL: O QUE MUDOU (2011-2015)

Saulo Baptista

DOI: 10.37885/201001773

CAPÍTULO 12......................................................................................................................................... 163

CAMINHOS DE DIÁLOGO E ORIENTAÇÃO: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE AS SENDAS


DA PSICOLOGIA ANALÍTICA E DO BUDISMO MAHĀYĀNA

Fábio Roberto Medeiros

DOI: 10.37885/201001692

CAPÍTULO 13......................................................................................................................................... 179

CEBS E PARÓQUIA, DUAS REALIDADES ECLESIAIS COMPATÍVEIS?

Gelson Luiz Mikuszka

DOI: 10.37885/200801162

CAPÍTULO 14......................................................................................................................................... 192

DA KRISIS À METANOIA: A POÉTICA DO SAGRADO EM JORGE DE LIMA E MURILO MENDES

Sergio Carvalho de Assunção

DOI: 10.37885/200901486
SUMÁRIO
CAPÍTULO 15......................................................................................................................................... 207

DISTANCIAMENTO E COMPREENSÃO NA NOÇÃO DE TEXTO EM PAUL RICOEUR: UMA ANÁLISE


DO CONCEITO DE APROPRIAÇÃO DE UMA PROPOSIÇÃO DE MUNDO

Lílian Franciene de Oliveira

DOI: 10.37885/201001728

CAPÍTULO 16......................................................................................................................................... 220

DOM DE LÍNGUAS – ADORANDO A DEUS COM LINGUAGEM DESCONHECIDA

Hilberto Carlos Schaurich

DOI: 10.37885/201001684

CAPÍTULO 17......................................................................................................................................... 227

“ENCÍCLICA LAUDATO SI’ SOBRE O CUIDADO DA CASA COMUM” E O POVO INDÍGENA

Cristiane Velasque; Lucas Costa Monteiro

DOI: 10.37885/201001598

CAPÍTULO 18......................................................................................................................................... 236

ESPERANÇA PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO NO PONTIFICADO DE FRANCISCO

Luiz Carlos Sureki

DOI: 10.37885/200901237

CAPÍTULO 19......................................................................................................................................... 246

FORMAÇÃO CONTÍNUA NA FÉ DE ADULTOS

Marilze Wischral Rodrigues

DOI: 10.37885/201001701

CAPÍTULO 20......................................................................................................................................... 270

MÍSTICA MARIAL: MARIA, ÍCONE HUMANO DO MISTÉRIO

Zilda Maria da Silva

DOI: 10.37885/200901564

CAPÍTULO 21......................................................................................................................................... 277

O AMOR E O PERDÃO AOS INIMIGOS EM ROMANOS 12

Francisco Márcio Bezerra dos Santos; Mércia da Silva Pereira

DOI: 10.37885/201001572
SUMÁRIO
CAPÍTULO 22......................................................................................................................................... 292

O PAPEL DAS CRENÇAS RELIGIOSAS NA VIDA SOCIAL PÓS-MODERNA

Erielton de Souza Martins

DOI: 10.37885/201001700

CAPÍTULO 23......................................................................................................................................... 301

O ROMANCE COMO TEOLOGIA: REFLEXÕES EM DIÁLOGO COM FIÓDOR DOSTOIÉVSKI

Lubomir Zak; Marcio Luis Fernandes

DOI: 10.37885/201001596

CAPÍTULO 24......................................................................................................................................... 317

O SÉCULO XIX: DO GOVERNO DE DOM PEDRO II AO CATOLICISMO RETRATADO NA OBRA DE


BERNARDO GUIMARÃES

Ivanessa Sanches Mancio

DOI: 10.37885/201001672

CAPÍTULO 25......................................................................................................................................... 335

O SENTIDO DO “SEGUE-ME” DE JESUS CRISTO

Lídia Maria Nazaré Alves; Leonardo Gomes de Souza

DOI: 10.37885/201001742

CAPÍTULO 26......................................................................................................................................... 356

PRINCÍPIOS AMBIENTAIS E SUA RELAÇÃO COM O MANDATO CULTURAL EXPRESSO EM GN


1. 26-31 E GN 2. 5-8

Marilze Wischral Rodrigues; Stélio João Rodrigues

DOI: 10.37885/201001685

CAPÍTULO 27......................................................................................................................................... 379

RELIGIÃO FAMILIAR TRADICIONAL E UMA LULIK/CASA SAGRADA DE TIMOR - LESTE

Antônio Quenser do Balino do Carmo

DOI: 10.37885/201001659

CAPÍTULO 28......................................................................................................................................... 398

RELIGIÃO, CULTURA E SISTEMA SIMBÓLICO

Thais Alves Marinho; Clóvis Ecco

DOI: 10.37885/201001639
SUMÁRIO
CAPÍTULO 29......................................................................................................................................... 423

UM OLHAR SOBRE A RELAÇÃO ESPIRITUALIDADE E SAÚDE NO CONTEXTO PSICOTERÁPICO

Flávio Aparecido de Almeida

DOI: 10.37885/200801033

CAPÍTULO 30......................................................................................................................................... 434

UMA BREVE HISTÓRIA DO DIABO NA LITERATURA

Patrícia Leonor Martins

DOI: 10.37885/201001660

CAPÍTULO 31......................................................................................................................................... 446

UNIVERSO LUTERANO E CALVINISTA: REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS EM SUA ARQUITETURA

E ARTE SACRA

André Tadeu de Oliveira; Kellen I. R. Borges

DOI: 10.37885/200901460

CAPÍTULO 32......................................................................................................................................... 463

VIVÊNCIAS DE CRISTIANISMO PRIMITIVO NA COMUNIDADE MUCKER (1868-1874)

Maria de Lurdes Zanon

DOI: 10.37885/201001657

SOBRE O ORGANIZADOR.................................................................................................................... 478

ÍNDICE REMISSIVO............................................................................................................................... 479


01
“ A experiência do tempo nas
confissões de santo agostinho

Vicente Artuso
PUCPR

10.37885/201001634
RESUMO

O artigo destaca a contribuição de Santo Agostinho sobre o tempo na sua obra: As con-
fissões. Embora tenha falado do tempo cosmológico e sua origem com a criação, sua
contribuição maior foi o tratado sobre o tempo psicológico na sua sucessão de um pre-
sente inapreensível de momentos que fluem. O tempo está na consciência quando se tem
consciência que as coisas passam e nos damos conta da existência de três momentos:
passado, presente e futuro que se sucedem. Portanto o tempo é considerado inseparável
da experiência existencial. Na consciência o passado se conserva e está presente pela
memória e o futuro está presente como expectação. Permanece o presente, momento
em que o ser humano sintetiza a experiência na memória e se torna protagonista da
história vivendo-o com mais intensidade e projetando-se para o futuro.

Palavras-chave: Tempo, Presente, Humano, Memória, Criação, Experiência.


INTRODUÇÃO

A PUCPR – Campus Londrina, através do departamento de teologia promoveu nos dias


3 e 4 de setembro de 2007, um encontro para tratar do pensamento filosófico e teológico de
Santo Agostinho. Na ocasião foi convidado para discorrer sobre o assunto o Pe. Dr. Félix
Alexandro Pastor S.J., então professor de teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana
de Roma. O encontro teve participação ativa dos alunos da universidade. Dado o profundo
conhecimento do conferencista, o que motivou os participantes a ler as obras do grande
doutor da Igreja. Muitas questões foram esclarecidas durante as reflexões do professor,
que apresentou o perfil espiritual de Agostinho e sua trajetória de filósofo e teólogo cristão.
Aurelius Augustinus nasceu no ano de 354 em Tagaste, na província Romana da
Numíbia, na África. Era filho de Patrício, um africano romanizado, pagão que se fez batizar
na hora da morte. Sua mãe chamava-se Mônica, mulher de grande fé. Em 372 teve um filho
que se chamou Adeodato que com o Pai permanece, pois Agostinho não chega a se casar
com a mulher amada. Nesse tempo descobre a filosofia através de Cícero e segue a doutri-
na dos maniqueus. Agostinho estudou em Tagaste, Madaura e Cartago. Lecionou retórica
em Cartago depois em Roma onde se desgostou com atitude grosseira dos estudantes e,
finalmente em Milão. Aí Conheceu o Bispo Ambrósio. Depois de muitas lutas interiores con-
verte-se ao Cristianismo sendo batizado em 387 juntamente com o filho Adeodato e o amigo
Alípio. Pouco depois deixou Milão para retornar a África. Por ocasião do falecimento da mãe,
demora-se ainda cerca de um ano em Roma, e no outono de 388 está de volta a Tagaste,
sua cidade natal. Em 391 Valério, Bispo de Hipona cidade vizinha, o ordena presbítero com
a missão de pregador. Em 395 é ordenado bispo de Hipona. Faleceu em 4301.
Chamou-me atenção, uma pergunta de um aluno a qual o Pe. Pastor julgou não ter uma
resposta adequada, embora achasse a pergunta interessante: “O que fazia Deus antes de
criar o mundo?”. Esta fora justamente a questão levantada pelos maniqueus a Agostinho e
que o levou a refletir sobre o tempo nos capítulos XI e XII das “Confissões”, uma de suas mais
importantes obras2. A reação de Agostinho foi humilde, e mesmo depois de haver refletido
sobre o tema assim se expressou: “Não sei ainda o que é tempo. Sei também que há muito
estou falando do tempo e que este muito não é outra coisa senão uma duração de tempo”3.

1 Cf. AGOSTINHO, Os Pensadores. Vol. VI, p. 6-23.


2 Nas Retractationes Agostinho enumera noventa e três tratados em duzentos e trinta e dois livros; acrescentando-se a estes cerca
de quinhentos sermões e duzentas e dezessete cartas. Dentre as obras filosóficas destaca-se: Contra Acadêmicos, De vita Beata,
De ordine. As confissões de cunho mais espiritual e místico, também com rico conteúdo filosófico, foram escritas logo após sua con-
versão entre 397-398. Para uma lista completa Cf. a edição crítica de VEGA, Angel Custódio. Las Confesiones. In: - Obras de San
Augustin, Tomo II, BAC (Biblioteca de autores Cristianos), Madrid 1951 (edição bilíngüe).
3 AGOSTINHO, Confissões, XI, 25,32. O texto das Confissões citado nesse estudo é tradução de Maria Luiza Jardim Amarante no livro,
AGOSTINHO, S. Confissões. São Paulo: Paulus, 1984.

14 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


O tempo tem seu lado enigmático que o deixava inquieto: “Se ninguém me pergunta, eu ei.
Porém se quero explicar a quem me pergunta, então não sei”4. Mesmo assim Agostinho nos
deixou importante contribuição: sua reflexão sobre a memória e o tempo. O objeto deste
estudo é o tema do tempo, por muitos autores já discorrido em profundidade sob variados
aspectos. Será feita uma análise do texto das confissões5 abordando a temática sobre a
origem do tempo, o tempo e a criação, o tempo e a eternidade, tempo e movimento, o pre-
sente, passado e futuro e sua ligação com a experiência da condição humana.

DEUS PRINCÍPIO CRIADOR

Segundo Etienne Gilson6, a doutrina da criação do mundo do nada, e, portanto da ori-


gem do tempo; surgiu na evolução do pensamento de Agostinho corrigindo sua antiga posição
maniquéia. Na verdade enquanto Agostinho aderiu ao maniqueísmo, havia professado um
materialismo radical. Este materialismo se aplicava antes a Deus. Segundo a doutrina de
Manes, Deus é Luz, isto é uma substância corporal brilhante e muito tênue. É justamente
esta substância que em princípio resplandeceu em Deus, brilha nos astros, ilumina nossa
alma e luta sobre a terra contra as trevas. Nesta época Agostinho considerava, portanto
Deus, sendo por essência uma luz. Tudo o que é corporal participa em certo grau desta
luz, que para ele era uma parte de Deus: “Eu acreditava que tu eras um corpo luminoso e
imenso, e eu uma parcela desse corpo”7. Foi em reação a este erro que Agostinho ensinará
a doutrina da criação do nada. Para ele o mundo surgiu do nada, ou do contrário Deus tirou
a matéria da sua substância. Admitir esta última hipótese seria aceitar que uma parte da
substância divina se torne finita, mutável. Deus não pode mudar, porque a mudança supõe
fatalmente tornar-se melhor ou pior. Ora Deus é perfeito! Tal suposição é contraditória, pois
Deus criou o universo do nada. Entre o divino e o mutável, a oposição, portanto é irredutí-
vel8. “Foste tu quem criaste o céu e a terra”9. “Do nada criaste alguma coisa”10. “Não fizeste
como o artista, que se serve de um corpo para formar outro corpo, imprimindo-lhe, segundo
a inspiração do Espírito, a imagem que seu olhar interior descobre”11. A criação para Deus
é diferente do trabalho do homem. “O artista impõe uma forma à matéria que, já existindo,
pode recebê-la: assim é a terra, a pedra, a madeira, o ouro, ou qualquer outra coisa. De onde
proviria a matéria se não a tivésseis criado”?12. Foi Deus quem deu ao artista os objetos e a
4 AGOSTINHO, Confissões, XI, 14,17.
5 AGOSTINHO, Confissões, capítulos XI-XII.
6 GILSON, Etienne. Introduction a l’étude de Saint Augustin, p. 246.
7 AGOSTINHO, Confissões, IV, 16,31.
8 Cf. GILSON, Etienne. Introduction a l’étude de Saint Augustin, p.247.
9 AGOSTINHO, Confissões, XII, 2,2.
10 AGOSTINHO, Confissões, XII, 7,7.
11 AGOSTINHO, Confissões, XI, 5,7
12 AGOSTINHO, Confissões, XI, 5,7

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 15


inteligência para fabricar. Deus criou do nada todas as coisas. “Nem tinhas à mão matéria
alguma com que modelasses o céu e a terra”13. As criaturas existem é porque Deus existe,
e tudo criou unicamente pela sua palavra. Deus criou os seres antes do espaço e do tempo.
“Nem criastes o Universo no Universo, pois antes de o criares, não havia espaço onde pu-
desses existir”14. “Fizestes o céu e a terra, mas não da tua substância, pois assim teriam sido
iguais ao teu filho unigênito, e, portanto iguais a ti”. “Só tu existias e nada mais”15. Agostinho
nunca situou o princípio além do ser, como fizera Plotino. “Na linha de Porfírio ele vê Deus
como um supremo ato de ser que subordina a si os existentes. Portanto ele faz sua a noção
judaico-cristã de criação. Criar, quando se é Deus, é estabelecer o conjunto diversificado
do ser a partir do nada e sem nenhuma mediação”16.
Agostinho comentando o livro do Gênesis, quer falar da origem do tempo no momento
da criação. “No princípio Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1). Na sua exegese ele observa
que o texto não fala de tempos nem fala de dias17. Portanto o tempo não existia antes da
matéria. “Pelo fato que onde não existe forma, nem ordem, nada vem e nada passa, não
existem certamente nem dias nem sucessão de espaços de tempo”18. “Todas as naturezas
e substâncias que não são o que és, mas existem, foram criadas por ti”19. “Não há um tem-
po eterno contigo, porque tu é estável, e se o tempo fosse estável não seria tempo”20 Aqui
Agostinho nega identificar a matéria com o próprio Deus, afirmando o criacionismo. “O céu
e a terra existem e, através de suas mudanças e variações proclamam que foram criados”21.
Pelo fato de Deus ser eterno e imutável, não estar sujeito às variações do tempo, Ele é o
princípio criador. “Todas as coisas proclamam que não se fizeram por si mesmas”22. Deus
fez o céu e a terra no princípio. Não criou no princípio do tempo, mas com sua palavra que
está junto do Pai, foram feitas todas as coisas e com elas o tempo (Cf. Jo 1,1-3). Portanto,
“no princípio” significa na Palavra eterna de Deus. Aqui não indica duração de tempo na ação
criadora. Deus criou tudo simultaneamente num momento “in ictus”. É assim que devem ser
entendidos os seis dias da criação23.

13 AGOSTINHO, Confissões, XI, 5,7


14 AGOSTINHO, Confissões, XI, 5,7
15 AGOSTINHO, Confissões, XII, 7,7
16 JERPHAGNON, Lucien. História das grandes filosofias, p. 86
17 AGOSTINHO, Confissões, XII, 9,9
18 AGOSTINHO, Confissões, XII, 9,9
19 AGOSTINHO, Confissões, XII, 11,11
20 AGOSTINHO, Confissões, XI, 14,17
21 AGOSTINHO, Confissões, XI, 4,6
22 AGOSTINHO, Confissões, XI, 4,6
23 Cf. GILSON, Etienne. Introduction a l’étude de Saint Augustin, p..256

16 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


O motivo das confissões é afirmar que Deus é bom e sua misericórdia perdura eterna-
mente24. Agostinho quer compreender e aprofundar sempre mais a doutrina da criação e do
tempo. “Concede-me que ouça e compreenda como no princípio criaste o céu e a terra”25.

ORIGEM DO TEMPO COM A CRIAÇÃO

Deus criou todas as coisas por um ato de sua vontade, em consonância com suas
idéias. Os seres são bons porque criados por Deus, porem implicam em certa imperfeição
intrínseca porque feitos do nada. O ponto de partida para explicar a origem do tempo é a
Escritura que diz: “no princípio Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1). Portanto o mundo teve
um começo e não é eterno26. “Todo ser que começa a existir e tem um fim, começa e acaba
quando a eterna inteligência que não tem início nem fim, sabe que ele devia começar ou
acabar”27. Deus é um princípio estável, se Ele fosse instável nos desencaminharíamos e
não teríamos mais para onde voltar28. O que seria este princípio? Agostinho explica: “No
princípio, quer dizer que não havia nenhuma criatura antes da primeira criatura”29. Nisso ele
se inspira num dos famosos diálogos de Platão, o Fedro, o qual afirma um princípio abso-
luto. “O início é algo que não se formou, sendo evidente que tudo que se forma, forma-se
de um princípio. Este princípio de nada proveio, pois que se proviesse de uma outra coisa,
não seria princípio. Sendo o princípio coisa que não se formou, deve ser também coisa
que não pode ser destruída. Se o princípio pudesse desaparecer, nem ele mesmo poderia
nascer de uma outra coisa, nem dele outra coisa poderia surgir, porque necessariamente
tudo brota do princípio”30.
Se Deus é o princípio eterno, tudo pode, tudo cria, tudo domina, é Ele o autor do céu
e da terra 31 e simultaneamente criador do tempo com a matéria. Assim explica Agostinho:
“Como poderiam transcorrer os inumeráveis séculos, se não os tivesses criado, tu que és o
autor e criador de todos os séculos? Que tempo poderia existir, se não fosse estabelecido
por ti?32. “O teu dia não é cada dia, mas hoje, porque o teu hoje não cede lugar ao amanhã
nem sucedeu ao ontem”. O teu hoje é a eternidade. Criaste todos os tempos e existes an-
tes de todos os tempos. E não existia tempo quando não havia tempo”33. Nesse aspecto
Agostinho mais uma vez parece um eco de Platão no Timeu, diálogo que ele revela conhecer

24 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 1,1


25 AGOSTINHO, Confissões, XI, 3,5
26 Cf. BOHENER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 176
27 AGOSTINHO, Confissões, XI, 8,10
28 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 8,10
29 AGOSTINHO, Confissões, XI, 12,14
30 PLATÃO, Díálogos, Menon, Banquete, Fedro, p.151.
31 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 13,15
32 AGOSTINHO, Confissões, XI, 13,15
33 AGOSTINHO, Confissões, XI, 13,16

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 17


profundamente, provavelmente através da tradução de Cícero. “Os dias e as noites – disse
Platão – os meses e os anos, não existiram antes e somente nasceram criados por Deus
quando este introduziu a ordem no mundo”34. Portanto o fato do tempo passar prova sua
existência a partir de um princípio.
Agostinho rebate com veemência a questão colocada pelos maniqueus dizendo que
não tem sentido fazer a pergunta: O que fazia Deus antes de criar o mundo. A esta pergunta
Agostinho faz referência em várias ocasiões, o que também motivou este famoso tratado
sobre o tempo35. Com efeito, ele volta a afirmar que “não existe tempo algum antes da cria-
ção”, porque “Deus existe antes de todos os tempos, eterno criador de todos os tempos”36.
Agostinho não vê sentido nenhum em perguntas como essas, “Como lhe veio a idéia de fazer
alguma coisa, se antes nunca fazia nada?”37. Não é possível falar de “nunca”, quando não
existia o tempo. “Não houve um tempo em que nada fizeste, porque o próprio tempo foi feito
por ti. E não há um tempo eterno contigo, porque és estável. Se o tempo fosse estável não
seria tempo mas estaria na esfera da divindade38. No seu comentário do Gênesis, Agostinho
lembra a necessidade de crer que toda criatura tem princípio e que o tempo é criatura, e
portanto tem princípio e não pode ser coeterno com Deus39. “As idéias das coisas existem
na inteligência divina desde toda a eternidade”. Porém, os termos ou objetos que Deus quer
produzir só aparecem no momento determinado por sua vontade”40. Esta doutrina sobre a
origem do tempo na criação vem retomada em outra obra de Agostinho: A cidade de Deus.
“O mundo não foi feito no tempo mas com o tempo. O que se faz no tempo, faz-se depois de
algum tempo e antes de algum, depois do passado e antes do futuro. Mas não havia passado
algum, porque não existia criatura alguma, cujos mutáveis movimentos fizessem acontecer o
passado. O mundo foi feito com o tempo e em sua criação, foi feito o movimento mutável”41.
A criação é reflexo da bondade do criador e existe porque Deus existe. “Senhor, tu
as criaste, tu que és belo, pois elas são belas; tu que és bom, pois elas são boas; tu que
existes, já que elas existem”42. O reconhecimento de um princípio criador como “Deus onipo-
tente, criador e mantenedor de todas as coisas, artífice do céu e da terra”, só é possível no
tempo a partir da reflexão sobre as obras da criação para concluir que a vontade do criador
precede a criatura.

34 Cf. ANGEL, Custódio. Las Confesiones In: - Obras de San Agustin. Tomo II, p. 606, nota 18.
35 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 30,40; XI, 12,14; XI, 10,12.
36 AGOSTINHO, Confissões, XII, 30,40
37 AGOSTINHO, Confissões, XI, 30,40
38 AGOSTINHO, Confissões, XI, 14,17.
39 Cf. ANGEL Custódio, Obras de San Augustin. Tomo II, p. 607
40 AGOSTINHO, Os Pensadores, p. 215, nota 558.
41 AGOSTINHO, A cidade de Deus contra os pagãos, livro XI, capítulo VI.
42 AGOSTINHO, Confissões, XI, 4,6

18 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


TEMPO E ETERNIDADE

Sendo Deus eterno, ou seja transcendente ao tempo, e nós outros temporais; a relação
tempo e eternidade constitui um problema em aberto, impossível de ser solucionado43. No en-
tanto Agostinho faz algumas considerações sempre em vista de confessar e reconhecer a
eternidade de Deus para o qual convergem todas as coisas.
Deus é eterno pois não é no tempo que ele precede o tempo44. “Os anos de Deus não
vão nem vêm”. “Os teus anos são como um só dia” (2Pe.3,8). O hoje de Deus é a eternidade,
ois “o hoje de Deus não cede lugar ao amanhã nem sucedeu ao ontem”45. O que caracteriza
a eternidade é a imutabilidade, pois nada passa, tudo é presente, ao passo que “o tempo
nunca é todo presente”46. A eternidade jamais comporta mudança, mas o tempo implica al-
teração. Esta mutabilidade faz parte da essência de toda criatura. O tempo existe em função
da criatura e não existiriam os tempos se não existisse a criatura”47. “Deus é eterno porque
precede todo o passado com a sublimidade da sua eternidade sempre presente, e domina
todo o futuro porque é ainda futuro”48. Agostinho fala da eternidade confessando que Deus
é eterno, sempre presente, mas acima do tempo. “Tu és sempre, sempre, sempre o mesmo,
Santo, Santo, Santo Senhor Deus onipotente”49. “És eterno, o único a possuir a imortalidade
(Cf. 1Tm 6,16) porque possuís uma vontade imutável”50. “Tua eternidade é superior a todos
os tempos”51. Contigo não há um tempo eterno, e se o tempo fosse estável, eterno, já não
seria tempo52. “Não se pode pensar que o tempo preexistia a Deus, que é anterior a todas
as obras por ser causa suprema de tudo. O tempo foi criado por Deus e este não constitui
um prolongamento da eternidade pois o tempo infinito não constitui a eternidade que é de
ordem transcendente. O tipo de duração chamado eternidade e o tipo de duração chamado
tempo são heterogêneos, embora haja certas analogias a admitir como: ambos são funda-
mentalmente presentes. A eternidade porém é uma presença simultânea, enquanto o tempo
não o é”53. Para Agostinho, inspirando-se em Platão na sua obra o Timeu, “o tempo é uma
imagem da eternidade que nunca avança segundo o número”. Tempo é apenas “um vestígio
da eternidade” que é transcendente, enquanto nós somos temporais. Daí a dificuldade de
estabelecer uma relação clara entre o mutável e o eterno imutável.

43 BOILER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 176.


44 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 13,16
45 AGOSTINHO, Confissões, XI, 13,16
46 AGOSTINHO, Confissões, XI, 11,13.
47 AGOSTINHO, A cidade de Deus, livro XI, capítulo VI.
48 AGOSTINHO, Confissões, XI, 13,16
49 AGOSTINHO, Confissões, XI, 7,7
50 AGOSTINHO, Confissões, XII, 11,11
51 AGOSTINHO, Confissões, XI, 11,13
52 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 14,17
53 MORA, José Ferrater, Diccionário de Filosofia, vol. IV, p. 3244

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 19


TEMPO, MOVIMENTO E EXTENSÃO

O aspecto do movimento do tempo, medida, extensão, também foi objeto de estudo de


Agostinho. “Fixei a atenção nos próprios corpos analisando mais profundamente sua muta-
bilidade, pela qual cessam de ser aquilo que eram e começam a ser o que não eram”54. “A
própria mutabilidade das coisas é capaz de tomar todas as formas em que se transfiguram
as coisas mutáveis”55.
Essa mutabilidade, que é? um espírito? um corpo? Agostinho reconhece não conseguir
exprimir em palavras tal mutabilidade. Ela remete a um princípio que seria motor imóvel. “Se
fosse possível dizer, “um certo nada que é e não é, eu o diria”56. Deste quase nada (maté-
ria informe do gênesis), fizeste tudo aquilo de que é formado e não formado, este mundo
mutável, no qual se manifesta esta mobilidade, pela qual se pode sentir e medir o tempo57.
Agostinho saberá distinguir entre tempo vulgar e astronômico e tempo metafísico58. Ele dis-
corda do conceito corrente de Erastóstenes do tempo, na época entendido como o curso do
sol59, dizendo que o tempo deve ser movimento de todos os corpos. Até mesmo em nossas
palavras há sílabas longas e sílabas breves. Assim ele argumenta: Se os astros parassem
e a roda do oleiro continuasse a mover-se deixaria de existir o tempo para medir-mos as
voltas dela?” Naturalmente se a roda uma vez se move mais devagar, outras vezes mais
depressa é porque existe o tempo60. Vemos que Agostinho parte do geocentrismo para falar
do tempo. O tempo de um dia seria “o período de tempo que o sol está sobre a terra, e que
dá origem á distinção entre dia e noite”, mas também “com o tempo medimos o movimento
de rotação do sol”61. Portanto para Agostinho o tempo não é movimento dos corpos celestes
mas movimento de todos os corpos. Quando conforme a Escritura Josué mandou parar o
sol (Cf. Js 10,12), o sol estava parado mas o tempo continuava a passar. Aquela batalha
de Josué foi conduzida a termo no espaço de tempo que lhe era suficiente”62. Se o tempo
independe dos astros, ele é medível no movimento dos corpos. O tempo astronômico de que
se refere aqui, é constatável pelo senso comum, na observação do movimento dos corpos.
Uns se movimentam mais depressa outros mais devagar.

54 AGOSTINHO, Confissões, XII, 6,6


55 AGOSTINHO, Confissões, XII, 6,6
56 AGOSTINHO, Confissões, XII, 6,6
57 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XII, 8,8
58 Cf. VEGA, Angel Custódio. Confesiones In: Obras de San Agustin, Tomo II, p. 608.
59 Cf. AGOSTINHO, Os pensadores, p. 223, nota 569
60 Cf. AGOSTINHO, Confissões XI, 23,29
61 AGOSTINHO, Confissões, XI, 23,30
62 AGOSTINHO, Confissões, XI, 23,30. O tratado de Agostinho é condicionado ao sistema geocêntrico, segundo o qual a terra é o centro
em torno do qual giram os astros. Com Copérnico em 1543, foi desenvolvido o sistema eliocêntrico, que afirma ser o sol o centro em
torno do qual giram todos os planetas.

20 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Mas os corpos só podem mover-se no tempo, mas o movimento do corpo não é o
tempo, pois é possível que a pessoa não se aperceba do tempo que está passando (tempo
psicológico), daí não ser possível medi-lo. Só é possível medir o tempo no momento que for
possível ver o movimento ou deixar de ver. Na verdade somente “se eu ver durante um tempo
longo, posso dizer que o tempo é longo”63. “O movimento do corpo é diferente da medida
de sua duração”64. Aqui está o problema para Agostinho pois “se um corpo, ora se move de
maneira desigual, ora está parado, medimos com o tempo, não só o seu movimento mas
também o seu repouso, e dizemos: Esteve tanto tempo parado e em movimento. Portanto
por causa da sua visão geocêntrica o tempo não é o movimento dos corpos, mas os corpos
se movem no tempo e nós viventes podemos perceber o tempo longo e tempo breve.
Será possível chegar à noção exata da medida do tempo? Não, porque pode suceder
que um verso breve, recitado lentamente, dure mais tempo que um verso mais longo recitado
apressadamente65. Daí Agostinho conclui que o tempo é extensão. Assim quando dizemos:
“Este tempo é mais longo do que aquele, medimos o tempo, não medimos o presente porque
não tem extensão, nem o passado porque não existe mais66. Trata-se da medida do tempo
que acontece na nossa mente pois o tempo em si é indivisível.
Não é possível reter o presente. Assim Agostinho exemplifica: Posso dizer que uma
sílaba é longa e outra breve, só quando terminaram de ser pronunciadas, e uma vez pro-
nunciadas já não existem. O que é medível é alguma coisa delas que permanece gravada
na memória67. “Só meço enquanto está presente, a impressão que as coisas gravam no mo-
mento em que passam. Isto é o tempo da alma, tempo subjetivo. Aqui Agostinho se inspirou
em Plotino ao dizer que o tempo é a sucessão que acontece na alma enquanto experiência
vivida subjetivamente. Ele apresenta-se aqui um exímio teórico do tempo da consciência,
ou como se costuma dizer, sucessão68. Este tempo psicológico é a impressão do antes e
depois que as coisas gravam no espírito. É o sentimento de presença das imagens que
se sucedem, sucederam ou hão de suceder, referidas à uma interioridade”69. A sucessão
se processa desta forma: “O esforço presente transforma o futuro em passado, o passado
cresce com a diminuição do futuro, até o momento em que, tudo será passado, quando se
consumar o futuro”70. Agostinho ensina em conclusão que “o tempo é um produto da nossa
alma, que o torna presente mediante a memória no caso de ser passado, mediante a aten-
ção, no caso de ser atual, e mediante a espera se é futuro”71. Nesse sentido “não é o tempo

63 AGOSTINHO, Confissões, XI, 24,31


64 AGOSTINHO, Confissões, XI, 24,31
65 AGOSTINHO, Confissões, XI, 25,32
66 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 26,33.
67 AGOSTINHO, Confissões, XI, 27,35
68 Cf. SCIACCA, Michele Federico. História da Filosofia, p.186
69 AGOSTINHO, Os Pensadores, p.331, nota 3.
70 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 27,36
71 AGOSTINHO, Confissões. Ed. Paulus, p. 331, nota 4.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 21


futuro que é longo, pois não existe, mas o longo futuro é a longa espera do futuro. Também
não é longo o tempo passado inexistente, mas o longo passado é a longa recordação do
passado”72. “Quanto mais avança o ato, tanto mais se abrevia a espera e se prolonga a
lembrança, até que esta fica totalmente consumida, quando o ato acabado passa para o
domínio damemória”73.
Porém, como ser encarnado, o ser humano não vive apenas do tempo da alma, o que
confere realidade a algo é a sua inserção no tempo humano cronológico; a fronteira entre
o imaginário e o histórico é uma fronteira real. É por isso que o nosso tempo implica quer
a interioridade como também a objetividade. A nossa realidade é mais que “pura duração
vivida”, pois nossa existência é também um fato74. Esta consideração parece pertinente para
não interpretar Agostinho como alienado da história concreta mas como alguém consciente
que vive uma experiência profunda de Deus na história em vista da sua transformação. Este
aspecto ele trata também na sua obra: A cidade de Deus.

TEMPO PRESENTE, PASSADO E FUTURO

O tempo, para Agostinho não é a imagem móvel da eternidade (Platão) nem a medida
do movimento (Aristóteles), mas a duração de uma natureza finita que não pode ser toda
simultaneamente, tendo necessidade de fases sucessivas e contínuas para realizar-se
completamente. Estas fases são o presente, passado e futuro75. Agostinho no seu tratado
sobre o tempo vai retomar as aporias dos diversos êxtases do tempo no seu caráter fugaz
e inapreensível por um lado, e por outro, da memória alargada, de um presente inclusivo76 .
No seu tratado sobre o tempo Agostinho considera que a condição temporal do ho-
mem no mundo não é independente do tempo objetivo e matemático, ou chamado tempo
cosmológico. O tempo está necessariamente ligado à existência, ao devir. “Não existiria
um tempo passado, se nada passasse; e não existiria um tempo futuro, se nada devesse
vir; e não haveria o tempo presente se nada existisse”77. Aqui permanece o problema da
duração do tempo passado. “O tempo passado foi longo, quando era já passado ou quando
ainda era presente”? Não é possível portanto medir a extensão do tempo, sendo passado
já não existe. O tempo longo para Agostinho é o tempo presente78. Como responder então
a extensão do presente, se o passado não pode ser medido e num dado momento já foi
presente? Observa-se que todo tempo pode ser dividido em minúsculas partes. “A duração

72 AGOSTINHO, Confissões, XI, 28,37


73 AGOSTINHO, Confissões, XI, 28,38.
74 Cf. TEIXEIRA, Joaquin de Souza. TEMPORALIDADE . In: LOGOS- Enciclopédia Luso-Brasileira de filosofia, vol.V, col. 96.
75 Cf. MONDIN, João Batista. Curso de Filosofia, vol. I, p.142
76 Cf. SILVA, Carlos Henrique do Carmo. O TEMPO. In:- LOGOS- Enciclopédia Luso- filosofia, Brasileira de Filosofia, vol. V, col. 73.
77 AGOSTINHO, Confissões, XI, 14,17
78 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 15,18

22 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


do tempo só será longa porque é composta de muitos movimentos passageiros que não
podem alongar-se simultaneamente”79. O tempo presente só pode ser longo desde o mo-
mento que nos for concedido o poder de perceber e de medir a duração”80. Este é o tempo
humano subjetivo. Agostinho explica o problema do tempo sob o aspecto psicológico e
não sob o aspecto ontológico, Isto é o tempo em si mesmo. Para este último caso, teria de
considerar o tempo presente indivisível81. Portanto Agostinho parte da consciência vivida
do tempo. Assim ele continua sua exposição. Dizermos que o presente é o dia de hoje. Isso
não convence pois o presente é a hora que vivemos, as outras horas do dia ou são passa-
das ou futuras. Também em relação a hora não é toda presente pois se divide em sessenta
minutos. Neste caso o minuto que estou vivendo é presente, os outros minutos da hora,
ou são passados ou futuros82. Sobre o tempo presente Agostinho conclui.: “Se pudermos
conceber um espaço de tempo que não seja possível de ser dividido em minúsculas partes
de momentos, só a este podemos chamar tempo presente”. Porém o momento presente
divisível em minúsculas partes passa tão velozmente do futuro ao passado que não tem
nenhuma duração”83. O tempo presente não tem extensão alguma, e clama que não pode
ser longo84. É no contínuo que distinguimos o “antes” e o “depois”. Nisso Agostinho segue
Aristóteles: “Quando determinamos o tempo através da distinção do antes e do depois, tam-
bém conhecemos o tempo. E então dizemos que o tempo cumpre o seu percurso, quando
temos a percepção do antes e do depois do movimento”85. Nesta sucessão como já referi-
do; “a alma é que garante a realidade do tempo mediando entre a realidade e o puro devir.
Porém a alma faz que o tempo seja uma continuidade real e não uma série incompreensível
de saltos de um instante a outro”86.
Se o presente não pode ser medido, quanto menos o passado e o futuro, pois “só
temos a percepção do tempo enquanto está passando”87. O passado não poderá ser me-
dido porque não existe. Porém se o passado não existe não poderia ser percebido. Daí se
conclui que tanto o futuro como o passado existem88. “Medimos o tempo, mas não o que
ainda não existe, nem o que já não existe, nem o que não tem extensão, nem o que não tem
limites. Em outras palavras, não medimos o futuro, nem o passado, nem o presente, nem
o tempo que está passando. E no entanto, medimos o tempo”89. Por este motivo Agostinho
admite ser impróprio falar de três tempos, passado, presente e futuro.

79 AGOSTINHO, Confissões, XI, 11,13


80 AGOSTINHO, Confissões, XI, 15,18
81 Cf. AGOSTINHO, Os Pensadores, p.322, nota 2
82 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 15,19
83 AGOSTINHO, Confissões, XI, 15,20
84 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 15,20
85 Cf. REALE, Giovanni & ANTISIERI, Dario. História da Filosofia, Vol. I, p.194
86 MORA, José Ferrater. Diccionário de Filosofia, vol. IV, p. 3243.
87 AGOSTINHO, Confissões, XI, 16,21
88 Cf. AGOSTINHO, Confissões, XI, 17,22
89 AGOSTINHO, Confissões, XI, 27,34

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 23


“Pois esses três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar”90. O que já deixou de
ser continua a existir na memória, sob a forma de “presença psíquica”. A alma é pois uma
atenção extensa e distensa, que continua a reter o que vai escoando, e já apreende o que
ainda está por vir. Esta é a extensão que perdura.91. Mesmo assim Agostinho ainda prefere
dizer que os tempos são três: “O presente dos fatos passados, o presente do presente; o
presente dos fatos futuros. O presente do passado é a memória. O presente do presente
é a visão. O presente do futuro é a espera.”92. Vemos que nesta colocação de Agostinho o
presente é fundamental, pois se estende ao passado e ao futuro. O passado aparece e é
vivido como passado porque permanece de algum modo presente ao homem, ou melhor
porque o homem permanece presente ao seu passado, reconhecendo-o através da memó-
ria. O futuro aparece como futuro, porque é antecipado no presente em termos de apelo,
projeto, possibilidade. Portanto o presente humano caracteriza-se pelo fato de estar dina-
micamente em tensão entre passado e futuro. Trata-se não de um presente absoluto mas
temporal; um presente que escorrega para o passado, ao qual porém se subtrai, porque
não coincide nunca totalmente com o passado e porque antecipa um novo futuro a realizar.
Tudo acontece na alma humana, pois é o homem mesmo, na sua situação de emer-
gência face ao mundo e de existente espiritual, que é temporalizador93 O que se encontra
na reflexão de Agostinho é o realismo da experiência psicológica do tempo com inspiração
na Enéades de Plotino94.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora tenha falado do tempo cosmológico, da sua origem com a criação, na forma
de compreensão da época; sua grande contribuição foi o tratado sobre o tempo psicológico
na sua sucessão de um presente inapreensível de momentos que fluem. O tempo está na
consciência, quando se tem consciência que as coisas passam e também nós, estando
sujeitos ao devir, nos acordamos da existência dos três momentos: passado, presente, e
futuro que se sucedem. Através da experiência, pela função da memória que lembra, o pas-
sado tem valor em vista do presente, porque o tempo é qualificado como passado enquanto
relacionado com um sujeito pensante num momento determinado. O que já deixou de ser
continua a existir na memória, sob a forma de presença psíquica.

90 AGOSTINHO, Confissões, XI, 20,26


91 Cf. BOHENER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 177.
92 AGOSTINHO, Confissões, XI, 20,26
93 Cf. TEIXEIRA, Joaquin de Souza. TEMPORALIDADE. In: LOGOS, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. V, col. 93-94.
94 Cf. PLOTINO, Enéades, III, 7,6; AGOSTINHO, Confissões, XI, 29,39

24 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


O tempo pelo fato de ser mutável, é uma realidade que existe e foi criado desde o
princípio. O tempo existe porque as coisas mudam, por isso antes da criação não existia o
tempo porque só existia Deus, princípio criador, imutável e eterno. O mundo foi criado com
o tempo e não no tempo. Portanto a criação é princípio do mundo e princípio do tempo. Não
houve tempo em que não houvesse mundo, como não houve jamais o mundo sem o tempo.
Deus não se distende no passado e no futuro: é eterno presente, fora do tempo.
Daí talvez a pergunta inicial - “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra” –e que
motivou Agostinho a pensar e buscar o sentido do tempo, aqui não pode ter resposta pois
Deus não é um ser no tempo, mas é o princípio de tudo e supera o tempo. Tempo tem a ver
com movimento do antes ao depois, do agora e do ainda não. Eis a tensão de todo ser hu-
mano e com ele a história. “O esforço presente transforma o futuro em passado, o passado
cresce com a diminuição do futuro, até o momento em que tudo será passado, quando se
consumar o futuro”95. A percepção do antes e do depois, do número do movimento, pregada
por Aristóteles antecipou esta perspectiva Agostiniana das concepções espiritualistas do
tempo, entendido como a própria distensão da alma (“distentio ipsius animi”). A consciência
de fato conserva em si os movimentos transcorridos (passado) e antecipa os movimentos
por virem (futuro). Na consciência, o passado se conserva e é presente como memória, e o
futuro é presente como expectação. Permanece somente o presente como distender-se da
alma no passado e no futuro. Nesse sentido a memória vem entendida no sentido amplo,
quase de consciência. Ela esta relacionada com o tempo entendido como tempo psicológico,
pois “quando narramos os acontecimentos passados, que são verdadeiros, nós os tiramos da
memória”96. “Aqueles que narram coisas passadas não poderiam relatar coisas verdadeiras
se não as vissem na mente”97. “São as palavras que exprimem as imagens que os próprios
fatos, passando pelos sentidos deixaram impressos no espírito”98.
A memória grava, armazena as imagens do passado, e as traz presente no momento
oportuno. Assim se revive o passado, que já foi e não é mais, mas se chama passado porque
foi resultado de uma sucessão contínua de “momentos”, “situações”, “experiências”. O próprio
ser humano também faz o tempo uma vez que condensa a experiência vivida e a sintetiza
na memória. É ele protagonista da história que vive intensamente o presente projetando-se
para o futuro. “Quem sabe faz a hora e não espera acontecer” (Gerardo Vandré). Agostinho
confessa ter perdido horas na busca do absoluto de Deus, “tarde te amei, tarde te encontrei”.
Soube no entanto, viver com intensidade a sua história, o tempo longo que para ele foi o
presente 99, quando encontrou Deus como bem absoluto.

95 AGOSTINHO, Confissões, XI, 27,36


96 AGOSTINHO, Confissões, XI, 18,23
97 AGOSTINHO, Confissões, XI, 17,22
98 AGOSTINHO, Confissões, XI, 18,23
99 AGOSTINHO, Confissões, XI, 15,18

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 25


Nem sempre os estudiosos que sucederam Agostinho alcançaram resultados satisfa-
tórios sobre a temática do tempo100. Do mesmo modo o presente estudo deixa em aberto
questões como por exemplo a relação da concepção agostiniana do tempo com autores
modernos como Sigmund Freud e Martin Heidegger que também trataram do tempo ligado à
experiência histórica das pessoas. Os testemunhos literários tornam possível o diálogo, em
especial as confissões de Santo Agostinho, suscita nos leitores e leitoras perguntas, inter-
pelações. Permanece o desafio de vencer a distância cultural e histórica e fazer o confronto
entre gerações diversas, de contextos históricos também bem diversos, para interpretar os
sinais dos tempos atuais e encontrar um sentido renovado para a existência.
O cristão consciente e esclarecido na fé procura viver o presente como um kairós, “o
momento oportuno” que Deus oferece. Na verdade o tempo vivido positivamente nos oferece
oportunidades sempre novas de recomeçar e dar nova direção à vida. Portanto no sentido
cristão o tempo completou-se porque o reino de Deus está próximo, isto é, está presente
acontecendo na história. Eis o motivo de esperança, para se projetar para o futuro de uma
realização plena, agindo e fazendo a história acontecer.

REFERÊNCIAS
1. AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus,
1984.

2. AGOSTINHO, A cidade de Deus contra os pagãos. Parte II. São Paulo: Federação Agosti-
niana Brasileira & Vozes, 1990.

3. AGOSTINHO, Confissões. In; - Os Pensadores. Vol. VI, São Paulo: Abril Cultural, 1973.

4. BOHENER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vo-
zes,1982.

5. CAPANAGA, Victorino. Introduccion General. In: OBRAS DE SAN AGUSTIN, Tomo I, Edición
Bilíngüe, direción de Felix Garcia. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1951.

6. CHATELET, François. Filosofia Medieval. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1974.

7. GILSON, Étienne. Introduction a l’étude de Saint Augustin. Paris: Editión Librairie Philoso-
phique J. Vrin, 1949.

8. JERPHAGNON, Lucien. História das grandes filosofias. São Paulo: Editora Martins Fontes,
1992.

9. MONDIN, João Batista. Curso de Filosofia. Vol.I, São Paulo: Paulinas,1982.

100 Entre os estudiosos que sucederam Agostinho no tratado sobre o tempo destacam-se: Tomás de Aquino, Nicolau de Cusa, Kant,
Hurssel e Heidegger.

26 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


10. MORA, José Ferrater. Diccionário de Filosofia. Vol. IV, Barcelona: Edición Aliança, 1988.

11. PLATÃO, Diálogos, Mênon, Banquete, Fedro. Tradução do grego de Jorge Paleikat, Coleção
Universidade de Bolso, São Paulo: Ediouro Tecnoprint, 1985.

12. REALE, José & ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Vol. I, São Paulo: Paulinas, 1990.

13. REALE, Giovanni & ANTISIERI, Dario. História da Filosofia. Volume 2, São Paulo: Pauli-
nas,1990.

14. SCIACCA, Michele Federico. História da Filosofia, Antiguidade e idade média. São Paulo:
Editora Mestre Jou, 1967.

15. VV.AA., LOGOS- Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. V, Lisboa-São Paulo:


Editora Verbo, 1992.

16. VEGA, Angel Custódio. Las Confesiones. In.- OBRAS DE SAN AGUSTIN, Tomo II, Edición
Bilingue, Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1955.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 27


02
“ A influência da frequência a
grupos religiosos no IMC e
nos hábitos alimentares de
adolescentes

Teresa Helena Schoen


Unifesp

Maria Sylvia de Souza Vitalle


Unifesp

Helena Seibert
Unifesp

10.37885/201001678
RESUMO

OBJETIVO: Verificar a relação entre participação em algum grupo religioso e o IMC,


o hábito alimentar de adolescentes, estado nutricional e autopercepção em relação ao
peso, consumo alimentar e quantidade ingerida. MÉTODOS: Participaram 101 adoles-
centes, divididos em dois grupos: religiosos (que participavam ativamente de alguma
atividade religiosa) e não religiosos. Realizaram-se avaliações antropométricas e de
consumo alimentar. Os adolescentes responderam a um instrumento de triagem sobre
seus comportamentos e religiosidade. O diagnóstico nutricional foi obtido de acordo com
os pontos de corte propostos pelo Center for Disease Control and Prevention, o consumo
alimentar de acordo com questionário de frequência alimentar proposto por Villar (2001); a
autopercepção de qualidade e quantidade alimentar foi verificada pelo Youth Self Report
e a religiosidade de acordo com a escala de religiosidade Duke-Durel. RESULTADOS:
Não foram encontradas diferenças estatísticas entre os hábitos alimentares dos grupos
estudados, foi visto que ambos têm hábitos alimentares inadequados: pobre consumo
de frutas, verduras, legumes e de leite e produtos lácteos. A prevalência de sobrepeso e
obesidade encontrada no grupo de religiosos foi de 13,9% e 15,2%, e no grupo controle
foi de 13,6% e 22,7% respectivamente. CONCLUSÃO: Embora haja muitos adolescentes
obesos que frequentam grupos religiosos, neste estudo não foi estabelecida associação
entre religião e obesidade, hábito alimentar ou IMC.

Palavras-chave: Saúde do Adolescente, Nutrição do Adolescente, Religião, Adolescente.


INTRODUÇÃO

Na adolescência, a religião é uma dimensão muito importante (COTTON; MCGRADY;


ROSENTHAL, 2010), e um campo emergente de pesquisa empírica surgiu para examinar
as implicações potenciais da religiosidade no desenvolvimento do adolescente. O tempo
ocioso dos adolescentes costuma ser passado com amigos, como ir ao cinema (28%); ir
dançar (18%); ir à missa/igreja/culto (18%); jogar bola/futebol (17%), entre outras atividades
citadas no Levantamento Brasileiro sobre a Juventude (ABRAMO; BRANCO, 2005).
Nas últimas décadas vem sendo dada cada vez mais atenção ao papel da espirituali-
dade na saúde, explorando a possível influência, positiva ou negativa, direta ou indireta, que
a religião pode ter sobre diferentes aspectos da saúde (GILLUM; HOLT, 2010). No caso de
adolescentes e jovens adultos, estudos têm demonstrado uma associação positiva entre a
religião institucionalizada e saúde mental: adolescentes religiosos são caracterizados por um
ajuste positivo psicossocial, riscos de suicídio mais baixos, menor evasão escolar, menos
comportamentos de risco, como tabagismo, consumo de álcool, uso de substâncias ilícitas,
atividade sexual precoce e delinquência (GOOD; WILLOUGHBY, 2014; KUB; SOLARI-
TWADELL, 2013; MELLOR; FREEBORN, 2011).
Numerosos estudos mostram que o apoio de uma comunidade religiosa é um deter-
minante importante do estilo de vida. Muitos dos ensinamentos da religião oferecem orien-
tação moral e prática sobre como alcançar, manter ou recuperar a saúde física e emocional
(CHIDA; STEPTOE; POWELL, 2009). Em alguns casos, trata-se de evitar desvio em termos
morais - não cometer os sete pecados capitais. Esta visão assume que algumas religiões
explicitamente procuram promover bons hábitos de saúde, proíbem o fumo e o uso de álcool,
por exemplo, ensinando que o corpo é um templo e deve ser tratado com respeito.
Dado o efeito positivo da religião na saúde, pode-se suspeitar que a religião esteja
associada a menores índices de obesidade, pois a maioria condena excessos e gula. A fre-
quência a serviços religiosos tem sido associada com sobrepeso ou obesidade em adultos, já
a partir dos 20 anos (FEINSTEIN et al., 2012), embora outros fatores possam estar interferindo
nessa associação. O impacto da religião sobre o peso corporal é um problema de saúde
importante para as sociedades modernas, em que a taxa de obesidade está aumentando,
mas o assunto tem recebido relativamente pouca atenção, especialmente na adolescência.
O hábito alimentar do adolescente está associado, normalmente, a preferência por
produtos de inadequado valor nutricional (alto teor de colesterol, gordura, sal e açúcares).
Este consumo pode provocar modificações no estado nutricional. O conhecimento desse
hábito é importante para que se verifique a relação entre dieta e risco de morbimortalidade
e a prevalência de sobrepeso e obesidade nesta população (GARCIA; GAMBARDELLA;

30 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


FRUTUOSO, 2003). Com a detecção precoce de hábitos alimentares inadequados e a
mudança de comportamento, é possível a prevenção de doenças crônicas na vida adulta.
O hábito alimentar é influenciado por fatores culturais e pela interação com outras pes-
soas. Na adolescência há grande influência de amigos nas escolhas alimentares (KOEHLY;
LOSCALZO, 2009), deste modo, surge a suposição de que o hábito de adolescentes que
frequentam grupos religiosos seriam, também, influenciados pelos membros desses grupos,
festas que participam, passeios que realizam, líderes do grupo e modo de vida, além dos
preceitos da religião. Várias denominações religiosas pregam a adoção de certas práticas
alimentares, entre seus membros. Algumas técnicas como o jejum e abstinência de carne
são exemplos de práticas adotadas dependendo do período do ano.
Diante do exposto, o objetivo deste trabalho foi verificar se há relação entre participação
em algum grupo religioso e o IMC, o hábito alimentar de adolescentes, estado nutricional e
autopercepção em relação ao peso, consumo alimentar e quantidade ingerida.

MÉTODOS

Estudo prospectivo, transversal e observacional, com análise de dois grupos selecio-


nados por conveniência, no segundo trimestre de 2009. O estudo foi aprovado pelo Comitê
de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo/ Hospital São Paulo sob o
número CEP 0272/09.
– Grupo Estudo: Adolescentes de ambos os sexos, com idade de 12 a 19 anos, fre-
quentadores de grupos religiosos. A amostra foi composta por cinco grupos religiosos, de
quatro denominações protestantes (batistas, pentecostais, luteranos, Assembleia de Deus)
e foram incluídos somente aqueles que frequentaram no mínimo 50% das reuniões do grupo
convidado a participar ao longo do mês.
– Grupo Controle: Foram entrevistados pacientes de ambos os sexos atendidos nos
ambulatórios do Setor de Medicina do Adolescente (Centro de Atendimento e Apoio ao
Adolescente - CAAA) da Disciplina de Especialidades Pediátricas do Departamento de
Pediatria da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. A amostra foi composta por
adolescentes que afirmaram não frequentar nenhum grupo religioso, com idade de 12 a 19
anos. O CAAA atende adolescentes que vêm espontaneamente, encaminhados de outros
serviços ou de setores do Hospital São Paulo. Os adolescentes são acompanhados dos 10
aos 20 anos de idade incompletos. No CAAA participam profissionais de saúde de diferentes
áreas, visando atenção integral ao desenvolvimento saudável do adolescente.
Para a caracterização da amostra foram coletadas as seguintes variáveis: sexo, idade,
data de nascimento, escolaridade, tempo que frequentava a igreja e quantidade de grupos
que participava na igreja.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 31


● Critérios de exclusão
Excluíram-se os indivíduos que apresentassem doenças que pudessem modificar o
estado nutricional, tais como diabetes mellitus, hipertensão arterial, doença celíaca, gravidez,
amamentação, cadeirantes, ou qualquer outra que exigisse do paciente alguma restrição
ou cuidado alimentar. Também foram excluídos os praticantes de religiões que possuem
alguma restrição alimentar (não comer carne, por exemplo).

Instrumentos

1) Religiosidade: Versão em português da escala de religiosidade da Duke–Durel


(TAUNAY et al., 2012): verifica questões relacionadas à religiosidade do indivíduo. Neste
estudo foi utilizada a questão nº 1 (com que frequência você vai a uma igreja, templo ou a
outro encontro religioso?).
2) Autopercepção: Youth Self Report – YSR (ACHENBACH; RESCORLA, 2001): uma
escala de autopreenchimento para triagem de competência social e problemas de compor-
tamento. Neste estudo foram utilizadas as questões 24 (não me alimento direito), 53 (como
demais) e 55 (peso muito), no qual o adolescente assinala se a afirmação é falsa, verdadeira,
ou às vezes verdadeira.
3) Consumo Alimentar: Questionário de Frequência Alimentar Semiquantitativo (QFASQ)
(VILLAR, 2001), o qual foi desenvolvido para analisar o hábito alimentar de adolescentes.
4) IMC: O peso foi aferido com o adolescente utilizando o mínimo de roupas possível, na
posição vertical e descalço em balança de plataforma da marca Plenna (modelo MEA 07400)
com capacidade para 150 Kg e precisão de 100 g. A estatura foi verificada em estadiômetro
fixo na parede e com auxílio de um esquadro com escala em centímetros e precisão de
0,1 cm. Utilizou-se a posição vertical em uma superfície plana, de costas para o marcador,
em uma parede sem rodapé, pés unidos, joelhos em contato, cabeça ajustada ao plano de
Frankfurt e em inspiração profunda. Para o cálculo do Índice de Massa Corporal (IMC) foi feita
a relação entre o peso e a estatura ao quadrado, sendo utilizado para o cálculo o peso em
quilos e a estatura em metros. O IMC foi analisado e classificado de acordo com os pontos de
corte propostos pelo Center for Disease Control and Prevention (KUCZMARSKI et al., 2000).

Procedimentos

Após consentimento dos diversos locais em que o estudo foi desenvolvido, houve
uma reunião explicativa nos grupos religiosos. O TCLE foi enviado para os responsáveis
assinarem. No dia combinado, os adolescentes que aceitaram participar assinaram o Termo
de Assentimento, responderam os instrumentos durante a reunião do seu grupo religioso, e
tiveram sua altura e peso aferidos. No CAAA, os adolescentes eram convidados a participar

32 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


e preenchiam os instrumentos enquanto aguardavam sua consulta na sala de espera. Os in-
divíduos foram avaliados em peso (kg) e estatura (cm).

Análise estatística

Os dados foram analisados pelos softwares SPSS V16, Minitab 15 e Excel Office
2007. Foram utilizados os testes de Igualdade de Duas Proporções. Um valor de p < 0,05
foi considerado significante.

RESULTADOS

● Em relação à amostra
A amostra inicial continha 101 registros, foram perdidos 13 (12,9%) por preenchimento
incorreto ou não preenchimento de alguns dos questionários. Restaram 88 adolescentes,
sendo 50 (56,82%) do sexo feminino; a média de idade da amostra foi de 16,12 anos (2,47
DP), a idade mínima foi 12,2 anos e a máxima 19,7 anos. O grupo controle foi composto
por 19 (21,6%) adolescentes (14 [73,7%] do sexo feminino). O grupo estudo foi composto
por 69 (78,4%) adolescentes (35 [50,7%] do sexo feminino). É importante ressaltar que os
adolescentes religiosos eram de quatro denominações diferentes (N= 10, 16, 21 e 22)
Quando comparado o tempo de estudo em anos entre os grupos, foi encontrada dife-
rença estatística significante (p=0,009). Foi verificado maior tempo de estudo em anos no
grupo religioso (9,78 ± 0,47), quando comparada ao grupo controle (8,38 ± 1,00).
● Em relação à religiosidade
Foi encontrada maior frequência (p<0,01) a serviço religioso no grupo religioso (todos
os participantes deste grupo responderam terem uma frequência de 2-3 vezes ao mês),
enquanto a distribuição do grupo controle variou desde algumas vezes ao ano (57,9%) ou
não frequentavam (15,8%).
● Em relação ao hábito alimentar

Tabela 1. Frequência alimentar de adolescentes segundo a religiosidade, por grupo de alimentos.


Controle Religioso
Freq. Alimentar p-valor*
N % N %
Diário 31 18,1% 96 15,0%
Carnes e Ovos 0,321
Esporádico 140 81,9% 543 85,0%
Diário 47 20,6% 163 19,1%
Cereais, pães e tubérculos 0,615
Esporádico 181 79,4% 689 80,9%
Diário 38 18,2% 112 14,3%
Doces, salgadinhos e guloseimas 0,169
Esporádico 171 81,8% 669 85,7%
Diário 11 57,9% 41 57,7%
Feijão 0,991
Esporádico 8 42,1% 30 42,3%

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 33


Controle Religioso
Freq. Alimentar p-valor*
N % N %
Diário 30 15,8% 86 12,1%
Frutas 0,179
Esporádico 160 84,2% 624 87,9%
Diário 19 14,3% 67 13,5%
Leites e produtos lácteos 0,810
Esporádico 114 85,7% 430 86,5%
Diário 13 17,1% 46 16,2%
Óleos e Gorduras 0,849
Esporádico 63 82,9% 238 83,8%
Diário 32 15,3% 87 11,1%
Verduras e legumes 0,100
Esporádico 177 84,7% 694 88,9%
*Teste: Igualdade de duas proporções

●Em relação à autopercepção (YSR)

Tabela 2. Autopercepção corporal, consumo e qualidade alimentar de adolescentes em relação à religiosidade


Controle Religioso
YSR p-valor*
N % N %
Não é Verdade 10 52,6% 27 39,1% 0,291
Não me
alimento As vezes 5 26,3% 38 55,1% 0,026*
direito Sempre 4 21,1% 4 5,8% 0,041*
Não é Verdade 9 47,4% 22 31,9% 0,211
Como demais As vezes 7 36,8% 35 50,7% 0,283
Sempre 3 15,8% 12 17,4% 0,869
Não é Verdade 9 47,4% 47 68,1% 0,096
Peso muito As vezes 6 31,6% 17 24,6% 0,542
Sempre 4 21,1% 5 7,2% 0,079
*Teste: Igualdade de duas proporções

●Em relação ao estado nutricional

Tabela 3. Distribuição do Estado Nutricional dos adolescentes de acordo com a religiosidade


Controle Religioso
Classe IMC p-valor*
N % N %
Baixo Peso 0 0,0% 4 5,1% 0,281
Eutrofia 14 63,6% 52 65,8% 0,849
Obesidade 5 22,7% 12 15,2% 0,403
Sobrepeso 3 13,6% 11 13,9% 0,972
*Teste: Igualdade de duas proporções

●Hábito alimentar do grupo religioso de acordo com IMC

Tabela 4. Distribuição de IMC do grupo Controle em Frequência Alimentar, por grupo de alimentos

Baixo Peso Eutrofia Sobrepeso Obesidade


Freq. Alimentar
N % N % N % N %

Diário 0 0,0% 73 18,9% 10 10,1% 13 13,1%


Carnes e Ovos
Esporádico 36 100% 314 81,1% 89 89,9% 86 86,9%

Cereais, pães e tubér- Diário 12 25,0% 101 19,6% 25 18,9% 25 18,9%


culos Esporádico 36 75,0% 415 80,4% 107 81,1% 107 81,1%

Doces, salgadinhos e Diário 8 18,2% 75 15,9% 14 11,6% 13 10,7%


guloseimas Esporádico 36 81,8% 398 84,1% 107 88,4% 108 89,3%

34 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Baixo Peso Eutrofia Sobrepeso Obesidade
Freq. Alimentar
N % N % N % N %

Diário 4 100% 26 60,5% 2 18,2% 7 63,6%


Feijão
Esporádico 0 0,0% 17 39,5% 9 81,8% 4 36,4%

Diário 0 0,0% 55 12,8% 12 10,9% 12 10,9%


Frutas
Esporádico 40 100% 375 87,2% 98 89,1% 98 89,1%

Leites e produtos Diário 4 14,3% 46 15,3% 10 13,0% 7 9,1%


lácteos Esporádico 24 85,7% 255 84,7% 67 87,0% 70 90,9%

Diário 2 12,5% 32 18,6% 10 22,7% 1 2,3%


Óleos e Gorduras
Esporádico 14 87,5% 140 81,4% 34 77,3% 43 97,7%

Diário 0 0,0% 58 12,3% 8 6,6% 21 17,4%


Verduras e legumes
Esporádico 44 100% 415 87,7% 113 93,4% 100 82,6%

DISCUSSÃO

A saúde é fortemente associada por fatores sociais, culturais e filosóficos, de forma


que diversos estudos apontam relação positiva entre religiosidade e algum fator relacionado
à saúde ou qualidade de vida (CHIDA; STEPTOE; POWELL, 2009; COTTON; MCGRADY;
ROSENTHAL, 2010; GILLUM; HOLT, 2010). Não foram encontradas diferenças estatísti-
cas entre os hábitos alimentares dos grupos estudados, foi visto que ambos os grupos tem
hábitos alimentares inadequados quanto ao pobre consumo de frutas, verduras e legumes
e de leite e produtos lácteos (Tabela 1).
A prevalência de sobrepeso e obesidade encontrada no grupo de religiosos estudada
foi de 13,9% e 15,2%, respectivamente, e no grupo controle foi de 13,6% e 22,7% respecti-
vamente valores maiores que os observados por Pereira, Carmo e Cândido (2013), porém
menores que no estudo de Rossi et al (2013). O grupo controle foi composto por adolescen-
tes que buscam atendimento médico, este pode ter sido um fator para encontrar excesso
de peso. A elevada prevalência de sobrepeso e obesidade no grupo estudo aponta para a
necessidade de intervenção nesta população. A religião, no indivíduo obeso, pode atuar de
maneira positiva ou negativa (conformismo) na estratégia para aquisição de bons hábitos
alimentares e consequente perda de peso. O lado positivo (aumento de vínculo com amigos
e familiares e ser movido por costumes religiosos) pode ser explorado como estratégia para
educação nutricional e controle de aumento de peso.
Já se encontrou relação da atuação positiva da religião em adolescentes diminuindo
uso de drogas ilícitas (KUB; SOLARI-TWADELL, 2013); ou que a prática religiosa levaria
os indivíduos a terem estilo de vida mais saudável (CHIDA; STEPTOE; POWELL, 2009).
McCullough e Willoughby (2009) encontraram diversos aspectos que associam positiva-
mente a prática religiosa com melhor qualidade de vida em diversos aspectos, como menor
consumo de álcool e cigarro, maior propensão ao uso de cinto de segurança e frequência

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 35


regular ao dentista. As influências culturais no comportamento do indivíduo podem atuar
no seu estilo de dieta, apesar disso, no presente estudo, não foi encontrada relação entre
o hábito alimentar e a prática religiosa.
Para o consumo alimentar adequado dos grupos alimentares, Sichieri et al. (2000)
propuseram as seguintes porções diárias: feijões e sementes, de 2 a porções; arroz, pão e
outros grãos 6 a 7 porções; verduras e legumes de 3 a 5 porções, frutas de 4 a 5 porções
e leite e derivados de 3 a 4 porções; Observando a tabela 4, nota-se que o feijão é o único
grupo de consumo alimentar diário (com exceção do grupo sobrepeso que informou consumir
menor quantidade). Embora as religiões estudadas tenham origens diversas (luteranismo
na Alemanha e batistas nos Estados Unidos), a cultura brasileira de se alimentar com feijão
se sobrepõe a outras influências.
Em relação às frutas e verduras, em grande parte da amostra houve um baixo consumo,
como no estudo de Toral et al. (2006), os quais encontraram 82,1% de consumo insuficiente
de frutas e 77,8% de consumo insuficiente de verduras em grupo de adolescentes.
O consumo de doces e guloseimas e o de óleos e gorduras foram maiores que o de
frutas e que o de verduras e legumes no grupo religioso. A dieta inadequada na adolescência
pode ser fator de risco de modo que adolescentes obesos tornam-se possíveis candidatos
a doenças crônicas não transmissíveis no futuro. Os erros alimentares na adolescência
podem alterar o anabolismo/catabolismo que causará prejuízos em idades mais avançadas
(ROSSI, et al., 2013).
A dieta inadequada parece ser o comum entre adolescentes (PEREIRA; CARMO;
CÂNDIDO, 2013), independente de seguir alguma religião. O grupo religioso, seguindo os
preceitos bíblicos, entende o corpo como “templo do Espírito Santo” e, portanto, precisa ser
cuidado adequadamente. Baseado nisso, acreditávamos que encontraríamos maior preo-
cupação com o hábito alimentar saudável no grupo estudo, o que não aconteceu. A maioria
das religiões condena excessos e gula, mas pouco apoia o comportamento dos adeptos
na busca de uma alimentação saudável. Gillum e Holt (2010) observaram associação entre
frequentar um grupo religioso e maior chance de estar acima do peso ou obesos (58 por
cento entre os participantes semanais contra 53 por cento para os participantes ocasionais).
Não podemos afirmar que frequentar grupos religiosos levou ao sobrepeso e à obesidade,
pois pode ter ocorrido um processo inverso de causalidade, uma forma de seleção social,
em que os indivíduos que frequentam tais grupos acolhem indivíduos que apresentam algum
estigma social, como a obesidade.
O IMC dos grupos não apresentou diferenças estatísticas. Encontrou-se na amostra
analisada, prevalência alta de sobrepeso e obesidade. Entendendo sobrepeso e obesida-
de como proxy de um hábito alimentar inadequado, temos que a intervenção de educação

36 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


nutricional é válida para grupo em evidência (visto que o grupo controle já está sob orienta-
ção). Embora novas estratégias para educação alimentar para adolescentes são necessárias,
a maioria dos estudos não busca maneiras para aperfeiçoá-las.
Foi verificado que o grupo de religiosos apresentou em média, mais anos de estudo
que o grupo controle, o mesmo encontrado por Abramo e Branco (2005). Adolescentes que
tem maior persistência nos estudos aumentam a valorização de metas num futuro distan-
te. A alta escolaridade do grupo de religioso pode ser aproveitada positivamente em alguma
estratégia de educação nutricional para tais adolescentes.
Já são difundidos nos Estados Unidos programas de controle de peso e educação ali-
mentar realizado em igrejas. Eles são embasados em ensinamentos e doutrinas das mesmas
e até mesmo em textos bíblicos (APRIL MICHELLE HERNDON, 2008). Dado o alto índice de
indivíduos no município de São Paulo que dizem pertencer a alguma denominação religiosa,
sugere-se a aplicação de programas de controle de peso e educação alimentar em igrejas,
podendo desenvolver uma estratégia específica para atingir adolescentes.
Observou-se que mais adolescentes do grupo controle disseram não se alimentar di-
reito, em relação ao grupo de adolescentes religiosos. Receberem orientação de médicos
e nutricionistas, como ocorre no CAAA, favorece uma autopercepção mais fiel da realidade
e, só então, é possível que o adolescente venha a mudar seus hábitos alimentares.

Limitações do estudo

Por ter sido adotada uma amostra por conveniência, foram escolhidas igrejas protes-
tantes e comparadas com um grupo de pacientes do CAAA – Unifesp, o fato de os pacientes
estarem em um serviço médico, pode ter influenciado na característica da amostra, já que
os adolescentes/jovens do grupo estudo podem não frequentar algum serviço médico com
certa regularidade, e desta maneira os grupos comparados seriam diferentes.

CONCLUSÕES

Não foi verificada, na amostra estudada, relação estatisticamente significativa entre a


prática religiosa e o hábito alimentar, peso e percepção alimentar entre adolescentes.
Devido ao número elevado de casos de sobrepeso/obesidade encontrados nos gru-
pos, sugere-se que se utilize a igreja como local estratégico para programas de educação
alimentar. Da mesma maneira que a religiosidade atua positivamente na população em re-
lação a diversos fatores, acredita-se que possa atuar, também, positivamente, na melhoria
de hábitos alimentares, se utilizada na estratégia de novos programas de educação alimen-
tar. Os grupos religiosos podem vir a promover um peso corporal saudável, incrementando

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 37


o consumo de frutas e vegetais e a diminuição do de alimentos gordurosos nos eventos que
forem realizados.
Sugerem-se novos estudos com amostras com maior número de indivíduos, com maior
abrangência de grupos religiosos para que se verifique se, de fato, não há correlação entre
as variáveis estudadas.

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Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 39


03
“ A influência do Pañcatantra e
da vida de Buda na literatura
europeia

Arilson Paganus
UFCG

10.37885/201001620
RESUMO

Em quase toda a Europa, nos períodos medieval e moderno, tornou-se recorrente as


impressões imaginárias sobre os escritos indianos, iniciadas quase dois mil anos antes na
Grécia. As novelas medievais, por exemplo, com seus heroicos cavaleiros, assim como
as fábulas modernas, possuem, todas, uma marca significativa da literatura popular ou
erudita indiana. Na verdade, foi a Índia a fonte longínqua e literária do conto, apólogo,
romance de cavalaria etc., que tanto encanto deram à época medieval. Isto é confirmado
por Theodor Benfey, um dos tradutores do Pañcatantra, ao pronunciar o dictum, em 1859,
de que o grande número das fábulas mundiais, as quais foram produzidas no Ocidente,
têm origem na Índia; destas, um pequeno número já havia, inclusive, chegado à Europa
como histórias orais, antes mesmo do século X.

Palavras-chave: Índia, Literatura, Europa, Plágio, Buda.


INTRODUÇÃO

Em quase toda a Europa, o que se aplica na historiografia positivista como final do


período medieval europeu, tornou-se recorrente às impressões imaginárias sobre os escritos
indianos, iniciadas quase dois mil anos antes na Grécia, mais especificamente com o relato
do médico grego Ctésias de Cnidos para o rei persa Artaxerxes II, no século IV a.C.1
Todavia, o fato mais marcante durante o período medieval europeu, no tocante ao
contato da Europa com a Índia, não foi a tentativa de aculturação cristã que se estendeu
por vários lugares e tempos, mas o encontro positivo com a Índia através da divulgação da
versão persa (ou do seu dialeto pahlavi ou pehlevi), e posteriormente árabe, da literatura
sânscrita Pañcatantra, hoje mais fragmentada e conhecida como Kalila e Dimna. E o mais
curioso e não menos surpreendente, de acordo com Arthur Macdonell, é que:

[...] a melhor e mais famosa das versões do Pañcatantra na Idade Média foi
a germânica, de Anton von Pforr,2 intitulada Das Buch der Beispiele der alten
Weisen, a qual apareceu em 1483, logo após a invenção da imprensa, e reim-
pressa posteriormente [em Estrasburgo]. Por um longo período ela contribuiu
ao máximo com um conhecimento original por toda a Europa. [Desta forma,]
ela não apenas influenciou a literatura germânica em muitos aspectos, mas
foi também, ela mesma, traduzida para o dinamarquês, islandês e holandês
[e iídiche, língua judaica]. Esta versão germânica estava quatro gerações
distante dos árabes, desde o início da aventura ocidental do Pañcatantra
(MACDONELL, 1994, 123).

Tal Pañcatantra, por uma via semelhante – versão em persa, depois em árabe, georgia-
no, grego e latim –, chegou também ao Portugal medieval, juntamente com o Dhammapada
(um dos mais famosos compêndios budistas), o Jatakamala e o Lalitavistara − escritos bio-
gráficos e aforísticos sobre Buda.
Explicitamente, a dimensão ética e universal da vida de Buda inspirou o mundo oriental
e parte do Oriente Médio de muitas maneiras, tendo atravessado transversalmente a história
da humanidade em basicamente três fases: 1) o Dhammapada e o Jātakamāla seguiram as
rotas do comércio oriental, percorridas pelos monges budistas no seu missionar pela Ásia
até o Ocidente macedônio, grego e romano; 2) seguiu pelas traduções e adaptações árabes,
espalhando-se pelo mundo árabe até a Europa; e, finalmente, 3) o missionar cristão acabaria
1 O historiador de arte alemão, Rudolf Wittkower (1901-1971), confirma que os mananciais que promoveram o bestiário mediévico, por
exemplo, voltam-se ao passado helenístico, e aclara o andamento das imagens anômalas pelo meio artístico ocidental, partindo dos
documentos helenísticos que abordam a geofísica mundial e as circunscrições do Oriente, assim como as empreitadas de Alexandre
na Índia. Não obstante, Ctésias já havia registrado, logo após Heródoto descrever os afazeres ordinários indianos, um tratado que
aborda excepcionalmente a Índia, aglomerando múltiplas ideias do orbe grego e persa e tracejando teratologias como os cinocéfalos
(criaturas com cabeça de cachorro), os sciápodes, pessoas com abissais pés e que se movimentam com alta agilidade, entes sem
cabeças e cujas faces se encontram no busto, além de unicórnios e outros. Tais relatos nutriram exaustivamente a fantasia do senso
comum e dos doutos europeus (WITTKOWER, 1987).
2 Donald Lach observa que a versão germânica de Pforr também ficou conhecida como Seven Wise Masters [Os Sete Mestres Sábios]
(LACH, 1994, 347). Também há versões como The Seven Sages ou até The Seven Sages of Rome (CAMPBELL, 2009).

42 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


por traduzir o mesmo Jātakamāla do árabe para o grego, quando João Damasceno (675-749)
viveu na corte do califa Abdul-Malek, de Damasco, adquirindo uma versão pehlevi iraniana,
surgida na comunidade maniqueísta de Bagdá (BEINORIUS, 2005, 10).
A biografia de Buda viria, assim, a ser introduzida no universo cristão a partir do século
VIII, com a designação latina Josaphat, que descende etimologicamente do grego Iosaph, do
georgiano, Iodasaph, do árabe, Yudhasaf, do uigur (dialeto chinês adotado pelos budistas),
Bodhasaf, do pāli (dialeto indiano), Bodhisatta, e este, por fim, do sânscrito Bodhisattva:
“existência iluminada” ou “personificação da sabedoria”. Foi assim que tal biografia cristiani-
zada entrou no Martirológio como as vidas de Josafá (Josafate) e Barlaão, atestadas, aliás,
pelo Martyrologium Romanum de 1583 (LACH, 1994, 102).
Tudo isso culmina, não por acaso do destino, na versão trecentista de Hilário da Covilhã
(ou Lourinha): Vida do Honrado Infante Josaphate, Filho do Rey Avenir: uma versão cris-
tianizada e plagiada da história de Buda e conservada em um manuscrito alcobacense; a
ser publicada em 1963 por Margarida Corrêa de Lacerda – sanscritista do então Instituto
Superior de Estudos Ultramarinos, em Portugal.3
No entanto, o Buda aqui sofrera uma translação em plagiário e uma notável meta-
morfose dogmática, vindo a transformar-se em um santo cristão, venerado tanto pela igreja
grega como pela latina e comemorado no Martyrologium Romanum, em 27 de novembro e,
no calendário da Igreja Ortodoxa, em 26 de agosto (JACOBS, 1896, XVI-XVII). Mas não foi
essa a única metamorfose que sofreu: na primeira versão persa – hoje perdida ou bem guar-
dada no Vaticano – virara aparentemente mestre maniqueísta, e, no Bilawharr wa Budhasaf
árabe e persa moderno, o protótipo do Barlaão e Josafá (ou Josafate) cristão, senão um
santo islâmico (o que seria uma heresia contra o seu profeta Muhammad) – ao menos um
deísta fervoroso exemplar.4
Com ricos detalhes a respeito, dirá Audrius Beinorius:

3 Para pesquisa empírica ver: manuscrito no códice do mosteiro de Alcobaça, nº 266, na Tôrre do Tombo, em Lisboa II.
4 O que nos diz a plagiada história de Josafá? O enredo básico da história apresenta um rei orgulhoso e poderoso, o qual persegue os
ascetas religiosos que vivem em seu reino (obviamente cristãos) e os expulsa. Ele despreza o mundo, nega os ensinamentos mo-
noteístas, ao mesmo tempo em que é um hedonista politeísta. Quando um dos filhos (Josafá ou Josafate) nasce, ele, como todo rei
antigo, sente que sua linhagem real tornara-se segura, o que lhe proporciona pleno júbilo. No entanto, após previsões astrológicas em
volta do nascimento da criança, surge a ideia de dois possíveis futuros para o menino: ele poderia se tornar um grande rei ou renun-
ciar ao mundo, alcançando outro tipo de glória. Temendo que o destino de seu filho pudesse seguir o segundo curso, o rei o prende no
palácio e o mantém afastado das imperfeições do mundo. Josafá, inevitavelmente, torna-se insatisfeito com a vida no palácio, e após
muito insistir lhe é concedida a permissão para sair do mesmo – momento chave da trama –, ao que ele tem uma série de encontros
perturbadores, basicamente as três primeiras do famoso quadro de sinais do Buda: doença, velhice e morte. Nesse momento, ele é
visitado pelo asceta Barlaão, ou seja, o asceta do quarto sinal, o qual preenche quase todo o enredo como um personagem que lhe
dá instrução religiosa monoteísta e ascética. Josafá é aconselhado a renunciar o mundo para superar as misérias contempladas, que
também o atingiram. Mas antes de sua renúncia, ele deve enfrentar muitos conflitos com o rei. No final, após um fervoroso diálogo
com Barlaão, ele passa a viver asceticamente e morre na certeza de que será concedido a um lugar nos Céus. Com exceção do
pregador cristão e do contexto monoteísta dogmático, observamos, aqui, a história de Buda quase em sua íntegra versão budista
(LANG, 1966).

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 43


Desde 1000 d.C., uma versão da vida de Buda sob a forma de lenda de Barlaão
e Josafá influenciou o ideal ascético cristão ocidental. O monge Euthymius, do
Monte Atos, traduziu do seu georgiano nativo para o grego um conto de dois
santos cristãos da Índia: um eremita cristão chamado Barlaão e um príncipe
convertido, o Josafá. [Portanto,] Baseado na biografia sânscrita do altamente
conhecido Buda: Budacarita, por Ashvaghosha (séculos II e III d.C.) – esta é a
história de renúncia de Buda – provavelmente tenha fundado aqui o encontro
entre o Oeste e o caminho através dos maniqueístas da Ásia Central, apro-
vando a história da renúncia de Buda para os seus próprios fins [cristãos]. Um
texto em árabe dessa história, traduzido do dialeto pehlevi iraniano, apareceu
no século VIII na comunidade maniqueísta de Bagdá. Assim, do sânscrito
Bodhisattva tornou-se o uiguriano Bodhasaf, mais tarde, o árabe Yudhasaf,
depois o georgiano Iodasaph, o grego Iosaph e, finalmente, o latim Josaphat.
Este texto latino foi traduzido para muitas línguas ocidentais. Embora nunca
tenham sido canonizados, no século XVI para Josafá e Barlaão foram, pela
demanda popular, atribuído um lugar no rol dos santos católicos romanos,
sendo o seu dia 27 de novembro [ou 12 de novembro, como no Brasil]. Acre-
ditava-se amplamente na Europa que a história de Barlaão e Josafá tivesse
sido um relato da segunda conversão da Índia para o cristianismo, sendo a
primeira promovida pelo apóstolo Tomé. Desta forma, a história […] dos rudi-
mentos da vida de Buda foi intencionalmente introduzida na Europa medieval,
[e] encoberta com dogmas cristãos (BEINORIUS, 2005, 10-11).

Audrius Beinorius ainda observa que uma igreja cristã foi dedicada a Josafá em Palermo,
na Sicília, enquanto a igreja de André d’Anvers, na França, guarda uma de suas enganadiças
relíquias.5 Um dos primeiros europeus a noticiar as similitudes entre a história de Buda e a
história de Barlaão e Josafá, junto à sua origem indiana, segundo Beinorius, foi o historia-
dor português – que ajudou Camões a voltar da Índia para Portugal e, assim, poder apre-
sentar Os Lusíadas – Diogo do Couto (1542-1616), em 1612. Mas a observação de Couto
apontou apenas uma vida modelo de Josafá como sendo semelhante à de Buda. A união
dos fatos, ou seja, a acusação de plágio e não de semelhança, veio à tona apenas com os
franceses Eduoard Laboulaye (1811-1883) e Felix Liebrecht, em 1859 (PITTS, 1981, 3).
Philip Almond aponta que a história de Buda, juntamente com sua ideia ascética,
foi, portanto, “uma força positiva à vida [sobrevivência e nova cosmovisão] do cristianis-
mo”. No entanto, a partir desse plágio dogmatizado e da tradição que se manifestou com
Josafá e Barlaão, motivou-se o terror das perseguições antipagãs e heréticas na Europa
– induzidas na obra –, assim como o monasticismo e o celibato acentuado, até então ine-
xistentes no cristianismo, como métodos eficazes de salvação da alma (ALMOND, 1987,
p. 406). Além disso, John Hirsh (1986, XXVI) apontou acertadamente a atmosfera de “per-
seguição e intolerância” a partir da violação e descaracterização de tal apanágio budista.
Comparando-os, Monique Pitts (1981, 10) nos diz: “para Buda a meta era atingir a iluminação
perfeita [Buddhahood], [enquanto] para Josafá o ascetismo era a preparação para o mundo
real, [ou para] aquele [mundo] que não pode ser visto”.

5 No Brasil, temos a igreja católica de Curitiba, dedicada a esse ícone budista que metamorfoseou-se em um fictício santo cristão, como
tantos outros, no intuito aculturador desbravado.

44 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Em outras palavras, a igreja romana tomou a virtude búdica como modelo de santidade
e, como tal, foi aceita e aprovada por Gregório III, Xisto V, Urbano VIII, Alexandre VII e Pio
IX; além de introduzir fartos exemplos morais nas obras Gesta Romanorum, Vitae Patrum,
Vitae Sanctorum e Disciplina Clericalis (IKEGAMI, 1999, 17).
Desse mesmo plágio cristão da vida de Buda, diz Theodor Garrat, Shakespeare adaptou
vários apólogos budistas. Dois deles, aponta Garrat, são a “lenda dos três baús” (também
encontrada no Decamerão de Boccaccio) e a “libra de carne”, utilizada magistralmente por
Shakespeare em The Merchant of Venice [O Mercador de Veneza], uma peça que relata os
contrastes do espírito humano, escrita entre 1596-1598 e famosa por seus dois persona-
gens principais: Antônio, o mercador, e Shylock, o agiota judeu. Uma de suas cenas, aliás,
foi parodiada na peça O Auto da Compadecida do paraibano Ariano Suassuna – também
transformada em filme.
Não obstante, suscitou o Pañcatantra grande número de versões na própria Índia, como
a versão híndi de 1030 d.C., do árabe, filósofo e matemático Al-Bērūnī (973-1048), por um lado
(MACDONELL, 1994, 122), e, por outro, a mais célebre, do autor Narayana, o Hitopadesha
[Ensinamento Salutífero], uma das obras mais traduzidas do sânscrito para outras línguas,
aquém, obviamente, dos épicos.6 E, apesar de ser um compêndio do Pañcatantra, há nele
alguns contos que procedem de outras obras sânscritas. Dele surgiram diversas versões
jainistas e em línguas vernáculas do Sul da Índia. Em suma, o Hitopadesha divide-se em
quatro livros, com um total de 43 fábulas, das quais 25 são retiradas do Pañcatantra.
Sob o auxílio do filólogo alemão Theodor Benfey (1809-1881),7 a quem se deve a fra-
se: “a Índia é a origem da civilização antiga, a qual se espalhou pela Europa junto com sua
língua e histórias religiosas” (STACHE-ROSEN, 1990, 32-33) – permitimo-nos apresentar
com maior precisão o descobrimento e o desenvolvimento da árvore genealógica destas
fábulas. Para ele, não se há podido encontrar na Índia nenhum texto que corresponda
exatamente ao Kalila e Dimna árabe, persa ou siríaco. No entanto, sua existência antes do
século VI é certa, acrescenta Benfey; não só por este grupo de traduções, mas pela relação
devedora ao célebre Pañcatantra, traduzido do sânscrito por Benfey (1859) em dois volu-
mes, que, dos vários capítulos do Kalila, contém cinco, porém, muito mais desenvolvidos e
amplificados interiormente: cada seção ou capítulo se compõe por um apólogo principal, no
qual se intercalam outros vários, recitados pelos personagens da fábula e exornados com
sentenças em verso.

6 Foi integralmente vertida ao português por Sebastião Rodolpho Dalgado (1855-1922), com o título Hitopadexa, editado pela Antiga
Casa Bertrand em Lisboa, em 1897.
7 Com uma introdução de 600 páginas, a qual é a mais completa já conhecida sobre o apólogo indiano. No juízo de Benfey, o Pañcatantra
é obra de um budista que viveu no século III de nossa era. No entanto, hoje, consensualmente, segundo Moriz Winternitz, sabe-se que
ele estava equivocado, pois o mesmo é de autoria brahmânica, com vários detalhes ortodoxos que o diferenciam do pensamento budis-
ta, e muito mais antiga à sua indicação temporal, existindo meras versões jainistas e budistas posteriores (WINTERNITZ, 1985, 318).

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 45


Todavia, a maior parte destes apólogos havia servido como exemplos aos pensado-
res budistas, que se dirigiam à massa da população interessada recitando-a em jatakas
(parábolas). Devemos observar que o Pañcatantra foi redigido em pāli, dialeto próximo ao
sânscrito e língua dos cânones da escola budista Theravada, desenvolvida amplamente no
Ceilão, de onde, a partir do século XI d.C, devido à “expulsão” política do budismo da Índia
pelos islâmicos e filosófica por Çaìkara, também conquistou o Camboja, a Birmânia, o Sião
e o Laos. As fábulas budistas aparecem unidas, por exemplo, ao Khuddaka Nikaya, em sua
quinta e última seção do Sutta-pitaka ou segunda parte do Tripitaka, as três coleções canô-
nicas budistas proferidas por Buda e seus discípulos mais próximos, durante os quarenta
e cinco anos da sua atividade como iluminado. Tal fato compreende todo o conhecimento
transmitido por Buda em três ocasiões e lugares distintos. Sendo elas, as fábulas, ilustradas
em 547 prosas, das quais algumas têm paralelos nos épicos Ramayana e Mahabharata e
nos devocionais Puranas, todos de origem brahmânica. Coincidentemente ou não, algumas
dessas fábulas budistas apareceram logo após o segundo concílio budista em Vaishali (390
a.C.). Tais fábulas são conhecidas como jatakas ou “nascimentos”, por serem elas prováveis
narrações de vidas anteriores do Buda (AKIRA, 1993, 79, 160, 268).
Isso nos leva a presumir que a maior parte destas parábolas, fábulas e provérbios é
anterior ou contemporânea ao nascimento do budismo, notadamente, com sentidos diversos
dos do hinduísmo, já que, para os seus ouvintes, os budistas as empregavam com uma nova
roupagem moral (JACOBS, 1888).
Conclui-se, então, que as fábulas indianas são milenares, ora nascentes da natural
tendência da mente humana de tomar a metáfora pela realidade e as figuras de linguagem
por histórias e contos, que é o ponto de vista filológico indicado por Ernst Kuhn (1846-1920) e
tão vulgarizado e deturpado pelo desencantado Max Müller; ora pertencentes a uma remota e
misteriosa fonte em vagas memórias da ancestral comunidade dos pensadores āryas, como
parece indicar a presença de algumas delas em ramos descendentes e familiares; especial-
mente nas tradições germânicas e bem marcantes em seus famosos trabalhos literários.
Inicialmente, temos um dos marcos irreverentes da literatura europeia, Tristão e Isolda,
do século XII, que Theodor Garratt (2007, 24), Moriz Winternitz (1985, 382), Arthur Macdonell
(1994, 128) e Donald Lach (1994, 102) relacionam, a partir da versão de Gottfried von
Strasbourg,8 com a Índia via a Pérsia. Afirmam tais autores que Tristão e Isolda se co-
necta com a obra Tutināmeh persa, no sentido de uma real “ordem fraudulenta” (Garratt e
Macdonell) ou falsificação (Winternitz), e que, por sua vez, é uma tradução do Shukasaptati
indiano, uma versão do Pañcatantra. Em outras palavras, Tristão e Isolda, na realidade, nada
mais é do que uma versão copiada do Pañcatantra, via tradução persa.

8 No processo de reconstituição dos poemas medievais, Joseph Bédier reuniu os fragmentos escritos por Béroul, Thomas, Eilhart von
Oberg, Gottfried von Strasbourg e outros, registrados em sua maioria entre os séculos XII e XIII, na França e na Germânia. Mais uma
vez a Germânia em cena e em torno de uma obra com influência indiana (Cf. BÉDIER, 1981).

46 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Uma conexão visível também se apresenta entre Kalila e o consagrado Beowulf, pro-
vavelmente o mais antigo texto épico (entre os séculos VIII e XI, com referências de heróis
nórdicos dos séculos V e VI) (TOLKIEN, 1958, 127; HIEATT, 1983, XI-XIII), sobrevivente
dos ataques e alterações cristãs da literatura anglo-saxônica – essencialmente uma história
germânica –,9 como nos dirá George W. Dasent em Popular Tales from Norse Mythology.
Dasent (1959, 47-48) apontará sua conexão com a Índia:

Assim, encontramos nele [no Pañcatantra] os originais ou os paralelos com


o Grendel no Beowulf, de Rumpelstiltskin, da recuperação da noiva pelo anel
derrubado na taça, conforme relatado no “Soria Moria Castle”, e outros con-
tos; o do “carneiro dos desejos”, que na estória Indiana se torna a “vaca dos
desejos”, e, portanto, nos lembra do touro em um dos “Norse Tales”, de cuja
orelha sai o “manto dos desejos”; da criança afortunada que encontra uma
bolsa de ouro embaixo de seu travesseiro todas as manhãs; e do tecido ver-
melho costurado por sobre o amante, como para com Siedfried no Nibelungen.
A estratégia de Upakosa, a esposa fiel, nos remete imediatamente ao “The
Mastermaid”, e todas as estórias de Saktideva e da Cidade Dourada, e as
de Viduschaka, filha do Rei Adityasena, são de mesma base e em muitos de
seus incidentes iguais a “East o’ the Sun, and West o’ the Moon”, “The Three
Princesses of Whiteland”, and “Soria Moria Castle”.

Michael Stitt vai mais além, afirmando que não é mera coincidência a relação e o pa-
ralelismo dos mitos de dragões presentes no medievo europeu – como bem apresentado
em Beowulf –, com a história védica (no Rg Veda) do deus Indra matando o dragão Vrtra:
“Indra com o seu grande e mortal trovão partiu em pedaços Vrtra, o mais terrível dos vrtras
[serpentes ou dragões]. Assim como troncos de árvores, quando o machado cai sobre eles, da
mesma forma, caído ao chão jaz prostrado o dragão” (RG VEDA, 1976).10 Dirá Stitt (1992, 31):

Esta passagem, quando somada com as diversas outras referências fragmen-


tárias da batalha de Indra com Vrtra, representa a tradição que é paralela a
vários aspectos da nossa tradição medieval. O perpetrador da vilania é Vrtra,
também conhecido como Ahi, ou “serpente”, um ser demoníaco compreendi-
do como um dragão. Vrtra aprisionou, em sua caverna, as águas que dão a
vida, que são apresentadas como seres femininos na forma de vacas. Indra
combate o dragão tomando o Soma, um líquido [ritualmente] dotado de poder.
Após Vrtra ser exterminado, Indra mata [também] sua mãe. Nesse momento, o
corpo desmembrado de Vrtra é levado para fora da caverna pelas correntezas
[da água] liberadas.

Complementará Peter Baker (1998, p. 284) que “a Fêmea Formidável”, dragão mãe
de Vrtra, nos Vedas, antecipa o mais temível humanoide de Grendel que, por sua vez, é
finalmente substituído por uma senhora de idade instável no romance de Fulk, e as águas
da vida (entidades femininas) aprisionadas por uma donzela raptada.
9 Como elucida Peter Baker: “[…] temas no Beowulf e em trabalhos relacionados e anteriores a ele, pensando especificamente na
Germânia, podem ser encontrados primeiramente na tradição épica indo-europeia” (BAKER, 1998, 284).
10 Rg Veda, I.32.5; ver também IV.17.7 e todos os versos anteriores e subsequentes ao referido: I.32.1-15.

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De acordo com Geoffrey Garratt (1950, 48), um século após a versão germânica de
1481, a fábula indiana foi traduzida para o italiano, e desta para o inglês por Thomas North,
o tradutor de Plutarco, sendo tal tradução inglesa certamente conhecida por Shakespeare.
Surgem também conexões semelhantes com as obras do literato realista e poeta italia-
no Boccaccio (1313-1375), em sua estrutura narrativa do Decamerão, com The Canterbury
Tales, do pai da literatura inglesa Geoffrey Chaucer (1343-1400),11 e com o consagrado pai
da fábula moderna, o francês La Fontaine (1621-1695). Além e após La Fontaine, outros
fabulistas importantes encheram-se de deleites com os escritos de origem indiana, tais
como o condecorado (pela Academia Francesa) Jean-Pierre Claris de Florian (1755-1794),
o poeta e dramaturgo inglês John Gay (1685-1732) e os espanhóis Félix María Samaniego
(1745-1801) e Tomás de Iriarte (1750-1791), os quais consagraram definitivamente o gênero
fabulista na Europa; além das reconhecidas fábulas germânicas de Gotthold Lessing, no final
do XVIII, e dos irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm), no início do XIX (MACDONELL, 1994, 124).
Mas as influências não param por aí, pois, de acordo com Duncan MacDonald (1924,
371-376) e Nabia Abbott (1949, 157-158), Alf Lailah wa-Lailah ou As Mil e Uma Noites
possuem claras e profundas marcas indianas em todo o seu escopo e arranjo, bem como
as histórias árabes de Sindibād al-Baḥri ou Sindba, o Marinheiro. No caso de Sindba, uma
palavra de origem persa, é mais conhecido na Europa como Seven Sages of Rome. O autor
da obra, segundo Meisami Scott e Paul Starkey (1998, 24), um persa sassânida, foi marcado
pelas narrativas indianas e possivelmente em versões persas, o que justifica sua influência
visível. Já para Joseph Jacobs, o mesmo teria sido influenciado pelas famosas fábulas gregas
de Esopo; possuindo estas uma estreita similaridade com as fábulas jatakas budistas – algo
que ele discute na sua introdução de Aesop de William Caxton. Opinião também defendida,
mas sob a alegação de uma tradução direta do persa por parte de Esopo, por Gautamavajra
Vajrācārya e Radhakamal Mukerjee (1959, 139).
Prosseguindo com as relações, observa-se que dois dos contos presentes no
Hitopadesha possuem analogias com os relatos VII, VIII e IX da Disciplina Clericalis,12 do
tradutor, astrônomo e médico da corte de Afonso VI, rei de Castela e de Leão, Petrus
Alphonsi, mais conhecido como Pedro Alfonso (1062-1140), que os tomou seguramente
de alguma versão árabe (PALENCIA, 1928, 309-310). Michael Barry (1992, 211) chama a
atenção para a distante origem indiana do conto de Alfonso:

11 Sobre a conexão de Boccaccio e Chaucer com as fábulas indianas, ver: GANIN, 2000, 128-147.
12 De acordo com John Tolan, o tratado Disciplina clericalis é uma das antologias de relatos moralizantes medievais mais veneráveis da
Europa cristianizada. Tais narrações voltam-se para distrair, doutrinar e nortear os passos dos homens. Abarcando adágios, versos,
fábulas e anedotas tomadas das tradições árabes, judias, gregas e principalmente indianas. Famoso no medievo europeu e traduzido
de sua versão original em latim ao francês, basco, italiano, castelhano e inglês, sobrevive hoje em 76 manuscritos latinos, nos quais
constam 34 relatos estruturados em diálogos entre mestres e discípulos e cujo principal objetivo é conduzir mandamentos utilitários.
Acrescentará John Tolan que Pedro Alfonso se utilizou fartamente das fontes árabes e indianas (TOLAN, 1993, 132-158).

48 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


[...] é no domínio mais humilde e familiar do conto, do fabliau, que a marca
árabe foi mais evidente. Exemplo primordial: a técnica narrativa de origem
hindu, que consiste em encaixar uma série de contos uns nos outros, com um
conto-prólogo para servir de moldura. Passando pela Pérsia e pelo Oriente
Próximo árabe, essa técnica literária chegou, na Idade Média [europeia], até
a Espanha. As Mil e Uma Noites constituem apenas uma amostra popular
desse gênero de literatura. Um exemplo mais estimado pelos próprios letrados
muçulmanos é a coleção de fabliaux tendo como personagens animais, de
Kalila e Dimna, de longínqua origem hindu, traduzida para o árabe culto, no
século VII, pelo iraniano Ibn al-Muqaffa, através de uma tradução hebraica na
Espanha, antes de influenciar La Fontaine.

Aqui, mais uma vez, a marca da literatura indiana adentra o cenário de As Mil e Uma Noites.
Confirma-nos a sanscritista Valíria Mello Vargas (PAÑCATANTRA, 2004) que o mais
afamado fabulista francês do século XVII, La Fontaine, em suas Fabules, prefácio do sétimo
livro, menciona Pilpay, que, na verdade, é uma corruptela do sânscrito vidya-pati, “senhor da
sabedoria”, epíteto de Vishnusharma, como o já referido autor da obra. Mello Vargas infere
que há muitas razões suficientes para considerarmos que La Fontaine possui marcas ou se
baseou nas versões (de Kalila e Dimna) francesas Livre des Lumières de David Sahid, e na
versão latina de Pierre Poussines (1609-1686), Specimen sapientiae Indorum Veterum, para
compor muitas de suas fábulas; as mesmas fábulas que contagiaram alguns dos homens
da razão na modernidade europeia.
Porém, a saga de tal literatura fora da Índia começou com o rei persa Chosroes
Anusharvan (531-579 d.C.), que enviou à Índia um de seus 25 médicos, Barzuyeh, em mis-
são ao encontro de ervas medicinais que ressuscitavam mortos e propiciavam imortalidade.
Como a Índia sempre manifestou e nos manifesta prodígios da razão, além das aparências,
àqueles que a procuram, Barzuyeh teve uma surpresa além do esperado.
Segundo o Shahnameh (1985, 330-334), “Épicos dos Reis”, considerado a certidão
identitária do povo persa,13 Barzuyeh obteve permissão para ir à Índia em busca das ervas
mágicas. Uma vez ali, encontrou tais ervas, mas as mesmas não possuíam efeitos sem a
manipulação e o conhecimento adequado de suas propriedades; o que obviamente resultou
em fracassos aparentes para Barzuyeh. Ansioso e com medo da reação do rei pela até então
missão infrutífera, passou a consultar os brahmanas sobre a manipulação da mesma. Todos
inclinados, logicamente, a não revelar nenhuma literatura canônica ao médico mleccha. Mas
tratando-o como uma criança sem linhagem, conhecimento e ética védicas de fato, que de
alguma forma poderia ser ajudada,14 disseram ao mesmo: “Há um antigo brahmana que nos
13 Trata-se de uma grande obra poética escrita no século X d.C., pelo escritor iraniano Hakīm Abu’l-Qāsim Firdawsī Tūsī ou simplesmen-
te Ferdowsi (935-1020), a qual narra a história do Irã e do zoroastrismo, desde a manifestação do mundo até as conquistas islâmicas
nos seus primórdios. Foi elaborado durante 30 anos, resultando em 62 histórias, 990 capítulos e 56.700 dísticos (ANVARI, 2004).
14 A moral da obra não é certamente muito elevada em relação aos padrões védicos, ou seja, sem a tragédia e o realismo do estilo india-
no. Na fábula, há predominado desde suas remotas origens, notadamente indiana, certo sentido utilitário, o que nos leva a aceitar que
“um rei que tomara por modelo o rei dos animais tal como está representado nestes contos, careceria de energia e de valor, cederia
ao primeiro movimento de cólera, violaria sem escrúpulos a fé jurada e abandonaria pelo menor capricho o serviço a um amigo e a

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 49


supera em idade, ciência e sabedoria, ele poderá lhe ajudar”. Quando Barzuyeh encontrou-se
com o famoso brahmana, lhe explicou toda a aventura em busca da erva mágica. Ao concluir
sua justificativa diante do brahmana, este lhe replicou:

[...] eu também tive vários fracassos ao buscar com impaciência e esperança,


mas quando nada demonstrava alguma luz, forçava-me a olhar com uma
interpretação diferente. Pois, na realidade, a erva é o científico e a ciência
é a montanha eternamente fora do alcance da multidão. O cadáver é o sem
conhecimento que através do conhecimento se revive. Desta forma, te informo
que na tesouraria de nosso rei há um livro que os bem qualificados [brahma-
nas] chamam de Kalila, e quando nos encontramos cansados da ignorância, a
erva é Kalila e o conhecimento a sua montanha. Se buscares este livro dentre
os tesouros do rei, o encontrarás. Ele será o guia para o teu conhecimento
(SHAHNAMEH, 1985, 334).

Consequentemente, ao regressar da Índia, Barzuyeh apresentou uma coleção de con-


tos, apólogos morais e populares da Índia, traduzidos por ele para o pahlavi, ao invés das
ervas mágicas e terapêuticas. O original seria uma espécie de antropomorfia em sânscrito
com a figuração de dois chacais, Karaṭaca [“uivo espantoso”] e Damanaka [“vencedor”], dialo-
gando proeminentemente entre eles e na forma de uma narrativa moral. O médico Barzuyeh
intitulou sua antologia Kalila and Damnag, nomes dos chacais em pahlavi. Duzentos anos
mais tarde, século VIII, um persa zoroastrista que se convertera ao islamismo, Abd-Allah Ibn
al-Muqaffa, ministro do califa abássida de Bagdá, Almanzor, a verteu para o árabe, a partir
da versão de Barzuyeh, dizendo-a Kalilah wa Dimnah (IRWIN, 2006).15 Este volume teve a
mais extraordinária repercussão que é possível supor para uma literatura em termos mun-
diais. Lembra-nos Mello Vargas que al-Muqaffa “revela no prefácio à obra, que a coletânea
árabe consiste em uma reelaboração da versão em pehlevi”, do século VI, “e que esta, por
sua vez, seria uma compilação de fábulas sânscritas” (PAÑCATANTRA, 10). Traduzido,
imitado, plagiado e comentado, deu tal fábula nascimento a centenas de histórias, lendas e
contos dispersos por toda a parte, da Europa à Ásia.
Sobre o texto de Ibn al-Muqaffa, fizeram-se mais tarde adaptações em verso, uma
nova tradução siríaca, versões em prosa em persa moderno, em turco e em mogol, e, ain-
da, através de um manuscrito egípcio levado para a Abissínia, uma versão etíope – hoje
também perdida ou ocultada. Uma das três ou quatro recensões turcas existentes – a de
Ali Chelebi Ibn Salih, em prosa otomana no início do século XVI, feita sobre uma versão

fidelidade de uma esposa” (DERENBOURG, 1881, 208). Ou seja, seria um rei não ariano, sem pura paixão, senso de proporção e
determinação política vocacional; enfim, sem dever ou dharma de um verdadeiro guerreiro ou kshatriya. O que nos leva a concluir
que as ideias presentes nessa fábula, em sua versão persa ou árabe, estão muito longe do pensar indiano, apesar de conter origi-
nalmente um apelo e um caráter popular de fonte brahmânica e versões budistas, suprimida por Barzuyeh, o qual a transformou em
uma teologia simplicíssima. Só assim podemos pensar e explicar como estes apólogos hão podido acomodar-se com tanta facilidade
a civilizações tão diversas e hão tido séquito entre homens de opostas crenças.
15 Aqui há 14 comentários sobre essa versão árabe.

50 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


persa e intitulada Humayun-name [“livro imperial”] – veio no século XVII a ser traduzida em
castelhano e, em seguida, em francês.
Tal variante de Ibn al-Muqaffa foi transladada em algumas ocasiões para a língua dos
hebreus: inicialmente, no século XII, pelo rabino Joel; posteriormente, no século seguinte,
por Jacob Eleazer (em conversação poética e próxima da versão original). Em meados do
século XIII, a pedido de Afonso X, foi transladada para o castelhano, a partir de uma rese-
nha islâmica muito conexa à que empregara o rabino – sobrevivente via cópias do mosteiro
Escurial de Madri. Se servindo posteriormente desse texto D. João Manuel, neto de Fernando
III de Leão e Castela, para elaboração do seu El Conde Lucanor,16 o qual existia na biblioteca
do rei Duarte, uma das vias pelas quais os fabulários indianos aproximaram-se do primeiro
grande dramaturgo e pai do teatro português, Gil Vicente (1465-1536).
Vicente chegou a elaborar a peça Auto da Índia, um sucesso na época, apesar de ser
contrária, com visão mordaz, à invasão portuguesa na Índia; tendo sua primeira represen-
tação em 1509, diante da rainha portuguesa D. Leonor de Avis.
Todavia, afirmar que todas estas traduções foram feitas com o amplo rigor de outrora
seria escuso, já que dificilmente tais versões, sem a austeridade e motivação brahmânica à
preservação, estariam sujeitas a amputações, introduções de dogmas particulares, dentre
outras adições, modificações e acréscimos ao texto original; alguns destes, retirados de outras
fontes. A obra de Barzuyeh, por exemplo, contém uma espécie de apêndice, afirmando que
as três primeiras narrativas são retiradas do livro XII do épico Mahabharata (Shanti-parva)
e as cinco seguintes de uma história do “rei dos ratos e seus ministros” – do qual o original
indiano se perdeu ou não se tem acesso facilmente.
Já no século XIII, o dominicano francês Jourdain de Severac (ou Jordão de Catalão),
após ter sido nomeado bispo pelo papa João XXII, foi enviado à Índia para tentar fazer algum
contato (invadir) e descobrir (maquinar) melhores maneiras de aculturar (destruir) os amea-
çadores pagãos (TOMAZ, 1991, 127). Tal bispo, em 1328, elaborou a Mirabilia Descripta
ou uma “magnífica descrição” do Oriente, incluindo vários capítulos sobre a Índia. Mas tal
descrição, longe de ser uma “magnífica descrição”, na verdade, descreve apenas a natureza
(os frutos locais,17 espécies de animais, montanhas), e a “heresia” dos pagãos com seus
rituais estranhos e (em contraste com) os mártires cristãos. Uma exemplar manifestação de
estranhamento, de repúdio e de ênfase ao exotismo.

16 Em castelhano antigo: Libro de los enxiemplos del Conde Lucanor et de Patronio.


17 Muitos facilmente encontramos no Brasil, todos de origem indiana e trazidos pelos portugueses, tais como a manga, espécies de
arroz, a jaca, o coco, o jambo (“maçã rosa” em sânscrito), a cana-de-açúcar, o tamarindo, espécies de pimenta, o cravo e o gado.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 51


A tradução encomendada por Afonso X, em 1251, fora brindada à rainha Joana de
França, esposa de Filipe, o Belo, que, por sua vez, encomendou a Ramon de Bèziers a
tradução para o latim. Posteriormente, João de Cápua, sob o patrocínio do cardeal Matteo
Orsini, traduziu Kalila e Dimna do hebraico também para o latim entre 1263 e 1278, no-
meando-o Directorium humanae vitae (BALAGUER, 1985, 320). Sob tão alto patrocínio, o
Directorium, cujo autor não passava, segundo Derenbourg (1881), de mediano, hebraizante
e fraco helenista, penetrou imediatamente no cenário intelectual cristão.
Consequentemente, o escritor e filósofo catalão Raimundo Lúlio (ou Ramon Llull, 1232-
1315), que escreveu a primeira literatura catalã e a primeira novela europeia, Blanquema
(1283) (BLACKMORE, 1999, 170), falante e conhecedor da cultura árabe, teve contato
com uma destas versões de Kalila e Dimna; possivelmente a latina de João de Cápua, ob-
serva Balaguer (1985, 320). Llull oportunamente o transformou em pretexto para doutrinar
moralmente a monarquia de seu período, servindo de catequização aos monarcas, com a
elaboração, por exemplo, do Livro das Bestas (LÚLIO, 1990), dedicado ao rei Filipe IV da
França. Diríamos que se configura como um plágio bem apurado e de sucesso, já que vários
Exempla do bestiário medieval de Kalila e Dimna reaparecem narrativamente no Livro das
Bestas: o papagaio, o símio, o leão e a lebre, o vaga-lume etc.
Uma vez que os exemplos originais de Llull sejam a eleição do rei e do bispo e o ermitão
e o rei, por exemplo, nota-se que são modelos da adulteração dos habitus. Em contrapartida,
os contos indianos, que foram plagiados no Livro das Bestas, têm uma modulagem muito
mais esquemática (BALAGUER, 1985, 321); no entanto, todos os protótipos relatados no
Livro das Bestas possuem a mesma acepção moralizante, qual seja: a iniquidade da raposa
(corrupção via poder) convenha de modelo para que os homens da realeza se mantenham
vigilantes contra todos, inclusive seus próximos.
Da versão latina Directorium humanae vitae procedeu-se uma tradução germânica
(1481) – um dos primeiros livros impressos no mundo, segundo Theodor Garratt (1950,
48) – dedicada ao cardeal Mateo Orsini e intitulada Beyspiele der Weisen von geschlecht
zu geschlecht [Exemplos dos Sábios de Geração a Geração], que se há atribuído ao duque
de Würtemberg, Eberhard I (1445-1496); provavelmente o seu patrocinador. Há, enfim, ou-
tra versão germânica, intitulada Ueber Inhalt und Vortrag, Entstehung und Schicksale des
Koniglichen Buchs [Sobre Conteúdos, Narrativas, Origem e Aventuras do Livro dos Reis],
publicada em Berlim, em 1811, e doada pelo embaixador russo (Heinrich Friedrich von
Diez) ao líder alemão (THACKER, 1823, 505). Versões espanhola e francesa e duas outras
italianas surgiram ainda no século XVI. Pequeníssima demonstração da indomania da qual
falaremos durante toda nossa explanação posterior.

52 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


CONCLUSÃO

Assim sendo, as novelas medievais, com seus heroicos cavaleiros etc., assim como as
fábulas modernas, todas possuem uma marca profunda da literatura popular indiana. Na ver-
dade, foi a Índia a fonte longínqua e literária do conto, apólogo, romance de cavalaria etc.,
que tanto encanto deram à época medieval. E, de quando em quando, aparecem outros que
não podem resistir ao seu fascínio aliciante.
Isto é confirmado por Theodor Benfey, como observamos anteriormente, um dos tra-
dutores do Pañcatantra, ao pronunciar o dictum, em 1859, de que o grande número das
fábulas mundiais, as quais foram produzidas no Ocidente, têm origem na Índia; destas, um
pequeno número já havia chegado à Europa como histórias orais, antes mesmo do sécu-
lo X. O filósofo e historiador britânico James Mackintosh (1765-1832),18 o folclorista francês
Emmanuel Cosquin (1841-1919) e o historiador e crítico literário espanhol Menéndez Pelayo
(1856-1912) também confirmam a Índia como uma região de origem, centro e disseminação
da fábula ao mundo (COSQUIN, 1912, 337-373). Pelayo (1905), no mais, relata que Kalila
e Dimna chegou a ser recitada por Ricardo, Coração de Leão, em 1195, ao censurar os
príncipes cristãos que não queriam se armar para a cruzada.

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18 Afirmará sem reservas Mackintosh: “Todos os pontos da história voltam-se para a Índia como a mãe da ciência e da arte. Este país
foi antigamente tão famoso por seu conhecimento e sabedoria que os filósofos da Grécia não tardaram a viajar para lá para aprimo-
rarem-se” (DANINO, 1996, 18).

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 53


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Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 55


04
“ A interface evangelho e prisão
na contemporaneidade

Antônio Lopes
PUC - Goiás

10.37885/201001778
RESUMO

Este artigo tem análise estruturada no materialismo dialético-histórico, dentro dos pre-
ceitos da Cultura e Sistemas Simbólicos. Investiga a prisão sob a ótica dos discursos de
Paulo. Aborda o cárcere, discute a crença, infere na reflexão do apóstolo com relação
aos marginalizados em meio à cultura e sistemas simbólicos que trespassam a religião
e os costumes. Desde a Antiguidade as autoridades trabalham essa expressão social
paradigmática permeada pela fé, desespero e realidade. Na contemporaneidade as
políticas públicas manipulam esta expressão da questão social, retrato da sociedade
capitalista, consumista, movida no fluxo incessante, a destinar mínimos sociais à classe
trabalhadora. A luta pelo direito de viver estreita relações materiais-filosóficas, humano-
-racionais-legais as quais alicerçam a consciência do trabalhador. O sujeito social resiste
à alienação pelo capital atravessado por uma existência atada à trama econômica, po-
lítica e cultural que dá sopro à sobrevivência. Ao caminhar por este paradigma a escrita
busca dialogar sobre A Interface Evangelho e Prisão na Contemporaneidade. O foco é
em conceitos e discursos postos sobre a fé, a penalização e a pós moderna idade.

Palavras-chave: Salvação, Penalização, Poder, Mercado, Presídio.


INTRODUÇÃO

A Cultura agrega os Sistemas Simbólicos, trespassa a religião, os costumes, o cons-


tructo humano. As políticas públicas estabelecem a relação de conflito com os direitos, a
fé enquanto força abstrata a alicerçar ou alienar a consciência do ser social enclausura-
do. Há uma correlação de direitos cidadãos inerentes à emancipação/libertação/negação
da condição inumana representada na submissão penal. Essa mazela sociopolítica é ex-
pressa na restrição da liberdade imposta pela prisão, campo da marginalização/escravidão
moderna. Na arena panóptica as alas feminino e masculino dão mote enquanto campo de
pesquisa no qual instiga o fenômeno do transe coletivo, o grito de desespero, o ato de clamar
ao numinoso por salvação. O abstracionismo da crença, a luta por libertação, a situação de
exclusão social retratam a comunidade erguida a grades, solidão do corpo apenado, violência
institucional intramuros da cadeia.

METODOLOGIA

Esse artigo adota enquanto método de investigação a pesquisa bibliográfica. Adentra


aos trâmites e bastidores da fé, do poder de fato, das atualidades. Considera especificida-
des que retratam o tema, objeto e objetivo da escrita. Trata de explicitar sobre A Interface
Evangelho e Prisão na Contemporaneidade. Adota particularidades de estudo com norte no
tema apresentado, toma como referencial a teoria fundamentada nos escritos de BETTO
(2008); BOFF (1999); DERRIDA (2000); FOUCAULT (1987); IANNI (1979); LESSA (2007);
MÉSZÁROS (2005); PERILO (2016). Estes que são autores a referenciar o trabalhador ca-
racterizado na grande maioria populacional. Também o sujeito que luta pela sobrevivência
a reinventar-se enquanto massa de manipulação por parte do sistema capitalista,1 Antônio
César Martins Lopes, bacharel e mestre em Serviço Social/PUC-Goiás; doutorando bolsista
Capes na linha de pesquisa Cultura e Sistemas Simbólicos PUC-Goiás/Escola de Formação
de Humanidades/Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião; alu-
no especial em Direitos Humanos na linha de pesquisa Direitos Humanos e Cidadania na
América Latina na Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: blackpearlopes@yahoo.
com desta vez, na condição de apenado (a) aprisionado (a) ou não. Ainda, a conjuntura
do mundo moderno globalizado, efêmero, violento, reafirmado pela produção que sujeita
às relações sociais de produção e reprodução social, com foco no consumo, o trabalhador
aviltado submetido ao desmonte de direitos. Mais, a classe trabalhadora mercantilizada a
qual representa o contingente sem fim de seres humanos alojados na condição de sobrantes,
lazarentos, sujeitos sem face, ou seja, na periferia do sistema capitalista representada pela
base da pirâmide social, no caso desse artigo, apenada na prisão.

58 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


A RELIGIOSIDADE ENQUANTO ANALGÉSICO DA ALMA

A correlação da religiosidade e arena da loucura humana para-além dos limites dos


muros da prisão ou sistema panóptico engendra o cercear das liberdades, a dignidade, a
fé abstrata que dá sopro à existência humana. Desta feita o sujeito apenado sob a guarda
e regime temporário do poder jurídico-legal representado pelo Estado. O fato revela uma
incógnita, e remete a “[Damiens que fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão
publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acom-
panhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas
libras” (FOUCAULT, 1987, p. 11). A fé, assim como a pena, estruturantes da manutenção da
paz e do controle social, neste ponto, são apenas hipóteses a reflexionar sobre A Interface
Evangelho e Prisão na Contemporaneidade, tema desta escrita.
Realidade concreta a prisão, campo de alienação temporal, atesta que naquela arena
pode ser assimilado o poder da crença como atenuante da histeria coletiva instalada: “Se
alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (MATEUS, 16,24).
Não se pode afirmar com contundência mas é possível que a precarização da dignidade
e submissão às leis locais do gueto regulado no poder da droga, da violência, de mazelas
sociopolíticas e culturais ali vivenciadas possam inferir nas mais diversificadas formas de
(des) humanidades impostas. A incluir, a promessa da libertação que proporciona afago
imediato à alma sob a realidade fria vivenciada pelo corpo. O tamanho da pena tem alívio
concreto calcado nas trilhas da religião abstrata, da vida líquida (BAUMAN, 2004) regula-
da pelo mercado. Em caos a “Era Pós”, efêmera e moderna, dá mote àquilo que produz,
reproduz, criando novas necessidades humanas, a cada segundo dos dias, ao tempo em
que renova as gerações, caos estampado na exploração do homem pelo homem adotado
o sistema capitalista.
A investigação questiona se crença pode salvar o presidiário-indivíduo-trabalhador
do suicídio cidadão enquanto cumpre a pena. A esperança na libertação tem alicerce no
sagrado, no ato de salvar, ser salvo, salvar-se, pretexto para uma primeira pergunta: - Será
que se pode dissociar o discurso sobre a religião do discurso sobre a salvação? Ou seja,
sobre o são, o santo, o sagrado, o salvo, o indene, o imune (sacer, sanctus, heilig, holy - e
seus supostos equivalentes em grande número de idiomas)? E a salvação, será “necessa-
riamente a redenção diante ou depois do mal, da falta ou do pecado? Agora, onde está o
mal?” (DERRIDA, 2000, p. 11-12). O paradigma da vida existencial abstrata-material-concreta
simboliza a solidão humana.
A expropriação trabalhador pelo explorador é articulada a paradigmas ao quais dão
fôlego ao capitalismo. A categoria Trabalho transforma a natureza pelas mãos do homem,
este, transforma a si durante o processo, mais, proporciona a sobrevivência em estreita

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 59


correlação com a fé. Como a dialética retrata dois lados, cabe a crítica: “A religião já não
constitui, para nós, o fundamento, mas, simplesmente o fenômeno da limitação secular”
(MARX, apud IANNI, 1979, p. 184).
Atenuar a dor da alma, a partir do encontro com o numinoso, é uma forma de repre-
sentação da realidade abstrata expressa no desespero que fustiga o imaginário da religião
amealhada no presídio. Com efeito, segundo Derrida, no entender de Kant – ele diz isso pro-
positadamente [...] a religião de mero culto (des blossen Cultus) procura os ‘favores de Deus’,
mas essencialmente, não age, limita-se a ensinar a oração e o desejo ao homem que não
tem de se tornar melhor, ainda que seja pela remissão dos pecados (DERRIDA, 2000, p. 20).
No próximo ponto de discussão a pesquisa infere sobre as (in) dignidades humanas
em estreita correlação com a fé, nuances da vida do trabalhador amalgamada à sua pena-
lização à cadeia.

A ALMA E OS MEANDROS DA PRISÃO

Neste ponto o artigo adentra aos trâmites e bastidores do poder de fato retratado no
sistema panóptico. A estrutura das políticas públicas de segurança esbarra na inabilidade do
Estado em desvelar e inferir na desigualdade-injustiça social enquanto mazela e consequên-
cia da dicotomia riqueza acumulada versus pobreza extremada. Este recorte social revela a
coação adotada nas mais diversas formas de punição corporal da classe trabalhadora, tem
como palco e arena a prisão. Para Andrade:

[...] a ressocialização é um mito e a prisão é um fracasso, se considerarmos


que fabrica o criminoso e a criminalidade, ou seja, apresenta uma eficácia
invertida. No entanto, realiza funções não declaradas, o que eleva os índices
da criminalidade a partir da criminalização da pobreza, o que faz da prisão
um sucesso (2012, s/p).

Determinação história, o absurdo penal expõe diferenciadas formas de manipulação das


dignidades humanas, correlação retratada na fé abstrata, por meio da realidade concreta,
na arena da cadeia, por meio da religiosidade que serve de analgésico da alma, assunto
retratado no tomo anterior. O fato social remonta a “um objeto novo que acaba de fazer seu
aparecimento na paisagem imaginária da Renascença, e, nela, logo ocupará lugar privilegia-
do: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia
e dos canais flamengos” (FOUCAULT, 1972, p. 12-13).
Ao observar os meandros da história da prisão constata-se o repetir de situações polí-
tico-culturais expressas a poder, impaciência, violência e medo. De acordo com Frei Betto:
“São Paulo diz que a paciência gera a esperança. Se esta é grande, aquela é maior ainda.
Daí nossa disposição” (BETTO, 2008, p. 54). Para a instituição de poder Estado, a prisão é

60 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


lugar privilegiado na promoção da mudança radical por meio da metanoia1 a qual pode indu-
zir à koinonia2. Foi nessa arena que se forjou São Paulo apóstolo e incontáveis discípulos,
mártires, místicos. “Nela vemos a vida como o negativo da foto não a revelação em cores,
sob o jogo de luz que, muitas vezes, cria falsa imagem do real, mas o que é diretamente
captado do real e só nele é plenamente visível” (BETTO, 1969-1973, p. 29).
Inúmeros fatores socioeconômicos políticos causam a marginalização da coletividade.
Retratados a pobreza, mazela social resultante da insuficiência orçamentária (salarial) do
indivíduo em seu poder de compra, a miséria o impõe a margem da sociedade. O coletivo
“tem sua alma” dividida entre a boa índole e a facção criminosa, alheio à divisão da riqueza
social expressa na economia, na política de direitos, no campo material, na cultura. São
trabalhadores inseridos no exército/mercado industrial de reserva (logística do sistema de
produção e reprodução das relações sociais) capitalista, selvagem e excludente. Estes os
sujeitos, os quais, para COUTINHO (2010) acabam por sobreviver alienados à desumani-
zação da sociedade, movidos pela fé e sorte da crença no abstrato, maior até que a certeza
da concretude exposta na sua miséria da razão.
Sob a ótica dos discursos de Paulo apóstolo a religiosidade estrutura a cultura, os sis-
temas simbólicos, proporciona respostas à razão/desrazão moderna revelada na instituição
prisão. Desde os tempos em que o apóstolo convertido:

[...] construiu uma comunidade muito viva mas cheia de problemas, pois era
composta de judeus com suas tradições rigorosas e de coríntios pagãos, co-
nhecidos por sua permissividade e lassidão, quando a grande maioria era de
pobres, mas havia também convertidos de melhor condição cultural e social
(BOFF, 1999, p. 8).

Como nos tempos antigos, o homem contemporâneo pode ser admirável. Desta vez,
a partir do seu poder de consumo em meio a:

(...) um sistema orgânico de reprodução sóciometabólica, dotado de lógica


própria e de um conjunto objetivo de imperativos, que subordina a si – para o
melhor e para o pior, conforme as alterações das circunstâncias históricas –
todas as áreas da atividade humana, desde os processos econômicos mais
básicos até os domínios intelectuais e culturais mais mediados e sofisticados
(MÉSZÁROS, 2004, p. 16).

Do contrário, passa a integrar o lote dos excluídos da competição imposta pelo sis-
tema capitalista neoliberal globalizado, a retratar milhões de sujeitos sem face, ou, os “so-
brantes” na concepção de MÉSZARÓS (2005). A crise estrutural articulada pelo sistema
1 Metanoia: termo grego, significa conversão, mudança radical de mentalidade, atitude. (TANJAN, 2018; https://robertotranjan.com.br/
sabe-o-que-e-metanoia/
2 Koinonia: termo grego, significa comunhão dos homens, mecanicamente compartimentada, passivamente aberta ao mundo que a
irá ‘enchendo’ de realidade” (FREIRE, 1977, p. 71).

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 61


econômico- político submete o corpo social à crise de qualidade, claramente uma reprodução
da vida cotidiana.

“Em todos os seus aspectos. Dos mais coletivos, como a desagregação dos
centros urbanos e a militarização dos conflitos sociais, até os mais individuais.
Os elementos de continuidade deixam de ser acumulação da riqueza; para
ser a própria crise enquanto tal” (LESSA, 2007, p. 104).

A lógica do mundo contemporâneo, em seu rigor formal, exige do ator social reprogra-
mar-se, assunto discutido a seguir.

ALIENAÇÃO E MARGINALIZAÇÃO NA ESCRAVIDÃO MODERNA

Esse coletivo ou classes sociais achatadas pelo sistema capitalista, alojadas na peri-
feria da pirâmide social, caracterizam, no século XXI, o precariato, de acordo com BAUMAN
(2016)3. Com relação a esta realidade sociopolítica, econômica e cultural mundializada “não é
por meio de inciativas isoladas de esforços generosos ou com homens carismáticos que cons-
truiremos um mundo melhor, o que é uma tarefa a ser assumida pela coletividade que aspira
um mundo melhor, pois é difícil aprender a nadar sem se jogar na água” (BETO, 2008, p. 54).
A lógica do mundo contemporâneo, em seu rigor formal, exige do ator social reprogra-
mar-se. Aprofundado no item anterior, a alma permeia os meandros da prisão a enfrentar a
instabilidade enlouquecedora, o estruturalismo, funcionalismo, lado a lado com a miséria da
razão exasperada. A partir da “mundialatinização (estranha aliança do cristianismo, como
experiência da morte de Deus, com o capitalismo teletecnocientífico) hegemônica e finita,
superpoderosa e em vias de esgotamento” (DERRIDA, 2000).
Os que comprometem com essa supervalorização da fé e do sagrado, em função do
lucro, status e poder, levam a refletir a fé. Há que questionar se “não será loucura, a ana-
cronia absoluta de nosso tempo, a disjunção de toda contemporaneidade de si, o dia velado
de todo4 Zygmunt Bauman: “As redes sociais são uma armadilha” https://brasil.elpais.com/
brasil/2015/12/30/cultura/1451504427_ 675885.html presente?” (DERRIDA, 2000, p. 23).
Tomando por base o princípio de que o núcleo central na vida de Jesus não foi a religião,
mas a missão de humanizar o mundo, o teólogo espanhol María Catillo (2017) destila sua
crítica conjuntural apontando que “mais do que com a religião, deveríamos nos preocupar
com a saúde, a alimentação e as relações humanas porque Jesus não fundou uma igreja,
mas inaugurou uma nova maneira de convivermos4”.

3 Zygmunt Bauman: “As redes sociais são uma armadilha” https://brasil.elpais.com/bra sil/2015/12/30/cultura/1451504427_ 675885.
html
4 Revista eletrônica Religión Digital, 14 de julho de 2017. (http://www.periodistadigital.com/religion/opinion/2017/05/15/ jose-maria-cas-
tillo-en-la-iglesia-en-los-seminarios-en-los-centros-de-estudios-teologicos-hay-miedo-mucho-miedo-iglesiareligion-dios-jesus.shtml).

62 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Enquanto o teólogo-filósofo Leonardo Boff avisa que “cada um lê com os olhos que
tem e interpreta a partir de onde os pés pisam, ler significa reler e compreender, interpretar”
a dependência do homem aos símbolos e sistemas simbólicos. Fenômeno o qual segun-
do Geertz, parece decisivo “para que o próprio ser humano seja viável enquanto criatura”
(GEERTZ, 1989, p. 73).
Relata a história, por meio da Bíblia Sagrada, que São Paulo apóstolo, o primeiro
teólogo judeu a converter-se ao cristianismo, entregou-se à luta pela melhoria da situação
social dos gentios. Esta sua decisão, causada por motivos pessoais que abalaram suas
convicções religiosas, o fez enfrentar, pelas vias da fé “prisões, torturas e naufrágios, fome,
frio, nudez e muitas ameaças de morte” (2 Cor 6,4 ss; 11,23-3; 12,15, apud BOFF, 1999, p.
7). Para Boff, o apóstolo Paulo é a voz dos menos favorecidos, a denunciar a desigualdade
e injustiça social dos quais, transportados aos dias atuais, representam a queda da classe
média cujos trabalhadores Paulo avisava que o experimento da penúria pode ter vida curta.
É no espaço de restrição da liberdade retratado na prisão que o poder de fato, braço do
Estado, coage, normatiza e regula o ser social “em desacordo com as leis dos homens”. Atrás
das grades o trabalhador encontra seu homem interior, em toda sua dimensão. Enquanto isso
seu homem exterior é reduzido a um pequeno espaço, o lote em cimento e grades a acuar a
consciência. A escravidão moderna revela a luta desigual travada por oprimidos a enfrentar
a violência dos “opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem, igual-
mente, ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar,
lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão” (BOFF, 1999, p. 46).
Embora haja preocupação do legislador penal em evitar a pena privativa de liberdade,
Jales Perilo afirma ser “inegável é a falência da pena da prisão”, ao tratar da ultrapassada
visão da pena privativa de liberdade como meio mais eficaz para o combate à criminalida-
de. E com referência a essa expressão social, reflete que “as ‘Regras de Tóquio’ tiveram, sem
dúvida, enorme influência na política criminal brasileira, notadamente na adoção de penas
alternativas, de modo a se evitar o encarceramento, medida reconhecidamente danosa ao
apenado” (PERILO, 2016, p. 118).
Ao exercer profunda influência sobre essa ordem genuína num mundo envolto em
ambiguidades, a religião torna-se forma abstrata a dar respostas às mazelas impostas pela
desigualdade social engendrada pelo mundo real. Como que a espelhar na prisão, “Geertz
aponta a dependência do homem aos símbolos e sistemas simbólicos. Eles parecem ser
decisivos para que o próprio ser humano seja viável enquanto criatura” (apud ECCO e
ARAÚJO, 2015, p. 3).
Sobre o caos que ameaça o homem apenado na prisão, Geertz aponta enquanto pontos
cruciais “os limites de sua capacidade analítica; seu poder de suportar; e, a introspecção

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 63


moral”. Além é claro do axioma básico da perspectiva religiosa de que “aquele que tiver de sa-
ber precisa antes acreditar” (GEERTZ, 1989, p. 80-81, apud ECCO e ARAÚJO, 2015, p. 3-4).
Como não é sabido se Paulo apóstolo tomou desse preceito ao pregar: “Ai de mim se
eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9, 16), resta ao homem moderno, consumista, indivi-
dualista, roubado em seus direitos e tempo de ócio, enfrentar a realidade caótica, violenta,
injusta e voraz. Mais, acreditar e refletir se “não será a loucura, a anacronia absoluta de
nosso tempo, a disjunção de toda contemporaneidade de si, o dia velado de todo presente”
(DERRIDA, 2000, p. 23).
A luta pela sobrevivência estreita a relação material-filosófica, alicerce da consciência
que resiste à alienação capitalista. Sobre tal assunto é pertinente que o artigo continue
enquanto diálogo a trazer à discussão conceitos aproximados ao mundo, contemporâneo,
neste caso, com o tema A interface evangelho e prisão na contemporaneidade o qual não
se encerra aqui, sequer em uma próxima oportunidade.

CONSIDERAÇÕES

A luta pela sobrevivência é estreitada a partir da relação humana com aquilo que é
material, imaterial, filosófico, advém da consciência, resiste à alienação capitalista imposta ao
homem contemporâneo nivelado a partir de seu poder de consumo. A cultura e os sistemas
simbólicos trespassam a religião, os costumes, as políticas públicas destinadas a amenizar
as mais variadas expressões da questão social. A desigualdade e a injustiça social revelam
a realidade, quando o desespero e a fé trespassam o trabalhador, ser humano acuado por
normas, perfeita criatura viável ao sistema, desde que submetido ao capitalismo selvagem
retratado no caos que o fragmenta enquanto homem.
A escravidão moderna levada a cabo é torniquete da loucura instalada, numa última
instância, trancafiada nas alas do presídio. É ali que instiga o fenômeno do transe coletivo,
o gritar de desespero, a esperança clamada. É pelo viés da crença que a libertação da
situação de exclusão pode aliviar, manter o controle social da caótica situação retratada
intramuros da comunidade vigiada e punida. O modo de vida ou escravidão moderna revela
a luta desigual. Por entre oprimidos a enfrentar a violência os “opressores, violentando e
proibindo que os outros sejam, não podem, igualmente, ser; os oprimidos, lutando por ser,
ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam
perdido no uso da opressão” (BOFF, 1999, p. 46).
Embora haja preocupação do legislador penal em evitar a pena privativa de liberdade,
Jales Perilo afirma ser “inegável é a falência da pena da prisão” (2016). Ao tratar da ultrapas-
sada visão da pena privativa de liberdade como meio mais eficaz para o combate à crimina-
lidade e manutenção da ordem, num mundo envolto em ambiguidades, a religião torna-se

64 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


forma abstrata a dar respostas às mazelas impostas pela desigualdade social retratada no
mundo real. A lógica estatal jurídico-penal, ao adotar a pena privativa, mostrar-se incapaz
de resgatar a dignidade do aprisionado, fomentar sua liberdade por meio da inclusão, o que
denuncia a falência da prisão enquanto sistema panóptico criado por Jeremy Bentham, em
1785, a criar, matar, esconder as mazelas humanas paridas pelo próprio homem.
Finalizando a discussão, com relação à realidade sociopolítica, econômica e cultural,
“não é por meio de inciativas isoladas de esforços generosos ou com homens carismáticos
que construiremos um mundo melhor, o que é uma tarefa a ser assumida pela coletivida-
de que aspira um mundo melhor, pois é difícil aprender a nadar sem se jogar na água”
(BETO, 2008, p. 54).
Inúmeros fatores causam a marginalização na coletividade retratados na pobreza,
mazela social resultante da insuficiência orçamentária (salarial) do indivíduo em seu poder
de compra, que o insere à margem da sociedade. O coletivo “tem sua alma” dividida entre a
boa índole e a facção criminosa, alheio à injusta divisão da riqueza social e material produ-
zida expressa na economia, na política de direitos, no campo filosófico-material, na cultura.
Finalizando a discussão, com relação à realidade sociopolítica, econômica e cultural,
“não é por meio de inciativas isoladas de esforços generosos ou com homens carismáticos
que construiremos um mundo melhor, o que é uma tarefa a ser assumida pela coletivida-
de que aspira um mundo melhor, pois é difícil aprender a nadar sem se jogar na água”
(BETTO, 2008, p. 54).
E o pulso, ainda pulsa!

REFERÊNCIAS
1. BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Zahar. 2004.

2. BETTO, Frei. Cartas da prisão: 1969-1973. Rio de Janeiro: Agir, 2008. BOFF, Leonardo.
Coríntios. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

3. CASTILLO, José María. Religión Digital. Disponível em: http://www.periodistadigital. com/


religion/opinion/2017/05/15/jose-maria-castillo-en-la-iglesia-en-los-seminarios-en-los- centros-
-de-estudios-teologicos-hay-miedo-mucho-miedo-iglesia-religion-dios-jesus.shtml. Acesso em
14 jul 17.

4. COUTINHO, Carlos Nelson. O Estruturalismo e a Miséria da Razão. 2. ed. São Paulo: Ex-
pressão Popular, 2010.

5. DERRIDA, Jacques. A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Ed. Estação Liberdade,
2000, p. 11-35.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 65


6. ECCO, Clóvis e ARAÚJO, Cristiano S. A religião e o sagrado nas dobras de poder. Revista
Contemplação, vol. 10, p. 1-15. 2015.

7. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 5ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1987.

8. IANNI, Octavio; FERNANDES, Florestan (orgs). Karl Marx: sociologia. São Paulo: Editora
Ática, 1979.

9. LESSA, Sérgio. Lukács: Ética e Política. Chapecó: Argos, 2007.

10. LODI, Rafael. G. C. O gerenciamento de crises e a polícia civil. São Paulo: Ed. Espaço
Acadêmico, 2016.

11. MÉSZÁROS, István. A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

12. PERILO, Jales. A odiosa pena da prisão. Goiânia: Ed. Kelps, 2016.

13. LINKS ACESSADOS:https://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/30/cultura/1451504427_675885.


html https://robertotranjan.com.br/sabe-o-que-e-metanoia/http://www.periodistadigital.com/
religion/opinion/2017/05/15/jose-maria-castillo-en-la- iglesia-en-los-seminarios-en-los-centros-
-de-estudios-teologicos-hay-miedo-mucho-miedo- iglesia-religion-dios-jesus.shtml.

66 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


05
“ A motivação apocalíptica na
redação final do livro de joel:
uma leitura libertadora contra o
imperialismo grego

Natalino das Neves


PUC - PR

10.37885/201001642
RESUMO

No IV século a. C. o Império grego se fazia presente, tornando-se hegemônico e, con-


sequentemente, espalhando seus tentáculos pelas demais regiões. Até que ponto essa
influência atingiu a literatura pósexílica, principalmente o livro do profeta Joel? Deve-se
levar em conta que são duas mentalidades antinômicas pelo menos em sua origem. Mas
certamente em algum momento há um processo de hibridismo cultural. Este estudo tem
por objetivo geral identificar na sociedade helênica no período do surgimento e desen-
volvimento do Império Grego, fragmentos epistemológicos, culturais, socioeconômico
(escravismo e urbanização do corredor siro-palestinense) e políticos, que ajudem a reler
o livro de Joel a partir do gênero literário apocalipse. Para isso serão desenvolvidos os
seguintes objetivos específicos: 1) identificar as principais características da literatura
apocalíptica; 2) descrever, de forma resumida, a mensagem e o contexto do livro de Joel,
influenciado pelo helenismo; 3) Identificar as características da literatura apocalíptica
presentes no livro de Joel e seu impacto na interpretação do livro. Trata-se de uma pes-
quisa bibliográfica e apresenta como resultado a defesa de uma motivação apocalíptica
na redação final do livro de Joel.

Palavras-chave: Literatura Apocalíptica, Apocalipse, Livro de Joel, Imperialismo, Helenismo.


INTRODUÇÃO

A história do povo de Israel se resume em uma constante alternância de submissão


deste povo a impérios mundiais hegemônicos e opressores: assírio, babilônico, persa, grego
e romano. Todavia, para efeito desta pesquisa, que tem o livro de Joel como referencial,
a abordagem será a relação entre a sociedade helênica e a sociedade judaica, particular-
mente a influência da primeira em relação à segunda, universo em que estavam inseridos
os escritores apocalípticos.
A partir do século V a. C. a história caminha em ritmo acelerado para a sua ocidentali-
zação. Dá-se uma reorientação da vida socioeconômica em direção ao Mediterrâneo. Este
ocidente, que é grego por excelência, impõe-se econômica e politicamente muito tempo
antes das conquistas macedônias sob Alexandre em 333 a. C. Esta expansão grega pode
ser caracterizada no livro de Joel. Percebe-se que a expansão grega faz parte do contex-
to pós-exílio. São aos gregos que os filisteus, os fenícios e os comerciantes do litoral da
Palestina vendem como escravos os filhos de Judá e de Jerusalém (Jl 4.6). Uma nova lógica
econômica de arrecadação de tributos parece que está nascendo no horizonte. Um novo
mecanismo de acumulação mais aperfeiçoado que os anteriores e, por isso mesmo, mais
violento: sob o império grego tributa-se o próprio corpo. O ventre das mulheres pobres é
necessário para gerar escravos e escravas para o Império. Um espírito comercial escravista
próprio ao estilo grego.
A literatura bíblica foi construída a partir de relações de ordem social, econômica,
política e cultural. Segundo Rossi (2005, p. 28) “isso implica em dizer que a construção da
literatura bíblica está indelevelmente marcada pelo tipo de economia e de sociedade em que
as pessoas viviam”. Neste artigo serão identificadas algumas questões políticas, culturais
e socioeconômicas ocorridas durante o império grego, por entender que essas questões
influenciaram na compilação final do livro de Joel sob a perspectiva apocalíptica.

Aproximações à literatura apocalíptica

Collins (2010, p. 20) afirma que a maioria das literaturas apocalípticas não foi reco-
nhecida como pertencente a esse gênero antes do cristianismo. Segundo Collins (2010, p.
18), em pesquisas acadêmicas mais recentes, o termo “apocalíptica” tem sido abandonado
como um substantivo. Estas pesquisas fazem distinção entre “apocalipse como um gênero
literário, apocalipticismo como uma ideologia social e escatologia apocalíptica como um
conjunto de ideias e motivos literários que também podem ser encontrados em outros gê-
neros literários e contextos sociais”. Villanueva (1992, 193-217) assevera que é difícil definir
conteúdos próprios de uma literatura apocalíptica, pois muitas características são também

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 69


comuns a outros gêneros. Afirma que “há escritos claramente apocalípticos que não têm
todas as características comuns a esse gênero”.
Maia (2011, p. 32) afirma que as origens da apocalíptica “são tributárias de um contexto
histórico-político-cultural e religioso que emerge do pós-exílio”. Acrescenta que os grupos
apocalípticos surgem “como uma forma de protesto, e às vezes, de esistência, contra um
sistema opressor, centralizador do poder, ideologicamente discriminador, religiosamente
monopólico, etc., que de fato os marginaliza”.
Uma expressiva literatura acadêmica de estudo sobre as origens da apocalíptica, ao lon-
go dos anos, se dividiu entre os defensores de que a apocalíptica tenha surgido da profecia,
os defensores da origem estrangeira (dualismo persa), os defensores da origem apocalíptica
da sabedoria (literatura sapiencial), tendo como principal defensor von Rad2. Collins (2010,
p. 44-45) afirma que os apocalipses têm influências de todas essas fontes. No entanto,
percebe-se uma maior influência profética. Arens (2007, p. 111) afirma que a linguagem
apocalíptica deu continuidade à linguagem profética. Uma filha da primeira hora. Herdeira da
defesa das vítimas da história. Uma linguagem para as vítimas interpretarem a história e per-
sistirem diante da violência dos mais diferentes impérios. A linguagem do gênero apocalipse
é figurada e “em boa medida inspirada na linguagem figurada dos profetas de antigamente,
com a qual se pintam quadros que, portanto, têm sentido quando são vistos como totalida-
des”. O contexto de hostilidades produz uma visão pessimista do mundo “que terá de ser
destruído por Deus para inaugurar um mundo novo, livre de todo mal, paradisíaco para os
seus fiéis”. A escatologia foi ao longo do tempo um recurso do gênero profético, que com a
evolução do pensamento profético para o apocalíptico, da visão histórica do fim dos tempos,
que foi frustrada no período pós-exílio, para uma visão cósmica (HANSON, 1979, P. 8-12).
Villanueva (1992, p. 193) defende que a literatura apocalíptica “deve ser definida não
só pelo seu conteúdo, mas também pelo seu gênero ou seus símbolos típicos”3. Em sua
pesquisa sobre as características da literatura apocalíptica chega a conclusão de que o
eixo temático dessa literatura é a revelação e suas características gira em torno desse eixo.
Desse modo, afirma que resta analisar as características quanto ao meio e o conteúdo da
revelação. Quanto aos meios de revelação são três as características: pseudonímia, visões
e simbolismo; interpretação das escrituras (VILLANUEVA, 1992, P. 195-205). Quanto ao
conteúdo da revelação são cinco as características: visão da história; caráter esotérico; as
duas idades; clímax escatológico; dimensão cósmica (VILLANUEVA, 1992, P. 205-217).
Richard (2006, p. 139) afirma que “na literatura apocalíptica, o tema central é a opo-
sição aos impérios”. Para compreender a mudança de expressão escrita do autor profético
para o autor apocalíptico, se faz necessário conhecer melhor o contexto em que o este autor
estava inserido.

70 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


A mensagem e o contexto do livro de Joel

O livro de Joel contém pouca informação a respeito do protagonista do livro. Todavia,


as ausências de informações não param somente no protagonista ou autor /redator do li-
vro. O contexto, a data da escrita, unidade do livro, entre outras informações importantes
para interpretação e compreensão do livro são questões que tem provocado dúvidas e muitas
suposições sobre a mensagem de Joel.
Godoy (2003, p. 82) afirma que a discussão sobre a unidade e estrutura do livro de Joel
tem sido uma constante desde 1872, quando pela primeira vez foi questionada por Maurício
Vernes4 e surgem novos aspectos como a possibilidade de acréscimos posteriores à pri-
meira escrita do livro. A partir de então, as discussões seguem duas linhas principais: a) o
livro como uma unidade e com um único autor; b) o livro como mão de um redator, porém
com acréscimos posteriores. Esta pesquisa segue a segunda linha (b).
Uma das maiores polêmicas ou problemas do livro é situá-lo historicamente. Sicre
(2008, p. 325) inicia o comentário sobre o profeta Joel com a seguinte afirmação: “Na etapa
final da profecia israelita podemos incluir um livro de datação muito difícil, o de Joel”. Dentre
os especialistas, as proposições de datação vão do século IX a. C. até o século II a. C. Esta
pesquisa defende a hipótese da datação pós-exílica, durante a dominação grega.
Dentre os principais argumentos para uma datação pós-exílica estão: a) não se men-
ciona nenhum rei ou aristocrata; b) referências aos sacerdotes e anciões (1,2.9.13-14); c)
uso frequente da expressão “Dia do Senhor”, que pode significar uma ação de justiça de
Deus sobre seu povo e, especialmente, sobre povos estrangeiros e opressores. Esta que
é ênfase dada no livro de Joel; d) Não são mencionados os assírios e nem os babilônicos,
que são tradicionais inimigos de Israel no período préexílico e exílico, respectivamente; e)
Menção de inimigos do período pós-exílio como os gregos e Edomitas; f) O chamado ao
arrependimento (2,12) não menciona os pecados específicos denunciados pelos profetas
pré-exílicos: idolatria, formalismo, sensualidade e opressão. g) Identificação dos destinatá-
rios como Judá e não como Israel; h) O Templo (1,9.13.14.16.2,17; 4,5) e seu ritual (1,9.13;
2,14) são consideradas como elementos muito importantes da religião, em contraste aos
profetas que criticaram ritualismo pré-exílico; i) Uma catástrofe nacional já havia ocorrido, o
povo de Judá haviam sido dispersos, e a terra dividida entre os estrangeiros ( 4,2); j) Há pelo
menos vinte e sete paralelos com outros escritos do Antigo Testamento; l) Não é mencio-
nada a prática de idolatria ao deus Baal, comum nos livros escritos no período pré-exílio
(Eissfeldt, 1965, p. 394-395; Weiser, 1967, p. 106; Wolff, 1969, p. 2-4; Andiñach, 1992, p.
9-14; Rendtorff, 1998, p. 26-27; Rossi, 1998, p. 8; Konings, 2011, p.90-91).
Os gregos são citados explicitamente em Joel 4,6. Segundo Koester (2005, p. 1-2) “a
expansão das colônias gregas começou muitos séculos antes das conquistas de Alexandre”.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 71


Entretanto, o mundo já não era mais o mesmo depois das conquistas de Alexandre e a
imposição da cultura grega. As culturas da Pérsia, Síria, Judéia e Egito “não gozavam do
mesmo prestígio porque eram culturas de povos conquistados, de populações que não
tinham sido capazes de resistir ao poderio superior de Alexandre e de seus sucessores”
(SKARSAUNE, 2004, P. 20).
São aos gregos que os filisteus, os fenícios e os comerciantes do litoral da Palestina
vendem como escravos os filhos de Judá e de Jerusalém. A dominação do povo grego
ou helênico (333-63 a. C.), povo citado por Joel como comerciantes de escravos, soube
aproveitar a organização já instaurada pelos persas e ampliou, implementando o modo de
produção escravista. Sob o império grego tributa-se o próprio corpo. O ventre das mulheres
pobres é necessário para gerar escravos e escravas para o Império.
Ribeiro (2008, p.80) afirma que o modelo de produção escravista interfere na forma de
convívio social da sociedade. O modo de produção escravista ocorre quando a economia tem
como base a comercialização da mão de obra escrava como a principal fonte de produção,
inclusive com a separação da pessoa escravizada de sua própria sociedade, sendo levada
para um novo ambiente no processo de dessocialização e despersonalização.
O grande sistema de dominação grego, que tinha a economia como um ponto forte,
não poderia ser manter sem o modelo escravagista e desumano imposto sobre os domina-
dos. O modo de produção escravista se constituía em um modelo hegemônico e que era
alimentado pelo sistema opressor que empobrecia o camponês livre, que acabava se tor-
nando escravo por dívidas ou pelas guerras, que tinham como um dos principais objetivos
a escravização dos povos conquistados.
O redator final do livro de Joel, influenciado pela literatura apocalíptica, percebia a
situação de extrema opressão desumanizadora (Jl 4,4-8). No restante do capítulo quatro
demonstra a insatisfação de Deus com a prática de produção escravista. O autor coloca na
boca de Deus o anúncio de julgamento das nações estrangeiras e de libertação dos escravos
judeus, que estavam sendo submetidos a práticas de desumanização. Neste momento ele
apresenta um Deus não mais exclusivo de Israel, mas um Deus universal, que intervém na
história e implementa um reino cósmico e escatológico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Valdez (2002, p.57) o gênero literário “se reflete num grupo de textos que
contém um conjunto de características que os permite reunir por afinidade”. Se analisarmos
o conteúdo do livro de Joel, o que este artigo devido sua limitação de espaço não permite
detalhamento, mas de forma resumida, pode ser percebido o contexto histórico-político-cultu-
ral e religioso de opressão acentuada, assim como é caracterizado o ambiente apocalíptico.

72 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


O diferencial opressor do Império Grego é o modo de produção escravista citado em
que a mulher judia passa a ser considerada como uma “fábrica” de escravos. Um sistema
opressor como nunca visto que suscita sempre movimento de revolta. Neste ambiente que
surge os grupos apocalípticos como forma de protesto e resistência contra esse sistema im-
perialista grego extremamente opressor, principalmente no caso dos moradores da Palestina,
que foram marginalizados.
O redator final do livro de Joel, utilizando de textos anteriores, faz uma releitura apo-
calíptica e acrescenta novos textos, como no capítulo quatro, para denunciar, em especial,
o modo de produção escravista, uma prática extremamente desumanizadora.
No livro de Joel, pode-se ver Deus tomando a causa para si e fazendo justiça. Uma
mensagem que motiva o povo a uma ação libertadora para transformar a situação-limite em
que se encontravam.

REFERÊNCIAS
1. ANDIÑACH, Pablo R. Imaginar caminos de liberación - Una lectura de Joel. 1992. 214 fl. Tese
(Doutorado em Teologia). Instituto Superior Evangélico de Estudios Teológicos. Buenos Aires,
1992.

2. ARENS, Eduardo. A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica. São Paulo: Paulus, 2007.

3. COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica: uma introdução à literatura apocalíptica judai-


ca. São Paulo: Paulus, 2010.

4. EISSFELDT, O. Old Testament: An introduclion. Trad. by P. R. Ackroyd. New York: Harper


and Row, 1965.

5. GODOY, Daniel. O derramamento do Espírito – Fortalecimento dos enfraquecidos. 2003.


239 fl. Tese (Doutorado em Ciência da Religião). Universidade Metodista de São Paulo, Pós-
-Graduação em Ciência da Religião, São Bernardo do Campo – SP, 2003.

6. HANSON, Paul D. The dawn of apocalyptic: the historical and sociological roots of Jewish
apocalyptic eschatology. Philadelphia: Fortress Press, 1979.

7. KOESTER, Helmut. Introdução ao novo testamento 1: história, cultura e religião do período


helenístico. São Paulo: Paulus, 2005.

8. KONINGS, J. A Bíblia, sua história e leitura. 7ª edição atualizada. Petrópolis: Vozes, 2011.

9. MAIA, Tânia Maria Couto. O papel da apocalíptica no conceito de reino de Deus. Kairós:
Revista Acadêmica da Prainha, Ano VIII;/1, Jan/Jun, 2011.

10. RENDTORFF, Rolf. A formação do Antigo Testamento. 5ª Edição. São Leopoldo: Sinodal,
1998.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 73


11. RIBEIRO, Júlio Cézar. A geografia do modo de produção escravista. Revista Eletrônica da
Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Três Lagoas Três Lagoas- MS – Nº8 – ano 5,
Nov. 2008, p. 80.

12. RICHARD, Pablo. Força ética e espiritual da teologia da libertação: no contexto atual da
globalização. São Paulo: Paulinas, 2006.

13. ROSSI, Luiz A. S. Como ler o livro de Joel. São Paulo: Paulus, 1998.

14. ROSSI, Luiz A. S. Modo de Produção Escravista e sua influência na percepção da socie-
dade judaica no pós-exílio. ZIERER, Adriana (org.). Mirabilia Journal, Mirabilia 4, Jun-dez,
2005. Disponível em: <http://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/2004_03.pdf>.
Acesso em 02 jun. 2015.

15. SICRE, José Luis. Profetismo em Israel: o profeta. Os profetas. A mensagem. 3ª ed. Petró-
polis: Vozes, 2008.

16. SKARSAUNE, Oskar. À sombra do Templo: as influências do judaísmo no cristianismo pri-


mitivo. São Paulo: Editora Vida, 2004.

17. VALDEZ, Ana. A literatura apocalíptica enquanto gênero literário. Revista Portuguesa de
Ciência das Religiões, ano I, 2002, nº 1, p. 55-66.

18. VILLANUEVA, Carlos. Características de la literatura apocalíptica. Revista Bíblica, Año 54,
1992, p. 193-217.

19. WEISER, A. Das Buch der zwiilf kleinen Prophelen I: Die Propheten Hosea, Joel, Amos,
Obadja, Jona, Michia (AT D, 24), 5. verbesserte Auflage. Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1967.

74 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


06
“ A narrativa religiosa em sala de
aula:Uma técnica didática para
estudar o mito

Virgínia Macêdo de Souza Silva


UFPB

10.37885/201001638
RESUMO

A didática é uma técnica, que visa promover o processo do ensino e da aprendizagem


de forma eficaz. Mediante a sua aplicação, a sala de aula se torna um lugar mais apra-
zível e os alunos se sentem atraídos pela novidade. Visando a isso, elaboramos uma
técnica didática para o estudo do mito em sala de aula. Compreendemos que o mito é
uma narrativa de conteúdo religioso, cujo objetivo é esclarecer as produções culturais
por meio do sobrenatural. Portanto, o nosso objetivo com este artigo, é apresentar uma
“sequência didática” aplicada com os alunos do ensino médio vinculados à Educação
de Jovens e Adultos (EJA) da Escola Estadual Professor Geraldo Lafayette Bezerra, em
João Pessoa-PB. O método percorrido foi o qualitativo com pesquisa descritiva de campo,
que viabilizou a aplicação da sequência didática, a qual consistiu em cinco etapas: ler
dois mitos gregos; elaborar um quadro esquemático de cada mito; assistir ao filme “Uma
história de amor e fúria”; observar as características das cenas fílmicas para elaborar
um quadro esquemático do filme; desvelar o mito subjacente ao filme por meio do mé-
todo comparativo. Nessa “sequência didática”, o filme poderá ser substituído por textos
com a finalidade de proceder a uma hermenêutica simbólica. Os resultados alcançados
implicaram no processo de aprendizagem significativa e colaborativa; em entender a
importância da autodisciplina para o estudo, e, finalmente, na importância do estudo
dos mitos. Portanto, acreditamos que a sequência didática que elaboramos cumpriu
com o propósito de um processo eficaz da aprendizagem, por isso creditamos à sua
aplicação uma grande importância, uma vez que o estudo sobre o mito pode contribuir
com o ensino religioso.

Palavras-chave: Imaginário, Sequência Didática, Mito.


INTRODUÇÃO

A didática divide-se em teórica e prática conforme Pura (1989). A didática prática “é


aquela vivenciada pelos professores nas escolas a partir do trabalho prático em sala de
aula, dentro da organização escolar, em relação com as exigências sociais. ” (PURA, 1989,
p.21). A sequência didática que elaboramos visa facilitar a compreensão do texto mitológi-
co e suas características como processo do ensino e da aprendizagem de alunos da Rede
Pública Estadual em João Pessoa-PB. A pesquisa foi realizada durante sete encontros com
50 minutos de aula, que foram iniciados com uma “roda de conversa” sobre o significado do
mito, cujas discussões pautaram-se em torno do conceito de mito a partir do senso comum
para, posteriormente, aprofundarem-se conforme a compreensão de mito segundo os mitó-
logos mais renomados, dentre os quais Mircea Eliade, Campbel e Durand.
O mito é um gênero textual que promove desenvolver no aluno o seu rico imaginário,
adormecido a partir do incremento do conhecimento científico, que foi elevado à categoria
de “dono da verdade” desde o século XIX, o século das luzes, quando somente a ciência era
a solução dos dilemas humanos; a época do “penso, logo existo” enfatizado por Descartes.
O imaginário que, segundo Durand (2002), é o capital pensado do homem inteligente,
pois é a fonte de toda criação humana. Logo, despertar a criatividade em nossos educan-
dos é uma tarefa que requer muito trabalho e abnegação, uma vez que todos são cercados
por muitas imagens prontas e acabadas, quer sejam televisivas ou por meio virtual, por
isso a dificuldade de imaginação. Contudo, o estudo do gênero mítico contribuirá para esse
despertamento porque traz a questão do transcendente, do sobrenatural, faz emergir a es-
piritualidade constitutiva do ser humano por meio da religiosidade com seus símbolos, que
procuram expressar algo que o humano não consegue explicar com palavras.
Destarte, para o estudo do mito é necessário conhecer um pouco da teoria que fun-
damenta as análises mitológicas, para tanto a nossa pesquisa teve com embasamento a
teoria de Durand (1996), que promove a interpretação simbólica de textos ou de qualquer
obra humana, denominada por ele de uma nova metodologia, a saber, a “mitodologia”.

METODOLOGIA

MITOCRÍTICA: UMA INTERPRETAÇÃO SIMBÓLICA DO TEXTO

O método percorrido neste trabalho foi o qualitativo com pesquisa descritiva de cam-
po, que viabilizou a aplicação da sequência didática elaborada pelo professor titular desta
pesquisa. A fundamentação baseou-se na teoria do Imaginário proposta por Durand (2002),
onde o autor apresenta uma nova metodologia para trabalhar as imagens textuais produzidas

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 77


como forma de expressar as idiossincrasias humanas. Para ele, a interpretação de um texto
procura desvelar um de seus sentidos, a partir de uma análise com base nas mais diferen-
ciadas teorias, ou métodos. O método proposto por Durand se insere numa nova metodo-
logia, denominada de “mitodologia”. Para Durand, “o sentido de uma obra está sempre por
descobrir. É o mito que descobre a interpretação”. Assim, a mitodologia desenvolve-se sob
duas formas: a mitocrítica e a mitanálise. Neste estudo, enfatizamos a mitocrítica e suas
noções operatórias.
A Mitocrítica é um termo criado por Durand em 1970 sobre o modelo da psicocrítica
de Charles Mauron, este que fez um levantamento dos trabalhos dos psicanalistas que se
tinham debruçado sobre as obras de arte. Segundo Carvalho (1998), a Psicocrítica de Mauron
não estuda a totalidade da obra, mas o fundamento inconsciente ou “fantasmático”, isto é,
o MITO. A associação das ideias involuntárias sob a estrutura textual é o objeto de estudo
da psicocrítica. Carvalho (1998, p.93) afirma que Durand mostra a imprescindibilidade da
psicocrítica, e mostra seu alcance e limites ao afirmar:

A mitocrítica se pergunta, em última instância, pelo mito primordial, impregnado


de legados culturais, que vem integrar as obsessões e o próprio mito pessoal.
Ora, tal fundo primordial é com certeza um mito, isto é, um relato-narrativa, de
modo oximorônico, reconcilia num “tempo original” as antíteses e as contradi-
ções traumatizantes ou simplesmente embaraçosas no plano existencial [...].

A mitocrítica, no entanto, depende da mitodologia, isto é, uma metodologia onde o mito


é o método. Vale ressaltar que para Durand (2002, p.62-63), o mito:

é um sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-


-se em narrativa. O mito é já o esboço de racionalização, dado que utiliza o
fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos
em ideias.

A mitodologia, assim, desenvolve-se sob duas formas: a mitocrítica e a mitanálise.


Durand (1982, p.65-66) conceitua a mitocrítica como sendo:

[...] uma crítica do tipo crítica literária, como se diz, crítica de um texto, crítica
que tenta pôr a descoberto por detrás do texto, quer seja um texto literário
(poema, romance, peça de teatro etc) ou mesmo o estilo de todo conjunto de
uma época [...] que tenta pôr a descoberto um núcleo mítico, uma narrativa
fundamentadora.

Assim, para proceder à mitocrítica, é necessário fazer uso das noções operatórias
(DURAND, 1983, p. 29-39), que são:

• Mitema (denominação de Lévi-Strauss): além de ser a menor unidade redundante,

78 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


representa os pontos fortes, repetitivos da narrativa;

• Mitologema é o resumo de uma situação mitológica; corresponde ao esqueleto da


obra;

• Narrativa canônica: próxima ao mitologema; é mais completa do que este; constitui


um modelo de todas as lições de um mito ou de todas as obras de um autor (se
aproxima do “padrão médio” ou “tipo ideal”);

• Variante é um indicador de significação; trata-se de ver em um primeiro tempo o


que é parecido no texto para ver em seguida o que é diferente. Permite observar as
derivações dos mitemas (intraculturais);

• Constelação de afinidades são as afinidades de mitemas ou de mitos de uma cul-


tura para outra;

• Escala de amplitude faz com que um mitema possa ser um mitologema em certos
momentos, ou ao contrário possa reduzir-se quase a um ser emblemático.
O MITO E SUAS EVOLUÇÕES

Pitta (2005) diz que para Durand, o mito não é apenas uma narrativa, atividade de
contar, mas um ato de pensar, uma reflexão que revela um estado de espírito em busca de
razões que escamoteiam o que é, por natureza, sem razão: o mistério do universo e da vida.
Aprofundando o seu objeto de estudo, isto é, o mito, Durand (1996) apresenta três
evoluções ou manipulações que o mito vai sofrer: a perenidade, as derivações e o desgas-
te. Vale ressaltar que a compreensão desse assunto é importante para o entendimento da
análise mitocrítica.
Segundo Durand (1996, p.94), o discurso mítico se situa no campo do não-natural ou
do não-profano. Esse discurso é segmentável em mitemas, ou seja, em pequenas unidades
semânticas, que se articulam e que juntamente com o processo lógico do mito (junção dos
opostos) são articulações redundantes, “a repetir, quase diria a repisar” (DURAND, 1996,
p.96). A diferença do mito para outras narrativas é o que Cassirer chamou de “uma preg-
nância simbólica” (DURAND, 1996, p.95).
Destarte, a perenidade, termo que Durand tomou por empréstimo ao sociólogo Vilfredo
Pareto, é qualquer coisa que se mantém, é o aspecto sempiterno do mito. “O mito é [...]
um quadro, senão formal, pelo menos esquemático e que é incessantemente preenchido
por elementos diferentes. É a isto que chamo derivação. A estrutura de um mito é sempre
preenchida pela raça, pelo meio e pelo momento” (DURAND, 1996, p. 97). A derivação

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 79


é uma modificação no interior do mito e juntamente com a perenidade constituem as
duas faces do mito.
Na derivação, o ideal-tipo (modelo) liberta-se de certos mitemas e acrescenta ou-
tros. A derivação pode ser por ampliação quando ocorre a substituição dos mitemas, por
esquematização ou empobrecimento quando ocorre a supressão dos mitemas, por mo-
dificação ou intrusão (introdução) nas colunas mitêmicas, por modificação por captação
amplificadora quando outras séries míticas próximas são captadas.
Segundo Durand (1996), o mito nunca desaparece, mas desgasta-se, pois em seu
movimento temporal existem períodos de inflação e de deflação. Existem períodos de in-
tensidade e períodos de apagamento, de ocultação. O desgaste do mito é o período de
deflação (decréscimo). Como exemplo, Durand apresenta o mito de prometeu que, segundo
ele, sofreu desgaste nos sécs. XVII, XVIII e XX. No séc. XIX, houve uma enorme reabilitação
do mito prometeico pelos românticos dentre eles Byron e Hugo.
O desgaste do mito ocorre quando as derivações podem chegar a um momento de
limiar crítico, isto é, um dado momento onde se perde o fio condutor do conjunto constitutivo
do mito. Consiste numa derivação que vai longe demais, que se afasta muito de suas bases.
Um mito só existe através de uma série de mitemas qualitativos, mas quantitativamente
constantes, ou seja, é necessário que haja um determinado número de colunas fixas no
quadro que as recenseia (p.115). Durand diz ainda que o mito é um quadro que é preenchido
por elementos próprios de cada cultura.
Desde o momento que há flutuação nos mitemas, pode-se falar em derivações[...]. O mito
nunca se conserva no seu estado puro. Não existe o momento zero do mito, o do início ab-
soluto. Existem inflações e deflações. [...]. Quando já não há mais de um ou dois mitemas,
deixa de haver o mito.
O mito nunca desaparece porque os mitemas são em número finito. Há uma polinge-
nesia do mito, isto é, há mitemas em número limitado que se combinam segundo um outro
número limitado, mas alargado de mitos.
Os mitos giram em círculo, não há mitos novos e, paradoxalmente, qualquer mito
é sempre novo porque está investido numa cultura e numa consciência, ao contrário do
seu esquematismo.
Percebemos com este estudo, que há uma estrutura do mito, no entanto, estrutura
para Durand não é uma forma fixa, mas uma organização dinâmica. Provém de struere,
“construir”. “Ora, penso que as estruturas são elementos esquemáticos visto que pensáveis,
mas materiais, pois que necessário” (p. 99). E o cenário mítico são conteúdos inevitáveis
num mito. Portanto, para proceder a mitocrítica é necessário o conhecimento dos mitos e
de seu quadro esquemático e seu cenário mítico.

80 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


RESULTADOS

Os resultados alcançados implicaram no processo de aprendizagem significativa e


colaborativa; implicaram, também, no entendimento da importância da autodisciplina para
o estudo, do valor do trabalho em equipe, e, finalmente, na descoberta da importância do
estudo dos mitos. Vale salientar, a importância da sequência didática, uma vez que orienta
um caminho a seguir.
A aplicação da sequência didática, a qual consistiu em cinco etapas: leitura dois mitos
gregos; elaboração um quadro esquemático de cada mito; assistência do filme “Uma his-
tória de amor e fúria”; observação das características das cenas fílmicas para elaboração
do quadro esquemático do filme; descoberta do mito subjacente ao filme por meio do mé-
todo comparativo.

GRÁFICO: SEQUÊNCIA DIDÁTICA

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 81


DISCUSSÃO

O estudo do mito em sala de aula é uma metodologia que visa ao despertar do ima-
ginário do educando, uma vez que o seu cotidiano, na maioria das vezes, é fomentado por
tecnologias, que muitas vezes apresentam de forma conclusiva aquilo que poderia ser re-
pensado, recriado a fim de que a criatividade fosse ressaltada no humano. Compreendendo
o mito como uma narrativa de conteúdo religioso, cujo objetivo é esclarecer as produções
culturais por meio do sobrenatural, percebe-se o valor do seu estudo como um meio de dar
abertura ao imaginário, que é a fonte de toda produção humana.
Visando a esse fim, a aula inicial foi introduzida por figuras, desenhos e imagens para
a discussão e interpretação dos mesmos com o fim de que o imaginário fosse despertando
e libertando-se da concretude existencial. Em seguida, deu-se início ao debate sobre o
conceito de mito, onde se percebeu o preconceito quanto ao seu estudo, uma vez que no
senso comum conhece-se o mito como uma inverdade. No segundo encontro, foi dado início
à sequência didática (1ª etapa) com a leitura de um mito (mito de Prometeu) e a produção
de seu esquema (2ª etapa), que consistiu em mostrar seu cenário a partir das característi-
cas dos personagens, das ações, dos símbolos presentes; percebeu-se o tema, ou seja, o
assunto relatado e as suas lições.
A partir desse trabalho conjunto, os alunos foram desafiados a ler outro mito (Mito de
Orfheu) e elaborar seu quadro esquemático. (3ª etapa) A transmissão do filme “Uma história
de amor e fúria”, que foi comentado pelo mediador da sequência didática para “facilitar” a
discussão sobre o mito. Seguiu-se a 4ª etapa quando os alunos elaboraram o esquema do
filme e, mediante a comparação do quadro esquemático dos mitos estudados com o quadro
esquemático do filme, os alunos desvelaram o mito subjacente ao filme (5ª etapa).
O desenrolar das etapas aconteceram em sete encontros de 50 minutos cada. Para
tanto, foi utilizado o Datashow como suporte dos slides com as imagens dos mitos e um
resumo teórico. Cada aluno recebeu impresso os mitos e o modelo dos quadros para serem
preenchidos. A sessão de cinema foi descontraída, mesmo porque o filme é bem empolgan-
te. Contudo, houve uma orientação para que os educandos observassem e anotassem as
cenas que remetessem aos mitos estudados, objetivando a elaboração do quadro do filme
para comparar com os quadros dos mitos previamente elaborados.

82 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


SIGNIFICADO QUE SE REPETE
QUADRO FIGURATIVO DO MITO DE PROMETEU (MITEMA = menor elemento SIGNIFICA- TEMA MÍTICO
RESUMO DO CENÁRIO MÍTICO TIVO do mito (MITOLOGEMA)
caracterizado pela sua redundância)

● Filho do Titã Jápeto irmão de Atlas, Menoécio, e Epimeteu, o inábil, retardado;

● Engana Zeus no sacrifício de Mecone;

● Furta o fogo de Zeus; Natureza titanesca;

● Zeus envia Pandora aos homens; Progresso;


Desobediência hábil;
● Zeus priva os mortais do fogo; D e s e nv o l v i m e n t o
● Prometeu é acorrentado ao monte Cáucaso e o fígado bicado por uma águia
Filantropia;
(Durand chama de abutre); científico.

● Héracles mata o pássaro; Imortalidade.


● Prometeu é trocado por Quíron;

● Zeus eleva Prometeu à imortalidade.

PALAVRAS SIGNIFICATIVAS
QUADRO FIGURATIVO DO MITO DE ORFEU TEMA MÍTICO
(MITEMA= menor elemento SIGNIFICATIVO
RESUMO DO CENÁRIO MÍTICO (MITOLOGEMA)
do mito caracterizado pela sua redundância )
● Filho de Apolo e da ninfa Calíope;
● Herda do pai uma lira ou flauta mágica;
●Casa-se com a ninfa Eurídice;
● Assediada por Aristeu, de quem foge, é picada por uma cobra e morre;
● Orfeu, inconformado, desce ao inferno (Hades);
A música que entorpece;
● Caronte, o barqueiro do inferno o guia ao mundo dos mortos;
● Sua lira entorpece Cérbero, cachorro guardião; A paixão por Eurídice;
● Sua música faz Hades chorar lágrimas de ferro;
A descida ao
● Perséfone, esposa de Hades, intercede por Orfeu; A luta contra a morte;
inferno.
● Hades impõe que Orfeu só deverá olhar para Eurídice quando esta estivesse
A frustração;
sob a luz do sol;
● Orfeu não resiste e olha para trás e Eurídice volta a ser um espectro;
O pessimismo.
● Frustrado, Orfeu não quer saber de outra mulher;
●As Mênades, rejeitadas, cortam o corpo de Orfeu em pedaços e lança no
rio Hebrus;
●As nove musas sepultam seus pedaços no monte Olimpo;
●Orfeu se reúne a Eurídice no reino dos mortos.

O filme “Uma história de amor e fúria” foi selecionado para este projeto porque poderá
ser trabalhado de forma interdisciplinar: História, Linguagem, Ciências Políticas, Filosofia e
Mitologia. Da História aprendemos sobre três períodos importantes da História do Brasil e
uma narrativa fictícia do futuro do Brasil: a colonização (1566), a balaiada (1825), a ditadura
militar (1968), e o Brasil no futuro (2096).
As narrativas míticas subjacentes (mito de Prometeu e o mito de Orfheu) retratam os
dilemas humanos de cada fase histórica, cuja cultura de luta mostra quais valores o homem
busca em seu tempo. As ações do jovem guerreiro, Abeguar, da tribo Tupinambá (fase da
Colonização), que tinha a missão de conduzir o seu povo para uma terra sem mal; a descida
ao infernos; João Balaio (balaiada), que lutou contra a corrupção e a miséria; o personagem

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 83


que vivenciou a ditadura militar, e o personagem de um futuro fictício que luta pela preserva-
ção da água no planeta representam a perenidade do mito de Prometeu: aquele que rouba o
fogo para distribuir, isto é, todos os heróis do filme buscam a liberdade, a igualdade, os direi-
tos humanos e querem que todos tenham acesso a esse direito, mas nessa luta vivenciam o
inferno de dores e misérias; descem ao inferno como Orfheu. A perenidade do mito, segundo
Durand, é qualquer coisa que se mantém, é o aspecto sempiterno do mito; há um quadro
formal, ou seja, um esquema, que é preenchido por elementos próprios de cada cultura.

CONCLUSÃO

Os processos do ensino e da aprendizagem estão imbricados porque são como uma


via de mão dupla onde educador e educando cooperam para a aquisição de novos conhe-
cimentos, e, nessa caminhada, a metodologia torna-se um importante coadjuvante; mas
uma didática prática conforme apresenta Pura (1989), através da qual os alunos vivenciam
a teoria. Nessa linha didática, este projeto foi desenvolvido visando a algo mais: despertar
o imaginário do aluno. Para tanto, foi criada uma sequência didática por meio da qual o
educando pôde trabalhar de forma organizada e crescente o conteúdo abordado.
A escolha do conteúdo mitológico objetivou, conforme dito, despertar o imaginário do
aluno e o interesse pela leitura e pelas artes de um modo geral, em especial, o cinema que
é uma arte considerada subjetiva e, portanto, apropriada para dar o start nesse processo.
Este projeto educacional alcançou as metas estabelecidas, pois trouxe conteúdos novos
como por exemplo a metodologia durandiana, em particular, a mitocrítica, que fundamen-
tou o estudo dos mitos de Prometeu e de Orfheu, os quais puderam, de forma prática, ser
desvelados no filme “Uma história de amor e fúria”.
O estudo do mito em sala de aula cumpriu o seu propósito, pois despertou o alunado a
fazer uma leitura interpretativa que busca conhecer o legado cultural no contexto em que ele
vive, dando a oportunidade de compreender a sua realidade de uma maneira mais aprofun-
dada, pois o mito está investido numa cultura e numa consciência. O mito é a narrativa que
fundamenta cada cultura. Finalmente, A eficácia deste projeto foi devido a esse conteúdo
abordado e a forma como este foi abordado, isto é, por meio da sequência didática, elabo-
rada com o propósito de uma aprendizagem eficaz e prática.

REFERÊNCIAS
1. CARVALHO, José Carlos de Paula. Imaginário e mitodologia: hermenêutica dos símbolos e
estórias de vida. [S.l: s.n.], 1998

84 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


2. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do Imaginário: introdução à arquetipologia
geral. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

3. ________________. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia das imagens.


3.ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2004. (Trad. René Eve Levié)

4. _______________. A imagem simbólica. São Paulo: Cultrix, editora da Universidade de São


Paulo, 1988.

5. _______________. Mito, símbolo e mitodologia. Lisboa: Presença, 1982.

6. _______________. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

7. _______________. Mito e sociedade: a mitanálise e a sociologia das profundezas. Portugal:


A regra do Jogo, 1983.

8. GOMES, Eunice Simões Lins. A catástrofe e o imaginário dos sobreviventes: quando a


imaginação molda o social. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2011.

9. _________________. Em busca do mito. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2011.

10. JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1964.

11. _______________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

12. PITTA, Danielle P.R. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de Janeiro:
Atlântica Editora, 2005 (Coleção Filosofia).

13. PURA, Lúcia Oliver Martins. Didática teórica, didática prática: para além do confronto. (V.1).
São Paulo: Edições Loyola, 1989. 181 p.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 85


07
“ A religião e o contexto das
relações internacionais

Flávio Aparecido de Almeida

10.37885/200801035
RESUMO

A literatura sobre o papel das religiões no cenário internacional é ampla e se articula em


diferentes filões de pesquisa. Muito se tem discutido sobre as relações internacionais
e o papel da religião no mundo, já que ela é um fenômeno contribuinte da formação da
identidade de uma cultura. Este artigo busca realizar uma perspectiva histórica de como
as relações internacionais conseguem dialogar com a questão da religião, demonstrando
como a sociedade mundial tem enfrentado problemas no qual a religião tem sido foco de
discussões internacionais, de polêmicas e principalmente de violência, mostrando a neces-
sidade de uma reflexão mais aprofundada de seu papel e atuação no mundo globalizado.

Palavras-chave: Religião, Relações Internacionais, Violência.


INTRODUÇÃO

Ao pensar nas questões contemporâneas mais relevantes das relações internacionais,


é impossível ignorar as variadas manifestações de envolvimento religioso. Por exemplo, ao
longo das últimas quatro décadas, o conflito israelense-palestino tem sido crescentemente
formulado em termos de polarizações religiosas. Há 35 anos, a revolução iraniana (1978-
9) captou explosivamente a atenção mundial acerca de atores religiosos revolucionários.
Durante as décadas 70, 80 e 90, a Igreja católica Romana desempenhou um papel de lide-
rança encorajando transições democráticas em diversas partes do mundo, incluindo a Europa
meridional, a América Latina, o Leste europeu, a África subsaariana e o Leste asiático.
O ataque de 11 de setembro de 2001 às Torres Gêmeas e ao Pentágono, nos Estados
Unidos, os atentados de 11 de Março de 2004 contra o sistema ferroviário de Madrid, e o
ataque ao metrô de Londres em 07 de Julho de 2005, representaram uma série conectada
de violências, realizadas por terroristas islâmicos, contra governos e populações nos Estados
Unidos, Espanha e Reino Unido.
Além disso, diversos atores religiosos, há décadas, adotaram a visão de que o envol-
vimento na política é uma parte essencial de sua ética. Como exemplo, os grupos religiosos
envolvidos no movimento abolicionista antiescravista do século XIX, na luta pelos direitos
civis nos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970 e o movimento antiapartheid na África do Sul.
Há, além disso, três principais tipos de atores não-estatais, indivíduos, movimentos
e instituições. Entre os indivíduos religiosos podem-se observar diversas figuras, incluindo
aquelas já mencionadas (Desmond Tutu, Papa João Paulo II, Oscar Romero), assim como
Osama Bin Laden e Dalai Lama. Outros movimentos religiosos transnacionais, incluindo a
Al-Qaeda, a Irmandade Muçulmana e a Aliança Evangélica, também devem ser levados em
consideração. E por fim instituições religiosas transnacionais, como a Santa Sé/Vaticano e
a Igreja Católica Romana.
Enquanto os interesses e objetivos desses atores diferem indubitavelmente, o que eles
têm em comum é a habilidade e inclinação de agir nas relações internacionais de modo a
perseguir seus objetivos. Tipicamente, tais grupos empenham-se na transmissão e recepção
de trocas interpessoais e intergrupais de informações, ideias, dinheiro e/ou até mesmo de
pessoas. Isso tornou-se possível pelo fato de que tais atores religiosos habitam uma “reali-
dade social globalizante”, característica da globalização.
Trata-se de um ambiente no qual as barreiras à comunicação, anteriormente significa-
tivas, diminuíram consideravelmente ou até desapareceram como um todo. Estas circuns-
tâncias servem para facilitar redes nacionais, regionais, continentais e em alguns casos,
globais, de entidades que compartilham a mesma visão. Estas redes são, possivelmente,
importantes para o potencial de atores religiosos para que possam alcançar seus objetivos.

88 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Vários atores religiosos estão preocupados não apenas com interesses estritamente religiosos
ou espirituais, mas também especialmente com questões políticas, sociais e/ou econômicas
que, de forma isolada ou coletivamente, desafiam tanto a legitimidade quanto a autonomia
das esferas seculares primárias: o Estado, a sociedade política e a economia de mercado,
nos contextos domésticos e internacionais.
Em suma, por consequência dos vários desenvolvimentos empíricos em torno das
últimas três ou quatro décadas, a religião tornou-se um foco de atenção analítica tanto na
ciência política quanto nas relações internacionais, com atenção dirigida a atores esta-
tais e não estatais.
Diante deste fator o presente artigo busca realizar um diálogo entre as teorias das
relações internacionais e seu diálogo com a questão religiosa, realizando uma abordagem
sobre acontecimentos históricos e como a religião tem ocasionado violência em diversos
países do mundo, influenciando assim as relações internacionais.

DESCREVENDO AS RELIGIÕES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

As relações internacionais, como todas as relações políticas, nunca estiveram total-


mente separadas da religião. Todavia, a disciplina das relações internacionais “descobriu”
as religiões como um dos fatores que caracterizam o contexto da política mundial há cerca
de três décadas, adquirindo maior consciência sobre o tema após o desmoronamento dos
blocos nascidos da Guerra Fria, quando as identidades, culturas e as crenças retornaram
ao centro da análise política.
A partir da década de 90, e, sobretudo, após os acontecimentos do dia 11 de setembro
de 2001, a análise do fenômeno religioso no âmbito dos estudos de política internacional
vêm conquistando maior espaço.
Para Carleti e Ferreira (2016), tem sido cada vez mais notório, no âmbito das relações
internacionais, a discussão em torno da religião. De fato, é possível argumentar que está
ocorrendo uma “virada para a religião” nas relações internacionais. Diversas comunidades
epistêmicas passaram a debater as mais variadas influências que podem envolver a cons-
telação religiosa com relação à sociedade, à identidade cultural e à política internacional.
O tema adquire maior significado e polêmica, quando abordado desde uma categoria
histórica ampla, talvez contrariando as mais ousadas predições acerca do declínio dos sis-
temas religiosos e o triunfo da ciência e da secularização com o advento da modernidade.
Berlink (2011), afirma que em pleno século XXI, no entanto, o assim chamado mun-
do globalizado parece frustrar a tese weberiana, ou tantas outras panaceias científicas
que preteriram a esfera religiosa da sociedade e aclamaram, assim, a imanente realização
do sujeito moderno. Pelo menos estatisticamente falando, as religiões não declinaram; ao

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 89


contrário, o grau de aderência a sistemas de crenças religiosas e mesmo a existência de
conflitos supostamente motivados pela religião aumentaram substancialmente ecoando o
que Berger (2011) chamou de dessecularização1 do mundo.

As tentativas em proteger o modelo de secularização têm interpretado evi-


dências do florescimento da religiosidade em diversos eventos políticos con-
temporâneos no sentido de que estamos apenas testemunhando uma reação
fundamentalista e antimodernista contra a ciência, a industrialização e os va-
lores liberais ocidentais [...] O fervor religioso é frequentemente desprezado
como hostilidade étnica [...], tipicamente explicado como uma exceção isolada
às persistentes tendências da secularização e raramente reconhecido como
parte de um fenômeno global mais amplo (SAHLIYEH, 1990, p. 77).

Sahliyeh (1990) enfatiza que, quando o impacto da religião é considerado nas relações
internacionais, é frequentemente visto com relação a diversas concepções normativamente
“antimodernas”, tais como “fundamentalismo religioso” e “hostilidade étnica”. Restringir o
entendimento de atores religiosos nas relações internacionais a tal visão, no entanto, sig-
nifica que nos esquivamos de outras compreensões cujas preocupações podem ser bem
diferentes (SAHLIYEH, 1990).
Obviamente, as religiões não haviam de modo nenhum desaparecido da realidade
social, cultural e política do mundo, mas elas tinham sido confinadas a esfera privada ou de
irrelevância política, como consequência internacional do paradigma dominante da secula-
rização. De acordo com esta leitura da estrutura e da evolução social, a dimensão religiosa
teria sofrido o destino de uma crescente marginalização no âmbito doméstico da existência
das pessoas e na vida das comunidades políticas (GIUMBELLI, 2004).
Paralelo a isso, as ciências sociais estiveram por longo tempo ocupado em discutir as
causas e os efeitos da secularização nas várias manifestações da vida individual e coletiva
nas sociedades contemporâneas, enquanto as relações internacionais, confirmando sua
distinção em relação ao âmbito mais amplo da pesquisa e da reflexão sociológica e política,
substancialmente ignoraram as religiões no articular de diferentes paradigmas interpretativos
e analíticos (HERZ; HOFFMANN, 2004). Todavia, as relações internacionais rapidamente
recuperaram terreno, em concomitância com a tendência mais geral de revalorizar os ele-
mentos imateriais da política internacional.
Muitos identificam na revolução iraniana de 1979 o evento que produziu uma nova
consciência na análise internacional sobre a fundamental relevância das religiões no
cenário mundial.

1 Peter Berger apresenta um diagnóstico da situação das religiões na sociedade ocidental moderna, defendendo a tese de que os
processos infraestruturais concretos desta sociedade trouxeram como reflexo a “secularização”. Esta, por sua vez, não impediu,
como muitos argumentam, o impulso religioso que motivou os homens a aderirem à religião de forma intensa, dando base para o que
ele caracteriza como “dessecularização”; sendo o mundo de hoje, portanto, e com algumas exceções, tão impetuosamente religioso
quanto antes. BERGER, Peter. A Dessecularização do Mundo: uma visão global. In: Religião e Sociedade, vol. 21, nº 1, CER/ISER,
Rio de Janeiro, p. 10, 2000.

90 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Segundo Nogueira e Messari (2005, p. 214):

A isso se pode acrescentar uma substancial subestimação do elemento religio-


so nas grandes questões de política internacional a partir do fim da Segunda
Guerra Mundial; por exemplo, a religião não é considerada relevante para a
análise do enfrentamento estratégico da Guerra Fria, preferindo colocar a ên-
fase nas temáticas político-ideológicas, militares e de segurança stricto sensu.

No extremo oposto, colocam-se as leituras da história contemporânea que fazem ques-


tão de enfatizar, além do necessário, os nexos “causais” entre a religião e os eventos da
política mundial: um exemplo de tal tendência é a tese que faz remontar as causas da queda
do Muro de Berlim e da dissolução da União Soviética à influência (certamente determinante,
mas não exclusiva de um papa polonês (João Paulo II) cuja presença no cenário europeu
teria tornado insustentável o socialismo real nos países do Leste europeu (DELFINO, 2010)).
Afirma Soares (2012), que o estudo da influência das religiões nas relações internacio-
nais é definitivamente considerado um sólido campo de pesquisa internacional. A partir dos
trabalhos, que se tornaram outros tantos clássicos, de Kepel, Casanova, Berger, as religiões
foram contextualizadas, de acordo com a perspectiva dos diferentes autores, em termos de
“retorno” do exílio, “vingança”, “renascimento”, não apenas como a “dimensão perdida” na
arte do governo e enquanto virada pós-secular de sistemas políticos internos, mas também,
de forma fundamental, na análise da ordem internacional e da nova luta pela identidade e
o reconhecimento na arena global.
A escassa atenção dedicada no passado por parte da disciplina das relações internacio-
nais à fenomenologia das religiões em âmbito internacional deve-se substancialmente a dois
elementos; um, de caráter ideológico e outro, de natureza epistemológica (SOARES, 2012).
Em primeiro lugar, a narração central sobre a fundação do Estado moderno enumera
a religião entre os fatores desagregadores, irracionais e potencialmente destrutivos da con-
vivência pacífica em âmbito nacional. Deste ponto de vista as religiões são consideradas
fontes potenciais de conflito também entre as comunidades políticas soberanas e, portanto,
representam parte do problema e não certamente a solução em relação à desordem inter-
nacional. Esta narração estruturalmente negativa do papel das religiões em relação aos
temas da paz e da guerra, reemergiu prepotentemente no início do século XXI através da
associação do fundamentalismo religioso, sobretudo de natureza islâmica, com o terrorismo
e a violência arbitrária (WALTZ, 2004).
Por sua vez, Waltz (2012), propõe três diferentes níveis de análise ou “imagens”, para
o estudo dos fatores considerados fundamentais para as relações internacionais: o nível
individual ou, mais em geral, conexo à controversa noção da natureza humana e das suas
inclinações prevalentes; o nível estatal ou social que leva em consideração o papel dos

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 91


atores e dos processos políticos internos visando à configuração da política externa dos
vários países; o nível propriamente sistêmico ou do contexto estrutural no âmbito do qual se
desenvolvem as relações entre os Estados compreendidos como unidades predominantes
senão exclusivas da política internacional. Em tal esquema analítico, a religião pode talvez
encontrar um tipo de colocação somente no primeiro nível (individual) ou no segundo (so-
cietário ou estatal), enquanto não aparece relevante do ponto de vista do arranjo estrutural
do sistema internacional.
Em suma, o fenômeno religioso representa hoje um aspecto do processo, em ato e
nível planetário, de redefinição identitária que vê envolvidos os indivíduos como as comu-
nidades, as instituições e, mais em geral, as diferentes estruturas sociais. Ao redor de tais
identidades culturais e religiosas se verificam fenômenos de mobilização de massa e se
geram situações de crise; daqui nasce a exigência de novas categorias analíticas, inicial-
mente, para “decifrar” tais desafios.

RELIGIÃO E POLÍTICA EXTERNA

A religião se destacou a partir dos anos 90 do século XX, como fator relevante e por
vezes decisivo para a política externa de países diversos enquanto sua capacidade, colo-
cação geopolítica e modalidade de presença no cenário internacional. Em primeiro lugar,
o papel dos atores políticos internos (estatais e governamentais, mas também de partido
e sociais) que elaboram sua agenda “externa” a partir de princípios religiosos cresceu em
termos de influência e de agenda setting (teoria do agendamento) (SOARES, 2012). Isto
ocorreu, por exemplo, nos países que antes de 1989 faziam parte do Pacto de Varsóvia,
a partir justamente da Rússia e da renovada influência da Igreja Ortodoxa; mas também a
mesma pertença da Polônia à União Europeia foi influenciada pelo retorno do catolicismo
na vida política nacional (FOX, 2012).
No Irã as escolhas fundamentais de política externa não podem prescindir da aprovação
do Guia Supremo, enquanto em países de lealdade dividida como no Líbano o papel das for-
mações político-religiosas organizadas como Hezbollah, Amal, os partidos Cristiano-maronitas
(as Falanges e as Forças Libanesas) e daqueles sunitas (como a “Corrente do Futuro” de
Saad Hariri) torna complexa não apenas a governança interna, mas também a colocação
do país em um cenário médio-oriental de crise, desagregação, conflitos (OLIVEIRA, 2001).
Para Da Silva e Peres (2012), deve-se à presença de Hamas na Faixa de Gaza, por
exemplo, a reconceitualização do confronto israelense-palestiniano (essencialmente um
conflito de natureza territorial e política) em termos de oposição entre islâmicos e judeus,
enquanto até o Daesh, que persegue o objetivo imperialista da reconstituição de um Grande
Califado a partir do Iraque e Síria, visa a fazer das fraturas religiosas com os xiitas e os

92 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


“cruzados” cristãos o pretexto de uma guerra que possui como finalidade abater e redesenhar
os confins políticos médio-orientais, e não certo difundir o Islã como “verdadeira” religião.
Mas, em geral, é já evidente a função de orientação também da política externa dos
novos movimentos islâmicos na grande maioria dos países árabes. Pode-se pensar, parti-
cularmente, no papel assumido pelos “Irmãos Muçulmanos” no Egito e pelo partido Ennahda
na Tunísia; ampliando a perspectiva, acrescenta-se o papel do movimento nacional-reli-
gioso israelense na colonização dos territórios na Palestina; o vasto confronto/choque no
Oriente Médio e no Golfo Pérsico entre sunitas e xiitas; o longo período de governo do
partido de inspiração islâmica “Justiça e Desenvolvimento” na Turquia e o declínio da polí-
tica “kemalista” (fortemente laicista); a ascensão do nacionalismo hindu no subcontinente
indiano (NOÉ, 2004).
Os países europeus e ocidentais não estão imunes à influência de atores internos
(políticos e não políticos) na escolha das diretrizes da política externa, especialmente em
relação a grandes âmbitos regionais, como aquele médio-oriental. Se é obvio e um tanto
descontado o caso da Itália (também depois do desaparecimento da “democracia cristã”),
pelo interesse de várias formações políticas a alimentar a polarização interna e internacional
sobre a questão da defesa dos cristãos perseguidos no Oriente Médio, na África, na Ásia,
menos evidente é a “virada” de alguns países historicamente ancorados na tradição da
Reforma, como Holanda e Dinamarca, sem contar as claras intenções polêmicas e identi-
tárias dos fautores da laïcité na França, entendida essencialmente em termos seculares e
racionalistas e, portanto, em oposição às visões “compreensivas” do mundo marcadas por
princípios religiosos, que visam desempenhar uma função visível e explícita também no
espaço público (DA SILVA; PERES, 2013).
O Brasil pode ser visto nesse cenário como um país que continua sendo influenciado
pela religiosidade protestante norte-americana. Claramente se percebe a fundamentação
política se utilizando dos princípios religiosos, nesse caso o cristianismo, com interesse
extremamente voltado para a manutenção de governos que contribuam para que, via reli-
giosidade, os Estados Unidos consigam se fazer presente em questões de cunho particular
da nação brasileira. Este fato pode ser comprovado na matéria jornalística intitulada “Os
pastores de Trump chegam à Brasília de Bolsonaro”, publicada pelas jornalistas investiga-
tivas, Andrea Dip e Natalia Viana, em Agosto de 2019. O Capitol Ministries (Ministério do
Capitólio), “símbolo do Congresso americano, foi fundado por Ralph Drollinger na Califórnia,
em 1996.”2 A matéria não deixa dúvida quanto ao poderio que a religião sustenta, especial-
mente no que diz respeito às relações internacionais.

2 Disponível em: <<https://apublica.org/2019/08/os-pastores-de-trump-chegam-a-brasilia-de-bolsonaro/.acesso em 05.Set.2019.>>


Sugere-se que toda a matéria seja lida.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 93


Em suma, o fenômeno religioso representa hoje um aspecto do processo, em ato e nível
planetário, de redefinição identitária que vê envolvidos os indivíduos como as comunidades,
as instituições e as diferentes estruturas sociais. Ao redor de tais identidades culturais e re-
ligiosas se verificam fenômenos de mobilização de massa criando situações de crise; daqui
nasce a exigência de novas categorias analíticas, inicialmente, para “decifrar” tais desafios.

RELIGIÕES E VIOLÊNCIA

Os atores políticos transnacionais religiosos, para o bem ou para mal, influenciam no-
toriamente a ordem internacional, e muitas vezes atuam a partir de bases nacionais progres-
sivamente globalizadas. A relevância de tais atores no plano transnacional é caracterizada
por um acentuado dualismo e, em particular, sua dinâmica se movimenta nas duas direções
opostas da cooperação ou do conflito.
Segundo Oliveira (2001, p. 100):

Por um lado, acredita-se que o advento das religiões transnacionais possa levar
à criação de identidades religiosas globais que podem favorecer a intensifica-
ção do diálogo inter-religioso implicando um maior compromisso das religiões
sobre algumas questões cruciais, como o desenvolvimento, a resolução de
conflitos, a justiça de transição.

Por outro lado, teme-se que a progressiva globalização das crenças possa produzir
uma competição inter-religiosa entre membros de várias denominações e crenças, sem
mencionar os fenômenos dramáticos de terrorismo transnacional camuflados por motivações
supostamente religiosas.
O fundamentalismo é outro elemento de risco em sua relação com as instituições. As cha-
madas religions as religiões fortes ou fortíssimas – como se auto concebem todos os fun-
damentalismos – assumem uma preponderância indevida quando operam no âmbito de
“Estados fracos”, ou seja, quando o contexto político-institucional ou a cultura política são
extremamente instáveis ou pouco enraizados no tecido social (OLIVEIRA, 2001).
As religiões produzem e motivam extremistas religiosos violentos, mas também “mili-
tantes da paz” que operam fundamentados em convicções religiosas articuladas em termos
de reconciliação e de perdão, e no contexto de programas de peacebuilding estrutural.
É, todavia, objeto de discussão se tal ambivalência em si mesma é capaz de fazer
com que se torne cada vez mais popular o componente da “violência sagrada” se não é
mais do que a busca do poder a ser intrinsecamente ambivalente, sem que se tenha algum
escrúpulo em usar a religião, entre os muitos outros fatores, como pretexto ou como meca-
nismo de legitimação.

94 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


A associação da religião à violência anômica e sectária, é uma das grandes mistifica-
ções trans-históricas relacionadas ao advento de novas formas de dominação. A história
da criação e afirmação do Estado-nação na Europa é, a este respeito, bastante ilustrativa.
A passagem da idade medieval para a idade moderna foi um processo longo e com-
plexo, e, de modo algum, foi uma transição da idade da violência à idade da paz perpétua,
apesar de as religiões terem perdido grande parte de sua influência política na vida públi-
ca. O que realmente aconteceu foi uma “migração” do sagrado do âmbito das igrejas inter-
nacionais ao do Estado-nação; a suposta separação entre Estado e religião, na realidade,
pode ser lida em termos de um processo de apropriação do sagrado por parte da política
nacional e nacionalista.
Conforme Pinheiro (2008, p.121):

Em política externa, o mito da violência religiosa serve hoje para construir e


apoiar o ‘’outro” não ocidental e justificar, por vezes, o recurso à violência contra
ele. A motivação de fundo tem a ver não tanto com a religiosidade de outros
povos, mas com a dimensão pública que eles pretendem atribuir à religião. É
verdade que tal declinação assume em determinadas circunstâncias, o caráter
da intolerância e da negação do pluralismo.

No entanto, o argumento útil para uma política externa agressiva é simplesmente que
se deve confrontar com sociedades caracterizadas por uma organização política apresentada
como inerentemente violenta e irracional, e, portanto, isso não deixaria qualquer margem de
debate e diálogo construtivo: a única “resposta” seria a guerra. A verdade é que, na metade
da segunda década do século XXI, é difícil identificar as características exatas de um sistema
internacional que esteja longe das feições de ordem.
O certo é que a longa transição que começou com o fim da Guerra Fria não só ainda
não atingiu a maturidade como também está assumindo os traços da confusão global. Torna-
se cada vez mais evidente que as forças econômicas da globalização se confrontam com
aquelas bem mais antigas e profundas das culturas e identidades.
A globalização, de fato, não tem nada a ver com a universalidade; é unilateral, caracte-
rizada no sentido geocultural como emanação da época (e das áreas) euro-atlântica e, como
tal, estruturalmente hegemônica. Em algumas áreas do mundo, e em particular no Oriente
Médio, se manifestam fatores de instabilidade que vão muito além do conceito de choque
de civilizações. Em muitos casos, um radicalismo bruto se junta às práticas de violência e
de intolerância, que pareciam relegadas aos arquivos da história.
Neste contexto, já por si mesmo crítico, o erro mais grave que se poderia cometer seria
aquele de cair na armadilha preparada pelos fundamentalistas violentos, que têm todo o
interesse em radicalizar a oposição ao Ocidente em termos de guerra religiosa. Infelizmente,
famosos intelectuais ocidentais exortaram a opinião pública europeia a tomar consciência

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 95


desta situação de beligerância de fundo religioso e sustentaram que não seria uma novidade,
dado que guerras religiosas pontuam toda a história (SOARES, 2012).
Conforme afirma Pinheiro (2008), na verdade, é precisamente a história que ensina que
as guerras mais devastadoras e os conflitos mais sangrentos ocorreram por razões que não
têm nada a ver com a religião. Seria suficiente lembrar, por exemplo, que a Primeira Guerra
Mundial – que em 2014 foi infelizmente “comemorada” a um século de seu início – certa-
mente não tinha motivações de caráter religioso (foi um confronto entre nações “cristãs”),
nem tinha motivações religiosas a Segunda Guerra Mundial.
Mesmo o conflito israelense-palestino não surge a partir de raízes religiosas, sendo
essencialmente – até recentemente – uma questão de território e soberania. As famosas
“guerras religiosas”, que, de acordo com a narrativa liberal-democrata, se alastraram na
Europa, no século XVII, foram, na verdade, causadas por objetivos expansionistas, ques-
tões dinásticas e pelo próprio processo de formação do Estado moderno, o que, longe de
ter impedido a guerra, ao contrário, fez com que ela fosse absoluta e devastadora. Não foi
a religião que inventou a arma atômica, mas a política contemporânea (VOEGELIN, 2012).
O militarismo, a hegemonia econômica, a intolerância em todos os níveis são causas de
conflito juntamente com tantos outros fatores sociais e culturais dos quais a religião constitui
apenas uma componente. Até mesmo as organizações pan-islamistas que se inspiram em
distopias anti-históricas (como aquela do Grande Califado) perseguem não tanto o triunfo
do Islã enquanto tal (ou uma concepção falsificada e instrumental de tal religião), mas a
formação de uma entidade política de natureza estatal ou até mesmo de tratos vagamente
imperiais como o califado (VOEGELIN, 2012).
Paradoxalmente, sua absoluta e dogmática oposição ao Ocidente se funda na aceitação
distorcida de uma das instituições políticas inventadas justamente no mundo euro-atlântico,
isto é o Estado moderno e o decorrente aparato de poder, para não falar dos instrumentos
tradicionais de todos os “tronos e dominações” de todo tempo e de cada canto do mundo
como o genocídio, a propaganda e até o uso cínico dos instrumentos de comunicação visual
e da rede global. Tudo isto tem muito pouco a ver com a religião e, ao contrário, tem muito
a ver com as habituais receitas do domínio de oligarquias e da predominância de estruturas
marcadas pela cultura bélica.
Os mecanismos intencionalmente aterrorizantes das horripilantes execuções de inocen-
tes ou atos de terrorismo contra civis inermes responde a uma lógica de controle social e da
opinião, como tem demonstrado Foucault em “Vigiar e punir”: “quem usa tais mecanismos
de psicologia social busca a submissão alheia e um governo fundado na intimidação e na
ameaça” (FOUCAULT , 1997, p. 57).

96 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Neste caso se deveria falar não tanto de guerras de religião, mas concretamente, realis-
ticamente e prosaicamente, de religião da guerra. São de fato a política de potência, a sede
de conquistas territoriais e o exercício de poder sem escrúpulos os agentes motivacionais
das supostas guerras de religião.
Não há sentido em falar de choque de civilizações (muitas vezes misturado a culturas
e a religiões que são outra coisa); na verdade, se deveria reconhecer a existência de um
choque no âmbito das civilizações entre aqueles que entendem a identidade no sentido
exclusivista e agressivo e quanto ao contrário consideram que ela é sempre o resultado de
encontros, confrontos, interações, trocas e recíprocas “contaminações”.
O intelectual de origem libanês Maalouf escreveu alguns anos atrás um livro cujo ar-
gumento fundamental eram as assim chamadas “identidades assassinas”, justamente para
sublinhar o desvio violento que as referências às tradições, às culturas e às religiões podem
assumir se não são mediadas num contexto de pluralismo e de diálogo entre as diferenças
(NOGUEIRA, 2005).
Os atentados, os bombardeios, as destruições que atacam as Igrejas cristãs de cada
dominação, Sinagogas, Mesquitas sunitas e xiitas, Templos budistas e sikh, em qualquer
lugar em que se encontrem, são a confirmação de que se trata não de guerras de religião,
mas da antirreligião por excelência, visto que as verdadeiras religiões se preocupam com a
humanidade e a harmonia com a criação.
Em suma, continuar a falar de guerras de religião como um fenômeno reprovável
pareceria absolver implicitamente outras tipologias de guerras, que, ao contrário, seriam
racionais e de acordo com a modernidade, como se a guerra, enquanto tal, não fosse, por
si mesma, sem adjetivação nenhuma, um resto da história, uma prática bárbara a ser aban-
donada, uma “instituição” que demonstrou ser falimentar se pensada como um praticável
instrumento político ou social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crescente presença das religiões no cenário internacional pode ser reconduzida, em


última instância, a dois processos paralelos e entrecruzados. Em primeiro lugar, desde a
segunda metade do século XX, as religiões buscaram redefinir sua relação com o Estado,
com consequências também sobre a identidade internacional deste último e, portanto, na
sua maneira de “habitar” o sistema internacional. Este processo levou, na maioria dos casos,
a uma relação de “independência consensual”. A casuística está todavia articulada, e inclui,
por exemplo, situações em que a religião se libertou de uma preexistente integração con-
flitual ou forçada (União Soviética) procedendo em direção a uma reintegração consensual

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 97


(Rússia); ou transitando de uma separação conflituosa (Irã do Xá) em direção a uma nova
integração consensual (Irã do Khomeini).
Em geral, as religiões formularam de forma incisiva sua “teologia política”, ou seja, o
conceito de poder e de sua legitimidade, a ideia de uma separação ou sobreposição entre
autoridade política e autoridade religiosa, a relação da fé com questões de justiça social e
de ética pública, a justificação ou estigmatização da violência política interna e internacio-
nal. Em segundo lugar, a relação da religião com o Estado reflete as transformações sis-
têmicas no contexto internacional, que atribuem um papel crescente aos processos e aos
atores transnacionais.
As religiões, em geral, reforçaram a sua dimensão transfronteiriça, inserindo-se no
cenário internacional em termos de atividades, estruturas e narrativas transnacional e, em
alguns casos, universais, experimentando, assim, uma forma adicional de independência
institucional e funcional, desta vez da própria forma-estado.
O último desafio das religiões, que se tornaram, talvez como nunca aconteceu antes na
história política, verdadeiramente “mundiais”, é, talvez, aquele de atuar como uma terceira
forma de independência consensual, que, desta vez, requer uma relativização de sua orga-
nicidade em relação a civilizações e culturas específicas, para desempenhar, no respeito das
pluralidades das crenças, uma nova função de conexão e de integração, assumindo maior
consciência de seu alcance universal que englobe acima de tudo a paz.

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vol. 21, n. 1, p. 9-24, 2000. Disponível em: <http://www.iser.org.br/ religiaoesociedade/pdf/
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Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 99


08
“ A teologia e o sofrimento no
contexto pós-moderno: pistas
para o aconselhamento pastoral

Aíla Luzia Pinheiro de Andrade


UNICAP

10.37885/201001689
RESUMO

O problema do sofrimento humano representou um grande desafio para o pensa- mento


bíblico. No Antigo Testamento, foi o movimento sapiencial que, de modo privilegia- do,
debruçou-se sobre essa questão. No Novo Testamento, os seguidores de Cristo trataram
de enfrentar teologicamente o problema da cruz e do martírio. Na atualidade, a prática
do aconselhamento pastoral tem como desafio ajudar pessoas a encontrarem um sen-
tido para viver e para continuar crendo, mesmo quando a vida parece não ter qualquer
sentido e a dúvida se sobrepõe à fé. Neste artigo, partindo dos dados bíblicos e da
teologia prática, su- gerimos algumas pistas para o aconselhamento pastoral a pessoas
em sofrimento inevitável.

Palavras-chave: Aconselhamento, Sofrimento, Jó, Filipenses, Kénosis.


INTRODUÇÃO

A pós-modernidade tem se caracterizado pela efemeridade e fugacidade das expe-


riências existenciais. No entanto, muitas pessoas vivenciam experiências duradouras de
sofrimentos inevitáveis e de vazio de sentido na vida. Cresce assustadoramente o número
de casais que têm seus filhos jovens mortos pela ação da violência, do uso do álcool e das
drogas ou de uma doença incurável. Isso significa que, apesar dos avanços das ciências e
do progresso atingidos pela sociedade, o ser humano pós-moderno não deixou de experi-
mentar os mais diversos tipos de sofrimento, ao contrário, novas formas de sofrimento estão
sendo vivenciadas em nossa época, para as quais as ciências não encontram soluções.
A era das novas tecnologias e dos avanços científicos em todas as áreas do conhe-
cimento enfrenta o dilema paradoxal do empobrecimento das relações, da experiência do
vazio existencial, da busca pelo suicídio e, ao mesmo tempo, de uma volta ao sagrado des-
vinculado das instituições religiosas. Cada vez mais as pessoas se fecham e se isolam em
relações virtuais nas redes sociais. Com maior frequência, são absorvidas pelas múltiplas
possibilidades de respostas rápidas.
A ideologia pós-moderna tenta mascarar todas as experiências existenciais como
fugazes e efêmeras, no entanto o problema do sofrimento humano não é vivenciado como
emoção passageira e superficial. Diante dos desafios impostos pelo processo da globalização
cultural e da velocidade tecnológica do mundo virtual, o problema do sofrimento inevitável é
uma demanda que exige uma atitude de clareza e de discernimento, válida para as pessoas
de todos os segmentos culturais e religiosos da sociedade atual.
Cabe àqueles que exercem o pastoreio nas igrejas ou às pessoas que tenham alguma
função de aconselhar grupos, indivíduos ou famílias a difícil tarefa de mostrar para quem
vivencia um sofrimento inevitável que, mesmo não sendo possível encontrar uma solução
para suas dores, a vida e a fé merecem uma chance, pois, apesar de tudo, ainda há um
sentido que transcende a experiência humana em sua totalidade. Tem aumentado o nú-
mero de pessoas que buscam as igrejas para um aconselhamento pastoral. Isso significa
um movimento na contramão do que ocorreu no início do século XX, quando as pessoas
passaram a recorrer às clínicas em busca de terapias para conseguir uma solução para
seus sofrimentos, culpas e frustrações. Apesar de se reconhecer o valor das terapias psi-
cológicas, a teologia prática admite que uma assistência pastoral deva ser providenciada,
no âmbito das igrejas, às vítimas de tragédias existenciais, que se destine, principalmente,
a ajudar pessoas portadoras de sofrimento inevitável a suportar suas mazelas. Essa as-
sistência pastoral, entretanto, não implica uma espécie de rivalidade entre as funções de
pastor/a e de terapeuta. O aconselhamento pastoral, por sua função específica, pode, em

102 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


determinados casos e em condições bem precisas, ser ajudado, mas nunca substituído por
formas de análise ou de ajuda psicológica.
O aconselhamento pastoral tem como função específica auxiliar as pessoas na in-
tensificação de suas relações com Deus. Quando o aconselhamento pastoral visa ajudar
a pessoa que sofre, trata-se de levá-la a descobrir que, mesmo quando todo o sofrimento,
todas as lutas, todos os problemas parecem não ter qualquer sentido, ainda assim há um
sentido perante o qual até mesmo a mais absurda tragédia humana se torna compreensível.1
A teologia entra nesse cenário como reflexão dos fundamentos e do exercício do acon-
selhamento pastoral, no contexto enigmático da pós-modernidade, acreditando que o sentido
último da vida humana se encontra na relação que o “Eu” estabelece com o “Tu” (Deus). Tal
relação, em última instância, possibilita que o aconselhamento pastoral apresente a “vida
plena” (Jo 10.10)2 apesar de todo sofrimento. Vida que, acima de tudo, somente é plena
quando é cheia de sentido, apesar de todo sofrimento.
Portanto a teologia só poderá oferecer uma reflexão consistente para a prática do acon-
selhamento pastoral se estiver voltada para os fundamentos de si mesma, a saber, de uma
leitura acurada das sagradas Escrituras, onde se mostra, de modo privilegiado, a relação
entre Deus e o ser humano. E se quiser fazer sentido para os sofredores de hoje, a reflexão
teológica deve ter, igualmente, um olhar atento direcionado ao contexto atual.

RECORRENDO AO MOVIMENTO SAPIENCIAL DO ANTIGO TESTAMENTO

O conjunto dos livros que sistematizam a sabedoria de Israel constantemente se de-


tém nas questões da vida prática, as quais poderiam desviar a humanidade do “temor do
Senhor”, ou seja, da reverência a Deus, fundamento de toda a sabedoria no sentido bíblico
(Pv 1.7; 9.10; Sl 111.10). Dentre essas questões, o livro de Jó enfoca o sofrimento não de
forma abstrata, e sim dentro do horizonte das situações-limite do ser humano. O autor bíbli-
co, em vez de fazer especulações sobre o sofrimento em geral, o considera a partir de um
exemplo bem significativo, o sofredor Jó, figura da dor do gênero humano. Jó é um homem
que renuncia a pôr sua confiança nos bens terre- nos, que confessa sua própria miséria (Jó
1.21); sofre inocentemente a incompreensão dos amigos e da esposa (Jó 2.9), mas segue
sempre à espera do Senhor, apesar do sofrimento.

1 Cf. FRANKL, Viktor. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 25. ed. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sino-
dal, 2008. p. 161.
2 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. Doravante será citado apenas o livro bíblico com o capítulo e o versículo.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 103


O atual modo de compreender o sofrimento pode ser avaliado e corrigido por uma
leitura atenta do livro de Jó. No início do livro, apresentas-nos um homem justo com o qual
acontecem os diversos tipos de eventos que, conforme aquela época, podiam trazer sofri-
mentos para as pessoas (1.13-19; 2.7-10). Após um breve relato em forma de crônica nos
dois primeiros capítulos, o livro alterna para uma longa parte poética (3.1-42.6), na qual os
amigos de Jó se pronunciam a respeito do sofrimento do protagonista. Os amigos, em três
ciclos de discursos, pronunciam suas considerações teológicas sobre o sofrimento de Jó,
fundamentando seus discursos em um esquema teológico ao qual pretendem submeter até
mesmo Deus. A teologia dos amigos de Jó parte de um princípio hermenêutico regido pela
bipolaridade justiça-bênção e injustiça-castigo. Isso se constitui como uma chave de leitura
bem limitada a respeito da realidade e tem por fundamento uma visão mecanicista da vida e
da relação entre Deus e o ser humano. Supõe-se que as ações humanas desencadeariam
uma reação de Deus para a felicidade ou para a infelicidade. O futuro do ser humano depen-
deria da submissão a essa ordem da qual nem Deus poderia fugir.3 Esse tipo de cosmovisão
não deixa espaço para as liberdades nem humana nem divina.
O protagonista Jó dá voz a todo sofredor e põe em xeque a forma como seus amigos
entendem o sofrimento, pois a teologia deles não dá conta dos diversos aspectos da realida-
de nem cede lugar à gratuidade de Deus. Os discursos do personagem Jó têm por objetivo
questionar os pressupostos das escolas sapienciais daquela época com relação à questão
do sofrimento humano.4 Os versículos finais do livro de Jó (42.10-16) são considerados um
acréscimo5 por boa parte dos biblistas e destoam visivelmente do texto poético. É extrema-
mente grosseira para a experiência da paternidade e da maternidade a linguagem materialista
segundo a qual o nascimento de um número dobrado de filhos pagaria com juros a falta dos
filhos que morreram, como se a perda de um filho fosse apenas um prejuízo, como perder
camelos e rebanhos.
O autor bíblico não tem como propósito nos dar a causa ou a resposta para o sofrimento,
pois seu livro termina com o protagonista humildemente admitindo seu pouco conhecimento
sobre Deus e que a experiência pessoal foi mais importante para seu amadurecimento na
fé que a obtenção das respostas que ele exigia (Jó 42.3-5).
A atualidade do livro de Jó está, principalmente, em nos orientar em algumas questões:
Qual deve ser o papel de quem ministra o aconselhamento pastoral a quem está vivenciando
sofrimento intenso e inevitável e quando a fatalidade parece se impor sobre a fé? Como se
deve falar sobre o Deus da vida para quem tem uma doença incurável e para os pais que
perderam crianças ou jovens vítimas dessas enfermidades ou da violência ou das drogas?

3 Cf. ROSSI, Luiz A. Solano. A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó. São Paulo: Paulus, 2005.
4 Cf. PIXLEY, J. Jó ou o diálogo sobre a razão teológica. Perspectiva teológica, Belo Horizonte, v. 16, n. 40, p. 333-343, 1984.
5 Cf. GUTIERREZ, G. Falar de Deus a partir do sofrimento do inocente: uma refl exão sobre o livro de Jó. Petrópolis: Vozes, 1987. p.
23.

104 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


APRENDENDO COM O NOVO TESTAMENTO

O Antigo Testamento mostra-nos a diferença da religião de Israel em relação às demais


experiências religiosas nas civilizações circunvizinhas. Essa diferença consiste primeiramente
em saber que Deus toma a iniciativa, vem ao encontro do ser humano. O Novo Testamento
mostra quão profundamente o Deus de Israel ama o ser humano a ponto de estar disposto
até mesmo que seu Filho sofra a morte de cruz para que a humanidade possa ter a vida
em plenitude (cf. Jo 10.10).
A morte de Jesus na cruz foi o grande desafio teológico para os escritores do Novo
Testamento. Paulo e os evangelistas tiveram que elaborar uma teologia capaz de mostrar
como o messias glorioso, esperado pelos judeus, pode sofrer uma morte na cruz sem
que houvesse contradição com as Escrituras que declaravam ser isso uma maldição (Dt
21.23). A teologia paulina encontrou no verbo grego kenóo (Fl 2.7), que significa “privar-se
de poder” ou “abdicar do que possui”, “esvaziar”6, uma definição da totalidade da vida de
Jesus. O Filho de Deus renunciou aos privilégios da condição divina ao entrar nas esferas
da história e da criação, assumindo todas as limitações desses âmbitos, até as últimas con-
sequências, inclusive a morte terrível na cruz.
O hino cristológico de Fl 2.6-11, conhecido como hino da Kénosis, descreve a vida de
Jesus, a qual se identifica como uma vida descentrada de si, como um modo de ser a serviço
do outro e em obediência total à vontade de Deus. Cristo esvaziou-se; sendo de condição
divina, renunciou aos privilégios dessa condição e assumiu uma existência humana como
servo, morrendo na cruz. Por isso Deus o exaltou acima de tudo e todos para que ele reine
sobre todas as realidades.
Jesus viveu a vida humana, esvaziando-se, renunciando totalmente a qualquer interesse
pessoal. A kénosis não é um aspecto pontual, uma etapa passageira na vida de Jesus, que
se identifica apenas com sua paixão e morte. Ao contrário, a kénosis é um modo de ser, é
algo que afeta a totalidade da existência de Jesus.
Após a ressurreição, o kenótico nos foi revelado como exaltado. Portanto não podemos
separar o kenótico do ressuscitado. Com a ressurreição, revela-se uma condição divina que
a condição humana de servo não deixava transparecer. Sendo a kénosis não apenas um
aspecto, mas a totalidade da vida de Jesus, ela se torna o paradigma para a práxis cristã e
o critério para a reflexão teológica. Os cristãos devem ter o mesmo modo de viver do Cristo
(Fl 2.5), pois a eles foi dada a graça de sofrer com Cristo, de carregar a cruz e de ser asso-
ciados ao ressuscitado em sua glória.

6 Cf. LATTKE, Michael. In: BALZ, Horst; SCHNEIDER, Gerhard (Eds.). Diccionario Exegético del Nuevo Testamento. Salamanca: Sí-
gueme, 2005. Tomo I, c. 2.295-2.297.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 105


Por causa da comunhão indissolúvel entre Jesus e o Pai é que a kénosis diz algo
a respeito de Deus em si mesmo como amor, como descentramento de si em direção
ao outro. A kénosis revela a verdadeira intimidade do ser de Deus, uma comunidade de
amor.7 A kénosis de Jesus torna acessível o mistério antes escondido em Deus. Assim, por
meio da vida kenótica de Jesus se revela que o esvaziamento tem suas raízes no Pai que
se doa ao Filho e no Filho que se entrega sem reservas nas mãos do Pai. A kénosis não
é apenas uma maneira de ser humano, mas a maneira de ser de Deus.8 Dessa forma, o
conceito de Deus torna-se inseparável da realidade kenótica, o que significa um duro golpe
na maioria de nossas concepções religiosas.
A kénosis realiza um caminho inverso ao do primeiro Adão, o qual tentou usurpar os
privilégios divinos, exaltando a si mesmo na ambição de ser igual a Deus. Cristo, ao contrário
de Adão, não se apegou aos privilégios de sua divindade, que lhe pertencia por natureza e
direito, mas renunciou a esses para redimir o ser humano do pecado. O esvaziamento de
Cristo encontra sua expressão máxima na humilhação da crucificação. Mas é justamente
a condição de crucificado que lhe dá o direito de triunfar sobre a morte. E com a ascensão
Cristo torna-se o cabeça de tudo que existe e seu nome é exaltado em poder, perante o qual
todo joelho se dobra e toda língua confessa seu senhorio (Fl 2.10). Em sua ascensão Cristo
eleva a dignidade humana ao mais alto nível (Ef 1.3). A exaltação do Cristo é a resposta do
Pai a todas as vítimas, a todos os mártires, a todo sofrimento e lágrima derramada. A morte,
o pecado e a dor não têm a última palavra na vida humana. A última palavra é de Deus, que
dignifica a humanidade através de Cristo.9

RELENDO A PATRÍSTICA

Durante séculos a teologia deu muito enfoque à apatheia de Deus. Embora Clemente
de Alexandria e Gregório de Nissa tenham se dedicado a esse tema, a patrística não teve
a intenção de negar a compaixão divina pelo sofrimento humano.10 Quando a patrística
mencionava a apatheia de Deus, aqueles teólogos dos primórdios do cristianismo estavam
empenhados em confrontar o antropomorfismo das mitologias pagãs e implantar, na men-
talidade cristã em vigor, que Deus não passa da potência ao ato, ou seja, que em Deus não

7 Cf. XAVIER, Donizete J. A teologia da Santíssima Trindade: a kénosis das Pessoas Divinas como manifestação do Amor e da Mise-
ricórdia. São Paulo: Palavra e Prece, 2005. p. 90.
8 Cf. OSORIO HERRERA, Bayron L. Kénosis y Donación: la Kénosis como atributo divino. Cuestiones Teológicas, Medellín, v. 41, n.
96, p. 347-376, 2014.
9 Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo: ensaio a partir das vítimas. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 16.
10 Cf. WARE, Kallistos. Apatheia. In: WAKEFIELD, Gordon S. (Ed.). The Westminster Dictionary of Christian Spirituality. Philadelphia:
The Westminster Press, 1983. p. 18-19. Apatheia signifi ca “não sofrimento”, isto é, Deus não sofre como uma criatura. Apatheia é
oposto de pathos (sofrimento imposto, comum às criaturas sensíveis: seres humanos e animais). O “sofrimento” em Deus não é do
mesmo tipo daquele que afeta a criatura, que é o padecimento (pathos), mas o sofrimento próprio de quem ama, que é o compadecer
(sympatheo).

106 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


há progresso, desenvolvimento. Entretanto, essa imutabilidade de Deus não significa que
ele seja indiferente aos sofrimentos humanos.
Em seu comentário ao Salmo 54 (da versão latina, equivalente ao Salmo 55 da edição
hebraica), Santo Agostinho afirma que a “sã reação do sofrimento está mais próxima da
imortalidade do que o embotamento de um sujeito insensível”11. A piedade cristã descarta a
ideia de uma divindade indiferente às vicissitudes de sua criatura. A compaixão, que é uma
perfeição das mais nobres no ser humano, deve existir em Deus. A compaixão não é uma
falha de poder, nada impede que a compaixão possa coexistir com a bem-aventurança eterna.
À compaixão de Deus, que equivaleria à kénosis amorosa da Trindade, a patrística
enfatiza a deificação (theosis) do ser humano, afirmando, com Santo Atanásio de Alexandria
no tratado sobre a Encarnação do Verbo (54,3), que o Verbo de Deus se fez carne para que o
homem seja feito Deus.12 A verdadeira humanização, portanto, atinge seu cume na deificação
da pessoa, no seu acesso à Trindade. A theosis, ou seja, a participação na divindade (2Pe
1.4), é a verdadeira e suprema humanização. Cristo ressuscitado é o humano pleno. Viver
a vida de Cristo é viver a sublime vocação da humanidade, sentido da existência humana,
esperança em todo sofrimento.
Criado à imagem e à semelhança de Deus, o ser humano é convidado à comunhão com
a vida divina como única possibilidade de saciar plenamente suas aspirações mais profun-
das, que nada mais são do que a sede de Deus. Quanto mais profundamente Jesus Cristo
desceu em sua participação na miséria humana, tanto mais alto o ser humano se eleva na
participação em sua vida divina.13 A deificação não atinge plenamente seu fruto senão na
visão do Deus trinitário que comporta a bem-aventurança na comunhão dos santos. A deifi-
cação, portanto, nunca será uma conquista humana. É graça de Deus, somos filhos no Filho.

PISTAS PASTORAIS E CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura do texto de Jó chama-nos à consciência, em primeiro lugar, que o núcleo da


teologia está fora dela mesma, de seus manuais e de seus sistemas. Seu centro não pode
ser outro senão o anúncio de Jesus Cristo e o projeto de Deus para a salvação da humani-
dade. Aprendemos com o livro de Jó que não se deve acusar o sofredor de ser responsável
pelo que lhe acontece como castigo por algum pecado que cometeu ou, como geralmente
se faz na atualidade, acusá-lo de não ter fé suficiente para obter a bênção.

11 AUGUSTINE, Saint. Expositions of the Psalms 51-72. Part III / 17. Translation and notes by Maria Boulding, OSB. New York: New City
Press, 2001. p. 60.
12 Cf. ADEN, Ross. Justifi cation and Divinization. Dialog: a Journal of Theology, St. Paul (Minnesota), v. 32, p. 102-107, 1993.
13 TOLLEFSEN, Torstein Theodor. The Christocentric Cosmology of St Maximus the Confessor. New York: Oxford University Press,
2008. p. 191.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 107


Quando o aconselhamento pastoral se resume a convencer o sofredor que suas angús-
tias são consequências do pecado, da culpa ou da falta de fé, significa que o conselheiro está
mais preocupado em fazer apologia de uma suposta doutrina cristã que em solidarizar-se
com o sofredor. O mistério do sofrimento, um dos aspectos mais impressionantes da reali-
dade, deve ser considerado na prática do aconselhamento pastoral sem a preocupação de
se oferecer uma resposta ao sofredor, mas antes de tudo como exercício de solidariedade
por parte de quem aconselha. O aconselhamento deverá envolver oração pelo sofredor
para que se mantenha fiel a Deus naquele momento difícil; sem acusações, e sim com pa-
lavras de consolo que brotem da compaixão e não de resposta abstratas preestabelecidas.
Devemos aprender com o livro de Jó que o papel de quem aconselha não é explicar o so-
frimento ou dar-lhe uma solução, mas favorecer uma experiência com o amor de um Deus
rico em compaixão.
O aconselhamento pastoral deve favorecer uma anamnese para que a pessoa que
está sofrendo traga à memória a ação divina em diversas situações de sua vida, para que no
momento da crise existencial se possam encontrar, na recordação do passado, os momentos
de graça e de conversão que lhe deem forças para continuar sendo fiel. O sofrimento tam-
bém é perpassado pela graça, pois Deus mesmo é solidário com as vítimas, já que Cristo
vivenciou concretamente essa realidade, como tão bem nos apresenta o hino da kénosis
na Carta aos Filipenses.
O livro de Jó mostra-nos que a teologia prática é o eco do grito do sofredor. A teologia
prática deve-se preocupar com o aconselhamento pastoral para que ele não seja um discur-
so abstrato, mas solidariedade, compadecimento, inserção. Porque as situações drásticas
da vida, o silêncio reverente ao mistério de Deus são mais loquazes que muitas palavras e
fazem muito mais sentido na vida de um sofredor.14
Na atualidade, apesar de a ideologia da pós-modernidade nos iludir sobre a brevidade
dos sentimentos e sobre a fugacidade das experiências existenciais, há um número inex-
primível de sofredores, que à maneira de Jó anseiam por uma resposta para suas dores e
por um sentido que preencha seu vazio existencial. Essa situação questiona a prática do
aconselhamento pastoral baseada na valorização de dons e de fenômenos extraordinários,
arraigada na desvalorização do compromisso e no anúncio de um Deus que privilegia ricos,
poderosos, iluminados, eruditos e abençoados.15 Questiona um aconselhamento pastoral
que supervaloriza mediadores e mediações como correntes, campanhas e promessas com
as quais se espera alcançar o favor divino, semelhante aos mitos das antigas civilizações.

14 Cf. RAHNER, Karl. L’Homme à l’écoute du verbe: fondements d’une philosophie de la religion. Paris: Mame, 1968. p. 69-89 e 131-149.
15 Cf. ELLACURÍA, Ignacio. El pueblo crucifi cado. Ensayo de soteriología histórica. In: ASSMANN, H. et. al. Cruz y resurrección: pre-
sencia y anuncio de una iglesia nueva. México: CRT; Zalapa, 1978. p. 49-82.

108 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


No início do livro de Jó, a sabedoria (representada pelos amigos) senta-se no chão,
ao lado do sofredor e o contempla. Esse gesto é um convite para que a teologia prática se
engaje realmente numa práxis verdadeiramente cristã e abandone o seu pedestal de saber,
solidarizando-se com o sofredor. Quando a dor for consequência da injustiça, a teologia será
profecia, instrumento do Reino e de vida plena. Mas nem sempre é possível conhecer as
causas do sofrimento, pois este mundo é mercado pelo mistério da iniquidade. A teologia
não terá como sua principal preocupação dar uma explicação para o sofrimento, para a
dor e para o mal que atinge as pessoas, como também o livro de Jó não traz essa respos-
ta. A reflexão teológica estará, antes de tudo, empenhada em motivar aqueles que ministram
o aconselhamento pastoral para que sejam ministros da misericórdia em favor dos crucifi-
cados deste mundo, que os ajudem a readquirir a esperança e a se manter fiéis mesmo em
situações de sofrimento, encontrando na kénosis divina e na theosis humana o sentido que
transcende a existência.
O aconselhamento pastoral será um convite para que todo sofredor saia da órbita de
seus problemas, descentralize de suas angústias e faça aquela abertura kenótica que possi-
bilita o encontro com o Deus compassivo revelado no mistério de Cristo. Portanto a teologia
de hoje, ao enfocar mais a compaixão de Deus do que a apatheia divina, preocupa-se mais
com o ser humano e menos com os manuais de dogmática. A teologia prática necessita
exercer mais o intellectus amoris e o intellectus misericordiae16 do que dar explicações sobre
as causas ontológicas do mal e do sofrimento.
Uma teologia que não está do lado dos sofredores é forjada artificialmente, é um artefa-
to, um ídolo que não nos leva a Deus. É semelhante à teologia dos amigos de Jó, que no final
do livro necessitaram retratar-se porque não falaram corretamente sobre Deus (Jó 42.7-9).
Nem Deus nem a vida humana com suas limitações devem se adequar ao discurso
teológico, ao contrário, a reflexão teológica é que deve surgir das alegrias e das esperanças,
das tristezas e das angústias do ser humano de hoje, pois essas são “também as alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cris- to; e não há realidade alguma
verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (Gaudium et spes, 1)17.
Um aconselhamento pastoral embasado numa teologia desse quilate proporcionará ao
sofredor que busca ajuda no aconselhamento uma verdadeira experiência de Deus. A teolo-
gia será não unicamente uma palavra para o clamor do sofredor, mas, antes, o eco do grito
angustiado de quem vive uma situação fronteiriça da vida. Isso exige do teólogo e de quem
ministra o aconselhamento uma conversão contínua e sempre inacabada.

16 Cf. SOBRINO, Jon. ¿Cómo hacer teología? La teología como intellectus amoris. Sal Terrae, Santander, v. 910, p. 397-441, 1989.
17 Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 2000.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 109


REFERÊNCIAS
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v. 32, p. 102-107, 1993.

2. AUGUSTINE, Saint. Expositions of the Psalms 51-72. Part III / 17. Translation and notes by
Maria Boulding, OSB. New York: New City Press, 2001.

3. BALZ, Horst; SCHNEIDER, Gerhard (Eds.). Diccionario Exegético del Nuevo Testamento.
Salamanca: Sígueme, 2005. Tomo I. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

4. Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 2000.


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H. et. al. Cruz y resurrección: presencia y anuncio de una iglesia nueva. México: CRT; Zalapa,
1978. p. 49-82.

5. FRANKL, Viktor. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 25. ed. Pe-
trópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 2008.

6. GUTIERREZ, Gustavo. Falar de Deus a partir do sofrimento do inocente: uma reflexão sobre
o livro de Jó. Petrópolis: Vozes, 1987.

7. OSORIO HERRERA, Bayron L. Kénosis y Donación: la Kénosis como atributo divino. Cues-
tiones Teológicas, Medellín, v. 41, n. 96, p. 347-376, 2014.

8. PIXLEY, J. Jó ou o diálogo sobre a razão teológica. Perspectiva teológica, Belo Horizonte, v.


16, n. 40, p. 333-343, 1984.

9. RAHNER, Karl. L‘Homme à l‘écoute du verbe: fondements d‘une philosophie de la religion.


Paris: Mame, 1968.

10. ROSSI, Luiz A. Solano. A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó. São Paulo:
Paulus, 2005.

11. SOBRINO, Jon. ¿Cómo hacer teología? La teología como intellectus amoris. Sal Terrae, San-
tander, v. 910, p. 397-441, 1989.

12. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo: ensaio a partir das vítimas. Petrópolis: Vozes, 2000.
TOLLEFSEN, Torstein Theodor. The Christocentric Cosmology of St Maximus the Confessor.
New York: Oxford University Press, 2008.

13. XAVIER, Donizete J. A teologia da Santíssima Trindade: a kénosis das Pessoas Divinas como
manifestação do Amor e da Misericórdia. São Paulo: Palavra e Prece, 2005.

14. WAKEFIELD, Gordon S. (Ed.). The Westminster Dictionary of Christian Spirituality. Phila- del-
phia: The Westminster Press, 1983.

110 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


09
“ A voz profética da igreja católica
e o zelo pelo meio ambiente

Ulysses Gusman Júnior

10.37885/201001780
RESUMO

A população brasileira é composta em sua maioria por pessoas que professam a fé na


Igreja Católica Apostólica Romana, 65% aproximadamente, sendo que a totalidade dos
que se declaram Cristãos supera 95%. Entretanto, há um hiato entre a fé professada
pelos Cristãos - Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra - e a sua
práxis, o zelo pela criação. A criação cuja beleza é apresentada várias vezes na Bíblia
Sagrada e Jesus a compara com as vestes de Salomão: “28 observai os lírios do campo,
como crescem, e não trabalham e nem fiam. 29 E, no entanto, eu vos asseguro que nem
Salomão, em toda sua glória, se vestiu como um deles” (Mt 6, 28-29), e cantada por
Francisco de Assis no Cântico das Criaturas, é agredida com desmatamento, incêndios,
violência contra os índios e quilombolas, secas e inundações, perda da biodiversidade
e disposição inadequada de efluentes e resíduos sólidos, além de outras formas. Eis
que surge a questão: Qual o papel da Igreja Católica Apostólica Romana na defesa do
meio ambiente? A resposta ao convite “15 Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a
toda criatura” (Mc 16,15) é apresentada no Documento da CNBB 109 - Diretrizes Gerais
da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2023: Evangelizando pelo anúncio da
Palavra de Deus em comunidades eclesiais missionárias, à luz da evangélica opção
preferencial pelos pobres, cuidando da Casa Comum e testemunhando o Reino de Deus
rumo à plenitude.

Palavras-chave: Meio Ambiente, Fé, Práxis, Igreja Católica Apostólica Romana.


INTRODUÇÃO

Precisamos de Ti, Senhor!


Nossas horas são sombrias, incertos nossos dias.
O fruto do nosso trabalho se dilui na ganância
dos que vendem um pão amargo,
ruim e roubado no peso.

I. F. Gadelha.

(COMBLIN; MESTERS; FERREIRA, 1987, p. 13).

Reescrevo este trabalho, apresentado no V Congresso da ANPTECRE1, em tempo de


pandemia da COVID-19, oficializada pela OMS2 em 11 de março de 2020, que já supera 36
milhões de casos e 1 milhão de mortes em outubro de 2020.
A este fato adicionam-se a ocorrência de ações criminosas contra a Casa Comum,
tais como, os cruéis incêndios que ocorrem nos biomas da Amazônia e do Pantanal, o des-
caso do Governo do Brasil com a conservação e preservação ambiental, o avanço sobre
as terras indígenas com objetivos de mineração e do extermínio destes povos, além de
muitas outras ações.
A poluição mata! Muitas vezes, os dados divulgados pelos órgãos governamentais
não retratam a realidade dos efeitos da poluição que é sentido cada vez mais pelos pobres,
conforme relatado pelo Professor Paulo Saldiva.

Por ano, cerca de 1,3 milhão de mortes no mundo são causadas pela poluição
urbana, segundo dados da OMS. Só em São Paulo morrem 4 mil por ano. Em
2004, quando o número de carros era um terço menor, estima-se que o número
de mortes tenha sido 2,9 mil. Idosos, crianças, gestantes, portadores de doen-
ças respiratórias e cardíacas crônicas e, principalmente, os mais pobres – que
têm níveis maiores de exposição – são os principais atingidos. (IHU, 2012).

Por poluição urbana entende-se a poluição atmosférica, hídrica, do solo e sonora, e


todas, sem exceção, contribuem para a formação de várias doenças.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou a estimativa de que em 2012 cerca
de 7 milhões de pessoas morreram, uma em cada oito mortes no mundo, como resultado
da exposição à poluição do ar (OPAS, 2014).
Lembremos, também, do rompimento da Barragem do Fundão, em 4 de dezembro
de 2015, localizada em Mariana, estado de Minas Gerais, cujos impactos atingiram a foz
do rio Doce, no município de Linhares, estado do Espírito Santo e perduram até os dias de

1 O V Congresso da ANPTECRE – Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião foi realizado
de 9 a 11 de setembro em Curitiba, Paraná.
2 OMS – Organização Mundial da Saúde.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 113


hoje. A barragem era de propriedade da empresa SAMARCO, em empreendimento com as
empresas Vale S/A e BHP Billiton.
Em 25 de janeiro de 2019, aconteceu outro rompimento de barragem. Desta vez, foi
a Barragem I da Mina de Córrego do Feijão, também de propriedade da empresa Vale S/A,
localizada em Brumadinho, estado de Minas Gerais.
Situações que até hoje permanecem impunes, pela morosidade da justiça, e muitos
já não se recordam dos fatos, mas o clamor dos mortos e de suas famílias, alguns ainda
desaparecidos, chega a Deus, tal como, o do sangue de Abel chegou a Iahweh.

9
Iahweh disse a Caim: “Onde está teu irmão Abel?” Ele respondeu: “Não sei.
Acaso sou guarda de meu irmão?” 10 Iahweh disse: “Que fizeste! Ouço o san-
gue de teu irmão, do solo, clamar por mim! 11 Agora, és maldito e expulso do
solo fértil que abriu a boca para receber de tua mão o sangue de teu irmão. 12
Ainda que cultives o solo, ele não te dará mais seu produto: serás um fugitivo
errante sobre a terra”. (Gn 4, 9-12).

Em 2019, o desmatamento na Amazônia cresceu 50% e o Governo Federal declarou


guerra aos dados oficiais.
Esses fatos não retratam toda a realidade, mas servem para demonstrar as ameaças
e os crimes contra a Casa Comum e a importância de a Igreja Católica Apostólica Romana
ser voz dos sem voz, voz uníssona ecoando em todas as direções.
Bento XVI ao encontrar os jovens durante a viagem apostólica por ocasião
da V Conferência do CELAM3 destacou a infinita caridade de Deus e a exigência do Senhor
para que dilatemos os nossos corações para que caiba mais amor, mais compreensão pelos
nossos semelhantes e os problemas que envolvem não somente a convivência humana,
mas a efetiva preservação e conservação da natureza, da qual todos fazemos parte.

Nossos bosques têm mais vida”: não deixeis que se apague esta chama de
esperança que o vosso Hino Nacional põe em vossos lábios. A devastação
ambiental da Amazônia e as ameaças à dignidade humana de suas populações
requerem um maior compromisso nos mais diversos espaços de ação que a
sociedade vem solicitando. Bento XVI (2007).

O homem é ilimitado em sua sede por riqueza, poder e prazer, motivos de adoecimento
da criação, fato que pode ser refletido através de uma parábola ou anedota contada pelo
teólogo Jünger Moltmann.

Uma antiga e porque não dizer traiçoeira anedota fala de dois planetas exis-
tentes no espaço: Um perguntou ao outro: “Como vai você?” Ao que o outro
respondeu: “Eu vou muito mal. Estou doente. Estou sofrendo de homo sapiens”.
O outro lhe disse: “Sinto muito. Isso é realmente lamentável. Mas não fique

3 CELAM – Conselho Episcopal Latinoamericano.

114 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


triste, isso vai passar”. (MOLTMANN, 2014).

Esta dura realidade que ocorre no Brasil foi resumida de forma clara por DUTRA (2018)
ao comentar sobre as eleições ocorridas em 2018 e o fanatismo religioso.

O problema do nosso tempo é bem outro que o comunismo, é a ditadura do


“deus mercado”, o verdadeiro “deus” do capitalismo selvagem que vem devas-
tando valores, destruindo pessoas, famílias, cooptando igrejas e movimentos
eclesiais e colocando em xeque a possibilidade de sobrevivência do planeta. A
idolatria em torno do “deus mercado” é tão absurda que o torna a única
divindade inatacável. Pode-se debochar e desprezar qualquer outra repre-
sentação religiosa, que isso é tido como liberdade de manifestação, porém
se alguém ousar criticar o “deus mercado” será perseguido de morte como o
profeta Elias depois de acabar com os profetas de Baal. De fato, o capitalismo
não nega a existência de Deus (o que é simpático aos crentes desavisados)
mas o que ele faz é substituir o Deus de Jesus Cristo pelo “deus dinheiro/
lucro” (DUTRA, 2018).

As palavras de Dutra encontram-se ancoradas na Bíblia Sagrada e em comunhão


com a Igreja Universal nas palavras escritas pelo Papa Francisco na Exortação Apostólica
Evangelii Gaudium, quando relaciona o mandamento “não matar” à economia da exclusão
e da desigualdade social.

53. Assim como o mandamento “não matar” põe um limite claro para assegu-
rar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer “não a uma
economia da exclusão e da desigualdade social”. Esta economia mata. Não é
possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notí-
cia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se
pode tolerar mais o fato de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que
passam fome. Isto é desigualdade social... (Francisco, Evangelli Gaudium, 53).

Em 2010, no Brasil, as famílias 20% mais pobres apresentavam rendimento médio per
capita igual a 0,29 vezes o salário mínimo, enquanto o rendimento médio das famílias 20%
mais ricas equivale a 4,83 vezes o salário mínimo (IBGE, PNAD 2011), ou seja, quase 17
(dezessete) vezes a mais.
Aliado à distribuição de renda, existe também a distribuição desigual de terras. Os resul-
tados do Censo Agropecuário 2006 indicam que estabelecimentos rurais com áreas inferiores
a 10 (dez) hectares ocupam menos de 2,7% da área total ocupada pelos estabelecimentos
rurais, enquanto a área ocupada pelos estabelecimentos com área superior a 1.000 hectares
concentra mais de 43% da área total (Agência Estado, 2009).
Existem diversos indicadores que apresentam as situações de desigualdade na socie-
dade brasileira. E é nesta desigualdade que existe uma parcela de população mais pobre
e que está mais sujeita aos efeitos da poluição, habitando áreas deficientes de serviços de

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 115


transporte e de saúde, além dos serviços relacionados ao saneamento básico (água, esgoto,
drenagem urbana e resíduos sólidos).
Esta situação de exclusão e desigualdade social nos convida a refletir sobre a dimensão
ética, moral e social de nossa fé, pois recebemos a missão: “13 Vós sóis o sal da terra... 14

Vós sóis a luz do mundo...”, cf. Mt 5, 13-17, com importante contribuição do poema / salmo
Pai Nosso da Libertação e da oração ensinada por Jesus, o Cristo, o Libertador.

Bem cedo,
como todas as manhãs,
meninos disputam com cães
em volta da lata de lixo.
Mexem e remexem,
tiram e põem
os restos de comida do lixo.
E repartem com os cães
o pão apodrecido do lixo.
Num mundo cão, sem coração,
eis a forma que Deus encontrou
para atender à oração
dos miseráveis pequenos famintos:
o pão nosso de cada dia nos daí hoje!
Naquele dia, não, naquela semana,
o pão da nossa mesa não era o mesmo.
Era pão amargo, cheio de blasfêmia dos pobres,
que para Deus são súplicas.
Leonardo Boff.
(COMBLIN; MESTERS; FERREIRA, 1987, p. 80).

Papa Francisco, ainda na Exortação Apostólica Evangelli Gaudium, afirma que o ser
humano é um bem de consumo e os excluídos não são explorados, mas resíduos.

53. ... O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de con-


sumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do
“descartável”, que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente
do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a
exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois
quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora.
Os excluídos não são «explorados», mas resíduos, “sobras”. (Francisco, Evan-
gelli Gaudium, 53).

A dimensão ética, moral e social de nossa fé nos direciona à missão de Jesus, o Cristo,
o Libertador, que ao proclamar a leitura do livro do profeta Isaías apresentou sua missão
que é inapelavelmente estendida a todos nós, como anunciadores da Boa Nova.

18
O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção
para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos
e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos
19
e para proclamar um ano de graça do Senhor. (Lc 4, 18-19).

116 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Surge, então, a questão: qual deve ser o rumo da Igreja Católica Apostólica
Romana? Há somente uma escolha: anunciar Jesus, o Cristo, o Libertador, cf. Lc 4, 18-19,
que veio para que todos tenham vida e vida em abundância, cf. Jo 10,10.
Para seguir este caminho é necessário coragem, como a coragem dos mártires que
ajudaram a florescer a Igreja, como Estevão, Perpétua e Felicidade, entre vários outros, e
que ainda existem nos tempos atuais, como Irmã Dorothy Stang e Padre Josimo Tavares,
entre vários outros.
Sejamos corajosos, pois “33 No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci
o mundo!” (Jo 16,33).
Que tenhamos a certeza de que a missão da Igreja, é também nossa, pois somos Igreja
e que as palavras de Zé Vicente no canto música é Missão de Todos Nós, nos sirvam de
ânimo para as nossas vidas.

O Deus que me criou, me quis, me consagrou


Para anunciar o seu amor.
Eu sou como a chuva em terra seca
Prá saciar, fazer brotar
Eu vivo para amar e pra servir!
É missão de todos nós
Deus chama, eu quero ouvir a sua voz!

METODOLOGIA

Louvado sejas, ó meu Senhor, pela nossa irmã a Mãe Terra, que nos sustenta
e governa, e produz variados frutos, com flores coloridas e verduras. (Fran-
cisco de Assis).

O trabalho tem como objetivo refletir sobre a voz profética da Igreja Católica Apostólica
Romana e o zelo pelo meio ambiente, a Casa Comum. Na primeira parte, introdução, foi
refletido sobre a questão: Qual o papel da Igreja Católica Apostólica Romana na defesa do
meio ambiente? Foram apresentadas algumas situações e demonstrado a importância da
resposta da Igreja, sendo voz daqueles que não tem voz.
Os resultados do trabalho são apresentados em duas partes, sendo a primeira sobre
a Bíblia Sagrada, que fundamenta a nossa fé, e a segunda sobre os documentos e ações
da Igreja. Os documentos da Igreja, como, os pronunciamentos dos Papas, desde João
Paulo II até Francisco, e os elaborados pela CELAM e CNBB, donde inclui-se a realização
das Campanhas da Fraternidade e, inclusive, músicas que nos ajudam a refletir sobre a fé
e animam o nosso caminhar na fé, na esperança e no amor.
É claro, que não podemos deixar de citar tesouros da nossa fé, tais como, os escritos
de Basílio de Cesaréia, Gregório Magno e Francisco de Assis.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 117


Na discussão dos resultados é apresentada a importância da missão da Igreja que
deve ser realizada através de grupos de Pastoral do Meio Ambiente e/ou Ecológica, que se
faz presente em várias dioceses e paróquias brasileiras.
O zelo pela Casa Comum é compromisso que exige de nós sentir maior respeito pela
natureza, sendo ela uma habitação que nos foi confiada para ser cultivada e guardada para
a presente e futuras gerações (Francisco, Lumen Fidei, 55).
O Documento de Aparecida já alertava, entre outros pontos, que “as gerações que nos
sucederão têm direito a receber um mundo habitável e não um planeta com ar contaminado”
(CELAM, 2007, 471).

RESULTADOS

Senhor,
existem cristãos mudos, que,
enquanto não se mexe com eles,
ficam tranquilos, por mais que o mundo se arrebente.
Não protestam contra as injustiças,
porque estão escravizados ao Estado
pela perseguição ou pelo compromisso,
comprados pelo medo ou pelo oportunismo.
Outros, talvez, porque nada tem como contribuição,
para eles a fé é uma coisa etérea,
que nada tem a ver com a vida;
vale só das nuvens para cima.
Nós te pedimos, Senhor,
pelos cristãos do silêncio;
que tua palavra lhe queime as entranhas
e os faça superar a coação.
Que não se calem como se nada tivessem a dizer.
...
Luiz Espinal.

(COMBLIN; MESTERS; FERREIRA, 1987, p. 14).

Da Bíblia Sagrada

As narrativas da criação apresentadas em Gênesis não apresentam o relato histórico


e fidedigno de como Deus realizou toda a criação, passo a passo, mas mostram do ponto
de vista da fé que a criação é um ato de amor de Deus para com os homens e com todas
as criaturas. “24 Quão numerosas são as tuas obras, Iahweh, e todas fizeste com sabedo-
ria! A terra está repleta das tuas criaturas” (Sl 104,24).
A realidade nos mostra que o homem ao afastar-se de Deus e idolatrar o deus mercado
desfere ataques à Casa Comum, pensando unicamente em seu prazer, no acúmulo de bens
e em sua existência terrena.

118 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Basílio de Cesaréia fala sobre a generosidade de Deus e a ingratidão do homem na
homilia sobre o Evangelho Segundo Lucas: “Destruirei meus celeiros e construirei maiores”
e sobre a avareza ou o rico estulto.

Eis quanto provém de Deus: fertilidade do solo, condições atmosféricas pro-


pícias, abundância das sementes, a ajuda dos bois e outros elementos que
contribuem para o incremento da agricultura.
E da parte do homem? Dureza de coração, misantropia e avareza: é dessa
maneira que o homem agradece ao próprio benfeitor. Não se recordou da
comunhão de natureza, não pensou que precisava dividir o supérfluo entre os
indigentes, não levou em conta o mandamento: “Não negues um benefício ao
necessitado” (Pr 3,27). “A caridade e a confiança não te abandonem” (Pr 3,3).
“Reparte o pão com o faminto” (Is 58,7). Permaneceu surdo ao grito de todos
os profetas e de todos os mestres. (Basílio de Cesaréia, p. 26).

Podemos relacionar o trecho desta homilia proferida por Basílio de Cesaréia com o
Evangelho Segundo Mateus 25, 14-30, conhecida como parábola dos talentos, compara-
mos o homem cheio de avareza que usa sua riqueza somente para seus fins com o servo
preguiçoso e medroso que enterra os seus talentos.
Bento XVI (2011) adverte que Jesus quer ensinar os discípulos a usar bem os seus
dons: Deus chama qualquer homem à vida e entrega-lhes talentos, confiando-lhes ao mesmo
tempo uma missão para cumprir. Gregório Magno (p. 569-570) adverte que devemos admi-
nistrar os talentos recebidos, como a inteligência ou o aprendizado de uma arte, utilizando
em favor dos necessitados de tais bens.
Mas os talentos são meus! Ou não!?!

“O que faço de errado, diz ele, guardando o que é meu?” Dize-me, de que
modo é teu? Donde tiraste, tomando-o para teu sustento? É como alguém
que, indo ao teatro, se apoderasse do espetáculo e quisesse excluir os que
entrassem depois, pretendendo ser só seu aquilo que é comum a todos os que
se apresentam, conforme lhes parece bem. Assim são os ricos. Pois, apode-
rando-se primeiro do que é de todos, tudo tomam para si por uma falsa ideia.
Se cada um tirasse para si o que lhe é necessário e entregasse ao indigente
o que sobra, ninguém seria rico, ninguém pobre. Não saíste nu do útero e
não retornarás nu para a terra (Jó 1,21)? Os bens que possuis, de onde vêm?
(Basílio de Cesaréia, p. 35-36).

Os talentos (riqueza, inteligência etc.) nunca são nossos e devemos utilizá-los a serviço
de todos na realidade em que encontramo-nos inseridos, pois como diz o ditado popular,
parafraseando Jó: o caixão não tem gavetas.

A que me chama Deus, agora? Como sair da própria comodidade e empreender


uma novidade evangélica e expansiva? É a pergunta que cada comunidade,
cada clérigo, cada cristão leigo e leiga poderia se fazer, e discernir novas ações
e atitudes (CNBB, 2013, Estudos da CNBB, 150).

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 119


Da Igreja Católica Apostólica Romana

É importante o processo de avaliação de nossas ações, promover ajustes e definir


novos objetivos. Dentro desta realidade, a CNBB definiu o objetivo geral para a ação evan-
gelizadora da Igreja no Brasil no período 2019 – 2023.

Evangelizar
no Brasil cada vez mais urbano,
pelo anúncio da Palavra de Deus,
formando discípulos e discípulas de Jesus Cristo,
em comunidades eclesiais missionárias,
à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres,
cuidando da Casa Comum e
testemunhando o reino de Deus
rumo à plenitude. (CNBB, 2019, Documentos da CNBB 109).

Nesta realidade urbana realmente complexa, aliada ao processo educacional muitas


vezes com ausência de educação reflexiva sobre a realidade, torna-se importante que a
Igreja e outras associações também participem deste processo de educação para formar
consciência ambiental.

214. Compete à política e às várias associações um esforço de formação das


consciências da população. Naturalmente compete também à Igreja. Todas as
comunidades cristãs têm um papel importante a desempenhar nesta educação.
Espero também que, nos nossos Seminários e Casas Religiosas de Formação,
se eduque para uma austeridade responsável, a grata contemplação do mun-
do, o cuidado da fragilidade dos pobres e do meio ambiente. Tendo em conta
o muito que está em jogo, do mesmo modo que são necessárias instituições
dotadas de poder para punir os danos ambientais, também nós precisamos
de nos controlar e educar uns aos outros. (Francisco, Laudato Sì, 53)

Os resultados de pesquisa intitulada “O que o brasileiro pensa sobre meio ambiente e


consumo sustentável” (BRASIL, MMA, 2012), elaborada com o objetivo de obter informações
a fim de subsidiar a formulação de políticas públicas, demonstra a real necessidade de educa-
ção ambiental e demonstra que se faz necessário o trabalho de toda a sociedade em conjunto.
Nesta pesquisa, realizada nos anos 1992, 1997, 2001, 2006 e 2012 ocorreram alte-
rações na percepção da população brasileira sobre o tema meio ambiente, como pode ser
observado s seguir.

• Em relação aos motivos para o cuidado com o meio ambiente, as respostas foram:
Sobrevivência, 65%; Futuro melhor, 15%; Preservação, 8%, Prevenção de catás-
trofe, 4%; Responsabilidade ambiental, 1%; e Não souberam ou não responderam,
6%;

120 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


• Dentre os principais problemas do Brasil, o tema Meio Ambiente ocupa a 6ª posição
com 13% das respostas, sabendo-se que em 1992, este tema não estava na lista
dos 10 problemas mais citados. Antecedem na lista: Saúde / hospitais, 81%; Vio-
lência / criminalidade, 65%; Desemprego, 34%; Educação, 32%; e Políticos, 23%;

• Entre os principais problemas ambientais do Brasil, destacam-se: Desmatamento


de florestas, 61%; Poluição dos rios, lagos e outras fontes de água, 39%; Poluição
do ar, 36%; Aumento do volume do lixo, 28%; e Desperdício de água, 10%;

• A percepção sobre os elementos que compõem o meio ambiente foi alterada. Em


1992, apenas as Matas, os Rios, a Água, os Animais e o Ar apresentavam mais de
50% da opinião dos brasileiros. Já em 2012, foram incluídos: o Solo / terra, Mares,
Campos / sítios / fazendas, Minerais, Indígenas, Homens e Mulheres, Planetas,
Energia, Cidades e Favelas;

• Quando perguntados em relação a afirmativa “a preocupação com o meio ambiente


no Brasil é exagerada”, no ano 1992 a discordância era igual a 61%, já em 2012,
evoluiu para 77%;

• Em relação a afirmativa “estaria disposto a conviver com mais poluição se isso


trouxesse mais emprego”, no ano 1992 a discordância era igual a 65%, já em 2012,
evoluiu para 87%.
Das conclusões do estudo merecem destaque a evolução da conscientização sobre a
importância da preocupação com o meio ambiente e, também, da evolução da discordância
de que conviveria com mais poluição se isso trouxesse mais emprego.
No período em que constatamos a evolução conscientização sobre a importância do
meio ambiente coincide com a realização de Campanhas da Fraternidade também relacio-
nadas ao tema, a seguir apresentadas.

• 2004 – Tema: Fraternidade e água – Lema: Água, fonte de vida;

• 2007 – Tema: Fraternidade e Amazônia – Lema: Vida e Missão neste chão;

• 2011 – Tema: Fraternidade e a Vida no Planeta – Lema: A criação geme em dores


de parto.

• Após esse período foram realizadas mais duas campanhas relacionadas direta-
mente ao tema:

• 2016 – Tema: Casa Comum, Nossa Responsabilidade – Lema: Quero ver o direito

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 121


brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca.

• 2017. Fraternidade: Biomas brasileiros e defesa da vida – Lema: Cultivar e guardar


a criação.
Entretanto, as ações da Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil no que se re-
fere a defesa da Casa Comum não é fato recente, que aconteceu somente neste século
XXI. Em 1979, a Campanha da Fraternidade apresentou o tema: Por um mundo mais humano
e o lema: Preserve o que é de todos.
O canto de entrada para o tempo quaresmal, composto por Padre Lucio Floro com
música de José Alberto Fontanella, mostram-se ainda atuais, com trechos sobre a poluição
e a ocupação do solo urbano.

Eu quero o verde entoando salmos mil a vida


E a flor abrindo para o céu, pequeno altar.
Primeira benção dada a terra ressequida
O verde é nosso e vamos todos preservar.
Perdão, senhor! É idolatria amar a morte!
Nosso egoísmo mancha o céu, a terra o mar.
O azul, o verde, as ondas vão ter outra sorte,
Se o nosso coração se converter e amar.
Eu quero a água sem veneno ou detergente,
Rezando humilde pela pedra que a tortura
E que celebra a santa missa com a gente:
É mãe da vida! preservamos a água pura!
Eu quero o mar elaborando nuvens claras,
que vão ao céu buscar a benção que Deus tem
E à terra voltam pra irrigar nossas searas:
O mar é nosso! Vamos preservá-lo e bem!
Eu quero o céu sem esse fumo triste, imundo.
Não quero frutos que a ciência contamina.
Não posso ouvir Deus me dizer: “domina o mundo!”
Quando o cimento esmaga a vida e me domina.

Mas, por vezes, é difícil a luta contra o comodismo e contra aqueles que desejam viver
a fé afastados do mundo, nas nuvens.

51. A fé não afasta do mundo, nem é alheia ao esforço concreto dos nossos
contemporâneos... A fé é um bem para todos, um bem comum: a sua luz
não ilumina apenas o âmbito da Igreja nem serve somente para construir
uma cidade eterna no além, mas ajuda também a construir as nossas so-
ciedades de modo que caminhem para um futuro de esperança. (Francisco,
Lumen Fidei, 51).

Continuando, o Papa Francisco fala sobre a fé e o bem comum, destacando que inexiste
uma cerca entre o viver a fé e ser cidadão que procura o bem comum e destaca, também, que

122 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


55. A fé, ao revelar-nos o amor de Deus Criador, faz-nos olhar com maior
respeito para a natureza, fazendo-nos reconhecer nela uma gramática escrita
por Ele e uma habitação que nos foi confiada para ser cultivada e guardada;
ajuda-nos a encontrar modelos de progresso, que não se baseiem apenas na
utilidade e no lucro mas considerem a criação como dom, de que todos somos
devedores; ensina-nos a destacar formas justas de governo, reconhecendo que
a autoridade vem de Deus para estar ao serviço do bem comum”. (Francisco,
Lumen Fidei, 55).

O Papa Bento XVI por várias vezes alertou sobre a importância do cuidado com o meio
ambiente. Na sua mensagem do Dia Mundial da Paz em 2010 observou que

“o mundo não é fruto de uma qualquer necessidade, de um destino cego ou


do acaso, (…) procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas
participantes do seu Ser, da sua sabedoria e da sua bondade” e alertou que
“se são numerosos os perigos que ameaçam a paz e o autêntico desenvolvi-
mento humano integral, devido à desumanidade do homem para com o seu
semelhante – guerras, conflitos internacionais e regionais, atos terroristas e
violações dos direitos humanos –, não são menos preocupantes os perigos
que derivam do desleixo, se não mesmo do abuso, em relação à terra e aos
bens naturais que Deus nos concedeu. Por isso, é indispensável que a hu-
manidade renove e reforce “aquela aliança entre ser humano e ambiente que
deve ser espelho do amor criador de Deus, de Quem provimos e para Quem
estamos a caminho”.

No ano anterior, na mensagem do Dia Mundial da Paz, alertou sobre a questão moral
e a pobreza das crianças:

“Quando a pobreza atinge uma família, as crianças são as suas vítimas mais
vulneráveis: atualmente quase metade dos que vivem em pobreza absoluta é
constituída por crianças. O fato de olhar a pobreza colocando-se da parte das
crianças induz a reter como prioritários os objetivos que mais diretamente lhes
dizem respeito, como por exemplo os cuidados maternos, o serviço educativo,
o acesso às vacinas, aos cuidados médicos e à água potável, a defesa do
ambiente e sobretudo o empenho na defesa da família e da estabilidade das
relações no seio da mesma. Quando a família se debilita, os danos recaem
inevitavelmente sobre as crianças. Onde não é tutelada a dignidade da mulher
e da mãe, a ressentir-se do fato são de novo principalmente os filhos”.

Em 1990, o Papa João Paulo II no Dia Mundial da Paz alertou que a crise ecológica é
um problema moral e destacou que:

“o índice mais profundo e mais grave das implicações morais, ínsitas na proble-
mática ecológica, é constituído pela falta de respeito pela vida, como se pode
verificar em muitos comportamentos poluidores. Muitas vezes as condições da
produção prevalecem sobre a dignidade do trabalhador e os interesses eco-
nômicos são postos acima do bem de cada uma das pessoas, se não mesmo
acima do bem de populações inteiras. Nestes casos, a poluição e a destruição
do ambiente são frutos de uma visão redutiva e inatural que, algumas vezes,
denota um verdadeiro desprezo do homem”.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 123


A Igreja no Brasil é consciente de sua responsabilidade de defesa da criação, da Casa
Comum, e para o período 2011-2015 foram definidas linhas de ação pastoral com enfoque
na educação e no compromisso dos fiéis leigos e leigas na sociedade (CNBB 94, 2011), que
estão apresentadas a seguir.

• Educar para a preservação da natureza e o cuidado com a ecologia humana;

• Incentivar a participação social e política dos cristãos leigos e leigas nos diversos
níveis e instituições, promovendo-se formação permanente e ações concretas;

• Participar de debates na busca de políticas públicas que ofereçam as condições


necessárias ao bem-estar de pessoas, famílias e povos;

• Formar pensadores e pessoas que estejam em níveis de decisão, evangelizando,


com especial atenção e empenho;
Estas ações da CNBB apresentaram-se em harmonia com as conclusões das duas
últimas Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, Santo Domingo
(2002) e Aparecida (2007).

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Senhor, tua presença invade o universo;


Tudo te possui e em nada te esgotas.
Algo de Ti subsiste em cada coisa...
Pelo universo Tu passaste,
Pelo universo estás passando diariamente.

(COMBLIN; MESTERS; FERREIRA, 1987, p. 33-34).

A fé é um compromisso com Deus e com os irmãos e exige compromissos que devem


ser assumidos na vida diária do cristão.
“4 quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar”
(I Jo 4,20). E como amar o irmão e ferir a natureza que serve a todos indistintamente? Como
ser devoto de São Francisco de Assis, participar de novenas, cantar “louvado sejas, meu
Senhor, por nossa irmã a mãe Terra, que nos sustenta e governa, e produz frutos diversos
e coloridas flores e ervas” e contribuir para o desmatamento e ser indiferente a causa, por
exemplo, das nações indígenas?
É impossível ter dois senhores, servir a Deus e ao dinheiro, cf. Mt 6,24. O Cristão deve
assumir a sua identidade.

124 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


A IV Conferência da CELAM realizada em Santo Domingo, 1992, definiu linhas pastorais
para ação da Igreja Católica diante da crise ecológica:

1. A responsabilidade dos cristãos, como integrantes da sociedade, em relação aos


modelos de desenvolvimento, que provocaram os atuais desastres ambientais e
sociais;

2. Empreender uma tarefa de reeducação de todos, a partir das crianças e dos jovens,
diante do valor da vida e da interde­pendência dos diversos ecossistemas;

3. Cultivar uma espiritualidade que recupere o sentido de Deus, sempre presente na


natureza;

4. Abrir-se ao diálogo e questionar a riqueza e o desperdício;

5. Aprender dos pobres a viver com sobriedade e a partilhar e valorizar a sabedoria


dos povos indígenas no tocante à preserva­ção da natureza como ambiente de vida
para todos.
Sim, as linhas pastorais propostas em Santo Domingo continuam atuais, e percebe-
mos que a V Conferência da CELAM em Aparecida, 2007, reafirmou estas linhas pastorais,
conforme observamos a seguir:

1. Evangelizar nossos povos para que descubram o dom da criação, sabendo contem-
plá-la e cuidar dela como casa de todos os seres vivos e matriz da vida do planeta;

2. Aprofundar a presença pastoral nas populações mais frágeis e ameaçadas pelo de-
senvolvimento predatório, e apoiá-las em seus esforços para conseguir equitativa
distribuição da terra, da água e dos espaços urbanos;

3. Procurar um modelo de desenvolvimento alternativo, integral e solidário, baseado


em uma ética que inclua a responsabilidade por uma autêntica ecologia natural e
humana, que se fundamenta no evangelho da justiça, da solidariedade e do destino
universal dos bens, e que supere a lógica utilitarista e individualista, que não sub-
mete os poderes econômicos e tecnológicos a critérios éticos;

4. Empenhar nossos esforços na promulgação de políticas públicas e participações


cidadãs que garantam a proteção, conservação e restauração da natureza;

5. Determinar medidas de monitoramento e controle social sobre a aplicação dos pa-


drões ambientais internacionais nos países. A nossa tarefa é grande e isso nos leva

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 125


a refletir sobre a importância de sermos criativos para o anúncio de Jesus Cristo,
nosso Senhor e Salvador, pois são várias as nossas realidades, cada uma com as
suas peculiaridades, sendo necessário portanto, articular as várias pastorais atu-
antes nas dioceses e paróquias. conforme sugerido no Projeto Ser Igreja no Novo
Milênio.
E de forma muito pedagógica, o Documento CNBB nº 94 sob o título “Diretrizes
Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil – 2011 – 2015” apresentou linhas de
atuação, tais como:

1. Educar para a preservação da natureza e o cuidado com a ecologia humana, atra-


vés de atitudes que respeitem a biodiversidade e de ações que zelem pelo meio-
-ambiente, entre as quais destaca-se a preservação da água, patrimônio da huma-
nidade, evitando sua privatização, do solo e do ar;

2. Incentive-se cada vez mais a participação social e política dos cristãos leigos e lei-
gas nos diversos níveis e instituições; e

3. Formação de pensadores e pessoas que estejam em níveis de decisão. Sim, os


documentos da Igreja Católica nos mostram a direção para o caminho e devemos
segui-lo, sem a prepotência de que somos os únicos que caminham no sentido cer-
to. Devemos agir... mas como agir? Agir de forma solitária é ruim, pois sonho que
se sonha só é só um sonho, mas sonho que se sonha junto é realidade.
Apesar das novas Diretrizes Gerais de Ação Evangelizadora para o período 2019 – 2023
é saudável que ainda sejam consideradas as linhas de atuação do período 2011 - 2015, pois
o Cuidado com a Casa Comum está inserido no atual objetivo geral.
Muitos grupos de Pastoral do Meio Ambiente e/ou Ecológica e do Meio Ambiente já
existem, mas é importante que sugestões sejam sempre apreciadas e praticadas.

1. Realizar um concurso para que os leigos e leigas descrevam o ambiente em que


está inserida a sua comunidade, destacando os pontos positivos e negativos;

2. Formação de agentes de pastoral do meio ambiente: criar um curso básico de in-


formação das bases bíblico-teológicas da pastoral do meio ambiente, da legislação
básica existente e dos órgãos de monitoramento de políticas públicas existentes;

3. Estimular o diálogo entre as pastorais;

4. Estimular o diálogo ecumênico e inter-religioso para socialização das atividades e

126 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


demandas a partir do universo católico e coleta de informações sobre atividades e
demandas a partir do universo ecumênico e inter-religioso;

5. Revisar nosso padrão e níveis de consumo e comprometer-nos firmemente em


reduzi-lo;

6. Rever nossos modos de viajar e procurar ativamente alternativas;

7. Proporcionar cursos de capacitação que ajudem a tornar mais sustentáveis as nos-


sas práticas de compra de alimentos: dar preferência a alimentos sazonais, cultiva-
dos organicamente em lugares próximos e que preencham as normas do comércio
justo; e

8. Sempre que possível, devemos recorrer a arquitetos e engenheiros com consci-


ência ambiental e ajudar as nossas paróquias para fazer planos de construção de
acordo com os seus critérios.

CONCLUSÃO

Senhor,
Livra a tua Igreja de todo ranço do mundo;
que não pareça uma sociedade a mais,
com seus caciques, acionistas,
privilégios, funcionários e burocracia.
Que tua Igreja nunca seja Igreja do silêncio,
uma vez que é depositária de tua palavra;
que apregoe livremente,
sem reticências nem covardias.
Que jamais se cale diante dos que usam de meiguice,
nem diante dos que tomam em armas.

Luiz Espinal.

(COMBLIN; MESTERS; FERREIRA, 1987, p. 14-15).

A Encíclica Laudato Sì coroa a trajetória em defesa da criação pela Igreja Católica,


que se tornou mais evidente com os Papas João Paulo II e Bento XVI, mas com sementes
lançadas e raízes profundas que antecederam o século XXI.
Entretanto, a defesa da criação não pode viver apenas de documentos, mas deve
acontecer a ação prática dos cristãos leigos e leigas em sua vida cotidiana. Esta ação faz-se
necessária todos os dias, pois todos os dias a criação sofre ataques, é ferida, é morta. E quem
sofre ataques necessita de apoio, de cuidado, de cuidado com as suas feridas, tal como,
alertado por Jürgen Moltmann.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 127


Nós conhecemos tudo isso, mas não fazemos nada com relação ao que sa-
bemos. A maior parte das pessoas fecham os olhos ou estão como que para-
lisadas. Porém, nada favorece tanto as catástrofes quanto o não fazer nada
paralisante. Precisamos compreender a natureza de um modo novo e de uma
nova imagem de ser humano e, por isso, de uma nova experiência de Deus
na nossa cultura. (MOLTMANN, 2012).

É tempo de união e recordando as ações pastorais propostas, refaço o convi-


te de Zé Vicente:

Vou convidar os índios que ainda existem,


As tribos que ainda insistem no direito de viver,
E juntos vamos, reunidos na memória,
Celebrar uma vitória, que vai ter que acontecer.

REFERÊNCIAS
1. BÍBLIA DE JERUSALÉM. Tradução do texto em língua portuguesa. Edição: 1998, revista e
ampliada, 8ª reimpressão. São Paulo: PAULUS, 2012.

2. COMBLIN, José; MESTERS Carlos; FERREIRA, Maria Emília. Salmos latino-americanos, São
Paulo: Edições Paulinas, (Coleção “A oração dos pobres”).

3. INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS – IHU. Pobres são os mais atingidos pela poluição urbana,
diz médico da USP. Disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512065-pobres-sao-
-os-mais-atingidos-pela-poluicao-urbana-diz-medico-da-usp>. Data: 03 de agosto de 2012.
Acesso em 12 de outubro de 2020.

4. ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE – OPAS. Disponível em <http://www.paho.


org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=4609:oms-estima-que-sete-milhoes-
-mortes-ocorram-ano-devido-contaminacao-atmosferica&Itemid=839 >. Data: 25 de março de
2014. Acesso em 12 de outubro de 2020.

5. BENTO XVI, Papa. Viagem Apostólica de Sua Santidade Bento XVI ao Brasil por ocasião da
V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe. Encontro com os Jovens.
Discurso do Papa Bento XVI. Disponível em <http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/
speeches/2007/may/documents/hf_ben-xvi_spe_20070510_youth-brazil.html>. Acesso em
12 de outubro de 2020.

6. MOLTMANN, Jürgen. Há esperança para a criação ameaçada? / Jürgen Moltmann, Leonardo


Boff; tradução de Levy Bastos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

7. DUTRA, D. Sílvio Guterres Dutra. As eleições de 2018 e o fanatismo religioso. Disponível em


< https://www.diocesevacaria.com.br/as-eleicoes-2018-e-o-fanatismo-religioso/>. Acesso em
10 de outubro de 2020.

8. FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelli Gaudium. Disponível em <http://www.


vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-
-ap_20131124_evangelii-gaudium.html>. Acesso em 12 de outubro de 2020.

128 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


9. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios 2011. Tabela 5.4 - Rendimento médio mensal familiar per capita das famílias com
rendimento, em reais e em salários mínimos, dos 20% mais pobres e dos 20% mais ricos, e
relação entre os rendimentos médios, segundo as Grandes Regiões, as Unidades da Federação
e as Regiões Metropolitanas – 2011. Disponível em < http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/
populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2012/default_tab_xls.shtm>.
Acesso em 12 de abril de 2015.

10. AGÊNCIA ESTADO. Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,distribuicao-de-


-terras-e-desigual-mostra-estudo-do-ibge,443477>. Acesso em 12 de abril de 2015.

11. FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Lumen Fidei. Disponível em <http://w2.vatican.va/con-


tent/francesco/pt/encyclicals/documents/papafrancesco_20130629_enciclica-lumen-fidei.html>.
Acesso em 14 de abril de 2015.

12. CONSEJO EPISCOPAL LATINOAMERICANO - CELAM. V CONFERÊNCIA GERAL DO EPIS-


COPADO LATINO-AMERICANO e DO CARIBE. Aparecida, 13-31 de maio de 2007. DOCU-
MENTO FINAL. Disponível em < http://www.dhnet.org.br/direitos/cjp/a_pdf/cnbb_2007_docu-
mento_de_aparecida.pdf>. Acesso em 12 de outubro de 2020.

13. Basílio de Cesaréia (330 – 379). Homília sobre a Palavra do Evangelho Segundo Lucas:
“Destruirei Meus Celeiros e Construirei Maiores” e Sobre a Avareza ou o Rico Estulto,
(tradução de Roque Fangiotti), São Paulo: Paulus, (coleção Patrística, volume 14), 1998.

14. BENTO XVI, Papa. ANGELUS. Domingo, 13 de Novembro de 2011. Disponível em <http://www.
vatican.va/content/benedict-xvi/pt/angelus/2011/documents/hf_ben-xvi_ang_20111113.html>.
Acesso em 12 de outubro de 2020.

15. San Gregorio Magno (590 – 604). Obras de San Gegorio Magno – Regla pastoral. Homilias
sobre la profecia de Ezequiel. Cuarenta homilías sobre los Evangelios. (tradução castellana
por Paulino Gallardo – introducción general, notas e índices de Melquiades Andres), Madrid:
Biblioteca de Autores Cristianos, 2009.

16. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL - CNBB. Estudos da CNBB 107 –
Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade. Sal da Terra e Luz do Mundo (cf. Mt
5,13-14). Edições CNBB. 2013.

17. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL - CNBB. Documentos da CNBB


109 – Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2023. Brasília:
Edições CNBB. 2019.

18. FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si’ sobre o Cuidado da Casa Comum. Disponível
em <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papafrancesco_20150524_
enciclica-laudato-si.html>. Acesso em 14 de abril de 2015.

19. BRASIL. Brasil. Ministério do Meio Ambiente. Secretaria de Articulação Institucional e Cidadania
Ambiental. O que o brasileiro pensa do meio ambiente e do consumo sustentável: Pesquisa
nacional de opinião: principais resultados / Ministério do Meio Ambiente, Secretaria de Articu-
lação Institucional e Cidadania Ambiental. – Rio de Janeiro: Overview, 2012.

20. BENTO XVI, Papa. Mensagem de Sua Santidade Bento XVI para a celebração do Dia Mun-
dial da Paz. 1º de janeiro de 2010. Se quiser cultivar a paz, preserva a criação. Disponível
em <http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/messages/peace/documents/hf_ben-xvi_
mes_20091208_xliii-world-day-peace.html >. Acesso em 12 de outubro de 2020.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 129


21. JOÃO PAULO II, Papa. Mensagem de Sua Santidade João Paulo II para a celebração do
XXIII Dia Mundial da Paz. 1° de janeiro de 1990. Paz com Deus criador, paz com toda cria-
ção. Disponível em http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/messages/peace/documents/
hf_jp-ii_mes_19891208_xxiii-world-day-for-peace.html >. Acesso em 12 de outubro de 2020.

22. IV CONFERÊNCIA Geral do Episcopado Latino-Americano – NOVA EVANGELIZAÇÃO, PRO-


MOÇÃO HUMANA E CULTURA CRISTÃ “Jesus Cristo ontem, hoje e sempre” (Hb 13,8) 7ª
Edição Tradução oficial da CNBB.

23. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL - CNBB 94. Documento “Diretrizes
Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil – 2011 – 2015”. Jesus Cristo, “Caminho,
Verdade e Vida” (Jo 14,6). 49ª Assembleia Geral Aparecida-SP, de 4 a 13 de maio de 2011.
Texto aprovado 09 de maio de 2011.

24. MOLTMANN, Jünger. O futuro ecológico da teologia cristã. Disponível em <http://www.ihu.


unisinos.br/noticias/509723-o-futuro-ecologico-da-teologia-crista-artigo-dejuergen-moltmann->.
Data: 22 de maio de 2012. Acesso em 13 de abril de 2015.

130 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


10
“ As ciências das religiões e
o exercício do movimento da
transformação dos seus saberes
para o ensino religioso

Sidney A. da C. Damasceno
UFPB

Cláudia Patrícia F. da C. Damasceno


UNINASSAU

Marinilson Barbosa da Silva


UFPB

10.37885/201001608
RESUMO

O Ensino Religioso (ER), com fundamentação epistemológica na(s) Ciência(s) da(s)


Religião(ões) como atualmente instituído pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
é fruto de uma conquista de sua classe docente. O presente estudo, constituído como um
artigo de revisão literária de resultado de pesquisa, fundamenta-se nos métodos dialéti-
co e funcionalista, com uma perspectiva analítica aplicada na contextualização atual do
ER. Seu objetivo é examinar como o entendimento da utilização do significado prático
da teoria da Transposição Didática constitui-se um dispositivo na sistematização dos
elementos que caracterizam o funcionamento didático no movimento de transformação
dos saberes das Ciências das Religiões, até chegarem ao nível do saber escolar, através
do componente curricular do ER. O texto estrutura-se a partir de algumas considerações
a respeito da contextualização histórica do componente curricular de ER da década de
1970 até a atual perspectiva pedagógico-didática, orientada na BNCC. Tal estudo pre-
senta os fundamentos da teoria da Transposição Didática conforme os aportes de Yves
Chevallard. Bem como, os resultados deste dispositivo através dos procedimentos de
ensino do professor – ao reputar os elementos estruturantes da organização didática da
aula. Este estudo desenvolve um exercício de transposição didática, com uma aplicação
a partir da BNCC, e discorre a respeito da constituição da fundamentação teórica para
essa práxis. Assim, infere ao constatar que o uso adequado da transposição didática
como um dispositivo, favorece ao professor no exercício profissional da docência de ER e
ao estudante com uma educação voltada para o exercício da cidadania, mediante a di-
versidade cultural religiosa brasileira.

Palavras-chave: Ciência (s) Religião(ões), Ensino Religioso, BNCC, Transposição Didática,

Ensino-Aprendizagem.
INTRODUÇÃO

Nas condições hodiernas, estabelecidas legalmente pelo Ministério da Educação


(MEC), instituídas através da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), (BRASIL, 2018a)
e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de licenciatura em Ciências da Religião
(DCNLCR), (BRASIL, 2018b), é que está orientado o presente estudo. Ou seja, o seu signifi-
cado em nível da Educação Básica brasileira, na etapa do Ensino Fundamental, é relativo ao
entendimento do (atualmente ainda denominado) componente curricular de Ensino Religioso
com sua fundamentação epistemológica suportada pelas Ciência(s) da(s) Religião(ões)
(CRs).Com um recorte sobre as práticas pedagógico-didáticas1 dos conhecimentos do ER no
âmbito escolar.
Seu objetivo é examinar como o entendimento da utilização do significado prático da
teoria da Transposição Didática constitui-se um dispositivo, na sistematização dos elementos
que caracterizam o funcionamento didático no movimento de transformação dos saberes
das Ciências das Religiões, até chegarem ao nível do saber escolar através do componente
curricular do ER.
Sublinha-se que este texto, como agora delineado, é fruto do período de releitura e
análise crítica reflexiva da nossa produção acadêmica – especificamente do capítulo dois
da dissertação de mestrado (DAMASCENO, 2016)2. Bem como, o levantamento e exame
do estado da arte do tema dentro da nossa atual pesquisa para a tese de doutorado (em
desenvolvimento no PPGCR/UFPB) com a colaboração dos companheiros coautores3.

METODOLOGIA

Considerando-se essas circunstâncias, é que este trabalho se encontra constituído


como um artigo de revisão literária de resultado de pesquisa (TEIXEIRA, 2010, p.43). O qual
se fundamenta tanto teórica quanto metodologicamente por meio de um inter-relação de
alguns entendimentos dos métodos dialético (LAKATOS; MARCONI, 2011, p. 100-105) e

1 Ressalta-se que essa opção segue o entendimento admitido de preservar o uso do termo “pedagógico-didáticas” preferencialmente
em relação a expressão mais habitual, ou seja, o termo didático-pedagogicas, por reconhecese que a Pedagogia incorpora o pen-
sar a respeito da educação proposta e a Didática engloba a educação que se faz. Consequentemente, nesse sentido, o reflexionar
(considerando-se o cerne do duvidar), que integra o planejar, vem muito antes, ainda que perpasse todo o fazer. Sem perder de
vista, o entendimento de que na práxis, a complexidade de suas interligações, resulta em uma complementação reciproca. Que
‘naturalmente’, sofre ressignificações e reapropriações por parte de cada professor, frente aos desafios da mediação no processo de
aprendizagem-do-ensino-aprendizagem-da-docência.
2 Pesquisa do mestrado que propôs como objetivo, averiguar se o modelo de Formação Continuada de Professores de Ensino Religio-
so contribuía com os professores de ER no ensino do tema “função e valores da tradição religiosa”; a qual ficou intitulada “Formação
continuada de professores de Ensino Religioso: do conteúdo das ciências das religiões à prática na sala de aula de ER” e encontra-se
disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/tede/8781/2/arquivo%20total.pdf > Acesso em: 01 set. 2020.
3 Anteriormente, o cerne deste trabalho foi apresentado também no V Congresso da ANPTECRE: “Religião, Direitos Humanos e Laici-
dade” como verifica-se nos seus anais

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 133


funcionalista (Ibidem, p. 110) com uma perspectiva analítica aplicada na contextualização
atual que perpassam o tema do componente curricular de ER.
Considerando-se também o viés das peculiaridades da dissertação “desenvolver um
trabalho significativo para a educação da natureza humana ao estruturar referenciais para
um componente curricular de ER” (DAMASCENO, 2016, p. 168). Como uma pesquisa social
aplicada – que “tem como característica fundamental o interesse na aplicação, utilização e
consequências práticas dos conhecimentos” (GIL, 1994, p.44).
Segundo um modelo alternativo de pesquisa, “no qual os pesquisadores e os partici-
pantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos no modo cooperativo
ou participativo” (GIL, 1994, p. 48), conforme a pesquisa descritiva, voltada a observar, regis-
trar, analisar, classificar e interpretar os fatos (ANDRADE, 2008, p. 5) com uma abordagem
qualitativa e do tipo bibliográfica.

A RELEVÂNCIA DO ENTENDER O CONTEXTO HISTÓRICO DO COMPO-


NENTE CURRICULAR DE ENSINO RELIGIOSO ATÉ A ATUAL PERSPEC-
TIVA PEDAGÓGICO-DIDÁTICA DA BNCC

Ao relacionar-se o funcionamento didático do conteúdo do ER a partir da BNCC, con-


siderando-se esse dispositivo (o entendimento da utilização do significado prático da teo-
ria da Transposição Didática) utilizado no movimento de transformação dos saberes das
Ciências das Religiões, é essencial levar-se em conta o contexto histórico do ER no Brasil.
Posto isso, até chegar-se a estruturação relativa aos conteúdos, conceitos e ordenamento
de cada elemento que compõe os três conjuntos que constituem cada unidade temática da
estruturação do componente curricular de ER, conforme a BNCC especificamente apre-
senta. Essencialmente, devido ela constituir-se como o conjunto orgânico e progressivo de
aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo do Ensino
Fundamental (BRASIL, 2018a, p. 7, grifo do autor).
Devido as características hodiernas do componente curricular de Ensino Religioso, no
nível da educação básica brasileira como normatizadas por meio da BNCC, não serem fruto
de uma invencionice ou alguma promoção de movimento de moda para a educação. Pelo
contrário, elas são frutos de reflexões críticas que têm seu início na década de 1970 quando
alguns estudiosos que atuavam como professores de ER começaram a fomentar esse debate.

Frutos do Contexto Histórico

Dentre esses expoentes, o padre Wolfgang Gruen, um estudioso da catequese desen-


volvida conforme os princípios da Igreja Católica Apostólica Romana – assim como observada
na história da educação brasileira (SAVIANI, 2013) –, “formulou uma reflexão muito importante

134 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


sobre a diferença entre o ensino religioso e o ensino catequético”. Ao apresentar a sua visão
de que “a catequese tem seu foco na educação da fé explícita de determinada denominação
religiosa” (BAPTISTA, 2015, p. 111) e não deve ser confundida com a religiosidade, porque
esta, objetiva ensinar a “capacidade de ir além da superfície de coisas, acontecimentos,
gestos, ritos, normas e formulações, para interpretar toda a realidade em profundidade
crescente e atuar na sociedade de modo transformador, libertador” (GRUEN, 1994, p. 117).
Sobre essa conjunção, corrobora Matheus Costa ao afirmar que os aportes de
Gruen constituem as:

primeiras reflexões e fatos históricos que aludem à profissionalização de cientis-


tas das religiões no Brasil – pois, segundo o que este autor escreveu já em 1976,
seriam estes os docentes adequados para este novo ensino religioso escolar,
distinto da catequese. Consequentemente, vieram à tona questões sobre a
relação entre Ciência da Religião e Ensino Religioso em escolas de Educação
Básica. Importante lembrar: trata-se do primeiro autor no Brasil, e provavelmente
do mundo, que começou a pensar essa relação. (COSTA, 2018, p. 306-307).

Do mesmo modo que um outro determinante para o resultar das peculiaridades


deste ER da BNCC pode ser observado “no contexto histórico imediato” como sublinha
Damasceno (2018, p. 27-29), a partir de 26 de setembro de 1995, quando foi instalado o
Fórum Nacional Permanente de Professores do Ensino Religioso (FONAPER) que

é uma associação civil de direito privado, de âmbito nacional, sem vínculo


político-partidário, confessional e sindical, sem fins econômicos, que congrega,
conforme seu estatuto, pessoas jurídicas e pessoas naturais identificadas com
o Ensino Religioso, sem discriminação de qualquer natureza4

Pois, como frisa Lilian Blank, uma vez que a transição da primeira para a segunda
geração dos professores do FONAPER já foi feita antes do chegar aos 25 (vinte e cinco)
anos de atuação no pais e o desafio atual é como equipar os professores de ER que estão
na Educação Básica por todo o Brasil:

[...] o coração do FONAPER são os professores. Se o FONAPER existe é por


causa dos professores de Ensino Religioso. Ele foi criado com esse intuito,
numa época onde que nós tínhamos só formação continuada. O mais de 1
(um) milhão e 600 (seiscentas) pessoas que assinaram o documento que
Álvaro nos lembra, são na sua grande maioria os professores de todo o Brasil.
Que tinham, se formavam nas comunidades, nos grupos, nos pequenos nú-
cleos, nos diferentes processos de formação continuada. E foram eles que
moveram todo esse processo. E mobilizaram e desafiaram todo esse grupo
de pessoas e organismos que criaram o FONAPER.
Eu estava lembrando que esse era o grande desafio na época: uma licencia-
tura. A entrada das universidades como bem lembra Maria Augusta. E agora,
4 Portal Nacional do Ensino Religioso. FONAPER – APRESENTAÇÃO. Disponível em:<ttps://fonaper.com.br/institucional/> Acesso
em: 02 set. 2020.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 135


Vicente coloca muito bem e, também, Maria Augusta.
Muitos, talvez, leiam este momento como se nós estivéssemos em um proces-
so de transição. Eu ousaria dizer que a transição já está feita. E novamente
nesse processo, neste momento, o nosso coração que são os professores
está batendo.
Porque, assim como há 25 (vinte e cinco) anos atrás, quando as suas neces-
sidades mais prementes era a formação reconhecida em universidades para
que eles pudessem prestar concursos e ter um salário de acordo em pé de
igualdade dentro do magistério.
Vinte e cinco anos depois, nós olhamos com tristeza que muita coisa em nosso
país e em toda a América Latina ainda está por ser feito [...] e aí entramos como
FONAPER [...] como nós nesse momento histórico vamos auxiliar e vamos
caminhar com esses professores [...]5.

Portanto, de acordo com o que se observa através da bibliografia do Ensino Religioso


no Brasil e o que está registrado nestes programas (dos eventos ao vivo transmitidos e gra-
vados remotamente, on-line), como lives apresentadas em comemoração aos 25 (vinte e
cinco) anos do FONAPER. O qual, constituiu-se como a “maior associação de professores
e pesquisadores de Ensino Religioso do país”, uma vez que “Os associados participam de
uma intensa construção coletiva que envolve a troca de ideias, práticas pedagógicas, pes-
quisas, eventos e proposições” e, principalmente, “Além, claro, da gratuidade nos eventos”6.
Averígua-se que a atual perspectiva que se apresenta na BNCC também é fruto do
trabalho de milhões de professores por todo o país que dialogam a partir do próprio “lugar de
fala” – como suportado pelas inferências apontadas por Ribeiro (2017)7. Independentemente,
dos vários percalços verificados. Como por exemplo, o da denominação do componente
curricular ´Ensino Religioso´ reportar ao entendimento da época da colonização brasileira e
não ser mais condizente com a perspectiva da atualidade.
Visto que, conforme também se verifica, entre esses professores existe a ciência relativa
ao fato de que por essa denominação integrar o artigo 210, da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, (BRASIL, 2019a), é que até então não foi pelo MEC tratada,
uma vez que priorizou-se examinar, constatar e instituir a presente conjuntura por meio da
BNCC. Dessarte, mediante a veracidade, infere-se, que desde a década de 1970 quando
essas práticas pedagógico-didáticas começaram a ser empreendidas e aprimoradas, até
5 Ciclo de Debates - 25 anos FONAPER - A história do FONAPER. Minutagem de início da fala descrita: 01:54:50 Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=I0akKeray1Y> Acesso em: 09 set. 2020.
6 Portal Nacional do Ensino Religioso. Disponível em: <https://fonaper.com.br/> Acesso em: 02 set. 2020.
7 Acentua-se que neste artigo, a respeito do entendimento de “O que é o lugar de fala?”, está empregado com o intuito de ressaltar
que as relações estabelecidas nesse contexto, constituem-se como um início do reconhecimento da atuação dos docentes envolvi-
dos. Ainda que ao assistir todas as lives verifica-se no sentido de ponderar na prática da autorreflexividade que esses professores
tem muitas outras contribuições proposta para a educação brasileira e, principalmente, no modo como o MEC reconhece através da
BNCC o ER com fundamentação epistemológica na Ciência(s) da(s) Religião(ões). Não a respeito de questões individuais, mas por-
que esses docentes se encontra espalhados por todas as regiões do país; são de níveis diferentes da educação, ou seja, professores
da educação básica e da superior; são de Instituições de Educação Superior (IES) dos âmbitos públicos e das privadas; e de credos,
religiões, confissões ou negações de fé diferentes, dentre outros tipos mais de instituições. Os quais, reconhecem nas Ciências um
caminho mais adequado à formação do cidadão brasileiro, que propõe o ensino-aprendizagem do interagir no convívio social através
de uma educação para a diversidade cultural religiosa de maneira mais propícia.

136 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


chegar-se na forma atual deste componente curricular para serem ministradas essas aulas
de Ciência(s) da(s) Religião(ões) e a formação inicial para o seu docente encontrar-se ins-
tituída DCNLCR é que se ressalta o âmago do dispositivo estudado.

FUNDAMENTOS DA TEORIA DA TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA

O termo Transposição Didática neste estudo diz respeito a uma expressão dos saberes,
como no ano de 1985 foi rediscutido pelo matemático Yves Chevallard8 – a partir das con-
siderações do sociólogo francês Michel Verret (1975) – observando que desde quando um
conhecimento que os cientistas sistematizam na academia tem o objetivo de ser ensinado
e aprendido pelos educandos na escola, esse saber passa por considerável processo de
transformações. Chevallard (1991, p. 45) afirma que:

Um conteúdo do saber que foi designado como um saber a ensinar sofre a partir
daí, um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo apto para ocu-
par um lugar entre os objetos de ensino. O trabalho que transforma um objeto do
saber a ensinar em um objeto de ensino é denominado de Transposição Didática.

Ao reputar-se essa perspectiva de Chevallard nos nossos estudos, ela é aplicada a


sistematização na escola dos conhecimentos da área de conhecimento científico denominada
Ciência(s) da(s) Religião(ões), segundo pensada no Brasil no nível da educação superior
(CAPES, 2019). Admitindo-se a existência de maneiras de manipular-se os saberes, confor-
me Chevallard (1991) destaca que, entre essas formas encontra-se: a de utilizar um saber
(como faz uma instituição), a de ensinar um saber, a de produzir um saber e a de transpor
um saber. Uma vez que “Chevallard conceitua Transposição Didática como o trabalho de
fabricar um objeto de ensino, ou seja, fazer um objeto do saber produzido pelo “sábio” (o
cientista) ser objeto do saber escolar” (CIVIERO, 2009, p. 20).
Os termos principais utilizados em sua teoria são: “saber sábio” – o conhecimento
produzido e sistematizado pelos cientistas na comunidade acadêmica; “saber a ensinar” –
o conhecimento que chega através dos livros e materiais didáticos (como proposto a ser
orientador do processo de ensino/aprendizagem); e “saber ensinado” – aquele que se efetiva
na sala de aula, que o educando apreende de fato9. Chevallard considera na existência dos
dois regimes do saber, primeiro, o funcionamento acadêmico do saber, segundo, o

8 Miriam Leite destaca que o autor apesar de, na maior parte da sua obra, “La transposición didáctica: del saber sabio al saber enseña-
do” (CHEVALLARD, 1991) referir-se a didática das matemáticas, sua perspectiva de extensão da teoria da transposição didática às
outras didáticas específicas foi reconhecida pelo próprio autor no posfácio da segunda edição dessa obra (LEITE, 2004, p. 61).
9 No espaço escolar o “saber ensinado” é denominado de várias formas como conhecimento científico escolar, conteúdo, conteúdo
escolar, programa escolar, entre outros. Assim, o “saber ensinado” é um objeto didático que é um produto de um conjunto de trans-
formações.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 137


funcionamento didático do saber, que eles são distintos. Contudo, ressalta que ambos se
encontram inter-relacionados e não se sobrepõem.
No que se trata do professor é possível considerar que a sua participação é efetiva na
transposição didática. Ao examinar a obra de Chevallard, Leite (2004, p. 62) observa-se que
ele “não confirmou o entendimento de que esse autor concebe um professor meramente
reprodutor de saberes produzidos em outras esferas da sociedade”. Pois, o professor atua
tanto na “Noosfera” como o lugar no qual acontece o “trabalho externo” da transposição di-
dática (CHEVALLARD, 1991, p. 18), como atua também na “transposição didática interna”
(Ibid., p. 31), como observa o autor no que ele chama de “mistérios da ordem didática”, pois,
“Quando os programas são fabricados, assinados, e tomam força de lei, um outro trabalho
começa: o da transposição didática interna.
Nesse viés, em que “alguns dos mais belos achados da noosfera não resistem a esse
jogo” (Ibid., p. 37), é essencial o entender que quando o professor de ER tiver em mãos
um livro didático (um exemplar que já representa uma parte do “saber a ensinar”), ele se
encontrará diante de um processo de transposição didática – embora o mesmo não tenha
participado desde o início, mas que outros professores participaram – Chevallard (1991, p.
20) deixa claro que: “Quando o professor prepara o curso, a transposição didática já começou
faz tempo”. Porém, efetivamente, quando o docente entra em contato com o livro passa a
ser uma pessoa que vai dentro da dinâmica do processo de movimento que o funcionamento
didático implica10, atuar entre a importância, a pertinência e a complexidade da transposição
didática. Assim, a parte que cabe ao professor é vital.
Logo, por outro lado, na ausência do livro didático, cabe ao professor (na realidade de
muitas escolas públicas)11 a partir do estudo e do conhecimento dos conteúdos das Ciências
das Religiões referentes aos temas, preparar a transposição didática do funcionamento
acadêmico do saber para o funcionamento didático do saber, ou seja, realizar a transposi-
ção didática sozinho, do início ao fim. Desenvolver os planejamentos de curso e de aulas,
através dos procedimentos de ensino e da constituição devida dos elementos estruturantes
da organização didática da aula.

10 No dizer de Chevallard (1991) esses processos são o da segmentação que os conteúdos sofrem (que ele chama da desincretização),
o deslocamento das problemáticas (a descontextualização), o apagamento do autor primeiro do conhecimento (a despersonalização)
e a adaptação de um con
11 Principalmente, sob dadas situações políticas (como temos verificado também através da nossa pesquisa de mestrado), como por
exemplo, o que se observa constituir um trabalho a mais para os docentes do componente curricular de ER que é ainda a ausência
da adoção do livro didático na escola por muitas das Redes de Ensino públicas ao longo dos anos (mesmo face as ofertas de livros
didático específicos por várias editoras de livros didáticos no mercado).

138 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


OS RESULTADOS DESTE DISPOSITIVO ATRAVÉS DOS PROCEDIMEN-
TOS DE ENSINO

No que tange ao propósito intencional da educação escolar como sistema de instrução e


ensino, Libâneo sublinha que a Didática é o ramo principal de estudos próprio da Pedagogia
como ciência da e para a educação:

Ela investiga os fundamentos, condições e modos de realização da instrução


e do ensino. A ela cabe converter objetivos sóciopolíticos e pedagógicos em
objetivos de ensino, selecionar conteúdos e métodos em função desses ob-
jetivos, estabelecer os vínculos entre ensino e aprendizagem, tendo em vista
o desenvolvimento das capacidades mentais dos alunos. (LIBÂNEO, 1994,
p.25-26)

Os procedimentos e métodos de ensino são relativos a maneira como o professor atua


em sua docência na sala de aula. Como propôs Araújo (1991, p. 26) o método de ensino
deve ser “constituído por um conjunto de processos de que o professor lança mão para
perseguir a finalidade de ensinar”. Jean Piaget (2006, p. 7186) observou a evolução dos
métodos de ensino como: métodos receptivos ou de transmissão pelo mestre (que são os
métodos verbais tradicionais), métodos ativos, métodos intuitivos (ou audiovisuais) e en-
sino programado. E, de acordo com Regina Haydt, eles podem ser considerados como as
“ações, processos ou comportamentos planejados pelo professor, para colocar o aluno em
contato direto com coisas, fatos ou fenômenos que lhes possibilitem modificar sua conduta,
em função dos objetivos previstos” (HAYDT, 2011, p. 107).
Libâneo (1994) ressalta que o trabalho docente efetiva o processo de ensino na articu-
lação de um sistema expresso e a Didática como disciplina é que estuda a dimensão desse
processo de ensino, “isto é, os objetivos educativos e os objetivos de ensino, os conteúdos
científicos, os métodos e as formas de organização do ensino, as condições e meios que
mobilizam o aluno para o estudo ativo e seu desenvolvimento intelectual” (Ibid., p. 71).
Por isso, como na escola, os conteúdos são organizados através do plano de ensino,
que segundo a concepção de Libâneo “é um roteiro organizado das unidades didáticas
para um ano ou semestre” (Ibid., p. 232), de fato o plano é a “apresentação sistematizada
e justificada das decisões tomadas relativas à ação a realizar” (FERREIRA apud PADILHA,
2001, p. 36), consequentemente, dentro desse processo de ensino Libâneo afirma que “a
aula é um detalhamento do plano de ensino” (1994, p. 241), portanto, cada aula também
tem a necessidade de apresentar um plano, pois, o plano de aula representa a proposta
específica para uma determinada aula, ou conjunto de aulas.
Assim, devido cada aula ser “uma situação didática específica, na qual objetivos e con-
teúdos se combinam com métodos e formas didáticas, visando fundamentalmente propiciar

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 139


a assimilação ativa de conhecimentos e habilidades pelos alunos” (Ibid., p. 178). Nesse viés,
Veiga (2008) propõe, como se verifica no esquema a baixo, os “elementos estruturantes da
organização didática da aula”, os quais não devem, em hipótese alguma, serem desprezados.

Figura 01: Elementos estruturantes da organização didática da aula.

Fonte: ESQUEMA 1
Veiga (2008, p. 275)

Como na relação entre esses elementos estruturantes da organização didática da aula


e o conteúdo do ER, o professor, ao decidir sobre quais os conteúdos serão apresentadas na
orientação do processo ensino-aprendizagem, baseia-se nos critérios de: “validade, utilida-
de, significação, adequação ao nível de desenvolvimento do aluno e flexibilidade” (HAYDT,
2011, p. 96-97), verificar-se que o êxito nesse exercício constante encontra no conteúdo,
na maneira como em sua docência o mestre viabiliza os acessos aos saberes, a fonte que
alimenta todo o processo de ensino-aprendizagem.
Considerando-se essas relações, sublinha-se a seguir uma contextualização no ce-
nário atual do componente curricular de ER a partir da BNCC, (BRASIL, 2018), dentro do

140 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


propósito, segundo aqui estabelecido neste estudo, (de examinar como o entendimento da
utilização do significado prático da teoria da Transposição Didática constitui-se um dispositivo,
na sistematização dos elementos que caracteriza o funcionamento didático no movimento
de transformação dos saberes das Ciências das Religiões, até chegarem ao nível do saber
escolar através do componente curricular do ER).

A PRÁXIS A PARTIR DA BNCC

Neste instante, ao dar continuidade ao desenvolvimento de práxis de transposição di-


dática – como outrora ponderadas (DAMASCENO, 2016, p. 104-113; 2018, p. 45-68) – apre-
senta-se mais um exercício prático, por meio do reflexionar uma aplicação a partir da BNCC.
Considera-se ser importante abrir um parêntese para ressaltar: Primeiro, que essa não é nem
sequer a primeira, muito menos a única, forma de articular esses objetos de conhecimento
para que o aluno venha a assumir a habilidade segundo a proposta da BNCC12.Segundo,
que existe a ciência de que devido esse discorrer perpassar a complexidade das práticas
docentes (PERRENOUD, 1993, 2000, 2001), pode absolutamente ser rejeitado por alguns
professores. Aqueles que, de modo singular, não apresentem os mesmos pontos de vista
quanto as fases da infância, suas relações com as teorias de aprendizagem e, principalmen-
te, a satisfação proporcionada pela valorização do viés da ludicidade e, ou, outros motivos.
Bem como, no sentido, de ser a opção crítica reflexiva priorizada contraria a tantas
outras perspectivas adotadas por docentes. Por exemplo, a do grito que é uma das imposi-
ções que marcam negativamente um percentual muito grande de nossos alunos13 desde os
primeiros anos da educação escolar. As quais, alguns dos seus resultados expressam-se
em frases do tipo: “Eu não gosto de ler!”, “Eu odeio matemática!”, “Eu detesto estudar!”, “Eu
sou burro mesmo!”14.

12 Porque cada professor, ao entender o significado e a significância do que e do como articular os conteúdos didática/pedagógica/
metodologicamente, desenvolve em sua práxis as mais distintas maneiras de propor ao seu aluno o entendimento para assumir a
respectiva habilidade de cada objeto de conhecimento.
13 Do mesmo modo que, outras formas de manter o controle da pessoa dos alunos, as quais, assim como nós, distintos professores no
trânsito entre diversas escolas (de municípios, estados e países diferentes) identificam e lamentam que persistam. Porque a utiliza-
ção da insegurança e do medo como uma estratégia de domínio não se justifica por qualquer que seja o propósito. Principalmente,
porque na hodiernidade constata-se que existem muitos outros procedimentos mais propícios para educar o comportamento humano
para as convivências sociais
14 Ao contrário, observa-se no componente curricular de ER que mesmo em meio a peculiaridade de cada sala de aula, sabe-se que
quando o professor de ER entra na classe (uma vez por semana, para dá sua aula com um tempo total em torno de 50 minutos),
ele tem, antes de tudo, no conquistar o carinho e o respeito das crianças, seu primeiro desafio profissional, se objetivar trabalhar em
uma perspectiva crítica-reflexiva! E, sobretudo, vencer os mais diversos percalços e discórdias advindos dos resultados de articular o
processo de ensino aprendizagem com esmero. O que nesse contexto, do mesmo modo, expressa seus resultados só que em frases
do tipo opostas: “Eu amo o Ensino Religioso”, “O Componente curricular que eu mais gosto é Ensino Religioso”, “O professor que eu
mais gosto é o de Ensino Religioso”. Reação essa que no dia a dia, geralmente, ou torna-se desconcertante, (e é um preço que o
docente arca) ou (re)concerta o ambiente e as práticas escolares (quando os resultados falam por si só).

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 141


O Plano da Unidade Temática Identidades e Alteridades

Na BNCC este exercício é relativo a unidade temática “Identidades e alteridades”. A tí-


tulo de seguir o viés do trabalho pedagógico que a escola apresenta no seu dia a dia e tentar
elidir possíveis dúvidas que geralmente surgem ao acessar-se uma outra perspectiva peda-
gógico/didático/metodológica. Principalmente, devido a forma descritiva não possibilitar, em
pouco espaço, a explanação minuciosa das peculiaridades que perpassam a prática docente
na ministração dessas lições como aqui narradas.
Porquanto, ao selecionar e organizar-se o conteúdo para estruturar o Plano de Ensino,
considera-se que devido nesse arranjo da BNCC do primeiro ano, observar-se duas unida-
des temáticas (“Identidades e alteridades” e “Manifestações religiosas”) e três Objetos de
Conhecimento (OBC), considera-se um número de doze aulas para tratar dos conteúdos
relativos a primeira unidade temática e o respectivo OBC15 (“O eu, o outro e o nós”) e as
habilidades (de código alfanumérico EF01ER01 e EF01ER02, respectivamente, “Identificar
e acolher as semelhanças e diferenças entre o eu, o outro e o nós” e “Reconhecer que o
seu nome e o das pessoas os identificam e os diferenciam”, (BRASIL, 2018a, p. 442 - 443).

As perguntas norteadoras

Em consequência a unidade temática temos perante as questões guias do processo


de ensino-aprendizagem e as suas respectivas respostas:
1) O que ensinar ? O OBC nº 1, “O eu, o outro e o nós”;
2) Qual o seu objetivo geral? Entender os constituintes do “eu” na concepção do ser
humano e a importância de reconhecer e acolher as suas semelhanças e diferenças nos
relacionamentos com as pessoas.
3) Quais os 3 objetivos específicos?
3.1 Perceber a inteligência, os sentidos, as emoções e os sentimentos.
3.2 Entender a identidade e a vontade.
3.3 Diferenciar o identificar, o não reconhecer e o acolher no Eu, no Outro e no Nós;
4) O que o aluno deve ser capaz ao final dessa unidade? “Identificar e acolher as se-
melhanças e diferenças entre o eu, o outro e o nós” e “Reconhecer que o seu nome e o das
pessoas os identificam e os diferenciam”.

15 Raciocinando a partir da contagem de no mínimo uma aula por semana. Arredondamos para doze aulas, cientes de que tomamos
um número de aulas de um OBC pelo outro, devido em um ano letivo, um Plano de curso apresentar cercar de quarenta aulas de ER
dentro da referência do mínimo de 200 dias de aula no ano escolar.

142 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


A descrição da organização das doze aulas

Ao seguir este empenho descritivo, pontua-se que no conjunto dessas doze aulas, opta-
se na preleção inicial aplicar-se a primeira avaliação (a de diagnóstico inicial), (LUCKESI,
1992, 2002). Explicar o assunto a ser apreendido pelos alunos – crianças – e, principalmente,
ajustar o Plano de Ensino. Da segunda a quinta aula prefere-se tratar da primeira parte do
OBC, o “Eu”. Na sexta aula prioriza-se aplicar uma avaliação gráfica (uma vez que para o
primeiro ano existe essa prática).
Na sétima e oitava aula, as lições escolhidas são sobre a segunda parte do OBC, o
“Outro”. A nona e a décima preleções elege-se para expor a respeito da terceira parte do
objeto que é o “Nós”. Na décima primeira aplica-se uma outra avaliação e na decima segunda
concretiza-se a recuperação da aprendizagem de todo o assunto.

Destaque entre os objetivos e a habilidade

Ao introduzir-se esse assunto, sublinha-se que discorre-se por intermédio do entendi-


mento inicial de que “Dentro de toda semente existe a força da vida” e essa vida só consegue
nascer, crescer e desenvolver-se quando é gerada dentro da mãe terra, de um ovo ou de
um ventre materno (como a barriga de uma mamãe)16.
No processo, quando o aluno percebe que dentro do ser humano também existe uma
essência da vida, ele passa durante estas aulas por momentos nos quais vai tecendo suas
relações de que no seu corpo (no mais íntimo do seu ser) há uma pessoa. A qual, nos acos-
tumamos também a chamá-la de “Meu próprio Eu”. Bem como, entende que nesse corpo
existem capacidades, as quais funcionam a cada instante e as ações das mesmas atuam
na constituição do Eu. Por conseguinte, ele depreende que: toda pessoa tem uma inteligên-
cia e pode conseguir no cotidiano tornar-se mais inteligente – porque particularmente para
qualquer pessoa é possível o exercitar a sua inteligência através do raciocinar.
Do mesmo modo que além da sua inteligência, o aluno conclui, também, que se en-
contra no corpo humano a capacidade dos sentidos (tato, visão, olfato, audição e paladar),
os quais, atuam juntamente com os pensamentos na constituição do nosso próprio eu. Ele
entende que, dentro do ser humano, aquilo denominado na sociedade de identidade é mui-
to mais do que os seus números dos documentos (tipo Certidão de nascimento, CPF). Ele
entende que ela vai além da significativa importância a qual existe no seu nome de registro
quando fala-se da “Identidade do Eu”.
16 Ressalta-se que devido o espaço de um artigo não permiti ser minucioso na descrição dos detalhes que transpassam essas aulas,
como suas atividades, por exemplo, desde as que tratam do letramento como objetivo do ciclo da alfabetização, até as atividades
específicas e suas nuances. As principais reações dos alunos ao semear, cuidar e acompanhar a sua semente de feijão. Ou, separar
as três partes do ovo – casca, gema e clara – em recipientes diferentes etc. Nem tão pouco, as imagens e vídeos que podem ser
usadas e as envolventes reações positivas das crianças a “força da vida” ao assistirem um pinto de um simples ponto dentro de uma
gema, formar suas partes, crescer e após o 21º dia começar a quebrar e sair da casca de seu ovo.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 143


Sendo assim, como nessa construção o estudante reconhece que quase sempre sur-
gem momentos na vida em que a raiva e a dor poderão ser percebidas – e, geralmente, é
melhor que sejam mesmo. Nos quais, por consequência, reaja ele naturalmente chorando,
ou não, esse aluno não deve, para o seu próprio bem-estar, nem negar a existência de sua
emoção (ao tentar anular as suas respostas – “não pode chorar !”), nem sequer tornar-se
dependente delas em detrimento da sua inteligência.
Ele apreende, ainda, que entre as forças mais poderosas que atuam dentro de um ser
humano (assim como ele) encontra-se a Vontade – que ela é o seu Querer – e a discernir as
suas próprias vontades e influências. Não apenas dos seus gostos, mas principalmente, no
modo como segundo a sua inteligência, ele vai escolher vivenciar os sentimentos de afetos
(amor, bondade etc.) ou de desafetos (ódio, maldade etc.) – assim como seus ressentimentos.
Posto isso, ao discernir que é nas inter-relações dessas partes que constituem o seu eu que
suas escolhas são elegidas. Por exemplo, “Se o seu, ou a sua, papai, mamãe, vovô, vovó, titia,
(responsável) aplicar sobre ele uma correção em consequência de um erro e, ou, auxílio para
apreender uma obediência; esse aluno poderá reconhecer como ele discerne com e no seu “eu”.
Ou seja, como ele raciocina com a sua inteligência. E pode sentir desde a sua emoção
de tristeza, devido ao propósito que por suposição a correção venha normalmente a provo-
car nele as lágrimas que senti ao chorar – por intermédio do tato da sua pele. Bem como,
a oportunidade de entender os motivos que podem permear os seus pensamentos, para
influenciá- lo na sua escolha do sentimento que ele irá alimentar dentro de si pela pessoa
envolvida na ocasião – se de afeto (respeito, bondade) ou desafeto (desrespeito, maldade).
Ademais, após compreender alguns entre os principais limites dentro do saber, querer,
poder e exercitar o identificar em si essas relações, então o aluno passa a poder pensar nas
maneiras mais adequadas de reconhecer no meio de “Nós” esses limites e como algumas
pessoas tornam-se impossibilitadas de acolher o “Outro”. Geralmente, por causa das au-
sências do desenvolvimento desses saberes a respeito das partes que constituem o “Eu” do
ser humano e como elas interagem. Não obstante, o aluno é conduzido a reconhecer que
independente da nossa ciência (sabermos ou não o motivo por trás de ações desprovidas
dessas pessoas) a humanidade desaprova qualquer tipo de hostilidade que venha a ferir os
Direitos humanos de um cidadão global (UNESCO, 2015;).

A Constituição da Fundamentação Teórica para o exercício da Transposição Didática

Uma das características mais marcantes da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) é a inter-
disciplinaridade. Depois da autonomia da área “Ciências da Religião e Teologia” como área
de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES,

144 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


2019)17, as diversas reflexões a respeito da Ciências da Religião (sobre o seu papel, lugar e
perspectivas histórica, epistemológica e teórico-metodológica) as quais têm sido empreendi-
das (SENRA, 2017; SILVEIRA; MORAES JÚNIOR, 2017; SAMPAIO, 2019), demonstram atra-
vés dos fatos históricos a firme consolidação que esta área tem potencializado no nosso país.
Nesse desenvolvimento, conforme observa-se a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) pro-
grediu respeitavelmente, até chegar, atualmente, ao ponto de suportar a Educação Escolar
brasileira, após ser, pelo MEC, vinculada com o nível da Educação Básica por intermédio
do componente curricular de Ensino Religioso. Na práxis, em que no exercício da docência
o uso do dispositivo da Transposição Didática pelo professor é suportado a partir do “saber
sábio” produzido na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), se faz necessário entender a interdis-
ciplinaridade segundo sublinham Japiassu e Marcondes (2006, p. 150):

[...] um método de pesquisa e de ensino susceptível de fazer com que duas ou


mais disciplinas interajam entre si. Esta interação pode ir da simples comuni-
cação das ideias até a integração mútua dos conceitos, da epistemologia, da
terminologia, da metodologia, dos procedimentos, dos dados e da organização
da pesquisa.

Nesse sentido, devido “Todo saber humano relacionar-se a um pré-saber” e a “epistemo-


logia contemporânea reconhece esse fato” (JAPIASSÚ, 1986, p. 18) o professor de ER não
precisa sentir-se na obrigação de ter que abordar e organizar sua fundamentação teórica
suportado em uma única disciplina, nem mesmo em um autor e, ou, apenas uma teoria so-
mente. Porém, é essencial sempre ter em mente o pressuposto de que “a ignorância é a
mãe da intolerância” e, consequentemente, visto que uma “maneira de forjar a convivência
pacífica entre as religiões é através da informação e do conhecimento (MIELE, 2011, p. 24,
grifo da autora) é fundamental manter muito cuidado com as formas de contextualizar e
relacionar as informações e os conhecimentos com os contextos onde se encontram cada
comunidade, família, escola e aluno. Por consequência, mediante a interdisciplinaridade
da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), é possível considerar as suas disciplinas, Filosofia da
Religião, Sociologia da Religião, História da Religião, Psicologia da Religião etc., em suas
fundamentações epistemológicas.
Do mesmo jeito que nessa essência, é primordial reputar a perspectiva da “transdisci-
plinaridade como um referencial para suportar o desenvolvimento do arcabouço teórico do
professor de ER”, (DAMASCENO, 2016, p. 154-159), pois ela vai ao encontro de uma me-
todologia mais propícia para o componente curricular do ER – como igualmente corroboram
Aragão e Souza (2018), ao discorrer sobre a “Transdisciplinaridade, o campo das Ciências

17 Maiores detalhes dessa evolução significativa podem ser constatados no exame desse relatório de avaliação apresentado por Flávio
Sienra Ribeiro, Dilaine Sampaio e Cláudio Ribeiro, coordenadores da Área Ciências da Religião e Teologia (CAPES, 2019).

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 145


da Religião e sua aplicação ao Ensino Religioso” – e o entendimento outrora acentuado
quanto as Teorias Pedagógicas Modernas (TPMs):

Porque, em suma, uma teoria pedagógica não se faz boa ou ruim em si mesma.
O que se deve observar são os aspectos positivos que surtem efeitos para que
a ação pedagógica venha a atingir os seus objetivos propostos. Isso de acordo
com cada realidade onde uma teoria específica é idealizada na estruturação
de seu desenvolvimento. Assim, são os aspectos positivos que devem ser
levados em conta e moldados conforme as particularidades de cada realidade
dentro dessa proposta de transitar entre as TPMs.

Portanto, na complexidade da docência do ER, cabe ponderar o exemplo que ressalta


François-Marie Arouet ao escrever e assinar com o seu pseudônimo de Voltaire, sua carta
“Sobre os Pensamentos de Pascal”: “Já é bastante ter acreditado perceber alguns erros de
desatenção nesse grande gênio. É um consolo para um espírito tão limitado como o meu
ficar bem persuadido de que grandes homens podem se enganar como o povo” (VOLTAIRE,
2006, p. 164, grifo nosso). O que significa dizer que, com relação a alguns autores, podem
ser registrados supostos equívocos em suas vidas (ou humanamente considerando, erros
mesmo, por que não?!), existir alguma parte de suas teorias que não se sustentaram ao
longo do tempo e\ou outros pensadores que possam vir a refutá-las. Entretanto, isso não
deve impedir de que seja aproveitado o que existe de positivo e mais propício entre os apor-
tes desses autores e suas teorias para nossas fundamentações teóricas e epistemológicas.
Por conseguinte, ao pensar-se as relações da fundamentação teórica que suporte essas
aulas segundo descritas, anteriormente, pode-se considerar a Alteridade no Ensino Religioso
como abordada por Tarcísio Wickert (2007, p. 47-60), ao considerar Heidegger e Emmanuel
Lévina. Mas também, há de julgar-se o que António Damásio (2018) com “A estranha ordem
das coisas - as origens biológicas dos sentimentos e da cultura”, pode aglutinar (de modo
considerável) uma diversidade de entendimentos das formas através das quais o “eu” pode
ser entendido ou explicado. Da mesma forma, Viktor Frankl (1989), com sua perspectiva
do ser humano poder alcançar um sentido para a vida, merece ser cogitada. Ou seja, em
suma, o que devido alguns preconceitos e, ou, ponto de vista distintos não se deve deixar
de duvidar é: se, bem como, até que ponto, as relações tecidas pelos mais diversos autores
podem ser abordadas nas perspectivas interdisciplinar e transdisciplinar?
E nesse viés, são diversos o reflexar e o duvidar possíveis. Como por exemplo: sobre
o quanto pode Kant contribuir com o modo que observa o sujeito como transcendental e
– ao discorrer sobre a “razão prática” (KANT, 2001) – analisar os limites, possibilidades e
condições do conhecimento da razão, tal e qual – ao tratar da “razão crítica” (KANT, 2004)
– observa como a moral encontra-se associada com os atos de uma pessoa e o que vem
a ser a liberdade. Se Hegel favorece ao ver o sujeito como absoluto e acentuar que se faz

146 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


necessário averiguar o desenvolvimento da história na autonomia da consciência (HEGEL,
1995), examinar a objetividade do “em-si” na intersubjetividade, o modo como o Outro é
reconhecido na aquisição da autoconsciência – no alcançar um conhecimento objetivo, en-
tendendo que é através da linguagem que se encontra a maneira essencial do ser humano
interagir (HEGEL, 2007).
Do mesmo modo se com Marx é possível, ao observar-se quando ele frisa o eu me-
cânico e considera o sujeito como um indivíduo que trabalha (MARX; ENGELS, 2001). Se,
na forma como Habermas pondera que o sujeito racional se trata de um indivíduo empírico/
emancipatório porque a razão prática atual (que é comunicativa e transpassa as relações
intersubjetivas) torna-se uma razão discursiva suportada por uma ética própria (HABERMAS,
1982, 1990, 2002) corrobora ou não.
E o que dizer de releituras mais atuais como a de Andrei Martins (2019) ao questionar
“O que é a hipocrisia?” , como ela está presente nas relações humanas. E discorrer a respeito
de que “A verdade é insuportável” quanto a nossa condição. E tantos quantos outros autores
e perspectivas? Pois, afinal, o que praticamente a maioria de nós docentes concordamos
que está correto é: não há nada de errado em aprender os conceitos das principais teorias,
porque trata- se da imprescindível fundamentação teórica para um professor ocupar-se dos
conteúdos específicos para suas aulas.
Consequentemente, no caso do ER, como Cecchetti e Pozzer (2015, p. 335-352)
sublinham, diz respeito a exequibilidade do estudo dos saberes religiosos e não religiosos
na escola, estabelecido através do conhecer as diferentes crenças, grupos e tradições re-
ligiosas com o objetivo de o educando entender e interpretar a realidade social e superar o
analfabetismo religioso.

CONCLUSÃO

Dessarte, segundo constata-se, o uso adequado da transposição didática pelo docente


de ER como um dispositivo, favorece o professor e promove o desembaraço da linguagem
científica para o estudante do nível da educação básica. Efetivamente, contribui para o
desenvolver a constituição dos saberes do ER (seus conteúdos), a partir da(s) Ciência(s)
da(s) Religião(ões), para o aprendente desse componente curricular fundamentar os seus
conhecimentos. Proporcionando assim a cada educando, através da educação escolar e do
“saber ensinado” pelo ER, um suporte mais adequado para analisar as relações que perpas-
sam a religião e a religiosidade, com base nos aspectos histórico-sócio-político-econômicos
do conhecimento religioso no exercício de sua cidadania. Análise essa, a qual, frente a
diversidade cultural religiosa que se verifica na sociedade brasileira – onde os substratos,

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 147


de várias matrizes, culturais e religiosas constituem-se um fator marcante – abrange a exis-
tência de cada educando.

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148 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


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150 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


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Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 151


11
“ Atores evangélicos no parlamento
brasileiro – da presença protestante
à presença pentecostal: o que
mudou (2011-2015)

Saulo Baptista
Uepa

10.37885/201001773
RESUMO

O texto a seguir indica as ênfases que caracterizavam a atuação evangélica no parlamento


nacional brasileiro, até 1986, e as novas ênfases que a têm caracterizado, a partir do
Congresso Constituinte e da criação da Frente Parlamentar Evangélica, até a atual 54ª
legislatura, que teve início em 2011 e concluirá em 2015. A análise crítica é feita a partir
de categorias correntemente aplicadas para tipificar os grupos de parlamentares e suas
práticas no Congresso, tais como “baixo e alto clero” e “legendas de aluguel”, fazendo-
-se, também, uma atualização da categoria “populismo”, como contribuição teórica para
aplicá-la ao fenômeno político-religioso em destaque.

Palavras-chave: Evangélicos, Pentecostais, Neopentecostais, Populismo.


INTRODUÇÃO

O texto a seguir indica as ênfases que caracterizavam a atuação evangélica no par-


lamento nacional brasileiro, até 1986, e as novas ênfases que a têm caracterizado, a partir
do Congresso Constituinte e da criação da Frente Parlamentar Evangélica, até a atual 54ª
legislatura, que teve início em 2011 e concluirá em 2015. A análise crítica é feita a partir
de categorias correntemente aplicadas para tipificar os grupos de parlamentares e suas
práticas no Congresso, tais como “baixo e alto clero” e “legendas de aluguel”, fazendo-se,
também, uma atualização da categoria “populismo”, como contribuição teórica para aplicá-la
ao fenômeno político-religioso em destaque.

PRESENÇA PROTESTANTE TRADICIONAL

A presença evangélica nos parlamentos e na política brasileira, em geral, foi marcada,


na época da predominância dos protestantes tradicionais no cenário religioso não católico,
pela ênfase na liberdade de culto e, consequentemente, na afirmação do Estado laico como
única forma de garantir a consolidação da democracia liberal no nosso país.
Abrimos aqui um parêntesis, para explicar quem são esses protestantes tradicionais,
também conhecidos como evangélicos conservadores. De forma simplificada, estamos
considerando os membros de denominações evangélicas que se implantaram no Brasil,
através de iniciativas missionárias proselitistas, originárias dos Estados Unidos, principal-
mente, desde o século XIX, tais como batistas, presbiterianos, metodistas, congregacionais
etc. Em geral, podem ser considerados evangélicos conservadores, no sentido doutrinário.
David Bebbington (1989, p.3) resume, em quatro marcas distintivas, o pensamento evangélico
conservador: a primeira, trata da necessidade de conversão pessoal, ou seja, o crente tem
que passar pela experiência do “nascer de novo”, pela fé no sacrifício expiatório de Jesus
Cristo; a segunda marca se refere à crença na autoridade da Bíblia, como “única regra de fé
e prática”, a ser obedecida em todas as situações da vida do fiel; a terceira, trata da crença
na morte redentora e ressurreição de Jesus Cristo, o Filho de Deus, e, a quarta marca exige
que o fiel seja um propagador ativo do evangelho.
A presença protestante, principalmente no período desde a república de 1930 até o
Congresso Constituinte de 1986, contou com importantes parlamentares. Para citar alguns
nomes, aleatoriamente, lembramos, por exemplo, de Guaracy Silveira (1893-1953), Aurélio
Vianna (1914-2003), Adrião Bernardes (1891-1969), Daso Coimbra (1926-2007), Rafael Gioia
Jr. (1931-1996). e Fausto Rocha (1938-2011). A atuação desses e outros protestantes, de
diferentes linhas ideológicas, trazia, em comum, a defesa da liberdade de expressão religiosa.

154 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Nas diversas legislaturas anteriores ao Congresso Constituinte de 1986-1988, a com-
posição das bancadas era marcada pelas oligarquias rurais e representações do poder eco-
nômico industrial e financeiro. O Congresso brasileiro era mais elitista e conservador do que
é hoje, pelo menos quando se observa sua composição a partir da origem do parlamentar
e quais grupos lhe dão sustentação eleitoral.

PRESENÇA PENTECOSTAL E NEOPENTECOSTAL

A partir do Congresso Constituinte de 1986, houve um despertar dos pentecostais para


ocuparem os parlamentos brasileiros. Já havia iniciativas antecedentes, mas o momento
constituinte foi uma referência adequada para indicar essa nova postura.
Aqui cabe um excurso para explicar como pentecostais e neopentecostais se distin-
guem, radicalmente, dos chamados protestantes tradicionais. Em artigo, ainda inédito, es-
clarecemos o seguinte: “O campo religioso evangélico brasileiro se completa com os grupos
que mais têm crescido em número de seguidores, desde os anos de 1970. Referimo-nos
aos pentecostais e neopentecostais, que se distinguem dos protestantes [tradicionais], por-
que, além de abraçarem as marcas do quadrilátero [de Bebbington], citado anteriormente,
agregam uma quinta característica: o batismo pelo Espírito Santo, cuja evidência externa
é a glossolalia. Ou seja, o pentecostal acredita que não basta o fiel experimentar o novo
nascimento; ele deve receber o batismo do Espírito Santo e, quando o recebe, ele entra
em êxtase e fala línguas estranhas. Trata-se de uma doutrina baseada em interpretação de
passagens do livro bíblico de Atos dos Apóstolos, principalmente. Quanto aos neopente-
costais, suas ênfases são duas: a primeira reside na chamada batalha espiritual, ou seja,
uma beligerância permanente contra os seres demoníacos, que, conforme essa doutrina,
são responsáveis por todos os males que afligem as pessoas; e a segunda é a teologia da
prosperidade, baseada na retribuição divina; quer dizer, tudo que o fiel doar à igreja, estará
doando a Deus, e este lhe retribuirá de forma multiplicada, em bençãos de toda natureza,
como saúde, sucesso profissional, família estruturada, libertação de vícios, fama, enfim,
prosperidade, em todas as dimensões da vida.”
É importante assinalar que os deputados federais Daso Coimbra e Íris Rezende vi-
sitaram a 28ª Assembleia da Convenção Geral das Assembléias de Deus, realizada em
Anápolis, de 15 a 22 de janeiro de 1985, antes da eleição para a legislatura constituinte.
Naquela ocasião, eles lançaram um repto para a maior denominação evangélica do Brasil,
no sentido de que ela saísse da postura quase absenteísta para uma nova postura militante
corporativa. Os assembleianos se mobilizaram e ampliaram a presença na Câmara, tendo
começado com apenas um deputado, antes de 1986, e chegando a eleger 13 deputados,

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 155


para essa legislatura do Congresso constituinte. A Igreja do Evangelho Quadrangular, por
sua vez, já estava presente com um deputado, desde a legislatura de 1979-83.
A denominação paradigmática do que, posteriormente, chamaríamos neopentecos-
talismo, ou seja, a Igreja Universal do Reino de Deus, em que pese ser uma denominação
jovem, criada na década anterior, conseguiu eleger um deputado para o Congresso consti-
tuinte. Nas legislaturas seguintes, a representação iurdiana cresceu, de forma exponencial,
passando para três, seis, 16 e 18 parlamentares, de 1987 a 2003.
A eleição de pentecostais e neopentecostais ao Congresso Constituinte se deveu, também,
ao medo disseminado nas igrejas, acerca da “ameaça comunista”. A preocupação era que o
novo ordenamento jurídico brasileiro viesse a favorecer bandeiras socialistas e comunistas, visto
que as lideranças dessas igrejas vinculavam os movimentos sociais, os partidos de esquerda
e o próprio PT (Partido dos Trabalhadores) às bandeiras da tradição comunista, indicando um
desconhecimento quase absoluto sobre essas correntes políticas (socialismo e comunismo).
Curiosamente esses novos evangélicos, uma vez no poder, passaram por uma rápida re-
ciclagem, tão logo o PT conquistou o poder. De inimigos do PT-lulismo se tornaram aliados que
costumam emprestar apoio ao governo, qualquer que seja ele, em troco de negociações one-
rosas, traduzidas em ocupação de cargos, comissões e benefícios diversos. Durante o período
do PT no poder (2003-2016), lideranças, como Samuel Câmara, declaravam apoio ao governo.
Uma vez dentro do Congresso, as oligarquias pentecostais logo aprenderam a transitar
na máquina legislativa. A movimentação que antecede qualquer eleição é sempre uma escola
eficaz para familiarizar postulantes e candidatos com os bastidores da política. Essa “escola
de formação” se completa com o exercício dos mandatos. E, tendo em vista que as estruturas
das igrejas são verticais e o exercício do poder é autoritário, esses políticos já vêm formados
no mandonismo, coronelismo e caudilhismo tão presentes na nossa cultura política brasileira.
Pois bem, a partir da constituinte de 1986, o Congresso estava com nova composi-
ção, incluindo, também, os representantes do novo sindicalismo, intensificado a partir da
criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT). A ascensão desses emergentes trouxe
vitalidade e uma composição menos elitista para o Congresso. Ou seja, houve ganhos para
o processo democrático e para a sociedade, ainda que essas representações viessem de
práticas elitistas em seus respectivos segmentos sociais.1
No Congresso, ficou evidente que o lugar dos pentecostais seria no “baixo cle-
ro”. Ou seja, iriam engrossar a maioria que não comanda, visto que é manobrada pelos
“cardeais”, os verdadeiros donos do poder, em todas as instâncias, tais como, partidos,
coligações, bancadas e grupos de apoio ao governo. Todavia, pertencer ao “baixo clero” sig-
nifica ter “moeda de troca”, ou seja, o voto, principalmente, para fazer as decisões penderem

1 Sobre esse tema, é recomendável consultar: RODRIGUES, Leôncio Martins. Mudanças na classe política brasileira. São Paulo:
Publifolha, 2006.

156 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


para quem oferecer melhores vantagens, seja nos nichos de poder do Congresso, seja nos
espaços das bases do parlamentar.
Esta condição de “baixo clero” já vinha prenunciada na escolha das legendas e na
distribuição dos parlamentares por diversas legendas, de acordo com as alianças com o
poder em seus respectivos estados. Mas, em pouco tempo, verificaram que poderiam as-
sumir o controle de legendas. O resultado dessa estratégia foi logo representado no fato da
Assembleia de Deus conquistar espaços e forte presença no PSC (Partido Social Cristão) e
a Igreja Universal conseguir dominar as instâncias de decisão do PRB (Partido Republicano
Brasileiro). Não obstante, questões regionais explicam a filiação de evangélicos em grandes
partidos, como o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) e PSDB (Partido da
Social Democracia Brasileira). A presença de parlamentares evangélicos no PT se deve à
militância histórica dessas lideranças nos movimentos populares, mas, essa presença tende
a diminuir, devido a uma certa lógica de mão dupla. Nem os evangélicos, em sua maioria,
toleram as causas defendidas por grande parte das esquerdas, tais como – casamentos
de homoafetivos, interrupção da gravidez, uma teologia inclusiva, que respeite a população
LGBTQI+, por exemplo, nem os movimentos de esquerda conseguem conviver com as
visões de mundo conservadoras e reacionárias, defendidas pela maior parte da população
evangélica brasileira.
Retomando o raciocínio anterior, os novos evangélicos egressos ao parlamento, deixa-
ram evidente que não tinham afinidade com a tradição liberal “iluminista” dos antigos parla-
mentares protestantes, que defendiam um Estado laico, que seria, por definição, equidistante
de todas as instituições e manifestações religiosas. Lembro aqui que uma das primeiras
propostas do grupo pentecostal foi a de colocar uma Bíblia Sagrada em local de destaque
no plenário do Congresso. Isto era razoável, para quem conhece a cultura brasileira, con-
siderando que os católicos, pelo menos, grande parte deles, sempre insistiram em afixar
crucifixos com o Cristo morto nos recintos dos prédios públicos.
A natureza militante dos novos evangélicos se evidenciou em forma de um “espírito
de cruzada”, que trouxeram para a esfera pública, em defesa de causas que, na interpreta-
ção deles, afinava-se com os princípios e valores do Evangelho. Com o passar do tempo,
logo perceberam que podiam ampliar essa frente em favor de bandeiras, que eles asso-
ciavam à “defesa da família”, coligando-se, nessas lutas, com parlamentares católicos e
espíritas. Em 08/05/2007, por exemplo, o apóstolo e deputado federal Robson Rodovalho,
registrou uma Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida.2 Essa aliança se tornou mais
vigorosa com a instalação de uma Frente Parlamentar Mista da Família e Apoio à Vida,

2 Disponível em https://www.camara.leg.br/internet/deputado/frentes53.asp. Acesso em 12/10/2020.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 157


em 2015, relançada, mais recentemente, em março de 2019, com a atuação exaltada da
ministra Damares Alves.3
Não quero me estender muito, mas gostaria de tocar, ainda, em três tópicos. No primei-
ro, faço destaque para o que aconteceu com a FPE na 53ª legislatura (2008-2012). No se-
gundo tópico, trato de algumas impressões sobre o que ocorreu na 54ª legislatura (com
ênfase para a ascensão do deputado Marcos Feliciano à presidência da Comissão de Direitos
Humanos). E, em terceiro lugar, propor uma reflexão teórica para a compreensão desses
atores religiosos no espaço público.
Sobre a atuação dos parlamentares evangélicos na 53ª legislatura, Luiz Prisco4 oferece
o seguinte balanço:

Assim, demonstramos que se trata de um grupo parlamentar plural sócio e


politicamente – composto por mais de 12 partidos políticos, com destaque
para o PSC e PMDB. Ideologicamente, podemos ver uma maioria à direita,
precisamente 53,12%. Do ponto de vista da ação política, ou seja, a proposição
de Leis, percebemos também uma pluralidade, porém, existe um espaço de
centralidade para os projetos de Lei sobre duas temáticas: trabalho e direitos
do consumidor. Um outro dado interessante que mostramos nesta parte é que
25% dos congressistas evangélicos não apresentaram nenhum projeto de Lei
durante a 53º legislatura. (p. 92-93)

Sobre uma tentativa de identificar um perfil de atuação, o mesmo autor indica o seguinte:

[V]imos que o lugar de destaque das proposições sobre trabalho e direitos do


consumidor estão ligados ao novo perfil dos eleitores evangélicos e, também,
um caráter populista em algumas dessas propostas. Trabalhamos também com
a noção de coerência dentro da ação política desse grupo. Em seguida, discu-
timos a presença de elementos progressistas – ligados à esquerda – dentro da
bancada evangélica federal, proporcionada, entre outras razões apresentadas
anteriormente, pela presença de políticos de esquerda. Por último, vimos que
as propostas eminentemente religiosas perderam espaço, graças à renovação
dos ideais políticos dos evangélicos brasileiros contemporâneos. (p.93)

Prisco partiu da seguinte questão: “De qual maneira se desenvolve a ação política da
bancada evangélica federal da Câmara dos Deputados do Brasil durante a 53ª legislatura?”
(p. 96) E obteve como resposta a constatação de que a ação dos parlamentares evangélicos,
durante a 53ª legislatura federal, deu ênfase a dois temas: Trabalho e Direitos do Consumidor.
O resultado, segundo ele, “mostra uma ação política coerente, pois responde às ne-
cessidades dos eleitores que compõem a base eleitoral dos evangélicos.” (id.). Sandro
Amadeu Cerveira, citado por Prisco, considera que essa inserção tem caráter estratégico-
-corporativo. Ou seja:

3 Idem, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/05/20/relancada-frente-parlamentar-mista-em-defesa-da-familia-e-apoio�
-
-a-vida. Acesso em 12/10/2020.
4 Os evangélicos na Câmara dos Deputados: um olhar sobre os projetos de Lei da bancada evangélica da 53º legislatura (2009-10).
Disponível em https://iepweb.sciencespo-rennes.fr/bibli_doc/download/80/, acesso em 16/4/2013.

158 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


[A] atuação de um político evangélico deve ter como objetivo prioritário a defesa
e a construção das condições político-jurídicas de sobrevivência e reprodução
do grupo (igreja ou denominação) que lhe dá sustentação eleitoral, dos demais
evangélicos e eventualmente do próprio campo religioso (CERVEIRA, apud
Prisco, 2010, p.97).

O mesmo estudo indica que os evangélicos se identificam em sua maioria com os par-
tidos de direita, mas o grupo é bastante heterogêneo, com diversos parlamentares de outros
matizes ideológicos. Com essa observação, Prisco conclui, tendo o cuidado de ressaltar que
os resultados do seu estudo são válidos apenas para o grupo evangélico da 53ª legislatura.
Sobre o episódio que envolve o deputado Marcos Feliciano na conquista da Comissão
de Direitos Humanos e seus desdobramentos, penso o seguinte: Em todas as legislaturas,
os pentecostais têm dado ênfase aos temas que se referem à defesa da família, no sentido
tradicional, constituída de pai (macho), mãe (fêmea) e filhos. Como todo fundamentalismo, e
o campo evangélico é, predominantemente fundamentalista, eles têm necessidade de lidar
com seus inimigos, quaisquer que sejam esses. Na ausência ou desatualização de alguns
inimigos, outrora relevantes, esses evangélicos tiveram que inventar outros inimigos. Foi
nesse contexto que ocorreu a escolha dos grupos de homossexuais e população LGBTQI+,
para exercer o papel de novos inimigos, em substituição, ou, pelo menos, como prioridade
sobre outros desafetos, que, historicamente, era ocupado por comunistas e católicos. Quanto
à atuação destes últimos e de espíritas, desde que ligados a correntes conservadoras, os
novos evangélicos descobriram que podiam arrolá-los como aliados de ocasião na Frente
Parlamentar da Família e de Apoio à Vida, conforme já foi mencionado, anteriormente.
Sobre o interesse por liderança e controle de comissões no parlamento brasileiro, por
parte de evangélicos fundamentalistas, bem exemplificado no episódio de conquista da
Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) pelo deputado Marco Feliciano, pastor
pentecostal, destaco apenas os seguintes pontos:

1. Logo depois do Congresso Constituinte de 1986-1988 e mesmo durante o desenro-


lar daquela legislatura, o interesse dos pentecostais era pela Comissão de Comuni-
cações, que tratava da concessão de canais de rádio e TV;

2. Na atual legislatura5, os interesses dos evangélicos de direita estão voltados para


a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, porque vislumbraram um vazio, dei-
xado pelos partidos de esquerda, outrora tradicionalmente ocupantes desta comis-
são, notadamente o PT. Renato Janine Ribeiro já denunciava, no Observatório da
Imprensa (2/4/2013), que os grandes partidos converteram a defesa dos Direitos

5 A referência temporal aqui era a 54ª legislatura, que durou de 1º de fevereiro de 2011 a 31 de janeiro de 2015.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 159


Humanos em “moeda de troca barata”. Isto aconteceu porque esses partidos maio-
res (e o PT é o maior deles) passaram a priorizar comissões com maior poder de
barganha no grande jogo de interesses da máquina do Estado.

3. A CDHM é um trampolim para incursões internacionais, onde os pentecostais e


neopentecostais têm interesse de transitar, entre outras motivações, para divulgar
casos de perseguição de missionários, que, efetivamente, passam por constrangi-
mentos, sempre que exercem atividades de forma não condizente com os costu-
mes e a cultura local.

UMA APLICAÇÃO DO POPULISMO

A reflexão teórica, que desenvolveremos, de forma abreviada neste texto, baseia-se


na antiga, porém sempre presente, questão do populismo. Em estudos clássicos, o popu-
lismo, originalmente, era apresentado como um fenômeno constituído por três ingredientes
(GOMES, 2010, p. 24-5. In: FERREIRA, 2010):

1. A política de massa, sendo “massa” entendida como grande contingente de popu-


lação, associado à alienação e à facilidade de ser manobrado.

2. A classe dirigente, que se apresenta com pouca representatividade, comprome-


tida com os interesses de sua própria reprodução, articuladora de valores mora-
listas, reacionários, tendo o populismo como, talvez, a única via estratégica para
preencher o vazio ou ausência de projetos em benefício da sociedade como um
todo. Neste caso, a política populista serve como instrumento para a manipulação
da massa e funciona como braço auxiliar do projeto burguês conservador de domi-
nação das classes subalternas.

3. A existência de líderes carismáticos, mobilizadores da massa que neles acredita.


No caso evangélico, essa massa se apresenta como curral eleitoral e componente
de sustentação do bloco no poder. Esses líderes carismáticos são articuladores do
serviço eleitoral e político, em favor de si próprios e do projeto burguês, conservador.
Em Francisco Weffort (1978) o populismo é apresentado como estilo de governo e
como política de manipulação de massas. Manipulação, neste caso, tem duas faces: uma,
se apresenta na forma de controle do Estado sobre as massas, e a outra, trata de atender
as demandas dessas massas.
De qualquer maneira, o populismo recorre à cooptação, como reverso da represen-
tação, visto que, quem é cooptado vira objeto incapaz de negociar, embora tenha a ilusão

160 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


de estar negociando, porque obtém pequenos benefícios, que, certamente, não passam
de migalhas, comparadas à riqueza gerada, fruto do trabalho das classes subalternas.
(GOMES, 2010, p. 47).
O governo, através dessas organizações religiosas, faz apelo às massas de seguidores
da fé, pela mediação de líderes carismáticos e autoritários. Estes, por sua vez, mantêm os
liderados sem uma formação educacional para a cidadania, alienados e desorganizados, no
campo político. É dessa forma que nascem e prosperam os “currais” eleitorais no ambiente
evangélico, como tem provado a experiência política brasileira, em períodos mais recentes.
O populismo, segundo Marilena Chauí (1994), opera como matriz teológico-política.
Observa-se, nesse terreno, a constituição de uma “teocracia dos dominantes, [associada a
um] messianismo dos dominados” (subtítulo do artigo). A sociedade brasileira é autoritária,
onde poucos mandam e muitos obedecem. Chauí explica (1994, p.27): “ao dizer que a so-
ciedade brasileira é autoritária, estou pensando em certos traços gerais das relações sociais
que se repetem em todas as esferas da vida social (da família ao Estado, passando pelas
relações de trabalho, pela escola, pela cultura)”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Encaminhando para as considerações finais, transcrevo o que escrevi, em email de


29/03/2013, uma reflexão que ainda julgo pertinente, a partir de observações do que tem
acontecido na política, nessa última década:

Há muito tempo estamos diante de uma reorganização da direita, que tem nos
pentecostais e neopentecostais um braço eficiente e agressivo para mobilizar
as massas, semanalmente, nas igrejas, com discursos religiosos. Eles estão
produzindo uma visão de mundo, que é receptiva para grande parte dos bra-
sileiros. Depois de conseguirem presenças grandes nos parlamentos, eles
vão tentar os cargos executivos. [Aliás, já estão conquistando esses cargos,
conforme se pode constatar pelos resultados das eleições majoritárias pos-
teriores a 2013].
O termo evangélico perdeu a conotação de herdeiro da Reforma. Hoje evangéli-
co é quem promete prosperidade, curas, experiências emocionais mirabolantes
etc. Junto com esses ingredientes, eles apresentam enorme sede de poder e
são adeptos da tirania. Eles só aceitam o jogo democrático porque o utilizam
para, logo que puderem, se chegarem a ser maioria, destruírem essa mesma
democracia que os possibilitou participar da vida pública. Se democracia é
coisa ausente nas igrejas, como que os religiosos iriam defender a democracia.
Só se fossem esquizofrênicos.
Os reformados, hoje, são minoria e o termo evangélico perdeu o sentido para
designá-los. Os reformados não são evangélicos no sentido que o termo as-
sumiu nas duas últimas décadas. Teremos que conscientemente deixar claro
esse divisor de águas.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 161


Esta análise leva a conclusões de que vivemos sob duas impossibilidades: do desenvol-
vimento de uma liberal democracia e da conquista de justiça social no Brasil, devido à reno-
vação recorrente da mística messiânica do populismo, em suas mais variadas e sutis formas.

REFERÊNCIAS
1. BEBBINGTON, David W. Evangelicalism in modern Britain: a history from the 1730s to the
1980s. London: Routledge, 1989.

2. RODRIGUES, Leôncio Martins. Mudanças na classe política brasileira. São Paulo: Publifolha,
2006.

3. PRISCO, Luiz. Os evangélicos na Câmara dos Deputados: um olhar sobre os projetos de Lei
da bancada evangélica da 53ª legislatura (2009-10). Disponível em https://iepweb.sciences-
po-rennes.fr/bibli_doc/download/80/, acesso em 16/4/2013.

4. CHAUÍ, Marilena de Souza. Raízes teológicas do populismo no Brasil: teocracia dos dominan-
tes, messianismo dos dominados. In: DAGNINO, E. (org.) Anos 90: Política e Sociedade no
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.

5. GOMES, Angela de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória
de um conceito. Tempo, Rio de Janeiro , vol. 1, n°. 2, 1996, p. 31-58. Disponível em https://
www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg2-2.pdf. Acesso em 12/10/2020.

6. FERREIRA, Jorge (org.) O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileieira, 2010.

7. WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

162 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


12
“ Caminhos de diálogo e
orientação: semelhanças e
diferenças entre as sendas da
psicologia analítica e do budismo
MAHĀYĀNA

Fábio Roberto Medeiros

10.37885/201001692
RESUMO

Este artigo busca elucidar a investigação da relação entre a psicologia analítica, do


fundador Carl Jung, e o budismo, em sua vertente conhecida como budismo Mahāyāna,
referindo-se às semelhanças e diferenças entre os processos de transformação propos-
tos, de um lado, pela psicologia analítica através da noção de individuação e, de outro,
pelo budismo Mahāyāna através do chamado o caminho do Bodhisattva - bodhisatt-
vamārga. Dessa forma, com base nos estudos sobre a psicologia analítica e sobre o
budismo Mahāyāna, identifica-se que, de um lado, este último serviu de algum forma de
apoio para o primeiro e, de outro lado, ambos os sistemas apresentam propostas afins
no que tange aos objetivos de uma transformação pessoal. Com este estudo proposto
apontaremos que elas são de alguma forma convergentes e que se enriquecem com o
diálogo mútuo. O objetivo é apresentar as semelhanças e diferenças entre essas duas
sendas. A análise fará referência a três dimensões fundamentais: (i) os fundamentos e
os métodos de transformação; (ii) a estrutura pedagógica; e (iii) a eficácia final.

Palavras-chave: Carl Jung, Budismo Mahāyāna, Individuação, Bodhisattva.


INTRODUÇÃO

Os séculos XIX e XX foram marcados por um profundo estudo da cultura e das religiões
orientais, visto que essas passaram por um fenômeno de intensa popularização nesse perío-
do. Tais estudos foram realizados principalmente por europeus, em grande medida devido
à consolidação da dominação colonial na Ásia. O autor do livro Jung and Eastern Thought
– A Dialogue with the Orient, J.J. Clarke, afirma que “Indeed, the whole idea of cultures as
entities which have distinct characteristics and which in some sense stand opposed and
alien to one another is a European invention” (2001, p. 14). Ele observa uma certa tensão
existente entre duas posições, uma que distância e outra que agrega, e é justamente a partir
dessa proposição que podemos chegar à compreensão do julgamento de Carl Jung sobre
o contato entre tradições diferentes.
A Europa desse período caracterizava-se por uma atitude de eurocentrismo em rela-
ção às outras culturas, colocando-se em posição de destaque e de privilégio em termos de
conhecimento e organização social. A religião foi marcante nesse aspecto, pois o cristianismo
era considerado diferente e superior às outras religiões. Assim, o homem europeu buscava
em seus estudos compreender as demais religiões, mas o fazia de maneira superficial e pre-
conceituosa. A ideia de entender uma religião por critérios científicos ao invés de investigá-la
através da própria experiência religiosa reduzia, de fato, a possibilidade de compreendê-la
adequadamente. Um exemplo disso seria o estudo e a leitura de textos sagrados das religiões
orientais sem que se tivesse uma ideia clara a respeito da parte prática da própria religião.
Clarke afirma que “but for Europe the question of the ‘other’ has seemed especially
problematic, whether that ‘other’ be outside or within” (2001, p. 14). O eurocentrismo é uma vi-
são de mundo que tende a colocar a Europa como o elemento fundamental na constituição
da sociedade moderna, sendo necessariamente a protagonista da história do homem. Clarke
cita Said que afirma: “In brief, [o discurso] Orientalism is ‘a kind of Western projection onto
and will to govern over the Orient’” (2001, p. 18).
Carl Jung rompe com essa ideia ao perceber que, justamente na Europa, ocorre um
depauperamento simbólico1, ou seja, um enfraquecimento dos símbolos religiosos do
cristianismo. Isso permitiu que ele enxergasse a necessidade ou a falta de algo dentro da
própria cultura e se abrisse para outras civilizações. Essa experiência foi positiva no sentido
de ajudar Jung a definir sua personalidade e seus ideais, e demonstra sua sensibilidade
ao apontar para uma perspectiva diferente diante dos fatos e narrativas com os quais se
deparou. Para Jung, existem diferenças nas características de um mundo oriental e de
1 Foi necessário um depauperamento dos símbolos para que se descobrisse de novo os deuses como fatores psíquicos, ou seja, como
arquétipos do inconsciente. [...] Desde que as estrelas caíram do céu e nossos símbolos mais altos empalideceram, uma vida secreta
governa o incons­ciente. É por isso que temos hoje uma psicologia, e falamos do inconsci­ente. Tudo isto seria supérfluo, e o é de fato,
numa época e numa forma de cultura que possui símbolos. (JUNG, OC 9/1, 2014, p. 32, § 50)

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 165


um mundo ocidental, mas isso não quer dizer que haja uma relação de superioridade ou
inferioridade entre elas. Pelo contrário: Jung considera que essas diferenças se encontram
imersas em uma grande totalidade coletiva.
Ideias fundamentais de Jung, tais como arquétipos e inconsciente coletivo, apontam
para uma concepção de universalidade da mente e das civilizações humanas. Nessa pers-
pectiva, a mente humana se encontra imersa em uma mesma totalidade. O depauperamento
simbólico do cristianismo denunciado por Jung tende a gerar um sentimento de humildade
e uma postura de diálogo com outras culturas pertencentes a essa mesma matriz huma-
na. O que Jung almejava ao estudar as culturas orientais é, portanto, redescobrir a alma
perdida da própria cultura ocidental.
Dentre os diversos conceitos elaborados por Carl Jung destaca-se a teoria tipológica
apresentada em suas Obras Completas2, o título de Tipos psicológicos (OC 6, 2013) e o
ensaio Comentário psicológico sobre o Livro tibetano da Grande Libertação (OC 11/5, 2013).
Esses textos ilustram a distinção fundamental – sempre sujeita a retificações – estabelecida
por Jung entre uma psique Ocidental extrovertida e uma psique Oriental introvertida. O au-
tor apresenta essa perspectiva com as seguintes palavras:

O Oriente se baseia na realidade psíquica, isto é, psique, enquanto condição


única e fundamental da existência. A impressão que se tem é a de que esse
conhecimento é mais uma manifestação psicológica do que o resultado de um
pensamento filosófico. Trata-se de um ponto de vista tipicamente introvertido,
ao contrário do ponto de vista ocidental, que é tipicamente extrovertido. (JUNG,
OC 11/5, 2013, p. 17, § 770)

Carl Jung apresentou sua teoria sobre tipos psicológicos em 1921, mas algumas bio-
grafias indicam que em meados de 1911 Jung já estava trabalhando nessa teoria. O que o
motivou a elaborá-la foram seus estudos sobre a personalidade. Carl Jung percebeu desde
de cedo que a divergência entre Freud e Adler com relação ao primado da sexualidade e do
poder, respectivamente, refletiam tipologias distintas da personalidade. Com isso, passou a
analisar essas disposições distintas da personalidade na história do pensamento humano
em diferentes culturas e civilizações.
Os tipos psicológicos envolvem duas categorias principais, o extrovertido e o introver-
tido, cada qual podendo se desdobrar em quatro funções psicológicas – a saber, pensa-
mento, sentimento, sensação e intuição. O tipo psicológico reflete a atitude específica de
cada ser humano em seu processo de relacionamento com o mundo. A palavra introversão
aponta para os indivíduos que ficam mais excitados ou energizados pelo mundo interno,

2 As referências às obras de Jung têm como base o título “Obras Completas”, publicado em 18 volumes pela editora Vozes. Adotei aqui
a abreviação OC, seguida do número do volume correspondente ao parágrafo padronizado universalmente e a página da edição da
Vozes.

166 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


enquanto extroversão aponta para os indivíduos que ficam mais excitados ou energizados
pelo mundo externo.
A pesquisa sobre tipos psicológicos consolida-se sobremaneira diante do contato de
Jung com as civilizações e o pensamento oriental. Assim como o Ocidente lhe parece mais
próximo de um certo tipo de polaridade, o Oriente lhe parece mais próximo de outro tipo, o
que resulta em uma certa ideia de complementaridade. Podemos encontrar em seus escritos
trechos e citações sobre o Oriente aludindo particularmente a temas como religião, sociedade
e cultura. Carl Jung manifesta interesse pelas questões do espírito e pelas religiosidades
marcantes do Oriente.
As distinções e o grau de complementaridade entre a psique oriental e a psique ociden-
tal, a introversão oriental e a extroversão ocidental, bem como seus reflexos nas posturas
perante a ciência e a religião, são claramente apresentadas por Carl Jung na subseção do
Comentário psicológico sobre o Livro tibetano da Grande Libertação intitulada Diferença
existente entre o pensamento oriental e o pensamento ocidental:

Cada pensamento, cada sentimento e cada ato de percepção são formados de


imagens psíquicas, e o mundo só existe na medida em que formos capazes de
produzir sua imagem. Recebemos de tal modo a impressão profunda de nosso
cativeiro e de confinamento na psique, que nos sentimos propensos a admitir
na psique a existência de coisas que desconhecemos e a que denominamos
“inconsciente”. (...) No oriente, o espírito é um princípio cósmico, a existência
do ser em geral, ao passo que no ocidente chegamos à conclusão de que o
espírito é a condição essencial do conhecimento e, por isso, também a para
existência do mundo enquanto representação e ideia. No Oriente não existe
conflito entre a ciência e a religião, porque a ciência não se baseia na paixão
pelos fatos, do mesmo modo que a religião não se baseia apenas pela fé. O
que existe é um conhecimento religioso e uma religião cognoscitiva. Entre
nós, ocidentais, o homem é infinitamente pequeno, enquanto a graça de Deus
é tudo. No oriente, pelo contrário, o homem é deus e salva-se por si próprio.
(JUNG, OC 11/5, 2013, p. 15-6, § 767-8)

É possível afirmar que a espiritualidade constitui a motivação central da distinção entre


um oriente introvertido e um ocidente extrovertido. Com efeito, extroversão e introversão
apontam para investimentos energéticos vitais distintos na forma de se relacionar com as
coisas do mundo. Em momento nenhum, em minha opinião, Carl Jung teria a intenção de
retificar, de forma definitiva, uma psique ocidental de lado e uma psique oriental de ou-
tro. De maneira oposta, seu objetivo era apontar certas características da mente humana
claramente enfatizadas pelas tradições orientais que teriam, no entanto, sido esquecidas
pelas tradições ocidentais. Em outro trecho, Carl Jung afirma:

É a partir de dentro que devemos atingir os valores orientais e procurá-los


dentro de nós mesmos, e não a partir de fora. Devemos procurá-los em nós
mesmos, em nosso inconsciente. Aí, então, descobriremos quão grande é o

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 167


temor que temos do inconsciente, e como são violentas as nossas resistências.
É justamente por causa dessas resistências que pomos em dúvida aquilo que
para o oriente parece tão claro, ou seja, a capacidade de autolibertação própria
da mentalidade introvertida. (JUNG, OC 11/5, 2013, p. 21, § 773)

A citação acima mostra o respeito e o reconhecimento de Carl Jung pelo modelo orien-
tal, caracterizado por uma ênfase nos processos de transformação pessoal. Jung afirma:
“O Oriente nos ensina outra forma de compreensão, mais ampla, mais alta e profunda – a
compreensão mediante a vida” (2013, p. 24). A psicologia junguiana está, portanto, ligada
não só ao Ocidente, mas também ao Oriente, pois é no reconhecimento dos valores em
comum que ela identifica as faltas e as complementaridades necessárias à tradição ociden-
tal. Apesar de imerso numa cultura predominantemente eurocêntrica, Carl Jung revela uma
capacidade extraordinária de ir além desses preconceitos e de reconhecer em outra tradição
a presença de algo essencial que teria sido negligenciado pela sua própria tradição. Só atra-
vés do reconhecimento de um compromisso fundamental de Jung com o cristianismo é que
podemos compreender toda a amplitude de sua abertura a outras civilizações.

SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE AS SENDAS DA PSICOLOGIA


ANALÍTICA E DO BUDISMO MAHĀYĀNA

Neste capítulo, o objetivo é apresentar as semelhanças e diferenças entre essas duas


sendas. A análise fará referência a três dimensões fundamentais: (i) os fundamentos e os
métodos de transformação; (ii) a estrutura pedagógica; e (iii) a eficácia final.
A primeira dimensão comparativa a ser explorada são os fundamentos e os métodos
de transformação da psicologia analítica de um lado e do budismo Mahāyāna de outro.
Esses sistemas, apontam para a possibilidade de realização plena do ser. Ambas as sen-
das se irmanam numa proposta que visa promover a transformação existencial, enquanto,
superação definitiva de todo o sofrimento (duḥkha). Como afirma Jung, o processo de indivi-
duação, “trata-se de uma solução definitiva, em relação à qual todos os outros caminhos se
comportam apenas de modo auxiliar e provisório.” (OC 9/1, 2014, p. 293, § 530). De forma
semelhante, o caminho do bodhisattva propõe a realização plena, isto é, o nirvāṇa ou bodhi.
Peter Harvey afirma: “as an ‘awakening’, bodhi is not the awakening of something, that is, a
beginning of something, but a final awakening” (2013, p. 15).
As duas sendas, portanto, partem de um ponto em comum, isto é, o compromisso com
a resolução do problema do sofrimento (duḥkha). A pesquisadora Polly Young-Eisendrath
afirma que uma das semelhanças entre o budismo Mahāyāna - e mais especificamente o
Zen Budismo - e a psicologia analítica é precisamente uma percepção aguda do caráter

168 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


constitutivo do sofrimento na existência humana. Isso os conduz a formulação de métodos
visando sua superação. Ela afirma:

Clarifying the ways in which Buddhism and psychotherapy are both similar and
different in their goals and methods should assist the practitioners of both in
addressing the concerns of people who seek help for their suffering. Tracing
the boundaries and domain of subjective distress—specifically dukkha as it is
described in Buddhism—may also assist us in making scientific investigations
of certain well-established methods and processes of the transformation of
human suffering.(YOUNG-EISENDRATH, 2005, p. 65)

O sofrimento em ambos os sistemas é considerado algo inerente à vida de todos os


seres. Polly Young-Eisendrath afirma que “much of our suffering originates with our sense of
separateness and fear, through our evaluations of ourselves and others.” (2005, p. 70). Nesse
trecho, se ressalta que os seres humanos são afetados pelas coisas do mundo através de
emoções e sentimentos que têm como seu centro de radiação os interesses do ego. Os afe-
tos assim gerados são causa do apego pelas coisas, que por sua vez são a causa de vul-
nerabilidade e sofrimento. Esse tipo de afeto egocentrado é precisamente o que Carl Jung
denomina de complexo - e mais precisamente, complexo do ego - enquanto representação
da personalidade e das experiências de vida a ela vinculadas, estando com isso, diretamente
ligado a uma representação da consciência, enquanto parcialidade existencial que deixa de
lado ou marginaliza os conteúdos arquetípicos transpessoais. Carl Jung, afirma que esses
complexos “são complexos de vivência que sobrevêm aos indivíduos como destino e seus
efeitos são sentidos em nossa vida mais pessoal.” (OC 9/1, 2014, p. 39, § 62).
A noção de complexo, tal como, descrita na citação acima de Jung, reflete numa lin-
guagem da psicologia analítica um sentido muito próximo a ideia de karman da tradição do
budismo Mahāyāna. Com efeito, Polly Young-Eisendrath ressalta a semelhança entre essas
duas noções. A autora afirma que “these complexes are major aspects of what Buddhism
calls karma: consequences of our conscious and unconscious intentions expressed through
our actions.” (2005, p. 70). Essa relação entre a noção junguiana de complexo e o conceito
de karman, aponta, portanto, para uma dimensão de interligação e interdependência das
experiências de vida de todos os seres. Seja por representações de ações passadas ou
por representações de perspectivas futuras, o karma, tal qual os complexos, está direta-
mente ligado a uma polarização da existência que é causa do sofrimento. Portanto, o ego
da psicologia analítica, enquanto centro polarizado da consciência e raiz da experiência da
dualidade ilusória sujeito-objeto é considerado a representação plena do complexo. Polly
Young-Eisendrath, afirma:

Once the ego complex is formed, the self-conscious emotions such as jealousy,
shame, pride, self-pity, embarrassment, envy, and guilt—as well as fears and

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 169


desires—can trigger defenses of the ego. Then we experience ourselves as
separated and isolated from others and the world around, the pervasive root
of subject-object duality. (YOUNG-EISENDRATH, 2005, p. 71)

Se de um lado os dois caminhos de transformação — o caminho do bodhisattva no bu-


dismo Mahāyāna e a individuação na psicologia analítica — se encontram na determinação
dos fundamentos da existencialidade, enquanto sofrimento, eles se encontram igualmente na
proposta de superação dessa condição. Com efeito, tanto num caso como no outro o cultivo
do conhecimento e da sabedoria são o caminho para resolução definitiva do problema do
sofrimento. Em outras palavras, tanto as disciplinas de transformação da psicologia analítica,
quanto as do budismo Mahāyāna, pressupõem a ideia de que simplesmente manter uma men-
te equilibrada — isto é, numa linguagem da psicologia moderna, simplesmente empreender
um ajustamento social — não é suficiente no processo de transformação: o objetivo final é
um conhecimento mais profundo de si mesmo e das coisas que nos cercam. É esse com-
promisso cognitivo que dá o sentido mais profundo da palavra bodhi no budismo Mahāyāna
e da palavra individuação na psicologia analítica. Como afirma Jung:

Quanto mais se acentuou a incerteza em relação a mim mesmo, mais au-


mentou meu sentimento de parentesco com as coisas. Sim, é como se essa
estranheza que há tanto tempo me separava do mundo tivesse agora se in-
teriorizado, revelando-me uma dimensão desconhecida e inesperada de mim
mesmo. (JUNG, 1975, p. 310)

A realização desse ideal cognitivo, tanto no caminho do bodhisattva, quanto no caminho


da individuação, é concebida não como um processo que visa adquirir algo absolutamente
desconhecido, mas como um processo contínuo de atualização de uma condição sempre
presente na existência. Trata-se de um caminho de contínua reformulação das falsas cog-
nições sobre si mesmo. É nessa expansão da sua autoconsciência, que passa a incluir
dimensões supraindividuais, que tem origem no sentimento de humildade e compaixão do
bodhisattva por todas as criaturas sofredoras. Esse compromisso gera uma imunidade com
relação a “reificação dos pólos inflados e alienados da psique e previne os processos de
idealização e de negação” (MAGALHÃES, 2012, p. 121). O estudioso Rob Preece resume
essas aproximações cognitivas entre o caminho do bodhisattva e o processo de individuação
ao apontar para o objetivo em comum de alcançar uma vida de bem-estar espiritual e de
almejar o despertar de sua natureza inata. Ele afirma:

Individuation as a process of self-actualization is at the heart of the path of the


bodhisattva, one who dedicates his or her life to attaining buddhahood for the
welfare of all sentient beings. Although not couched in terms of individuation,
Buddhist understanding offers a path of practice that profoundly supports this
process. If we consider the Buddha’s life, it was a demonstration of exactly this.

170 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


His teachings describe a path of gradual self-transformation and self-realization:
the awakening of his innate true nature. Placing the bodhisattva’s path alongside
the Western psychological understanding of individuation enables us to make
valuable connections that inform both approaches. (PREECE, 2006, p. 11)

O primeiro degrau do processo de transformação do caminho do bodhisattva do bu-


dismo Mahāyāna refere-se as técnicas de meditação de concentração e controle da mente,
denominada śamatha. Esse primeiro nível poderia, talvez, ser associado a dimensão de
terapia da psicologia denominada análise de sonhos, que visa de forma mais imediata a um
balanceamento das polaridades opostas da mente, ou em outras palavras, a enantiodromia,
enquanto equilíbrio mental almejado pelo processo de individuação. O segundo degrau por
outro lado, aponta no budismo Mahāyāna para um segundo nível de meditação denominado
de vipaśyanā. É ele que permite a obtenção última de um insight cognitivo sobre a realida-
de. No budismo tibetano essas técnicas de meditação envolvem a prática de visualizações
de imagens representativa da totalidade. Esse segundo nível poderia, talvez, ser associado
a dimensão de terapia da psicologia denominada imaginação ativa.3 Radmilla Moacanin
aponta precisamente para convergência de propósitos entre visualizações meditativas no
budismo e imaginação ativa na psicologia:

Assim como Jung, os budistas, em especial os tibetanos, têm consciência dos


perigos envolvidos na visualização tântrica e na técnica similar da imaginação
ativa de Jung, respectivamente, e por isso insistem para que sejam tomados
os devidos cuidados. Ambas exigem a orientação de um mestre qualificado
ou analista. (MOACANIN, 1986, p. 77)

A técnica de imaginação ativa de Jung está fundamentalmente comprometida de tornar


manifesto os conteúdo arquetípicos do inconsciente. Os arquétipos influenciam a vida dos
indivíduos independentemente do grau de consciência que se possa ter deles, isto é, eles
representam a energia psíquica que se manifesta em todos os seres. Carl Jung denomina
essa energia psíquica, legado em comum de toda humanidade, de energia vital. Ele afirma:
“[a energia vital] nada mais seria do que a forma específica de uma energia universal” (OC
8/1, 2013, p. 12, § 31).
A energia vital ou universal está em constante movimento e se manifesta em todas as
coisas. O funcionamento do ego, em especial, se articula com a possibilidade de o indivíduo
conviver consigo mesmo e com os outros e perceber a interdependência inerente à condição
humana e sua relação com todos os demais entes do universo. Isso nos traz bem próximo da
dimensão cognitiva da ideia de interdependência de todas as coisas do budismo Mahāyāna.
Dependemos, por exemplo, do ar que respiramos, de nossos familiares, amigos e vizinhos,

3 A possível correlação entre a interpretação de sonhos e a imaginação ativa, de um lado, e os dois níveis de meditação budista, śama-
tha e vipaśyanā, de outro, decorre de sugestão feita pelo Dr. Professor Dilip Loundo da UFJF em nos nossos encontros de orientação.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 171


do agricultor que semeia nossos alimentos, do padeiro, ou seja, dependemos e nos reco-
nhecemos totalmente nas relações que estabelecemos com as coisas. Essa dependência,
possibilita a reflexão de se olhar para si mesmo, e ao mesmo tempo enxergar a totalidade.
Nesse sentido, o conceito de arquétipo da psicologia analítica guarda relações estreitas
com o conceito de vazio do budismo Mahāyāna. Segundo este último, todas as coisas são
vazias de substância, isto é, elas não são ou nem existem por si mesmas, por isso mesmo,
são interdependentes (pratītya-samutpāda). A interdependência entre todas as coisas aponta
para o princípio de unidade que as articula. Da mesma forma, a noção de arquétipo — em
especial o arquétipo dos arquétipo, isto é, o Self — constitui o princípio de unidade que ar-
ticula a pluralidade das imagens arquetípicas que se manifestam nas diferentes estruturas
psíquicas, isto é, nos indivíduos. Da mesma forma, que, um arquétipo não se esgota em
uma única imagem (arquetípica), a ideia de unidade do pratītya-samutpāda não se esgota
em nenhum dos entes individuais. Como afirma, Radmila Moacanin, os arquétipo contêm
potencialmente “a possibilidade de alguma percepção e ação e, uma vez ativados, tornam-se
forças poderosas da vida e do comportamento de uma pessoa” (1986, p. 76). A definição,
portanto, de arquétipo como fundamento formal de todas as imagens arquetípicas consti-
tutiva dos entes, denuncia a condição de insubstancialidade desses últimos. Tal como, no
contexto da ideia de interdependência do budismo, os arquétipos constituem a forma ativa
unitiva que não podem ser racionalmente compreendidos, e que se manifestam na forma
de uma pluralidade de imagens, num processo contínuo de transformação, isto é, de surgi-
mento, duração e cessação.
A realização do caminho do bodhisattva e a realização do processo de individuação,
tem como estrutura pedagógica a relação entre mestre-discípulo e terapeuta-paciente, res-
pectivamente. Em ambos os casos, essa relação é marcada pela linguagem e pelo diálogo.
Esse enraizamento do diálogo transformador da psicologia analítica nas tradições filosóficas
antigas e religiosas é enfatizado por Carl Jung com as seguintes palavras:

Pouco a pouco foi-se verificando que se trata de um tipo de procedimento


dialético, isto é, de um diálogo ou discussão entre duas pessoas. Original-
mente a dialética era a arte da conversação entre os antigos filósofos, mas
logo adquiriu o significado de método para produzir novas sínteses. (JUNG,
OC 16/1, 2013, p. 13, § 1)

A importância do papel de orientação do mestre/terapeuta é um elemento em comum


de ambos os caminhos aqui considerados. Sua necessidade é ressaltada nas seguintes
palavras de Dilip Loundo, onde se enfatiza o processo dinâmico entre o ego e o Self:

Não seria possível uma ação voluntariosa do ego de submissão aos desíg-
nios de algo que o transcende sem a participação instigadora e orientadora

172 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


de um agente externo, que se situa precisamente nessa condição plena de
descentramento e realização do Self. A manifestação consciente do Self na
personalidade do mestre não se trata de uma reificação, mas de um modo de
ser consciente do Self, cuja missão precípua é servir ao próximo sob a forma
de um encaminhamento à Verdade. Sua recorrência ininterrupta enquanto
requisito para os processos de aprendizagem é testemunho inequívoco de
uma diferença radical em relação à singularidade irrepetível do Cristo-deus e
o estancamento ortodoxo de sua dinâmica simbólica. (LOUNDO, 2015, p. 26)

O princípio de autoridade do mestre/terapeuta é uma questão complexa, em especial,


no contexto ocidentaI, já que se trata idealmente de uma autoridade não impossitiva e fun-
damentalmente facilitadora. Como afirma, Dilip Loundo: “a questão da autoridade parece-
-me constituir o mais delicado e o de maior dificuldade de assimilação no contexto analítico
psicoterápico” (2015, p. 25). Com efeito, a relação dialética envolve construções mútuas e
fluidas, que estão enraizadas nas emoções e nos desejos circunstanciais. Neste processo, as
duas partes da díade terapêutica sentem-se profundamente gratas por sua interdependência.
Sobre essa autoridade, não autoritária do mestre com relação ao discípulo, Jung afirma:

Por isso, quer eu queira quer não, se eu estiver disposto a fazer o tratamento
psíquico de um indivíduo, tenho que renunciar à minha superioridade no sa-
ber, a toda e qualquer autoridade e vontade de influenciar. Tenho que optar
necessariamente por um método dialético, que consiste em confrontar as
averiguações mútuas. (JUNG, OC 16/1, 2013, p. 15, § 2)

No processo dialético da terapia analítica, a função orientadora do terapeuta é fun-


damental para o processo de integração psíquica do paciente. Nesse sentido, o papel de
orientação do terapeuta implica idealmente a presença diretora do Self e não do ego. Em ou-
tras palavras, como afirma Marco Heleno, a terapia tem “como princípio orientador não o eu
consciente com seus princípios e temores, mas o si mesmo.” (2012, p. 99). Isso pressupõe
“da parte do eu (que é o sujeito da ‘decisão ética), a disponibilidade para o autosacrifício,
que implica também disponibilidade para suportar o sofrimento.” (2012, p. 99). Considerando
o caráter não autoritário da orientação do terapeuta, o processo de individuação, não pode
ser caracterizado como uma realização moral. O autor afirma em conclusão que “a análise
não é uma forma de aconselhamento moral.” (2012, p. 99).
A terapia na psicologia analítica e o processo de transformação no budismo Mahāyāna
exigem a entrega total e disposição do paciente/discípulo se espera como condição de pos-
sibilidade de realização do caminho o cumprimento de requisitos. No budismo, os votos do
bodhisattva podem ser tanto por renunciantes leigos, quanto por renunciantes monásticos.
Que inclui a prática de virtudes e de reflexão lógica. No caso da psicologia analítica, a predis-
posição para individuação depende do esgotamento de alguns níveis primários da experiência

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 173


humana que Carl Jung denomina da segunda metade da vida. A individuação seria, portanto,
um despertar da primeira metade, que irá constituir o cerne da segunda metade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, tanto a psicologia analítica quanto o budismo Mahāyāna utilizam metodo-


logias e exercícios no encaminhamento no processo de transformação. Ambos os sistemas
possuem um caráter praxiológico e embasamento no autoconhecimento, elemento sempre
presente. A dinâmica do processo ou caminho de transformação se dá a partir do diálogo,
isto é, entre mestre-discípulo de um lado, e terapeuta-paciente de outro.
Pode parecer relativamente desproporcional estabelecer uma aproximação definitiva
entre o mestre, enquanto uma figura de respeito e sabedoria amparada por uma tradição
religiosa, e o terapeuta enquanto figura caracterizado por uma capacidade técnico cientifico.
Entretanto, fica claro na obra de Carl Jung que o mestre religioso é a grande fonte de inspi-
ração do terapeuta analítico. Ao discorrer sobre os requisitos deste último, Carl Jung aponta
para qualidades que vão muito de mero conhecimento técnico: o terapeuta, apresenta as
características de um mestre, enquanto orientador e pedagogo do encaminhamento para a
transformação. Nas Memórias, ele afirma:

Mas o psicoterapeuta não deve contentar-se em compreender o doente; é


importante que ele também se compreenda a si mesmo. Por esse motivo a
condição sine qua non de sua formação é sua própria análise: a análise didá-
tica. (...) Na análise didática, o médico deve aprender a conhecer sua alma e
a tomá-la a sério para que o doente possa fazer o mesmo. (...) Portanto, na
análise didática não é suficiente que o médico se aproprie de um sistema de
conceitos. Enquanto analisado, deve perceber que a análise lhe diz respeito,
que ela é uma secção de vida real e não um método aprendido de cor ‘no
sentido superficial do termo’. (JUNG, 1975, p. 121)

Os processos de ambos os sistemas encaminham o discípulo ou paciente à realização


total do ser. O sentido dessa realização é tradicionalmente definido como superação definitiva
do sofrimento, e a subordinação definitiva do ego a uma dimensão que o transcende e que
ao mesmo tempo o constitui. A posição de Carl Jung com relação a essa matéria é ambígua
em toda sua obra, em alguns momentos ele parece reconhecer na individuação, a resolução
definitiva do problema da existência, e outros momentos ele parece admitir, que, não obstante
as práticas de transformação, sempre restará um resquício de egocentrismo. Ao comentar
a Doutrina dos Três Corpos de Buda (Trikāya), ele afirma:

E, de fato ela [a realização doTrikāya] produz uma unificação. Mas não somos
capazes de conceber como uma tal realização possa ser completa em qual-
quer ser humano. É preciso que haja sempre alguém para presenciar essa

174 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


realização e dizer: “Conheço a unificação; a “união do Tri-Kâya (Três corpos
de Buda)”. E, defato, dessa realização que mostra seu caráter defectível ine-
vitável. Uma pessoa não pode conhecer o que não se distingue dela. Mesmo
que eu diga: “Conheço-me a mim mesmo”, restará um eu infinitesimal – o eu
cognoscente – que sempre se distingue de “mim mesmo”. (JUNG, OC 11/5,
2013, p. 39, § 817)

Na citação acima, Carl Jung parece sugerir que não existe uma realização total do
Self, sendo o sofrimento algo inerente a vida e, portanto, algo impossível de ser extirpado
de forma definitiva. Caso contrário, haveria então, necessariamente uma cessação total da
existência. Em outras palavras, o sofrimento seria mitigável, mas envolveria sempre uma
resignação a uma convivência residual com o sofrimento.
Essa nuance cética da postura de Carl Jung condiciona provavelmente a leitura crítica
empreendida por Jung da condição de realização nas tradições, tanto do budismo quanto
do hinduísmo. Frases como consciência sem o eu, o eu se dissolve no Self e mergulho
no inconsciente parecem refletir essa posição de Jung que torna incompatível a ideia de
realização do Self com a ideia de preservação de um ego. O sentido atribuído por Carl Jung
às palavras espírito e mente nos ajudam a pensar as razões do porquê Carl Jung afirma
que o oriental consegue atingir um estágio de mente sem um eu, ao passo que o ocidental
não conseguiria lograr tal feito, pois, haveria sempre a necessidade de uma testemunha que
confirmasse tal fato. Isso nos mostra que, para Carl Jung, o eu (cêntrico) é indispensável no
processo de conscientização. Ele afirma:

Esse aspecto do espírito é, por assim dizer, desconhecido no Ocidente, embora


seja um componente importante do inconsciente. Muitas pessoas negam de
todo a existência do inconsciente ou afirmam que ele é constituído apenas
pelos instintos ou por conteúdos recalcados ou esquecidos que antes forma-
vam parte da consciência. Podemos admitir com toda a tranquilidade que a
expressão oriental corresponde ao termo “mind” se aproxima bastante do nosso
“inconsciente”, ao passo que o termo “espírito” é mais ou menos idêntico à
consciência reflexa. Para nós, ocidentais, a consciência reflexa é impensável
sem um eu. Ela se equipara à relação dos conteúdos com o eu. Se este não
existe, estará faltando alguém que posso se tornar consciente de alguma coisa.
O eu, portanto, é indispensável para o processo de conscientização. O espírito
oriental, pelo contrário, não sente dificuldade em conceber uma consciência
sem o eu. Admite que a existência é capaz de estender-se além do estágio do
eu. O eu chega mesmo a desaparecer nesse estado “superior”. Semelhante
estado espiritual permaneceria inconsciente para nós, pois simplesmente não
haveria uma testemunha que o presenciasse. Não ponho em dúvida a existên-
cia de estados espirituais que transcendem a consciência. Mas a consciência
reflexa diminui de intensidade à medida que o referido estado ultrapassa. Não
pode se imaginar um estado espiritual que não se ache relacionado com um
sujeito, isto é, com um eu. O espírito não pode subtrair-se a ele. O eu, por
exemplo, não pode ser privado da sua percepção corporal. Pelo contrário,
enquanto essa capacidade existir, deverá haver alguém que seja o sujeito
de percepção. É só de forma mediana e indireta que tomamos consciência
de que existe um inconsciente. Entre os doentes mentais, podemos observar

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 175


manifestações de fragmentos do inconsciente pessoal que se desligaram da
consciência reflexa do paciente. Mas não temos prova alguma de que os
conteúdos do inconsciente se achem em relação com um centro inconsciente,
análogo ao eu. Pelo contrário, existem bons motivos que nos fazem ver que
tal estado nem sequer é provável. (JUNG, OC 11/5, 2013, p. 21, § 774)

Em outros momentos, entretanto, Carl Jung parece adotar uma postura bem diferente,
de caráter mais otimista, e admite uma possibilidade da resolução definitiva do problema da
existência. São testemunho disso as seguintes passagens: (i) trata-se de uma solução defi-
nitiva, em relação à qual todos os outros caminhos se comportam apenas de modo auxiliar
e provisório – esta citada acima; (ii) A minha vida é a história de um inconsciente que se
realizou (JUNG, 1975, p. 19). Essas citações são congruentes com uma ideia reformulada
de se entender a condição de realização: ao invés de implicar uma eliminação do ego, ela
implicaria no descentramento do mesmo na direção do Self, sem redundar na eliminação
daquele. Afinal, como indaga Loundo, “por que motivo o descentramento do ego implicaria
necessariamente em sua dissolução?” (2015, p. 27). Nesse contexto, o ego preservaria a
sua existência, ainda que radicalmente resignificado. Em outras palavras, o ego (eu) seria
concebido como um modo de ser, uma manifestação do Self. Como afirma Rob Preece:

The only road to perfection is for the ego to finally give up this search and allow
what is, recognizing that our innate Buddha nature is beyond the relative quali-
ties of good and bad. To become enlightened is not about perfecting our relative
state of being but is about recognizing our true nature. (PREECE, 2006, p. 61)

Essa nuance otimista da postura de Carl Jung tende a condicionar uma visão distinta
da realização de existência nos contextos orientais, em especial no contexto do budismo
tibetano. Na obra Psicologia e Religião Oriental, ele afirma:

Podemos concluir que a forma oriental da ‘sublimação’ consiste em retirar o


centro da gravidade psíquico da consciência do eu, que ocupa uma posição
intermédia entre o corpo e os processos ideais da psique. As camadas se-
mifisiológicas inferiores são dominadas pela prática da ascese, isto é, pela
‘exercitação’, e, assim, mantidas sob controle. Não são negadas ou reprimidas
diretamente por um esforço supremo da vontade, como acontece comumente
no processo de sublimação ocidental. (JUNG, OC 11/5, 2013, p. 22, § 776)

É nesse contexto de uma perspectiva otimista de realização existencial que Carl Jung
aponta para uma convergência de metas entre a tradições religiosas do Oriente representa-
das pelo budismo e as tradições religiosas do ocidente representadas pelo cristianismo, sem
contudo deixar de observar as especifidades que as destinguem. No tange as convergências
ele afirma: “Cristo também – como o Buda – é uma encarnação do Si-mesmo [Self], mas
num sentido muito diferente. Ambos, dominaram o mundo de si-mesmos” (JUNG, 1975, p.

176 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


245-6). Apesar, portanto, de se inserirem em civilizações distintas, tanto Buda como Cristo
expressam a condição máxima da realização humana. No que tange às diferenças que as
destinguem ele afirma: “O cristão parte justamente do mundo transitório do eu, enquanto
o budista se apoia ainda no fundamento eterno da natureza interior” (JUNG, OC 11/5,
2013, p. 118 § 949).
Em síntese, é possível estabelecer conexões estreitas entre o caminho do bodhisattva
do budismo Mahāyāna e do processo de individuação da psicologia analítica, é essa preci-
samente a visão interpretativa de Carl Jung. Ao afirmar que o objetivo da psicoterapia é
exatamente o mesmo do budismo, Carl Jung sugere a convergência entre o processo de
conscientização da individuação psicoterápica e o insight budista de realização da cadeia de
interdepêndencia (nirvāṇa). É isso que transparece no diálogo entre Carl Jung e o filósofo
Zen Budista japonês Shin’ichi Hisamatsu4:

Hisamatsu: The great messengers of religious truth — Christ, for example


— have said that all humans suffer a common lot: the suffering of death, or
of original sin. Their intention was to liberate humans from this fundamental
suffering. Is it possible to think that such a great liberation could be realized
in psychotherapy?

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7. ________________. A energia psíquica: a dinâmica do inconsciente. Obras Completas, 14


e.d. OC 8/1, Petrópolis: Vozes, 2013.

4 “Shin’ichi Hisamatsu (1889-1980), membro da Escola de Kyoto e discípulo de Kitaro Nishida, foi um dos principais filósofos zen do Ja-
pão moderno. Em 1958, como parte de sua pesquisa comparativa sobre a religião e filosofia oriental e ocidental, ele lecionou extensi-
vamente em todo os Estados Unidos. No seu caminho de volta ao Japão, ele visitou vários especialistas europeus proeminentes para
uma série de conversas sobre o pensamento zen e ocidental. Entre os seus interlocutores estava C.G.Jung. Sua conversa ocorreu na
casa de Jung em Küsnacht, Suíça, em 16 de maio de 1958. Também estavam presentes o intérprete Koichi Tsujimura, estudante de
Martin Heidegger, e Aniela Jaffé, secretária particular de Jung, que mais tarde compilou sua autobiografia.” (YOUNG-EISENDRATH
and MURAMOTO, 2005, p. 105).

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 177


8. ________________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Obras Completas, 11 e.d.
OC 9/1, Petrópolis: Vozes. 2014.

9. ________________. Psicologia e religião Oriental. Obras Completas, 9 e.d. OC 11/5, Pe-


trópolis: Vozes, 2013.

10. ________________. A prática da psicoterapia. Obras Completas, 16 e.d. OC 16/1, Petró-


polis: Vozes, 2013.

11. LOUNDO, Dilip. Jung, Freud e a Índia: diálogos ou conversações monológicas?. WALTER,
Melo (org.). A Liberdade Ainda que Tardia. Rio de Janeiro, Espaço Artaud, 2015. Págs 12-31.

12. MAGALHÃES, Elisabete Freire. Despertando a mente de iluminação: o processo de individu-


ação de praticantes budistas tibetanos segundo suas histórias orais de vida. 2012. 485 f. Tese
de Doutorado, Universidade de São Paulo – USP, Instituto de Psicologia, São Paulo, 2012.

13. MOACANIN, Ludmila. A Psicologia de Jung e o Budismo Tibetano. São Paulo: Pensamento,
1986.

14. ROB, Preece. The Wisdom of Imperfection: The Challenge of Individuation in Buddhist Life.
New York: Snow Lion, 2006.

15. YOUNG-EISENDRATH, Polly; MURAMOTO, Shoji. Awakening and Insight: Zen Buddhism
and Psychoterapy. New York: Brunner-Routledge, 2005.

178 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


13
“ CEBs e Paróquia, duas realidades
eclesiais compatíveis?

Gelson Luiz Mikuszka


PUCPR

10.37885/200801162
RESUMO

As CEBs surgiram na América Latina no final da década de 1950 e ganharam impulso


com as reflexões do Vaticano II e com a Teologia da Libertação. Possuem uma estru-
tura de ordem popular e orgânica, sendo vistas como um modo diferente de ser Igreja.
Estão presentes e atuam vivamente em muitas regiões do Brasil, embora nem sempre
ligadas diretamente à estrutura paroquial. A paróquia, outra maneira de ser Igreja, exis-
te tem suas raízes nos primeiros séculos da Igreja, teve sua estrutura fundamentada
no século XI, ganhou ênfase estrutural com o Concílio de Trento, e está intensamente
ligada à estrutura institucional eclesial. Recentemente, os bispos do Brasil defenderam
que as CEBs são sinal de vitalidade para a Igreja Particular e uma das iniciativas para a
renovação paroquial, refletindo a dinâmica de tornar a paróquia uma comunidade de
comunidades. Em si, acredita-se em certa conciliação entre CEBs e paróquia. A ques-
tão é que paróquia e CEBs diferem quanto aos modos de ser Igreja e quanto à teologia
que as constitui. Tal diferença pode causar uma forte e mútua tensão. E essa possível
tensão impõe necessariamente uma reflexão sobre a reestruturação da paróquia, e não
somente sobre sua renovação, como tem sido apresentado nos últimos anos.

Palavras-chave: CEBs, Paróquia, Teologia da Libertação.


INTRODUÇÃO

Sou missionário redentorista e tenho alguns anos de experiência com missões popu-
lares que, nas últimas quatro décadas, busca constituir a missionariedade na paróquia pelo
processo de setorização paroquial. Nesses tempos mudados e de mudança, o maior desafio
das missões populares tem sido sustentar os setores ou pequenas comunidades paroquiais
que não são duráveis, pois em pouco tempo se desfazem. O objetivo aqui não é expor ou
refletir as missões populares, mas sim estabelecer uma reflexão sobre a compatibilidade
entre paróquia e CEBs e sua importância para a configuração evangelizadora paroquial.
Para isso, utilizamos o método dedutivo, com uma reflexão propositiva, sugerindo algumas
possibilidades e limitações sobre o tema, sabendo que nossa reflexão teológica não tem
como pretensão concluir o referido assunto.
Numa espécie de realismos negativo, José Comblin afirma que o ponto inicial da teo-
logia é ver cada coisa pelo seu nome e sua simplicidade, sem a diplomacia intelectual. Com
isso, esse teólogo assume um método teológico que parte da simplicidade para observar a
fé do povo de modo mais próximo e mais real (cf. COMBLIN, 1969, p. 120-121). No esforço
em analisar a compatibilidade da realidade paroquial e das CEBs, também buscamos um
caminho simples desde a fé do povo, empreendendo uma reflexão que utilize o mínimo de
conceitos abstratos. As análises científicas sobre o pluralismo e o movimento das religiões
na atualidade são um diálogo importante de várias ciências e que auxiliam na reflexão sobre
a paróquia, mas este não é o ponto central desta reflexão. Tomamos o movimento das reli-
giões na realidade brasileira como um fato secundário em nossa reflexão. Mas, reiteramos
que a reflexão sobre a compatibilidade entre paróquia e CEBs é importante, em razão de
a paróquia ser um espaço de vivência da fé e da pertença eclesial para a Igreja em quase
todos os cantos do mundo. Mas, é certo que sua estrutura e dinâmica não têm colaborado
com a missão e com a evangelização1. As CEBs, que são comunidades menores e não se
adaptam ao anonimato da estrutura paroquial, podem auxiliar em um novo cenário paroquial.
Por exemplo, na obra “Comunidade Eclesial, comunidade Política” (1978), Clodovis Boff
analisou rapidamente tal compatibilidade; descartou o risco da função paroquial ser perdida
e assinalou as CEBs como elemento importante de sua reestruturação, visto terem uma di-
nâmica mais ligada aos carismas e ministérios, podendo promover um movimento pastoral
1 Entendemos missão como o ato pontual de anunciar o kerigma. Na Redemptoris Missio, o Papa João Paulo II observa que o evan-
gelista Marcos toma a missão como proclamação do Evangelho, ou kerigma (Mc 16, 15) (RM 23). Entendemos evangelização como
o processo de amadurecimento do anúncio querigmático na vida da pessoa. O papa Paulo VI diz que o conteúdo da evangelização
requer ousadia, prudência e fidelidade total ao Evangelho, sendo a evangelização um processo de comunicar a mensagem evangé-
lica em cada tempo (EN 40). O Papa Francisco diz que Jesus evangelizou como processo, ao mostrar aos discípulos que algumas
coisas lhes eram incompressíveis, sendo necessário esperar o Espírito Santo (cf. Jo 16, 12-13). A parábola do trigo e do joio (cf. Mt
13, 24-30), por exemplo, descreve o processo de evangelização que, aos poucos, supera o inimigo pela bondade manifestada com o
tempo (EG 225). A evangelização é processo, pois Deus não age por impulso ou imposição, e o ser humano demora para assimilar
aquilo que lhe é transmitido.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 181


mais centrífugo e menos centrípeto. Boff diz que as CEBs não dependem necessariamente de
princípios sociológicos, e sim de processos históricos (cf. BOFF, 1978, p. 57-60). Com isso,
sua integração à estrutura paroquial torna-se mais possível, no entanto, é preciso superar
os prováveis centralismos e conservadorismos presentes em muitos contextos paroquiais.
A Constituição dogmática Lumen Gentium expõe a necessidade da atuação conjunta
dos dons hierárquicos e carismáticos do Espírito Santo (cf. LG 4; 12). Essa unidade fortalece a
evangelização, mas exige que um dom não se sobreponha ao outro. Se os dons hierárquicos
atuam sem os dons carismáticos, haverá exagero de regras formais, centralização do poder,
limitação do dinamismo do Espírito e redução da ação missionária a métodos ultrapassados.
Atualmente, a paróquia vive essa dinâmica (cf. CNBB, 2013, n. 136). Os dons carismáticos,
ao contrário, valorizam a atuação popular na Igreja, a comunitariedade e respeitam o ritmo
do povo; porém, se separados dos dons hierárquicos, ocorrerá desorganização na ação
missionária e acento de modo exclusivo - seja na dimensão religiosa, gerando uma conduta
espiritualista, ou na dimensão social, gerando uma conduta ativista.
A compatibilidade destes dois dons estabelece a convivência da diversidade e aju-
da a Igreja a olhar para suas próprias estruturas eclesiais, diminuindo o risco de unitaris-
mo. No centro desta reflexão está a necessidade de uma nova mentalidade de convivência
entre as diferenças. Só haverá novas estruturas se houver uma mentalidade esperanço-
sa e desejosa de transformá-las: “a esperança é abertura para a mudança e a novidade”
(COMBLIN, 2005, p. 49).

A REALIDADE RELIGIOSA ATUAL

Para Comblin, a evangelização eclesial contemporânea se depara com uma “nova


cultura”, fora dos padrões religiosos hierarquizados e dos moldes doutrinais tradicionais (cf.
COMBLIN, 2002, p. 15). Para Amaral, essa “nova cultura” tem característica espiritual des-
centralizada e errante, com incertezas geradas pelo constante movimento de desconstrução
e reconstrução de significados. Junto a isso, observamos um enorme desejo de consumo.
Esse contexto incerto e errante, por não priorizar os compromissos com as instituições,
debilita o sentido de pertença. A falta de pertença produz o trânsito religioso, que não re-
presenta um vazio sagrado, mas sim um sagrado sempre buscado e nunca apreendido e,
por isso, errante (cf. AMARAL, 2007, p. 104-108). As igrejas (neo)pentecostais, que não
exigem compromisso religioso, triunfam nesse campo, ao prometerem uma religião de sa-
tisfação imediata dos desejos e resolução instantânea dos problemas. Essa mentalidade de
buscar na fé a resolução de tudo causa o trânsito religioso veloz e desconstrói a pertença
institucional e comunitária. Fica difícil saber se essa prática tem um sentido cristão ou se

182 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


é uma nova religião mascarada de cristianismo, pois o evangelho fala em compromisso e
comunitariedade.
A característica errante, descompromissada, de ressignificação e de constante movi-
mento da “nova cultura” não aceita a condição religiosa de controle, embora não desconsidere
a possibilidade de uma estrutura eclesial mais personalizada e próxima das pessoas. A “nova
cultura” exige que se comunique o Evangelho com menos idealismo e mais realismo. É viá-
vel o oferecimento de possibilidades missionárias a pessoas dedicadas, com espírito de
serviço, na aplicação de suas capacidades humanas. Abre-se cada vez mais o campo para
a reconfiguração paroquial pela comunitariedade, com estrutura mais flexível, menos cleri-
cal e mais laical. Em tempos de pouca pertença religiosa, é profético insistir numa vida de
compromisso comunitário intenso, a partir do Evangelho, que certamente vai nos levar a um
dimensão da “Igreja em saída”, que é uma proposta do Papa Francisco. Este é o caminho
que nos propomos.

A MENTALIDADE PAROQUIAL E DAS CEBS

A fé religiosa só tem sentido se fizer diferença prática frente à existência humana (cf.
BOURDIEU, 2004, p. 109; 118). Para agir socialmente, a instituição religiosa requer mem-
bros e estrutura. As estruturas são feitas para servir a evangelização e influem no anda-
mento missionário. Da estrutura faz parte o que Bordieu chama de “poder simbólico”. É um
“poder de construção da realidade, que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica...”
(BOURDIEU, 2004, p. 9) e é exercido por um ou vários membros que tenham a confiança
dos demais componentes da instituição. Esse poder faz ver e crer; confirma ou transforma
a visão de mundo e só é exercido se for reconhecido. Tal poder não reside nas estruturas,
mas entre os que as exercem e a elas estão sujeitos. É um poder importante, sem o qual
haveria arbitrariedade. Contudo, se for mal exercido, também se tornará arbitrário.
As estruturas da instituição religiosa são importantes para a apostolicidade e catoli-
cidade, mas quem confere a conotação da fé à sociedade são os que exercem o “poder
simbólico”. Por falarem em nome da instituição, podem transformar ou tornar as estruturas
transformadoras. A missão e a evangelização, entretanto, terá características exclusivas
dos detentores do “poder simbólico”, caso estes venham a agir por si e para si mesmos,
desinteressados do objetivo do que pensa o restante dos membros. Se os interesses indi-
viduais dos representantes forem maiores que os da missão e da evangelização, o objetivo
comum passa a ser objetivo individual; a missão ganha o rosto dos representantes, e não
do conjunto como um todo. A evangelização não será próxima das pessoas, pois um único
indivíduo não consegue atender à grande demanda social atual.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 183


A Mentalidade Paroquial

O termo “paróquia” tem origem no grego “pároikos”, no substantivo “paroikía” e no verbo


“paroikêin”, significando “viver junto a” ou “habitar nas proximidades de”. Tem a conotação
de vizinhança, mas também pode indicar a situação de alguém sem residência fixa: “ser
estrangeiro”, “habitar como peregrino em qualquer parte” (cf. ALMEIDA, 2009, p. 22; 23 e
26), isto é, ter a consciência de residir provisoriamente num determinado local. A partir do
século IV, a paroikía passou a constituir uma área sob o controle de um bispo, uma “dioikesis”,
termo que provém de “dia”- “oikos” e, no grego, significa “de casa”. Durante vários séculos,
os vocábulos diocese e paróquia detinham o mesmo significado (cf. SCHILLEBEECKX,
1989, p. 63). Na metade do primeiro milênio, com o crescimento do contingente cristão
pelas conversões, desde Constantino e Teodósio (século IV-V), teve lugar um processo de
reorganização eclesial, sendo que o sentido de paróquia como algo “provisório” e de vizi-
nhança foi se modificando. A Reforma Gregoriana (1073-1085) esmerou-se nessa mudança
e retirou da paróquia o senso comunitário, concentrando nela a função administrativa e
centralizada. O Concílio de Trento (1545-1563) confirmou essa dimensão. Portanto, o sis-
tema paroquial administrativo e centralizado que conhecemos hoje tem mais de novecentos
anos e, com poucas alterações, é regido por uma estrutura tipicamente hierárquica clerical,
de prática cultual religiosa, de territorialidade específica e de orientação individual da fé (cf.
LAPOINT, 2000, p. 49). O pároco exerce o “poder simbólico”, que gere sozinho o conjunto
paroquial. Se ele exerce esse poder de modo fechado e rígido, tudo fica centralizado em sua
pessoa, fato cuja apologia é o “clericalismo”. A “nova cultura” tem dificuldades em aceitar
esse sistema, pois é inclinada à liberdade, progredir, melhorar, viver novidades e participar,
em vez de tão somente assistir.
O cunho clericalista confere à paróquia um teor de insuficiência missionária, por ser
gerido por uma única mentalidade, sem inovação de ideias. Para sobreviver, supervaloriza
o culto no templo e oferece diversos benefícios espirituais. Esquece que o cristianismo é
comunitário (cf. Mt 18). O medo de perder o poder, a preocupação com os próprios interes-
ses e a falta de interação com os outros prejudicam a comunitariedade e criam obstáculos
contra mudanças.

A mentalidade das CEBs

As CEBs nasceram na América Latina no final da década de 1950 (cf. BOFF, 1978, p.
57), tiveram grande incentivo com as reflexões do Vaticano II, foram ratificadas pela Teologia
da Libertação e por vários documentos eclesiais latino-americanos. Para Medellín, elas
têm o rosto de uma Igreja local ou ambiental, de grupo homogêneo, de trato pessoal entre

184 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


os membros, de promoção e desenvolvimento humano (cf. Med 15, 10). Puebla confirmou
Medellín, mas pediu cuidado a não definir a “Igreja institucional” como “alienante” (cf. PB 263).
Santo Domingo buscou harmonizar as CEBs com a paróquia, para maior sintonia com o
magistério eclesial (cf. SD 63). Aparecida, consonante com Medellín, reassumiu as CEBs,
sob a perspectiva da revitalização da paróquia (cf. DAp 179).
As CEBs não são fruto da Teologia da Libertação, mas um dos pilares da tradição
eclesial latino-americana libertadora. Enquanto a Teologia da Libertação dava seus pri-
meiros passos, o Plano Pastoral de Conjunto (1966) já as contemplava no organograma
da Igreja particular do Brasil. A uniformização dos comportamentos, o anonimato moder-
no, a carência de ministros ordenados para atender as comunidades e a necessidade de
confiar mais responsabilidades aos leigos são alguns elementos no gérmen das CEBs (cf.
BOFF, 1977, P. 9-14).
Por serem pequenas, dispensam estruturas burocráticas rígidas e facilitam as relações
humanas diretas, de auxílio mútuo e de igualdade entre os cristãos. Vivem do carisma de
cada um, posto a serviço da comunidade. Buscam considerar e celebrar a fé e a missão em
comum, a partir do contexto sociocultural. Pela situação geográfica, por não serem grandes
e por estarem próximas da realidade, levam em conta as várias problemáticas pessoais,
familiares ou profissionais de seus membros e, em termos de fé, partem sempre do real para
o ideal. Exercem um tríplice plano: sociológico, antropológico e teológico. O “poder simbólico”
é exercido de modo descentralizado, distribuído, com revezamento entre seus membros;
promove a interlocução na missão e nas decisões, motiva o carisma pessoal como serviço
comunitário e fundamenta a Igreja colegial. Sua fragilidade diante do contexto social reside,
todavia, na pouca comunhão que as CEBs têm entre si e, por estarem ligadas a um espaço
limitado, a problemas limitados, num lugar limitado, podem perder a noção de globalidade.
Também correm o risco de serem absorvidas pela estrutura paroquial, perdendo a mentali-
dade comunitária laical popular e de compromisso social. Se isso acontece, elas deixam de
cumprir o seu papel, enquanto a paróquia perde a oportunidade de viver o dom carismático,
prejudicando a evangelização.

A TENSÃO EXISTENTE E A POSSÍVEL COMPATIBILIDADE ENTRE CEBS


E PARÓQUIA

É observável que a mensagem e o objetivo missionário da paróquia e das CEBs são


iguais. O que as distingue é o modo de anunciar, as estruturas e a mentalidade. A origem
da tensão está na dialética instalada entre o realismo vivencial carismático dos membros
da comunidade de base e o formalismo racional hierárquico paroquial (cf. BOFF, 1978, p.
57). A dialética é importante; não seria saudável omiti-la pela absorção ou aniquilação de

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 185


uma, em favor ou em detrimento da outra. A instituição precisa da realidade comunitária
para que haja comunhão e proximidade entre as pessoas. A comunidade precisa da fun-
cionalidade da instituição para se organizar, ter representatividade social e alcançar suas
metas. A institucionalidade e a vida concreta das pessoas são dois elementos presentes e
importantes para a sociedade e para a Igreja.
Há quatro importantes elementos a serem observados, para que a compatibilidade flua
de modo considerável: territorialidade, comunitariedade, mentalidade e estrutura.

A territorialidade

A missão da Igreja é sempre universal, por isso ela é católica. Já a territorialidade da


paróquia é um critério importante de organização, pois sua abrangência institucional ajuda a
missão a ser vivida em âmbito global, enquanto a posição geográfica territorial permita que
a missão aconteça em espaço local, partindo sempre do micro para o macro.
Pela territorialidade, a paróquia permite às CEBs maior abrangência em sua dinâmica de
comunhão e força de unidade, para se organizarem para além delas mesmas. Territorialmente
inseridas na paróquia, as CEBs aumentam sua visão de Igreja e de mundo. Pela dinâmica
própria de aproximar-se dos laços sociais, territoriais e afetivos das pessoas, elas impedem
à paróquia de se fechar no anonimato e na letargia administrativa e burocrática em que
atualmente se encontra. Assim, a territorialidade não representa limite e nem obstáculo para
a compatibilidade entre paróquia e CEBs, mas um apoio importante.

A comunitariedade

Sem comunidade não há como viver autenticamente a experiência cristã (CNBB, 2013,
n.42). Pela comunitariedade existe vitalidade na Igreja, mas a vivência comunitária contra-
cena com o exercício do poder. A questão é partilhar e revezar o poder, para que não seja
centralizado e clientelista.
Na realidade pluralista, errante, descompromissada, de ressignificação e de constante
movimento, a comunitariedade é elemento de contraponto. Ela mostra um novo jeito de viver
a fé. Até o fim do primeiro milênio, a índole comunitária da Igreja era tão forte que levava o
conjunto de fiéis a considerar sua comunidade como responsável pela obra geral no mundo
inteiro, facilitando as relações primárias com os novos que nela eram admitidos (cf. LEÑERO,
1973, p. 39). Este valor se enfraqueceu quando a administração paroquial foi se tornando
mais forte que a vivência comunitária.
A dimensão comunitária auxilia a reconfiguração da paróquia, e um meio para que
isso aconteça é que esta se torne um centro de CEBs, em um novo cenário de Igreja paro-
quial, com nova consciência dos atores e com novas estruturas. Cenário esse, que Libanio

186 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


classifica como o de uma Igreja em saída, onde predominam os círculos bíblicos e a articu-
lação da fé com a vida. Neste cenário, o órgão orientador da Igreja Particular é a Assembleia
do Povo de Deus e o leigo assume relevância maior na coordenação das comunidades e
nos ministérios. A espiritualidade do seguimento de Jesus é mais intensa e profundamente
relacionada ao cuidado dos vulneráveis, acolhendo caridosamente as diferenças. A pre-
sença da Igreja na Sociedade fica mais expressiva e crítica, em razão de viver melhor os
ensinamentos sociais e a prática das pastorais sociais. Quanto aos meios de comunicação
social, privilegia as rádios comunitárias e os programas populares, chegando mais próximo
das camadas simples da sociedade. Valoriza o papel da religiosidade popular, seja sob o
aspecto de expressão da vida do povo, seja sob as suas possibilidades libertadoras. Este
cenário pode enfrentar dificuldades por sofrer com os chavões pejorativos relacionados à
“Igreja de esquerda”, mas não há cunho político partidário, e sim cunho social, porque nasce
e se desenvolve a partir povo (cf. LIBANIO, 2012, p. 107-156).

A mentalidade

Entendemos por mentalidade aquilo que o ser humano culturalmente tem de comum
com outros de seu tempo (cf. LE GOFF, 1990), seja no plano histórico, quotidiano, estrutural,
conjuntural, marginal, etc. A “nova cultura” implica nova mentalidade e pressiona as institui-
ções. Essa mudança de mentalidade não significa romper com o passado, deixando de lado
as experiências anteriores. Isto seria perder o sentido da história e agir com imediatismo,
sem entender o presente como resultado do esforço iniciado pelas gerações passadas.
Também não significa modificar a mensagem e o objetivo da missão, mas interagir com as
novidades e, nessa interação, estabelecer os métodos para a missão (cf. BRIGHENTI, 2013,
p. 87). É a identificação da obra de Deus na nova realidade, revelando este Deus nesta nova
conjuntura, a partir dessa identificação.
A reconfiguração paroquial pela compatibilidade com as CEBs requer a superação da
mentalidade tradicional e clericalizada. Mudar a estrutura sem mudar a mentalidade seria
como trocar a roupa, sem tomar banho.

A estrutura

A estrutura é igualmente um elemento importante à ação missionária. Garante a or-


ganização e evita o caos (cf. SCHERER, 1973, p. 105). O ser humano tem por índole viver
em circunstâncias de vida estruturada. Sem estrutura a missão se perde em suas relações
e objetivos. O processo missionário exige estruturas, mesmo que sejam modestas ou míni-
mas. Só que estruturas antigas utilizadas em novos tempos podem ficar desconexas. Como
já foi argumentado, a estrutura hierárquica, fechada e rígida da paróquia não condiz com as

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 187


mudanças sociais da “nova cultura”. A compatibilidade com as CEBs exige uma perspectiva
eclesiológica participativa e aberta aos evangelizadores leigos e de funcionalidade comuni-
tária, a fim de responder melhor aos desafios da evangelização atual.

POSSÍVEL CAMINHO PEDAGÓGICO PARA A COMPATIBILIDADE

A compatibilidade entre paróquia e CEBs acontece se houver respeito à fé e ao ritmo


do povo, numa teologia cuja base seja a experiência do povo. Para isso, propomos uma di-
nâmica pedagógica de setorização e suscitação de CEBs e de discípulos missionários, num
processo de reconfiguração paroquial e de reelaboração teológica da paróquia. Em poucas
linhas, apresentamos abaixo o possível processo e alguns de seus possíveis critérios.
Primeiro: - Setorizar, suscitar CEBs e discípulos missionários em apenas uma comu-
nidade da paróquia, inicialmente. Quando o processo é realizado em várias ou em todas as
comunidades ao mesmo tempo, configura-se a imposição de um mesmo ritmo a todos, o
que sufocaria os carismas e excluiria a missionariedade de uma comunidade para com a ou-
tra. A comunidade indicada para iniciar o processo deve empenhar-se em oração e formação
conjunta, com vistas a entender o procedimento de setorização e da suscitação de CEBs e
discípulos. Feita a setorização já se pode rezar nas famílias semanalmente. Esse processo
irá alimentar o espírito comunitário e começará a efetivar as possíveis CEBs. O conteúdo
dos encontros pode ser elaborado pela própria comunidade, ou sugerido por um conjunto
de forças da paróquia. Gradualmente, a comunidade deve reavaliar em conjunto a sua ca-
minhada, para confirmar a fé vivenciada e completar possíveis falhas ocorridas. Essa prática
enriquece a experiência comunitária vivida. As etapas desse primeiro momento poderão
levar um ano ou mais e dependem do ritmo da comunidade. Outro fator importante é que
a paróquia não se renovaria numa só vez, mas sim num processo gradual, que dá mais
segurança, no sentido de afastar o medo da mudança.
Segundo: - Assessorar outra comunidade na implantação do processo. A primeira
comunidade, depois de vivenciar o processo, passará a auxiliar uma outra. A caminhada da
segunda comunidade terá seu próprio ritmo, e isso deve ser levado em conta. Não é saudável
repetir os mesmos temas e o mesmo ritmo, sem comum acordo de todos os participantes.
Desmerecer as opiniões e optar pelo mais fácil empobrece a experiência.
Terceiro: - As comunidades continuam a viver a experiência. A experiência da primei-
ra não se conclui. Mesmo ajudando outras, ela continuará sua caminhada. A permanência
missionária se efetivará pela ajuda mútua das comunidades e pela continuidade da atuação
de cada uma, ininterruptamente.
Note-se que aqui não propomos temas ou conteúdo para as formações e reuniões de
família. Isso já constituiria uma opção. O importante é que o conteúdo seja condizente com

188 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


a realidade da comunidade, esteja pautado na Palavra de Deus e seja elaborado em refle-
xão conjunta de todas as forças paroquias: pastorais, movimentos, lideranças e quem mais
se propuser a participar. A exclusão de algumas forças põe em risco a experiência e deixa
de lado elementos importantes. A síntese teológica é parte da caminhada evangelizadora,
deve estar contida na prática da vivência comunitária e aparecer na avaliação de todos. Por
ser formativa, a vivência comunitária possibilita um aprendizado contínuo. É o esforço no
sentido de se prepararem leigos para a pregação e ação missionária na comunidade e na
Igreja. É importante que cada comunidade efetue o seu processo, nunca prescindindo da
ajuda da outra. O respeito ao ritmo de cada comunidade e os objetivos de setorizar, susci-
tar CEBs e viver a comunitariedade pela fé mostram que o Reino de Deus vai sendo vivido
desde agora, e que não é uma realidade construída de modo prematuro e arbitrariamente,
mas no respeito ao outro. A vivência do mistério na prática e no testemunho comunitário é
que atrai o outro a viver também. É a fé se tornando algo inspirador, a partir da vida cotidiana
de cada pessoa. A vivência em comunidade com base na fé em Jesus ajuda os discípulos
missionários de uma comunidade a serem atualizados no mundo e no contexto em que
vivem. Sem isso, corre-se o risco de errar no excesso ou na deficiência.

CONCLUSÃO

Para os bispos do Brasil, a paróquia se encontra estruturalmente inchada, isolada em


si mesma, pouco missionária e inibida diante dos vínculos humanos e sociais. A saída desse
marasmo é setorizar, para descentralizar, tornando-a uma comunidade de comunidades (cf.
CNBB, 2013, n. 154). Mas criar setores paroquiais sem a suscitação de comunidades e de
discípulos de Jesus a partir do próprio povo seria preceder a práxis e desvalorizar a ação
popular. E agir assim significaria cair no erro de criar estruturas sem vitalidade, sem relação
de pertença, improdutivas para a evangelização.
A compatibilidade tem de ser assumida por todos, “de coração e mente”. O proces-
so de setorizar, suscitar CEBs e discípulos missionários nos setores paroquiais deve ser
gradual, lento, não isento de tensões e começa pela consciência de que esse trabalho não
pode ser imposto pelo desejo institucional, mas deve partir da espontaneidade de quem irá
vivê-lo. Nada disso exclui a motivação do pároco, que é o detentor do “poder simbólico” pa-
roquial. A ele cabe a missão de despertar o desejo de se viver o novo e a missionariedade,
por meio dos setores e CEBs, o que não significa erigir CEBs a seu bel prazer. Motivar não
é impor, mas propor.
No caso, existe, ainda, outro problema: introduzir ações administrativas paroquiais nas
comunidades. É uma dinâmica que impõe o sentido clerical e burocrático às CEBs, inibindo-
-as em seu espírito comunitário e carismático, incapacitando-as de reconfigurar a paróquia.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 189


Desta forma, não ocorrerá compatibilidade, mas assimilação. É preciso que se respeitem os
espaços e as diferenças. Haverá compatibilidade com a paróquia se o espírito comunitário
e a valorização dos carismas forem mantidos, se for evitada a burocratização e valorizado
o “face a face” dos seus membros (cf. BOFF, 1977, p. 20). O argumento de que o público
paroquial não está acostumado a participar de comunidades e que as CEBs se tornariam
sucursais da paróquia equivale a não acreditar na mudança de mentalidade da paróquia e
na força carismática das CEBs.

REFERÊNCIAS
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190 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


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Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 191


14
“ Da krisis à metanoia: a poética
do sagrado em Jorge de Lima e
Murilo Mendes

Sergio Carvalho de Assunção


UERJ

10.37885/200901486
RESUMO

Durante as primeiras décadas do século XX, enquanto os valores culturais eram transfor-
mados em bens de consumo pela macroestrutura econômica do materialismo industrial,
o sujeito se viu mergulhado em uma crise que o esvaziava psíquica e espiritualmente,
abalado pela barbárie das guerras, pelo colapso socioeconômico e pela eclosão do nazi
fascismo. Em face dessa perturbadora realidade, a poesia moderna se afirmou como
uma ação crítica, proporcionando ao sujeito uma experiência de reinvenção do seu lugar
no mundo através da linguagem. Efetivamente, o cultivo da poesia assumiu-se como
uma experiência e uma ética, de transgressão e resistência contra a lógica indus- trial
e a alienação moral do capital, propiciando ainda uma experiência de transformação
espiritual (metanoia) desse mesmo sujeito. Nesse sentido, este texto propõe abordar a
poesia de tonalidade espiritual em Jorge de Lima e Murilo Mendes, examinando o modo
pelo qual suas respectivas poiesis foram movidas essencialmente pela crise do sujeito
moderno no início do século XX em dissidência com o mundo civilizado, através da tensão
permanente entre a negatividade profana e a espiritualidade cristã, experimentadas ao
nível do corpo e no plano da poesia.

Palavras-chave: Poesia, Crise, Metanoia, Murilo Mendes, Jorge de Lima.


INTRODUÇÃO: CRISE E BARBÁRIE

Se a poesia moderna revelou ao homem uma verdade, essa verdade se inscreveu sob
o signo de uma crise do sujeito. Desde Charles Baudelaire na segunda metade do século
XIX, passando pelo surrealismo de Antonin Artaud e Guillaume Apollinaire no século XX, até
a poesia beat norte americana de Allen Ginsberg, inapelavelmente, a evidência do mal-estar
do sujeito diante da barbárie da era industrial foi uma tônica recorrente na lírica moderna.
Para Hugo Friedrich, a tensão dissonante da poesia moderna exprime-se tanto no ní-
vel formal quanto em seu conteúdo, tornando-se indissolúveis no plano de sua significação.
Estilisticamente, além de incorporar os aspectos contrastantes, a lírica moderna trouxe à
tona o absurdo, a obscuridade e a anormalidade sob um tom de tenacidade e precisão,
provocando a surpresa, o choque e o estranhamento:

Pode-se falar de uma dramaticidade agressiva do poetar moderno. Ela domi-


na na relação entre os temas ou motivos que são mais contrapostos do que
justapostos, além disso, domina na relação entre esses e um comportamento
inquieto de estilo que separa, tanto quanto possível, os sinais do significado.
(FRIEDRICH, 1978, p. 17)

Incapaz de encontrar sentido em seu espaço social, o sujeito se viu mergulhado em


uma crise que o esvaziava psíquica e espiritualmente, tamanho o sentimento de impotência
diante da degradação moral provocada pela euforia desenvolvimentista da era industrial, na
medida em que os valores culturais eram transformados em bens de consumo pela lógica
industrial. Assim, ao retornar sua consciência sobre si, já nas primeiras décadas do século
XX, o estado de crise foi acentuado pelas guerras e suas irreparáveis consequências, so-
bretudo a neurose em viver sob a iminência da destruição atômica.
Todavia, se na segunda metade do século XIX o poeta sofreu com a asfixia da macroes-
trutura econômica que o desumanizava, relegando-o à condição de estrangeiro em sua própria
sociedade, foi na virada do século que essa tensão se agravou. No século XX, a incidência do
materialismo industrial provocou um esvaziamento existencial e espiritual no sujeito moderno,
abalando sua ordem íntima com o sagrado ao coisificá-lo sob uma ordem utilitarista e ordinária,
subtraindo-o, definitivamente, da perspectiva de uma vida em transcendência.
Eis que o sujeito se viu, nesse momento, deslocado da concepção cosmogônica e
transcendente do sagrado, ao perceber a existência organicamente, pela força instintiva do
desejo em imanência com o mundo. Pois, quando a totalidade metafísica foi rompida, o indi-
víduo se redescobriu a partir de uma dupla acepção do ser como sujeito e objeto, na medida
em que foi separado da natureza e devolvido à gravidade das coisas finitas. A objetividade
da lógica industrial promovia uma corrosão dos sonhos e afetos, esvaziando o sentido da

194 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


própria existência, sob a gradativa materialidade que sobrepujava a experiência humana,
limitando a imaginação e as potências criadoras.
Como escreveu Georges Bataille:

A massa da humanidade concordou com a obra industrial, e a seu lado tudo


o que pretende subsistir faz o papel de soberano destronado. É claro que a
massa da humanidade tem razão: comparado ao progresso industrial, o res-
to é insignificante. Essa massa, sem dúvida, se deixou reduzir à ordem das
coisas. Mas essa redução generalizada, essa perfeita realização da coisa, é
a condição necessária à posição consciente e inteiramente desenvolvida do
problema da redução do homem à coisa. É somente em um mundo onde a
coisa reduziu tudo, onde o que outrora lhe era oposto revela a miséria das
posições equívocas — e de inevitáveis deslizes — que a intimidade pode se
afirmar sem outro compromisso além da coisa. (BATAILLE, 2015, P. 69)

Em meio a esse cenário, a poesia moderna se afirmou como um lugar crítico, propor-
cionando ao sujeito uma experiência vivencial através da linguagem, ao ressignificar seu
espaço e reinventar sua perspectiva para além da experiência estética. O cultivo da poesia
assumiu-se, efetivamente, como uma experiência ética de resistência e transgressão contra
a barbárie da lógica utilitarista e a alienação moral proveniente do capital. No entanto, ao
revelar a crise e mal-estar do sujeito diante do mundo civilizado, a lírica moderna proporcio-
nou ao sujeito voltar-se sobre si por meio do outro, dando passagem a um acontecimento
pelo qual se inscreveu um saber acerca da dimensão humana.
Nesse sentido, a presente abordagem da poesia de Jorge de Lima e Murilo Mendes
visa examinar o modo pelo qual suas respectivas experiências poéticas foram potencializa-
das por esse estado de crise e inquietude do sujeito no início do século XX, expressando
a dissidência com o mundo civilizado através da tensão permanente entre a negatividade
profana e a espiritualidade cristã, experimentadas ao nível do corpo e no plano da poesia.

Tensão e queda

Em 1935 Jorge de Lima e Murilo Mendes lançaram o livro Tempo e Eternidade, logo
após a conversão dos dois poetas ao cristianismo. Este livro foi determinante para o rumo
de suas respectivas poéticas, tornando-se o ponto divisório na obra de cada um, ao conso-
lidar a busca de ambos pelo sagrado e sobrenatural. Além da expressão agônica da crise,
havia o imperioso desejo de compreensão desse mal-estar sob a perspectiva espiritual e
por meio da experiência poética.
Para Murilo Marcondes Moura, o questionamento e os conflitos do poeta mineiro com
relação à fé, à crença e à devoção religiosa antecedem e se manifestam posteriormente à
conversão e à produção de Tempo e Eternidade, como se essa inquietude fosse parte do
próprio processo de consolidação ética e estética do poeta.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 195


Envolvido nessa perspectiva do eu lírico há, sem dúvida, um questionamento
da fé (que já aparecia em momentos esparsos dos livros anteriores do poeta,
exceção feita a Tempo e Eternidade), embora ainda dentro do âmbito religioso.
Em todo caso, ele tem consequências enormes na produção posterior do poeta.
A perspectiva escatológica, que vinha sempre precipitar a história para o seu
final, cede lugar a uma religiosidade cuja ‘procura obsedante da esperança’
se dá num contato mais direto com a experiência concreta. [...] Essa crise, por
outro lado, era previsível em um poeta cuja a inquietação não podia ser apri-
sionada nos quadros de um credo muito ortodoxo. (MOURA, 1995, p. 189-190)

Ainda que Murilo ou Jorge assumissem claramente a conversão religiosa - o que


implicou, consequentemente, em uma transformação ética, estética e espiritual -, em ne-
nhum momento este fato comprometeu o caráter moderno, crítico e experimental de suas
poesias, jamais circunscrevendo-as sob expressão ascética ou proselitista. Como salienta
Marcondes, a ousadia e a radicalidade experimental desses poetas demonstram o caráter
pioneiro de ambos na utilização das técnicas das foto-montagens, uma vez que, “no Brasil,
Murilo Mendes e Jorge de Lima efetuaram pesquisas semelhantes, basicamente em relação
à fotomontagem”. (28)
Notoriamente, essa vocação moderna dos poetas revelava- se ainda mais nítida na
medida em que o desejo de transcendência espiritual se amalgamava à visão crítica diante da
degradação humana, sobretudo em vista das guerras. Além do mais, suas poéticas traduziam
a experiência de confronto e paixão com o Evangelho, ao revelar a tensão entre o desejo
de elevação beatífica e a negatividade que se inscreviam ao nível do corpo e dos afetos.

Lutei convosco, fiquei cansado,


fiquei caído. Quando acordei
Tu me ungiste. Tu me elevaste.
Tu eras meu pai e eu não sabia
eu sofri muito. Furei as mãos.
Ceguei. Morri. Tu me salvaste.
Eu sou teu filho e não sabia.
Lutamos muito: eu te feri.
Perdoa Pai, pensai meus olhos:
eu era cego e não sabia.1

Evidentemente, é neste livro (Tempo e Eternidade) que foram deflagradas as marcas de


uma nova sintaxe poética, revestida pela crise do sujeito e sob a perspectiva da dissonância
fato inédito na moderna poesia brasileira até aquele momento. Percebeu-se a modernidade
de uma nova poesia de tonalidade espiritual que abordava o grotesco e o escatológico como
elementos de subversão do belo moral. Pela primeira vez produziu-se uma linguagem que
desrealizava o real, reinventando-o, simultaneamente, sob dimensões míticas e oníricas,

1 LIMA. Poesia completa, p. 391.

196 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


ao retirar o tempo de seu fluxo contínuo para dar vazão à eternidade, constituindo, desse
modo, uma supra realidade.
Na esfera da produção poética de Jorge de Lima e Murilo Mendes, vemos uma poesia
que tem seu núcleo fundado na imagem, adotando procedimentos técnicos assimilados das
vanguardas e tomados como solução formal que propiciasse tal dimensão mítica e/ou espi-
ritual. A radicalidade estilística de suas linguagens residia na tensão entre eixos temáticos,
como por exemplo entre as ruínas da instituição eclesiástica cristã e o anseio de libertação
espiritual do homem, entre o tempo e a eternidade, entre o histórico e o utópico, entre a
negatividade e a sobrenaturalidade.
Com efeito, abordar a poesia de Jorge de Lima e Murilo Mendes é, sobretudo, aproxi-
mar-se da dimensão existencial e espiritual do homem do século XX, marcada pela evidência
de um estado de crise e contradição permanentes. A radicalidade expressional de ambos se
demonstrou intrínseca tanto à busca ascensional pelo estado beatífico do sagrado através
da poesia, quanto ao desconcerto de um sujeito diante de um mundo que o sobrepujava.
Deste modo, o cultivo da experiência poética de ambos buscava compreender e comunicar
a crise e a contradição que delineavam o sujeito moderno, tomando a poesia como um meio
de (re) fazer-se a si mesmo por meio do outro.

Pêndulo que marcas o compasso


Do desengano e solidão,
Cede o lugar aos tubos do órgão soberano
Que ultrapassa o tempo:
Pulsação da humanidade
Que desde a origem até o fim
Procura entre tédios e lágrimas.
Pela carne miserável,
Entre colares de sangue,
Entre incertezas e abismos;
Entre fadiga e prazer.
A bem-aventurança.2

Assim, reinventava-se a existência ao produzir um saber cultivado na e pela poesia,


elevando-a de um lugar estético para um lugar crítico, ético, fundindo-se a ela como um puro
devir. Ao ser potencializada pelos afetos e pela alteridade, a poesia tornou-se uma expe-
riência vivencial capaz de transformar a subjetividade a partir das tensões e contradições
que se interpenetram na linguagem, no corpo, no tempo e no espaço.
Segundo Fábio de Souza Andrade, embora o livro Tempo e Eternidade tenha sido es-
crito a quatro mãos, corroborando a motivação primordial de “restaurar a poesia em Cristo”,
ou seja, no cristianismo original e ainda imaculado de sua institucionalização, é possível

2 MENDES. Poesia completa e prosa, p. 557

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 197


perceber claramente as distintas abordagens e concepções formais empregadas por cada
poeta em suas respectivas linguagens.

Nos poemas de Tempo e Eternidade, mais do que a demonstração de dois


tipos de simplicidade poética, há o registro de duas aproximações diferentes
e complementares a um mesmo tema. Os textos de Jorge de Lima tendem a
condensar imagens que falem do poder angustiante da passagem do tempo,
confrontando o presente ao absoluto implicado na ideia do Juízo Final, en-
quanto Murilo Mendes preocupa-se mais com a ideia complementar, a pers-
pectiva mítica da reconciliação do homem com o universo e com o criador.
(ANDRADE, p. 42-3)

Sob outro ângulo, para Georges Bataille, em A literatura e o mal, a poesia moderna é
marcada por um paradoxo que corresponde à natureza humana mais profunda, ao expressar
a essência dualista e dinâmica de nossa condição, configurada pela tensão entre o bem e
o mal, como ele exemplificou em vários poetas, com destaque para William Blake e Charles
Baudelaire. Segundo Bataille, a significação do Mal se proclama a partir de uma auto-conde-
nação da própria condição humana, seja na inclinação para a morte, para a guerra ou para
o erotismo, o que poderia forjá-lo para um estado de angústia, de raiva e repugnância. Para
ele, o Mal é tomado como um impulso, uma paixão ou uma atração irrefletida, diferentemente
de uma intencionalidade calculista, crapulosa e egoísta.
Deste modo, o Mal é deslocado de um lugar moral, sujeito à lei, porém, situado sob
a espessura humana e passional, já que, segundo ele, “A literatura mais humana é o alto
lugar da paixão”, isto é, como se esse embate apaixonado fosse absolutamente necessário
ao homem para reconhecer sua natureza.

O Mal, nessa coincidência de contrários não é mais o princípio oposto de uma


maneira irremediável à ordem natural que ele é nos limites da razão. A morte
sendo a condição da vida, o Mal, que está ligado em sua essência à morte,
é também, de uma maneira ambígua, um fundamento do ser. O ser não está
destinado ao Mal, mas deve, se assim pode, não se deixar encerrar nos limites
da razão. (BATAILLE, 2015, p. 26)

Sob essa perspectiva, é como se tais manifestações expressassem não somente a


condição humana em face da finitude terrena, mas, sobretudo, as tribulações pelas quais o
sujeito vivencia em seu processo de reconciliação com Deus desde a queda adâmica. É como
se essa tensão entre a negatividade e o desejo de elevação transubstanciassem sua ex-
piação, apenas compreendida na ordem íntima em que se passa a relação de intensidade
vivencial com o sagrado.
Ao mesmo tempo, ainda sob a ótica de Bataille, é preciso que o sujeito vá ao encon-
tro dessa paixão que o move - e que é também sua expiação -, aceitando-a como a ‘parte
maldita’ que proporcionará retirá-lo do lugar comum, ou seja, desse vazio que o imobiliza

198 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


e o definha. Segundo ele, “um ser altivo aceita lealmente as piores consequências de seu
desafio. Por vezes até precisa ir ao encontro delas. A ‘parte maldita’ é a parte do jogo, da
álea, do perigo. É ainda a parte da soberania, mas a soberania se expia”. (Ibidem, p. 27)
No âmbito poético, reitera-se que foi no plano de composição da poesia que Jorge
de Lima e Murilo Mendes buscaram uma solução formal que permitisse a cada um ex-
pressar essa tensão, revelando o anseio pela reconciliação com a transcendência perdi-
da na modernidade.

Tenho os movimentos alargados.


Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
Posso enxugar com um simples aceno
o choro de todos os irmãos distantes.
Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.
Chamo todos os mendigos para comer comigo,
e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.3

Afinal, se por um lado a crise foi desencadeada pelo vazio de um sujeito que perdeu
sua ordem íntima com o sagrado, por outro, a poesia surgiu como lugar de uma experiência
restauradora. Isto é, não se tratava de uma verdade que se refere ao humano como sua
origem, mas sim à verdade da experiência humana como substância, visando libertar o
desejo que ainda pulsava em um sujeito fadado à indigência social, de restaurar-se com o
sagrado por meio da comunhão com o outro no plano da poesia.

Da crise à metanoia

Após a queda, quando a totalidade com o sagrado se rompeu e o homem se redes-


cobriu separado da natureza e devolvido à imanência das coisas finitas. Em sua angústia e
desespero, o sujeito se viu acuado frente à possibilidade de integração ao mundo das coisas
por meio do trabalho. No plano da poesia, diante da evidência de uma existência em crise,
a lírica moderna expôs a impotência do sujeito em meio às macroestruturas econômicas e
sociais que propiciaram seu esvaziamento espiritual e sua degradação.
Com efeito, ao investigar o sentido da crise na poesia de Jorge e Murilo e a dimensão
da negatividade, percebe-se que a expressão da irracionalidade das paixões, quando des-
locadas para o nível da vida comum, visa libertar o imaginário do racionalismo materialista,
lançando-o ao maravilhoso por meio da plasticidade mitológica.

3 LIMA. Poesia completa, p. 425.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 199


No entanto, a negatividade presente no dualismo de suas concepções teopoéticas não
se reporta apenas à tradição pagã. Sobretudo, é possível verificar que o seu significado se
origina desde o homem adâmico da tradição cristã, isto é, desde a queda e expulsão do
Éden. Todavia, essa negatividade se contrapõe à promessa da vida eterna, de modo que
essa tensão se espessura no plano da poesia, sendo parte do processo beatífico de recon-
ciliação com o sagrado.
Ao observar a poesia de Jorge e Murilo sob a perspectiva teológica, deve-se conside-
rar, primordialmente, que o cristianismo se passa na individualidade do sujeito e sua prática
cotidiana com o outro. Mais do que um substrato literário, o sentido do Evangelho requer sua
experiência vivencial no convívio diário e social com o outro, em detrimento de qualquer ins-
titucionalização dogmática e restritiva de seu conteúdo. Assim ratifica o poeta Jorge de Lima:

Sim, creio numa única, imensa, geral e verdadeira revolução: que é a Revo-
lução de Cristo, que apenas começa e em que as outras revoluções sociais
sejam elas quais forem, francesa ou russa, serão unicamente minutos dentro
dessa eterna revolução, que só terminará no dia do Juízo Final. [...] Trazendo
à Humanidade, muitas vezes distante da verdade, atrações momentâneas
da vida, a realidade da Dor, a realidade da Morte, que jamais será afastada
da realidade de Cristo, que a todo o instante nos espera, no final de todos os
momentos. (LIMA, 1997, p. 96)

Como disse o poeta, ao contrário de uma mobilização massiva, a revolução cristã se


passa, primordialmente, ao nível da consciência individual do sujeito, como uma transforma-
ção (metanoia) pela fé, e ao nível do próprio corpo. Isto é, ela se passa na própria experiência,
ao ampliar sua ação da esfera existencial à esfera social e impessoal com o próximo, com
o outro, sendo ao mesmo tempo transcendente e imanente.
Mais uma vez, é importante reiterar que, muito embora a religião cristã tenha sido de-
terminante nas poéticas de Jorge e Murilo, suas poesias jamais adotaram uma expressão
puramente panfletária, prosélita ou ascética. Ao contrário, ambas as poéticas se valeram
essencialmente do caráter transcendente e da tonalidade metafísica e espiritual, sempre
colocados sob permanente tensão com a imanência da desordem material da vida cotidiana
dos afetos e paixões, vivenciando este acirramento através da experiência poética inscrita
ao nível do corpo e da queda.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo que a degradação humana foi trazida à tona pela
lírica moderna, cabe ressaltar que a criação de uma nova sintaxe poética operou como re-
sistência a todo o processo de desumanização e barbárie, possibilitando que a experiência
poética restaurasse a dimensão humana do sujeito.
Assim sendo, pode-se dizer que tal desordem desafiou a ambos a articularem suas
poesias visando o cultivo de uma linguagem que proporcionasse a unidade formal dos

200 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


contrários. Em Murilo Mendes, a solução formal encontrada pelo poeta mineiro para o pro-
blema foi tentar fundir, inexoravelmente, as múltiplas perspectivas fragmentárias no plano
de sua poesia, como aponta Davi Arrigucci Jr.:

Para uma poesia assim, o problema que se coloca, desde logo e agudamente,
é a questão da integridade da forma: como soldar os elementos díspares no
todo acabado, que é o corpo de palavras do poema. Desde o princípio, Murilo
enfrentou os riscos do informe, maiores sempre para os que se arriscam como
ele a buscar a fusão do múltiplo, a concórdia do discorde, querendo juntar o
mais disperso e refratário, mas tendo de espiar pela janela do caos: a face
de fragmentos, fantástica e terrível, do mundo em que nos tocou viver. Desse
ângulo, sua obra toda pode ser vista como a articulação arriscada e difícil
entre a linguagem poética que busca a unidade e a experiência de um mundo
desencontrado. (ARRIGUCCI JR., 2000, p. 97)

De modo implacável, tanto Jorge de Lima quanto Murilo Mendes voltaram-se para a
criação de uma nova sintaxe, cada qual guardando suas particularidades estilísticas. Em face
dessa transformação, se há um ponto em comum entre eles é que ambos foram movidos
pela inquietude diante do processo da barbárie do mundo civilizado, articulando suas res-
pectivas linguagens sob a tônica da dissonância, impregnados pela radicalidade experimen-
tal vanguardista.
Nesse sentido, incorporação das técnicas de colagens e foto-montagens originárias do
dadaísmo e da pintura surrealista contribuiu decisivamente para que Jorge de Lima e Murilo
Mendes desenvolvessem procedimentos poéticos capazes de expressar a tensão agônica
vivenciada pelo sujeito moderno diante da inospitalidade do mundo, e do seu desejo de
idealidade e transcendência, elevando-o à unidade e reconciliação com o sagrado.

As harpas da manhã vibram suaves e róseas.


O poeta abre seu arquivo - o mundo -
E vai retirando dele alegria e sofrimento
Para que todas as coisas passando pelo seu coração
Sejam reajustadas na unidade.
É preciso reunir o dia e a noite,
Sentar-se à mesa da terra com o homem divino e o criminoso,
É preciso desdobrar a poesia em planos múltiplos
E casar a branca flauta da ternura aos vermelhos clarins do sangue.
Esperemos na angústia e no tremor o fim dos tempos,
quando os homens se fundirem numa única família,
Quando ao se separar de novo a luz das trevas
O Cristo Jesus vier sobre a nuvem,
Arrastando por um cordel a antiga Serpente vencida.4

Percebe-se, portanto, a predominância das imagens articuladas como significantes,


além da produção de elementos desintegradores do real por meio da magia da linguagem,

4 MENDES. Poesia completa e prosa, p. 401.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 201


como se a lírica moderna deslocasse seu núcleo enunciativo do significado para o significan-
te, sob uma ordem sensorial. Em outras palavras, a lírica moderna desarticulou a poesia da
esfera compreensível para a sugestividade, por meio de uma linguagem alógica regida pelos
sentidos e visando transformar a poesia em uma supra realidade - de substância fantasiosa,
semelhante ao onírico -, em detrimento da reprodução objetiva do mundo e das coisas.
Ao expressar os dramas do homem moderno em sua reconciliação com Deus, os poe-
tas visavam alinhar a ordem de intimidade com o sagrado à ‘ordem das coisas’ cotidianas.
Sob esse prisma, a modernidade da lírica de Jorge e Murilo foi capaz de fundir a imanência
pagã à transcendência cristã, elevando a visão culturalista - predominante no modernismo - a
uma perspectiva sobrenatural e supra real, adotando procedimentos formais absolutamente
inovadores em suas respetivas linguagens.

Não procureis qualquer nexo naquilo


que os poetas pronunciam acordados
pois eles vivem no âmbito intranquilo
em que se agitam seres ignorados.
No meio de desertos habitados
só eles é que entendem o sigilo
dos que no mundo vivem sem asilo
parecendo com eles renegados.
Eles possuem, porém, milhões de antenas
distribuídas por todos os seus poros
aonde aportam do mundo suas penas.
MENDES. Poesia completa e prosa, p. 401.
São os que gritam quando tudo cala,
são os que vibram de si estranhos coros
para a fala de Deus que é sua fala.5

Para o pensador e teólogo cristão Sören Kierkegaard, é justamente um estado de in-


quietação existencial e espiritual que distingue e move o ser. Para ele, somos motivados de
tal modo por um intenso acirramento entre três esferas que se confrontam permanentemente
e ao longo de nossa existência, como se fôssemos o devir de uma conflituosa dinâmica entre
a esfera estética, a ética e a espiritual.
Segundo ele, seja a melancolia ou a angústia, a depressão ou o desespero que histó-
rica e atavicamente atormentam o ser humano, todas esses males são apenas fluxos de um
processo existencial do sujeito em sua relação com o mundo, de modo que este mal-estar
deve ser visto como um processo de edificação da sua consciência ética, que só alcançará
a libertação por meio da fé e da elevação espiritual.

Todo conhecimento cristão, por estrita que seja de resto a sua forma, é in-
quietação e deve sê-lo; mas essa mesma inquietação edifica. A inquietação
é o verdadeiro comportamento para com a vida, para com a nossa realidade

5 LIMA. Poesia completa, p. 575.

202 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


pessoal e, consequentemente, ela representa, para o cristão, a seriedade por
excelência; a elevação das ciências imparciais, muito longe de representar uma
seriedade superior ainda, não é, para ele, senão farsa e vaidade. Mas sério é,
eu volo afirmo, aquilo que edifica. (KIERKEGAARD, 1979, p. 189)

Kierkegaard afirma que a origem do pecado se deve à perda de uma consciência


espiritual, e da perda da relação original do homem com Deus, o que ocasionou o seu afas-
tamento de Deus. Assim, visto sob a perspectiva adâmica, no momento em que o homem
se defronta consigo, ele se depara com o seu vazio, e isso o angustia. Após errar em sua
escolha e perder sua liberdade, ele carrega para sempre consigo essa angústia da ‘possi-
bilidade da falha’ diante das escolhas que determinarão sua existência, afora o peso por ter
perdido a glória e a dimensão da eternidade, vivendo-as apenas como uma abstração, sob
a égide do tempo secular.
Embora o pecado original e hereditário tenha sido condicionado ao sujeito a partir de
uma conjectura moral e secular, segundo Kierkegaard, ele deveria ser visto sob a dimensão
existencial e espiritual, quando, no momento em que escolheu a si mesmo, o homem perdeu
sua ligação com o sagrado e, consequentemente, a dimensão do infinito e da eternidade,
quedando no abismo de sua condição terrena e finita, angustiando-se com o medo da morte.
No plano da poesia, acima da perspectiva da queda e da finitude, do autoflagelo, da
autocomiseração ou de uma predestinação adâmica, a lírica de Jorge e Murilo convergem
ao considerar que o sentido da existência humana seja, rigorosamente, reconciliar-se espi-
ritualmente com Deus.

Minha história se desdobrará em poemas:


Assim outros homens compreenderão
Que sou apenas um elo da universal corrente
Começada em Adão e a terminar no último homem.6

Na obra O desespero Humano, Kierkegaard define o sujeito a partir de uma tensão agô-
nica ou acirramento que produz, dialeticamente o desespero e a liberdade. Segundo ele, se
por um lado o sujeito é a síntese entre finito e infinito, entre a possibilidade e a necessidade,
desesperamo-nos ou por não querermos ser quem somos, ou por querermos desesperada-
mente descobrir quem somos, o que nos impossibilita de atingir repouso e equilíbrio. Logo,
nos desesperamos pelo que nos tornamos e pelo eu que não deveio.

O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhe-
cimento que ela tem de si própria depois de estabelecida. O homem é uma
síntese de in- finito e de finito, de temporal e se eterno, de liberdade e de ne-
cessidade, é, em suma uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos.
Sob este ponto de vista, o eu não existe ainda. (KIERKEGAARD, 1979, p. 195)

6 MENDES. Poesia completa e prosa, p. 255

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 203


Kierkegaard acredita que a crise é parte da natureza e da condição humana, conforme
a herança adâmica após a queda do paraíso. Em face disso, para que o homem não se
desespere é preciso aniquilar em si a cada instante essa possibilidade virtual e frequente
da queda, evitando que essa sombra recaia sobre a realidade psíquica e física do sujeito.
Deste modo, não desesperar é evitar a queda ou, ainda, elevar-se, tomando consciência
de nossa natureza agônica da qual deriva nossa essência. Pois, se fôssemos uma síntese
e não uma contradição, não haveria razão para nos desesperarmos, ao passo que só nos
desesperamos na medida em que relegamos nossa perspectiva temporal ao agora, sem
projetarmos a existência sob a perspectiva da eternidade.

CONCLUSÃO

A poética do sagrado

Portanto, Kierkegaard afirma que, após o pecado original, o homem está condicionado
à sua natureza animal, determinada pela queda do paraíso, e assim ele luta intensamente
para reconciliar-se com Deus. Para que isso aconteça, é necessário elevar-se espiritualmente
e renunciar ao instinto, sendo que, dessa luta, resulta o seu desespero. Para ele, o homem
não tenta livrar-se da carne, mas deseja ser tocado espiritualmente pelo sagrado. Deste
modo, ao ser tocado pelo eterno e imortal de Deus, o espírito prevalecerá sobre o instinto
naturalmente devorador e vazio. Pois na medida em que o desejo é suprido, revela-se a
ausência de sentido que o preencha, além do próprio desejar e devorar.
Evidentemente que, para ele, isto implica em um paradoxo, já que a consciência espi-
ritual é movida pelo desejo de uma existência com Deus, sendo que o desejo de uma exis-
tência junto a Deus depende de uma consciência transformada que só pode ser alcançada
por meio de um “salto qualitativo” (ético espiritual) em direção ao abismo e ao vazio, pela
fé. Não obstante, esse salto exige a convicção e a consciência em desejar ser transformado
pelo poder sobrenatural de Deus, de modo que aquele vazio angustiante acentuado por um
desejo e desespero, só pode ser preenchido pela unidade com o sagrado.
Portanto, reitera-se que a poesia de tonalidade espiritual cristã de Jorge e Murilo
forjou-se a partir desse prisma dramático e paradoxal entre a negatividade demoníaca e a
transcendência divina. E, sob essa perspectiva, se a queda adâmica pode ser vista sob o
signo de um mal-estar e esvaziamento, por outro lado, esse mal inoculado em nossa condição
humana pode, ao mesmo tempo, servir como uma força propulsora ao sujeito, movendo-o
da crise à metanoia. Todavia, trata-se da fé como uma decisão espiritual consciente, que
cultiva sua transformação ética ao nível das práticas comuns e cotidianas com o outro, e
não como um mero fideísmo.

204 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


O mundo atual, como sempre, é um grande campo de
batalha, onde se digladiam constantemente as forças do Mal e do Bem. Muitas
vezes pensamos, devido a circunstâncias fortuitas e à curta visão do homem,
pensamos que o Mal está ganhando terreno, como atualmente é a impressão
que nos dá a imensa tragédia universal dos tempos presentes. Mas não! O Bem
está à frente, o Bem conquista, mesmo sem nós percebermos, terreno para
o Reino de Deus, dia a dia, hora à hora, minuto a minuto. (LIMA, 1997, p. 96)

Ainda em face dessa perspectiva, pode-se dizer que, além de serem movidas pela
crise e mal-estar do sujeito, as poéticas de Jorge e Murilo expressam a visão cristã que
compreende a vida terrena como um dilaceramento entre as forças do bem e do mal, ao nível
do corpo e da consciência. Guardadas as respectivas singularidades, ambas as poéticas
assinalam, sob a ótica teológica e beatífica, que a compreensão dessa luta e acirramento
corresponde à nossa própria transformação espiritual, isto é, à nossa metanoia, na medida
em que vivemos para superar a consciência secular, purificando-nos através da crise77 e
das tribulações.
Contudo, as poíesis de Jorge e Murilo são expressamente movidas por esse desejo
metanoico do sujeito em ser livre, transcendendo tanto a negatividade que devora quanto a
ansiedade que esvazia, por meio da crença no eterno que o liberta do tempo, por meio do
cultivo de uma experiência mais íntima e substancial com Deus, que nos infinita pelo amor
ao outro como a um irmão e semelhante, através da poesia.

Porque o sangue de Cristo


jorrou sobre os meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas,
que eu decomponho e absorvo com os sentidos,
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.8

REFERÊNCIAS
1. ANDRADE, Fábio de Souza. O engenheiro noturno. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1997.

2. ARRIGUCCI JR., Davi. O cacto e as ruínas: a poesia entre outras artes. São Paulo: Duas
cidades; Ed. 34, 2000.

7 Segundo Leonardo Boff, “Em sânscrito, crise vem de kir ou kri que significa purificar e limpar. De kri vem crisol, elemento com o qual
limpamos ouro das gangas e acrisolar que quer dizer depurar e decantar. Então, a crise representa um processo crítico, de depuração
do cerne: só o verdadeiro e substancial fica, o acidental e agregado desaparece
8 LIMA. Poesia completa, p. 425.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 205


3. BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

4. _______. Teoria da religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

5. BOFF, Leonardo. https://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Para-entender-o-fenomeno-da-cri-


se/34029.

6. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século
XX. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

7. KIERKEGAARD, Sören Aabye. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano.


São Paulo: Abril Cultural, 1979.

8. _______. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2013.

9. LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

10. MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa - volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

11. MOURA, Murilo Marcondes. Murilo Mendes: a poesia como totalidade. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo: Giordano, 1995.

206 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


15
“ Distanciamento e compreensão
na noção de texto em Paul
Ricoeur: uma análise do
conceito de apropriação de uma
proposição de mundo

Lílian Franciene de Oliveira


UFJF

10.37885/201001728
RESUMO

Muito influenciado pela fenomenologia hursserliana, Ricoeur percebe a partir da filosofia


de Heidegger uma nova questão fundamental à hermenêutica: qual é o modo de ser
desse ser que só existe compreendendo. Com Hans-George Gadamer a hermenêutica
dialoga com as ciências do espírito, porém, segundo Ricoeur, Gadamer não conseguiu
unir de fato os horizontes da pertença e da distancia, e atribui a possibilidade de tal fato
ser uma consequência do que podemos chamar de uma eficiência história, difundia,
em relação à hermenêutica, nas considerações de Dilthey. Na tentativa de ultrapas-
sar tal antimonia, Ricoeur estabelece uma teoria do texto referente à relação dialética
entre apropriação e distanciamento como característica típica da escrita, e, para tanto,
apresentar o debate acerca do conceito de interpretação mantido pela hermenêutica
romântica e a relação entre subjetividade e escrita no ato de compreender e interpretar
o discurso, através de sua concepção, como podemos encontrar, especialmente, em
Interpretação e Ideologias (Ricoeur; 1990), em especial do segundo capítulo A Função
Hermenêutica do Distanciamento, mas também em muitas passagens e escritos diversos
de Ricoeur. A crítica acerca da tríade compreensão-texto-conhecimento de si encontra-se
fundamentalmente relacionada à crítica que Ricoeur estabelece ao cogito cartesiano e ao
conceito de intuição imediata do sujeito no processo de conhecer-se a si mesmo. Segundo
o autor, apenas nos (re)conhecemos através dos sinais de humanidade encontrados nas
obras da cultura. O que se apropria na interpretação de um texto não está oculto por
detrás dele, mas sim se encontra diante dele; é uma proposição de mundo. E, ainda, é o
que Gadamer chamou de a coisa do texto e o que Ricoeur chama de o mundo da obra.
Assim, compreender é compreender-se diante do texto. (referencias). Faz-se necessário
então colocar no centro da questão da compreensão de si a dialética da objetivação e da
compreensão a qual se faz referencia em relação à compreensão do discurso.

Palavras-chave: Hermenêutica, Distanciamento, Apropriação, Dialética, Compreensão.


INTRODUÇÃO

A hermenêutica vem passando, ao longo da história, por vários questionamentos en-


quanto metodologia. Para Paul Ricoeur foi com o advento da obra de Friedrich Schleiermacher
que ocorre o inicio de um novo modo de estudo dos textos, antes divididos em estudos
filológicos e de exegese, mas é na tentativa de subordinar essas práticas de compreensão
dos textos à uma problemática geral do compreender que a hermenêutica se torna moder-
na. Muito influenciado pela fenomenologia husserliana, Ricoeur percebe a partir da filosofia
de Heidegger uma nova questão fundamental à hermenêutica: qual é o modo de ser desse
ser que só existe compreendendo. Com Hans-George Gadamer a hermenêutica dialoga
com as ciências do espírito, porém, segundo Ricoeur, Gadamer não conseguiu unir de
fato os horizontes da pertença e da distancia, e atribui a possibilidade de tal fato ser uma
consequência do que podemos chamar de uma eficiência história, difundia, em relação
à hermenêutica, nas considerações de Dilthey. Na tentativa de ultrapassar tal antimonia,
Ricoeur estabelece uma teoria do texto, em outras palavras, uma ontologia do texto e uma
epistemologia da interpretação.

OBJETIVOS

O presente texto pretende estabelecer uma questão fundamental à hermenêutica,


demonstrada por Paul Ricoeur, referente à relação dialética entre apropriação e distan-
ciamento como característica típica da escrita, e, para tanto, apresentar o debate estabe-
lecido pelo mesmo autor acerca do conceito de interpretação mantido pela hermenêutica
romântica e a relação entre subjetividade e escrita no ato de compreender e interpretar o
discurso, através de sua concepção de distanciamento, linguagem metafórica e relação
entre discurso e sentido.

MÉTODO

O método bibliográfico se dará a partir da leitura das obras de Paul Ricoeur, A Metáfora
Viva, O Si Mesmo Como Outro e, como fonte principal, Interpretação e Ideologias, em es-
pecial do segundo capítulo A Função Hermenêutica do Distanciamento.

RESULTADOS

O artigo será apresentado concentrando-se, primeiramente, em uma introdução eluci-


dativa dos principais pontos defendidos pela hermenêutica romântica, atribuindo-se atenção

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 209


especial às concepções de Gadamer acerca da oposição entre distanciamento alienante e
participação por pertença e Dilthey sobre sentido e historicidade. Em seguida tentaremos
desenvolver a crítica de Ricoeur à concepção de intuição imediata e do cogito cartesiano.
Finalmente, apresentaremos a tentativa em Ricoeur de ultrapassar a alternativa deduzida da
obra Verdade e Método de Gadamer em relação à atitude metodológica e atitude de verdade
no processo hermenêutico. Concluiremos com o desenvolvimento da noção de apropriação
e desapropriação apontada por Ricoeur na relação dialética entre subjetividade (o leitor) e
objetividade (o texto) na obra.

CONCLUSÃO

A crítica acerca da tríade compreensão-texto-conhecimento de si encontra-se funda-


mentalmente relacionada à crítica que Ricoeur estabelece ao cogito cartesiano e ao conceito
de intuição imediata do sujeito no processo de conhecer-se a si mesmo. Segundo o autor,
apenas nos (re)conhecemos através dos sinais de humanidade encontrados nas obras da
cultura. O que se apropria na interpretação de um texto não está oculto por detrás dele, mas
sim se encontra diante dele; é uma proposição de mundo. E, ainda, é o que Gadamer cha-
mou de a coisa do texto e o que Ricoeur chama de o mundo da obra. Assim, compreender
é compreender-se diante do texto. (referencias). Faz-se necessário então colocar no centro
da questão da compreensão de si a dialética da objetivação e da compreensão a qual se
faz referencia em relação à compreensão do discurso.

HERMENÊUTICA RICOEURIANA

A hermenêutica de Ricoeur, segundo Japiassu (apud RICOEUR, 1990),

trata-se de um pensamento que se propõe a adotar um método reflexivo capaz


de romper todo e qualquer pacto com o idealismo. De forma alguma pretende
negar sua relação com o vivido. Pelo contrário, tem em vista o esclarecimento,
mediante conceitos, da existência. Esclarecer a existência é elucidar seu sentido.
Por isso, o problema próprio de Ricoeur é o da hermenêutica, vale dizer, o da ex-
tração e interpretação do sentido. (JAPIASSU, 1990 apud RICOEUR, 1990, p4).

Como toda a modernidade se tornou interpretação, a grande preocupação do Ricoeur,


mais que a mentira, era a ilusão. Cito Japiassu (apud RICOEUR, 1990),

Toda crise atual da linguagem pode ser resumida na oscilação entre desmis-
tificação e restauração de sentido. E o projeto de Ricoeur não é outro senão
o de redescobrir a autenticidade do sentido graças a um esforço vigoroso de
desmistificação. [...] O método usado por Ricoeur é o fenomenológico, tentando
compreender o que descreve, para descobrir seu sentido. (JAPIASSU, 1990

210 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


apud RICOEUR, 1990, p.5).

Colocando em questão os temas religiosos da falta e da transcendência, Ricouer


tenta suspender o juízo da falta original e demonstra sua eidética da vontade, que supõe a
suspensão da consideração sobre os dogmas religiosos do pecado original e das relações
do homem com Deus. Não é que Ricoeur desconsidere a tradição. Muito pelo contrário,
ele eleva a tradição a sua posição intencional, em essência. A história é construída pelos
homens que dela e nela se constroem a si mesmos. Essa relação entre subjetividade e ob-
jetividade é em Ricouer claramente dialética. Não há superposições e é, exatamente, com
o intuito de esclarecer a natureza dialética dessa relação que Ricoeur suspende os dogmas
na análise dos textos.
Realmente, não podemos interpretar ex nihilo, como se fossemos uma tela em branco
preparada para e capaz de absorver todo o sentido da coisa dada. Ricoeur levanta essa
questão como no nível de um preconceito, mas não no sentido moderno, pejorativo, que
acabou por nos impor uma diferenciação entre preconceito e pré-conceito. De qualquer
maneira, Ricoeur assume mesmo a noção pós-moderna de preconceito quando pensa na
suspensão de dogmas na interpretação. Assim, é necessário restituir o poder criativo da
vontade humana em seus componentes, a saber, o projeto, a execução e o consentimento.
“Pois querer é, sempre, projetar um mundo, apesar ou contra os obstáculos”. (JAPIASSU,
1990 apud RICOEUR, 1990, p.5).
No entanto, isso não que dizer que o homem cria o real. Ricoeur reafirma a fenomeno-
logia husserliana assumindo que, no plano do conhecer, a primeira característica do objeto
é a de aparecer, é claro, a uma consciência capaz de percebê-lo. A presença do objeto é
sua característica principal. É essa presença que pode ser percebida de vários pontos de
vista. Mas é apenas no âmbito da linguagem que podemos perceber coisas que não estão
ali, que aparecem em sua ausência. É nesse sentido que a palavra transcende todos os
pontos de vista. Como nos fala Japiassu, (1990),

A realidade não se reduz ao que pode ser visto. Identifica-se, também, ao que
pode ser dito. Há uma síntese do visto e do dito numa filosofia do discurso, mas
que só se aplica à ordem das coisas. (...) O que importa, no final das contas
é que o homem não se contente com sua linguagem primária para exprimir
toda a sua experiência. Ele precisa chegar a uma interpretação criadora de
sentido, a essa atitude filosófica do compreender. (JAPIASSU, 1990 apud
RICOEUR, 1990, p.6).

Ricoeur afirma que o modo do Ser se dá ao homem é através de sequências simbó-


licas, sendo toda existência, como relação ao ser, já uma hermenêutica.1 E é a linguagem
1 E aqui mostra sua proximidade da filosofia de Heidegger em Ser e Tempo quando este afirma a questão do ser evidente e, ao mesmo
tempo, envolto em obscuridades.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 211


interpretativa, a linguagem filosófica, aquela capaz de revelar essa relação ontológica, pois
a filosofia tenta alcançar o verdadeiro, o sentido, que só pode ser decifrado através da in-
terpretação simbólica desmistificada.
Ricoeur faz da fenomenologia de Husserl um momento decisivo de sua reflexão filo-
sófica, pois a superação do que foi separado pelo cogito refere-se, essencialmente, a uma
volta aos fundamentos.

A HERMENÊUTICA ROMÂNTICA

Ricoeur afirma ver a história recente da hermenêutica dominada por duas preocupa-
ções: a primeira se dá pela desregionalização da hermenêutica; a segunda é o movimento
de radicalização, pelo qual a hermenêutica se torna fundamental. A polissemia de nossas
palavras exige uma sensibilidade de contexto e uma atividade de discernimento que seja
capaz de produzir um discurso relativamente unívoco com palavras polissêmicas e, ao
mesmo tempo, identificar essa intenção de univocidade na recepção das mensagens. São,
como Dilthey as chamou, as expressões da vida fixadas pela escrita, aquelas que exigem
um trabalho específico de interpretação já que, com a escrita, não se preenchem mais os
critérios da interpretação direta através do diálogo. Fazem-se necessárias, então, técnicas
específicas que possam elevar a cadeia de sinais escritos ao nível do discurso.
O movimento de desregionalização da hermenêutica começa com Friedrich
Schleiermacher2 que se defrontou com o problema da relação entre duas formas de inter-
pretação, a saber, a “gramatical”, que se apoia nos caracteres do discurso que são comuns
a uma cultura, e a “técnica”, que se dirige a singularidade, a genialidade da mensagem.
(RICOEUR, 1990). Segundo ele,

Trata-se de atingir a subjetividade daquele que fala, ficando a língua esque-


cida. A linguagem torna-se, aqui, o órgão a serviço da individualidade. Essa
interpretação é chamada positiva, porque atinge o ato de um pensamento que
produz o discurso. (RICOEUR, 1990, P. 22).

Assim, essa segunda hermenêutica também comporta elementos técnicos e discursi-


vos, pois, em Schleiermacher, a segunda interpretação, a técnica, é priorizada, dando um
caráter advinhatório à interpretação e enfatizando seu caráter psicológico. Para Ricoeur
esse é o embaraço dessa conclusão, a saber, a substituição do primeiro par de opostos, o
gramatical e o técnico, por um segundo par, a adivinhação e a comparação. Novamente, por
não elucidar a relação da obra como indivíduo autônomo, juntamente, com a subjetividade

2 Foi em Schleiermacher que a questão do distinguir as operações particulares dos dois grandes ramos da hermenêutica, a saber, a
filologia e exegese, de suas operações comuns e estabelecer um estudo aprofundado sobre as últimas demonstrou uma tentativa de
fundamentação de uma hermenêutica geral.

212 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


do autor e por insistir na busca das subjetividades subterrâneas, Schleiermacher, assim
como outros autores da hermenêutica moderna, não consegue superar a dualidade dos
pares. No entanto, é essa maior universalidade, provocada pela desregionalização da her-
menêutica e, também, a mudança a qual Dilthey, posteriormente, à fez passar, subordinando
a problemática filológica e exegética à problemática histórica, que prepara o caminho para
o deslocamento da epistemologia em direção à ontologia, e tem seu ápice em Heidegger.
“A hermenêutica romântica enfatizava a expressão da genialidade” (RICOEUR, 1990,
p. 54). Dilthey, ainda próximo dessa maneira de experiência hermenêutica3, fundava seu
conceito de interpretação sobre a captação de uma vida estranha que se exprime através
das objetivações da escrita e, assim, conserva o caráter psicologizante característico da
hermenêutica romântica. Mas, por outro lado, foi Dilthey quem percebeu “a necessidade de
incorporar o problema regional da interpretação de textos no domínio mais amplo do conhe-
cimento histórico.” (RICOEUR, 1990, P. 23). A história, considerada como o grande docu-
mento do homem, em termos de coerência, precede a coerência do próprio texto e, assim,
vem à luz o grande problema da inteligibilidade do histórico e, de um modo mais genérico,
a possibilidade real de fundamento científico das ciências do espírito. É essa questão que
nos mostra a grande oposição encontrada ao longo da obra de Dilthey entre explicação da
natureza e compreensão da história.
Dilthey, então, lança a noção de encadeamento, apoiando-se em Husserl. Este últi-
mo estabelecia o psiquismo caracterizado pela intencionalidade, ou seja, pela proprieda-
de de visar um sentido suscetível de ser identificado. Dilthey, então, reforça seu conceito
de estrutura psíquica pela noção de significação. No entanto, ao fazê-lo, assim como em
Schleiermacher, “é a filologia que fornece a etapa científica da compreensão”. (RICOEUR,
1990, P. 26). Dessa maneira, Dilthey não escapa ao psicologismo. Mesmo tendo mantido
a afirmação de que a vida se apreende pela mediação de unidades de sentido que estão
acima do fluxo histórico, apontado por ele, para levar adiante essa descoberta é necessário,
como nos fala Ricoeur, (1990),

que se renuncie a vincular o destino da hermenêutica à noção puramente


psicológica de transferência numa vida psíquica estranha, e que se desvende
o texto (...) em direção ao seu sentido imanente e a esse tipo de mundo que
ele abre e descobre. (RICOEUR, 1990, p. 29).

É a essa aporia entre explicar e compreender, a qual Japiassu chamou de “tão nefasto
dualismo epistemológico” (JAPIASSU, apud RICOEUR, 1990), que as categorias do texto
vêm tentar resolver.

3 Para Ricoeur, Dilthey ainda está envolvido no debate hermenêutico em termos epistemológicos, o tipo de debate hermenêutico ca-
racterístico da modernidade.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 213


Se em Heidegger o Dasein, o ser-aí que somos nós, é enfatizado, não é porque ele
assume, como fundamento, um sujeito para quem há um objeto, mas, de fato, assume-se
aqui um modo de ser, um ser no ser. A pergunta, então, se transforma: não perguntamos
mais sobre como compreendemos algo, mas sim, qual é o modo de ser desse ser que é
compreendendo. Assim, é na explicitação desse ente em relação à sua condição de ser,
que se encontra, em Heidegger, o desafio da filosofia hermenêutica. Em Ser e Tempo, a
questão da compreensão está totalmente desvinculada do problema da comunicação com
o outro. Como afirma Ricoeur, (1990),

Não é de se estranhar, pois, que não seja por uma reflexão sobre o ser-com,
mas sobre o ser-em, que possa começar a ontologia da compreensão. Não
se trata do ser-com o outro, que duplicaria nossa subjetividade, mas do ser-no
mundo (...) Ao mundanizar, assim, o compreender, Heidegger o despsicologiza.
(RICOEUR, 1990, p. 32).

O problema que permanece em Heidegger, para Ricoeur, é o de como seria possível


“tomar consciência de uma função crítica em geral, no contexto de uma hermenêutica funda-
mental.” (RICOEUR, 1990, p. 36). E é em Gadamer que se apoia para responder tal questão.
Com a filosofia de Gadamer reaviva-se o debate das ciências do espírito4, pois ela é
a síntese de desses dois movimentos, a saber, a desregionalização da hermenêutica e o
caminho desta da epistemologia para a ontologia. Gadamer vê no distanciamento alienante
a pressuposição ontológica que assegura a conduta objetiva das ciências humanas. A me-
todologia das ciências implica esse distanciamento. No entanto, sua consequência mais
fundamental para Gadamer, segundo Ricoeur, é a relação do conhecimento com o que
Gadamer chamou de participação de pertença. Assim, o problema,

consiste em saber se a filosofia de Gadamer conseguiu ultrapassar o ponto


de partida romântico da hermenêutica, e se sua afirmação, segundo a qual o
ser homem encontra sua finitude no fato de situar-se, antes, no seio das tradi-
ções, consegue escapar ao jogo das reviravoltas, no qual ele vê o romantismo
filosófico encerrado, face às pretensões de toda filosofia crítica. (RICOEUR,
1990, p. 38).

A reflexão de Gadamer culmina em uma teoria da consciência histórica a qual ele da o


título de consciência-da-história-dos-efeitos. Essa categoria depende da consciência reflexiva
de uma metodologia, da consciência de ser exposto à história e à sua ação. (RICOEUR,
1990, p. 40). Assim, a consciência da história eficiente possui, em si mesma, um elemento
de distância que estabelece uma tensão entre o longínquo e o próximo, essencial à cons-
ciência histórica. Esse é o primeiro indício da dialética entre participação e distanciamento.

4 O distanciamento alienante, rigor das ciências exatas, em relação à transcendência dos pressupostos ontológicos do conhecimento
se torna, em Gadamer, pressuposição ontológica para assegurar a atuação objetiva das ciências humanas.

214 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


O segundo indício e a teoria de Gadamer sobre a fusão de horizontes. O conhecimen-
to se dá à distância e apenas por ela se torna possível. Nunca poderemos entrar em um
horizonte diferente do nosso, porém é na fusão deles, no seu ponto de encontro, que se
estabelecem as condições para o conhecimento. Assim, cito Ricoeur (1990),

Onde houve situação, haverá horizonte suscetível de se estreitar ou se ampliar.


Devemos a Gadamer essa Idea muito fecunda sobre a qual a comunicação à
distância entre duas consciências diferentes situadas faz-se em favor da fusão
de horizontes, vale dizer, do recobrimento de suas visadas sobre o longínquo
e o aberto. Mais uma vez, é pressuposto um fator de distanciamento [...] signi-
fica que não vivemos nem em horizontes fechados, nem num horizonte único.
(RICOEUR, 1990, p. 41).

Concluindo, vemos como um caráter mais positivo do distanciamento está contido no


próprio texto, na consciência ao se dar ao processo do entendimento e, assim, na expe-
riência hermenêutica geral.

RELAÇÃO METODOLÓGICA E ATITUDE DE VERDADE NO PROCESSO


HERMENÊUTICO: A FUNÇÃO HERMENÊUTICA DO DISTANCIAMENTO.

Para erigir o debate hermenêutico significativo para as ciências semiológicas e exegé-


ticas, Ricoeur tenta superar a antimonia contida na obra de Gadamer, a saber, a oposição
entre distanciamento alienante e participação de pertença, pois, segundo ele, esta suscita
uma alternativa insustentável já que este distanciamento, que condiciona o estatuto científico
das ciências humanas, também, por outro lado, é o movimento que “arruína a relação funda-
mental e primordial que nos faz pertencer e participar da realidade histórica que pretendemos
erigir como objeto.” (RICOEUR, 1990, P. 43). Segundo ele, a questão imprescindível que se
dá a partir do conceito de eficiência histórica, em Gadamer, é a de,

Como é possível introduzir qualquer instância crítica numa consciência de


pertença expressamente definida pela recusa do distanciamento? A meu ver,
isso só pode ocorrer na medida em que essa consciência histórica não se
limitar a repudiar o distanciamento, mas de forma a também empenhar-se em
assumi-lo. (RICOEUR, 1990, p. 40).

Então, Ricoeur apresenta a questão central de sua tese. Se não procuramos mais
pelas intenções psicológicas do outro, que se dissimulam por traz do texto, e se não ad-
mitimos a hermenêutica como um processo de desconstrução de estruturas, então, o que
poderíamos manter em termos de interpretar é o movimento de explicitar o tipo de ser-no-
-mundo que se manifesta, na verdade, diante do texto, e não escondido nele. Assim, Ricoeur
segue na mesma direção tomada por Heidegger em Ser e Tempo, quando desvincula da

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 215


teoria da compreensão a base estabelecida na compreensão do outro, retendo a análise
heideggeriana de “projeção dos possíveis mais próximos” para aplica-la a teoria do texto
(RICOEUR, 1990, P. 56).
Assim, segundo Ricoeur (1990),

De fato, o que deve ser interpretado, num texto, é a proposição de mundo, de


um mundo tal como posso habita-lo para nele projetar um de meus possíveis
mais próprios. É o que chamo de mundo do texto, mundo próprio a este texto
único. (RICOEUR, 1990, P. 56).

Ele, então propõe que a problemática seja organizada em torno traços que constituem
os critérios do texto. Primeiramente, na efetuação da linguagem como discurso, ele apresenta
uma dialética entre evento e significação, um traço de distanciamento primitivo. O discurso
se dá como evento no sentido de que, primeiramente, é realizado temporalmente no pre-
sente, a “instância do discurso”; em segundo lugar, o discurso é sempre auto-referencial,
pois, na medida em remete a seu locutor, o caráter de evento vincula-se à pessoa que
fala; e, finalmente, o discurso sempre fala, à alguém, sobre alguma coisa. Nesse terceiro
sentido, o evento é “a vinda à linguagem de um mundo mediante o discurso.” (RICOEUR,
1990, P. 46). A significação é a maneira como tal discurso é compreendido, pois, assim como
a língua, ao articular-se como discurso, ultrapassa-se e realiza-se como evento, o discurso,
ao se ultrapassar como evento, realiza-se como significação. Segundo Ricoeur, (1990),

O que pretendemos compreender não é o evento, na medida que é fugidio, mas


sua significação que permanece (...) É na linguística do discurso que evento e
sentido se articulam um sobre o outro. (RICOEUR, 1990, P. 47).

E ainda,

Dou aqui ao termo significação, uma acepção bastante ampla, recobrindo


todos os aspectos e todos os níveis da exteriorização intencional que torna
possível, por sua vez, a exteriorização do discurso na obra e nos escritos.
(RICOEUR, 1990, P. 49).

Assim ele propõe três traços distintivos da noção de obra, resultado da ultrapassagem
do discurso. Primeiramente, uma obra apresenta um problema novo de compreensão, relati-
vo à totalidade constituída pela natureza da obra. Em segundo lugar a obra se constitui sob
uma forma de codificação que classifica o discurso (literário, poético, filosófico, religioso), ou
seja, nos aponta seu estilo. Ao impor uma forma à matéria, tornamos o discurso, como obra,
em objeto de uma práxis e uma techné. A obra literária é o resultado de um trabalho que,
ao organizar o discurso, opera uma determinação prática de uma categoria de indivíduos, a

216 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


qual Ricoeur chamou de “obras de discurso”. “A noção de estilo permite um novo enfoque
da questão do sujeito na obra literária.” (RICOEUR, 1990, P.50).
O distanciamento produzido pelo mundo do texto se dá entre o real e si mesmo, pois
o referente da ficção (relato, poema, conto) é, ele mesmo, uma ruptura com a linguagem
cotidiana e possui duas propriedades interessantes: primeiramente, é aberto, em sentido
mais amplo, a qualquer um que possa ler, o que amplia os horizontes de alcance do texto
em relação ao discurso oral, fechado em seu acontecimento espaço-temporal; em segundo
lugar, ao provocar a ruptura com a linguagem cotidiana provoca, também, uma ruptura com o
real, que suspende a realidade e, assim, abre novas possibilidades de ser no mundo. “Ficção
e poesia visam ao ser (...) mas sob a maneira do poder-ser.” (RICOEUR, 1990, P. 56).

INTUIÇÃO IMEDIATA E COGITO CARTESIANO EM PAUL RICOEUR

Se a filosofia de Ricoeur parte do cogito cartesiano, de maneira alguma tenta elaborar


uma filosofia da consciência, mas, ao invés disso, seu projeto é uma filosofia da tomada
de consciência através da desmistificação da própria consciência como ilusão. Depois do
cogito cartesiano, os problemas de fundamento e origem tratados pela filosofia se dividiram
em duas questões separadas: de um lado, a questão do ser, da natureza e de Deus e, do
outro, a questão do homem, o que significou um dilaceramento do campo ontológico. A her-
menêutica de Ricoeur só entende o cogito a partir da mediação dos signos5. “A consciência
não é imediata, porém mediata.” (JAPIASSU, 1990 apud RICOEUR, 1990, p.10).
Quando Ricoeur nos fala que o símbolo da a pensar, ao mesmo tempo, também nos
impõe a questão de como pensar segundo os símbolos. É aqui que se encontra com a psi-
canálise freudiana, mas não como prática, e sim, como material escrito através do qual uma
exegese nos leva a um método de interpretar a linguagem humana que dissolve a velha
filosofia do sujeito, já que a interpretação dessa linguagem nos apresenta os símbolos como
estrutura da própria consciência, a essência de sua própria expressão, dissolvendo as ilu-
sões da consciência imediata. Como afirma Japiassu, “podemos caracterizar o pensamento
de Ricoeur como uma tentativa de acesso às fronteiras do saber, mas sem transpor seus
limites.” (JAPIASSU, 1990 apud RICOEUR, 1990, p.6).

CONCLUSÃO

De forma alguma Ricoeur tenta impor ao texto uma capacidade finita de compreen-
dê-lo. Na verdade, a autonomia faz com que uma obra seja considerada como algo que

5 Para um estudo aprofundado ver RICOEUR, Paul. Da Interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda,
1977.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 217


se dá aos leitores, criando o seu próprio vis-à-vis subjetivo. O problema da apropriação,
aqui, deve ser considerado de uma maneira diversa do que foi pela tradição hermenêutica.
Primeiramente, a apropriação está ligada dialeticamente ao distanciamento típico do texto;
ela é a compreensão pela distância. Em segundo lugar, a apropriação está dialeticamente
ligada à objetivação fundamental da obra. Em terceiro lugar, e não menos importante, aquilo
de que me aproprio no texto é uma preposição de mundo. Conheço-me pelo texto, com-
preendendo-me diante dele com aquilo que a obra revela. Aqui se fundamenta a refutação
da dicotomia em Dilthey entre “compreender” e “explicar”. A partir da objetivação do discurso
em obra, o caráter estrutural da composição, o distanciamento pela escrita e o texto como
mediação da compreensão de si mesmo são as grandes contribuições da crítica à herme-
nêutica tradicional de Ricoeur. Como afirma Japiassu, (apud RICOEUR, 1990),

ao passarmos da frase ao discurso propriamente dito (poema, ensaio e filoso-


fia), abandonamos, enfim, o nível semântico e ingressamos no nível herme-
nêutico. O que está em questão, nesse nível, não é mais a forma da metáfora
(como para a retórica), nem tampouco seu sentido (como para a semântica),
mas sua referência. (JAPIASSU, 1997, apud RICOEUR, 1990, p.9).

Para Ricoeur, a linguagem metafórica, possuindo todas as características do distancia-


mento, é a mais apropriada na expressão da verdade de um discurso. Cito, Ricoeur, (1990),

(...) tomando o exemplo da linguagem metafórica, a ficção é o caminho privi-


legiado da descrição da realidade, e a linguagem poética é aquela que, por
excelência, opera o que Aristóteles, refletindo sobre a tragédia, chamou de
mimésis da realidade. (RICOEUR, 1990, p. 56).

A tragédia imita a realidade através de mythos e, para Ricoeur esse tipo de distancia-
mento é o que a experiência hermenêutica deve incorporar. No entanto, a partir do momento
que se entende o distanciamento como parte fundamental da natureza do próprio texto, não
se pode mais considerar as visões de caráter historicizantes e psicologizantes da herme-
nêutica romântica. É na analise da própria estrutura da obra como tal que se encontra seu
sentido desvelado e revelado no mundo do texto. O referencial do discurso como texto não
está, como no discurso oral, no aqui e agora, revelado no espaço tempo do acontecimento,
ou melhor, naquilo que se pode ver. Com a escrita, não há mais o conceito de situação co-
mum entre escritor e leitor. O discurso fictício, ao abolir o referencial de primeiro nível, nos
possibilita buscar um referencial totalmente original da obra, o do mundo da obra, dando
ao texto autonomia e tendo acesso nele àquilo que Gadamer chamou de “a coisa do texto”.
“Compreender é compreender-se diante do texto”. (RICOEUR, 1990, P. 58).

218 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Assim, como a metáfora tem o poder de redescrever a realidade, ela, também, tem o
poder, por pura necessidade, de levar a uma tomada de consciência tanto quanto da plura-
lidade dos modos de discurso quanto da especificidade do discurso filosófico.

REFERÊNCIAS
1. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005.

2. RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora
S/A, 1990.

3. _______. Da Interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro : Imago Editora Ltda, 1977.

4. ______.Existência e hermenêutica, in O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio


de Janeiro : Imago Editora Ltda, 1979.

5. ______. A metáfora Viva. São Paulo : Edições Loyola, 2000.

6. ______. O Si-Mesmo como um outro. Campinas/SP: Papirus Editora, 1991.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 219


16
“ Dom de línguas – adorando
a Deus com linguagem
desconhecida

Hilberto Carlos Schaurich


Teologia Faculdades EST

10.37885/201001684
RESUMO

O presente artigo aborda o estudo teológico do dom de variedades de línguas (glosso-


lália). Para o desenvolvimento do mesmo foi utilizado o texto de 1Co 12.10 como emba-
samento bíblico. Sendo um tema palpitante no meio pentecostal e neopentecostal, este
artigo trata principalmente da ocorrência e do propósito do dom de variedades de línguas
na igreja primitiva e na igreja contemporânea. Este assunto é interessante pois leva a
refletir sobre a importância e validade deste dom na igreja atual, tanto para aqueles que
defendem sua continuidade, quanto para aqueles que defendem sua cessação. Diante
disso, o presente estudo tem por objetivo analisar a natureza e o conteúdo do dom de
variedades de línguas, explorar seu propósito e valor, e por fim, avaliar sua vigência
na igreja contemporânea. Para alcançar estes objetivos a metodologia utilizada foi de
pesquisa exploratória com levantamento bibliográfico. Os resultados encontrados foram:
i) O falar em línguas não é necessariamente uma evidência inicial do batismo no Espírito
Santo; ii) É um dom espiritual e continua vigente na igreja contemporânea; iii) O dom
de variedade de línguas é para edificação do que fala (indivíduo), a menos que haja
interpretação, e neste caso é também para edificação da igreja (comunidade); iv) As lín-
guas são um sinal do poder de Deus. Existe a ciência de que o assunto não se esgota
com este estudo, mas almeja-se, por meio dos resultados alcançados, contribuir para o
avanço das discussões sobre a importância, propósito e validade do dom de variedades
de línguas na vida da igreja.

Palavras-chave: Dom, Línguas, Espírito, Paulo.


INTRODUÇÃO

Neste estudo pretende-se abordar o tema dom de variedades de línguas (1Co 12.10),
também conhecido como glossolalia. A manifestação do dom de variedades de línguas
nas denominações de tradição pentecostal e neopentecostal é um fato comum. Para estas
denominações, o dom de variedades de línguas possui grande importância e é dada a ele
grande ênfase, sendo que a maioria delas tem este dom como a evidência inicial do batismo
no Espírito Santo. Por outro lado, há denominações que não tem o mesmo ponto de vista
em relação a este dom, entendem que o mesmo já cessou, restringindo sua operação para
os dias apostólicos e para a igreja do primeiro século. Há também aqueles que defendem
que o dom de línguas não cessou, mas não é necessariamente uma evidência do batismo
no Espírito Santo. Como desenvolvimento da discussão do tema problema desta pesquisa
temos, além desta seção inicial, as seções seguintes: ii) origem do termo glossolalia; iii)
natureza e conteúdo do dom de variedades de línguas; iv) o propósito e valor do dom de
variedades de línguas; e por fim, v) contemporaneidade do dom de variedades de línguas.

ORIGEM DO TERMO GLOSSOLALIA

O termo Glossolalia é uma palavra que se originou da junção de dois termos gregos:
o substantivo glossa (língua) e o verbo laleiy (falar). A fusão destes dois termos gregos é
apropriada no caso do NT para descrever um fenômeno distinto. Este fenômeno pode ser
descrito somente por estes dois termos. O verbo laleiu é usado com o substantivo glossa no
caso dativo. Esta construção ocorre 16 vezes no NT, destas 12 vezes com glossa no plural
(glossai), e 4 vezes no singular, glossh (ELDEREN, 1964, p. 54).
A expressão falar em línguas (Glossolalia) é testemunhado diversas vezes no NT, como
consequência do derramamento do Espírito Santo. Em “Mc 16.17 refere-se ao falar em no-
vas línguas; At 10.46; 19.6, a falar em línguas; 1Co 12.30 e 13.8, simplesmente a línguas;
1Co 12.10,28 a variedades de línguas e 1Co 14 oferece, ao lado do relato de Pentecostes,
a única apresentação detalhada e clara” (WELKER, 2010, p. 221).

NATUREZA E CONTEÚDO DO DOM DE VARIEDADES DE LÍNGUAS

Conforme Kalisher (2009, p. 40), em 1Co 12.7-11 somos informados que os dons são
manifestações do Espírito Santo. O Espírito Santo é a única e legítima fonte de todos os
autênticos dons espirituais. É Ele quem decide o que conceder e a quem conceder, fazendo
a distribuição dos diversos dons entre a comunidade com o propósito de edificar o corpo de
Cristo e glorificar a Deus.

222 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


O dom de variedades de línguas é um dos dons que compõe a lista de Paulo em 1Co
12.7-11, de natureza espiritual, é uma dádiva de Deus. Como os dons são manifestações do
Espírito Santo, Paulo dá a entender que o dom é exercido pelo Espírito Santo, por meio do
espírito humano. Em 1Co 14.2 encontramos o conteúdo do dom de variedades de línguas,
onde são ditas três coisas. i) o falar em línguas é dirigido à Deus e não aos homens; ii)
ninguém na igreja entende as línguas se não houver interpretação; iii) é uma comunicação
espiritual que ocorre entre o espírito humano e o Espírito Santo “mas pelo Espírito fala em
mistérios”, que excede a compreensão tanto do que fala quanto de quem ouve (STORMS,
2014, p. 149 - 150).

O PROPÓSITO E VALOR DO DOM DE VARIEDADES DE LÍNGUAS

A ordenança de Paulo em 1Co 12.31 e 14.1,39, indicam que devemos desejar e buscar
os dons espirituais. Cada dom espiritual tem seus propósitos na comunidade cristã e dentre
os principais propósitos e valores do dom de variedades de línguas temos: 1) edificação
pessoal - sobre edificação pessoal, Paulo fala em 1Co 14.4: “O que fala língua estranha
edifica-se a si mesmo, mas o que profetiza edifica a igreja”. Esta edificação pessoal ocorre
quando a pessoa fala em línguas e não há interprete, no caso de uma reunião pública, ela
fala com Deus num relacionamento pessoal. A edificação pessoal não é algo ruim, só não
é o objetivo principal de uma reunião pública na visão de Paulo. Todo dom espiritual edifica
seu portador de alguma forma ou grau, direta ou indiretamente, mas o dom de falar em lín-
guas é o que edifica numa intensidade maior se não houver interpretação (STORMS, 2014,
p. 150). 2) Glorificação a Deus – para Carson (2014, p. 145), a glorificação a Deus é um
atributo das línguas, pois o texto de 1Co 14.2 está em conformidade com o fato das línguas
serem entendidas como direcionadas a Deus em primeiro lugar. No dia de pentecostes, por
ocasião da descida do Espírito Santo, as pessoas de diversas nações ali presentes,
ouviam os apóstolos “falar das grandezas de Deus” (At 2.11), este modelo de adoração de-
veria de ser mantido pela igreja contemporânea, uma adoração desinibida e poderosa que
fosse um tipo de testemunho, mesmo que indireto, para descrentes que estão observando.
(RENOVATO, 2014, p. 65). Em 1Co 14 o apóstolo Paulo descreve o falar em línguas como
um falar extático incompreensível, como uma oração dirigida a Deus, para o seu louvor,
agradecimento e exaltação cuja edificação é daquele que fala em línguas. Esta é uma forma
de adoração a Deus em que a limitação humana é rompida e passamos a expressar de uma
forma mais profunda os desejos e paixões do nosso coração (WELKER, 2010, p. 221). 3)
Comunicação espiritual com Deus - “pois o que fala em língua, não fala aos homens, mas
a Deus; pois ninguém o entende; porque em espírito fala mistérios” (1Co 14.2). Quando a
pessoa fala em línguas e não há interpretação, ela fala de maneira direta com Deus, espírito

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 223


para Espírito, ou seja, o Espírito Santo toca em nosso espírito (CHO, 2007, p. 141). De acordo
com Champlin (2002, p. 215), esse modo de falar em línguas ocorre no nível da alma e se
eleva para Deus, em uma espécie de comunicação espiritual com o ser divino. “Achamo-nos
livres para exaltar a bondade de Deus e edificamos a nós mesmos. À medida que falamos,
somos edificados espiritualmente” (LIM, 1996, p. 475). 4) Sinal para os descrentes - no texto
de 1Co 14.22, Paulo nos fala que as línguas são um sinal para os descrentes mas, no vs. 21
ele cita o texto Is 28.11-12, de um povo de outras línguas que se oporia aos judeus, e este
seria um sinal de julgamento do povo de Deus, um sinal negativo. E é neste sentido que o
apóstolo Paulo fala em 1Co 14.22, se numa reunião todos falarem em línguas estranhas
e não houver quem as interprete, os indoutos e incrédulos que adentrarem ou estiverem
presentes nessa reunião não entenderão nada, e julgarão os fieis como loucos (1Co 14.23).
Nesse sentido o dom de línguas serve como sinal negativo para os indoutos e incrédulos,
porque esta fala incompreensível não guiará, instruirá ou levará à fé e ao arrependimento,
mas confundirá e destruirá. Por outro lado, nessa mesma condição, se houver interpretação
das línguas estranhas, o indouto ou incrédulo que participar dessa reunião é convencido e
poderá vir à fé cristã, pois o mesmo é instruído e edificado mediante a palavra exposta. Neste
caso o dom de línguas é considerado um sinal positivo (STORMS, 2014, p. 159-161).
A respeito desse mesmo texto (1Co 14.22) Champlin (2002, p. 224), entende que este
termo – sinal para os descrentes - poder ser considerado tanto negativa como positivamente.
“Negativamente, significaria que o sinal é dado contra os incrédulos, a fim de confirmá-los
na sua incredulidade, e não a fim de convertê-los. É assim também que a questão é usa-
da, na citação constante do versículo anterior”. Como visto acima, línguas foram faladas a
Israel, em sinal contra os israelitas, pelo fato de terem se recusado a dar ouvidos a Deus,
quando lhes falava no seu idioma, principalmente por meio dos profetas. Positivamente,
temos a experiência do dia de Pentecostes, nesse evento as línguas serviram de sinal
para os incrédulos, pois foram atraídos pelo falar em línguas estranhas dos que estavam
reunidos no cenáculo, apesar de estarem ouvindo os mesmos exaltando e engrandecendo
o nome de Deus em suas próprias línguas, ou seja, nas suas línguas nativas (CHAMPLIN,
2002. P. 224). Quer seja considerado esse sinal como negativo, quer seja como positivo, a
mensagem em nada muda.

As línguas são um sinal para os incrédulos, e não para os crentes; e isso


deve indicar as línguas compreendidas por eles, tal como sucedeu no dia de
Pentecoste. [...] Podem recebê-las ou rejeitá-las; mas assim mesmo terão
sido alertados da realidade de certa mensagem de Deus, através do sinal
(CHAMPLIN, 2002, p. 224).

Além destes propósitos, o dom de variedades de línguas é dado com o fim de procla-
mar louvores à Deus, anunciar as boas novas da salvação ao mundo e, não para satisfazer

224 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


à vaidade pessoal e nem para garantir prazeres carnais. Podemos ainda acrescentar o
propósito íntimo da purificação, santificação, transformação e a glorificação final do crente,
porquanto o Espírito Santo veio para obter e assegurar esse resultado no crente, sendo ele
o agente dessa operação, porque como representante de Cristo ele procura dar continuidade
à obra de redenção, alvo do ministério terreno de Cristo (CHAMPLIN, 2002, p. 46).

CONTEMPORANEIDADE DO DOM DE VARIEDADES DE LÍNGUAS

Ao fazermos uma análise da ocorrência do termo glossolalia no NT, percebemos que


a mesma ocorre em diversas passagens a partir de Atos dos apóstolos, o que sugere uma
continuidade do falar em línguas na igreja do NT. Outra constatação é que este fenômeno
não ocorre sempre da mesma forma, ou seja, enquanto no livro de Atos o falar em línguas
está diretamente associado à vinda do Espírito Santo, nas epístolas não há este tipo de
conexão direta, mas referem-se à dádiva e ao recebimento do Espírito Santo, cujo contexto
parece provável ao falar em línguas (WILLIAMS, 2011, p. 546).

A citação de Marcos 16 também sugere que o falar em línguas era uma experi-
ência contínua. Não há nenhuma insinuação de que as novas línguas tenham
sido verbalizadas somente uma vez, nem que a expulsão de demônios fora
uma experiência única. Em todo caso, Atos, na verdade, registra apenas as
línguas em conexão imediata com a vinda do Espírito Santo. No entanto, não
há nenhuma indicação de que as línguas tenham desaparecido depois disso
(WILLIAMS, 2011. p.543).

“O que está registrado como acontecendo várias vezes em Atos, e referido em Marcos
16, é um aspecto da vida da igreja primitiva. Conforme vimos, esse não foi apenas o caso
de Corinto, mas também de outras comunidades de fé do NT” (WILLIAMS, 2011, p. 546).
No entendimento de alguns autores não há qualquer razão dogmática para pensarmos
que as línguas e outras manifestações espirituais tenham o propósito de desaparecer da
igreja cristã, nem no esquema divino, ou que tais manifestações não sejam mais de valor
na igreja contemporânea. Este tipo de raciocínio parece ter-se motivado da tentativa de
fazer nossas doutrinas se adaptarem aquilo que praticamos atualmente, e não aquilo que
deveríamos ser e praticar em nossas igrejas (CHAMPLIN, 2002, p. 46).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O dom de variedades de línguas tem a mesma importância que qualquer outro dom do
Espírito, ele não representa um sinal de amor especial de Deus, nem um sinal de maior zelo
ou compromisso, em relação às pessoas que possuem esse dom com aquelas que não o

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 225


possuem. Também não é um sinal de que a pessoa tem mais do Espírito Santo do que as
outras. O desejo de Paulo era que todos desfrutassem da bênção do dom de línguas que
inclui uma comunicação distinta com Deus, a edificação da vida particular do crente e uma
adoração destemida a Deus com ações de graça. As línguas não constituem evidência essen-
cial do batismo no Espírito Santo, “porque nem todos falarão em línguas”; nas assembleias
elas devem edificar a igreja e para que isso ocorra deve haver quem as interprete. Em relação
a contemporaneidade do dom de línguas, há fortes indícios de que este dom é para todos
os tempos, ou seja, ele não é restrito à igreja do primeiro século mas, está disponível aos
crentes da igreja atual. Esta afirmativa está embasada no fato dos dons serem dados pelo
Espírito Santo, e este o faz deliberadamente conforme sua vontade e propósito, pois sua
ação continua ativa na igreja de Cristo. Contudo, o dom de variedades de línguas continua
divergente entre carismáticos e não-carismáticos.

REFERÊNCIAS
1. CARSON, D. A. A Manifestação do Espírito: a contemporaneidade dos dons à luz de 1Coríntios
de 12-14. Tradução Caio Peres. São Paulo: Vida Nova, 2013.

2. CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento Interpretado versículo por versículo. São Paulo: Hag-
nos, 2002. v. 3 e 4.

3. CHO, David Y. O Espírito Santo, Meu Companheiro: conheça melhor o Espírito Santo e seus
dons. Tradução João Batista. São Paulo: Vida, 2007.

4. ELDEREN, Bastian Van. Glossolalia in the New Testament. Grand Rapids, Michigan: Calvin
Seminary, p. 54-58. In: http://www.etsjets.org/files/JETS-PDFs/7/7-2/BETS_7_2_53- 58_Va-
nElderen.pdf «acesso: 28/01/2015.

5. KALISHER, Meno. O Livro dos Dons: dons do Espírito Santo, curas, sinais e milagres. Tradução
Jamil Abdalla Filho. Porto Alegre: Actual edições, 2009.

6. LIM, David. Os Dons Espirituais. In: HORTON, Stanley M. Teologia Sistemática: Uma pers-
pectiva Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1996, p. 465 – 500.

7. RENOVATO, Elinaldo. Dons Espirituais e Ministeriais: Servindo a Deus e aos homens com
poder extraordinário. Rio de Janeiro: CPAD, 2014.

8. STORMS, Sam. Dons Espirituais: uma introdução bíblica, teológica e pastoral. Traduzido por
Claudio Chagas. Rio de Janeiro: Anno Domini, 2014.

9. WELKER, Michel. O Espírito de Deus: Teologia do Espírito Santo. Tradução Uwe Wegner.
São Leopoldo: Sinodal/EST, 2010.

10. WILLIAMS, J. Roadman.Teologia Sistemática: uma Perspectiva Pentecostal. Tradução Sueli


Saraiva e Lucy Hiromi Kono Yamakami. São Paulo: Vida, 2011.

226 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


17
“ “Encíclica laudato si’ sobre o
cuidado da casa comum” e o
povo indígena

Cristiane Velasque
Universidade de Caxias do Sul

Lucas Costa Monteiro


EST

10.37885/201001598
RESUMO

O presente artigo visa estudar sobre as orientações propostas na “Encíclica Laudato si’
sobre o cuidado da casa comum” em relação aos povos indígenas. Visa ainda analisar a
matéria sob a linguagem teológica da Criação promotora da dignidade humana. A teologia
vê-se aguerrida e alia-se na interdisciplinaridade em vista do cuidado com a Criação. A hu-
manidade é uma família constituída por pessoas portadoras de direitos fundamentais
da dignidade. Contudo, a história do Brasil registra o abandono em relação à cultura
indígena e a negação dos direitos diante de projetos antiecológicos. Portanto, exige-se
uma atenção especial a este povo mediante uma espiritualidade e educação ecológica,
bem como ações conjuntas sob a perspectiva de uma ecologia integral, com o respeito
à sua etnia, seus direitos e tradições. O método a ser abordado será dedutivo.

Palavras-chave: Criação, Dignidade Humana, Ética, Povos Indígenas.


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Primeiramente o artigo aborda o Evangelho da Criação, presente na Encíclica “Laudato


Si’ sobre o cuidado da casa comum” como chave para uma teologia da Criação inspirado no
Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis ao entoar louvores a Deus pelas criaturas
retorna à sua essência de imagem e semelhança e percebe-se revestido de uma dignidade
infinita e de uma responsabilidade integral para com o próximo.
No decorrer da histórica, com chegada dos europeus na América, houve cristãos, como
Bartolomeu de Las Casas, que se preocuparam com os direitos dos povos aborígenes. Logo,
analisa-se os direitos indígenas respaldados na Constituição Federal do Brasil. Ainda, es-
tuda- se ausência de respeito de sua cultura, os extermínios genocidas e o etnocídio, como
forma nociva de acabar com a cultura de um povo a passos lentos. Isto é reflexo de uma
crise ética ambiental. Ao final, propõe-se uma educação ecológica motivada por uma espi-
ritualidade integrada com a ecologia para despertar a consciência e impulsionar condutas
éticas que reconheça a dignidade dos povos indígenas.

O EVANGELHO DA CRIAÇÃO

O Evangelho da Criação na Laudato Si’ (Louvado sejas) vem contribuir na reflexão sobre
a Revelação Divina nas origens, ou seja, fazendo uma teologia da Criação. Especificamente
no livro do Gênesis, a partir dos textos sagrados e de perspectiva judaico-cristã, Deus fez
tudo por amor e não há outro motivo que possa convencer a linguagem religiosa acerca da
origem de tudo.1 Pode-se perceber no hino repleto da inocência original, harmoniosa com
Deus, com o próximo e com a terra, o modelo relacional que humanidade poderia ter com
o planeta e todos os seus conviventes. Eis um fragmento do hino:

Louvado sejas meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o meu
irmão sol, o qual faz o dia e por ele nos alumia. E ele é belo e radiante com
grande esplendor: de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem. Louvado sejas, meu
Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas, que no céu formaste claras, preciosas
e belas...Louvado sejas meu Senhor, pela nossa mãe terra que nos sustenta
e governa e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas. 2

O lugar teológico é a Casa Comum criada pelo sopro de Deus e local de sua habita-
ção sob o cuidado dos que são sua imagem e semelhança. Eis o lugar de convergência
da teologia com a ecologia: a terra. Deus os criou, homem e mulher, revestindo-os de uma
dignidade infinita3 e de responsabilidade para com os demais seres, cuidando da terra e
1 FRANCISCO, Papa. Laudato Si’, Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo, Edições Loyola, 2015. Pág. 43.
2 FRANCISCO, Papa. Laudato Si’, Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo, Edições Loyola, 2015. Pág. 57
3 FRANCISCO, Papa. Laudato Si’, Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo, Edições Loyola, 2015.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 229


dos seus produtos, fazendo com que o ser humano seja de uma soberania divina. O próprio
ser humano foi criado do barro. Não há como entender uma convicção de fé que não esteja
enraizada no cuidado com o meio ambiente, da mesma forma não há consistência em um
argumento que defenda a perspectiva ecológica e venha a esquecer de ou ser indiferente
à prostituição, ao tráfico de pessoas, ao genocídio e etnocídio, que consiste no desapareci-
mento de modo progressivo de uma cultura, sem que ao menos as pessoas se deem conta
do processo. Os povos aborígenes, vítimas de tantos descasos no Brasil, possuem uma
consciência ecológica e uma plena comunhão com a natureza. Jesus Cristo mostra para
que veio ao mundo: dar vida em abundância a todas e todos (cf.Jo10,10).
Sua preferência pelos pobres e, seguida pelo cristianismo que busca imitá-lo na cari-
dade confirma a salvaguarda do direito a uma vida boa. Os indígenas brasileiros, alvos da
Boa Notícia de Jesus esperam viver um dia no seu paraíso. Estas vítimas apresentam a face
do Cristo que sofre e clama por ajuda nos seus corpos derramados de sangues, flagelados
pelo descaso e sem descanso, pois a terra, seu bem precioso lhes foi tirada.
Entretanto são defendidos pela minoria compadecida de seus sofrimentos e aguerri-
dos em denunciar tais barbaridades. Bartolomeu de Las Casas, pregador missionário na
América, foi considerado o pioneiro dos direitos humanos universais, insistiu sempre em
responsabilizar os colonizadores sobre os crimes no âmbito jurídico cristão e a impunidade
que pairava, onde os índios eram privados de seus direitos fundamentais como liberdade,
justiça e autonomia. Seu projeto ético e jurídico era o de implantar uma nova consciência,
despertando os poderes da época para uma conversão profunda das consciências.4

OS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Os indígenas têm o direito a não serem forçosamente assimilados ou destituídos de


suas culturas. Reconhece a estreita relação dos povos indígenas com o meio ambiente,
lembrando que as terras ancestrais dos povos indígenas constituem o fundamento de suas
existências coletivas, suas culturas e espiritualidade. Apesar de inúmeras normas jurídicas
protetivas, o Relatório Nosso Futuro Comum5 destaca que há vulnerabilidade destes povos
em razão do desenvolvimento econômico dominante, existindo negligência na ordem humana
e ambiental. Porém “A própria sobrevivência desses povos dependeu de sua consciência e
adaptação ecológicas”, além do mais, “Muitos grupos perdem suas terras e ficam margina-
lizados, e suas práticas tradicionais desaparecem. Tornam-se vítimas do que poderia ser

4 LAS CASAS, Bartolomeu de. Liberdade e justiça para os povos da América: oito tratados impressos em Sevilha em 1552; obras
completas II. São Paulo, Paulus, 2010. Pág.220.
5 Nosso Futuro Comum/ Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora da fundação Getúlio
Vargas, 1988. p. 125.

230 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


chamado de extinção cultural”6. Isto retrata a profunda injustiça na distribuição não só dos
bens sociais no âmbito da comunidade política, no acesso aos recursos naturais.
Não obstante, os povos indígenas também são destinatários do art. 225 da Constituição
Federal, o qual garante a todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que assim
dispõe: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade
o dever de defendê-lo e preservá-lo para os presentes e futuras gerações”.
Percebe-se que as populações indígenas possuem os seus direitos sociais viola-
dos. E mais, a Constituição Federal no art. 225, inciso VI dispõe que compete ao poder
público e a toda sociedade: “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino
e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”. A educação ambien-
tal, portanto, é fator importante para a formação pública da preservação ambiental. Assim,
considerando que os povos originários quando permanecem na terra são os que melhor as
cuidam, é necessário voltar-se a uma educação que preserve o meio ambiente mediante o
respeito da própria cultura indígena. Desta forma, ao permitir que estes povos permaneçam
em suas terras, em conjunto, é assegurado também o cuidado ao meio ambiente.
Nota-se que “As diretrizes para solução requerem uma abordagem integral para com-
bater a pobreza, desenvolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da
natureza”7. Imprescindível, desta forma, desenvolver a dignidade dos excluídos, direito este
que serve de fundamento basilar do nosso país - Estado Democrático de Direito - consoante
o art. 1º, inc. III, da Constituição Federal8.
A dignidade da pessoa humana advém da superação do Estado Liberal e do Estado
Social. A dignidade é um valor, portanto “Há um valor intrínseco em cada ser humano”9, há
uma sacralidade em cada pessoa. Dignidade da pessoa exige plenitude e reconhecimento.
Jacques Maritain10 defende o humanismo integral, o qual “respeita realmente e efetivamente
a dignidade humana e dá direito às exigências integrais da pessoa”. A dignidade, portanto,
deve ser atendida na sua integralidade.

POVO INDÍGENA NO BRASIL E A CRISE ÉTICA AMBIENTAL

Observando a realidade brasileira acerca dos povos indígenas, é perceptível o descaso


com os mesmos, pois estão totalmente ameaçados com a demarcação das terras,

6 FRANCISCO, Papa. Laudato Si’, Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo, Edições Loyola, 2015. Pág. 90.
7 FRANCISCO, Papa. Laudato Si’, Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo, Edições Loyola, 2015. Pág. 88.
8 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
9 Di Lorenzo, Wambert Gomes Di Lorenzo. (2010) Teoria do Estado de Solidariedade. Rio de Janeiro. Elsevier. 52.
10 Maritain, Jacques. Humanismo Integral. São Paulo. Companhia Editora Nacional. 1965. p. 7.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 231


deslocamento para outras regiões, extermínios em grande escala. Seus direitos estão sendo
violados em todo o território brasileiro. Diversos grupos de detenção de poder instigam de
forma cruel o massacre das comunidades aborígenes. O agir sem virtude, sem princípios
constituem a nova forma do governo totalmente desfigurado da humanidade apreciando mais
as mazelas como forças para o desenvolvimento do que a busca de uma justiça igualitária
em vista da guarda dos direitos de todos, ou seja, do bem comum. Ideologias libertárias
onde o governo não deve intervir com legislações baseadas em princípios que estejam de-
fendendo as minorias, utilitaristas que não visam os direitos fundamentais das pessoas e
atropelam todos aqueles e aquelas que pensam no bem de todos, num sistema de equidade
e distribuição de renda justa.
A injustiça socioambiental aparece nesta situação: quando uns lucram com a crise
e outros padecem com ela e pagam o preço. No mês de julho deste ano de 2016 o Papa
Francisco centralizou os povos indígenas nas suas intenções de oração para o Apostolado da
oração. Ele pedia respeito aos índios, pois vivem ameaçados na sua identidade e existência.11
Sendo a ética a ferramenta essencial para o bem viver de todos e fundamental na
jurisdição política de uma sociedade, precisa ter como fim último a felicidade das pessoas.
A crise ética ambiental se caracteriza fundamentalmente no juízo de valores adotados
pela sociedade brasileira atual que é refletida nos diversos setores de poder, principalmente
no Legislativo. A finalidade do uso das tarefas não é mais vista como alicerce para uma
boa sociedade, composta por virtuosos cidadãos e que vise o bem comum, refletido na
perspectiva aristotélica.

A GRAVIDADE DA EXTINÇÃO DA CULTURA INDÍGENA

A cultura indígena brasileira encontra-se numa situação gravíssima por sofrer ameaças
em todos os âmbitos, principalmente no tocante à demarcação de terras. Como relata a pes-
quisadora Helena Guimarães12, há mais de 500 anos os índios são torturados, assassinados
e isto tudo culmina no senso comum de que tais vítimas são um entrave ao desenvolvimento
nacional do país. Desde o cultivo da cana-de-açúcar no Nordeste, do Cacau no sul da Bahia,
do café no oeste paulista, da extração da borracha na Amazônia, da introdução da mão de
obra dos imigrantes no sul do país; da criação expansiva de gado no centro-oeste, à mono-
cultura da soja; construção de linhas telegráficas, abertura de estradas à extração de madei-
ras. E mais recentemente na extração de minérios e construção de barragens hidrelétricas13:

11 CIMI. http://www.cimi.org.br/site/pt-br/index.php?system=news&action=read&id=8802. Acesso no dia: 25.09.16.


12 Helena Guimarães é mestre em memória social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio e graduada em Jor-
nalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente, trabalha no Núcleo de Biblioteca e Arquivo do Museu do
Índio/Fundação Nacional do Índio – FUNAI.
13 Máquina de exterminar indígenas. HIU-Online: Revista do Instituto Humanitas Unisinos, nº478, ano XV, 30/11/15. Pág. 22.

232 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Eles, quando permanecem em seus territórios, são os que melhor os cuida. Em
várias partes do mundo, porém, são objetos de pressões para que abandonem
suas terras e as deixem livres para os projetos extrativos e agropecuários que
não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura.14

O Conselho Indigenista Missionário – CIMI, relata que, somente em 2014 foram as-
sassinados 138 indígenas, além dos altos índices de suicídios e mortalidade infantil. Em ter-
mos de território os povos indígenas estão sendo cada vez mais dizimados. A Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que transfere do Executivo para o Legislativo a
palavra final sobre a demarcação de terras indígenas. O texto é encarado pelos diversos
povos tradicionais brasileiros e ativistas como uma ameaça aos direitos indígenas. PEC
215, para é um sinal claro do extermínio, pois tirará do governo o poder de demarcação das
terras indígenas. Como diz o Papa Francisco nesta Encíclica, as populações aborígenes
têm este amor apaixonado pela terra, uma capacidade de solicitude e responsabilidade.15

ESPIRITUALIDADE E EDUCAÇÃO ECOLÓGICA

A mudança de mentalidade motivada pela espiritualidade é essencial para a conversão


ecológica na sociedade brasileira, pois o respeito aos povos indígenas não se dá por regras
doutrinárias ou ideais vãos. Tais elementos, se não estiverem motivados por um amor ao
próximo e pela sede de justiça, jamais haverá uma cultura de respeito e cuidado com os
povos indígenas. A encíclica propõe reflexões chaves com os tesouros do cristianismo:

“Desejo propor aos cristãos algumas linhas de espiritualidade ecológica que


nascem das convicções da nossa fé, pois aquilo que o Evangelho nos ensina
tem consequências no nosso modo de pensar, sentir e viver. Com efeito, não
é possível empenhar-se em coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma
mística que nos anima, sem uma moção interior que impele, motiva, encoraja
e dá sentido à ação pessoal e comunitária.”16

A espiritualidade propõe motivações que alimentam o amor pelo semelhante. Basta


enxergar o modo como Jesus de Nazaré agia no seu cotidiano, vivendo e ensinando, que-
brando paradigmas, saciando e transformando vidas. As propostas do Cristo possuem ele-
mentos bastante significativos para integrar o crente na experiência com Deus no contato
com os mais desfavorecidos, neste caso os aborígenes, imagem e semelhança do Criador.
O Evangelho precisa estar encarnado literalmente no povo brasileiro, então as pessoas
olharão para os povos indígenas e contemplarão o Cristo que pede ajuda: “porque tive fome

14 4 FRANCISCO, Papa. Laudato Si’, Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo, Edições Loyola, 2015. Pág. 90.
15 FRANCISCO, Papa. Laudato Si’, Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo, Edições Loyola, 2015. Pág. 107
16 FRANCISCO, Papa. Laudato Si’, Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo, Edições Loyola, 2015. Pág. 125.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 233


e me deste de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolheste; nu e
me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim.”Mt25,35-36
O desejo de mudar radicalmente a atual situação acontecerá uma educação ecológica
que busque alternativas relacionais e participativas nas diversas áreas em vista uma auste-
ridade responsável e cuidadosa com os mais vulneráveis. Uma educação ecológica desde
cedo e apoiada pela família produzirá mais frutos consistentes e por fim uma transformação
desde os pequenos gestos do cotidiano, pois uma sociedade saudável é reflexo da educação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os povos indígenas terão os seus direitos salvaguardados realmente no Brasil, na


medida em que houver uma verdadeira mudança de consciência..
E para isso, o Evangelho precisa motivar a sociedade para que haja um processo de
mudança interior em cada pessoa e nas estruturas. Os povos indígenas merecem respeito
porque são seres humanos, imagem e semelhança do Criador, rosto do Cristo que sofre
e pede ajuda; são parte formadora da etnia brasileira e está sendo extinta, vista pelos de-
tentores do poder como entrave para o desenvolvimento, tendo seus direitos fundamentais
totalmente violados.
É preciso formar uma consciência por meio da educação integral no sentido de fortale-
cer o reconhecimento da dignidade do povo indígena. A educação, que tem as suas bases
iniciais na família e sedimenta-se em todas as instâncias, é capaz de incentivar a uma ver-
dadeira transformação para que os índios tenham os seus direitos respeitados, suas terras
preservadas e que recebam o cuidado concreto mediante ações integrais que supram as
suas necessidades integrais e possibilitem uma vida digna.

REFERÊNCIAS
1. AGOSTINI, Nilo. Ética: diálogo e compromisso. 1ª Edição. FTD, São Paulo.

2. CIMI. Disponível em: http://www.cimi.org.br/site/pt- br/index.php?system=news&action=rea-


d&id=8802. Acesso em 25 set. 16.

3. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. A Igreja e a questão ecológica. Paulinas (1992).

4. Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas. Rio de Janeiro: Nações Unidas,
2008.

5. Di Lorenzo, Wambert Gomes Di Lorenzo. (2010) Teoria do Estado de Solidariedade. Rio de


Janeiro. Elsevier. 52.

234 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


6. FRANCISCO, Papa. Laudato Si’, Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo,
Edições Loyola, 2015.

7. Helena Guimarães é mestre em memória social pela Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro – Unirio e graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ. Atualmente, trabalha no Núcleo de Biblioteca e Arquivo do Museu do Índio/Fundação
Nacional do Índio – FUNAI.

8. LAS CASAS, Bartolomeu de. Liberdade e justiça para os povos da América: oito tratados im-
pressos em Sevilha em 1552; obras completas II. São Paulo, Paulus, 2010.

9. Máquina de exterminar indígenas. HIU-Online: Revista do Instituto Humanitas Unisinos, nº478,


ano XV, 30/11/15.

10. MARITAIN, Jacques. Humanismo Integral. São Paulo. Companhia Editora Nacional. 1965.

11. MURAD, Afonso. TAVARES, Sinivaldo Silva (org). Cuidar da casa comum: chaves de leitura
teológicas e pastoraisda Laudato Si’. São Paulo, Paulinas,2016.

12. Nosso Futuro Comum/ Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de
Janeiro: Editora da fundação Getúlio Vargas, 1988.

13. Relatório Violência contra os povos indígenas do Brasil – Dados de 2014. Conselho Indigenista
Missionário (CIMI). Disponível em: http://www.cimi.org.br/pub/Arquivos/Relat.pdf. Acesso em
01 out. 2016. p. 47-57.

14. Relatório Violência contra os povos indígenas do Brasil – Dados de 2014. Conselho Indigenista
Missionário (CIMI). Disponível em: http://www.cimi.org.br/pub/Arquivos/Relat.pdf. Acesso
em 01 out. 2016. p. 45.

15. SANTI, Thais. Belo Monte. Atualização do processo de destruição dos povos indígenas. HIU-
Online: Revista do Instituto Humanitas Unisinos, nº478, ano XV, 30/11/15. Pág. 78

16. SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios de direito ambiental. São Paulo:
Saraiva, 2014. p. 174-177

17. SILVA, José Lopes da. Atualidade Histórico-literária das narrações bíblicas. Disponível em:
www.saopedromaceio.com.br/index.php/cienciasdareligiao/246-responsabilidade-do-ser- hu-
mano-como-co-criador. Acesso em 26/09/16.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 235


18
“ Esperança para o diálogo inter-
religioso no Pontificado de
Francisco

Luiz Carlos Sureki


Leopold-Franzens Universität de Innsbruck

10.37885/200901237
RESUMO

A salvação que as religiões anunciam como Boa Notícia pertence ao campo da esperan-
ça. Se quem deve responder à pergunta pelo que nos é permitido esperar é a religião,
segue-se que o diálogo entre as religiões deverá se dar no horizonte da esperança. Os ob-
jetivos deste breve artigo são os seguintes: mostrar que neste contexto plurirreligioso
a atitude de abrir-se ao diálogo não é um luxo, mas uma necessidade; sublinhar que a
boa notícia da salvação apregoada por cada religião não pode e nem deve ser imposta à
outra religião ou religiões sem que se contradiga e, consequentemente, se autodestrua;
apresentar os principais aportes do Papa Francisco para o diálogo inter-religioso. O mé-
todo é bibliográfico e sistemático. Consiste, num primeiro momento, em apresentar um
breve itinerário histórico sobre o tema, e, então, o Papa Francisco como um autêntico
mensageiro da esperança e da paz a partir de breves referências aos seus principais
discursos em encontros com líderes religiosos diversos. O segundo momento buscará
organizar sistematicamente os principais conceitos que aparecem nos discursos de
Francisco: diálogo, esperança, caminho, dom e paz. Como resultado teremos que é na
relação entre religião e salvação que esses termos adquirem seu significado religioso
mais profundo; que o diálogo é condição para se encontrar a paz; que a paz, por sua vez,
exige um compromisso comum; e que esse compromisso comum deveria começar por
aquilo que nós todos já temos em comum: o planeta que habitamos (nossa casa comum).

Palavras-chave: Religião, Esperança, Diálogo, Salvação, Paz.


O ENCONTRO DAS RELIGIÕES – UM BREVE HISTÓRICO

A pluralidade das religiões é hoje um fato incontestável. O encontro das religiões, com
todas as dificuldades que isso implica, será certamente uma das características mais relevan-
tes do terceiro milênio. Abrir-se ao diálogo será questão vital para as religiões, oportunidade
de se renovarem, se purificarem, se reafirmarem, resgatarem o que lhes é constitutivo, o
que elas têm de melhor.
As iniciativas e os esforços dos três últimos pontífices da Igreja Católica para aproximar
as religiões do mundo por meio da oração pela paz se compreendem à luz do espírito de
abertura suscitado pelo Concílio Vaticano II.
A Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo atual, começa
dizendo: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de nosso
tempo, sobretudo dos pobres e dos que sofrem, são alegrias e esperanças, tristezas e an-
gústias dos discípulos de Cristo. Nada há de verdadeiramente humano que não encontre
eco em seu coração” (GS 1).
A Declaração Dignitatis Humanae: sobre a liberdade religiosa, assinala que “todos os
homens estão obrigados a buscar a verdade sobretudo no que se refere a Deus e à sua
Igreja, e uma vez conhecida, abraçá-la e praticá-la” (DH 1). “Obrigados a buscar a verdade”
ressalta a necessidade de pôr-se a caminho, afinal ninguém busca o que já tem. “Uma vez
conhecida” não significa conquistada, aprisionada, possuída, pois uma verdade que pudesse
ser plenamente apreendida perderia sua transcendência e seria tão somente uma verdade a
mais entre outras tantas. “Abraçá-la e praticá-la” denota a dimensão prático-existencial desta
busca, posto que não se trata de uma verdade meramente intelectual, mas antes que atinge
o ser humano em sua unidade e totalidade. Esta declaração sobre a liberdade religiosa é
um dos documentos mais significativos do Concílio porque contribuiu para o surgimento de
uma mudança de atitude frente às outras tradições religiosas.
Não por último, a Declaração Nostra Aetate: sobre as relações da Igreja com as reli-
giões não-cristãs, tomava como ponto de partida, para falar sobre as religiões, uma base
considerada comum, segundo a qual

todos os povos formam uma comunidade, tem uma mesma origem, posto que
Deus fez habitar a todo o gênero humano sobre a face da terra, e tem também
um mesmo fim último: Deus, cuja providência, manifestação de bondade e
desígnios de salvação se estendem a todos, até que se unam os eleitos na
cidade santa que será iluminada pelo resplendor de Deus, na qual os povos
caminharam sob sua luz (NA 1).

Retomando a ideia de “fraternidade universal” na última parte, a declaração fala con-


sequentemente de Deus como Pai de todos: “não podemos invocar a Deus Pai de todos, se

238 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


negamos a conduzir-nos fraternalmente com os demais, criados à imagem de Deus. A relação
do homem para com Deus Pai e com os demais homens seus irmãos, estão de tal forma
unidos que como diz a escritura “quem não ama, não conhece a Deus” (1Jo 4,8) - (NA 5).
Se, por um lado, a declaração conseguiu tocar no ponto fundamental, a saber, que todos
os seres humanos têm igual dignidade, origem e finalidade, por outro lado, não chegou a
reconhecer explicitamente o pluralismo religioso como caminhos distintos de salvação e
igualmente verdadeiros.
Quando o João Paulo II, 26 anos depois do encerramento do Concílio, convocou o
“Primeiro encontro inter-religioso de oração pela paz”, em Assis, explicava aos alarmados
cristãos que tal encontro não tinha intenção de buscar uma espécie de consenso religioso,
nem tampouco de negociar as convicções religiosas de fé de cada religião. Dizia ele que um
compromisso comum, em um determinado projeto terreno, assumido por fiéis de distintas
religiões, não significava, por um lado, a reconciliação das religiões e que, por outro lado,
tampouco se tratava de relativizar todas as crenças, pois cada ser humano tem que seguir,
com sinceridade e reta consciência, buscando a verdade e obedecendo-a” (I´OSSERVATORE
ROMANO, 1986). Em resumo, não se tratava de uma conferência inter-religiosa sobre a paz,
mas sim de um encontro de oração pela paz. O objetivo primeiro não era a rezar juntos, mas
estar juntos para rezar, cada religião a seu modo, em vista de um objetivo comum: a paz.
Esse primeiro encontro das religiões pela paz foi, sem dúvida, um passo muito significativo
na aproximação das religiões na medida em que deu início a uma mudança de mentalidade,
manifestada por um Pontífice, que por sua vez abriu-se para a esperança de uma mudança
de atitudes prático-vivenciais frente às demais religiões. Com efeito, não faria sentido rezar
pela paz sem buscar promovê-la com reta intenção e com atitudes concretas.
Em sintonia e em continuidade com a iniciativa de João Paulo II, o Papa Bento XVI,
no segundo encontro realizado em 2011, também em Assis, falava dos “Peregrinos da
Verdade, peregrinos da Paz” (BENTO XVI, 2011). Nesta ocasião, iniciava o seu breve dis-
curso constatando que, apesar do fim da Guerra Fria com a queda do muro de Berlim, em
1989, a liberdade e a paz não haviam sido as características centrais do começo do Novo
Milênio. O mundo estava desafortunadamente cheio de discórdia, e novas formas de violência
haviam surgido. Ele distinguia duas novas formas de violência diametralmente opostas por
sua motivação: uma religiosa e outra antirreligiosa; mais concretamente: por um lado, o terro-
rismo e a hostilidade contra as religiões e, por outro lado, o rechaço violento de toda religião.
Ao mencionar os religiosos e os antirreligiosos, o Papa queria na verdade destacar uma
terceira tendência ou uma terceira orientação emergente no cenário mundial caracterizada
por uma sincera atitude de busca da verdade e da paz, uma atitude distinta, que não rechaça
o que as religiões têm de bom, mas que tampouco confessa alguma pertença religiosa em

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 239


particular ou deixa de considerar como pertinentes as críticas dirigidas as religiões institu-
cionalizadas por parte dos antirreligião. A expressão “Peregrinos da verdade, peregrinos da
paz” foi utilizada pelo Papa para referir-se muito especialmente aos representantes deste
terceiro grupo, desta outra orientação de fundo emergente. Trata-se das pessoas que estão
em busca de Deus, na procura da verdade e do bem, que lançam questionamentos tanto
aos que negam a existência de Deus quanto aqueles que a afirmam, mas que consideram
a Deus como uma propriedade sua, até o ponto de sentirem-se autorizados à violência com
respeito aos demais. Com estes peregrinos, dizia o Papa, devemos estar juntos no cami-
nho para a verdade, no compromisso decidido pela dignidade do homem e pela promoção
conjunta da paz contra toda espécie de violência destruidora do direito. O Papa conclui
dizendo: “estamos animados pelo desejo comum de ser peregrinos da verdade, peregrinos
da paz” (BENTO XVI, 2011).

FRANCISCO: O PAPA DO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

O Papa Francisco, com gestos concretos e atitudes, vem abrindo um horizonte de


esperança para o campo do diálogo inter-religioso. O que apresentaremos aqui são alguns
aportes da trajetória de Francisco para este tema, tomados dos principais encontros do
pontífice com líderes e representantes das mais distintas religiões. Mais adiante, reuniremos
sinteticamente o seu discurso.

Roma, setembro de 2013

No Encontro Internacional para a Paz, “A coragem da esperança: religiões e cultura em


diálogo”, dizia Francisco “vosso encontro de cada ano nos sugere o caminho: a coragem do
diálogo, que incute esperança. (...) No mundo e nas sociedades existe pouca paz, também
porque falta diálogo (...) O diálogo é o caminho da paz” (FRANCISCO, 2013).
Ao dizer que o encontro sugere o caminho, há de se notar a importância do encontro
por si só. Estar dispostos a encontrar-se é estar dispostos a dialogar. E dado que tal diálo-
go é algo novo para muitas religiões até então voltadas sobre si mesmas, segue-se que é
preciso ter coragem. Coragem esta que suscita esperança em nós: a esperança de que as
religiões, por meio do diálogo, encontrem o caminho da paz.

Tirana, Albânia - 21.09.2014

Aos líderes de outras religiões e de outras denominações cristãs disse o Papa Francisco:

No fundo, todos somos peregrinos nesta terra, nesta viagem, aspirando à

240 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


verdade e à eternidade. Não vivemos nem individualmente nem como grupos
nacionais, culturais ou religiosos, como entidades autônomas e autossuficien-
tes, mas sim que dependemos uns dos outros, estamos confiados aos outros,
aos cuidados dos outros (Francisco 2014).

Note-se que o Papa articula a dimensão peregrina da vida com a interdependência


mútua com os outros, sem perder, contudo, a identidade pessoal. Por outro lado, toda religião
(identidade religiosa) existe como tal por referência a uma outra (ou outras). Nesse sentido,
as religiões são interdependentes porque assim o são os homens e mulheres. A aspiração
à verdade e ao definitivo diz respeito, nas diversas religiões, à salvação. Daí a necessidade
de recuperar a esperança que é onde o anúncio da salvação finca suas raízes.

Santa Cruz de la Sierra, Bolívia - 05-13.07.2015

Trata-se do II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Francisco diz: “A primeira


tarefa é pôr a economia ao serviço dos povos. (...) A segunda tarefa é unir os nossos povos
no caminho da paz e da justiça. (...) E a terceira tarefa ... é defender a Mãe Terra. (...) Os po-
vos do mundo querem caminhar em paz para a justiça” (FRANCISCO, 2015).
Neste discurso o Papa conjuga autonomia dos povos e busca da justiça. Não se pode
unir os povos no caminho da paz e da justiça, se a economia não estiver a serviço dos po-
vos e, por isso, também a serviço da defesa da terra, casa comum de todos os povos. Não
basta querer caminhar em paz. É preciso promover a paz para que também a justiça possa
ser realizada. Exclusão e indiferença atentam contra a paz, contra a autonomia e contra a
justiça. A boa notícia da religião não se prende a um determinado idioma ou cultura. Buscar
a unidade dos cristãos, em perspectiva ecumênica, não é latinizar o cristianismo, nem querer
ocidentalizar todo o mundo cristão.

Assis, Itália - 20.09.2016

No Encontro das Religiões - Jornada de oração pela paz “Sede de Paz - Religiões e
Culturas em Diálogo”, dizia o Papa Francisco a mais de 500 representantes religiosos:

Temos sede de paz, temos o desejo de testemunhar a paz, temos sobretudo


necessidade de rezar pela paz, porque a paz é dom de Deus e cabe a nós
invocá-la, acolhê-la e construí-la cada dia com sua ajuda. (...) [Ajuda que
precisamos] para enfrentar a grande doença do nosso tempo: a indiferença.
É um vírus que paralisa, torna inertes e insensíveis..., [produz] o paganismo
da indiferença. Rezamos uns ao lado dos outros, uns pelos outros. (...) Reza-
mos pela paz. (...). Paz significa Acolhimento, disponibilidade para o diálogo
(FRANCISCO, 2016).

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 241


O indiferentismo religioso pode ser tão nocivo quanto o fundamentalismo religioso e/
ou o rechaço enérgico de toda religião. Os indiferentes não estão situados em lugar algum.
Ser pacífico não é ser indiferente. A paz não brota da indiferença. Francisco associa a paz
ao bem que se deve buscar, e à esperança, onde o sumo bem, a salvação, se anuncia.
Não haverá esperança de paz com outros se não estamos em paz conosco mesmos; e não
estaremos em paz conosco mesmos, se não temos um fundamento último onde ancorar
nossa esperança.

Münster e Osnabrück, Alemanha - 10-12.09.2017

No Encontro Internacional Inter-religioso: “Caminhos de Paz”, Francisco reto-


mou o tema da paz,

Este caminho de paz e de diálogo ... é atual e necessário. (...) Muitos ainda
têm “sede de paz”. (...) As religiões são chamadas... a responder a esta sede,
a indicar e abrir, juntamente com todos os homens e mulheres de boa vontade,
caminhos de paz, sem se cansarem. (...) Somos chamados a despertar as
consciências, a difundir a esperança, a suscitar e apoiar os agentes de paz
(FRANCISCO, 2017).

Uma religião que não anuncia nem promove a paz depõe contra si mesma. Se a reli-
gião não anuncia a paz, não pode matar a sede do ser humano, porque ela não consegue
tocar a sua esperança de salvação. Se não mata a sede do ser humano, a religião acaba
matando o próprio ser humano.

Abu Dhabi, Emirados Árabes - 04.02.2019

Durante uma viagem apostólica aos Emirados Árabes, um grande encontro o inter-
-religioso realizou-se. Desta vez, o Papa Francisco iniciou seu discurso pelo Deus-criador.

Deus está na origem da única família humana. Deus é o criador de tudo e de


todos, quer que vivamos como irmãos e irmãs, morando nesta casa comum
da criação que Ele nos deu. Funda-se aqui, nas raízes da nossa humanidade
comum, a fraternidade como ‘vocação contida no desígnio criador de Deus’.
Esta fraternidade diz-nos que todos temos igual dignidade humana. (...) Ini-
migo da fraternidade é o individualismo. (...) Chegou o tempo de as religiões
se gastarem mais ativamente, com coragem e ousadia e sem fingimento, por
ajudar a família humana a amadurecer a capacidade de reconciliação, a visão
de esperança e os itinerários concretos de paz (FRANCISCO, 2019).

O Papa retoma indiretamente algo importante presente na Declaração Nostra Aetate do


Concílio Vaticano II: a origem e o destino comum do ser humano em Deus. Isso é fundamental
para se falar em dignidade, fraternidade e igualdade, possibilidade de reconciliação, diálogo

242 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


maduro e transparente. Fraternidade não exclui a multiplicidade e as diferenças entre as
pessoas. O caminho para alimentar a fraternidade, promover a justiça, buscar a paz, superar
o individualismo continua sendo o do diálogo. Ou construiremos juntos o futuro ou simples-
mente não haverá futuro. As religiões devem construir pontes entre os povos e as culturas.

ARTICULAÇÃO SINTÉTICA DOS PRINCIPAIS CONCEITOS UTILIZADOS


POR FRANCISCO

Seis temas ou conceitos principais, intimamente interconectados, chamam nossa aten-


ção nos discursos de Francisco: diálogo, esperança, religião, caminho, salvação e paz.
A religião deve responder à pergunta pela esperança. Ora, o objeto da esperança diz
respeito àquilo que as religiões comumente chamam de salvação (plenitude de realização,
de vida). Salvação é um conceito polissêmico. As religiões o expressam de diferentes mo-
dos. Importa termos primeiramente em conta que toda religião pretende ser (um) caminho
de salvação, caminho para salvação.
Daí se segue que a salvação é a meta, o “para-onde” a religião conduz; é, pois, a razão
de ser do caminho e, por isso, a razão de ser de toda e qualquer religião. Se tomamos o
cristianismo, temos que Cristo Jesus é o caminho para os cristãos, mas temos também que
ele não é propriedade exclusiva do cristianismo, nem se confunde com este. Dizer “Jesus
Cristo é o Salvador” não é o mesmo que dizer “o cristianismo é a salvação”.
Se muitas são as religiões, segue-se que o diálogo inter-religioso não pode ser monólo-
go, não pode ter um só logos, mas antes deve ser dialógico, perpassar os logoi (PANIKKAR,
2006, p. 31). Por isso, os temas deste diálogo precisam ser transversais. O Papa Francisco,
quando se dirige aos representantes de outras religiões, não apresenta nem discute, por
exemplo, o dogma da Trindade (específico da compreensão cristã de Deus). Antes fala de
paz, de justiça, de dignidade do ser humano, de superação da indiferença, de cuidado com
a casa comum, de desafios e problemas reais que a todos concernem, porque não é mais
possível viver num isolamento intocável sem compromisso ético-social.
Toda religião tem uma dimensão comunitária. Não existe religião de um indivíduo. A re-
ligião não liga somente o homem ao seu fim último (que nós chamamos “Deus”), mas liga
os homens entre si, com o cosmos, e com o fim último esperado como bem supremo por
todos e por cada fiel. Por isso, a religião é também o lugar da superação do individualismo,
da reconciliação com os demais e, por isso, caminho para a paz.
A paz tem uma relação especial com a salvação. Em muitos casos a paz é outro
nome para dizer salvação. É comum os cristãos desejarem ao falecido que “descanse em
paz”. Se salvação é vida em plenitude, esta não se instaura pelo caminho que mata a vida:
a violência, mas pelo que a promove.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 243


Diálogo e a paz caminham juntos. Se faltar diálogo, o encontro vira confronto. “O diá-
logo é o caminho para a paz”, diz Francisco, assim como deve igualmente ser a religião.
Daí se segue que nenhuma religião conseguirá realizar sua finalidade pela via da recusa ao
diálogo. Recusar o diálogo é recusar a possibilidade de construção da paz. Recusar a paz
é recusar a possibilidade de promover o diálogo.

CONCLUSÃO

O diálogo inter-religioso é fundamental para que haja paz entre as pessoas no mundo.
Numerosas guerras e violentos conflitos foram motivados por convicções religiosas reves-
tidas de traços fundamentalistas. A história dos conflitos na relação do cristianismo com
outras religiões não é, em verdade, motivo de orgulho para os cristãos e cristãs do terceiro
milênio. Estes, aliás, têm a tarefa de juntos reencontrarem a sua unidade cristã na única
Igreja que Cristo Jesus fundou sobre a profissão de fé de Pedro em Cesareia de Felipe
(cf. Mt 16,16). O diálogo ecumênico haverá de acompanhar o inter-religioso.
Incentivos para essa abertura ao diálogo não faltam, pelo menos não da parte do Papa
Francisco. Nunca antes na história da Igreja católica um Pontífice falou tanto sobre a neces-
sidade de diálogo e de paz com outras culturas, religiões e tradições religiosas.
Percebemos, a partir destas breves considerações, que as condições para o diálogo
inter-religioso estão interconectadas. Sem uma mente aberta à pluralidade e sem um espírito
aberto à acolhida do diferente não é possível escutar o outro na sua verdade, no seu ser-ou-
tro. Impedida de expressar-se, a pessoa se vê ferida na sua dignidade e liberdade religiosa.
Nenhuma religião promete salvação sem comprometimento efetivo e afetivo do fiel para
com a verdade, a prática da justiça, o cultivo do amor e da paz. E ninguém se compromete
com isso, se não houver nele a esperança no cumprimento da promessa que sua religião lhe
anuncia como salvação e, por isso, como boa notícia (Evangelho). Para os cristãos, Deus
é Amor. E o amor não conhece diferenças religiosas.

REFERÊNCIAS
1. BENTO XVI, Jornada de reflexión, diálogo y oración por la paz y la justicia en el mundo: “Pere-
grinos de la verdad, peregrinos de la paz”. Intervención del Santo Padre Benedicto XVI. Asís,
Basílica de Santa María de los Ángeles, 27.10.2011. In: https://w2.vatican.va/content/benedict­
xvi/es/speeches/2011/october/documents/hf_ben­xvi_spe_20111027_assis i.html (20.08.2016).

2. CONSTITUIÇÃO PASTORAL Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo atual. In: http://www.
vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gau-
dium-et-spes_po.html (acessado em 10.08.2020)

244 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


3. DECLARAÇÃO Dignitatis Humanae: sobre a liberdade religiosa. In: http://www.vatican.va/
archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651207_dignitatis-huma-
nae_po.html (acessado em 13.08.2020).

4. DECLARAÇÃO Nostra Aetate: sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs. http://
www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nos-
tra-aetate_po.html (acessado em 15.08.2020).

5. FRANCISCO, Papa. Discurso ao Conselho Pontifício para o diálogo inter-religioso, 28 de


novembro de 2013. http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2013/september/do-
cuments/papa-francesco_20130930_incontro-pace-s-egidio.html. Acesso em: 22 mai.2019.

6. FRANCISCO, Papa. Viaje Apostólico de Su Santidad Francisco a Tirana (Albania). Encuentro


con los líderes de otras religiones y otras denominaciones cristianas, el 21.09.2014, Univer-
sidad Católica “Nuestra Señora del Buen Consejo”. https://w2.vatican.va/ content/francesco/
es/speeches/2014/september/documents/ papa francesco_20140921_albania leaders altre
religioni.html (acessado em 19.08. 2016).

7. FRANCISCO, Papa. II, Encuentro Mundial de los Movimientos Populares com el Papa Fran-
cisco – Bolívia, 2015. http://latinoamericana.org/2016/info/docs/ CartillaMovsPopularesPapa-
FranciscoBolivia.pdf (acessado em 11.08.2016).

8. FRANCISCO, Papa. Jornada de oração pela paz, “Sede de paz. Religiões e culturas em
diálogo”, Assis, 2016. http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/september/
documents/papa-francesco_20160920_assisi-preghiera-pace.html (acessado em 24.03. 2019).

9. FRANCISCO, Papa. Mensagem do Papa Francisco aos participantes no Encontro Internacional


Inter-religioso “Caminhos de Paz”, Münster e Osnabrück, 2017. http://w2.vatican.va/content/
francesco/pt/messages/pont-messages/2017/documents/papa-francesco_20170828_messa-
ggio-strade-di-pace.html (acesso em 19.03. 2019).

10. FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco no Encontro Inter-religioso de Abu Dhabi,
2019. https://www.acidigital.com/noticias/discurso-do-papa-francisco-no-encontro-inter-religio-
so-de-abu-dhabi-66661 (acessado em 10.04. 2019).

11. I´OSSERVATORE ROMANO, Jornal do Vaticano, n.2, p.1,1986.

12. PANIKKAR, Raimon. Paz e Interculturalidad: Una reflexión filosófica. Barcelona: Herder, 2006.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 245


19
“ Formação contínua na fé de
adultos

Marilze Wischral Rodrigues


FLT

Texto adaptado de artigo publicado nos Anais do V Congresso da ANPTECRE “Religião, Direitos Humanos e Laicidade”, ocorrido de 9 a
11 de setembro de 2015, em Curitiba/PR.

10.37885/201001701
RESUMO

A educação está presente na história da igreja luterana desde sua origem, conforme as
principais obras de Lutero. Esta pesquisa abordou a formação contínua na fé de adultos.
Teve como objetivos: contribuir para a reflexão-ação sobre a importância da formação
contínua na fé de adultos; investigar a existência de programas de formação contínua
na fé de adultos na EKD, na atualidade; identificar a ênfase dada à formação contínua
de adultos em faculdades alemãs e socializar os resultados da pesquisa na IECLB. Para
atender os objetivos, foram realizados os seguintes procedimentos: a) Seleção e análise
de literatura sobre organização e desenvolvimento de programas de formação contínua
de adultos, junto à EKD. b) Verificação da existência de programas de formação con-
tínua na fé de adultos, em comunidades da EKD, pela aplicação de instrumentos com
ministros ordenados e leigos. c) Visita a faculdades alemãs para identificação da ênfase
dada à formação contínua de adultos. d) Participação em eventos de formação a respeito
do tema em estudo. A pesquisa foi realizada no âmbito local e regional da EKD, com a
participação de ministros ordenados, leigos e coordenadores de departamentos, e em
faculdades alemãs que promovem formação contínua de adultos. Os dados apontam à
oferta e manutenção de cursos de fé nas comunidades, devido aos bons resultados que
eles têm trazido para as pessoas que deles participam e para a comunidade, onde há
inclusão de novos membros bem como a promoção do seu crescimento na fé.

Palavras-chave: Formação Contínua, Programas de Formação, Crescimento na fé.


INTRODUÇÃO

A presente pesquisa aborda a formação cristã contínua de adultos. Tem por objetivo
geral: contribuir para a reflexão-ação sobre a importância da formação cristã contínua de
adultos; e como objetivos específicos: investigar a existência de programas de formação
cristã contínua de adultos na EKD1, identificar a ênfase dada à formação cristã contínua de
adultos em faculdades alemãs e socializar os resultados da pesquisa na IECLB2.
A preocupação com educação está presente na história da igreja luterana desde a
origem, como apontam as principais obras de Lutero: a Missa Alemã (1526); a Instrução
dos visitadores (1528); os Catecismos pequeno e alemão (1529); as traduções do Novo
Testamento (1522) e da Bíblia (1534). Para Lutero, cristãos fiéis deveriam preocupar-se e
reivindicar um ensino saudável e competente. Esta preocupação de Lutero veio na baga-
gem dos imigrantes, que se estabeleceram no Brasil e acompanha a história da formação
da e na IECLB, que desde o início, ocupou-se com a escolaridade e a educação cristã
de seus membros.
A IECLB tem promovido reflexões, fóruns, estudos sobre a educação, elaborando
documentos no intuito de retomar e fazer avançar a postura da igreja frente aos desafios
da educação em cada tempo. Do Catecumenato Permanente - Discipulado Permanente
(década de 1970) até as Diretrizes para uma política educacional da IECLB (2005), a igreja
procura promover e viabilizar o sacerdócio geral de todos os crentes, entendido como parti-
cipação ativa de todos os membros na vida da comunidade, assumido também como tarefa
da igreja no PAMI3/2008-2012, no PECC4 e mais recentemente nas Metas Missionárias da
IECLB/2019-2024.
A formação continuada é concebida como a sequência de uma formação inicial, a
procura permanente da continuidade na educação, mas também, e principalmente, como
formação para toda a vida5. Tanto a educação geral quanto a educação na fé acontecem
num processo permanente, dinâmico e contínuo.
A formação cristã contínua tem o papel de possibilitar o desenvolvimento da maturidade
na fé de todos os membros da igreja, inclusive os adultos. O conhecimento prático dos cristãos
é objeto cognoscente a ser problematizado e apreendido no processo educacional. Assim,
na formação de comunidade crítica, age-se e reage-se sobre prática, propósitos e desafios.
De acordo com os objetivos definidos para esta pesquisa, foram realizados os se-
guintes procedimentos de investigação: a) Seleção e análise de literatura sobre programas

1 Evangelische Kirche in Deutschland – Igreja Evangélica na Alemanha.


2 Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil.
3 Plano de Ação Missionária.
4 Plano de Educação Cristã Contínua
5 ARENILLA Louis, GOSSOT, Bernard, ROLLAND, Marie –Claire, ROUSSEL, Marie-Pierre. Dicionário de Pedagogia. Lisboa: Instituto
Piaget, 2000, p.190.

248 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


de formação cristã contínua de adultos, junto à EKD; b) Verificação de programas de for-
mação cristã contínua de adultos, em comunidades da EKD; c) Visita a faculdades alemãs
para observação e identificação da ênfase dada à formação cristã contínua de adultos; d)
Participação em palestras, cursos, seminários e outros eventos de formação a respeito
do tema em estudo.
A pesquisa foi realizada no âmbito das comunidades locais e regionais da EKD, com
a participação de ministros ordenados, leigos e coordenadores de departamentos, e em
faculdades alemãs que promovem formação cristã contínua de adultos.

PROGRAMAS DE FORMAÇÃO CRISTÃ CONTÍNUA DE ADULTOS NA EKD

Desde 2011, a EKD iniciou a execução do Projeto de formação de adultos denomina-


do Erwachsen glauben6. Naquele ano, mais de 20.000 exemplares do manual do projeto
foram enviados às paróquias da igreja na Alemanha, para recomendar o trabalho com
os cursos de fé.
O objetivo do projeto era ambicioso: trabalhar cursos da fé, oferecendo programas em
que adultos, em curto espaço de tempo, pudessem lidar com questões fundamentais da fé,
devendo ser uma oferta regular da igreja. O projeto tem sido executado sob a orientação da
AMD7, por conta de muitos anos de experiência com cursos de fé em muitas comunidades.
Segundo levantamento feito em Comunidades na Alemanha Oriental, acima de 30% das
Comunidades funciona com cursos de fé.
O projeto divulga os cursos existentes, e promove o desenvolvimento de novos cur-
sos. Enquanto isso, todas as igrejas-membro da EKD fizeram seu projeto próprio. Em 2012,
esses cursos foram oferecidos em todo o país e aplicados em centenas de Comunidades.
Antes da publicação do manual, aconteceu uma fase preparatória de três anos, em que se
construiu a compreensão teológica e o objetivo do projeto.
Após intensa discussão entre a AMD, os representantes da educação de adultos e
todas as igrejas participantes, ficou definida a dupla função dos cursos de fé: por um lado,
um caráter missionário, convidando as pessoas para a fé, e por outro, um caráter formativo,
entendendo-os como educação, formação contínua na fé.
O projeto tem como objetivo estabelecer cursos de fé em longo prazo, na EKD em di-
ferentes locais de aprendizagem, mesmo que o financiamento do projeto, em nível de EKD,
esgotou-se em 2012. Existem vários desafios teológicos que dão ao projeto um caráter mais
profundo, por oportunizar um processo de compreensão teológica de relevância prática8.

6 SAUTTER, Jens Martin. Theologische Herausforderungen eines EKD-Projektes »Erwachsen glauben«. Aus Deutsches Pfarrer-
blatt – Heft: 3 / 2012. Disponível em: http://www.pfarrerverband.de/pfarrerblatt/dpb_print.php?id=3129 . Acesso em: 10 dez. 2012.
7 Arbeitsgemeinschaft Missionarische Dienste – Associação de Serviços Missionários.
8 Mais informações sobre o projeto são encontradas em: www.kurs-zum-glauben.org

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 249


Entrevistas com pastores

Foram selecionadas Comunidades da EKD que já promoviam cursos de fé9 e aponta-


vam estes cursos como sendo responsáveis em boa medida pelo seu crescimento. Destas
Comunidades foram escolhidas, de forma aleatória e previamente, dez Comunidades convi-
dadas a participar da presente pesquisa com entrevista que seria realizada in loco. Porém,
somente duas Comunidades responderam positivamente, aceitando a visita da pesquisadora.
Os pastores entrevistados, a partir da experiência de Comunidade, relataram que:

a. Hoje, na Alemanha, existem dois movimentos de igreja: o que busca viver espiritu-
alidade genuína e o que ainda desenvolve muita intelectualidade, distanciando as
pessoas da fé;

b. São necessários três elementos para viver comunidade: espiritualidade individual,


comunhão na comunidade, para aprofundamento dos conteúdos de fé, e prática dia-
cônica, social;

c. Só o culto não é suficiente. Realiza-se todo ano uma grande evangelização, depois
um curso básico de fé para adultos e jovens e, na sequência, reuniões em pequenos
grupos;

d. Uma comunidade é inovadora quando tem todas as gerações juntas na vida da comu-
nidade. Tem espaço pensado para todas as idades. A igreja é organizada em depar-
tamentos e continua em crescimento. Por conta do crescimento, foi construído um
espaço bem iluminado que durante a semana é quadra de esporte e aos domingos é
espaço de culto;

e. Uma das comunidades visitadas sempre tem um estudante de teologia fazendo es-
tágio;

f. Os adolescentes que passam pela Confirmação10 são convidados para um curso bá-
sico de fé e dos que participam deste curso 100% continuam participando no grupo
da Juventude.

9 Com base em: HÄRLE, Wilfried et al. Wachsen gegen den Trend. Analysen Von Gemeinden, mit denen es aufwärtsgeht. Leipzig:
Evangelische Verlagsanstalt, 2008.
10 Espaço de Educação Cristã, oferecido aos adolescentes no contexto luterano.

250 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Departamentos de Educação Contínua de Adultos nas Landeskirche11

A DEAE12 é uma instituição no campo da educação de adultos dentro da Igreja


Evangélica na Alemanha. É definida primeiramente como uma associação educacional e
agrupa as competências da educação de adultos e formação contínua da Igreja Evangélica
em nível nacional. Essa tarefa insere-a em diferentes contextos, em cooperação com ou-
tras organizações.
Aconteceu em 14 e 15 de janeiro de 2013, em Hannover, um encontro promovido
pela DEAE, em parceria com o Comenius Institut, com o tema: Como isso me ajuda??
Sobre os benefícios da educação religiosa para o indivíduo, a Igreja e a sociedade! (tradu-
ção própria)13. O encontro tinha por objetivos: avaliar os benefícios esperados, o efeito da
formação, a direção dos benefícios, a competência, o conhecimento e a atitude produzidos
pelas ofertas de formação contínua, desenvolvidas pela DEAE e a motivação das pessoas
que participam destas ofertas.
Comentou-se que a igreja voltou a ser interessante: as pessoas participam de novo,
principalmente nas comunidades pequenas, com poucas famílias. É bom quando há espaço
para dizer o que se pensa e ouvir o que os outros pensam e se permitir viver neste espaço,
percebendo que não se precisa submeter ao que os outros dizem e às vezes perceber que
até os outros podem dizer algo melhor do que já se sabia.
Foram mencionados vários documentos da EKD, entre eles o Kirche der Freiheit (2006)14,
que identifica instrumentos de formação da igreja do século XXI, entre eles estão o catecu-
menato de adultos, o sacerdócio geral de todos os crentes e a inserção na prática social.
É possível perceber que nem sempre a formação evangélica está ligada à igreja, pois
formação evangélica é base da democracia e elemento estruturante da sociedade ocidental.
Cristãos sempre precisam buscar formação, não podem só depender do que aprenderam até
a Confirmação. Motivos fortes para as pessoas buscarem formação são a tradição e a cultura.
Outras considerações importantes foram apresentadas:

a. Nem sempre a formação pensada nas faculdades evangélicas trabalha em conformi-


dade com as necessidades das Comunidades evangélicas. É preciso pensar sobre a
responsabilidade da formação para adultos na comunidade, identificar a pedagogia
ou didática utilizada nas várias ofertas de formação, questionar o conceito de forma-
ção de adultos e sua relevância na igreja.

11 Landeskirche são as igrejas estatais. Cada estado na Alemanha tem sua igreja evangélica, vinculada à EKD
12 Deutsche Evangelische Arbeitsgemeinschaft für Erwachsenenbildung – Associação Evangélica Alemã para a Educação de Adultos.
Mais informações em: http://www.deae.de.
13 “Was bringt mir das?” Vom Nutzen religiöser Bildung für Individuum, Kirche und Gesellschaft!
14 Disponível em: http://www.ekd.de/download/kirche-der-freiheit.pdf. Acesso em: 14 jan. 2013.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 251


b. Tudo que envolve os adultos para desenvolver o trabalho da igreja pertence à for-
mação de adultos. Os temas dos cursos de formação também são significativos para
avaliar a participação dos adultos.

c. Parece que existe uma inversão: as empresas oferecem cursos que poderiam/deve-
riam ser pensados pelas Comunidades cristãs.

d. Na Alemanha, a formação de adultos começou com a EEB – Evangelische Erwacksenen


Bildung15.

e. O processo de formação começa antes e continua depois de um determinado pro-


grama de formação.

f. Reflexão existe inevitavelmente no processo de formação. Quando há algo atrativo,


aspectos culturais controversos podem ser superados.

g. É mais comum sabermos falar sobre as coisas de fora, dos outros, do (que é) falso, do
que falar sobre o que é nosso, o que pensamos, o que cremos, o que fazemos.

h. É preciso competência didática: ouvir as perguntas das pessoas, seus interesses, suas
expectativas.
Em Lübeck, de 18 a 20 de janeiro de 2013, aconteceu um seminário de treinamento de
lideranças sobre um dos temas do curso Stufen des Lebens. Este curso é conhecido como
aulas de ensino religioso para adultos. Consiste em histórias bíblicas contadas para adultos
de forma envolvente, dinâmica, criativa, com auxílio de recursos visuais concretos sobre o
solo, no centro de um círculo de participantes.
Destaca-se a pessoalidade com que é tratada a fé dos participantes, de forma que
o curso avança significativamente do aspecto cognitivo-ativo para a dimensão emocional,
espiritual, de cuidado e vivência da fé, na relação com a vida.
No treinamento acontecem todos os temas pensados para o curso realizado em quatro
semanas. Chama atenção pela quantidade de detalhes e materiais que precisam ser orga-
nizados e executados com antecedência. A participação neste treinamento foi ecumênica,
com a presença de várias denominações cristãs. Entre as temáticas do curso, eram tratados
aspectos práticos de orientação para a realização do curso posteriormente nas Comunidades.
Foi possível participar de duas ofertas de formação, referente aos cursos de fé para
adultos, organizadas em cooperação entre o Amt für Gemeindedienst – AFG – Departamento
de serviços à Comunidade e a Arbeitsgemeinschaft für Evangelische Erwachsenenbildung
in Bayern – AEEB – Associação para a educação evangélica de adultos na Baviera.
15 Formação Evangélica de Adultos.

252 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Em 28 de novembro de 2012, aconteceu em München, um dia de estudos sobre o
tema Erwachsen glauben – Bildung und Mission bei Glaubenskursen. Algumas considera-
ções importantes:

a. O trabalho missionário precisa trazer junto a formação. Missão e formação precisam


andar juntas. Missão não pode ser adestrar, mas precisa pensar em formação. Parece
que ainda existe separação entre os que são de fora (que precisam ser alcançados) e
os de dentro (que supostamente já têm formação).

b. As pessoas vêm ao curso porque têm uma grande pergunta ou crise. A pessoa só
pode dizer que crê se ela é ativa sobre o conteúdo da fé. Anteriormente havia a
Formação Catequética. Hoje, para a nova geração é preciso ressignificar conteúdos,
enfatizar pontos importantes, aspectos principais, chaves de compreensão dos con-
teúdos para viver a fé. Tomar para si o que se crê.

c. Didaticamente, instrui-se não dar tudo pronto, mas permitir que se construa com os
ouvintes o conteúdo sobre o qual se queira pregar. Ajuda no processo de reflexão
sobre a preparação da prédica. Ter a sensibilidade para não despejar quantidade de
conteúdo, mas perceber se existe reflexão, compreensão dos ouvintes.

d. Saber de experiência, de vivência instrumentaliza a vida do ser humano para conse-


guir relacionar-se no mundo onde vive. Não há como ensinar a fé, mas como ensinar
a viver a partir da fé.

e. É preciso considerar três dimensões: cognitiva, espiritual e vivencial da fé na prática.

f. Com Lutero se trazia as pessoas e trabalhava a formação. Hoje temos que convencer
as pessoas sobre a necessidade de espiritualidade.

g. Missão interna: como todos já são cristãos, precisamos nos ocupar em manter nossos
membros.

h. Pode-se dizer no que se crê, mas não se pode forçar o outro a crer no que se crê.

i. Toda cultura está fundamentada no cristianismo, mas não dá para entender como
ainda aparecem pessoas que dizem “Quem é aquele na cruz?”.

j. Formação de adultos sempre foi importante, mas nunca se perguntou ou se permitiu


perguntar sobre como crer. O que significa este crer para a vida diária?

k. Tradicionalmente se diz existir formação no Culto Infantil e no Ensino Confirmatório.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 253


Mas realmente fazemos formação ali? A tradição não garante que houve formação.

l. Catecumenato é entendido como formação continuada, a força do evangelho pode


ajudar na transformação, na mudança de vida.
Também em München, em 31 de janeiro, aconteceu mais um dia de estudos so-
bre os cursos de fé sob o tema: Erwachsen glauben – Entwicklung eines individuellen
Glaubenskurses16. Os cursos de fé já têm características definidas em termos de conteúdo,
teologia, conceito e pedagogia. A preparação dos cursos de fé geralmente considera priorida-
des pessoais, às vezes até para a concepção e criação de seus próprios modelos de curso.
Neste dia de estudo houve troca de experiências para obter impulsos e projetar cursos
de fé contextualizados. Considerando inovações que surgem no cotidiano em termos de
cursos e bibliografia referente à formação cristã, é preciso contextualizar, tornar pessoal,
para a realidade em que se vive.
Outras considerações importantes deste dia de estudo:

a. “Se temos um conhecimento teológico atrás de nós, podemos/devemos perceber


onde as pessoas estão com uma fé de criança e auxiliá-las a fundamentar melhor sua
fé.”17

b. É importante desenvolver um trabalho com os pais dos confirmandos que estão aber-
tos para aprofundar a fé.

c. Há na Alemanha dois grupos de busca em termos de cursos de fé: o ocidente quer


modelos e o oriente quer saber quem elaborou os cursos.

d. Foram apontados, pelos participantes do dia de estudos, problemas em torno dos


cursos de fé com relação a: objetivos, orientação situacional, poucas ofertas de cur-
sos para juventude, poucas pessoas querem os cursos, pouco tempo para interiori-
zar/personalizar o conteúdo dos cursos de fé, ofertas consideradas como solução
instantânea.
Houve orientação quanto a fatores que devem ser considerados quando se pensa
em elaborar cursos de fé. São eles: os objetivos e o público-alvo do curso; o tipo de curso;
possíveis cooperações; busca por uma equipe; definir temas/tópicos de estudo; metodo-
logia; rituais; medidas de acompanhamento; planejamento de trabalho posterior; a pre-
paração concreta.

16 Fé de adultos – Desenvolvimento de um curso individual de fé.


17 Este dia de estudos teve a assessoria de Klaus Douglass, pastor, teólogo e autor de várias obras sobre os cursos de fé.

254 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


ÊNFASE DADA À FORMAÇÃO CRISTÃ CONTÍNUA DE ADULTOS PELAS
FACULDADES ALEMÃS VINCULADAS À EKD

Foi possível participar de cinco eventos de formação durante o período de realização


desta pesquisa, junto às faculdades evangélicas. Foram eles:

a. 31.11 a 01.12, em Neudietendorf , pela Evangelische Akademie Thüringen18, com o


tema: Leben in der Vision des Urchristentums oder alimentierte Autarkie im Umrechtssta-
at?- Die evangelischen Kirchen in der DDR aus der Perspektive des Westens19.

b. 03.12, em Jena, pela Theologischen Fakultät der Friedrich-Schiller-Universität Jena20,


com a palestra sobre: Armut und Armenfürsorge im Kontext von Pietismus und Au-
fklärung – Beispiele und semantische Transformationen21.

c. 08 e 09.12, em Schwerte, pela Evangelische Akademie Villigst22, com o tema: “...und


zum Glanz deines Volkes Israel!” Theologisches Lehrhaus23.

d. . 14 a 16.12, em Rehburg-Loccum, pela Evangelische Academie Loccum24, com o


tema: Lebenswenden - Wie geht Umkehr, und wohin führt sie?25

e. 30.01, em Jena, pela Theologischen Fakultät der Friedrich-Schiller-Universität Jena,


com um dia de estudo sobre: Priestertum aller Gläubigen – Entstehung – Herausforde-
rung und Chancen eines reformatorieschen Paradigmas26.
Em relação ao público que participou destes eventos, chamou atenção que em sua
maioria eram pessoas adultas e idosas, com elevado grau de escolaridade; participavam
ativamente com argumentação bem fundamentada e questionamentos relevantes, em
muitos momentos demonstrando indignação quando não concordavam com determinado
conteúdo ou ponto de vista apresentado, mas sempre com uma atitude de procurar apren-
der com os outros.
Na convivência com estes participantes foi possível perceber quão intenso é ainda o
sentimento de divisão entre as duas Alemanhas e quanto as consequências da II Guerra
Mundial ainda determinam o modo de pensar das pessoas na Alemanha. Foi possível

18 Academia Evangélica da Turíngia.


19 Viver na visão do cristianismo inicial ou subsidiar a autossuficiência no Estado de direito? A igreja evangélica na DDR na perspectiva
do ocidente.
20 Faculdade Teológica da Universidade Friedrich-Schiller de Jena.
21 Pobreza e auxílio ao pobre no contexto do Pietismo e Iluminismo. Exemplos e transformações semânticas.
22 Academia Evangélica de Villigst.
23 “... e para a glória do seu povo Israel!” Estudo teológico através da leitura cuidadosa
24 Academia Evangélica de Loccum.
25 Orientação na vida - Como acontece arrependimento, e onde o faz levar?
26 Sacerdócio de todos os crentes – Emergência – Desafio e Oportunidades do paradigma da Reforma.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 255


perceber a preocupação com as pessoas que não procuram mais a igreja hoje, pela secu-
larização presente em toda a Alemanha, apesar de se manter o respeito por ela.
As ênfases dadas nestes eventos de formação eram mais de cunho intelectual, com
muita e excelente teologia, mas com pouca preocupação de aplicação na vivência concreta
da fé evangélica no cotidiano. Apareceu o questionamento sobre o envolvimento das fa-
culdades teológicas na vida das Comunidades. Por outro lado, também aparecem críticas
quanto às prédicas depressivas e que provocavam medo na comunidade.
Falou-se também sobre ressignificar os conteúdos da fé pela vivência ritual. Apenas
conhecer o que cremos não é suficiente. É preciso aprender a ouvir, ter a sensibilidade para
o outro, saber reconhecer erros ou dificuldades, relembrar a história, enxergar prioridades
e construir diálogo sobre a base da vida cristã que é a gratidão.
Formação precisa ser desenvolvida em conjunto com diaconia, com base no princípio
teológico, social, pedagógico e ético de viver como Jesus Cristo viveu, e assim tornar a prá-
tica da igreja mais interessante. Viver comunidade a partir da diaconia é colocar a palavra
da verdade junto a toda realidade.
Sobre o tema formação foi dito que seria bom rever os catecismos de Lutero e de
Heidelberg, e outras obras de interpretação destes dois catecismos.
A formação na igreja está pensada sobre o modo como a vida na Alemanha é pré- de-
terminada, ou seja, a pessoa deve cedo ser colocada sobre o que é certo e não pode cair
disso. Porém, pensar sobre a vida é possível e mudá-la também; um processo de formação
deveria considerar esta possibilidade.
Conforme a situação, o processo de formação terá um caráter mais individual ou cole-
tivo. Mas o objetivo final da formação é que todos deveriam saber o catecismo, como orar,
conhecer os hinos cristãos e a bíblia. Cristãos devem saber o que creem. Como cristãos
somos chamados a ser sal e luz um para o outro, um com o outro, mas não um contra o
outro e não concorrente. Cristãos devem saber o que significa viver com Deus e se colocar
entre Deus e as pessoas, o ser humano, o povo, a comunidade.
O conhecimento de teologia é importante, mas sozinho é insuficiente para a práti-
ca. Na formação teológica é importante manter contato com as pessoas para conseguir tornar
significativo um tema ou conteúdo na vida delas. Importa saber se as pessoas se sentem
envolvidas na vida da comunidade.

A FORMAÇÃO CRISTÃ CONTÍNUA DE ADULTOS NA EKD

Segue aqui análise dos dados e discussão dos resultados elaborados sobre as respos-
tas ao questionário, enviado via e-mail, para comunidades e departamentos na Alemanha
que têm contato com os cursos de fé para adultos (Erwachsenglaubenskurse). A pesquisa

256 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


foi realizada no período de dezembro/2012 a fevereiro/2013, e só foi possível graças à co-
laboração espontânea de pastores, pastoras e líderes de Comunidades. Especial agradeci-
mento a Sra. Ulrike Andersen e ao Sr. Friedrich Rößner pelo envolvimento e compromisso
assumidos com esta pesquisadora. Foram devolvidos 41 questionários com perguntas de
múltiplas escolhas, que serão analisados a seguir.
Quando perguntadas sobre os cursos de fé já oferecidos, obteve-se como resposta: 28
(39,50%) STUFEN DES LEBENS; 14 (19,71%) ALPHA; 8 (11,26%) SPUR 8; 7 (9,85%) outros
cursos; 4 (5,63%) EMMAUS; 4 (5,63%) EXPEDITION ZUM ICH; 2 (2,81%) GLAUBENSKURS
MIT BONHOEFFER; 2 (2,81%) SPIRITUALITÄT IM ALLTAG; 1 (1,40%) WARUM GLAUBEN?;
1 (1,40%) ZWISCHEN HIMMEL UND ERDE.

Outros cursos foram citados e que são desenvolvidos em diferentes comunidades como:
Glaube hat Gründe (Fé tem razões) de Klaus Douglass (cada ano, 1-2 vezes); Farbwechsel
de Kopfermann; Vertikalkurs; Wort und Antwort (Palavra e resposta - oferecido uma vez);
“Exerzieten im Alltag” Spuren Gottes in meinem Alltag entdecken (Retiro na vida cotidiana
- Descobrindo os traços de Deus na minha vida); 40 Tage Gott erleben (Experimente Deus
por 40 dias); Stille (Silêncio) de Elke Werner e Klaus Günter Pache; Leben mit Vision (Vida
com propósito) de Rick Warren; Curso próprio sob medida para os desejos dos participan-
tes; Kurs auf Gott (Curso sobre Deus); Modelo próprio, que é baseado no Alpha, mas é
mais curto; Christ werden = Christ bleiben (Torne-se um cristão = permaneça um cristão,
conhecido hoje como SPUR 8).
Os resultados apontam para a existência de muitos cursos que estão disponíveis para
as comunidades e que ocorre a realização de pelo menos um curso de fé em cada comuni-
dade consultada, o que mostra a preocupação das comunidades em oferecer possibilidades
de avivamento e amadurecimento na fé cristã.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 257


Quando perguntadas sobre a aceitação e participação dos membros da comunidade:
25 (66,41%) consideram boa; 9 (21,95%) consideram muita boa; 5 (12,19%) consideram
satisfatória e 1 (2,43%) considera insuficiente.

A pesquisa demonstra que os cursos oferecidos para os membros são bem aceitos.
Podemos depreender que os cursos são bem estruturados e permitem aos membros/par-
ticipantes um conhecimento maior e aprofundado em relação à fé. Algumas comunidades
consultadas ainda relataram que: a) são realizados dois cursos por ano, mais recentemente
cada curso acontece de manhã e à noite; b) a participação da Comunidade é expansível,
pois muitos participantes vêm do entorno das Comunidades.
Quando perguntadas sobre os objetivos da comunidade na promoção destes cursos,
as respostas foram: 35 (32,40%) - aprofundamento na fé; 25 (23,14%) - alcançar pessoas
distanciadas na vida de fé; 21 (19,44%) - evangelismo; 13 (12,08%) - crescimento da igreja;
14 (12,96%) citaram outros objetivos tais como:

• Conhecer as histórias da Bíblia;

• Criar conexão entre as afirmações bíblicas e a própria vida;

• Identificar a sua própria história de vida em conexão com Deus;

• Educar para a fé, troca;

• Crescer na Comunidade de novos membros ou membros afastados da comunida-


de.

• Possibilitar aos participantes conhecer o batismo e se deixar batizar, pois em cada


curso, aproximadamente 50% dos participantes se deixam batizar.

• Realizar Hauskreisarbeit (trabalho de grupo caseiro)

258 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


• Promover conhecimento de fé

• Depois do evangelismo, a preocupação é pelos próximos passos na fé, incluindo


nesse sentido ofertas de grupos caseiros e de estudos bíblicos para contínuos pas-
sos na fé

• Recrutamento de colaboradores

• Formação de multiplicadores

• Comunidade

• Desmontar preconceitos contra a Bíblia

• Inserir os vários dons, fazer experiência de Comunidade

• Viver a fé na vida cotidiana

Pela variedade de objetivos citados, os dados mostram que há um grande compro-


metimento das comunidades em promoverem cursos de fé para seus membros, pessoas
afastadas e pessoas de fora da igreja, o que sugere uma preocupação das comunidades
pesquisadas em oferecer iniciação, aproximação e aprofundamento no conhecimento da fé
cristã e na vivência desta fé na vida pessoal e comunitária.
Quando perguntadas sobre o número de vezes que a comunidade já promoveu estes
cursos: 27 (65,85%) comunidades promoveram mais de quatro vezes; 4 (9,75%) comunida-
des promoveram quatro vezes ; 4 (9,75%) promoveram duas vezes; 3 ( 7,31%) promoveram
três vezes; 3 ( 7,31%) promoveram uma vez.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 259


Algumas comunidades informaram ainda sobre a periodicidade na realização dos cur-
sos: aproximadamente desde o ano 2000, Stufen des Lebens: anualmente; Alpha: a cada
dois anos; Expedition zum Ich: uma vez como um tema de culto e nos grupos caseiros e
grupos de discussão; Stufen des Lebens, Alpha e Spiritualität im Alltag: duas vezes por ano.
Os dados apontam para o desejo das comunidades de proporcionar periodicamente
cursos de aprofundamento na fé, o que demonstra a responsabilidade das comunidades
consultadas com a formação contínua das pessoas nos conteúdos da fé cristã e sua inserção
ativa na vida em comunidade.
Quando perguntadas sobre a intenção de dar continuidade à realização destes cur-
sos: 35 comunidades (85,36%) responderam positivamente, enquanto apenas 6 (14,64%)
responderam negativamente.
Os argumentos apresentados para dar continuidade à realização dos cursos foram:

– Os cursos mostraram ser muito eficazes em promover a vontade de participar ati-


vamente da Comunidade, além do crescimento da fé.

– Os cursos são parte integrante da vida comunitária. Eles são uma boa oportunidade
para convidar pessoas para a Comunidade e para falar sobre a fé.

– O curso Alpha ensina temas básicos da fé para as pessoas, que estão procuran-
do ou estão interessadas na Igreja/Comunidade, como os pais dos confirmandos,
pessoas após um período de luto etc. Participantes do fim de semana Alpha geral-
mente ficam na Comunidade.

– Stufen des Lebens (Estágios da vida) fala às pessoas principalmente devido à for-
ma de trabalho com imagens no solo e ao curto tempo de duração (apenas quatro
encontros). Alguns participantes vêm apenas para este curso, dois, três anos e
depois deixam-se convidar para outros eventos na Comunidade, ou começam a ir
regularmente ao culto. Outros participantes sempre voltam para aprofundar a sua

260 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


fé, e porque o curso lhes faz bem. Alguns participantes trabalham já em outras áre-
as da Comunidade, e utilizam os cursos Stufen des Lebens, para reabastecer-se.
Cada ano, cerca de um terço dos participantes é de novas pessoas, dois terços
estiveram uma vez ou vêm regularmente. Como resultado é uma boa mistura, e os
novos participantes podem conviver na Comunidade.

– Nosso Conselho de Igreja elaborou uma declaração de missão para a comunidade


há alguns anos, com a qual estes cursos se encaixam bem: “Nós somos uma Co-
munidade aprendente e orientada em Jesus Cristo e convidamos todas as pessoas
para uma vida bem sucedida no amor de Deus”.

– Stufen des Lebens (Estágios da vida) realiza-se anualmente em setembro em qua-


tro noites ou manhãs. A maioria dos participantes do ano anterior está à espera,
que novamente um novo curso aconteça. Novos participantes são bem integrados
no grupo. Estes cursos falam profundamente aos indivíduos e possibilitam comu-
nhão e diálogo pessoal de forma especial.

– É parte integrante do trabalho comunitário, desejo dos participantes.

– Porque por isto (estes cursos) sempre de novo pessoas têm encontrado a fé, na fé
são amadurecidas e integradas na Comunidade.

– Porque faz parte da oferta do departamento responsável de entrada na igreja, ofe-


recer cursos de fé (de batismo) e a procura continua.

– A oferta do curso tem se mostrado ao longo dos anos como uma necessidade. Ao
mesmo tempo é nossa oferta anual para não-batizados, para se preparar para o
batismo.

– Nós oferecemos os cursos há quatro anos anualmente em três comunidades reve-


zadamente. Assim reúnem-se números aceitáveis (10-30 participantes).

– Uma boa ferramenta entre muitas outras para alcançar pessoas com o Evangelho
e assegurá-las na fé .

– Única oferta espiritual ao lado do Culto de domingo.

– Cursos de fé são ajuda para a fé e para a vida

– Porque a aceitação e a procura é muito alta e é importante, e há uma determinada


regularidade Além disso, a Comunidade é altamente valorizada e novos membros

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 261


da Comunidade podem ser bem integrados.

– Porque em 2013 após ProChrist (Programa de evangelização) deve continuar para


os interessados.

– Porque percebemos, que vale a pena o esforço, tanto para os colaboradores, bem
como os membros da paróquia, que participaram de um dos cursos.

– Porque Stufen des Lebens produz a relação de fé com a vida e é adequado para
todos. Este curso é visto como top e é uma adição muito importante para os outros
eventos da Comunidade.

– É muito importante.

– Para manter-se vivo na fé

– Stufen des Lebens constantemente serve para o crescimento da fé

– Porque ele tem-se confirmado.

– Estes cursos são oferecidos por nossa paróquia há 2 anos.

– O primeiro curso foi moderadamente ocupado. No segundo curso, já estávamos


com 15 pessoas. O terceiro curso começou ontem e éramos 28 pessoas.

– Nós somos um grupo misturado de jovens e adultos e este ano, pela primeira vez,
ecumênico.

– Porque com isto, sempre de novo, pessoas, pela primeira vez ou de forma nova são
familiarizadas com Jesus Cristo.

– Atenção: nós não somos nenhuma comunidade, mas esta oferta como comunidade
realiza-se no âmbito da nossa casa de hóspedes.

– Porque eles ficam bem e a demanda ainda está lá. Eles (os cursos) são parte inte-
grante do trabalho comunitário.

– Porque ele é desejado e aceito.

– Já uma longa tradição, sempre vem de novo novos participantes para fazê-lo, um
curso popular em toda a Alemanha! O curso é oferecido aqui de forma intermunici-
pal, regional, no âmbito dos Kurse zum glauben (cursos para a fé).

262 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


– Muitos provaram.

– Stufen des Lebens sim, porque este curso é bem procurado por muitos anos. Ele
sempre é atraente, porque os temas, os textos bíblicos e o material são muito varia-
dos. Sempre de novo novos participantes vêm fazê-lo. Spur 8 foi oferecido em dois
anos consecutivos, o que agora não é mais possível, porque o pessoal responsável
por isto não pode mais ser pago pela Igreja.
As comunidades que não continuam a oferecer os cursos apresentaram os seguintes
motivos: mudança do pastor; atualmente os colaboradores estão envolvidos de outra forma;
oferecemos um curso diferente (Emmaus), para que pessoas diferentes sejam abordadas;
a aceitação é muito baixa; os participantes (7 ou 5) beneficiaram-se, mas: 1) havia muito
material para o grupo-alvo (pouco leitores); 2) a Comunidade é muito pequena (polo de
interessados é pequeno demais. Preocupação: sacrificar-se muito para isso é muito traba-
lho para pouca gente); 3) nós queremos tentar de novo em forma mais ampliada em nível
regional; e a pessoa encarregada estava muito doente e depois da recuperação, manteve
só os seminários dos instrutores para Stufen des Lebens. Até agora ninguém foi encontrado
na Comunidade, que queira manter esses cursos de fé.
Os dados apontam para a manutenção dos cursos de fé nas comunidades, devido
aos bons resultados que estes têm trazido para as pessoas que deles participam e para a
comunidade, onde há inclusão de novos membros bem como o seu crescimento na fé.

CURSOS DE FORMAÇÃO CRISTÃ CONTÍNUA DE ADULTOS NA EKD

Neste capítulo, será feita a descrição dos principais cursos oferecidos dentro do Projeto
de formação de adultos Erwachsen glauben, no contexto da EKD.

ALPHA

O curso Alpha é um curso de fé com a maior distribuição em todo o mundo.


Comer juntos, introdução a questões básicas da fé e pequenos grupos de dis-
cussão são os seus pilares. Seu público primordial são as pessoas que têm os
primeiros contatos com a fé cristã. Está estruturado em 10 unidades, uma por se-
mana e prevê um final de semana em conjunto. O curso Alpha foi desenvolvido
em uma igreja anglicana em Londres. Ele é multi-denominacional e é oferecido
em muitas igrejas cristãs em mais de 150 países ao redor do mundo. Algumas
comunidades na Alemanha utilizam-no com adaptações e contextualização27.

27 Mais informações: http://www.alphakurs.de.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 263


EMMAUS – Auf dem Weg des Glaubens

Emmaus – no caminho da fé é um modelo de curso orientado por relacionamen-


tos e desenvolve-se normalmente em pequenos grupos na Comunidade. O curso
básico desenvolvido em dezesseis unidades apresenta conteúdos fundamentais
da fé que podem ser aprofundados, conforme necessidade do público. O curso
de Emmaus foi desenvolvido na Igreja Anglicana e firmou-se com o seu mate-
rial retrabalhado em comunidades alemãs durante anos. O perfil do conteúdo
caracteriza-se por comunicação, orientação e acompanhamento na vida de fé.

EXPEDITION ZUM ICH

É um livro que pode ser lido individualmente, mas também pode ser adotado
por uma Comunidade para trabalho de compartilhar em pequenos grupos. É es-
pecialmente pensado para que tem interesse por uma busca pessoal com os
principais textos bíblicos combinados e em uma expedição de 40 dias através da
Bíblia. Três colunas são combinadas: uma agenda de viagens para o trabalho in-
dividual, pequenos grupos com uso de material relacionado e cultos temáticos28.

GLAUBENSKURS MIT BONHOEFFER

Em doze unidades ligadas à biografia e teologia de Dietrich Bonhoeffer com


as questões fundamentais da fé, trazendo os participantes para a conversa e
levando à leitura nova e surpreendente de textos bíblicos. Metodologicamente,
os conteúdos são bem tratados e o material pedagógico sofisticado ajuda no
desenvolvimento e implementação, com base em uma pergunta fundamental
de Bonhoeffer: O que eu acredito – o que nós acreditamos realmente?

KAUM ZU GLAUBEN

O curso quer ajudar a entender a fé e fazer experiências vivas sobre os con-


teúdos da confissão de fé. Oferece quatro unidades básicas de abordagens
criativas e experiências sensoriais. O conhecimento, a reflexão teológica e a
prática complementam-se mutuamente29.

28 Mais informações: www.expedition-zum-ich.de


29 Mais informações: http://www.eeb-niedersachsen.de/kaum-zu-glauben/index.htm

264 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


SPIRITUALITÄT IM ALLTAG

A prática cristã que combina sete passos de culto e de vida juntos. Cada unidade
é executada por uma liturgia de culto em encontro com a vida cotidiana. É uma
mistura de formação cristã e projeto de desenvolvimento comunitário, um pro-
cesso que se refere a impulsos cotidianos de um texto bíblico e compartilhando
juntos experiências que surgem a partir dele30.

SPUR 8 – Entdeckungen in Land des Glaubens

Um seminário para a comunidade. Sete noites de conteúdo e um conjunto final


de adoração de imagens, apresentações e grupos de discussão. O conteúdo
principal da fé cristã é contado como histórias e descrito em imagens. É uma
versão atualizada do curso clássico “ Ser cristão - Permanecer cristão,” o curso
com a maior disseminação no país de igrejas. O objetivo é reconciliar-se com
a adoção da sua própria história (de fé)31.

STUFEN DES LEBENS

No encontro com textos bíblicos, participantes descobrem como estes podem


estar vivos e ganhar importância para o seu caminho através dos estágios da
vida, o que permite uma leitura biográfica e aprendizagem que conduz para uma
conversa orientada, envolvimento pessoal e aconselhamento que incentiva e
convida à fé. Com a ajuda de símbolos, de materiais da natureza e de objetos do
cotidiano, textos bíblicos tornam-se visíveis e verdadeiros para a vida. O curso
é especialmente dialógico e interativo32.

WARUM GLAUBEN?

Quatro noites no caminho para o batismo ou a memória do batismo mais de-


senho ideias para um culto na igreja. O material é entendido menos como uma
gama completa de cursos, mas se concentra principalmente sobre a realidade
da reentrada nas igrejas locais, que devem cada vez mais responder às solici-
tações de admissão ou de batismo na igreja em idade adulta33.

30 Mais informações: www.gemeindekolleg.de/projekte/spiritualitaetimalltag .


31 Mais informações: http://www.online-glauben.de.
32 Mais informações: http://www.stufendeslebens.de.
33 Mais informações: www.amd-westfalen.de .

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 265


ZWISCHEN HIMMEL UND ERDE - EIN EVANGELISCHER THEOLOGIEKURS

Tópicos da teologia para viver a experiência e pensar a respeito. As questões


de teologia com o cotidiano das pessoas, a necessidade de orientação religio-
sa, com o reconhecimento da realidade da vida em uma sociedade pluralis-
ta. Um curso completo com inúmeras unidades que abrangem uma vasta gama
de tópicos e oferecem uma variedade de combinações. Existe a preocupação
em promover alegria no diálogo aberto e vivo entre as questões de teologia e a
pluralidade de estilos de vida, culturas e religiões hoje, e fortalecer juízo reflexi-
vamente. Material do curso detalhado e sofisticado facilita a implementação34.

Destes cursos já há versões traduzidas e adaptadas no Brasil: ALPHA, SPUR8 (com


o nome de Trilha 8) e STUFEN DES LEBENS (com o nome de Cenários da Vida). Além
destes, outros cursos foram mencionados como Evangelische Kompakt (Fundamentos da
fé evangélica); Abenteuer Alltag (Como inculturar a fé no viver diário); Starter Kurs (para
iniciantes, parecido com o Alpha); Evangelische aus welchem Grund? (Formulações de
aspectos catequéticos); Eintauchen ins Leben (Imersão na vida); Christsein angesichts des
Islam (diálogo entre o que crê a fé cristã e a fé islâmica); Wenn Frauen Gott sagen…(Se as
mulheres dizem Deus... - pensar sobre Deus, no contexto das experiências de vida das mu-
lheres); Ich höre den, der mit mir redet - Geistliche Übungen im Alltag (Eu ouço as pessoas
que falam comigo - Exercícios espirituais na vida diária). Existem muitos outros cursos de
fé disponíveis, que podem ser encontrados em: http://www.kirchliche-dienste.de/upload/23/
Literaturliste_Glaubenskurse.pdf. Informações sobre cursos para o trabalho comunitário
podem ser encontradas em www.glaubenskursfinder.de .

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os Glaubenskurse – cursos de fé transmitem conteúdo fundamental da fé cristã e


acompanham as pessoas em seus caminhos de fé, gozam de popularidade significativamente
crescente há alguns anos. São projetados especialmente para adultos, para atingir os cristãos
na Igreja, mas também outras pessoas que querem saber mais sobre a fé cristã, cuidando
do significado de sua vida. Através de cursos para a fé: o adulto aprende mais sobre a fé
cristã no ensino, na vida e na espiritualidade em relação à realidade da sua vida; esclarece
sua própria compreensão da fé; é convidado a viver relacionamento de fé; e tem, nas co-
munidades de cristãos, a oportunidade de continuar a seguir seu caminho “na terra da fé”.

34 Mais informações: www.ekiba.de/7312.php .

266 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


As pessoas adultas mostram interesse em perguntas que aparecem relacionadas
mais à essência do que à aparência, independente de proximidade ou de distância com
a vida da igreja.
Cursos da fé são atrativos por muitas razões: têm um tempo de duração plausível; as
crenças cristãs são ensinadas na vida real e fáceis de entender; fornecem espaço em que
questões pessoais, experiências e dúvidas podem surgir numa conversa; pode-se ter certeza
do significado da fé ou descobrir novos significados; podem se tornar um passo importante
no caminho para o batismo ou lembrança do batismo.
Comunidades que convidam para cursos da fé, ouvem de pessoas com origens mui-
to diferentes, que sentem a discussão do conteúdo da fé cristã e as histórias da Bíblia
como ganho pessoal.
Com base na experiência positiva, o Conselho da EKD entende que os Cursos da fé
são uma tarefa central para o futuro da igreja evangélica e decidiu apoiar o seu desenvol-
vimento contínuo.
O objetivo da EKD é que os cursos de fé se tornem oferta regular das comunidades
e outros órgãos da igreja, e tornem-se uma marca reconhecida publicamente, para que as
pessoas, em qualquer lugar na Alemanha, possam participar.
Os Cursos de fé serão uma oferta de boas-vindas para muitas pessoas e contribuirá
para despertar interesse pela fé e pela igreja. Portanto, uma boa preparação e acompanha-
mento de comunidades e instituições são importantes. Para a realização de cursos de fé, há
os seguintes auxílios: a) o manual “Erwachsen glauben” informa o projeto de Cursos de
fé e introduz a prática de Cursos de fé. O manual está disponível aqui: www.scm-shop.de/
kurse-zum-glauben.html. b) Treinamento para preparar lideranças e equipes comunitárias
para realizar os Cursos de fé. c) Dias de estudo e formação sobre questões teológicas e
práticas no contexto da missão e educação, pesquisa sobre os contextos e desenvolvimento
comunitário. d) O site www.kurse-zum-glauben.de serve como uma plataforma central de
informação e comunicação. e) Material de divulgação e publicidade podem ser usados e
adaptados nas próprias comunidades35.
Os recursos utilizados para a realização desta pesquisa foram subsidiados por bolsa
de estudos cedida pela EKD, em convênio firmado com a IECLB.
A relevância dos resultados obtidos possibilitou reflexão na IECLB, que foi promovida
pela: a) apresentação do presente relatório aos órgãos competentes; b) socialização em
eventos relacionados ao tema; c) divulgação em congressos e periódicos; d) estudo dos
resultados em seminário interdisciplinar com estudantes de teologia na Faculdade Luterana

35 Para mais informações e aprofundamento sobre Cursos da fé para adultos, confira: RODRIGUES, Marilze Wischral. Implicações da
prática educativa cristã holística para a aprendizagem integral ao longo da vida. São Leopoldo: EST/PPG, 2019.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 267


de Teologia – São Bento do Sul/SC. Ainda serviu de base para aprofundamento do tema
em pesquisa de doutorado.
Com base nas descobertas desta pesquisa, recomenda-se: a) investimento na Educação
Cristã Contínua, através de ações voltadas para a formação de todos os membros da comu-
nidade; b) potencialização e intensificação das atividades de formação continuada de lideran-
ças36 c) estabelecimento de programas de formação cristã contínua, que auxiliem os adultos
a desenvolver as habilidades e competências pretendidas na carta de Paulo aos Efésios:

com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu servi-


ço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade
da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à
medida da estatura da plenitude de Cristo, para que não mais sejamos como
meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento
de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao
erro. Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é
a cabeça, Cristo. (grifo da autora)37.

REFERÊNCIAS
1. A BÍBLIA da mulher. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008.

2. ARENILLA Louis, GOSSOT, Bernard, ROLLAND, Marie-Claire, ROUSSEL, Marie-Pierre. Di-


cionário de Pedagogia. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

3. HÄRLE, Wilfried et al. Wachsen gegen den Trend. Analysen Von Gemeinden, mit denen es
aufwärtsgeht. Leipzig: Evangelische Verlagsanstalt, 2008.

4. http://www.alphakurs.de.

5. http://www.amd-westfalen.de.

6. http://www.deae.de.

7. http://www.eeb-niedersachsen.de/kaum-zu-glauben/index.htm.

8. http://www.ekd.de/download/kirche-der-freiheit.pdf.

9. http://ww.ekiba.de/7312.php.

10. http://www.expedition-zum-ich.de.

11. http://www.gemeindekolleg.de/projekte/spiritualitaetimalltag.

12. http://www.kurs-zum-glauben.org.

13. http://www.online-glauben.de.

36 IECLB. Diretrizes da Política educacional da IECLB. In: Textos orientadores para a educação evangélico-luterana. São Leopoldo:
Sinodal, 2005. p.18.
37 Efésios 4.12-15. In: A BÍBLIA da mulher. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008. p. 1496-1497.

268 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


14. http://www.stufendeslebens.de.

15. IECLB. Diretrizes da Política educacional da IECLB. In: Textos orientadores para a educação
evangélico-luterana. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

16. _____. Metas missionárias da IECLB. In: Metas aprovadas pelo XXXI Concílio da Igreja Evan-
gélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) 17 a 21 de outubro de 2018 – Curitiba/PR.

17. _____. Plano de Educação Cristã Contínua da IECLB (PECC). São Leopoldo: Sinodal; Porto
Alegre: IECLB, 2011.

18. PINTO, Homero Severo (Org.). Missão de Deus – nossa paixão: texto-base para o plano de
ação missionária da IECLB 2008-2012. São Leopoldo: Sinodal, 2008.

19. RODRIGUES, Marilze Wischral. Implicações da prática educativa cristã holística para a
aprendizagem integral ao longo da vida. São Leopoldo: EST/PPG, 2019.

20. SAUTTER, Jens Martin. Theologische Herausforderungen eines EKD-Projektes »Erwa-


chsen glauben«. Aus Deutsches Pfarrerblatt – Heft: 3 / 2012. Disponível em: http://www.
pfarrerverband.de/pfarrerblatt/dpb_print.php?id=3129 . Acesso em: 10 dez. 2012.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 269


20
“ MÍSTICA MARIAL: Maria, ícone
humano do mistério

Zilda Maria da Silva


PUC - Campinas

10.37885/200901564
RESUMO

É fato que tem havido um aumento no número de peregrinos ao Santuário de Nossa


Senhora Aparecida. Segundo o portal A12 de Aparecida, em 2014 houve recorde de
presença no Santuário com mais de 12 milhões de pessoas. Em 2017 na celebração
dos 300 anos de encontro da imagem chegou a 13 milhões. Assim podemos ver um fe-
nômeno religioso que provoca a pesquisa cientifica acadêmica, no campo das ciências
da religião. No contexto de indiferença religiosa, sincretismo religioso, em uma cultura
onde se valoriza mais o ter que o ser, como explicar essa busca? O que leva tantas
pessoas - crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos, deficientes, enfermos, de-
sempregados, empresários, com diferentes rostos, diferentes condições sociais, e por
que não dizer diferentes crenças e religiões - a irem ao encontro de Maria, na imagem
de Nossa Senhora Aparecida? O que existe de especial nesta mulher que tantos vão ao
seu encontro? Instiga à reflexão, também a constatação do aumento da devoção mariana
mesmo diante da diminuição de católicos, conforme os dados do último censo. Parece
ser esse um fenômeno religioso contraditório, já que Nossa Senhora é uma devoção
popular do catolicismo. Com o objetivo de propor um caminho de interpretação para esse
fenômeno relacionado à devoção popular, a proposta, deste artigo é procurar mostrar
que na devoção mariana, podemos encontrar elementos de uma Mística Marial, uma
experiência de Deus que conta com Maria como Ícone do Mistério. Do ponto de vista
metodológico, será feita uma pesquisa bibliográfica tendo como referenciais teóricos o
teólogo Bruno Forte e Juan Martin Velasco, especialista em fenomenologia da religião
e estudioso de mística cristã.

Palavras-chave:Mística Marial, Devoção, Mulher, Mistério.


INTRODUÇÃO

A proposta deste artigo é procurar mostrar que na devoção mariana podemos encontrar
elementos de uma Mística Marial, ou seja, uma experiência de Deus que conta com Maria
como ícone do mistério. Nossa pesquisa é bibliográfica, em primeiro lugar apresentaremos
o termo Mística a partir de Juan Martin Velasco1, em segundo lugar a Mística Marial, e o
Ícone humano do Mistério e a conclusão. No Brasil temos duas grandes manifestações que
expressam a devoção do povo brasileiro a Nossa Senhora: Aparecida e o Círio de Nazaré.
Além de muitas outras em distintas regiões. Neste artigo, voltamos nosso olhar ao Santuário
Nacional de Aparecida, que em 2017 celebrou 300 anos do encontro da pequena imagem
de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, no Rio Paraíba do Sul, por três pescadores.
Segundo relato do encontro da imagem a primeira parte a ser pescada foi o corpo e depois a
cem metros de distância foi encontrada a cabeça. É essa pequena imagem que leva milhões
de pessoas todos os anos a este Santuário, fato que nos leva a pesquisa e a perguntar o
porquê de tal fato?

TERMO MÍSTICA: breve histórico e significado

A palavra mística vem da transcrição do termo grego, do adjetivo mystikós, de origem


das religiões mistericas (ta mystika) das cerimônias nas quais os mystes, o fiel era iniciado
nos grandes mistérios.
Mística não aparece no Novo Testamento, nem nos Padres Apostólicos. Vai ser intro-
duzida no cristianismo a partir do século III, adquirindo três sentidos: espiritual, simbólico e
teológico, que seguem ainda até nossos dias:

Mística designa em primeiro lugar, o simbolismo religioso em geral e será


aplicado por Clemente e Orígenes, ao significado típico ou alegórico da sa-
grada Escritura que origina um sentido espiritual ou místico em contraposição
ao sentido literal. Em segundo lugar, próprio do uso litúrgico, remete ao culto
cristão e a seus diferentes elementos. Assim Santo Atanásio fala do cálice
místico da celebração da eucaristia. Neste âmbito cultual místico significa o
sentido simbólico, oculto dos ritos cristãos. E em terceiro lugar místico em
sentido espiritual e teológico, se referindo ás verdades inefáveis, ocultas do
cristianismo (Orígenes, Metodio de Olímpia) as verdades mais profundas,
objeto, portanto de um conhecimento mais íntimo. (VELASCO, 2009, p. 20)

Velasco ainda diz que nos últimos séculos o fenômeno místico em sua extraordinária
variedade de formas extras religiosas e religiosas; cristãs e não cristãs e a multiplicação
dos pontos de vista para seu estudo, explicam sua complexidade e inclusive a imprecisão

1 Juan Martin Velasco (1934) Espanhol, professor emérito de Fenomenologia da Religião da Universidade Salamanca, e da Faculdade
de Teologia San Dámaso, especialista em temas relacionados a mística.

272 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


semântica do termo, tanto na linguagem ordinária como na terminologia própria das distintas
ciências da religião, da filosofia e da teologia. (VELASCO, 2009, p. 21)
Em termos gerais e imprecisos com a palavra mística referimos a experiências interio-
res, imediatas, fruitivas, que tem lugar em um nível da consciência que supera a experiência
ordinária e objetiva. Ou ainda Mística como experiência direta da presença de Deus. De uma
íntima união com Deus. É o mistério humano imerso no Mistério de Deus, o inefável.

O encontro mais profundo terá lugar na esfera da mística, na qual vamos além
das ideias, dos conceitos e das imagens, até o estado de amor silencioso. Aqui
as pessoas permanecem em um estado de união sem palavras, aqui o espírito
se encontra com o espírito. (VELASCO, 2009, p. 471)

Neste estado de união sem palavras a linguagem do místico é a linguagem de uma


experiência vivida; devido à insuficiência da linguagem, os místicos deixam suas experiências
na escrita, poesia, música, pintura. É uma linguagem simbólica.
Para Velasco, a realização da experiência de fé é o centro do fenômeno místico, por
ser uma livre e pessoal resposta do sujeito à presença do Mistério.

MÍSTICA MARIAL – experiência que viveu Maria

Acima tratamos o termo mística como experiência de Deus, do Mistério, na Mística


Marial, podemos pensar no mistério que viveu Maria, a mãe de Jesus acrescentado à ex-
periência de fé, que para Velasco é o centro do fenômeno místico.
A partir do conceito de mística, nossa pesquisa segue na busca por elementos de uma
Mística Marial, a partir das narrativas bíblicas que falam de Maria, sem a pretensão de traçar
um perfil biográfico de Maria, mas propor elementos que possam ajudar a compreender a
devoção mariana nos nossos dias.
Os dados bíblicos sobre Maria, a mãe de Jesus, é sóbria e ao mesmo tempo denso.
Pela sobriedade vemos que os textos são marcados pela relação com os textos neotesta-
mentários, e pela densidade porque: “revela desde os inícios, a estreita conexão entre os
mistérios da mãe e a totalidade do mistério do Filho”. (FORTE, 1991, p.43).
Só podemos entender o que é dito sobre Maria na Bíblia à luz da experiência pascal
dos primeiros testemunhos de fé.
O primeiro texto que encontramos no Evangelho de Lucas 1,26-38, o relato da
Anunciação, o Sim de Maria, à vocação a maternidade, um texto que também é de aliança,
compromisso. No texto encontramos que Maria era de Nazaré da Galileia, era Virgem e estava
pronta para o casamento; enquanto mulher concreta, Maria de Nazaré, foi o lugar da vinda
de Deus na carne, no cotidiano de sua vida, sem perder nada de sua feminilidade, ser mu-
lher, virgem, mãe e esposa. Das narrativas dos Evangelhos transparece a fé profunda dessa

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 273


mulher, que se deixou plasmar pelo Senhor e soube acompanhar seu Filho pelo caminho
de sua existência, assinalado pelos misteriosos desígnios de Deus. (FORTE, 1991, p.145).

– Mulher profunda e meditativa (cf. Lc 2, 19 e 51) experimentada no silêncio e na


escuta da Palavra de Deus – uma espada transpassaria a sua alma (cf. Lc 1,35);

– Mulher forte na dor, na mais pura das tradições das mães judias, mulher que sou-
be passar da relação toda natural de sua maternidade terna e afetuosa, podemos
pensar aqui em suas preocupações com o Filho (cf. Mc 3,31-35); permanece de pé
junto a cruz (cf. Jo, 19,25-27);

– Mulher rica em delicadezas de caridade, solidariedade, autônoma, capaz de ante-


cipar-se às necessidades (cf. Lc 1,39-45);

– Maria celebra as maravilhas do Senhor e espera as grandes obras dele em favor de


seus pobres, precisamente quando, na fé e no amor, as experimenta em sí mesma.
As palavras do Cântico Magnificat fala de Maria, a serva do Senhor que vive um ato
de obediência à vontade de Deus. (cf. Lc 1,46-55);

– Sensível e atenta às necessidades dos noivos em Cana (cf. Jo 2,1-11);

Essa mulher humilde e forte, silenciosa e ao mesmo tempo, incisiva nas pa-
lavras decisivas que pronuncia no Evangelho, é confiada ao “discípulo do
amor”, porque, por vontade do Filho agonizante, já pertence de modo vital ao
seu mundo. Nela o povo do cumprimento vem encontrar-se de tal modo com
o povo da esperança e da espera que a fé pascal reconhece em sua figura a
“filha de Sião” que exulta na alegria do tempo messiânico. (cf. 1,28 e Sl 3,14s).
(FORTE, 1991, p. 146)

A partir dos textos que falam de Maria, podemos dizer que ela é uma pessoa ple-
namente integrada, pessoa humana livre. Concebendo no coração e no corpo o Verbo, a
serva que ouve e cumpre a Palavra, podendo assim ser ícone humano do mistério, por sua
experiência de encontro e união com Deus. Maria sinaliza a cada pessoa humana, inde-
pende de sua crença, que como ela também podemos viver uma experiência de união com
Deus com o Mistério.

ÍCONE HUMANO DO MISTERIO – busca por uma experiência

A palavra ícone do grego eikón, imagem, designa uma pintura sagrada feita em pai-
nel. A iconografia remonta ao século V-VI. Para os cristãos do oriente, os ícones são consi-
derados no mesmo plano da bíblia e da tradição, assumindo um conteúdo histórico, cultual
– litúrgico, espiritual e dogmático.

274 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


A partir destes quatro conteúdos, histórico, cultual, litúrgico, espiritual e dogmática,
vamos procurar mostrar que na devoção mariana encontramos elementos de uma mística
marial, que podem nos ajudar a compreender o fenômeno do crescente número de visitantes
ao Santuário de Aparecida.
Conteúdo histórico: Maria, é uma mulher judia, de Nazaré da Galileia, pertencente a
um povo, a devoção a Nossa Senhora Aparecida, representa uma tradição da fé católica
brasileira, faz parte da história do povo brasileiro.
Conteúdo cultual – Litúrgico: o culto a Deus se manifesta em ritos, gestos simbóli-
cos. A devoção a Nossa Senhora Aparecida é um ir ao Santuário em busca uma experiên-
cia de Deus, tendo Maria como um caminho, é o fazer a vontade de Deus com atitudes
de peregrinar, agradecer, silenciar, simplesmente estar diante do Mistério. Ritos vividos
comunitariamente. Nada e ninguém, sequer Maria, a mãe de Jesus, deverá tomar o lugar
que compete ao Altíssimo na vida dos que creem.
Conteúdo espiritual: cultivar a intimidade com Deus, um jeito de viver e atuar a partir da
experiência; Maria aparece como uma figura para ser, não apenas invocada, mas também
seguida na vida concreta, com uma abertura para a solidariedade aos outros.
Conteúdo dogmático: os dogmas são como placas que sinalizam o caminho da fé, fo-
ram criados para ajudar a comunidade eclesial a se manter no rumo do Santuário vivo, que
é Jesus. A devoção a Maria, é um caminhar na mesma fé, para chegar ao centro da vida
eclesial que é Jesus Cristo.

CONCLUSÃO

O fenômeno religioso da devoção a Nossa Senhora Aparecida, requer um olhar sen-


sível e atento dos cientistas da religião, na busca por compreender o grande número de
peregrinos que se dirigem ao Santuário. Aqui apresentamos alguns elementos que podem
contribuir para a compreensão; mas vemos que se faz necessário uma pesquisa de campo,
onde se possa ir mais próximo às pessoas que peregrinam ao Santuário.
Maria, na imagem de Aparecida, é ícone humano do mistério, por ser ela uma mulher
virgem, esposa e mãe, semelhante a cada mulher, a cada homem que na vida busca um
encontro pessoal com a sua essência, com o seu eu mais profundo. Ela é modelo de inte-
gridade humana e vida plena de experiência, de encontro com o Mistério, pois carregou em
seu seio o Mistério de um Deus que se fez humano.

– O povo busca proteção para as várias necessidades e perigos da vida;

– A Mãe de Jesus surge com a fonte de inspiração para questões que afetam toda a

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 275


sociedade, no desejo de justiça social, igualdade e paz;

– Peregrinam ao Santuário pessoas de diferentes classes sociais, cada um com sua


história de experiências vividas, como as de Maria no seu cotidiano.

– Ela é sinal de esperança em meio às desesperanças da vida;

– Maria, mãe, move os sentimentos dos filhos nesta identificação da mãe com seus
filhos;

– Por passeio, compras... buscas.

– Para visitar Maria, na pequena imagem de Aparecida. Estar no Santuário, local de


mistério de encontro, de oração, de estar com outros, silêncio, escuta, celebração.

REFERÊNCIAS
1. BINGEMER, M.C. O Mistério e o Mundo. Rocco, 2013.

2. BOFF, C. Mariologia Moral, o significado da Virgem Maria para a Sociedade, São Paulo, Pau-
lus, 2006.

3. GRÜN, A. Mística, descobrir o espaço interior. São Paulo, Editora Vozes, 2012.

4. MURAD, A. Maria, toda de Deus e tão humana. Compêndio de Mariologia. São Paulo, Pauli-
nas, 2012.

5. PSEUDO-DIONISIO, o Areopagita, Obra completa. São Paulo, Paulus, 2004.

6. SUDBRACK, J. Mística, a busca do sentido e a experiência do absoluto. São Paulo, Edições


Loyola, 2007.

7. VELASCO, J.M. El fenómeno místico, estúdio comparado. Madrid, Editoral Trotta, 2009.

8. ________, Introducción a la fenomenología de la religión. Madrid, Editorial Trotta, 2006.

9. ________, A Experiência Cristã de Deus. São Paulo, Paulinas, 2001.

10. _________, Mística y humanismo. Madrid, PPC, 2008.

11. TEB – Tradução Ecuménica da Bíblia. São Paulo, Edições Loyola, 1994.

276 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


21
“ O amor e o perdão aos inimigos
em Romanos 12

Francisco Márcio Bezerra dos Santos


FCRN

Mércia da Silva Pereira


FCRN

10.37885/201001572
RESUMO

Sabendo que o cristianismo comporta uma exigência radical pelo amor ao próximo, nossa
pesquisa busca abordar os temas do amor e do perdão subjacentes em Rm 12, assim
como suas implicações na vida prática. Para isso, a dividiremos em três partes. De iní-
cio, apontaremos a práxis cristã de transformação do mundo, a qual se apoia no esforço
cotidiano em corresponder à graça divina (Rm 12,1-2). Posteriormente, ressaltaremos
o tema da unidade do corpo de Cristo que se dá numa atitude de amor para com os
de dentro da comunidade (Rm 12,3-13). Aqui, a humildade e a justa estima tornam-se
condições indispensáveis para a concretização dessa unidade, uma vez que diminuem
a incidência de rivalidades e pretensões de grandeza. Por fim, abordaremos o amor aos
inimigos como um apelo oriundo do próprio Cristo, em seu imperativo do amor (Mt 5,44),
o qual possui várias releituras, por exemplo, Rm 12,14-20. Inspirado em Jesus, Paulo
anima seus interlocutores a vencerem o mal pelo bem. Convida-os a superar o desejo
de vingança, não retribuindo o mal com o mal, mas amando e abençoando aqueles que
os perseguem (Rm 12,14). Nessa atual conjuntura da sociedade, tão marcada por into-
lerâncias, desejos de vingança e discursos de ódio, acreditamos que Rm 12 possui uma
força profética que deve ser redescoberta e instaurada na sociedade atual.

Palavras-chave: Amor, Perdão, Fraternidade, Inimigos.


INTRODUÇÃO

Judeu, fariseu e perseguidor dos cristãos, convertido e escolhido por Deus para evan-
gelizar os gentios, Paulo tornou-se um dos personagens mais influentes do cristianismo
nascente. Nutrido por um profundo ardor missionário, percorreu localidades realizando pre-
gações, exortações e organizando comunidades. Tudo isso motivado por sua experiência no
caminho de Damasco (cf. At 9,1-19), através da qual fora alcançado pela graça divina que
revelara-lhe Jesus como Filho de Deus (cf. Gl 1,15-16). Ao longo de seu itinerário espiritual
percebeu os limites da Lei Mosaica, cuja complementação se dá na pessoa de Jesus Cristo
e em sua mensagem de fé, esperança e caridade.
A relevância desse perseguidor convertido é, de tal modo, significativa que seu pensa-
mento gestou boa parte da compreensão de fé cristã. Por meio das várias cartas, enviadas
às comunidades, exortava e indicava os meandros da fé. Essas indicações encontram-se
no bloco de cartas atribuídas a Paulo, chamado de Corpus Paulinum. Uma das cartas de
maior destaque é a que fora destinada aos romanos, uma vez que sintetiza boa parte de sua
reflexão teológica. Como tese principal dessa carta, Paulo assume o evangelho como força
de Deus para a salvação de judeus e gregos (Rm 1,16-17). Desse modo, supera a antiga
rivalidade, o muro de separação que havia entre os dois povos (cf. Ef 2,14).
De modo concreto, sustentado na caridade fraterna, Rm 12 nos anima a vencer as
divisões e inimizades por meio do amor, ainda que aos perseguidores. Esta decisão, concre-
tizada em atos de bondade e um coração puro, se revela fator de cura e de libertação para
quem opta por ela. No fundo, o apóstolo propõe a superação da lógica vingativa, animando
seus interlocutores a não retribuírem o mal com o mal.
As argumentações levantadas por Paulo nos levam a reconhecer a urgente necessi-
dade de praticar a lógica do amor e do perdão, ainda que nem sempre sejam verificados
no cotidiano da práxis humana. Segundo o raciocínio paulino, o amor é a plenitude da Lei
(Rm 13,10), por meio dele a comunidade sustenta sua unidade (cf. Rm 12,3-13) e abre-se
aos de fora (Rm 12,14-21). Alcançados pela graça de Deus, somos inseridos numa dinâmi-
ca de transformação do mundo no qual vivemos (Rm 12,2). Membros do corpo de Cristo,
devemos manifestar os sinais da presença do Ressuscitado dentro e fora da comunidade
cristã. No entanto, essa abertura não se limita aos amigos, mas deve ser levada até mesmo
aos inimigos e aos perseguidores. Em vista disso, nos alertara Santo Agostinho:

O próprio Senhor nos recomenda o amor ao próximo, ou seja, o amor ao ho-


mem e mesmo o amor ao inimigo (cf. Mt 5,44). Vemos quão muitos já batizados
que confessam ser verdade veneram os preceitos do Senhor, mas quando
são vítimas da inimizade de alguém, de tal modo se enfurecem com desejo
de vingar e se inflamam com tanto ardor de ódio que não se aplacam nem
que lhes apresentem e recitem o Evangelho, e as igrejas estão cheias de tais

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 279


pessoas. Homens espirituais não cessam de admoestá-las fraternalmente e
as instruem constantemente com espírito de brandura (cf. Gl 6,1), a fim de que
estejam preparadas para se prevenir e resistir a tais tentações e mais amem
reinar na paz de Cristo que se alegrar com a opressão do inimigo1.

Portanto, o amor aos inimigos se mostra um árduo desafio para os seguidores de


Jesus. Contudo, é necessário expressarmos fundamentalmente o conhecimento da ver-
dade à humanidade. Tornar conhecida a sabedoria divina, revelada por Deus através de
Paulo, segundo a qual o amor é condição indispensável para a existência humana (1Cor
13). Por isso, não pode ser restringido aos amigos, mas deve incluir até mesmo os adver-
sários. O compromisso com essa exigência transforma nossos corações e nos faz viver a
fraternidade verdadeira. Se esperamos um mundo melhor, devemos construí-lo a partir de
nosso testemunho de caridade e de misericórdia, sendo luz para os demais, doando-nos
em sacrifício vivo.
Observando a relevância da dinâmica fraterna intra comunidade, os cristãos são chama-
dos a estendê-la aos demais, mesmo aos perseguidores. Em vista disso, nos interrogamos
acerca da compreensão de amor e de perdão aos perseguidores subjacente em Rm 12 e
suas capacidades de curar e libertar aqueles que assumem essa decisão em suas vidas.
Para isso, estruturamos nossa pesquisa em três momentos. Inicialmente, abordaremos
a práxis cristã de transformação do mundo sinalizada em Rm 12,1-2. Posteriormente, ressal-
taremos o amor fraterno como elemento de sustentação da comunidade cristã (Rm 12,3-13).
Por fim, refletiremos sobre o amor aos inimigos e aos perseguidores como elemento de cura
e libertação do coração humano iluminado por Cristo (Rm 12,14-21).

METODOLOGIA

Esta pesquisa parte de uma leitura analítica de Rm 12, a fim de perceber como o amor
e o perdão aparecem como exigências intrínsecas do cristianismo. Para isso, o capítulo
será dividido em três partes, as quais marcarão o ritmo da argumentação. A primeira parte
(Rm 12,1-2) aborda o importante tema da transformação do mundo, o qual reconhece o
cristão como um agente de mudança das realidades diversas. O segundo momento (Rm
12,3-13) ocupa-se da firme exigência por unidade no corpo de Cristo, entendido como as
diversas comunidades cristãs, indicando a urgente necessidade em romper com as divi-
sões. Por fim, Rm 12,14-21 tematiza uma das exigências mais árduas do cristianismo que
é o amor aos inimigos. Este terceiro momento se dá numa leitura “transversal” entre o texto
epistolar e textos evangélicos que indiquem possíveis influências e correspondências entre
o pensamento paulino e a pregação de Jesus Cristo. Portanto, nossa proposta é “abrir” o

1 AGOSTINHO, Explicação Incoada da Carta aos Romanos, n. 18.

280 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


texto bíblico (Rm 12) a partir de outros textos contidos na Sagrada Escritura, os quais elu-
cidam-se mutuamente.

RESULTADOS

A análise proposta revela, antes de mais nada, a estrutura ternária subjacente no texto
paulino, que pode ser percebida a partir dos temas principais abordados em cada uma das
subdivisões: a práxis cristã de transformação do mundo, a unidade do corpo de Cristo e
o amor aos inimigos. Um segundo resultado relevante, pode ser percebido nas inúmeras
aproximações que o texto paulino têm com o pensamento de Jesus, expresso sobretudo
no Sermão da Montanha (Mt 5 – 7), dentre os quais destacamos as ordens de amar aos
inimigos e a ninguém pagar o mal com o mal.
É salutar indicar ainda a percepção do amor e do perdão como realidades inerentes
da caminhada cristã, as quais devem figurar na práxis dos discípulos de Jesus, a fim de
uma efetiva transformação das realidades humanas. Há ainda a superação da lógica do
Talião, segundo a qual seria possível a devolução proporcional ao mal que lhe fora infligi-
do. No Sermão da Montanha, Jesus propõe a seus discípulos a negação desta mentalidade
e indica-lhes a “outra face” como melhor resposta (cf. Mt 5,39). O pensamento paulino ca-
minha na mesma direção, mas com uma nomenclatura diferente. Paulo chama tal postura
de “acumular brasas na cabeça” do adversário (Rm 12,20b), indicando assim um aspecto
de incompreensibilidade e de crise de consciência causadas pela atitude inesperada, fun-
damentada na práxis de Cristo e não na lógica da vingança.
Assim, parece clara a influência do pensamento discurso de Jesus no Sermão da
Montanha sobre a pregação de Paulo acerca da práxis cristã e sua vida em comunidade.
Contudo, não temos a pretensão de uma intepretação absoluta ou excludente, mas de pos-
sibilitar olhares diversos para temas tão essenciais como são o amor e o perdão.

A PRÁXIS CRISTÃ DE TRANSFORMAÇÃO DO MUNDO

Nosso ponto de partida é a exortação paulina para que seus ouvintes tornem-se sacri-
fícios vivos, por meio de um culto espiritual que agrade a Deus (cf. Rm 12,1-2). O apóstolo
anima-os a esforçarem-se por uma mudança de mentalidade, afim de que possam corres-
ponder à graça divina e sejam fatores de transformação na sociedade em que vivem. Nesse
sentido, o mundo, marcado pela segmentação e divisão entre os povos, pode ser transfor-
mado através da práxis cristã, realizada com amor sincero. É próprio desta práxis destruir
barreiras (Ef 2,14), estabelecendo unidade, com os de dentro e os de fora da comunidade.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 281


A grande exortação de Paulo é para que seus ouvintes assemelhem-se a seu Senhor,
por meio de uma doação total de si. Nisto parece consistir o apelo por um sacrifício pessoal,
literalmente um logikén latreyan, ou seja, um culto eloquente, razoável ou lógico. Portanto,
o culto agradável a Deus é aquele que engaja a integralidade da vida humana. Outra exor-
tação essencial é que pede uma renovação de mentalidade, por meio da qual o seguidor
de Cristo consegue discernir a vontade de Deus.
Segundo Cranfield, Paulo anima seus ouvintes a abrirem-se inteiramente ao amor sin-
cero, real e sem fingimento, o qual pode culminar na afeição íntima, peculiar entre irmãos,
mas que pode ser testemunhada também na comunidade de fé2. Essa abertura ao amor
exige do cristão um movimento duplo que se dá no comprometimento radical com o bem
e no rompimento integral com o mal, uma vez que, em Cristo, é nova criatura (1Cor 5,17).
Por outro lado, Karris e Bergant reconhecem três exortações em Rm 1-2. Primeiramente,
o apóstolo aponta o oferecimento em sacrifício vivo, por meio do qual o cristão doa-se em prol
do bem comum. A segunda exortação sugere “conversão cultural”. Por fim, se faz necessária
a abertura para a manifestação de Deus e a transformação pelo Espírito3. A colaboração
de cada um é essencial para que a transformação ocorra; e esta, por sua vez, necessita da
abertura ao Espírito direcionador. Por sua vez, Bruce aponta que esse sacrifício vivo não se
realiza nas vidas de outrem, como os antigos sacrifícios de animais (Hb 13,15s; 1Pd 2,5),
mas como um culto espiritual oferecido pela mente e pelo coração, portanto, é pessoal4.
Mais que ato ritualístico, esse sacrifício vivo significa o esforço cotidiano do cristão
para fazer o que é correto, vencer o mal com o bem, dando um sentido cultual à própria
vida5. Implica em não nos conformarmos com o mundo passageiro e imperfeito (1Cor 7,31),
mas colaborar na construção, já agora, do Reino que está por vir (1Cor 10,11). Em conse-
quência, a existência humana deve ser vivida para Deus, por meio de uma transformação
(metamorfose) interior, com a renovação da mente humana, realizada pelo Espírito de Deus
que habita no cristão. Somente com essa renovação de mentalidade, o ser humano será
capaz de discernir bem a vontade divina (Rm 12,2).
Nesse sentido, a vida em comunidade revela-se fundamental para a práxis cristã, pois
o comprometimento pessoal em busca de mudança, se dá na comunidade de fé. Guiados
pelo Espírito, os cristãos devem abandonar-se inteiramente em Deus, oferecendo-se em
sacrifício em prol do bem comum.
Por isso a criação anseia a manifestação dos filhos de Deus (cf. Rm 8,19). O mundo
necessita de muitas novas criaturas para ser transformado, através da evangelização, da

2 Cf. CRANFIELD, C.E.B. Comentário de Romanos versículo por versículo. São Paulo: Vida Nova, 2005, p 280.
3 Cf. KARRIS, Robert J.; BERGANT, Dianne (Orgs.). Comentário Bíblico. Vol 3. São Paulo: Loyola, 2014, p. 187.
4 Cf. BRUCE, F.F. Romanos: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 182. (Série Cultura Bíblica).
5 Cf. BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. (Orgs.) Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo
Testamento e Artigos Sistemáticos. São Paulo: Paulus, 2018, p. 579.

282 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


humildade, da caridade e da esperança. Ser alcançado pela graça de Deus implica respon-
sabilidades. Uma vez renovado pelo Espírito, o cristão deve ter uma vida voltada para os
desígnios divinos, tornando-se instrumento de transformação do mundo e de implementação
do Reino de Deus na sociedade em que vive.

FORMAMOS UM SÓ CORPO EM CRISTO

O segundo momento de nossa pesquisa consiste em analisar Rm 12,3-13 a partir do


tema da unidade do Corpo de Cristo, que é a Igreja. Portanto, apresentaremos o papel rele-
vante do cristão para sustentar a unidade da comunidade de fé. De modo enfático, o autor
trabalha, internamente, a questão da fraternidade.
A princípio, o Paulo empenha-se em erradicar um problema da comunidade perceptível
no texto: alguns acreditam-se melhores que outros e possuem um conceito mais elevado
de si (cf. Rm 12,3). Portanto, a unidade se mostra fragilizada por causa de competições e
rivalidades dentro da comunidade. A fim de reconduzi-la ao espírito de unidade, Paulo recor-
da a necessidade da justa estima, da verdade sobre si e sobre o outro, princípio facilitador
de fraternidade.
Essa vida comum é o lugar de convívio do diferente. Na comunidade cristã coexistem
homens e mulheres, advindos de diversos lugares, ambientes, culturas etc. Todos são do-
tados por Deus de dons espirituais para serem utilizados em favor do bem comum. Para
expressar o relevante tema da unidade, Paulo se serve da metáfora do corpo humano, des-
tacada também em 1Cor 12,12-27, no qual cada membro tem sua função a desempenhar.
Assim como em um corpo sadio, os membros devem funcionar em harmonia para o bem do
todo. Na igreja, cada um deve realizar sua missão, pondo seus dons em favor dos demais.
Barbaglio percebe em Rm 12,3-8, uma primeira aplicação concreta do leitmotiv6 dos
versículos anteriores (1-2)7. Ao que parece, Paulo supõe haver autoexaltações e pretensões
de superioridade na comunidade romana, assim como na igreja de Corinto (1Cor 12-14).
Contudo, como na comunidade de Corinto, Paulo mostra-se contrário a tal atitude, uma vez
que põe em risco a unidade do corpo. Ele esclarece que cada indivíduo recebe seu dom e
carisma, porém, deve refletir sobre suas limitações e ponderações, esta reflexão deve ser feita
sempre à luz da fé (cf. Rm 12,3). A graça é repartida entre todos de diversas formas, a fim de
que se complementem entre si e, unidos na caridade fraterna, vivam como um único corpo.

6 Leitmotiv significa “motivo condutor”. Consiste em um tema que aparece constantemente no decorrer de uma obra com o objetivo de
associá-lo a um personagem, objeto ou ideia.
7 Cf. BARBAGLIO, Giuseppe. As Cartas de Paulo II. São Paulo: Loyola, 2017, p. 306. (Coleção Bíblica Loyola – 5).

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 283


Essa fraternidade é testemunhada através do serviço aos demais, pois cada um é
chamado a colocar seus próprios dons em benefício de todos. Uma vez que esses dons são
dádivas divinas, devem estar orientados para o bem da comunidade. Portanto, inspirados
pela força do Espírito, os cristãos devem consagrar plenamente seu serviço, seja qual ele
for, ao bem comum8. Esses dons pessoais assumem um caráter de interdependência que
ressalta a complementariedade entre os membros do Corpo de Cristo. Desse modo, o ser-
viço ao Senhor e aos irmãos torna-se um elemento essencial da igreja, sua razão de ser.
Nesse sentido, Cranfield nos recorda um dado essencial ensinado por Jesus nos evan-
gelhos: o amor ao próximo. Esse compromisso radical do cristianismo nos leva a reconhecer
o Filho do Homem presente no outro, fundamentando a urgente necessidade de amar a
todos9. Reconhecer a presença de Jesus no irmão implica em um compromisso sincero com
o outro, superando as divisões, injustiças, rivalidades etc. É necessário honrá-lo mais do
que a mim mesmo e sem fingimento. Reconhecer Jesus ao olhar o outro é um desafio que
se impõe constantemente ao cristão.
Uma perspectiva semelhante pode ser encontrada nas argumentações de Reynier,
para quem a “estima recíproca” de Paulo é um gesto concreto do amor cristão10. O outro
torna-se lugar de encontro com o Cristo, sinal e manifestação de sua presença. Portanto, o
Cristo que se faz presente no outro fundamenta essa relação de estima e de amor mútuo.
Contudo, o versículo 9 indica que o amor não pode ser dado de qualquer forma.
Antes, exige um posicionamento radical que fundamenta-se na sinceridade e na autenticida-
de. O apóstolo requer de seus ouvintes um compromisso radical de amor franco e honesto,
não apenas aparente. Barbaglio relaciona Rm 12,9 com 2Cor 6,6 que fala de um “amor
sem fingimento”. Segundo o autor, o adjetivo, cujo sentido literal significa “sem hipocrisia”,
expressa a genuinidade e autenticidade do amor. Uma fórmula sintética do clássico princípio
ético geral cristão11.
Em sua análise, Barbaglio afirma que o mesmo tema subjaz em 1Ts 4,9. Tendo sido
unidos numa mesma fé, o fator fraterno (= filadelfia) deve caracterizar o amor entre os cris-
tãos12. Comprometer-se com o evangelho exige uma nova forma de relacionamento com
Deus e com os outros. Portanto, é necessário abrir-se à lógica da reciprocidade, elemento
essencial para a fraternidade exigida do cristão.
Em Rm 12,11-12 vemos o apelo à diligência e ao serviço ao Senhor. Para Cranfield é
possível que Paulo tivesse em mente a chama viva dada pela ação do Espírito de Deus. A pre-
sença do Espírito encaminha os cristãos no exercício de sua missão, na superação da

8 Cf. REYNIER, Chantal. Para ler a Carta aos Romanos. São Paulo: Loyola, 2015, p. 122.
9 Cf. CRANFIELD, 2005, p. 281.
10 Cf. REYNIER, 2015, p. 124.
11 Cf. BARBAGLIO, 2014, p. 314.
12 Cf. BARBAGLIO, loc. cit.

284 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


preguiça e na busca aplicada pelo amor mútuo13. A diligência se dá no esforço contínuo de
realizar a vontade divina, no serviço ao Senhor. Tudo isso deve estar fundamentado em três
“virtudes/atitudes” essenciais para o cristão: esperança, perseverança e oração.
Desse modo, os cristãos devem permanecer perseverantes em meio às tribulações e
aflições. Elas provém da resistência do mundo a Cristo. Uma vez que foi rejeitado, os seus
seguidores também o serão, mas devem permanecer firmes, esperando a glória vindoura
(cf. Rm 8,18). Porém, essa perseverança não é fruto de esforço pessoal, mas da graça de
Deus; para que, sendo confiantes, os cristãos estejam preparados para os momentos de
tentação e de desânimo. Nesse sentido, Barbaglio alerta:

A fé abriu horizontes positivos para o futuro: há razão para a alegria. Mas não se
confunda a esperança cristã com um otimismo fácil. O caminho está marcado por
adversidades de todo tipo. Impõe-se, pois, a necessidade de não se dobrar os
joelhos, de resistir com vigor. Além do mais, o Pai não abandona os seus filhos:
que se suplique a ele com assiduidade, que ele não faltará com sua ajuda14.

O tema da unidade do corpo de Cristo se encerra em Rm 12,13, o qual convoca os


cristãos a tomarem parte nas necessidades dos santos, ou seja, os demais irmãos na fé.
Como membros de um único corpo, os seguidores de Jesus devem se ajudar mutuamente,
a fim de que o evangelho seja anunciado com maior intensidade. Socorrer as necessidades
dos irmãos revela-se uma obra urgente na comunidade e proporciona um vínculo mais só-
lido. No fundo, Paulo exorta seus leitores a manterem-se fieis à solidariedade, essencial no
cristianismo nascente, cercado de pobres. No entanto, ser solidário apenas com os membros
do mesmo grupo não é suficiente (cf. Mt 5,46). É necessário abrir-se aos demais. Socorrer
a todos, mesmo aos perseguidores.

O CORAÇÃO CURADO E CONVERTIDO NO AMOR AOS INIMIGOS E PER-


SEGUIDORES

No terceiro momento de nossa pesquisa trataremos do caráter universal do amor ao


qual os cristãos são chamados a viver. O seguidor de Jesus deve transpor os muros do cris-
tianismo e amar a todos, mesmo aqueles que o perseguem. Nesse sentido, a lógica cristã
exige a superação da lógica do Talião (cf. Ex 21, 23-24; Lv 24,19-20; Dt 19,21), baseada
na retribuição proporcional do mal experimentado. Antes, o cristão deve oferecer a outra
face, não pagar o mal com o mal, mas ser canal do amor divino a todos. Inspirados nessa
universalização do amor, proporemos atualizações que nos incentivem a vencer a lógica do
mais forte e a prática da vingança.

13 Cf. CRANFIELD, 2005, p. 281.


14 BARBAGLIO, 2014, p. 315.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 285


Para isso, estruturamos esta parte em dois momentos. De início voltaremos ao impe-
rativo primordial do amor aos inimigos presente em Mt 5,44 e paralelos. Posteriormente,
indicaremos o apelo de Jesus para a superação da lógica da vingança ao exortar seus se-
guidores a não pagarem o mal com o mal, ressaltando os efeitos que o amor aos inimigos
e perseguidores podem causar em quem assume tal práxis.

Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem

Sabemos que é característico do ser humano sua capacidade relacional e sua tendência
a estabelecer comunidade. Contudo, não é raro encontrar grupos e ideologias empenhados
em distanciar e dividir as pessoas. Geralmente, essa relação se dá à semelhança de círculos
concêntricos, os mais queridos ocupam o centro mais próximo da pessoa humana, enquanto
os mais distantes ocupam as regiões periféricas desse círculo. Nessa dinâmica é possível
categorizar em irmãos, amigos, colegas, conhecidos, desconhecidos e, até mesmo, inimigos.
Porém, o desejo de Jesus para seus seguidores é que transponham os limites da empa-
tia e comprometam-se com o amor a todos, superando os meros ciclos de amizades. Nessa
perspectiva Jesus propõe uma novidade radical a seus seguidores, a fim de que cheguem
à plenitude do amor e à semelhança radical com o Mestre, cujo o amor o fez perdoar seus
perseguidores (cf. Lc 23,34).
A exigência de Jesus por um amor autêntico ressoa em vários trechos dos evange-
lhos. Porém, nos deteremos em um bastante significativo, uma vez que trata das releituras
de Jesus sobre as leis de Israel. Nos referimos ao texto de Mt 5,20-48, no qual o Mestre
apresenta uma nova compreensão de justiça, baseada em seus ensinamentos. Mateus
reconhece Jesus não apenas como um intérprete da Torah, mas como aquele que lhe dá
pleno sentido. Isso é notório nas seis reinterpretações que ele faz dos preceitos mosaicos.
Embora o texto seja bem valioso, nos deteremos naquilo que influencia diretamente
nossa temática, tratada a partir de Mt 5,38. Inicialmente, Jesus faz uma releitura acerca do
que foi dito: “olho por olho, dente por dente”, referência clara à Lei do Talião15. Trata-se de
uma sentença sapiencial que encoraja os discípulos a não revidarem a ofensa recebida e
não cederem à vingança. A superação da lógica da vingança se dá no oferecer a outra face.
Jesus convoca-os ainda a orar pelos que os perseguem.
Parece claro que o pensamento paulino sobre o amor aos adversários, está direta-
mente relacionado com o imperativo cristão de amar os inimigos (Mt 5,44). O mestre dá
a conhecer a seus seguidores aquilo que os torna “filhos do Pai dos Céus”: fazer o bem a
justos e ímpios (Mt 5,45).

15 Recebe este nome a Lei expressa em Ex 21,23-24; Lv 24,19-20; Dt 19,21 e que estabelece uma retribuição proporcional ao mal que
alguém sofreu. No fundo, o objetivo dessa lei é proibir uma vingança desproporcional, muito comum no Antigo Oriente.

286 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Portanto, Jesus encoraja seus seguidores a irem além. Convoca-os a amarem não
apenas o semelhante, mas o diferente, aquele que não tem as mesmas práticas, os mesmos
objetivos etc. O ápice é certamente o amor pelos inimigos e a oração pelos perseguidores.
Tal práxis não surge do nada, mas se fundamenta no próprio Deus que ama e concede
seus dons a todos.
No fundo, o imperativo do amor aos adversários surge como um meio de vencer o ini-
migo através do amor, oferecer aquilo que ele mesmo fora incapaz de dar. Contudo, Jesus
não se comporta de forma romântica, pensando ser algo fácil. Essa tarefa é de tal modo
árdua que garante uma recompensa diante de Deus (Mt 5,56; Lc 6,35). Enquanto amar os
que nos amam parece fácil, amar os inimigos é bem exigente, mas faz parte da vida cristã.
O cristianismo nascente, tão marcado pela perseguição, precisou encarnar bem este
imperativo para não ser vencido pelo desejo de vingança. Ser minoria sempre foi um desafio,
uma dura realidade. Muitos foram perseguidos, presos e mortos, mas, inspirados em Jesus,
deveriam permanecer firmes, ofertando a outra face. Desse modo, o mandamento do amor
aos inimigos nutre a caminhada cristã, a fim de que os cristãos não sejam vencidos pelo
ódio, mas deem testemunho do amor radical ao qual Cristo os chamou.
Esse ensinamento chegou às comunidades cristãs como combustível de uma esperança
essencial, uma vez que seu exercício gera uma recompensa diante de Deus (cf. Mt 5,46).
Diferentemente dos pagãos que agem a partir do vínculo estabelecido pela empatia, o cris-
tão deve radicalizar esse amor tornando-o universal. Nisto consiste a perfeição indicada por
Mateus (cf. Mt 5,48). Contudo, não se trata de perfeição moral ou impecabilidade, mas de
disponibilidade em amar a todos, mesmo que sejam inimigos e perseguidores. Portanto, esse
imperativo perpassa a comunidade cristã dos primeiros séculos, muitas vezes perseguida e
maltratada, mas que soube superar a lógica da vingança por meio do martírio.

A ninguém pagueis o mal com o mal

O mandamento supracitado (Mt 5,44) tornou-se práxis essencial e paradigmática para


os cristãos da igreja nascente. Muitos foram aqueles que renunciaram revidar com violência
às perseguições sofridas. É o caso de Pedro e João (cf. At 4,1-31), de Estevão (cf. At 7), de
Paulo (cf. 2Cor 11,21-33) e de tantos outros mártires. A exortação de Jesus para que seus
seguidores não se pautassem pelas retaliações permitidas na Lei; é de tal modo significati-
va que encontrou releituras diversas nos textos cristãos16. Também o Apóstolo dos gentios
reinterpretou esse apelo primordial de Jesus.
Uma dessas reinterpretações pode ser vista em Rm 12. A perícope, iniciada com o
encorajamento a um culto espiritual (Rm 12,1-2), em cujo centro está a exortação ao amor

16 Cf. Mt 7,12; Lc 6,27.35; Rm 13,10; 1Pd 3,15 etc.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 287


aos irmãos na comunidade cristã (Rm 12,3-13), alcança seu ápice no encorajamento ao
amor universal (Rm 12,14-21). Tal amor exige a superação da lógica da vingança e convoca
os cristãos a uma atitude de benevolência para com todos, inclusive os inimigos.
Primeiramente o Apóstolo propõe uma ordem de bênção. Antes de mais nada, o se-
guidor de Jesus deve ser caminho de bênção para todos. De forma ímpar, Paulo sugere a
superação de uma mentalidade que imperava há tempos, segundo a qual o inimigo poderia
ser amaldiçoado (cf. Gn 12,3 e Mt 5,43). Podemos dizer que essa superação é o tema central
do terceiro momento de Rm 12, podendo ser observada nos versículos 17, 19 e 21. Em sín-
tese, o grande apelo de Paulo é que se vença o mal pelo bem.
Essa superação fundamenta-se no imperativo do amor aos inimigos, indicado por
Jesus (Mt 5,44; Lc 6,27). Contudo, Paulo deixa mais claro em que consiste essa superação:
“A ninguém pagueis o mal com o mal” (Rm 12,17). Essa ordem tem relação direta com a
razão de ser do cristão. O seguidor de Jesus não deve orientar-se pela prática do mal, mas
abrir-se constantemente ao bem de todos, como seu mestre. Portanto, não faz parte da
natureza cristã o exercício do mal ou da vingança. Na verdade, Paulo recorda aos cristãos
a estratégia de vencer o mal, não pela passividade ou indiferença, mas por seu oposto, ou
seja, pelo amor.
Por mais que a justiça seja um elemento essencial dos Textos Sagrados, não cabe ao
cristão forçar seu acontecimento. Antes, deve evitar ações do tipo para não cometer ele mes-
mo uma injustiça. Por isso, inspirado em textos do Antigo Testamento (Lv 19,18; Pr 20,22),
Paulo recorre ao tema da ira de Deus, segundo o qual Deus mesmo estabelecerá a sua
justiça no momento oportuno. Portanto, ao fiel fica vetado qualquer prática vingativa.
Sobre Rm 12,19, Bruce observa:

Esta forma do texto, que se acha também em Hebreus 10,30, aparece nos
targuns aramaicos e provavelmente era de uso corrente numa versão grega
não mais existente. O interesse da citação no presente contexto é que, desde
que a vingança e a recompensa são uma prerrogativa de Deus, devem ser
deixadas com Ele. Assim, na comunidade de Qumran a vingança particular era
proibida com base em que, segundo Naum 1,2, somente Deus “toma vingança
contra os seus adversários, e reserva indignação para os seus inimigos”17.

Portanto, diante de perseguições e inimizades, o cristão deve inspirar-se na sabedo-


ria de Israel e não revidar. Paulo, servindo-se do livro de Provérbios (Pr 25,21-22) indica
qual deve ser o proceder do cristão. Agir do modo oposto, retribuindo o mal com o bem, é
uma forma sensata e eficaz de vencer a maldade e os desejos do inimigo. Na linguagem
sapiencial, isso significa acumular brasas sobre a cabeça do adversário (Pr 25,22). Sobre
esta expressão, Cranfield recorda algumas compreensões antigas:

17 BRUCE, 2011, p. 186.

288 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Orígenes, Pelágio e Agostinho, como também, a maioria dos comentadores
posteriores preferem considerar que “os carvões de fogo” significam as pon-
tadas abrasadoras da vergonha e contrição (...), prestando assistência à ne-
cessidade de nosso inimigo, infligir-lhe-emos tal sentido interior de vergonha
que ou o levará à verdadeira contrição e a ser não mais inimigo, mas sim,
amigo; ou então, caso se recusar a reconciliar-se, permanecerá com ele a dor
da má consciência18.

Desse modo, as brasas seriam símbolos da vergonha e do arrependimento, instalados


no coração do inimigo. Uma vez alcançado por gestos de misericórdia e de solidariedade,
o inimigo seria levado pela bondade à vergonha e ao remorso, convertendo-se em amigo.
Assim, o cristão livrar-se-ia do inimigo da melhor forma possível: tornando-o amigo. O gesto
pode inspirar-se em um ritual egípcio, por meio do qual uma pessoa evidenciava publica-
mente seu arrependimento sustentando na cabeça uma bacia cheia de carvões em brasa.
Portanto, o cristianismo comporta uma práxis inovadora perante os perseguidores
e inimigos, segundo a qual o cristão renuncia a vingança e propõe o amor. Dar a outra
face é a melhor forma de não ser vencido pelo mal. Desse modo, o amor se mostra uma
realidade essencial não apenas na comunidade, mas também fora dela. O perdão é o ca-
minho essencial desse amor que deve tornar-se gesto concreto na solidariedade com tais
pessoas (Rm 12,21).
Esta práxis torna-se fonte de conversão tanto para o cristão quanto para o inimi-
go. O primeiro, por meio da renúncia constante à vingança, vence o mal que lhe fora infligido,
abrindo-se ao perdão e ao amor. O segundo, pela força do testemunho do primeiro. Aquele
que deveria vingar-se preferiu amar. E, qual o motivo? A sua esperança no Reino de Deus.
Desse modo, o perdão e o amor tornam-se caminhos para um coração sem rancor, curado
do desejo de vingança e liberto do mal. Se foi por meio dessas atitudes que Cristo venceu
o mundo (Jo 16,33b), também será através delas que seus seguidores o vencerão.
Certamente, os valores implicados nessa reflexão paulina são bem atuais. Atualmente
vemos um mundo marcado pela segmentação e pelo discurso de ódio. É patente na socie-
dade a fomentação de uma práxis distante do amor requerido por Jesus. Esse imperativo
cristão recorda-nos do compromisso que carregamos em face à sociedade. Não ceder às
vozes do mal tem se tornado cada vez mais difícil. No entanto, não podemos desanimar
diante da árdua missão de anunciar o amor e transformar o mundo ao nosso redor.
A intolerância e a violência da sociedade atual nos convocam a voltarmos urgentemente
ao mandamento do amor. É preocupante ver que tantos discursos ditos “religiosos” se ali-
cerçam na não aceitação do diferente ou mesmo na imposição violenta de seus princípios.
Contudo, os seguidores de Jesus precisam superar essa tentação e voltar aos princípios
básicos de seu Mestre. É ele a norma última da práxis cristã. Assemelhar-se a ele é o desafio
18 CRANFIELD, 2016, p. 285-286.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 289


que se impõe todos os dias a seus seguidores. Porém, não devemos esquecer que essa
semelhança se dá na prática do amor ao próximo: “Nisso reconhecerão que vós sois meus
discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o objetivo de compreender o papel central que o perdão e o amor possuem no


pensamento paulino, mais especificamente em Rm 12, elaboramos nossa pesquisa em três
momentos. De início, a partir de Rm 12,1-2, abordamos a práxis cristã de transformação do
mundo, cujo sentido último é exortar os seguidores de Jesus a se oferecerem em sacrifícios
vivos. Porém, não como os sacrifício de animais, mas por meio de um autêntico abandono em
Deus. Mais que ato ritualístico, esse sacrifício vivo consiste no esforço cotidiano do cristão
para fazer o que é correto, vencer o mal com o bem, dando um sentido cultual à própria vida.
Portanto, se realiza na busca incessante do bem. Dessa forma, o bem deverá ser sempre
o desejo daqueles que buscam o Reino do Deus.
No segundo momento, analisamos Rm 12,3-13 enfatizando o aspecto da unidade
do Corpo de Cristo que é a Igreja. Aqui, o Apóstolo insiste com seus interlocutores para
que mantenham a unidade eclesial, superando as rivalidades, as divisões e as autopromo-
ções. O amor torna-se então o fundamento dessa unidade e se concretiza em uma atitude
de humildade, culminando no estabelecimento da fraternidade. Paulo parece se servir da
mesma argumentação utilizada com a comunidade de Corinto (cf. 1Cor 12,14), segundo a
qual os dons de cada um devem ser utilizados para o bem comum e não para a vanglória.
Portanto, cada indivíduo deve aproveitar da melhor forma possível seu dom, colocando-o
a favor de todos. A fraternidade está presente solidamente quando enxergamos Cristo no
outro, a ponto de o amarmos com autenticidade, pois o amor a Cristo implica e culmina no
amor ao próximo.
Contudo, esse amor não deve restringir-se aos de dentro da comunidade. Por isso,
Paulo exorta seus interlocutores a um amor que supere os limites da empatia e chegue a
todos, inclusive aos inimigos e perseguidores. Esse apelo foi o norte principal de nosso
terceiro momento, o qual fora divido em dois tópicos: a) Amai os vossos inimigos e orai pe-
los que vos perseguem; b) A ninguém pagueis o mal com o mal. Nosso primeiro passo foi
reconhecer a relação existente entre o apelo paulino e o imperativo do amor aos inimigos,
estabelecido por Jesus (cf. Mt 5,44). Essa ordem mostrou-se um caminho primordial por
meio do qual o cristão vence o mal pelo bem. Desse modo, o cristão supera a Lei do Talião,
que permitia a vingança proporcional, e mergulha na Lei do amor, cujo conteúdo convida-o
ao amor e ao perdão.

290 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


O segundo passo apresentou a releitura paulina do imperativo do amor aos inimigos,
presente em Rm 12,14-21. Impulsionado pela certeza de que o encontro com Cristo nos
faz novas criaturas, Paulo anima seus interlocutores a expandirem o amor para além dos
muros da comunidade. O seguidor do Reino deve transcender suas preferências, amando
a todos. A abertura sincera a esse desafio radical do amor é fonte de cura e libertação, pois
transforma o coração a partir da lógica de Jesus e estabelece fraternidade com os de fora
da comunidade. Esse amor nega a possibilidade da lógica vingativa e requer do cristão o
compromisso radical com o bem. Assim como o Mestre, o discípulo deve estar disposto a
entregar a própria vida para não revidar. É o caso de tantos mártires que testemunharam a
força desse imperativo.
Em suma, podemos dizer que amor e perdão tornam-se dois elementos indispensá-
veis para o estabelecimento da fraternidade, dentro e fora da comunidade. Por meio deles
o cristão vence a lógica da vingança e se assemelha a Jesus Cristo. Nesse sentido, pode-
mos dizer que o verdadeiro amor se concretiza no perdão. Apesar da exigência, temos que
reconhecer nessa práxis a esperança de um mundo melhor, com menos vingança e mais
perdão. Contudo, mais que mérito, essa práxis se concretiza a partir da graça atuando em
conjunto com o esforço humano, para que um potencialize o outro.

REFERÊNCIAS
1. AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Explicação de algumas proposições da Carta aos
Romanos; Explicação da Carta aos Gálatas; Explicação Incoada da Carta aos Romanos
[tradução Agostinho Belmonte]. - São Paulo: Paulus, 2009. (Coleção Patrística – 25).

2. BARBAGLIO, Giuseppe. As Cartas de Paulo II. São Paulo: Loyola, 2017.

3. BÍBLIA: Bíblia de Jerusalém. 10. ed. São Paulo: Paulus, 2015

4. BORTOLINI, José. Como Ler a Carta aos Romanos. O Evangelho é a força de Deus que
se salva. São Paulo: Paulus, 2013.

5. BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. (Orgs.). Novo Comentário
Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e Artigos Sistemáticos. São Paulo: Paulus, 2018.

6. BRUCE, F.F.. Romanos: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2011. (Série
Cultura Bíblica).

7. CRANFIELD, C.E.B.. Comentário de Romanos versículo por versículo. São Paulo: Vida
Nova, 2005.

8. HAHN, Scott; MITCH, Curtis: A Carta de São Paulo aos Romanos: Cadernos de estudo
bíblico. Campinas: Ecclesiae, 2016.

9. REYNIER, Chantal. Para ler a Carta aos Romanos. São Paulo: Loyola, 2015.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 291


22
“ O papel das crenças religiosas
na vida social pós-moderna

Erielton de Souza Martins


PUC - Minas

‫‏‬

10.37885/201001700
RESUMO

O presente trabalho reflete sobre o papel das crenças religiosas na vida social pós-mo-
derna. A pesquisa tem objetivo de analisa as mudanças dos métodos de algumas deno-
minações religiosas para conduzir os fiéis ao bem estar tão desejado, beneficiando-os
de modo diferentes através dum processo de “encantamento” pelo qual os membros
passem a atuar de forma mais harmoniosa com sua religião e a sociedade. As ideias por
traz deste estudo contemplam de modo breve instituições cristãs, islâmica e hinduísta.
Demonstrando suas forças de adaptação e atuação num contexto social e plural do
cotidiano. Isto ocorre não por estas crenças serem “o ópio do povo”, mas por aponta-
rem o “norte” capaz de direcionar a vida moral, ética e espiritual dos seus membros a
laços condizentes com o transcendente propagados pelas mesmas, procurando assim
dar um sentido novo aos anteriormente “perdidos”, através da “influência” da fé em sua
vida social, algo por sinal ocorrido desde a antiguidade porém com características dife-
rentes. Na contemporaneidade a história mudou, a quantidade de pessoas que aderem
uma nova fé ou vivem sem acreditar nas religiões, vem aumentando com o passar do
tempo. A religião perdeu grande parte de suas forças para o poder inebriante do consu-
mismo. E tal consumo aparece de forma estranha porem vinculada a fé em determinados
ambientes/templos/igrejas desejosos por se “atualizarem” para demarcarem seu espaço
no mundo pós-moderno. A pesquisa ocorreu através duma revisão bibliográfica e análise
de documentários que revelam as novas “faces” das instituições religiosas no poderoso
e disputado mercado da fé.

Palavras-chave: Crenças Religiosas, Vida Social, Pós-Moderna.


INTRODUÇÃO

Desde a antiguidade à “presença” de algo maior, mais forte ronda as mentes humanas
e os fazem crer num “Ser” o autor do mundo, céu, terra, mar... Ao longo dos milênios surgi-
ram estórias em diferentes povos tentando explicar a origem de tudo, vários pesquisadores
em diferentes épocas através das teorias filosóficas (cosmogonia) e científicas (cosmologia)
buscavam entender o que está oculto em torno do nascimento da vida e do universo. A re-
ligião (palavra derivada do latim relegere) significa para muitos a causa de conexão do
homem com o divino, do real ao sobrenatural, da criatura com o seu Criador. Para Bauman
(1998, p. 207) recorrendo ao conceito de Jeffrey C. Alexader a religião é a atividade que
nos permite a transcendência a partir do contato com o mundo numênico (além de nós
próprios) este é indubitavelmente um mundo de imaginação, projetado na sensibilidade do
espírito inconsciente. Segundo Greschat (2005, p. 17) a religião é um labirinto pelo qual
muitos podem se perder caso não tenham um fio para se orientar. Neste ponto de vista ela
pode ser a “bussola” apontando o “norte”, para o “místico” ajudando o ser humano na sua
compreensão do mundo ou dependendo do detentor temporário desse objeto ela pode ser
a causa da perdição, de atitudes dúbias contrarias a causa pela qual foi criada. Destarte
à necessidade das Ciências da Religião neste período contemporâneo para demostrar de
modo imparcial os conteúdos éticos e morais inseridos nas religiões, avaliando-as se são
corretamente entendidas ou não, porem não atestando a verdade ou falsidade das mesmas
(GRESCHAT, 2005, p. 34). Até porque a “verdade” não é um objeto tomado como posse
para si, e os cientistas da religião possuem uma convicção que os impendi de se compor-
tarem como mestres prepotentes ou incansáveis donos da verdade (GRESCHAT, 2005, p.
161). A Ciência da Religião desta forma com a sua estrutura multidisciplinar interage com
varias ciências auxiliares, realizando um inventário abrangente e comparativo de fatos reais
do mundo religioso e suas interações com outras áreas da vida, a sua importância perpas-
sa o campo acadêmico ou religioso se embrenhando na esfera pública e agindo de forma
impactante na sociedade (USARKIS, 2006, p. 113-127).

A pós-modernidade e os Novos Movimentos Religiosos

Lyotard (2002, p. xvi) ver no efeito do progresso a pós-modernidade surgir com a in-
credulidade presente sobre às metas-narrativas tendo agora cada um suas validades prag-
máticas sui generis. Este termo segundo Akbar Ahmed (1992, p. 21): “representa a era da
ambiguidade e ironia; ela avisam-nos de que devemos permanecer circunspectos quando
o utilizamos”. Porém num sentido religioso enquanto o modelo antigo de “experiência máxi-
ma costumava reconciliar o fiel com uma vida de miséria e privação, a versão pós-moderna

294 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


reconcilia seus seguidores com uma vida organizada em torno do dever de um consumo
ávido e permanente, embora nunca definidamente satisfatório” (BAUMAN, 1998, p. 224). Nos
“novos” templos religiosos são propagadas mudanças de atitude, uma ação individual voltada
para complementar o hedonismo onde varias confissões religiosas colocam a disposição do
seu “fiel” inúmeras oportunidades de escolhas (objetos, orações, bênçãos...) para “comple-
mentar” a vida individual e social, rumo ao caminho da prosperidade. Isto é o que Lain (2009,
p. 38-39) denomina de construção religiosa da subjetividade, quando as praticas religiosas
tornam-se instrumentos do individuo para interpretar suas necessidades pessoais. E se por
acaso uma não oferece o necessário é facultativo utilizar o ‘trânsito religioso’ uma vez que
“existem tantas variedades de ‘experiência religiosa’ quantas possibilidades de mediação
entre a produção de significados simbólicos da ordem da experiência com maneiras dife-
rentes e realidades diferentes em que se constroem essas experiências”. (GEERTZ, 2001,
apud CAMURÇA, 2008, p. 82). As expressões religiosas atuais construíram um modelo de
religião do bem-estar físico, mental e espiritual transformando os seus espaços num local
“singular” moldado para resolução de problemas individuais, de pessoas que pensam e
atuam no modo subjetivista dentro e fora dessas instituições religiosas.
As adaptações dos Novos Movimentos Religiosos (NMR) percorrem caminhos cujo con-
traste entre o sagrado e profano se misturam quase de forma “imperceptível”. Luiz F. Pondé
(PASSOS e USARSKI, 2013, p. 172-173) denomina essas acomodações de espiritualidade
Nova Era, nestes tipos de religiões é feita a vontade do freguês, ou seja, ocorre uma recombi-
nação dos conteúdos das tradições religiosas, surgindo a superficialidade em doutrina numa
releitura da contemporaneidade. Destarte Gaarden, Hellern e Notaker (2000, p. 276-277)
denominam estas adaptações feitas pelas seitas cristãs ou não cristãs de movimentos de
“nova espiritualidade” devido à abrangência que eles abarcam, misturando ciência moderna
com antigos conhecimentos religiosos. Para “conter” esses NMR várias instituições tradi-
cionais adotam posturas diferentes, segundo Cecilia Mariz1 (PASSOS e USARSKI, 2013, p.
309) as de cunho pentecostal e carismático vão em rota de colisão, acusando-as de ser uma
religiosidade sincrética, enganadora e demoníaca, no entanto outros setores intelectualizados
das instituições cristãs reagem diferentes, focando o dialogo inter-religioso como método de
“reavivar” o cristianismo atualmente. Tal fato é notório na postura do Papa Paulo VI contida
na Declaração Nostra Aetate (1965): “A Igreja Católica nada rejeita do que nessas religiões
existe de verdadeiro e santo... embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela pró-
prio segue e propõe, todavia refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos
os homens”. Desta forma a Igreja Católica induz seus fieis a serem prudentes e darem

1 Cecília L. Mariz no artigo Instituições tradicionais e movimentos emergentes, contido no Compêndio da Ciências da Religião, destaca
no Brasil o trabalho de Silas Guerriero pela tipologia e abrangência neste assunto.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 295


testemunhos de vida e fé cristã, respeitando os valores espirituais e sócios culturais de (e)
outras denominações religiosas.

O islamismo na busca de adaptação na pós-modernidade?

O Islã surgiu por volta do século VII E.C., na Península arábica, são monoteístas ado-
radores do Deus Único e Misericordioso. Para Mattew S. Gordon (COOGAN, 2007, p.93)
hoje a comunidade islâmica presente no mundo inteiro representa uma enorme variedade
de contextos nacionais, étnicos, socioeconômicos e linguísticos. Mas apesar de toda esta
multiplicidade o islamismo ao longo dos séculos demonstra sua força e resistência ao “lutar”
contra as tendências duvidosas da (pós) modernidade, defendendo sua tradição das “novas
ondas” que surgem constantemente “forçando” as adaptações culturais e religiosas num
contexto social. Segundo Ahmed (1992, p. 301) “A reação mulçumana a pós-modernidade
é a mesma que foi há um século atrás: retirada, acompanhada de expressões apaixonadas
de fé e de ira”. No entanto no século passado foi possível observar diferentes respostas
relacionadas às novas tecnologias e ideologias no mundo islâmico (COOGAN, 2007, p.120).
Apesar da resistência é evidente que aspectos consumistas fazem parte não de toda,
mas de parte da nação mulçumana. A tecnologia conseguiu alcançar e mostrar seu fascí-
nio de diferentes formas, Ahmed (1992, p. 302) cita o exemplo da força pós–moderna ao
chegar (porem de forma contida) em uma das zonas mais isoladas do mundo mulçumanos,
na faixa semideserta de Makran. Recentemente Nasser Fares, presidente da Sociedade
Beneficente Muçulmana, responsável por administrar a Mesquita Brasil deu uma entrevista
para o repórter João Luiz Rosa, ao qual informou que está em curso um projeto piloto cujo
objetivo é ampliar a difusão da fé islâmica, sendo necessária a criação de lugares capazes
de promover cursos, fornecer livros e ter espaço para orações. “Temos planos de criar re-
vistas, TV, etc., mas tudo a seu tempo”. Este seria o passo (o papel do islamismo) na busca
por “novos fiéis”, ou seja, na pratica de reversão2 como meio de aproximar o islamismo na
vida social pós-moderna ao utilizarem as novas tecnologias de informação e comunicação
ao seu favor, algo amplamente aproveitados por cristãos ao redor do mundo.

O hinduísmo e suas adaptações contemporâneas.

O hinduísmo ao contrario do islamismo e cristianismo é uma religião que não tem um


único fundador ou profeta reconhecido universalmente pelos seus adeptos, podendo ser con-
siderada monoteísta por conta do conceito de Brahman (o Deus supremo, presente em tudo
e em todo o mundo). O hinduísmo em seu projeto de expansão para adquirir devotos ou/e
2 Expressão diferente da “conversão” usadas por cristãos, contém a ideia de que todos seres nascem sob o Islã e alguns se perdem
em determinada fase da vida, necessitando “voltar” ao estado de paz original perdido antes.

296 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


praticantes de determinados conceitos de sua crença, procurou unir e se denominar
(pelas falas de diferentes gurus) como ciência, a pesquisadora Cybelle Shattuck (2009),
partilha desta ideia ao dizer: “essa religião é compatível com a ciência moderna”. Camurça
ao mencionar sobre este apelo à logica da ciência, diz que ele vem incorporado com uma
epistemologia de caráter paracientífico utilizando recursos no campo psicológicos e de certa
apropriação da física quântica, mediantes a “estados alterados de consciência”, “padrão
energético”, “padrão vibratório”, dentre outros. Cria-se assim um papel social e religioso de
bem-estar físico e mental
para seus adeptos, e “fiéis” de outras crenças como pode ser visto mais facilmente
no cristianismo, o Frei Raimundo Cintra (1981, p. 203) em seu livro a cruz e o lótus da o
exemplo disto ao mencionar uma academia no Rio de Janeiro denominada de Nataraja,
onde ocorre uma pratica de Yoga adaptada para cristãos. O reverendo ainda menciona o
teólogo católico e Pe. R. Panikkar que como indiano afirmou: “O Hinduísmo oferece à Igreja
Católica um ponto de encontro para um aprofundamento católico do cristianismo” (CINTRA,
1981, p. 181). Eles acreditam que a partir dessas “formulas” somos capazes de levar ao
aprofundamento a espiritualidade, ou seja, a própria natureza.
Muitos gurus nesta busca por expandir suas redes de atuações e influencia na vida
das pessoas utilizam a comunidade cibernética, “lugar sagrado” onde seus seguidores po-
dem ouvir a palavra do mestre e ver a divindade a ser venerada, isto é o que Narayanan
(COOGAN, 2007, p. 149) diz ser o “ashram eletrônicos” um lugar tradicional de retiro ou
aprendizado, onde se visualiza também os websites dedicados à silaba sagrada Om3, além
das imagens de divindades. Desta forma o hinduísmo se contorce para “entrar” em diver-
sas áreas na esfera social assumindo um papel de propagador do bem espiritual, mental e
corporal na vida dos seus adeptos.

O cristianismo e suas inúmeras adaptações

O Cristianismo é uma crença monoteísta, originada na região da Galileia e se espalhou


de forma significativa pelo mundo tornando-se a detentora de mais adeptos. Existem cen-
tenas de grupos ou denominações cristãs, as principais são as Igrejas Católica, Ortodoxa
e Protestantes/Evangélicas, além desses, vários outros grupos professam a fé cristã não
da maneira tradicional como é vista nas denominações mais clássicas, mas de um modo
novo e atrativo para certo grupo. Na ótica de Gaarden, Hellern e Notaker (2000, p. 276):
“Hoje as igrejas cristãs têm de lutar não só contra a descristianização, mas também contra
uma série de diferentes tendências religiosas, entre elas algo que pode ser chamado de
esoterismo”. Algo por sinal encontrado no ramo evangélico neopentecostal, sendo a Igreja

3 Para alguns filósofos hindus este foi o primeiro som a existir, nele está presente a essência do correto conhecimento.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 297


Universal a mais conhecida, ela é alvo de criticas por conta de seus cultos serem adaptados
conforme a necessidade do fiel que pode escolher entre cultos de descarregos, terapias do
amor, correntes empresarias, dentre outros (SHULTZ, 2005, p. 157). Outros amoldamentos
existentes são feitos através das músicas tidas antes como mundanas, presentes agora
dentro de diversas igrejas, algumas mesclam vários estilos musicais (sertanejo, reggae,
rock) dentro de seus cânticos, outras exibem nas danças (axé e funk) os ritmos que “me-
xem” com a mente e o corpo dos adeptos. Algumas das novas instituições fundiram-se to-
talmente com o estilo musical, apresentando aos seus fieis algo novo fora do padrão antes
estabelecido. A ideia não é manter o status quo, mas “abrir a mente” porque o Cristo ama
a todos e se pode adora-lo em qualquer lugar e de todos os jeitos. Dentre tantas existentes
temos: a Evangélica Crash Church idealizada para levar a palavra sagrada a roqueiros e
motoqueiros, outras como a Metanóia Missões Urbanas e o Ministério Caverna do Rock
são adeptas do “sexo, drogas e rock n’rool”, sexo só depois do casamento, drogas jamais
e rock n’ rool para adorar a Cristo. A Igreja Bola de Neve conhecida pela atenção especial
aos praticantes de esportes radicais como os surfistas e skaetistas. As Igrejas Cidade de
Refugio e a Cristã Contemporânea aberta a todos e de certo modo mais atraente para o
publico LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais...) por conta
dos(as) pastores(as) se assumirem pessoas homoafetivas e casarem, não deixando de fazer
o que faziam antes, pregar a palavra. Na comunidade de White Tail no Estado americano da
Virginia os membros preferem “voltar às origens” ficando nus para escutar a Escritura, já em
Rochester no Estado de Nova York a Igreja Vitória (e no Brasil na Igreja Renascer) a ideia é
unir orações com lutas de MMA (Artes Marciais Mistas), os seus membros enxergam nessa
junção um atrativo a mais para ir ao culto, numa mistura de combate pela fé e pelo premio
ao final do duelo. Todas essas denominações religiosas prestam ao seu modo benefícios
à sociedade, muitas retiram das ruas pessoas desabrigadas, drogadas, marginadas e de-
volvem crentes responsáveis e capazes de lutar por uma sociedade mais justa, porem na
contemporaneidade a subjetividade e o consumismo continuam a “falar” mais alto e tanto as
instituições tradicionais quanto os NMR não conseguiram criar meios eficazes para atingir
os seus súditos e reverter essas individualidades hedonistas que buscam em primeiro lugar
o amor/bens próprios em vez do amor/solidariedade com o próximo.

CONCLUSÃO

As “novas” atitudes religiosas repercutem na vida social dos fieis a passos lentos, porém,
necessários a este tempo pós-moderno. Muitas dessas novas igrejas ou Novos Movimentos
Religiosos (bem como as clássicas) são restauradoras de relacionamentos familiares, suas
características particulares são o fator chave e atrativo para os membros, nestes ambientes

298 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


eles deparam com a possibilidade de se “ligarem” ao Sobrenatural através de um modo
comunitário ou individualizado. Estudar esses fatos religiosos sem ter que enquadra-los
pejorativamente em um determinado contexto é um dever para o cientista da religião que
busca apresentar através de suas pesquisas à ideia contida na frase de Ahmed (1992, p.
305): “Nem mesmo um cientista consegue expulsar Deus da existência”.

REFERÊNCIAS
1. AHMED, Akbar S. Pós-modernismo e islão. Tradução Maria José Figueiredo. Lisboa: Instituto
Piaget, 1992. (Crença e razão)

2. ARAGÃO, Gilbraz de Souza. O que é religião agora?! In MOTA, Lindomar R; SOUZA José
Carlos; OLIVEIRA, Pedro Ribeiro O. (Orgs.) Religião e cultura: memórias e perspectivas.
Belo Horizonte: PUC Minas, 2012.

3. BAUMAM, Zygmunt. Religião pós-moderna? In O mal-estar da pós-modernidade. Tradução:


Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 205-230.

4. CAMURÇA, Marcelo. Ciências Sociais e Ciências da Religião: polêmicas e interlocuções.


São Paulo: Paulinas, 2008. (Repensando a religião).

5. CINTRA, Raimundo. O lótus e a cruz: hinduísmo e cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1981.

6. COOGAN, Michael D (org.). Religiões. Tradução Graça Salles. São Paulo: Publifolha, 2007.

7. GAARDEN, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. Tradução
Isa Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 276-286

8. GRESCHAT, Hans Jürgen. O que é Ciências da Religião? Tradução Frank Usarski. São
Paulo: Paulinas, 2005. (Repensando a religião).

9. LAIN, Vanderlei (Org.). Mosaico religioso: faces do sagrado. Recife: Fundação Antônio dos
Santos Abranches, 2009.

10. LUIZ ROSA, João. A fé que se move: adesão de fiéis brasileiros ao islamismo é crescente. In
Jornal Valor. 06 fev. 2015. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/539727-a-fe-que-
-se-move-adesao-de-fieis-brasileiros-ao-islamismo-e-crescente>. Acesso em: 30 mai. 2015.

11. LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. Tradução Ricardo Corrêa Barbosa. 7.
ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

12. PAULO VI. Declaração Nostra Aetate. Roma. 28 out. 1965. Disponível em: <http://www.
vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-
-aetate_po.html >. Acesso em: 10 mai. 2015.

13. PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Orgs.) Compêndio de Ciências da Religião. São
Paulo: Paulinas, Paulus, 2013.

14. Revista histórias das religiões. São Paulo: Minuano, ano 1, v. 1, 2012.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 299


15. SCHULTZ, Adilson. Deus está presente o diabo está no meio: o protestantismo e as estrutu-
ras teológicas do imaginário religioso brasileiro. São Leopoldo: EST, 2005. (Tese de doutorado).

16. SHATTUCK, Cybelle. Hinduísmo: a relação entre o indivíduo e a verdade fundamental do cos-
mos. In Revista IHU online. Ano IX, n. 312, Out. 2009 Disponível em: <http://www.ihuonline.
unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2893&secao=312> Acesso em:
10 jun. 2015.

17. USARSKI, Frank. Constituintes da Ciência da Religião: cinco ensaios em prol de uma dis-
ciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006. (Repensando a religião).

300 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


23
“ O romance como teologia:
reflexões em diálogo com Fiódor
Dostoiévski

Lubomir Zak
Pontifícia Universidade Lateranense

Marcio Luis Fernandes


PUCPR

10.37885/201001596
RESUMO

A história da teologia do século XX atesta com clareza que os romances de Fiódor


Dostoiévski foram recebidos amplamente e positivamente por parte de numerosos teó-
logos de cada confissão cristã e é evidente que tal recepção continua a acontecer ainda
em nossos dias praticamente em cada parte do mundo. O artigo propõe uma reflexão
sobre algumas características das narrativas dostoevskianas, que atraem em particular
a atenção dos teólogos do passado e do presente, porque estimulam ou provocam de
modo fecundo o pensamento deles. Os autores pretendem colocar em evidência que
a importância de Dostoiévski para a teologia deve ser buscada não só nas profundas
análises e originais exposições dos temas religiosos em geral, mas na escolha acurada
por alguns deles e, sobretudo, no modo – em alguns casos determinado por precisas
escolhas de ordem epistemológica – com que são tratados e desenvolvidos.

Palavras-chave: Teologia e Literatura, Dostoiévski, Arte e Beleza, Narrativas.


DOSTOIÉVSKI E A TEOLOGIA - UM SÉCULO DE FECUNDO DEBATE

A relação entre o pensamento de Dostoiévski e a teologia é um tema que suscita


permanente interesse por parte dos que se ocupam da obra deste extraordinário escritor
e, em particular, naqueles interessados em investigar o nexo entre a teologia e a literatura.
1
Dentre os motivos está o fato de que na “constelação dos grandes literatos europeus o
célebre romancista russo é considerado o representante, ou mesmo, o profeta do cristia-
nismo”. 2 Dostoiévski desejava colocar no centro do seu pensamento um único e amplo
assunto que é exatamente aquele do fenômeno religioso. Segundo Romano Guardini esta
característica das narrativas e dos romances de Dostoiévski salta imediatamente aos olhos
porque efetivamente:

“Nas suas obras não se encontra uma única personagem importante ou um


acontecimento de relevo que, no seu contexto, não tenha adquirido relevância
por intermédio de uma maior ou menor intervenção do elemento religioso.
As personagens de Dostoiévski são condicionadas por forças e motivos de
ordem religiosa que vão determinar as suas verdadeiras decisões e mais do
que isso, o seu mundo como mundo, a interdependência das suas realidades
e valores e toda a estrutura em que os acontecimentos se processam têm, no
fundo, uma base religiosa” 3.

O interesse da teologia pela obra de Dostoiévski cresceu sobretudo a partir do início


do século XX, porém, não somente na Rússia, mas também na Europa, na América Latina
e em outros continentes. Os motivos desse fascínio são numerosos e relacionam-se tanto
aos aspectos metodológicos do pensamento dostoievskiano quanto aos conteúdos das suas
reflexões religiosas, apreciadas por numerosos teólogos russos e ocidentais praticamente de
cada confissão cristã. A profundidade e a originalidade narrativa dos seus romances, sem dú-
vida, explicam em parte a atenção e espaço que ele ocupou na reflexão dos teólogos. No en-
tanto, os acontecimentos trágicos, violentos e sanguinários – com implicações nacionais e
internacionais – que assolaram a Rússia e a Europa na primeira metade do século XX e que
foram por Dostoiévski de algum modo pressentidos, provocaram e convenceram os teólogos
a respeito da necessidade de uma renovação da teologia e da Igreja. Os teólogos estavam
naquele momento desejosos de instaurar um fecundo diálogo com o mundo da cultura e

1 Entre os estudos mais recentes sobre este tema deve-se assinalar os dez artigos de Vladislav A. Bačinin, filósofo, sociólogo e es-
tudioso do pensamento dostoievskiano, publicados com o título Tolstoyevsky-trip. Opyty sravniteľnoj teologii literatury [Ensaios de
teologia comparada da literatura] nos primeiros dez números (1-9) de 2013 da revista Neva de São Petersburgo. Quanto a questão
da recepção de Dostoiévski por parte da teologia esta foi tratada – limitando-nos a indicar somente as pesquisas mais recentes – nas
monografias de Maike Schult, Im Banne des Poeten: die theologische Dostoevskij-Rezeption und ihr Literaturverständnis (Göttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht, 2012), e di Emanuele Rimoli, Libertà alla prova. Commento teologico alla Leggenda del Grande Inquisitore,
Roma: ed. Miscellanea Francescana, 2015.
2 Alain Besançon, Svoboda a pravda [Liberdade e verdade], Brno: CDK, 2013, p. 81 (o volume recolhe alguns artigos, da tradução
checa, publicados na revista Commentaire).
3 Romano Guardini, O mundo religioso de Dostoiévski, São Paulo: Editorial Verbo, s/d, p. VII.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 303


encontraram na perspectiva narrativa de Dostoiévski uma chave excelente de promoção
deste encontro. Aliás, alguns célebres promotores de tal renovação, como Yves Congar,
Henri de Lubac, Hans Urs von Balthasar, Romano Guardini e outros, foram diretamente
formados em contato com a obra de Dostoiévski, encontrando nela numerosos impulsos e
iluminantes inspirações para a elaboração de suas ideais teológicas. Também no Ocidente
dialogaram com Dostoiévski alguns dos protagonistas e seguidores da chamada ‘teologia da
crise’ ou ‘dialética’ (Karl Barth, Karl Adam, Josef L. Hromádka) 4 e, até mesmo, os arautos da
‘teologia da morte de Deus” (William Hamilton) 5, bem como os representantes da ‘teologia
da libertação’ (Gustavo Gutiérrez, Clodovis e Leonardo Boff, Jon Sobrino).6
Um capítulo importante e positivo da história da acolhida da obra dostoesvskiana por
parte da teologia refere-se à recepção do romance Os irmãos Karamazov e, em particular,
a Lenda do Grande Inquisidor. Mesmo que somente poucas obras do escritor russo tenham
ficado fora do universo de interesse dos teólogos comentadores, eles consideram, de modo
unânime, propriamente este romance o ápice da sua produção, sustentando em unísono
que a Lenda representa o capolavoro, trata-se do cume mais alto em absoluto da criação
artística, filosófica e teológica de Dostoévski. Como revela um recente estudo7 que exami-
na algumas contribuições interpretativas dos teólogos protestantes, católicos e ortodoxos,
a Lenda, na sua brevidade, qualifica-se como um texto potente, provocativo e inspirador,
mas, ao mesmo tempo, enigmático ao ponto de conseguir colocar em forte contraposição
os seus próprios interpretes.

4 Cfr. Konstantin A. Machlak, V.V. Fedorov, “Vzgljad na Dostoevskogo skvoz’ prizmu teologii krizisa” [O olhar sobre Dostoiévski na ótica
da teologia da crise], Načalo 1 (1994), pp. 93-99. Sobre a influência do escritor russo em Karl Barth remeto ao ensaio de Katya Tols-
taya, “Literary Mystification: Hermeneutical Questions of the Early Dialectical Theology”, Neue Zeitschrift fur Systematische Theologie
und Religionsphilosophie 54/3 (2012), pp. 312-331 e, sobretudo a monografia Idem, Kaleidoscope: F.M. Dostoevsky and the Early
Dialectical Theology, Leiden-Boston: Brill, 2013, pp. 177-344.
5 Cfr. Rowan Williams, Dostoevsky: Language, Faith and Fiction, London: Continuum, 2008, pp. 2-4.
6 Os tópicos principais evidenciados por estes autores referem-se de um lado à Lenda do Grande Inquisidor e ao famoso trecho do livro
o Idiota no qual Dostoiéski cunha a célebre frase: a beleza salvará o mundo. Conforme comenta Leonardo Boff: “Dostoiéski observa,
nos Irmãos Karamazov, que um rosto é belo quando você percebe que nele litigam Deus e o Diabo entorno do bem e do mal. Quando
percebe que o bem venceu, irrompe a beleza expressiva, suave, natural e irradiante. Qual beleza é maior? A do rosto frio de uma top-
-model ou a do rosto enrugado e cheio de irradiação da Irmã Dulce de Salvador, Bahia, ou a da Madre Tereza de Calcutá? A beleza,
característica transcendental, se revela como irradiação do ser. Nas duas Irmãs, a irradiação é manifesta, na top-model existe mas é
esmaecida” (https://leonardoboff.wordpress.com/2014/04/27/a-beleza-salvara-o-mundo-dostoiewski-nos-ensina-como). Ver também os
comentários de Clodovis Boff sobre a beleza no livro sobre o Sentido. Para um aprofundamento do tema seria oportuno estabelecer
ainda uma comparação entre a novela Todas las sangres do intelectual e escritor peruano José Maria Arguedas a quem Gustavo Gu-
tiérrez dedica o livro Teología de la liberación: Perspectivas e o texto do Grande Inquisidor de Dostoiéski. Na novela temos a presença
do sacerdote que aparece com a doutrina tradicional da onipotência divina e o sacristão que se contrapõe ao sacerdote questionando a
sua falta de sensibilidade frente as situações de opressão como aparece neste trecho: “¿Había Dios en el pecho de los que rompieron
el cuerpo del inocente maestro Bellido? ¿Dios está en el cuerpo de los ingenieros que están matando ‘La Esmeralda’? ¿De señor autori-
dade, que quitó a sus dueños ese maizal donde jugaba la Virgen con su Hijito, cada cosecha? No me hagas llorar, padrecito. Yo también
como muerto ando. Don Demetrio (el índio) tiene Dios, en la kurku (la jorobada que fue violada por don Bruno) está Dios, cantando; en
don Bruno pelea Dios con el demonio; para mí no hay consuelo, de nadie.” (José Maria Arguedas, Todas las sangres, Lima: Horizonte,
1987, p. 413). Segundo Gutiérrez, Arguedas ao descrever a dor cotidiana chamará de Deus libertador, aquele que o sacristão mestiço
no diálogo acima, declara ausente onde existe injustiça e opressão. A densidade humana que os seus personagens expressam “é uma
interpretação ineludível de todo o falar de Deus” (Gustavo Gutiérrez, Densidade humana, São Paulo: Loyola, 2008, p. 48).
7 Cfr. Rimoli, Libertà alla prova, em particular as páginas 33-154.

304 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Pode-se pensar, por exemplo, na leitura proposta por Guardini que, distanciando-se
dos outros estudiosos, sente-se surpreendentemente próximo ao Grande Inquisidor, intuin-
do paradoxalmente a razoabilidade da perspectiva do velho cardeal diante da pessoa e do
comportamento de Cristo8.
Dessa forma, aqui não se pretende examinar esta perspectiva de Guardini e nem mesmo
outras perspectivas de aproximação à obra dostoevskiana. Queremos, ao contrário, propor
uma reflexão sobre os aspectos do pensamento do escritor russo de indubitável valor e que
exercem grande fascínio para a teologia.

PROVOCAÇÕES DOS ROMANCES DE DOSTOIEVSKI À TEOLOGIA

O primeiro aspecto consiste na escolha de se ocupar dos temas religiosos no seu intimo
nexo com as histórias pessoais ou coletivas dos protagonistas dos seus romances, colocando
em evidência a relação entre a verdade antropológica e aquela religiosa. No primeiro romance de
Dostoévski intitulado Gente pobre, narrativa elaborada na forma de uma troca epistolar, pode-se
encontrar muitos exemplos deste entrelaçamento da questão antropológica e religiosa, tal como
transparece em uma das cartas na qual o funcionário de uma repartição pública de Petersburgo
compartilha com a sua vizinha Várienka –uma pobre jovem orfã – os pequenos gestos cotidianos:

“E se é para falar tudo, pois saiba que fiquei com o coração repleto de alegria
quando vi quão bem falou de mim em sua carta e os elogios que dedicou aos
meus sentimentos. Não é por orgulho que digo isso, mas porque vejo como
gosta de mim, ao se preocupar tanto com o meu coração! (…) Passei por
tanta coisa hoje, e o peso que suportei na alma, numa única manhã, outro
não suportaria num ano inteiro. Eis como tudo aconteceu: sai de manhã bem
cedinho para apanhá-lo em casa e ainda poder chegar a tempo no serviço.
Chovia tanto hoje, era tanta lama! Eu, minha estrelinha, agasalhei-me bem
com o capote e fui andando, o tempo todo pensando: ‘Senhor, dizia comigo,
perdoe os meus pecados e fazei com que se cumpram os meus desejos’.
Passei perto da igreja de skoi, fiz o sinal da cruz e arrependi-me de todos os
meus pecados, mas me lembrei de que era indigno de querer me entender
com o Senhor Nosso Deus. Fiquei ensimesmado, sem a menor vontade de
olhar para nada; e fui andando assim, sem atentar no caminho” 9.

A teologia acadêmica do tempo, seja aquela russa-ortodoxa quanto aquela católica (am-
bas no estilo da manualística), não contemplava tal aproximação, excluindo completamente
8 Cfr. Guardini, Dostoiévski, pp. 125-135, aqui em particular p. 130. O teólogo italo-alemão chega a afirmar: “Não é esta, porém, a relação
que o Cristo do Grande Inquisidor tem para com o mundo. Não está ligado por qualquer relação de essência ao Pai Criador. Não é o
Verbo autêntico no qual o mundo foi criado e por cuja encarnação este deverá ser transformado e renascer. Este Cristo não possui
aquela relação sagrada de amor para com o mundo real que vai purificá-lo e renová-lo. Este Cristo é apenas movido pela compaixão
que o mundo lhe inspira. É um Cristo isolado, um Cristo com existência própria. Não é uma relação entre o mundo e o Pai. Não ama o
mundo como ele é e não vem verdadeiramente para o reconduzir. Não é o enviado nem o libertador. Tão-pouco é o medianeiro entre o
verdadeiro Pai do Céu e o verdadeiro homem. Não se encontra de facto numa posição definida”, op. cit., pp. 130-131. Para uma apre-
sentação sobre a interpretação feita por Guardini a respeito de Dostoiévski remetemos a obra de Rimoli, Libertà alla prova, pp. 63-76.
9 Cfr. F. Dostoiévski, Gente pobre, São Paulo: Editora 34, 2011, pp. 117-118.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 305


qualquer referência à dimensão histórico-existencial do conhecimento e do ensino da verdade
de fé. No trecho acima vê-se como Dostoiévski – tocado pelos dramas existenciais dos seus
contemporâneos – coloca na boca dos seus personagens a paixão pelo mistério de Deus e
as perguntas sobre os problemas da vida concreta. Toda a perspectiva colocada na exten-
são do diálogo desta novela proposta pelo autor russo gira em torno do convite para que o
ser humano possa sair de si, porque a redenção dele está exatamente neste movimento de
saída. O personagem mesmo ensimesmado vai andando sem atentar para o caminho, mas
na sequência seu olhar não poderá ficar indiferente. Ele anda pelos caminhos do mundo –
como diria o filósofo Rozenzwieg – para evitar a alienação e passa a compreender que deve
estar diante de Deus, dos outros e consigo para acolher a redenção. Em Gente pobre fica
visível a desproporção entre a miséria exterior enfrentada pelos personagens e a riqueza
que brota do coração e da interioridade na medida em que cada um dos atores faz o êxodo
de si para contemplar e compadecer-se do destino do outro. Dostoiévski, muito antes da
famosa ‘virada antropológica’ posta em ação por Karl Rahner, demonstra que uma reflexão
feita no interior de uma narrativa global – que faz referência ao contexto vital e existencial
dos personagens descritos e às suas respectivas experiências de vida e de fé tanto positivas
quanto negativas – consegue evidenciar com maior nitidez a grande complexidade dos temas
religiosos. Por sua parte, os manuais de teologia da época corriam o risco de provocar o
achatamento ou embotamento da discussão sobre os temas religiosos – sem colher o seu
núcleo veritativo - privando-os exatamente do seu humus vital.
É a este aspecto do teologar que parece fazer alusão, em 1906, o jovem Florenskij
quando na sua critica à manualística russa, anota:

“(...) é necessário abandonar o absurdo hábito de iniciar a pesquisa a partir de po-


sições dogmatizantes. E não basta dizer que estas posições não são necessárias;
já que, de um modo ou de outro, não podem ser demonstradas – entendendo a
palavra demonstrar no sentido mais amplo – elas aparecem absolutamente incom-
preensíveis, enquanto são constituídas por termos que colocados ao interno do
universo daquela determinada composição, não possuem algum conteúdo real.
Antes de falar com qualquer pessoa é necessário não só estabelecer os termos,
mas explicá-los. Nesta direção, portanto, explicar significa preencher os termos de
um conteúdo vivo e concreto, fazer referência à experiência vivida do interlocutor
ou ainda ajudá-lo a viver coisas novas, contagiá-lo com a própria experiência
pessoal, compartilhar com ele a própria plenitude. Do contrário teremos uma
construção de palavras, uma argumentação verbal que acaba somente colocando
as pessoas contra a parede… com as palavras” .10
10 Florenskij, “Dogmatismo e dogmatica”, p. 152. Na mesma linha seria importante observar a convergência dos juízos elaborados pelos
teólogos russos quando refletem a questão do dogma a partir da sua ligação com a vida e a práxis. Veja, por exemplo, a forma como
tal tema é tratado por Bulgakov: “A dogmática é a ciência teológica que testemunha o conteúdo da vida religiosa (...) e, por isso, ela
deve estar no compasso do desenvolvimento da vida e das suas respectivas necessidades” (Bulgakov, Lo spirituale della cultura,
2006, p. 141). Também é sugestivo o juízo que aparece em Lossky quando mostra a convergência entre a tradição doutrinal e a
vivência dos mistérios da fé apontando que todo o desenvolvimento das lutas dogmáticas “aparecem dominadas pela preocupação
constante que a Igreja teve em salvar, em cada momento da sua história, a possibilidade de que os cristãos alcancem a plenitude da
união mística” (Lossky, Teologia mística de la Iglesia de oriente, Barcelona: Herder, 1982, p. 9).

306 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


O segundo aspecto é aquele da teodiceia, cujas questões não eram contempladas
pela teologia dos manuais. E para que estas questões fossem trabalhadas era preciso rigor
e humildade. No entanto, elas são pouco consideradas também pelas nossas teologias, em
particular pelos tratados de dogmática. É como se o problema do mal não tivesse algum
influxo sobre a compreensão e sobre a transmissão das verdades de fé. Ao contrário, é
muito evidente que a teologia de hoje e de amanhã, para ser crível e eficaz no seu serviço
à Igreja e ao anúncio do Evangelho, deva aprender a falar de Deus em um modo ‘sensível
à teodiceia’11, e obviamente falamos aqui de uma teodiceia renovada12.
A reflexão de Dostoiévski vai na direção oposta da teologia de seu tempo. Assim, cons-
ciente de que a busca pela verdade sobre Deus e o ser humano nas suas relações – aquela
dada (que a pessoa tem enquanto ser criado à imagem e semelhança) e aquela a ser cons-
truída (vivida como evento de redenção/divinização) – estão intrinsecamente ligadas com a
inquietação existencial em torno da pergunta sobre ‘onde está e o que faz Deus quando um
inocente sofre, quando uma criança morre, quando um pobre é humilhado, quando um justo
é colocado a prova?’. A permanente e trágica presença do mal no mundo e a justificação de
Deus como Criador e Pai, amorosamente próximo a todos os homens – em Cristo mediante
o Espírito Santo – e que deseja salvar cada um, são polos argumentativos que o escritor
russo mantém sempre unidos, consciente de que eles devem ser levados a sério lá onde
se queira falar da Revelação e da fé.
O seu magistral modo de incluir a teodicéia nas reflexões religiosas, com traços de
singelo realismo e profunda espiritualidade cristã, é muito sugestivo. Por isso não causa
maravilhamento o fato de que teólogos e teólogas de todas as confissões venham beber
nesta fonte para aprender este gênero de arte.
Já o terceiro aspecto a ser sublinhado refere-se à decisão de Dostoiévski de dedicar as
narrativas mais incisivas e persuasivas sobre Deus, a fé, a Igreja, o renascimento espiritual

11 Cfr. Johann B. Metz, “Theodizee-empfindliche Gottesrede”, in Idem (ed.), “Landschaft aus Schreien”. Zur Dramatik der Theodizeefra-
ge, Mainz: Matthias-Grünewald, 1995, pp. 81-102. Será necessário aqui observar as considerações criticas propostas por Villas Boas
a respeito da superação da teodiceia e a proposta de uma patodiceia. O núcleo dessa critica aparece no sentido de que “o Deus da
teodiceia não permite que a tragédia provoque um devir no ser humano, visto que tudo está no arco de sua vontade, de modo que o
pathos cristão dramático se resigna à vontade desse Deus. Assim, tais valores são dependentes de um imaginário apático fundado
na apatia divina, enclausurando o indivíduo na conformidade com a realidade em que se encontra” (Ales Villas Boas, Teologia em
diálogo com a literatura: origem e tarefa poética da teologia, São Paulo: Paulus, 2016, p. 89). Também será significativo o exame das
páginas de 97 a 160 em que o autor discute o pensamento poético como forma concreta de patodiceia. Estas discussões estão em
convergência com as provocações criticas a respeito da teodiceia realizada por Gustavo Gutierrez (2008) e Andrés Torres Queiruga
(2011) que deslocam a questão para a compaixão para com os pobres e dizem que a experiência da fome e das violências deve
modificar o modo de falar de Deus.
12 Dentre os poucos autores da época moderna que tiveram a ideia de repensar a teodiceia pode-se recordar Antonio Rosmini (1797-
1855) porque estava convencido a respeito da “possibilidade de superar o nível apofático-ético da teodiceia, para explicitar aquele
teológico-cristológico” que ele elabora “através da leitura da figura e do livro de Jó em chave fortemente cristocêntrica”, Giuseppe Lo-
rizio, “Teologia della rivelazione ed elementi di cristologia fondamentale”, in Idem, Teologia fondamentale, vol. 2: Fondamenta, Roma:
Città Nuova, 2005, p. 67.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 307


e outros temas aos mais pequenos, aos mais simples, aos pecadores, enfim, ele entrega
suas narrativas àqueles que nunca seriam escolhidos pelas autoridades eclesiais para tratar
tais temas. Podemos pensar, por exemplo, na figura de Sonja que obrigada a prostituir-se
por causa da pobreza de sua família, será protagonista de um dos momentos mais fortes
e decisivos do romance Delito e castigo, quando, lendo o Evangelho sobre a ressurreição
de Lázaro, contribuirá para o primeiro despertar da consciência de Raskol’nikov. Quem vai
recolher a confissão do jovem assassino e anunciar-lhe Cristo não será uma mulher piedosa,
nem mesmo um santo monge ou um zeloso sacerdote mas será aquela que vivia no pecado
e que aos olhos da Igreja era uma pecadora.
Considere-se também o momento culminante e conclusivo dos Irmãos Karamazov,
quando ao redor da tumba do pequeno Iljušečka reunem-se os amigos. Dostoiévski confia
o discurso de despedida não a um padre ou um monge, mas a Alëša Karamazov, um rapaz
simples, membro de uma família com comportamentos estranhos e pouco recomendá-
vel. As suas palavras inflamadas de fogo a respeito da recordação sagrada – a eterna me-
mória – dos amigos e sobre a ressurreição dos mortos suscita o entusiasmo nos corações
entristecidos dos companheiros de Iljušečka, mas ao mesmo tempo, atingem e comovem
os leitores. O que dizer, então, quanto ao fato de que no mesmo romance, o escritor tenha
entregue exatamente a Ivan Karamazov a tocante narrativa sobre o encontro de Cristo com
o velho Inquisidor justamente a este intelectual refinado, inquieto e irônico mas que caminha
fora dos confins da fé em Deus?
Estes são apenas alguns exemplos da escolha precisa que Dostoévski realiza quando
escreve suas narrativas e romances. Qual efeito ele busca obter? Quais são as razões da
sua insistência sobre esta opção? A resposta encontra-se sugerida nas numerosas cartas
e nos diários do escritor e, antes ainda, na sua própria vida. De fato, ele se identificou com
a verdade do Evangelho de Cristo expressa sinteticamente com as palavras de Paulo: “Mas
o que é loucura ao mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza
no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte” (1Cor 1,27). È, portanto, eviden-
te que Dostoévski desejasse anunciar e colocar em ação tal verdade também nas suas
narrativas persuadido, no entanto, a respeito da infinita superioridade e universalidade da
sabedoria do Evangelho.
Esta paradoxal verdade torna-se o terreno para a construção dos romances e a pers-
pectiva de fundo dos sugestivos quadros propostos por Dostoiévski que, desse modo, pa-
rece sustentar que a formulação das reflexões sobre temas religiosos não podem constituir
uma atividade revindicada, de modo exclusivo, por parte dos especialistas na matéria, dos
profissionais da religião, dos doutores das academias teológicas e dos expertos em púlpito.
Pelo contrário: a sobriedade, a humildade, o non sum dignus são, para ele, as fundamentais

308 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


características daqueles que, prescindindo do status social, da história pessoal ou do grau
de formação acadêmica e cultural conseguem sustentar um discurso religioso e teológico
penetrante, privado de frases estéreis e de pensamentos retrógrados. Este tipo de teologia
não ama as argumentações separadas de uma ratio especulativa, mas brota da profundi-
dade do coração cheio de emoções fortes e de sentimentos sinceros. O lado irreverente
dos “teólogos dostoievskianos”, que os fazem aparecem pouco confiáveis aos olhos dos
representantes oficiais da Igreja e da teologia (simbolizados na figura do velho Inquisidor)
é que tendem utilizar linguagens muito diferentes das usuais, adotando pontos de vista
frequentemente pouco ‘ortodoxos’. Mas isto, para Dostoiévski é o imposto a ser pago cada
vez que haja o desejo de renovação do pensamento religioso, promovendo um retorno aos
ideiais da primitiva comunidade cristã, inspirando-se no frescor das origens e na explosiva
e criativa força do Espírito de Cristo.

A NECESSIDADE DE SÍNTESES E DE PROFECIA

Há ainda um quarto aspecto a ser considerado que se refere à síntese do pensamento


teológico. Não obstante nas narrativas e nos romances de Dostoiévski sejam tratados nu-
merosos e complexos argumentos religiosos, o seu pensamento teológico aparece coeso e
organicamente unido. A razão disto é a explicita presença, por detrás dos discursos religiosos,
de um único e unificante ‘horizonte hermenêutico’. Segundo o juízo do jovem Florenskij, a
ausência de tal horizonte é exatamente aquilo que caracterizou os manuais de teologia oficiais
da Igreja ortodoxa russa e representou um dos seus mais clamorosos limites. Ele explica:

“São indicadas diversas lacunas nas dogmáticas de fabricação pátria e o mais


criticado é o bispo Macário. É claro que é necessário colher os frutos destas
indicações, mas preencher as lacunas seria como tentar apagar o fogo de todo
um edifício com duas ou três vasilhas de água. Não temos dúvida de que os
desagradáveis defeitos que acabamos de recordar atingem a integridade arqui-
tetônica da dogmática. Mas vale a pena chorar sobre isto, quando aparecem
perguntas mais importantes? Consegue-se ver como se encadeiam os diversos
níveis e compreender por qual razão depois de um segue-se outro? Os estudan-
tes conseguem refletir sobre os dogmas formulados com rigor matemático que
se entrelaçam como fios de um único tecido? Este não aparece, talvez, como
um tecido feito de erros e de sonhos? É claro, para eles, a unidade do plano, o
recíproco condicionamento e a recíproca dependência dos singulares conceitos
e teses que estão a serviço, como orgãos de um único organismo, de um único e
planificado conjunto? Pelo que sei tudo isso permanece completamente no vazio
e a dogmática se apresenta não como um sistema, nem como uma construção
de esquemas, mas como um acúmulo de tomos e de palavras confusas”. 13

13 Florenskij, “Dogmatismo e dogmatica”, p. 148.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 309


No caso do teologar de Dostoiévski está claro que as tessituras dos discursos religiosos
foram elaboradas com uma única agulha, identificada com o Evangelho sobre a bondade
infinita de Deus, ou seja, bordados com a verdade sobre Deus que, no Cristo humilde e
pobre, manifestou-se como Amor universal, misericordioso e compassivo. Os ensinamentos
tocantes do starec Zosima dos Irmãos Karamazov são, deste ponto de vista, uma justificação
da unificante ‘hermenêutica da caridade’ que o escritor russo, em muitas outras ocasiões,
reconheceu como o seu credo e a sua pessoal concepção da fé cristã. 14
Quanto tenha sido clarividente e antecipatória esta escolha hermenêutica – não só para
a teologia, mas também para a doutrina eclesial – é hoje claro aos olhos de todos. De qualquer
forma, os romances dostoievskianos junto com outros textos de espiritualidade, teologia, filo-
sofia e literatura do século XIX e da primeira metade do XX tiveram o mérito de ter contribuido
na criação e na difusão daquele milieu espiritual-cultural que, antes do Concílio Vaticano II,
influenciou decisivamente na formação de alguns protagonistas chave da renovação teológica.
Seria oportuno evidenciar dentre os variados aspectos da teologia dostoievskiana a
dimensão profética de seus escritos. A capacidade visionária de prever – do ponto de vista
espiritual – certos desenvolvimentos históricos e os seus êxitos finais é admirável. 15 Como
já foi evidenciado por Vladimir Solov’ëv, os discursos religiosos são proféticos tanto em re-
lação à sociedade russa e européia quanto à Igreja e ao cristianismo em geral16. De fato, os
romances Delito e castigo e Os demônios colocam-nos de sobreaviso diante da loucura de
quem está por trás da porta da história, decidido a entrar para mudar o mundo com a violência
das armas antes que com as ideias; de quem justifica habilmente o abuso indiscriminado do
poder e da prepotência como condições necessárias para afirmar, na sociedade, os ideais
de um novo e puro humanismo; de quem quer ofuscar a fé em Deus, buscando extirpar as
raízes da tradição cristã do povo russo e dos povos europeus. Dostoiévski chama a atenção
da Igreja diante das múltiplas tentações derivadas de semelhante plano, de renunciar, por
exemplo, em ser na e pela sociedade a “cidade situada sobre o monte” (cf. Mt 5, 14) cons-
truindo uma muralha de separação com o mundo; a tentação de não anunciar aquele ideal
social e moral que souberam encarnar, com coragem e credibilidade, a primitiva comunidade
cristã, da qual se dizia: “A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma
e ninguém considerava exclusivamente seu o que possuia, mas tudo entre eles era comum”
(At 4,32). Consequentemente, o autor russo profetizava a necessidade da superação de
um “cristianismo do templo”, “da sacristia” em favor de um “cristianismo universal” aberto a

14 Cfr. Berdjaev, La concezione di Dostoevskij, pp. 111-128.


15 Um aspecto profético relevante de Dostoiévski – colocado em evidência por Tat’jana Kasatkina – consiste em realizar uma aproxi-
mação cognoscitiva a respeito do significado do indivíduo singular e concreto na sua relação com a totalidade, isto è, com Deus. A
estudiosa russa explica: “A capacidade de ver e de dar-se conta do lugar ocupado pelo ‘particular’, da não causalidade do ‘particular’
e da dependência que o todo tem do particular é o fundamental dom profético do escritor” (Kasatkina, Dostoevskij, p. 49).
16 Cfr. Solov’ëv, “Tre discorsi in memoria di Dostoevskij”, pp. 37-45.

310 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


toda a humanidade, realmente interessado aos destinos e aos sofrimentos de cada povo e
de cada pessoa humana. 17
Segundo Solov’ëv, o fundamento sobre o qual se apoia a profecia dostoievskiana é
a ideia da absoluta unicidade de Cristo, a sua pessoa encarna o mais alto ideal moral de
dimensões universais: a caridade universal de Deus Pai, a compaixão com todo o criado e
com todos os homens. Cristo manifesta em si o plano de Deus para com o mundo e com a
humanidade. Obviamente, o Cristo de Dostoiévski tem um rosto e um comportamento do
manso e humilde prisioneiro capturado pelo velho Inquisidor. Enquanto tal ele suscita – ainda
que não em todos como é o caso de Guardini – um fascínio e um desejo de seguimento que
jamais poderia ter sido suscitado pelas definições cristológicas dos manuais escolásticos.
Uma coisa é certa: o solus Christus da teologia de Dostoiévski resultou em uma profética
tomada de posição diante da idolatrização, na sociedade russa e européia da primeira metade
do século XX, dos tiranos e dos ditadores, das ideologias e dos sistemas políticos perversos,
reproposta e reconfirmada pela Narrativa sobre o Anticristo de Solov’ëv.
Quanto tudo isso possa ser hoje inspirador para a nossa teologia seria, sem dúvida, uma
questão a ser discutida. De qualquer modo, é convicção de muitos que a profecia não pode
faltar à teologia; e esta deve ser exercitada fazendo referência não tanto as mensagens das
aparições privadas quanto a eterna verdade central do Evangelho de Cristo – testemunhada
sobretudo no evento pascal – que se manifesta com crescente convicção na consciência
dos cristãos do nosso tempo.
Estamos persuadidos – por outro lado – que haverá sempre teólogos e teólogas que
sobre a teologia profética desejarão aprender justamente com Dostoiévski cuja clarividên-
cia foi fruto de uma longa e sofrida busca pelo sentido mais profundo da vida, de uma luta
consigo mesmo, com os próprios limites e com as próprias doenças. Tal sede foi satisfeita
pelos maravilhosos momentos daquele imprevisível irromper, no coração, dos penetrantes
raios de luz que introduzem o pensamento em uma outra ordem – superior – de ideias,
aquela da sapientia crucis.

A ARTE DE DOSTOIÉVSKI REMETE À ARTE ICONOGRÁFICA

O filósofo e sociólogo Vladislav A. Bačinin reporta, em um recente artigo, uma considera-


ção que o notável teólogo ordotoxo Alexander D. Schmemann (1921-1983) tinha anotado em
seu diário e que eram derivadas pela assídua frequentação das grandes obras da literatura
russa e mundial. “Como é possível – pergunta-se Bačinin resumindo o sentido das palavras

17 Já numerosos estudiosos procuraram esclarecer que o ‘nacionalismo’ de Dostoiévski não está em conflito com tal visão, dado que,
para ele, o povo russo deveria ser o protagonista e o exemplo no meio de outros povos, do progressivo afirmar-se da ideia cristã a
respeito da fraternidade universale em Cristo.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 311


de Schmemann – que, em certos casos, homens distantes da Igreja e da teologia mostrem
possuir uma finíssima intuição teológica? “. A sua resposta é que tudo “depende muito pro-
vavelmente não do grau do talento que um estudioso (de literatura) possue, mas do grau do
seu desembaraço criativo, da sua liberdade frente ao dever de realizar uma apologética”.18
Como se pode observar, a obra de Dostoiévski representa para os leitores de todos
os continentes, estudiosos de literatura ou amadores apaixonados por obras literárias, uma
extraordinária ocasião de experimentar, no próprio coração, o despertar da intuição teológi-
ca. Trata-se de uma oportunidade para aprender de novo a aproximar-se da profundidade
transcendente da vida e a pensar e sentir teologicamente. Estas obras possuem, de fato,
todas as características necessárias para que, nas pessoas livres de preconceitos religiosos
ou anti-religiosos, tais efeitos possam ser verificados. Para o estudioso Gilberto Safra estes
textos de Dostoiévski permitem integrar os vértices literários, filosóficos, teológicos e políticos
criando narrativas resistentes à fragmentação e que evitam a abstração racionalista, por isso,
o estudo de Dostoiévski junto com outros pensadores russos são fundamentais para “com-
preender os problemas do sofrimento humano contemporâneo com uma profundidade que
desconhecida até então” porque eles tratam a condição humana em seu registro ontológico.
Desse modo, Safra percebe em sua atuação clínica a necessidade de recolher a herança
dos autores russos como forma de exercitar melhor uma escuta qualificada dos pacientes:

“reconhecer em seu modo de ser, o tipo de sofrimento e de situação encon-


trada assinalada nos escritores russos porque muitos dos nossos pacientes
sofrem pelo desenraizamento, pelo fato de terem sido coisificados, reduzidos
a ideias ou abstrações. Na atualidade, encontramos pessoas que são filhos da
técnica e que sofrem da agonia do totalmente pensável. Surpreendi-me com
a constatação do quanto tínhamos para aprender com esses pensadores do
final do século XIX e início do XX.”19

É tipico de um romance, por outro lado, ter uma estrutura narrativa configurada dia-
leticamente, paradoxalmente. Ele não se limita a exprimir um único ponto de vista, mas
cria “permanentemente um cruzamento entre as diversas perspectivas, entre os diversos
tipos de juízo”. 20 Tudo isso explica porque o romance não se deixa traduzir em teorias ou
opiniões: na sua estrutura narrativa se imprimem, coexistem e vibram simultaneamente a

18 Partindo desta consideração, Bačinin afirma: “Enquanto isso uma profunda e criativa identificação com um texto, uma identificação
com a escuta criativa podem aparecer infinitamente mais importantes do que os princípios metodológicos do ‘apriori’. Sobretudo se
pensamos na lógica que a reflexiva identificação com um texto oferece como possibilidade a um estudioso de talento de chegar àque-
les níveis profundos nos quais já não se consegue mais manter a distinção entre o secular e o religioso, onde, como diria Dostoiévski,
as margens se cruzam e todas as contradições coexistem juntas. Se um tal estudioso não procura apresentar o mal como um bem, a
mentira como uma verdade, os resultados das suas pesquisas passarão a ser de interesse não só para os ateus, mas também para
os crentes. Isto significa, portanto, que não è necessário sustentar a ideia de um insuperável abismo entre as ciências seculares das
letras e a teologia com a literatura”, Vladislav A. Bačinin, Literatura i teologija [Literatura e teologia], Proza.ru, 2014, https://www.proza.
ru/2014/10/24/1999.
19 Gilberto Safra, A po-ética na clínica contemporânea, 3 edição, Aparecida/SP: Idéias e Letras, 2004, p. 34.
20 Elmar Salman, Teologia è un romanzo. Un approccio dialettico a questioni cruciali, Milano: Paoline, 2000, p. 22.

312 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


singularidade, a liberdade, a tragicidade, a complexidade e a concretização de cada figura,
de cada história, de cada concreto fenômeno. Em um certo sentido pode-se dizer – explica
Elmar Salman – que no gênero do romance realiza-se a filosofia do grande Nicolau de Cuza,
pensador “que nos faz compreender a importância de colocar-nos no lugar da perspectiva
de uma pessoa”. 21 Portanto, de um lado o romance é “uma obra integral que contém um
universo e, por outro, é o exercício da individuação de cada perspectiva”. 22
Tudo o que vale para o romance em geral, também vale de modo particular para os
romances de Dostoiéski, conhecido pela sua polifonia, devido ao fato de que ele amando
empaticamente, é capaz de penetrar em qualquer fenômeno, seja este referente a uma de-
terminada pessoa, a um concreto grupo social ou uma determinada situação. Colocando-se
dentro destas situações, o escritor “não as descreve exteriormente, mas fala delas usando a
voz do próprio fenômeno, aquela que surge das suas vísceras, dos fundamentos”. 23 O efeito
polifônico é em Dostoiévski exponencial, porém, graças a escolha de tecer tapetes constituí-
dos por múltiplos pensamentos que desenvolvidos a partir de singulares fenômenos, podem
ser entre eles também muito diferentes, aliás radicalmente contrários. 24
Tal procedimento, realizado com exemplar habilidade narrativa, guarda em si algo de
dramaticamente orquestral, sinfônico evitando uma perspectiva caótica, uma abordagem
preocupada em manifestar a verdade da própria vida, isto è, da vida que é e será sempre in-
finitamente complexa. Por isso, diante dessas concretas manifestações da vida, ocorre saber
ordenar pensamentos e palavras, começando pela paciente escuta do próprio coração das
pessoas e circunstâncias que configuram o contexto. Cada específico pensamento que o es-
critor russo consegue formular a partir de um determinado “fenômeno” transforma-se, em todo
caso, em um conjunto de pensamentos, ou seja, de sistemas que carregam diferentes tipos de
concepções de mundo. E cada singular pensamento é como uma peça de um único grande
mosaico, adquirindo “o seu valor no interior da totalidade do universo criado por Dostoievski” 25.
Tal modalidade de construção narrativa – no qual como explicitado antes, não carece um
horizonte hermenêutico de unidade – recorda aquela particular técnica que é própria da arte
iconográfica. Escrever um ícone consiste, de fato, em criar uma imagem sacra caracterizada
por algumas transgressões com relação a unidade em termos de perspectiva e gerando, desse
modo, uma perspectiva invertiva ou inversa. Graças a ela as figuras e os objetos representados
mostram detalhes e planos que, na vida real, não podem ser visíveis simultaneamente, como
por exemplo, os três lados do livro do Evangelho ou aqueles aspectos particulares dos rostos
dos santos que estão situados para além do horizonte visivo do observador.

21 Ivi, p. 23.
22 Ivi, p. 24.
23 Kasatkina, Dostoevskij, p. 48.
24 Cfr. Berdjaev, Tipy, p. 80.
25 Kasatkina, Dostoevskij, p. 49.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 313


Tal procedimento, porém, tem um efeito extraordinário porque nos mostra a policen-
tricidade da representação uma vez que o ícone é construído como se o olho mirasse as
várias partes da imagem mudando várias vezes de lugar. Portanto as fachadas dos edifícios
são pintadas, sim, mais ou menos em relação as exigências da habitual perspectiva linear,
“mas cada uma com o seu particular ponto de vista, isto é, com um seu particular centro de
perspectiva e, as vezes, com o seu próprio horizonte”. 26 Mas por qual motivo os iconógrafos
adotam tal perspectiva? Justamente pelo fato de que a perspectiva invertida ajuda a pessoa
a experimentar no seu íntimo que por detrás das formas e das situações concretas da vida
existe aquele Mistério divino que como um oceano de luz envolve cada existência. 27
Obviamente que com esta referência não queremos comparar a obra literária de
Dostoévski a um ícone, mas somente recordar que entre as duas realidades artísticas existe
um profundo nexo. De fato, segundo Florenskij, o ícone encarna uma concepção de mun-
do que é de algum modo ‘universalmente humana’ e em estreita correspondência com a
mentalidade das antigas culturas (egípcia, grega, etc) e de todas as grandes religiões. Uma
concepção capaz de colher nos fenômenos externos uma alma, uma profundidade ontológica
e intuitivamente capaz, não obstante as diferenças, de reconhecer que tais expressões são
sustentadas por um único ‘sopro de vida’ e provenientes de uma única fonte. 28

CONCLUSÃO: NA DIREÇÃO DE UMA TEOLOGIA DA IMAGEM

Segundo Florenskij, os ícones, mesmo sendo representações dos vários temas e das
várias verdades da fé cristã, são antes de tudo um instrumento privilegiado da custódia e
da transmissão deste universal olhar místico sobre o mundo, sobre a vida interpretada à luz
da verdade trinitária do Deus revelado, por meio do Espírito Santo, em Cristo. Portanto, os
ícones contém uma espécie de ‘sabedoria universal’ em torno de realidades como comu-
nhão, unidade e diversidade:

“A realidade nos é dada somente vivendo, no contato vivo com o ser. A vida é
uma contínua mudança da auto-identidade abstrata, um contínuo morrer do eu
individual para crescer em comunidade [sobornosť]. Somente vivendo é que
conseguimos chegar à comunhão com nós mesmos no espaço e no tempo
como um organismo unitário; desde os singulares elementos que se excluem
mutuamente segundo a lei da identidade, partículas, células, estados de ânimo
nós nos reunimos em unidade. É desse modo que nos juntamos para tornar-
mo-nos família, estirpe, povo, etc. Nos unimos tornando-nos humanidade e,
desse modo, compreendemos na unidade do ser humano todo o mundo. Mas
26 Pavel A. Florenskij, La prospettiva rovesciata e altri scritti, Roma: Gangemi, 1990, p. 76. Idem, A perspectiva inversa, São Paulo:
Editora 34, 2012.
27 Cfr. Pavel A. Florenskij, Iconostasi. Saggio sull’icona, Milano: Medusa, 2008, p. 119; Idem, La colonna e il fondamento della Verità,
Cinisello Balsamo: San Paolo, 2010, p. 341; Idem, La concezione cristiana del mondo, Bologna: Pendragon, 2011, p. 189.
28 Pavel A. Florenskij, Il simbolo e la forma. Scritti di filosofia della scienza, Torino: Bollati Boringhieri, 2007, p. 269; Florenskij, Iconostasi,
pp. 108-112, 126-137.

314 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


cada ato que cria comunhão representa, ao mesmo tempo, uma reunião de
diversos pontos de vista, pontos esquemáticos e perspectivos”. 29

Na opinião de Florenskij, a arte é uma educadora do olhar, do pensamento, da vida


e do relacionar-se que carrega consigo a força de tornar eterno o que é da ordem tempo-
ral. É muito evidente, portanto, que a obra dostoevskiana seja, deste ponto de vista, uma
verdadeira e pecular expressão artística que convida não só que o ser humano possa viver
na beleza, mas compreender o testemunho profético que emana desta obra.
Como poder exercitar semelhante forma de arte na teologia é uma pergunta que hoje,
na época do pensamento fraco e do crescente domínio da linguagem por imagens, de-
veríamos colocarmo-nos com urgência, buscando inspiração na grande tradição artística
alimentada pela fé cristã que com renovada fidelidade e criatividade, somos chamados a
transmitir às novas gerações.

REFERÊNCIAS
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Paulo: Editora 34, 2012, vol. 1 e 2.

9. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Gente pobre. Tradução do russo de Fátima Bianchi. 1. edição. São
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10. FLORENSKIJ, Pavel A. Il valore magico della parola. Milano: Medusa, 2001.

11. FLORENSKIJ, Pavel A. Il simbolo e la forma. Scritti di filosofia della scienza. Torino: Bollati
Boringhieri, 2007.

29 Pavel A. Florenskij, Il valore magico della parola, Milano: Medusa, 2001, p. 97.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 315


12. FLORENSKIJ, Pavel A. Iconostasi. Saggio sull’icona. Milano: Medusa, 2008.

13. FLORENSKIJ, Pavel A. La colonna e il fondamento della Verità. Cinisello Balsamo: San
Paolo, 2010.

14. FLORENSKIJ, Pavel A. La concezione cristiana del mondo. Bologna: Pendragon, 2011.

15. FLORENSKIJ, Pavel A. A perspectiva inversa. Tradução de Neide Jallageas e Anastassia


Bytsenko. São Paulo: Editora 34, 2012.

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17. GUARDINI, Romano. O mundo religioso de Dostoiévski. São Paulo: Editorial Verbo, s/d.

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25. SOLOV’EV, Vladimir S. Sulla belleza nella natura, nell’arte, nell’uomo. Traduzione di Adriano
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27. TOLSTAYA, Katya. Kaleidoscope: F.M. Dostoevsky and the Early Dialectical Theology.
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Afonso Maria Ligório Soares. São Paulo: Paulinas, 2011.

29. VILLAS BOAS, Alex. Teologia em diálogo com a literatura: origem e tarefa poética da
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30. ŽAK, Lubomir. Trindade e imagem. Aspectos de teologia mística de Vladimir Losskij. Prefá-
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31. WILLIAMS, Rowan. Dostoevsky: Language, Faith and Fiction. London: Continuum, 2008.

316 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


24
“ O século XIX: do governo de Dom
Pedro II ao catolicismo retratado
na obra de Bernardo Guimarães

Ivanessa Sanches Mancio


FAVENI

10.37885/201001672
RESUMO

Através da obra literária romântica A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, publicada


na segunda metade do século XIX, em 1875, a presente pesquisa dedicou-se em en-
contrar a existência de estruturas que refletissem o cenário religioso brasileiro do século
XIX e por consequência averiguar e constatar elementos e padrões de religiosidade na
obra romântica, para isso, executou-se referências às alocuções de alguns personagens
citados na obra. Também foi necessário traçar um perfil histórico das gerações românti-
cas no Brasil, como também discernir certos entendimentos do autor sobre o ambiente
histórico em que ele está inserido e levar em consideração o momento histórico do Brasil
para poder identificar manifestação de religiosidade. Para tanto, foi priorizado um caminho
metodológico que permitiu uma aproximação mais consistente com o objeto da pesquisa.

Palavras-chave: Literatura, A Escrava Isaura, Religiosidade.


INTRODUÇÃO

No século XIX, mais precisamente próximo da passagem para o século XX, é impor-
tante de se observar, a visão científica de alguns europeus de que determinadas raças eram
mais evoluídas que outras. Segundo Elisa Rodrigues, “neste período, ocorreu a colonização
europeia da África e da Ásia, de modo que a ciência e a religião visavam legitimar a escra-
vidão e a exploração dos povos africanos primitivos”1.
Logo, no Brasil, o pensamento religioso de seres evoluídos já existia desde o desco-
brimento, trazido por missionários europeus, que justificavam a escravidão dos índios com
o argumento de que eles eram descendentes de Cam, filho amaldiçoado de Noé. De acordo
com John Hemming, “os portugueses, por sua vez, continuaram a justificativa da escravi-
dão, igualmente considerando os negros também como descendentes de Cam, estabele-
cendo a cor como o sinal da maldição e justificativa para a escravidão”2.
Segundo Flavia Silva Santos, durante a colonização brasileira, “o processo educacional
era de responsabilidade dos padres jesuítas, representantes do clero na colônia”3. É inegá-
vel, segunda a autora, que esta instituição tinha pensamentos escravistas, o que a levava
a educar segundo os interesses da época, sob a camuflagem de um discurso salvífico.
Discurso este que pode ser visto na argúcia e maestria de Padre Antonio Vieira, no século
XVII. Segundo Luiz Felipe de Alencastro, o jesuíta forjaria uma das mais brilhantes justifi-
cativas ideológicas de tráfico negreiro, garantindo a cumplicidade entre a cruz e a espada.

Em seus sermões, Vieira transformava a transferência dos negros dos sertões


africanos para a América em grande milagre, por viabilizar a remição de suas
almas, resgatadas das brechas da Etiópia. Neste sentido, através de argu-
mentações terrenas e teológicas, ao defenderem a evangelização numa só
colônia, os jesuítas portugueses definem no atlântico sul uma apadrinhadagem
missionária que justifica o negócio negreiro.4

Ainda neste entendimento sobre as justificativas de religiosos para a escravidão na


colônia do Brasil, Stuart B. Schwartz destaca outro pensamento religioso, o do jesuíta Simão
de Vasconcelos do século XVII, que tem estreita familiaridade com o princípio da ignorância.
Segundo Stuart B. Schwartz.

Vasconcelos aflora para a defesa do que mais tarde seria entendido como
pecado filosófico, ao afirmar que os adultérios, homicídios, furtos e semelhan-
tes ações cometidas por aqueles que relegam a existência de Deus não são

1 RODRIGUES, Elisa. Raça e controle social no pensamento de Nina Rodrigues. Múltiplas Leituras, v. 2, n. 2, p. 81-107, 2009. p. 84.
2 HEMMING, John. Ouro Vermelho: A conquista dos índios da Amazônia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007, p.
594.
3 SANTOS, 2017, p. 03.
4 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trata dos Viventes: A formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
p. 480.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 319


pecados mortais, nem seus autores são merecedores do inferno, pois como
não entendem a Deus não realizam injúria contra ele.5

Diante dessas observações, podemos compreender que a religião na colônia brasilei-


ra foi usada de forma constante para a afirmação de um comportamento social, político e
econômico escravista da época. Demonstrando, desta forma, que a religião não estava fora
do ambiente escravista brasileiro.
Com o passar dos anos, novos pensamentos foram trazidos da Europa, pensamentos
estes que também refletiam no campo político e religioso brasileiro do século XIX, colocando
intelectuais brasileiros em diferentes posições. Em meados do século XIX, alguns integran-
tes da hierarquia católica do Brasil passaram a ser influenciados por um catolicismo que
pregava ideologias conservadoras, portanto, contrárias a um catolicismo dito popular. Desta
forma, segundo Israel Silva dos Santos, o conceito do bom católico, para as massas, “era
o daquele que se submetia aos poderes eclesiais, que se afastava do fetichismo bárbaro e
cumpria os sacramentos de Deus”6.
Devemos destacar que o Brasil do século XIX é o resultado de uma migração forçada
de diversos povos e culturas, em destaque o da cultura africana, que, trazida pelo sistema
escravocrata ao Brasil pelos portugueses, acabou transformando o catolicismo trazido pelos
colonizadores europeus em novas manifestações religiosas. Neste período, as crenças e os
ritos, de acordo com Santos, “eram realizados por um catolicismo que têm nos seus prin-
cípios um conjunto de hábitos originárias da Europa medieval e de fundamentos adotados
das culturas africanas e indígenas”7.
No meio desta discussão política e religiosa, temos os ideais abolicionistas que chegam
ao Brasil com os filhos dos grandes senhores que voltam dos grandes centros de estudo,
como a Europa. A escravidão, antes vista como uma forma lucrativa de ganho de dinheiro,
começa a ser rediscutida no cenário político brasileiro.
Para Sonia Irene Silva do Carmo e Eliane Frossard Bittencourt Couto.

O Império Brasileiro desconhece como problema a questão do trabalho escra-


vo, incompatibilizando-se com a aristocracia e dirigindo os abolicionistas a se
unir aos republicanos. Os problemas com a questão religiosa, relacionada com
a laicidade do país fundamentada nos ideais da Revolução Francesa trazidos
por jovens brasileiros vindos da Europa, como também a situação dos militares
feridos de guerra, nas décadas de 1870 e 1880, majoram a crise, que atinge
seu ápice com a abolição da escravatura em 1888. Embora os dirigentes do
Império julguem a abolição uma vitória da Monarquia, as oligarquias agrárias

5 SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009, p. 68.
6 SANTOS, Israel Silva dos. Catolicismo: Identidade e significado no Brasil do Século XIX. São Paulo: Anais XXIV Simpósio nacional
de História – ANPUH, 2011, p. 04.
7 SANTOS, 2011, p. 06.

320 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


deixam de lhe dar amparo.8

Enquanto muitos países já haviam eliminado a escravidão como sistema econômico,


apenas no fim do século XIX a escravidão começa a ser mundialmente proibida. Com o
avanço do pensamento antiescravista no Brasil, em 28 de setembro de 1871, foi promulga-
da a Lei Imperial número 2.040, popularmente conhecida como a Lei do Ventre Livre, que
visava extinguir a escravidão de forma gradual no Brasil.
Segundo Kleberson da Silva Alvez, a Lei do Ventre Livre “não foi muito bem recebida
pelos donos de escravos e os senhores de fazendas, que acusaram o governo imperial de
interferir nas relações escravistas, violando o direito de propriedade e de organização do
trabalho”9. Somente anos mais tarde o Império Brasileiro, através da filha de Dom Pedro II,
Princesa Dona Isabel, sancionou, em 13 de maio de 1888, a Lei nº 3.353, conhecida como Lei
Áurea, que extinguia a escravidão no Brasil e libertava os filhos e netos de escravos africanos.
O fim do século XIX no Brasil pode ser entendido como um período de grande e variada
importação de ideias e doutrinas contraditórias que chegavam. O pensamento racial que
gerava discussão abertas na Europa chegava ao Brasil, via de regra, sem nenhum espírito
crítico. Os brasileiros de meados do século XIX, como tantos outros latino-americanos,
estavam mal preparados para discutir as últimas doutrinas europeias. Segundo Rodrigues,
“as conclusões brasileiras acerca de raça eram devedoras das teorias importadas, princi-
palmente, da Europa”10.
Sendo assim, é importante notar que, na época em questão, o pensamento sobre
inferioridade de negros em relação aos brancos era comum, isto é, o contexto histórico
relativamente recente havia mobilizado o debate e a opinião pública para as questões re-
lacionadas à liberdade dos escravos, mas a concepção de que os escravos eram cidadãos
ainda era pequena.
Ainda neste entendimento de inferioridade dos escravos, no Brasil do século XIX, existia
a ideia europerizada de que os membros de sociedades primitivas, inferiores, necessitavam
ser cristianizados. Através deste entendimento, muitos indígenas e africanos do Brasil fo-
ram batizados e catequizados no modelo europeu de cristão católico. A ideia era de que as
religiões de matriz africanas eram religiões inferiores e pagãs e que os negros deveriam se
converter ao cristianismo católico.
Em vista disso, a ideia de civilização também chegou a ser discutida no século XIX
no Brasil. Segundo Daniela Magalhães da Silveira, aqui no Brasil também pairava a ideia

8 CARMO, Sonia Irene Silva do; COUTO, Eliane Frossard Bittencourt. História: passado e presente. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:
Atual, 1994. p. 110.
9 ALVES, Kleberson da Silva. A escrava Isaura e a inviabilidade econômica da escravidão considerações sobre o antiescravismo de
Bernardo Guimarães. Soletras, São Gonçalo, ano IX, n. 17, p. 15- 24, 2009. p.15.
10 RODRIGUES, 2009, p. 103.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 321


de que o “país só entraria entre os povos civilizados se a escravidão fosse eliminada, pois
a continuidade da escravidão causava prejuízo e retardava a independência completa do
Brasil que só ocorreria com a liberdade completa dos escravos”11.

A RELAÇÃO DE DOM PEDRO II E O CATOLICISMO

O século XIX no Brasil ficou marcado pelo governo do imperador Dom Pedro II, que,
após a abdicação de seu pai, Dom Pedro I, ao trono brasileiro em 07 de abril de 1931, herdou
o país com apenas cinco anos de idade. Segundo Lilia Moritz Schwarcz, o imperador Dom
Pedro II foi um “jovem rei de poucas palavras, caráter pouco acessível, cauteloso e estudioso.
Que ao completar dezoito anos de idade, seguindo à moda das cortes europeias, casou”12.

A noiva foi encontrada, segundo a moda das cortes europeias, sem a partici-
pação de Dom Pedro II, através de uma procuração. Em 23 de julho de 1843,
chegava a escritura e um pequeno retrato de Teresa Maria Cristina, princesa
do reino de Duas Sicílias.13

De seu casamento com Tereza Maria Cristina em 1843, Dom Pedro II teve três fi-
lhos. O primeiro filho foi o príncipe herdeiro Dom Afonso, que faleceu com apenas um ano
de idade em 1945. Logo depois, em 1846, nasceu a princesa Izabel e, em 1847, a princesa
Leopoldina. Ainda sobre as particularidades e características do imperador Dom Pedro II,
de acordo com Rodrigo Dantas de Medeiros e Carlos Henrique Gileno, o imperador.

Era uma figura singular, que realmente não era ligado a religiosidade da igreja,
tendo uma aproximação maior com o liberalismo da maçonaria, adorava a cul-
tura, contudo, não podemos considerar o imperador um ateu, porém católico
por tradição e ancestralidade familiar.14

A relação de Dom Pedro II com a Igreja Católica começa com a Constituinte de


1824, outorgada por seu pai, cujo artigo 5º declarava a Religião Católica como à religião
oficial do Império.

Artigo 5º. A Religião Católica Apostólica Romana permanecerá a ser a Re-


ligião do Império. Todas as outras Religiões serão liberadas com seu culto
particular, ou domestico em casas para isso destinadas, sem forma alguma
fora do Templo.15

11 SILVEIRA, 2013, p. 10.


12 SCHWARCZ, 2009, p. 30.
13 SCHWARCZ, 2009, p. 30.
14 MADEIROS; GILENO, 2018, p. 94.
15 BRASIL. Constituição (1924). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília Senado Federal: Centro Gráfico, 2017. p. 05.

322 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


É de suma relevância frisar que este conteúdo da Carta de 1824 é uma herança histórica
do século XVI originada pelos colonizadores portugueses e que se manteve com a vinda da
Família Real Portuguesa ao Brasil. Segundo Evaldo Xavier Gomes e Hugo Sarubbi Cysneiros,
no Brasil, “esta herança é decorrente de um documento assinado no século XVI que au-
torizava os reis ibéricos a gerenciarem o ordenamento da Igreja nas regiões de colônia”16.

Essa situação continua no Império quando este, através da Constituição de


1824, afirma a fé católica como religião oficial do Estado brasileiro e, em segui-
da, a concessão dos direitos de Padroado por parte da Santa Sé ao Imperador.17

O sistema do padroado dava ao rei o direito de nomear os membros do clero, como


também de aprovar todas as bulas e encíclicas papais que teriam validades em seu território.
Transformando assim os membros da igreja católica no Brasil em funcionários do governo.
No Brasil, mesmo com a instalação da independência, essa referência das relações
entre Estado e Igreja acabou sendo mantido pelas observações da Constituição de 1824.
Porém, nem todos os católicos do Brasil seguiam esta ordem, pois, segundo Ana Rosa Silva,
“é importante recordar que o século XIX é marcado pelo ultramontanismo por parte de alguns
católicos no Brasil”18. Esta ideologia, de acordo com Medeiros e Gileno “defendia a primazia
da autoridade espiritual sobre a política, a fé sobre a ciência, bem como a inconciliabilidade
entre Igreja e sociedade laicizada”19.
A não obediência do direito do padroado por parte de alguns católicos acabou por
provocar um desentendimento entre Dom Pedro II e alguns clérigos católicos brasileiros.
Tudo começou em 1864, quando o papa Pio IX enviou uma bula que dispunha, entre outras
coisas, que todos os católicos implicados com a prática da maçonaria fossem instantanea-
mente excomungados da Igreja. Segundo Medeiros e Gileno, “O anúncio acabou atentando
intimamente Dom Pedro II, que compunha os quadros da maçonaria no Brasil, instituição
censurada pelo Papa Pio IX”20.
Valendo-se dos poderes garantidos pelo sistema de padroado, o imperador brasi-
leiro formulou um decreto em que não reconhecia o valor da ordem dada pela Santa Sé.
Inicialmente, de acordo com Medeiros e Gileno, “a ação de D. Pedro II não teve maiores
repercussões, tendo em vista que a maioria dos clérigos brasileiros apoiavam incondicio-
nalmente o regime monárquico”21.

16 GOMES, Evaldo Xavier; CYSNEIROS, Hugo Sarubbi. Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto
Jurídico da Igreja Católica no Brasil. Brasília: Edições CNBB, 2014, p. 38.
17 GOMES; CYSNEIROS, 2014, p. 38.
18 SILVA, Ana Rosa Cloclet; CARVALHO, Thaís da Rocha. Ultramontanismo e protestantismo no período regencial: uma análise da
crítica panfletária dos padres Perereca e Tilbury à metodista no Brasil. Guarulhos: Almanak, 2017, p. 23
19 MADEIROS; GILENO, 2018, p. 89.
20 MADEIROS; GILENO, 2018, p. 89.
21 MADEIROS; GILENO, 2018, p. 89.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 323


Entretanto, segundo Medeiros e Gileno, “os bispos de Olinda, Dom Vital de Oliveira, e
o Bispo de Belém do Pará, Dom Antônio de Macedo Costa, preferiram acatar a orientação
do Papa Pio IX, promovendo a expulsão dos párocos envolvidos com a maçonaria”22.
Inconformado com a insurreição destes bispos, segundo Medeiros e Gileno, “o im-
perador procedeu com a coima dos mesmos à reclusão e prestação de trabalhos força-
dos”23. Imediatamente, os componentes da Igreja passaram a atacar o governo dizendo
que D. Pedro II cometera um ato de extremo rigor e autoritarismo. De acordo com Medeiros e
Gileno, “mesmo o imperador cedendo às pressões e anulando a prisão dos bispos, o governo
perdeu uma influente base de apoio político. Pois, com este embate, os questionamentos da
separação entre religião e estado passaram a fazer parte dos debates da formação do Brasil”.

O CATOLICISMO RETRATADO NA OBRA DE GUIMARÃES

A prosa romântica A escrava Isaura foi reproduzido em 1875 em meio à campanha


abolicionista no Brasil do século XIX. O livro de Bernardo Guimarães conta a aventura de
Isaura, uma escrava branca, criada por uma senhora rica e católica que desejava a liberdade
de sua escrava após a sua morte. O romance focaliza o problema da escravidão e atingiu
principalmente o público feminino, que encontrava nas literaturas românticas uma forma de
fuga da sociedade a que pertenciam.
A sociedade brasileira do século XIX, segundo Marco Aurélio Lagreca Casamasso,
“era uma sociedade embasada no modelo religioso europeu”24. Sendo assim, a religião
que predominava no Brasil do século XIX é a religião católica, trazida pelos portugueses no
século XVI. Neste modelo religioso, a mulher deve ter comportamentos modelados e prees-
tabelecidos, como ser educada, submissa ao marido, pura e de caráter santo.
Na obra de Bernardo Guimarães, podemos observar que os valores religiosos do ca-
tolicismo são sempre lembrados, um destes exemplos é a intriga que ocorre na histórica.
Basicamente, como todo o romance de sua época, podemos exprimir que a história é uma
intensa luta entre o bem e o mal. O bem representado pela bela Isaura e seus amigos, e o mal
representado pelo vilão conhecido por Leôncio, que deseja a todo custo a mocinha da história.
Outro valor religioso católico que pode ser representado na obra é a pureza de
Isaura. A castidade é um elemento defendido pelo catolicismo. A bela Isaura, em toda a
história, tenta a todo o custo proteger sua pureza perante as investidas de Leôncio, que
deseja tê-la a qualquer preço. Na obra, esta ideia de que a sexualidade deve ser defendida

22 MADEIROS; GILENO, 2018, p. 89.


23 MADEIROS; GILENO, 2018, p. 98.
24 CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Estado, Igreja e liberdade religiosa na constituição política do império do Brasil de 1824. In:
XIX Encontro nacional do CONPEDI, 29., 2010, Fortaleza. Anais do XIX Encontro nacional do CONPEDI. Fortaleza: Publica Direito,
2010. p. 6167- 6175. p. 6167.

324 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


a todo o custo mesmo pela morte é bem retratada. Podemos observar este entendimento
na passagem em que Isaura prefere morrer a ter relações com Leôncio.
A figura de mulher boa e má é bem espelhada por Bernardo Guimarães em sua obra
romântica. Usando os elementos religiosos do catolicismo, podemos observar que Guimarães
apresenta alguns tipos de mulheres, sendo que Isaura é a mulher esperada pelo catolicismo
da época. Isaura personifica a mulher religiosa cristã, pura, branca, bela, de boas maneiras
e prendada, que deseja só ter relação após o casamento. A escrava Rosa, uma das inimigas
de Isaura, personifica a mulher ruim, de má educação, invejosa que deseja o lugar de Isaura.
Assim sendo, a religiosidade católica pode ser visualizada, por sortidas vezes, na obra
de Guimarães. O fato de isso ocorrer demonstra a historicidade da época em que a aventu-
ra de Isaura transcorre. O autor especifica o período da história logo no início da trama ao
relatar o local em uma fazendo na cidade de Campos dos Goytacazes, cidade do interior do
Rio de Janeiro no período do reinado de Dom Pedro II no Brasil. Fase esta conhecida como
um período de revoluções e revoltas no Brasil, em que a religião predominante e oficial do
estado brasileiro é o catolicismo.
Logo, a figura do catolicismo da personagem principal é, portanto apresentada no mo-
mento de sua descrição, o autor destaca no texto que ela usa uma pequena cruz em seu
pescoço. Sendo assim, o sinal religioso apresentado no pescoço da personagem principal
Isaura insinua aos leitores que ela foi criada segundo os valores religiosos do catolicismo
da época no Brasil.
Em outros momentos na obra, a protagonista Isaura suplica a ajuda de Deus ou de
Maria para interceder nas dificuldades que ocorrem durante a trama. A personagem Isaura
demonstra novamente nestas falas que a religião católica está presente no Brasil do século
XIX, tanto que, em outros momentos do romance, ela apresenta outra característica da re-
ligião católica, que é o arrependimento de suas ações.
No entanto, podemos prenunciar que não é somente na personagem principal que
podemos atentar características religiosas na obra. Contudo, de uma forma mais atenta,
podemos evidenciar que o herói representado pelo personagem Álvaro, também insinua
valores religiosos, como a pureza e a severidade. Pois a obra de Guimarães, o caracteriza
como um jovem homem de coração impressionável, de certa pureza ideal, um verdadeiro
cavalheiro nobre que desejava lutar contra o mal.
Portanto, ao representar valores religiosos distintos em seus personagens na obra,
podemos sugerir que Guimarães em sua produção tenha retratado às dessemelhantes
formas de pareceres religiosos existentes no Brasil do fim do século XIX, mostrando desta
forma aos seus leitores as transformações existentes dos valores católicos de sua época.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 325


A TRANSFORMAÇÃO DO CATOLICISMO NO BRASIL

Após a integração do Brasil, a cultura ocidental pelo império português, todo o desen-
volvimento de colonização foi frisado pela transplantação de crenças, diluídas na essência
de indivíduos que chegavam. Sendo assim, Waldemar Valente, destaca que por meio do
“Cristianismo, se insere no país uma regularidade de valores peculiares de específica visão
de mundo firmada na centralização conveniente, na rígida hierarquia, na coerção do controle
rigoroso, na punição dos pensamentos e das condutas menos ortodoxos”25.
Para Rodrigues, “a sociedade brasileira é fruto da mestiçagem e do encontro de di-
versas culturas e fenotípicos de seus integrantes, é através dessas diferenças culturais
que encontramos as diferenças religiosas de nosso país”26. Por vários séculos, durante o
período colonial, a cultura e a religião negra que chegavam ao Brasil trouxeram diferentes
comportamentos e se transformaram.
Segundo Ênio José da Costa Brito, em relação às festas religiosas “os portugueses
adotavam um comportamento indiferente na relação com os negros e indígenas”27. Deste
modo, Brito também descreve que “na colônia brasileira, os pobres festejavam a seu modo,
sendo assim, os negros africanos e crioulos acabavam por executar suas próprias músicas
e danças ritualísticas nos festejos”28.
De acordo com Yvie Fevero “a exteriorização religiosa está atuante em quase todas
as culturas e pode ser determinada como um conjunto das condutas e posturas pelas quais
o homem se liga ou indica sua dependência ao divino”29. Desta forma, pode-se inferir que a
religião consiste, portanto de uma rede de símbolos, conjunto de cultos e culturas, por meio
de ritos, mitos e simbologias, que combinando preencher o vazio da ausência dos objetos
de desejo, ressignificando o mundo atual em um mundo ideal possível, isto é, compreender
o mundo com um sentido humano.
Sendo assim, podemos compreender que os fatos ocorridos na colonização do Brasil possibi-
litaram a formação de uma sociedade brasileira própria. No qual, pode ser observada em manifesta-
ções, comportamentos e crenças, que podem ter sido transmitidas de um sujeito para outro indivíduo.
Segundo Reginaldo Prandi, “a Igreja Católica tentava influenciar os escravos a ade-
rirem ao cristianismo, impedindo que eles propagassem e desempenhassem suas obri-
gações religiosas nas quais acreditavam”30. Porém, é correto salientar que os escravos

25 VALENTE, Waldemar. Sincretismo religioso Afro-Brasileiro.São Paulo: Editora Nacional, 1955. p. 48.
26 RODRIGUES, 2009, p. 89.
27 BRITO, Ênio José da Costa. Leituras afro-brasileiras: ressignificações afrodiásporicas diante da condição escravista no Brasil. Jun-
diaí: Paco, 2018. p. 197.
28 BRITO, 2018, p. 197.
29 FAVERO, YVIE. A religião e as religiões africanas no Brasil. São Paulo: Palmares, 2010. p. 01.
30 PRANDI, Reginaldo. Religião e sincretismo em Jorge Amado. In: SHUWARCZ, Lilia Mortiz; GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. O universo de
Jorge Amado. São Paulo, 2009. p. 50.

326 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


desempenhavam mobilizações, concentrações ou festividades nos mesmos dias em que
aconteciam os eventos católicos.
Desta forma, Prandi destaca que “o sincretismo foi um mecanismo cultural decisivo
para a reconstrução das religiões africanas no Brasil, como podemos observar no uso da
palavra santo que serviu de tradução para orixá”31. Neste entendimento, de acordo com
Roger Bastide, “o sincretismo católico-africano só ocorreu pela necessidade do africano
de proteger suas crenças e culturas, contra uma sociedade predominantemente católica”32.
Assim sendo, podemos salientar a pluralidade como uma característica que marcou a
cultura brasileira, já que o período colonial proporcionou uma intensidade de misturas cultu-
rais no Brasil, promovendo, desta forma, diferentes hábitos e costumes. Com isso, podemos
conjecturar que a primeira mistura de culturas ocorreu entre o povo português, os índios e
os africanos. Portanto, podemos inferir que este choque cultural construiu, assim, para a
estruturação de uma sociedade brasileira original diferente de outros lugares.
Devemos compreender, portanto que o Brasil, desde sua origem colonial, não é unica-
mente de religião cristã católica. Ao contrário, segundo Valente “a construção do país, desde
os seus primórdios, originou-se na mescla e na sedimentação de diferentes povos”33. Desta
forma, a sociedade brasileira é resultado da hibridação e do encontro de distintos povos e
culturas. Já é de conhecimento que a religião católica era a dominante no século XIX, por-
tanto, oficial do Estado, e mantinha uma só prática religiosa. Sendo assim, Favero salienta
que “os escravos trazidos da África a cultuar seus deuses com nomes de santos católicos,
porém, em seus imaginários cultuavam suas divindades africanas”34.
De acordo com Bastide, “o sincretismo é simplesmente uma máscara posta sobre os
deuses negros, sendo na verdade é uma forma de resistência cultural africana” 35. Sendo
assim, é possível compreendermos que a submissão dos escravos aos brancos não era só
física, mas também religiosa cultural, pois segundo Josenilda Oliveira Ribeiro “ao desem-
barcarem em território brasileiro, os negros também eram batizados forçadamente, além de
serem submetidos a catequeses sob força armada”36.
Sendo assim, é corretor entendermos que os povos negros trazidos pelos portugueses
ao Brasil eram de diversas civilizações e decorriam das mais diversas regiões africanas.
Segundo Carmo e Couto, “as religiões vindas do continente africano eram partes de

31 PRANDI, 2009, p. 50.


32 BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1989, p. 31.
33 VALENTE, 1955, p. 42.
34 FAVERO, 2010, p. 04.
35 BASTIDE. 1989, p. 14.
36 RIBEIRO, Josenilda Oliveira. Sincretismo religioso no Brasil: uma análise histórica das transformações no catolicismo, evangelismo,
candomblé e espiritualismo. 2012. 28 f. Trabalho de conclusão de curso – Curso de Graduação em Serviço Social, Centro de Ciencias
Sociais, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012. p. 18.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 327


organizações familiares, estruturadas socialmente a meios biogeográficos”37. Ainda neste
entendimento, Bastide argumenta que “com a vinda do comércio negreiro ao Brasil, as
lideranças coloniais viram-se obrigadas a deduzir um novo tipo de sociedade, fundamen-
tada na família latifundiária, patriarcal e em castas étnicas, como forma de organização
dos novos grupos”38.
Destaca-se, portanto que a vinda de mais grupos étnicos africanos para o Brasil e a
manutenção da escravidão no país, influenciou em modificações na economia, no social,
no urbano e nos procedimentos de miscigenação que segundo Bastide, com o surgimento
de um governo colonial.

As religiões africanas enfrentam o impacto, bem como as novas segmentações


sociais, uma vez que o negro surge como os novos artesões e camponeses,
sua religião se apresentará diferente ou exprimirá posições diversas, as con-
dições de vida e aos quadros sociais existentes.39

Sendo assim, é correto compreendermos que a religião africana praticada no Brasil foi
adquirindo peculiaridades próprias. De acordo com Antonio Olinto “os herdeiros dos africa-
nos, arquitetaram métodos para as crenças de matriz africana, produzindo visíveis misturas
religiosas entre os deuses da África e os santos católicos”40.
É correto compreendermos, portanto que mesmo os escravos participando das festas
católicas, os mesmo, não desistiram de sua fé nos orixás, voduns e outras divindades oriun-
das de suas terras na áfrica. Com isso, destaca-se que o costume simultâneo de práticas de
diversas religiões resultou no surgimento de outras, que levavam características africanas,
cristãs e indígenas.
Segundo Sonia Aparecida Siqueira, para entender a religiosidade afro-brasileira.

Deve-se considerar a escravidão, o trabalho dos livres, o quadro social da


época, a organização política, o sistema familiar, a religiosidade e as particu-
laridades, demográficas, geográficas, políticas, sociais e econômicas em seus
diversos níveis. Todas essas interligações revelam a obscuridade da temática
que envolve origens religiosas, especialmente, os africanos, neste país.41

Desta forma, Prandi destaca que “as religiões afro-brasileiras surgiram depois do en-
contro da cultura de vários povos africanos trazidos entre os séculos XVI e XIX”42. Destaca-
se assim a influência das religiões vindas do continente europeu, como o catolicismo que

37 DO CARMO et al, 1994, p. 15.


38 BASTIDE, 1989, p. 31.
39 BASTIDE, 1989, p. 31.
40 OLINTO, Atonio. Brasileiros na África. 2. ed. São Paulo: GRD, 1980. p. 238.
41 SIQUEIRA, Sonia Aparecida. Multiculturalismo e religiões afro-brasileiras o exemplo do candomblé. São Paulo: PUC. 2009, p. 05.
42 PRANDI, 2009, p. 50.

328 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


juntamente com as características específicas de cada região do Brasil, ajudou na formação
da religião afro-brasileira.
Assim sendo, é correto interpretar que os africanos, apesar dos percalços da vida
escrava, dos maus-tratos, em nenhum momento abandonaram seus costumes e sua reli-
gião. Organizavam suas festas, os adornos no corpo e, esquecendo provisoriamente seus
desencantos com a sorte, em festas, lembravam suas origens.
Desta forma, quando nos lembramos da colonização, devemos levar em conta o número
de cristãos novos aqui chegados, muitos fugidos do domínio do Sacrossanto metropolitano,
mas basicamente como possuidores dos capitais cruciais para a construção da terra e a
sua inclusão no capitalismo do Atlântico. Alguns desses habitantes eram criptojudeus43,
conservando sua religião às escondidas, no extremo em que posteriormente tornara-se im-
praticável coexistirem judeus e cristãos distintamente, quer do ponto de vista sentencioso,
quer do ponto de visa do entendimento do mundo. O Judaísmo era um desafio à ortodoxia
cristã, pois oferecia elucidações diferentes aos dilemas pertinentes do Catolicismo. Ainda
assim, aqui continuaram os cristãos novos, miscigenando-se com os antigos cristãos, de
quem se distinguiam por apreciadores, uns da antiga, e outros da nova lei.
As deliberações coloniais trouxeram os negros e, com eles, outras culturas e outras
crenças. Assim, de acordo com Hebe Maria Mattos de Castro, importou a memória da cultura
dos povos provenientes da África, transferidos para o Brasil.

Sugere, após si, o adiantamento de níveis culturais distintos, como variáveis


origens sociais dos escravizados e a linguagem por eles utilizada tanto no dia
a dia quanto na linguagem cerimonial, ou seja, nos transes religiosos.44

Desta forma, podemos observar a diversidade de atitudes e de posições existenciais,


já que no mundo colonial existiam homens detentores de outros conhecimentos e vivências
religiosas, introduzindo-se no Brasil uma diversidade cultural, oferecendo no seu cerne uma
plurirreligiosidade.
Logo, podemos observar a herança dos escravos africanos no Brasil, patente em
expressões como samba, jongo, carimbó, maxixe, maculelê, maracatu, como também em
instrumentos musicais variados, como o afoxé, atabaque, berimbau e tambor. Já a herança
dos africanos na culinária brasileira é bem multifária, e apresenta elementos da culinária
indígena, dos escravos africanos e dos imigrantes europeus e asiáticos. Entre os prestigiosos

43 O vocábulo criptojudeu se destina aos judeus que executavam sua fé e suas particularidades em discrição, por temor de encalço
religioso, ao mesmo tempo em que abertamente atuavam em outra religião.
44 CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Laços de família e direitos no final da escravidão. In. História da vida privada no Brasil. Coord.
Fernando Navais; Luiz Felipe de Alencastro – Cia das Letras: São Paulo, 2001, p. 12.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 329


viandas típicas da região estão: feijoada, feijão-tropeiro, farofa, cuscuz paulista, pizza, moque-
ca capixaba, angu, frango com quiabo, pão de queijo, cachaça de alambique, dentre outros.
Desta forma, desde a chegada dos africanos no Brasil, podemos destacar que o sincre-
tismo formado entre a cultura africana dos escravos e o catolicismo se fortaleceu, podendo
ser observado no culto católico aos santos, no qual através do catolicismo popular moldou-se
o culto dos panteões africanos. Para tanto, podemos observar a manifestação da cultura
afro-brasileira pode ser vista em diversos ensinamentos nos campos da sociologia, antro-
pologia, etnologia, música e linguística, entre outros, centrados na expressão e evolução
histórica da cultura afro-brasileira.
O caso das religiões africanas no Brasil concede uma gama de valores, modelos, ideais
ou ideias, uma facultosa simbologia conforme certa visão mística do mundo em similaridade
com o universo mítico e ritualístico. Que segundo Brito ao analisarmos “este rico suporte
cultural, seus aspectos explícitos ou implícitos, é assimilá-las como fenômenos sociais”45.
Assim sendo, podemos observar que o progresso da cultura religiosa brasileira foi per-
ceptivelmente marcado por uma série de trocas e incorporações. Nesse sentido, ao mesmo
tempo em que podemos ver a presença de proximidades através dos cultos africanos e as
demais religiões estabelecidas no Brasil, também podemos observar uma série de caracte-
rísticas que especificam muitas diferenças.
Podemos destacar que nesse processo de assimilação, muitos dos valores culturais
e religiosos foram preservados no catolicismo, como as imagens dos santos que foram as-
sociados aos orixás, mas não perdendo sua simbologia do catolicismo. Destaca-se desta
forma que os elementos absorvidos do catolicismo para as religiões africanas se deram ao
longo da história.
De certa forma, uma cultura que é dominante sempre domina outra, mas com o catoli-
cismo isso não ocorreu, pois, de acordo com Ribeiro, “a religião católica que sofreu com as
interferências, transformações e influências das religiões africanas”46. Ainda de acordo com
Ribeiro, com o passar do tempo, percebeu-se que “a religião católica já estava sendo domi-
nada por culturas que antes eram dominadas, principalmente no modo popular da doutrina
praticado no dia a dia ou na casa das pessoas”47.
Conclui-se, portanto que os africanos motivaram bastante, ainda que de forma indireta,
o catolicismo ao adicionarem níveis de crendices e realizações de curandeirismo ao catoli-
cismo popular. Fato este que é retratado por Gilberto Freyre.

Aquém dos santos e acima dos vivos ficavam, na hierarquia patriarcal, os mor-
tos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos.

45 BRITO, 2018, p. 161.


46 RIBEIRO, 2012, p. 03.
47 RIBEIRO, 2012, p. 03.

330 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Em muita casa-grande conservavam-se seus retratos nos santuários, entre as
imagens dois santos, com direito a mesma luz votiva da lamparina de azeite e
às mesmas flores devotas. Também se conservavam às vezes as tranças das
senhoras, os cachos dos meninos que morriam anjos. Um culto doméstico dos
mortos que lembra os dos antigos gregos romanos.48

Observa-se desta forma que os cultos aos santos católicos foram umas das maiores
transformações do catolicismo, como exemplo, segundo Valente “temos Nossa Senhora
dos Navegantes e Nossa Senhora da Piedade, que, para os negros, tornou-se a entidade
Iemanjá, usada tanto na igreja como nas religiões afro-brasileiras, porém com rituais di-
ferentes”49. Destaca-se também como exemplo da transformação do símbolo católico, de
acordo com Ribeiro “a lavagem das escadas da Igreja Nosso Senhor do Bonfim, na Bahia,
empreendidas pelas mães de santos e filhas de santos, demonstrando, assim, outra relação
com a Igreja Católica”50.
Segundo Reginaldo Prandi, “com a transformação dos santos católicos, os negros pas-
saram a cultuar seus deuses e os invocarem por meio dos santos transformados”51. Porém,
deve-se compreender que, em cada lugar, a correlação entre santos católicos e os deuses
africanos era distinto. Ainda, de acordo com Prandi, “a relação com um ou outro santo depen-
dia da região do país, diversificando de acordo com a estima do santo local”52. Destacando-se
assim como exemplo de transformação do catolicismo segundo Sérgio Figueiredo Ferretti
“as peregrinações que os católicos passaram a fazer após conhecerem os costumes negros,
além das danças nos festivais dos santos, a música dançante e as rezas nas casas”53.

CONCLUSÃO

O final do século XIX no Brasil foi um período da história repleto de transformações


e mudanças, no qual escritores brasileiros como Bernardo Guimarães retrataram em suas
obras um ambiente rico de fatos e fenômenos. É neste ambiente literário, mais precisamente
na obra A Escrava Isaura, a história abolicionista de Guimarães, que a pesquisa buscou en-
contrar fatos religiosos que pudessem descrever a religiosidade existente no Brasil do século
XIX. A pesquisa inicia muito antes da produção de A Escrava Isaura, mais exatamente com
a chegada da Família Real Portuguesa à colônia brasileira em 1808, trazendo consigo uma
herança religiosa católica e um progresso inimaginável, como a criação de escolas, bancos,

48 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 51. Ed. São Paulo: Globo, 2019. p. 40.
49 VALENTE, 1955, p. 155.
50 RIBEIRO, 2012, p. 20.
51 PRANDI, Reginaldo. Referências sociais das religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 1999. p. 58.
52 PRANDI, 2000, p. 75
53 FERRETTI, 2007, p. 111.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 331


faculdade se a imprensa, transformando uma colônia em um reino próspero que absorveu
e transformou o romantismo da época em uma literatura genuinamente própria.
O objetivo da pesquisa, a partir da obra de Bernardo Guimarães, foi o de observar a
existência de estruturas que refletissem o cenário religioso brasileiro do século XIX e tam-
bém encontrar evidências que demonstrem a religiosidade exposta na obra. Desta forma, o
desafio proposto foi o de tentar identificar dentro da obra A Escrava Isaura elementos que
pudessem sugerir a existência de religiosidade presente na obra e assim observarmos o
ambiente de transformação e de mudanças que ocorriam no Brasil no período de governo
do imperador Dom Pedro II. Para este fim, a pesquisa utilizou-se como fonte experiências
acadêmicas, literaturas e observações bibliográficas que evidenciaram o percurso histórico
que ocorria no período mencionado por Bernardo Guimarães na obra.
Desta forma, a pesquisa observou que a questão religiosa é marcante nesse período, já
que a religião católica, além de ser considerada como uma instituição, também era a religião
oficial do governo brasileiro do século XIX. Sendo assim, o presente trabalho apropriou-se
da obra literária romântica A Escrava Isaura, produzida por Bernardo Guimarães e publicada
em 1875, nos primeiros anos de governo do Imperador Dom Pedro II, como mecanismo de
contribuição para a investigação religiosa desse período no Brasil.
Este romance se destaca por se enquadrar nos moldes político-sociais do final do
século XIX, quando a abolição era o discurso predominante do momento. Pela análise da
prosa de Guimarães, que estava ciente dos eventos de seu período, pudemos perceber
como o debate abolicionista acontecia e a sociedade brasileira da época agia. Desta forma,
o estudo desta obra exigiu uma relevância tanto ao escrito quanto ao seu contexto histórico.
Pode-se destacar na pesquisa que o Brasil do século XIX é marcado pela existência
de um catolicismo como religião oficial. Na obra de Guimarães, a personagem principal, a
escrava Isaura, demonstra ser adepta dessa religião por usar um colar no formato de cruz
no pescoço, símbolo este do catolicismo, observado no contexto histórico da época. É de
se destacar também que Isaura apresenta momentos de aclamações a entidades religiosas
como Deus e a Virgem Senhora da Piedade, pedindo sempre por sua liberdade e proteção
diante das perseguições que sofria de seu dono Leôncio.
Observou-se que Guimarães, ao representar a escrava Isaura como uma jovem escra-
va branca e virtuosa que cantava, tocava piano, sabia bordar e que falava outras línguas,
acabou por apresentar as habilidades que uma moça branca da elite brasileira do século
XIX precisava ter, destacando assim as características patriarcais da sociedade brasileira.
Sendo assim, ao representar as características da personagem Isaura, o autor fortaleceu
o entendimento de que, nas obras literárias, podemos encontrar elementos para analisar a
sociedade da época em similitude aos seus costumes e características religiosas da época.

332 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Verifica-se, assim, que a obra abolicionista de Guimarães não descreve de forma direta
a existência de uma religião, mas as características e as ações de seus personagens descre-
vem as religiões e os comportamentos religiosos existentes no Brasil do fim do século XIX,
levando à compreensão de que se pode estabelecer um diálogo entre religião e literatura,
que possibilita levar antigos obstáculos para novos sentidos, novos objetos, novos olhares,
e novas interpelações.

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período regencial: uma análise da crítica panfletária dos padres Perereca e Tilbury à metodista
no Brasil. Guarulhos: Almanak, 2017, p. 23

21. SIQUEIRA, Sonia Aparecida. Multiculturalismo e religiões afro-brasileiras o exemplo do can-


domblé. São Paulo: PUC. 2009, p. 05.

22. VALENTE, Waldemar. Sincretismo religioso Afro-Brasileiro.São Paulo: Editora Nacional, 1955.
p. 48.

334 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


25
“ O sentido do “segue-me” de
Jesus Cristo

Lídia Maria Nazaré Alves


UNIFACIG

Leonardo Gomes de Souza


UFV

10.37885/201001742
RESUMO

Esse trabalho numa mirada teopoética foi desenvolvido em torno das narrativas e lin-
guagens sacro-religiosas. Nessa perspectiva, busca-se olhar o texto bíblico de Mt 19,
16-30 pela ótica da Teoria da Literatura. À luz dessa narrativa, também de pensadores
pós-modernos, questionou-se sobre a possibilidade ou não do “segue-me” de Jesus Cristo
ser experimentado atualmente como o fora pelos primeiros cristãos. Levantou-se uma
hipótese positiva, que foi comprovada, a partir do pressuposto de que tal experimentação
é possível, desde que se escute e se obedeça a Palavra de Deus e se faça a travessia de
uma catequese tradicionalista antropológica a uma catequese pós-moderna querigmática.

Palavras-chave: Palavra de Deus, Seguimento, Individualismo, Comunidade, Catequese.


INTRODUÇÃO

Este artigo está desenvolvido em torno do tema “Narrativas Sagradas e linguagens


religiosas”. No assunto a ser desenvolvido, intenta-se adentrar a narrativa religiosa, a fim de
capturar-lhe sentidos que ainda não foram bem explorados, embora alguns possam objetar,
haja vista a quantidade de trabalhos a respeito. Entende-se que o texto bíblico seja uma
obra aberta, literária, portanto, que se disponibiliza a diferentes possibilidades de leituras
aos que desejam debruçar-se sobre ela.
A fim de encaminhar com maior propriedade o assunto, elaborou-se o seguinte proble-
ma: É possível encontrar pontos convergentes entre o modo de experimentar o “segue-me”
de Jesus Cristo, dos primeiros discípulos, aos seguidores atuais e qual a relação deste
“segue-me” com a fase atual da modernidade?
Para encaminhar uma discussão mais produtiva, elaboraram-se duas hipóteses, a saber:
1ª. É possível encontrar pontos convergentes na proposta da Palavra de Deus con-
cretizada na vida do cristão;
2º Os desafios à vivência da proposta da Palavra, hoje, concentram-se na fluidez do
comunitário e no individualismo moderno.
Este artigo justifica-se em virtude do sentimento de perdição a que está submetido o
homem e, no nosso caso, o homem cristão pós-moderno. Nesses termos, objetiva-se com
ele viabilizar uma reflexão sobre a maneira como o chamado de Jesus Cristo foi atendido,
em diferentes tempos, e ainda se se podem encontrar pontos convergentes no atendi-
mento ao referido.
A metodologia pela qual se optou é pesquisa de cunho bibliográfico com análise de
um texto bíblico comumente chamado “O jovem rico”. A fim de assegurar a credibilidade do
artigo elegeram-se, para sustentar as argumentações, os estudos do biblista Ivo Storniolo
(2011), do teólogo e literato João Cesário Leonel Ferreira (2008), do teórico Terry Eagleton
(2006), da catequeta Solange Maria Do Carmo (2012), do sociólogo Zygmunt Bauman (2001)
e dos documentos magisteriais da Igreja Católica, mais diretamente ligados ao Concílio
Ecumênico Vaticano II.

EVANGELHO DE MATEUS: UM OLHAR TEOLITERÁRIO.

Intenta-se estudar neste tópico as duas dimensões do texto bíblico: a teológica e a


literária. A dimensão teológica será feita a partir do biblista Ivo Storniolo (2011). Para o bi-
blista o evangelho de Mateus e a atuação de Jesus neste só pode ser analisada sob a ótica
da justiça social.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 337


A ação de Cristo busca dar vida e liberdade às pessoas. Jesus é o libertador que com
seu exemplo e coragem enfrenta um sistema corrupto que tem por base a exploração de
inocentes. Jesus também denuncia a falsa religião, como uma capa externa. Esta imper-
meabiliza o crente e fecha seus olhos ao outro.
Na ótica de Storniolo a ação cristã tem por base a ação de Jesus. Para ele, seguir
Jesus é lutar para que todos tenham vida e liberdade. Isto, porém, tem consequência. Assim
como Jesus foi morto, o cristão que se dispõe a lutar pelo próximo também arcará com as
consequências. Porém Storniolo deixa claro que a vida para o cristão não está aqui. Nós pas-
samos por aqui para alcançarmos o bem maior: o Reino de Deus. (Cf. STORNIOLO, 2011).
A dimensão literária está aqui entendida a partir dos estudos feitos por Terry Eagleton
(2006). Segundo o teórico muitas são as tentativas de definir literatura. Há quem a defina
como a escrita advinda da imaginação “no sentido de ficção”. Sobre isto fala Eagleton: “mas
se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se considera literatura,
veremos que tal definição não procede.” (2006, p.1).
A diferenciação de real e ficcional na literatura não é útil, pois é subjetiva e sujeita
a alterações ao longo do tempo. No texto literário há a presença de ambas as categorias
até porque “se a ‘literatura’ inclui muito da escrita ‘fatual’, também exclui uma boa parte da
ficção”. (EAGLETON, 2006, p.2) Por outro lado “O fato de a literatura ser a escrita ‘criativa’
implicaria serem a história, a filosofia e as ciências naturais não-criativas e destituídas de
imaginação?.” (EAGLETON, 2006, p.2)
Para o autor é necessária uma nova abordagem e propõe que a literatura seja defi-
nida não como “imaginativa”, mas sim “porque emprega a linguagem de forma peculiar”.
(EAGLETON, 2006, p.3) Para esta teoria “literatura representa uma ‘violência organizada con-
tra a fala comum’” (EAGLETON, 2006, p.3), isto é, “a literatura transforma e intensifica a lin-
guagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana.” (EAGLETON, 2006, p.3).
A linguagem literária, para esta teoria, é auto- referencial, pois “trata-se de um tipo de lin-
guagem que chama a atenção sobre si mesma e exige sua existência material” (EAGLETON,
2006, p. 3). Esta teoria surgiu com os formalistas russos. Eles “surgiram na Rússia antes
da revolução bolchevista de 1917; suas ideias floresceram durante a década de 1920, até
serem eficientemente silenciados pelo stalinismo.” (EAGLETON, 2006, p.3)
Os formalistas romperam com as ideias simbolistas e “imbuídos de um espírito prático
e científico, transferiram a atenção para a realidade material do texto literário em si”. Para
eles literatura era senão “uma organização particular da linguagem”. Esta “organização” “era
um fato material, cujo funcionamento podia ser analisado mais ou menos como se examina
uma máquina.” (EAGLETON, 2006, p.4)

338 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Em suma “o formalismo foi a aplicação da linguística ao estudo da literatura”. A lin-
guística desta fase “era do tipo formal”. Tinha seus olhos voltados para a estrutura/forma e
desinteressava-se pela fala, pelo dizer. Assim “os formalistas passaram ao largo da análise
do ‘conteúdo’”. Nesta relação forma-conteúdo eles acreditavam que “o conteúdo era simples-
mente a ‘motivação’ da forma, uma ocasião ou pretexto para um tipo específico de exercício
formal”. (EAGLETON, 2006, p.4)
Na relação arte e social não havia um antagonismo entre as partes, mas “os formalis-
tas afirmavam, provocadoramente, que essa relação fugia ao âmbito do trabalho crítico.”.
(EAGLETON, 2006, p.5). No início, os formalistas tinham no texto literário um conjunto de
‘artifícios’. Só depois enxergaram a relação entre os mesmos. Artifícios aqui se referem a
“todo o estoque de elementos literários formais; e o que todos esses elementos tinham em
comum era o seu efeito de ‘estranhamento’ ou ‘desfamiliarização’.”. (EAGLETON, 2006, p.5)
O específico da linguagem literária “era o fato de ela ‘deformar’ a linguagem comum de
várias maneiras.”. Isto porque “sob a pressão dos artifícios literários, a linguagem comum era
intensificada, condensada, torcida, reduzida, ampliada, invertida”. Em consequência disto
à linguagem comum “se ‘tornara estranha’, e, graças a este estranhamento, todo o mundo
cotidiano transformava-se, subitamente, em algo não familiar”. (EAGLETON, 2006, p.5) Sobre
isto fala os formalistas “a literatura, impondo- nos uma consciência dramática da linguagem,
renova essas reações habituais, tornando os objetos mais ‘perceptíveis’”. Em resumo “os
formalistas, portanto, consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da
norma, uma espécie de violência linguística: a literatura é uma forma ‘especial’ de linguagem
‘comum’, que usamos habitualmente.” (EAGLETON, 2006, p.6).
Nossa atenção se voltará, em especial, para a narrativa do Jovem rico, do evangelho
segundo São Mateus. Desta forma, objetiva-se, com esta escrita, promover uma análise
mais profunda sobre a narrativa bíblica aludida.
O texto da já citada, conta um diálogo entre Jesus e um jovem rico. O questionamento
do Jovem a Jesus era o que ele deveria fazer para ganhar a vida eterna. Jesus lhe responde
citando o decálogo. Em resposta a isto o jovem afirma cumprir esses mandamentos, desde
a infância, o que gera o convite de Jesus: “Se você quer ser perfeito, vá, venda tudo o que
tem, dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois venha e siga-me”.
(Mt 19, 16 – 22) João Cesário Leonel Ferreira em artigo intitulado “A bíblia como literatura
– lendo as narrativas bíblicas” afirma que “a fim de persuadir o leitor, ao compor sua narra-
tiva, o escritor utiliza a combinação dos elementos: narrador, tempo, cenário, personagens
enredo” (2008, p.11). Na esteira de tal afirmação entendemos que para termos uma visão
mais clara de um texto temos de considerar e analisar cada um desses elementos. Neste
trabalho, porém, nos ateremos ao narrador.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 339


Segundo Ferreira “toda história provém de uma voz que a conta. As narrativas são
construídas a partir das articulações desenvolvidas pelo narrador. É ele quem determina
como a história chega a nós, leitores” (2008, p.11). Essa fala permite que se perceba a
centralidade do narrador no processo de construção das narrativas. Ferreira reconhece
no texto literário dois planos, o que, aliás, já é lugar comum entre os teóricos da literatu-
ra. O primeiro é o explícito e o segundo implícito. Na medida em que o texto é claro, objeti-
vo, pormenorizado o primeiro plano reina sobre o segundo. Ao contrário, quanto maior é a
lacuna descritiva com mais intensidade o segundo nível, o nível implícito aparece. Em uma
interpretação histórica valoriza-se o nível explícito em detrimento do segundo nível que é
considerado uma “debilidade textual” (FERREIRA, 2008, p.12). Em uma interpretação de
cunho literário esta situação se inverte: “A presença do segundo plano é sinal de uma obra
literária densa, enquanto o primeiro plano demonstra sinais de superficialidade” (FERREIRA,
2008, p.12). É o segundo plano que faz do texto bíblico um espaço de comunicação entre
o divino e o humano. Também é este espaço que faz do texto bíblico uma chave para a
interpretação da realidade.
Se analisarmos o texto que estamos usando como corpus, ou seja, o texto do jovem
rico, um exemplo deste segundo plano e como este viabiliza a comunicação, está no versículo
16. “Um jovem se aproximou e disse a Jesus ‘Mestre, que devo fazer de bom para possuir
a vida eterna?’”. O narrador indefine a figura que se coloca a dialogar com Jesus. No texto
ele é caracterizado parcamente, por sua condição financeira e, certamente, o narrador o
faz propositalmente. Ferreira traz outro exemplo que ajuda no entendimento do que se está
dizendo a respeito do Jovem rico. O professor, em seu artigo, trabalha com o texto do livro
do gêneses (Gn 22, 1-18) onde Deus pede que Abraão que sacrifique seu filho primogêni-
to, Isaque. O texto guarda em segredo os acontecimentos da caminhada de Abraão até o
local do sacrifício. “Nesse caso, o narrador se nega a dar maiores explicações, permitindo
que o leitor, que pode ser um pai ou uma mãe, se coloque no lugar de Abraão e reconstrua
mentalmente a cena” (FERREIRA, 2008, p.12-13). No caso do jovem rico o raciocínio é o
mesmo: Quando o autor encobre a identidade do jovem, no segundo plano, abre uma lacuna
que permite que a figura do jovem e a mensagem implícita na narrativa sejam aplicadas a
todo ser humano. Antes de uma falha no texto este recurso se trata de uma ferramenta que
o universaliza e inviabiliza a interpretação sintomática dele.
Na linha de interpretação teológica dizemos que a opção por essa narrativa advém
da semelhança de desejos do jovem em questão com os jovens atuais. Parafraseando
o biblista Ivo Storniolo no livro “Como ler o evangelho de Mateus: o caminho da justiça”
(2011) pode-se dizer que, como o jovem do texto, “todo” (STORNIOLO, 2011, p.139) jovem
anseia por experimentar a vida. O jovem rico deseja isso: a vida em plenitude, que é a vida

340 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


de Deus em nós. Continuando, o biblista elabora uma pergunta retórica: Que deve fazer o
jovem? E respondendo-a diz que Jesus o lembra de que deve observar os mandamentos e
dá especial atenção àqueles que tratam da relação com o próximo, porque a vida de Deus
em nós depende de tal relação. O jovem já os cumpria e queria mais. Então vem o desafio;
“vender tudo o que possui, dar o dinheiro aos pobres, e depois colocar-se no seguimento de
Jesus, isto é, na busca da justiça” (STORNIOLO, 2011, p.139). O jovem “resiste ao desafio:
vai embora triste, porque era muito rico” (STORNIOLO, 2011, p.139).
A intencionalidade dos textos é menos dizer que o rico não vai para o céu do que dizer
que a condição para o seguimento à Jesus e, consequentemente, o alcance da vida eterna
é ter em Jesus o único tesouro, posto ser este o exemplo pleno de desprendimento no afã
de doar-se plenamente ao serviço ao outro. Vale a pena recorrer a uma obra do escritor
português Gil Vicente, cujo título “Auto da barca do inferno” faz ver, de forma alegórica, que
o não desprendimento condiciona o homem a viver amarrado aos bens materiais, terrenos,
mesmo após a morte. Na referida foi um homem paupérrimo, o sapateiro, que não conseguiu
desprender-se. Estando prestes a fazer a travessia trazia consigo sua caixa de engraxar
sapatos. Conclusão: não foi capaz de atender ao “segue- me” de Jesus, mesmo sendo pobre
da mesma maneira que não o atendeu o Jovem rico.
Storniolo em outro momento do já citado livro afirma que o evangelho de Mateus foi
o mais importante para as comunidades primitivas e o texto que as ajudou a escrever suas
histórias. “Até o fim do século II foi o evangelho mais importante, e praticamente formou o
alicerce das comunidades cristãs” (STORNIOLO, 2011, p.8). Também é o mais adequa-
do para fazer a passagem do Antigo para o Novo Testamento, uma vez que Mateus, um
judeu convertido, escreve para comunidades de origem análoga à dele. Assim o texto de
Mateus “era o mais apropriado para anunciar a passagem das promessas contidas no Antigo
Testamento para a sua realização em Jesus e por meio dele.” (STORNIOLO, 2011, p.8).
Aos articulistas o fato de o texto de Mateus ter sido tão significativo para as primeiras
comunidades oferece as razões para desenvolver o artigo a partir de sua narrativa. Dentre
as preocupações de Mateus estava o fechamento das comunidades cristãs. Ele deseja mos-
trar que a mensagem cristã é libertação e abertura ao outro. Como diz Storniolo. Ele “quer
mostrar que as comunidades não devem ficar fechadas em si mesmas, um olhando para o
outro, mas se abrir para todos, levando a todos os tempos e lugares a palavra e a ação que
libertam para vida nova” (STORNIOLO, 2011, p.9).
Mateus escreve motivado pelo compromisso com o “segue-me” de Jesus. Ele, que
o fazia na íntegra, alertava a comunidade para desprender-se em favor do outro. Para os
articulistas esse objetivo continua na ordem do dia. Nosso contexto é formado por pessoas
cada vez mais fechadas em si e indiferentes ao outro, como o Jovem rico do evangelho, mas

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 341


não só, também o sapateiro do Gil Vicente. Uma sociedade feita do provisório e descartável.
Zygmunt Bauman a identifica como fluida. Líquidos sob qualquer pressão se alteram. Sua
forma é provisória e depois de utilizado é rapidamente descartado. “Os fluidos se movem
rapidamente. Eles ‘fluem’, ‘escorrem’, ‘esvaem-se’, ‘respingam’, ‘transbordam’, ‘vazam’, ‘inun-
dam’, ‘borrifam’, ‘pingam’; são ‘filtrados’, ‘destilados’; diferentemente dos sólidos, não são
facilmente contidos” (BAUMAN, 2011, p.8). Desta forma “essas são razões para considerar
“fluidez” ou “liquidez” como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da
presente fase”. (BAUMAN, 2011, p.9)
Storniolo nos lembra de que ao lermos os evangelhos devemos ater-nos “a como o
evangelista apresenta Jesus” (2001, p.12). Mateus apresenta, em especial, a face de Jesus
libertador dos pobres, assim como o Cristo promotor da Justiça. Esta justiça é fruto do em-
penho para se construir o Reino de Deus. O que só é possível quando nos desprendemos
de nós mesmos. “O Jesus de Mateus é, portanto, o Mestre da Justiça.” (STORNIOLO, 2001,
p.15). Essa postura do mestre deve guiar a comunidade que deve propagar esta mensagem
“isso não deve ficar dentro da comunidade apenas. Deve ser ensinado a todos, para que
todos aprendam de Jesus qual é a justiça que Deus quer.” (STORNIOLO, 2011, p.15) Não
é possível construirmos a justiça se antes não deixarmos Deus nos tocar e irmos ao encon-
tro do outro. Cada um deve dar a sua resposta, que, embora seja pessoal, possui impacto
coletivo. Em uma pergunta de cunho retórico questionamos quais, em nosso contexto, têm
sido nossa resposta diante dos desafios a nós impostos pela fase fluida da modernida-
de? Da resposta depende, em parte, a recompensa.
Storniolo questiona, considerando os discípulos que “deixaram tudo para seguir
Jesus. O que vão ganhar?”. Ele se responde que, no agora, “apenas a alegria de se entregar
a causa da justiça”, porém “quando o Reino chegar (...) o sentido da vida será pleno, pois
a experiência da fraternidade e da partilha fará descobrir o que é, afinal, a própria vida
de Deus.”. (STORNIOLO, 2011, p.40).
Por fim, temos de ter claro que o literário e o teológico caminham juntos no texto bíblico
e que estes aspectos são faces de algo divino que mantem relação com o nosso humano.
Nas palavras de Ferreira, reconhecer que a Bíblia e em especial as narrativas bíblicas são
literárias “implica o reconhecimento que elas guardam certa relação de proximidade/distân-
cia com a realidade, nunca sendo mera transcrição desta, pelo contrário, representando-a
e buscando transformá-la por intermédio das histórias narradas” (FERREIRA, 2008, p.10).
Os formalistas russos afirmam que literatura é “a escrita que, nas palavras do críti-
co russo Roman Jakobson, representa uma ‘violência organizada contra a fala comum”
(EAGLETON, 2006, p.3). Em outras palavras: “literatura é uma forma ‘especial’ de linguagem,
em contraste com a linguagem ‘comum’ que usamos habitualmente.” (EAGLETON, 2006,

342 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


p.7). Apropriando-se deste conceito de literatura Ferreira afirma que é de grande importância
o trabalho linguístico realizado no texto por meio da metáfora. “Esta, antes de ser uma mera
figura de linguagem, é uma linguagem, aprofundando e gerando indefinições de entendimento
que invocam a colaboração do leitor no processo interpretativo.” (FERREIRA, 2008, p. 10).
Aqui manifesta-se a dialética autor/leitor que constrói o sentido total do texto. O texto
sagrado não foge a isto: O verdadeiro autor do texto sagrado é Deus (aspecto teológico)
que se utiliza de autores hagiográficos para redigir o texto (aspecto literário) o texto fruto
desta inspiração comunica e ganha novos sentidos quando é contrastado com a vida de
cada leitor. Esta relação (Deus – autor hagiográfico) será melhor explorada mais à frente.
Basta nos atermos, neste momento, que por meio do texto sagrado o leitor/ interlocutor se
coloca em diálogo com o Inspirador deste texto: o próprio Deus. Nesta relação o texto ganha
novos sentidos frente à realidade do leitor.
Em suma: “o texto literário se constrói como um ‘jogo entre escritor e leitor’.” (FERREIRA,
2008, p.10) sendo, este, uma chave para a interpretação da realidade histórica vivencia-
da pelo próprio leitor. Diante do exposto afirma-se que é nesta relação Deus – homem
por meio do texto sagrado que a bíblia deixa de ser um conjunto de palavras para ser a
Palavra de Deus. Isto explica a expressão cristã que afirma que não somos a religião da
letra, mas da Palavra.

PALAVRA DE DEUS: UMA PROPOSTA

Comunidades alimentadas pela Palavra de Deus se fortalecem nas raízes da expe-


riência cristã. Tal afirmação fica mais evidente, a partir dos documentos aprovados pelo
Concílio Ecumênico Vaticano II promovido pela Igreja Católica Apostólica Romana entre os
anos de 1962 a 1965.Um deles, a constituição dogmática Dei Verbum, que trata da relação
dos cristãos com a Palavra de Deus, afirma que o que está contido e manifestado, por Deus,
“na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo”. (Papa Paulo VI “Dei
Verbum”) Tal inspiração deu-se da seguinte maneira: O Espírito Santo utilizou-se, holistica-
mente, dos autores hagiográficos “para escrever os livros sagrados”. (Paulo VI “Dei Verbum”)
Esse procedimento outorga a autoria da Sagrada Escritura ao próprio Deus e, mais que
isso, faz de Deus o ser que confere e concede veracidade à mesma. Desta forma a Igreja
segundo a sua fé tem por “santos e canônicos […] os livros inteiros do Antigo e do Novo
Testamento [...] porque escritos por inspiração do Espírito Santo [...] têm Deus por autor, e
como tais foram confiados à própria Igreja.” (Papa Paulo VI “Dei Verbum”) Essa realidade só
pode ser considerada a luz da fé. Neste sentido Jesus proclamou “felizes os que acreditaram
sem terem visto” (Jo 20, 29) Isto é, felizes os que têm fé.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 343


Diante disto, atemo-nos, ao reconhecimento da ação da Trindade, pela fé, pois essa
é um “dom gratuito de Deus e acessível a quantos a pedem humildemente” (Catecismo
da Igreja católica compêndio) A “fidei” “é operante «por meio da caridade» (Gal 5,6)” além
de estar “em contínuo crescimento, graças, em especial, à escuta da Palavra de Deus e à
oração.” (Compêndio do Catecismo da Igreja católica) A porta da fé nos leva a Deus. Sobre
isso o Papa Bento XVI, em sua Carta Apostólica Porta Fidei nos diz que “A porta da fé (cf.
Act 14, 27) [...] está sempre aberta para nós.” Atravessamo-la “quando a Palavra de Deus é
anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma.” No entanto atravessá-la
“implica embrenhar-se num caminho que dura a vida inteira.” (Bento XVI “Carta apostólica”).
Na constituição Pastoral Gaudium et Spes, promulgada pelo Papa Paulo VI, a Igreja
define-se companheira dos homens pois “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são
também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”
(Paulo VI “Constituição pastoral”) e, sendo assim, a Igreja volta-se para o homem e sua
realidade na certeza de que “não há realidade alguma verdadeiramente humana que não
encontre eco no seu coração.” (Paulo VI “Constituição pastoral”). Por consequência disto, ela
reafirma que é alicerçada em Cristo, mas construída por homens. (Paulo VI “Constituição pas-
toral”). Desse fato, entende os articulistas, que a experiência vivida pelos primeiros cristãos
possa ser experimentada na atualidade, considerando-se que a palavra inspirada continua
a mesma: Palavra inspirada que revela o desejo de Deus aos homens. Isto é, os primeiros
tinham acesso, em princípio, à Palavra por meio da oralidade. Hoje, tem-se o texto escrito.
Assim, o que importa é a comunicação mantida com a Palavra, que é o próprio Cristo, e o
transbordar disto na realidade de cada cristão. O meio pelo qual a comunicação se mantém
é ferramenta nas mãos de Deus para se alcançar este objetivo.
Quanto à interpretação dos textos sagrados, estudiosos da linguagem já nos alertaram
para os sentidos de um texto, a partir do seu contexto, como também o fez o Papa Bento XVI,
no documento Verbum Domini. Este, de um lado “sublinha, como elementos fundamentais
para identificar o significado pretendido pelo hagiógrafo, o estudo dos gêneros literários e a
contextualização; por outro, devendo a Escritura ser interpretada no mesmo Espírito em que
foi escrita”. (Bento XVI “Verbum Domini”). Prossegue afirmando que a constituição Dogmática
Dei Verbum oferece os critérios para uma correta interpretação. São eles: 1º “interpretar o
texto tendo presente a unidade de toda a Escritura” 2º “ter presente a Tradição viva de toda a
Igreja” 3º “observar a analogia da fé.” Por fim “«Somente quando se observam os dois níveis
metodológicos, histórico- crítico e teológico, é que se pode falar de uma exegese teológica,
de uma exegese adequada a este Livro»”. (Bento XVI “Verbum Domini”)

344 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Jesus reinterpretou muitos aspectos da Lei judaica. Ele instruía de uma maneira to-
talmente nova. Não se detinha sobre a Lei, sobre a letra, mas ensinava de acordo com a
vontade que nascia do coração de Deus. Concretizando esta postura ele estava ao lado dos
mais necessitados. (Mc 1, 40-45).
Outra argumentação que confirma a possibilidade da verdadeira experiência cristã hoje
pode ser desenvolvida a partir do documento Verbum Domini do Papa Bento XVI. Aí ele
disserta sobre da Sacramentalidade da Palavra. A Palavra é sinal vivo de Deus na nossa
vida. Este fato pode ser entendido “através da analogia com a presença real de Cristo sob
as espécies do pão e do vinho consagrados.” Quando vamos a Missa, comungamos o cor-
po e o sangue de Jesus. Da mesma forma ao se proclamar a Palavra “é o próprio Cristo
que Se faz presente e Se dirige a nós para ser acolhido.” (Bento XVI “Verbum Domini”) Por
fim, a Dei Verbum atesta que “Realmente presente nas espécies do pão e do vinho, Cristo
está presente, de modo análogo, também na Palavra proclamada na liturgia.” (Bento XVI
“Verbum Domini”).
A comunidade reunida, em torno da palavra, entra em comunhão com ela e, por
meio dela, com o próprio Cristo presente na Palavra. Esta é a força eucarística da Palavra
Sagrada. A Palavra de Deus, sendo gerada por Deus, orienta ao homem como ele deve viver
e, sendo a Palavra, pelo Espírito Santo, capaz de ser aplicada a todo contexto e forma de
vida humana, torna-se um dos meios que possibilitam, no hoje, a ocorrência da experiência
cristã dos primeiros seguidores de Cristo.

INDIVIDUALISMO: UM DESAFIO MODERNO A PROPOSTA DA PALAVRA


DE DEUS.

Até este ponto os articulistas trabalharam para apresentar a Palavra de Deus como
meio para a experiência do chamado ao seguimento feito por Jesus aos seus seguidores
de todos os tempos. Com isso pretendíamos identificar o que é convergente na experiência
do “segue-me” feita pelos primeiros cristãos e os discípulos de Jesus em tempos de mo-
dernidade líquida. É preciso que reconheçamos, assim como o fez o grande poeta Carlos
Drummond de Andrade: “Há uma pedra no meio do caminho”. A pedra da individualização
levou o homem a recusa daquilo que é comum, que é comunitário ou a “flexibilização” do
comunitário. Denuncia Bauman: “A individualização chegou para ficar; toda elaboração sobre
os meios de enfrentar seu impacto sobre o modo como levamos nossas vidas deve partir
do reconhecimento desse fato.” (BAUMAN, 2011, p.47). A experiência cristã, no hoje, não é
impossível, mas deve levar em consideração o que é próprio do nosso contexto. O processo
de individualização vem sendo construído na sociedade desde o despertar da modernidade
e em suas diferentes fases. Em cada fase foi-se afetando uma face da vida social. Por fim

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 345


os sólidos, isto é, tudo aquilo que a vida e o relacionamento social tinham por elemento
guia, elemento de certeza, ou seja, toda a gama de valores e tradições que guiavam a vida
e o relacionamento das e entre as pessoas, se liquefizeram. Bauman utilizando perguntas
retóricas questiona: “a modernidade não foi ‘liquefação’ desde o começo? Não foi o ‘derre-
timento dos sólidos’ seu maior passa tempo e principal realização? Em outras palavras, a
modernidade não foi ‘fluida’ desde a sua concepção? (BAUMAN, 2011, p.9)
Este é o contexto em que, hoje, se manifesta o chamado de cristo a todo ser huma-
no. A marca desta fase é a “individualização”. Bauman afirma que “A apresentação dos
membros como indivíduos é a marca registrada da sociedade moderna” (BAUMAN, 2011,
p.39). Esse processo tornou o ser humano totalmente voltado para si, para seus desejos,
vontades e necessidades. Escreve Bauman compilando o pensamento desta fase. “Não olhe
para trás, ou para cima; olhe para dentro de si mesmo, onde supostamente residem todas
as ferramentas necessárias ao aperfeiçoamento da vida – sua astúcia, vontade e poder.”
(BAUMAN, 2011, p.38).
É uma sociedade que exalta o egoísmo. Uma sociedade que desde os seus primeiros
tempos quis e promoveu a “libertação” do homem em relação ao comunitário. Isso tirou do
ser humano a identificação com um grupo, fator que influenciava, muito mais do que hoje,
na definição da identidade da pessoa. O processo de individualização colocou nas mãos de
cada indivíduo a obrigação de autoconstruir sua identidade. Bauman proclama, em poucas
palavras, este fato com a seguinte afirmação: “a ‘individualização’ consiste em transformar
a ‘identidade’ humana de um ‘dado’ em uma ‘tarefa’ e encarregar os atores da responsabi-
lidade de realizar essa tarefa e das consequências (assim como dos efeitos colaterais) de
sua realização.” (BAUMAN, 2011, p.40). A comunidade já não é mais referência para as
pessoas. O sentimento de pertença a uma comunidade foi letalmente atacado pela moder-
nidade. Ao se falar da comunidade eclesial esse ataque gerou a despreocupação, a falta de
engajamento e uma vivência da fé só em bases sentimentais. O elo fé – comunidade, como
um sólido do cristianismo, não passou sem sofrer seus abalos, sua liquefação.
A atual sociedade prega que nós nos bastamos a nós mesmos. Isto nos leva a rechaçar
o outro. “O que quer que os indivíduos façam quando se unem, e por mais benefícios que seu
trabalho conjunto possa trazer, eles o perceberão como limitação à sua liberdade de buscar o
que quer que lhes pareça adequado separadamente, e não ajudarão.” (BAUMAN, 2011, p.45).
Os articulistas, atentos a fala de Bauman, concluem que o comunitário, para o homem
de hoje, é visto como prisão que impossibilita a plena manifestação da liberdade humana.
Por outro lado, a recusa do comunitário condena o ser humano ao isolamento. A solidão
é o marca-passo do coração humano de hoje. Isto gerou comunidades nas quais os laços
humanos são frágeis e o compromisso com o comum é débil. “A única vantagem que a

346 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


companhia de outros sofredores pode trazer é garantir a cada um deles que enfrentar os
problemas solitariamente é o que todos fazem diariamente” (BAUMAN, 2011, p.45).
Em âmbito de experiência cristã, o isolamento do indivíduo cria uma capa impermea-
bilizante para a mesma experiência. Não estamos defendendo que fujamos de nosso con-
texto histórico, social, familiar. Defendemos e atestamos que a individualização, por mais
que à primeira vista pareça, não impede, de um todo, que a experiência seja feita. Ela, sim,
dificulta. Um caminho para a experiência está na cidadania. Bauman contrapõe o cidadão
e o indivíduo. “O ‘cidadão’ é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através
do bem-estar da cidade – enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em
relação à ‘causa comum’, ao ‘bem-- comum’, à ‘boa sociedade’, ou à ‘sociedade justa’.”
(BAUMAN, 2011, p.45). O cidadão assim como o cristão aceita o bem-estar, quer tê-lo, mas
ele não pode possuí-lo sabendo que existe muitos outros homens definhando de fome, sede
etc. Assim o bem-estar que é usufruído pelo cristão deve vir por meio do comum.

CATEQUESE CONTEMPORÂNEA: URGÊNCIA DE UMA NOVA PRÁXIS

Nessa fase do presente artigo discutiremos como a fase líquida da modernidade atinge
a catequese local onde, teoricamente, o cristão deveria ter um contato mais íntimo com a
Palavra e assim ser despertado para a sua missão no mundo. Este contato que se torna o
“start”, como já destacamos, para a verdadeira experiência cristã. Experiência que, quando
autêntica, conduz a uma resposta positiva ao chamamento de Cristo.
Muitos catequetas e teólogos se colocam a produzir uma intensa gama de material
científico sobre o tema. Neste nosso trabalho seguiremos a trilha da Dra. Solange Maria
do Carmo. Em sua tese de doutorado a presente pesquisadora se coloca a refletir sobre a
grande crise da catequese na atual fase histórica.
A autora inicia sua fala refletindo sobre a origem da crise catequética. Ela identifica a
citada crise dentro de uma crise maior: a crise do cristianismo. Esta é real e corrói a instituição
eclesial. Dissertar sobre a crise da catequese significa admitir que ela é filha de uma crise
muito mais profunda. Assim a crise cristã “se estende também para o campo catequético.”
(CARMO, 2012, p. 25)
A pesquisadora reconhece que nem tudo está perdido, que na escuridão da crise há
luzes tímidas de esperança, sinais da graça de Deus agindo, no entanto, estas luzes “não
conseguem ofuscar a dolorosa realidade de um sistema em crise” (CARMO, 2012, p.25).
Diante desta realidade, a autora reconhece que é preciso dedicação para se levar adiante
o evangelho. Diz ela que esta realidade “nos impulsiona a buscar sempre o melhor de nós,
como colaboradores na obra divina da evangelização.” (CARMO, 2012, p.25). Os articulistas

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 347


partilham desta empolgação da Doutora. Reconhece-se o desafio, mas o desejo de ajudar
na divina obra de evangelizar faz da crise um estímulo a melhorar.
A autora desdobra o tema em sinais, fortemente presentes na sociedade, desta crise
catequética, a saber, “a crise da transmissão […]; o fracasso do processo tradicional de
iniciação […]; e a precariedade da catequese com adultos” (CARMO, 2012, p.23).
Ao dizer crise de transmissão a autora se refere ao número sempre crescente de pes-
soas das novas gerações que não são adeptas ao cristianismo, ou seja, as novas gerações
estão se distanciando do cristianismo. “Apesar de os catequetas entenderem que a crise
de transmissão tem contornos para além de suas fronteiras e acontece também em outros
setores da sociedade, não deixa de ser preocupante o fato de ela não poupar a catequese.”
(CARMO, 2012, p.26). Após uma análise estatística do cristianismo na França, a qual não
iremos pormenorizar, pois não é este o nosso foco, basta que saibamos que esta análise
deixa evidente a queda vertiginosa de cristãos entre as novas gerações, a autora conclui “que
a crise da catequese não é, em primeiro lugar, uma crise dos meios de transmissão, uma
vez que o século XX foi muito frutuoso nos descobrimentos psicopedagógicos.” (CARMO,
2012, p.27). Para a autora “a crise se assenta sobre um questionamento acerca do que é
transmitido. Parece que o que está sendo transmitido perdeu sua importância para o mun-
do contemporâneo.” (CARMO, 2012, p.27). Para os articulistas esta fala da autora deixa
transparecer que a crise da catequese, e por consequência a crise do cristianismo, se trata,
na verdade, de uma crise de fé. A nossa catequeta prossegue analisando o “fracasso do
processo tradicional de iniciação cristã” (CARMO, 2012, p.27).
Desde o Papa Pio X a Igreja investe na catequese como preparação para a primeira
eucaristia de crianças. “Pensava-se que, uma vez recebida a fé no seio da família que ga-
rantia o batismo a seus filhos, a catequese deveria completar o processo de iniciação cristã,
dando-lhe acabamento.” (CARMO, 2012, p.27) Como resultado deste processo tem-se hoje
pais que não são evangelizados, incapazes de transmitir a seus filhos a fé. “E se a fé não
flui mais naturalmente na família, a catequese não pode mais se dar ao luxo de acompanhar
ou burilar uma fé que não existe, visando ao acabamento do processo iniciático.” (CARMO,
2012, p.27). A catequese hoje tem a árdua missão de primeiro despertar o desejo pela pro-
fissão de fé, ajudar aqueles que desejam fazer o caminho e concluir ajudando ao neo-cristão
a viver a fé em sua plenitude. (CARMO, 2012).
Hoje, no entanto, há um perigoso descompasso entre a necessidade da Igreja e o que
a catequese está oferecendo a mesma. “O sistema catequético foi elaborado para ‘nutrir a
fé’ e não para ‘propor a fé’” (CARMO, 2012, p.28). Diante desta realidade a autora questiona:
“Como fazer um paciente e elaborado trabalho evangelizador para que os catequizandos se
interessem pelo evangelho e respondam pessoalmente ao apelo do Deus de Jesus Cristo

348 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


que lhes fala?” (CARMO, 2012, p.28). A autora admite que para se dar uma resposta à altura
da pergunta será preciso um gigantesco trabalho que terá de mudar uma mentalidade de
séculos de tradição. “São séculos de um trabalho catequético realizado em ritmo que não
agrada nem funciona mais, e mexer nessa música certamente vai exigir muito traquejo para
não se perder o passo da dança” (CARMO, 2012, p.28).
Entre os desafios a esta mudança está o conceito tradicional de iniciação. O processo
de iniciação foi pensado para pessoas sem o batismo, porém, hoje, se tem batizados não
evangelizados. Assim “nos dizeres de Derroite: ‘o processo de iniciação cristã tornou-se
processo de conclusão para muitos porque ele fecha o período de prática religiosa de mui-
tos jovens’” (CARMO, 2012, p.29). A causa disto pode estar no descompasso entre o que
é oferecido pela Igreja e o que o povo almeja, isto é, a Igreja oferece uma proposta de vida
por meio dos sacramentos, enquanto o povo tem nos sacramentos manifestações folclóricas.
(CARMO, 2012). Caminhos de vida são sólidos e muitas vezes limitam a liberdade de se
fazer o que se quer. Como já foi dito nós somos constantemente estimulados a abandonar
os sólidos. (BAUMAN, 2001).
Em relação à catequese com adultos a realidade não é muito melhor. Carmo constata
em sua pesquisa que uma “verdade é desconcertante: a catequese não sabe catequizar
adultos; ela foi totalmente pensada para a infância” (CARMO, 2012, p.30). Junto a este triste
fato tem-se “a caducidade da linguagem religiosa” (CARMO, 2012, p.30). Isto é, a comu-
nidade e em consequência a catequese, usa uma linguagem que nada fala ao homem de
hoje. (CARMO, 2012). Esta realidade é um dos pilares da crise. Se não há uma comunica-
ção entre comunidade, catecúmeno, realidade vivenciada é impossível uma fé sólida que
permita a transformação da realidade e, portanto, não se tem uma autêntica experiência
do cristianismo, haja vista que é inerente a esta transformação a melhora do mundo que se
tem de entorno ao cristão.
No terceiro capítulo de sua tese a pesquisadora se coloca a refletir sobre os desafios
catequéticos vivenciados especificamente na pós-modernidade, ou, como é denominada
esta fase por Bauman, Modernidade líquida.
A proposta da autora para este capítulo de sua tese é “pontuar as mais significativas
mudanças da gramática simbólica do homem contemporâneo levantadas pelo teólogo fran-
cês Denis Villepelet e, depois, considerar seus influxos sobre a catequese.” (CARMO, 2012,
p.127). A autora pergunta: como transmitir a fé ao homem de hoje?
Para responder a esta pergunta ela inicia uma análise do hoje, isto é, da pós- moder-
nidade. Para ela se trata de um tempo “multirreferencial” (CARMO, 2012, p.127). Em outras
palavras “uma sociedade de ethos não evolucionário se impõe hoje.” (CARMO, 2012, p.127).
Ela explica esta afirmação da seguinte forma: “O futuro não se apresenta mais como um hoje

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 349


aumentado e melhor. Ele pode ser qualquer coisa, inclusive a irrupção do inesperado, a não
continuidade do que se construiu. Tudo depende das oportunidades que se descortinam no
horizonte do acaso.” Nas palavras de Bauman (2001) tudo é fluído.
Mudou-se também a maneira pela qual se trabalha com o espaço e o tempo: “Coma
virtualização dos espaços, promovida pelo mundo da internet e pela facilidade de movimenta-
ção no planeta, o homem contemporâneo está em toda parte e em lugar nenhum.” (CARMO,
2012, p.127). Ao que toca o tempo ele volta seus olhos para o presente “O passado já se foi
e não volta mais. Ele não recebe mais a tradição como outrora. O futuro ainda não chegou
e tornou-se nebuloso. Resta-lhe apenas o presente, o instante atual, do qual ele deve fruir
todo prazer, antes que a morte o visite.” (CARMO, 2012, p.128). A sociedade de hoje tam-
bém vive a ditadura do digital. A substituição do simbólico pelo digital. “Tudo se comunica
e se intercomunica na tela de um computador, de uma televisão, de pequenos aparelhos
eletrônicos que se tornaram companheiros diários.” (CARMO, 2012, p.128). Desta forma “o
mundo virtual ganha credibilidade e sua força irrompe de tal forma que o real fica referido a
ele.” (CARMO, 2012, p.128).
E qual a relação disto tudo com a práxis catequética? Vejamos o que nos diz a autora.
São apresentados quatro desafios para a catequese frente ao contexto atual. O primeiro
é “O desafio da interioridade, a obrigação de construir sua própria identidade, impõe-se de-
vido à fragmentação da sociedade e à falta de referências a que o homem contemporâneo
está sujeito.” (CARMO, 2012, p.129); Segundo: “O desafio querigmático advém da secula-
rização e do apagamento da memória cristã na sociedade, do déficit de iniciação cristã que
hoje é observado em nosso meio.” (CARMO, 2012, p.129); terceiro “O desafio educativo
surge da incompatibilidade da transmissão da experiência cristã com a pedagogia escolar
do ensino-aprendizagem.” (CARMO, 2012, p.129); quarto: “O desafio comunitário se delineia
no cenário atual como um dos mais difíceis a ser superado. Ele vem da subjetivação da fé,
própria da psicologização do social. […]. E a fé cristã, essencialmente eclesial, ficou com
seus laços de pertença afrouxados”. (CARMO, 2012, p.129).
Em conclusão a este capítulo e relacionando os conceitos supracitados Carmo ates-
ta que se percebe “que a fé cristã se encontra hoje desafiada a dar uma resposta a esse
mundo” (CARMO, 2012, p.176). Isto porque “o fato de nossa sociedade se encontrar em
estado permanente de crise não significa que ela é avessa ao evangelho.” (CARMO, 2012,
p.176). No entanto “a fé não pode mais ser vista como uma herança, um legado transmitido
uma vez por todas, mas como um processo constante de crise, que se desencadeia graças
ao escândalo do mistério pascal.” (CARMO, 2012, p.176). A práxis catequética tem de se
alterar para atender as necessidades do homem pós-moderno.

350 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Relacionando os desafios pós-modernos da catequese e a práxis catequética no
hoje destaca a autora que “o desafio da interioridade nos impele a ajudar os catequizan-
dos na procura de si mesmos, sem confundir personalização com busca narcísica de si.”
(CARMO, 2012, p.176).
Em relação ao segundo desafio o “desafio querigmático, Villepelet mostrou como se faz
urgente dar maior acento ao polo querigmático da fé sem, no entanto, perder as conquistas
que o polo antropológico alcançou.” (CARMO, 2012, p.177). Quanto ao desafio educativo
a autora, a partir de Villepelet, mostra que a pedagogia escolar moderna “elimina o misté-
rio, pois o entende como um enigma a ser decifrado ao fim das especulações humanas.
Se, na fé cristã, o mistério pascal tem primazia, essa pedagogia não se apresenta como a
mais oportuna para a comunicação da fé.” (CARMO, 2012, p.177). Desta forma “O desafio
pedagógico da catequese consiste em descobrir ou redescobrir a pedagogia original da fé:
a iniciação.” (CARMO, 2012, p.177).
Prosseguindo “Quanto ao desafio comunitário, talvez o mais difícil de ser encarado,
Villepelet insiste que a subjetivação da crença e o individualismo não eliminam a partilha
e a troca de experiências”. Assim “o Deus de Jesus Cristo se comunica no íntimo do cora-
ção, mas não no isolamento, porque em Cristo todos se tornam irmãos” (CARMO, 2012,
p.177). A fraternidade é um imperativo para a experiência cristã de Deus.
Os articulistas concluem, afirmando, de forma uníssona à nossa autora, que “urge
pensar a catequese sobre novas bases” (CARMO, 2012, p. 179). É preciso ressaltar que os
articulistas não fazem um juízo de valor em relação à catequese. Fazemos sim uma breve
análise de seu desenvolvimento e de suas condições no hoje, assim como suas urgências
para o amanhã. Diante de tudo o que foi pensado e supra exposto permanece a questão:
“Neste contexto de diáspora, onde os cristãos são em pequeno número e estão dispersos
no meio do mundo, qual o papel da catequese?” (CARMO, 2012, p.190).
Esta é uma complexa questão. Descrevendo o pensamento de Villepelet nossa au-
tora explicita a já evidente necessidade de trocar uma catequese de cunho antropológico
por uma catequese querigmática. Uma catequese que se preocupa em fortalecer uma fé
já presente por uma catequese que propõe a fé. “Deus desapareceu do horizonte cultural
e sua presença não é mais evidente” (CARMO, 2012, 190). Diante deste fato, “Diante de
tantas angústias, tantos medos e inseguranças, o homem pós-moderno se pergunta como
Castro Alves: Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?” (CARMO, 2012, p.190- 191).
Essa postura de Deus “Para Villepelet, esse escondimento de Deus, próprio das socie-
dades secularizadas, interpela a Igreja a dar uma orientação resolutamente mais querigmática
que antropológica à catequese.” (CARMO, 2012, p.191). Isto não é de todo ruim, pode ser,

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 351


na realidade, uma oportunidade. “A ausência de Deus é uma ocasião para sua descoberta;
a secularização é oportunidade de verdadeira experiência religiosa.” (CARMO, 2012, p.191)
De uma análise mais acurada da sociedade já se percebe que “o cristianismo perdeu
seu caráter instituído, mas não perdeu sua força instituinte, transformadora.” (CARMO, 2012,
p.191). Isto, porém “convida a uma conversão: a passagem de uma catequese que mantém
e consolida a fé a uma catequese que propõe a radical novidade do evangelho.” (CARMO,
2012, p.191) Isto se faz urgente já que “para o homem pós- moderno, a proposta cristã não
passa de lengalengas sem sentido, de velhas histórias desgastadas, que nada mais têm a
oferecer” (CARMO, 2012, p.192). Conclui a autora: “Insistir no polo querigmático da cate-
quese é tornar a boa-nova conhecida, revelando todo seu frescor e toda sua singularidade.”
(CARMO, 2012, p.192).

COMUNIDADE: IGREJA VIVA A CATEQUISAR

Juan A. Ruiz de Gopegui, SJ em artigo intitulado “Catequese e comunidade cristã” deixa


bem claro que para se renovar a catequese é necessária uma renovação da comunidade
cristã. Por renovação os articulistas intendem o retorno à mensagem, ou melhor, a pessoa
que funda o próprio cristianismo: Jesus de Nazaré.
Mais do que imitadores de Cristo somos discípulos, isto é, amigos que com ele se coloca
à mesa para escutá-lo e seguir suas orientações. Gopegui lembra que “o Rito de Iniciação
Cristã dos Adultos, que restaura o catecumenato em várias etapas, mostra bem como toda
a comunidade cristã é responsável pela catequese.” (2005, p.325). Ele prossegue explican-
do que na segunda e terceira fase do processo de iniciação o catecúmeno é convidado a
partilhar com os demais membros da comunidade a celebração litúrgica da Palavra. Ele não
descarta a necessidade de uma catequese especializada àquela pessoa, no entanto, o que é
absorvido pelo catecúmeno “convergirá para o momento da celebração litúrgica da Palavra,
no qual tem lugar a ‘iniciação’ à escuta e acolhida de uma Palavra pronunciada pelo próprio
Deus no coração do catecúmeno, em comunhão incipiente com a comunidade.” (GOPEGUI,
2005, p.325). Desta forma “fazer, no seio da comunidade, a experiência espiritual de reco-
nhecer e acolher uma Palavra, cuja origem, para além dos lábios humanos que a proclamam,
remonta ao Deus vivo, é o cerne irrenunciável da iniciação cristã.” (GOPEGUI, 2005, p.325)
Por isso “fica patente que o sujeito principal da catequese é a comunidade cristã, por ser
sujeito da celebração litúrgica como afirma a Constuição Sacrosanctum Concilium sobre a
Liturgia.” (GOPEGUI, 2005, p.326)
Assim a liturgia deve dar fruto na vida do cristão. Para isto acontecer, no entanto, “depen-
de em grande parte o resultado da catequese como iniciação permanente à vida cristã. E isto

352 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


obriga a afirmar que depende da qualidade da vida toda da comunidade cristã – porque os
sacramentos são sinais de realidades que acontecem na vida toda.” (GOPEGUI, 2005, p.326)
É, portanto, uma urgência a maturação da fé. A fé amadurecida é aquela que “surge
quando uma pessoa reconhece, na figura de Jesus Cristo, presencializada significativamente
pelo testemunho eclesial do Querigma, o próprio Deus dirigindo-se a ela e convidando-a a
estabelecer com Ele uma relação de amor.” (GOPEGUI, 2005, p.327).
Segundo o autor, em Deus está as respostas para todas as questões humanas. Vale
salientar que os articulistas endossam este posicionamento. Isto também nos diz “que a
experiência de Deus, na atual condição humana é sempre mediada pela experiência dos
outros e do mundo.” (GOPEGUI, 2005, p.327). Esclarece o autor: “Eis porque a catequese
para conduzir a uma experiência de Deus, capaz de amadurecer com o amadurecimento da
vida, terá que ajudar a pessoa à compreensão progressiva da sua existência e do mundo que
a circunda.” (GOPEGUI, 2005, p.328). Gopegui aprofundando sua fala afirma que “é dentro
dessa visão de si e do mundo, que a figura de Jesus Cristo, apresentada pelo conjunto da
vida da comunidade evangelizadora, deverá ser reconhecida como Palavra de Deus que
pede uma resposta de entrega incondicional.” (GOPEGUI, 2005, p.328)
Neste sentido não é um processo de repúdio do que a catequese já passou se trata sim
“de recolher o longo e fecundo caminho de renovação, nos seus diversos aspetos – pedagó-
gico, querigmático narrativo, profético, ecumênico – e integrá-los progressivamente com a
totalidade da vida da comunidade cristã.” (GOPEGUI, 2005, p.328). Desta forma “a catequese
influenciará a vida da comunidade – a sua liturgia, a sua pastoral, os seus engajamentos
sócio-políticos – e a vida da comunidade influenciará a catequese” (GOPEGUI, 2005, p.328).

CONCLUSÃO

A experiência cristã é possível hoje como foi antes. Estamos em um contexto que exalta
o egoísmo, mas este não precisa ser o diapasão com o qual afinamos nossa vida. O cris-
tão-cidadão deixa-se tocar pela Palavra num processo de interação com a mesma. Essa
interação é possível porque o texto bíblico sendo inspirado pelo Espírito Santo e interpretado
pela Igreja ganha sentido na vida da pessoa.
O literário e o teológico caminham juntos nesse processo. Uma vez que a pessoa
passa a orientar a sua vida pela Palavra de Deus, ela rompe com o individualismo e inicia
a sua volta a um novo jeito de viver. A experiência do “segue-me” se concretiza. A realida-
de se transforma.
Neste processo a catequese tem uma especial contribuição a apresentar. Ela é o es-
paço da comunidade cristã onde as novas gerações são formadas. No entanto, este espaço
hoje não atende as necessidades dos homens modernos. A pós-modernidade atingiu em

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 353


cheio o processo catequético. Isto fez dele um espaço que perdeu sua atratividade para
as novas gerações.
É necessário reafirmar, porém que a catequese é espaço de atuação da graça divina.
Muito já se atualizou na catequese. Aqui os articulistas se referem a atualizar como um pro-
cesso aplica do ao meio de transmissão da mensagem catequética e não um processo que
atinge a mensagem catequética. Há sim um longo caminha a se percorrer. Mas, enquanto
Igreja, responderemos ao Senhor “Eis a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a
tua palavra” (Lc 1, 38).

REFERÊNCIAS
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280p.

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– Faculdade Jesuíta de Filosofia e teologia/Departamento de teologia.

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18. IGREJA CATÓLICA. Compêndio do Catecismo da Igreja católica. Disponível em:‹http://www.


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Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 355


26
“ Princípios ambientais e sua
relação com o mandato cultural
expresso em GN 1. 26-31 e GN
2. 5-8

Marilze Wischral Rodrigues


EST – São Leopoldo

Stélio João Rodrigues


EST - São Leopoldo

10.37885/201001685
RESUMO

Compreender o relacionamento de Deus criador com a sua criação é um desafio que nos
proporciona uma aproximação com Ele. Esta pesquisa propõe compreender a ordem
dada por Deus em Gênesis 1.26-31 e 2.5-8. Nesta perspectiva, como a comunidade
cristã assume os princípios ambientais em suas pregações? Faz-se necessário destacar
pontos de analogia entre meio ambiente e os textos bíblicos de Gênesis para a homilia
cristã; analisar os princípios ambientais e sua relação com Gênesis 1.26-31 e 2.5-8 para
compreensão dos valores inerentes ao relacionamento criador e criatura; conhecer os
princípios ambientais que são destacados nos relatos de Gênesis e sua importância na
comunidade cristã. Esta investigação apresenta como organização: uma introdução;
dois capítulos que contêm a fundamentação teórica; considerações finais e bibliogra-
fia. No primeiro capítulo, descrevemos sobre ecologia destacando conceitos, princípios
ambientais conforme a Conferência Rio-92. No segundo capítulo, discorremos sobre
Gênesis 1.26-31 e 2.5-8, chamado de mandato cultural, sua definição, enfocando também
as relações de Deus com a sua criação. A pesquisa termina com as considerações finais
que fazem a síntese do trabalho. Os textos mostraram que o pecado traz o afastamento
do homem da presença de Deus e consequentemente a depredação e devastação do
meio ambiente, contrariando a ordem dada pelo Criador de ter o domínio sobre a criação,
de forma responsável voltando os olhos para o Criador.

Palavras-chave: Mandato Cultural, Ecologia, Gênesis, Criador.


INTRODUÇÃO

Como cristãos precisamos entender o relacionamento de Deus Criador com a sua


criação, sendo mensageiros da boa nova, atentos para os problemas ambientais que estão
a nossa volta e que trazem diferenças e divisões entre as pessoas (guerras, fome, pobreza,
poluição, doenças...).
Quando Deus criou o ser humano (Adam), colocou-o em um jardim (Gn 2.8), com a
responsabilidade de cuidar dele. Pode ser que nem todos nós tenhamos jardins, mas como
descendentes de Adão e Eva, todos nós temos uma responsabilidade pelo ‘grande jardim’
ao nosso redor – o meio ambiente. Somente quando Deus refizer completamente o universo,
nós e o meio ambiente estaremos em perfeita harmonia. Lembrando que a Bíblia nos dá
algumas diretrizes sobre como viver aqui nos dias de hoje.
Defrontamo-nos com toda uma série de problemas globais, “erosão, desmatamento, de-
sertificação, destino de resíduos, poluição do solo, da água, do ar, chuvas ácidas, efeito estufa
entre outros que estão danificando a biosfera e a vida humana de uma maneira alarmante, e
que pode logo se tornar irreversível”1. Quanto mais estudamos os principais problemas de nossa
época, mais somos levados a perceber que eles não podem ser entendidos isoladamente. São
problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes.
Nesta perspectiva, a comunidade cristã em relação com Gênesis 1.26-31 e 2.5-8 assu-
me os princípios ambientais em suas pregações? A comunidade cristã, precisa reconhecer
que Deus a envia a um mundo secular. Sendo assim “os cristãos precisam ocupar seus luga-
res onde estiverem: no escritório, na fábrica, na escola, na agricultura, lutando sempre pela
paz e por uma ordem justa, no relacionamento com os diversos setores sociais e raciais”2.
Faz-se necessário destacar pontos de analogia entre meio ambiente e os textos bíblicos
destacando os de Gênesis 1.26-31 e 2.5-8 para a homilia cristã e analisar os princípios am-
bientais e sua relação com Gênesis 1.26-31 e 2.5-8 para compreensão dos valores inerentes
ao relacionamento criador e criatura. Precisamos conhecer os princípios ambientais que são
destacados nos relatos de Gênesis 1.26-31 e 2.5-8 e sua importância na comunidade cristã.
Gênesis 1 foi escrito por um grupo sacerdotal por volta do século IV ou V a.C, contendo
uma forte ligação com a mitologia babilônica. Em Gênesis 1 o foco esta na criação. A rela-
ção do homem com os seres criados é de dominar Em Gênesis 2 o texto não é sacerdotal
e sim pré-sacerdotal escrito provavelmente com fontes orais não sendo possível datar com
precisão, estima-se que foi escrito por volta do século VIII e IX a.C. Gênesis 2 está focalizado
no homem e sua relação com os outros seres da criação é de servir.

1 ROSA, Antônio Carlos Machado da. Problemas e potencialidades ambientais globais, regionais, estaduais e locais. In: Educação
Ambiental: curso básico a distancia. Brasília: MMA, 2001. pp.209-235.
2 MÜLLER, Karl, Teologia da Missão. Ed. Vozes, 1995. p.111

358 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


É necessário que tenhamos atitudes concretas, e crendo nEle não sejamos irrespon-
sáveis, descuidados com nossos corpos e com o meio, onde vivemos e desfrutamos de sua
beleza infinita, sem desviar do nosso compromisso presente de fazer diferença, sem afastar
do criador e adorar a criação. A terra clama, a degradação da natureza é uma consequência
direta da queda do homem.
O cuidado com ela e os animais deve ser verdadeiro como está escrito em Deuteronômio
22:6-7. “Quando encontrares algum ninho de aves no caminho em alguma árvore, ou no chão,
com passarinhos ou ovos, não tomarás a mãe com filhotes. Deixarás ir livremente a mãe, e
os filhos tomarás para ti; para que bem te vá, e para que prolongue teus dias”. E ainda em
Salmos 24:1. “Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que nele habitam”.

ECOLOGIA, PRINCÍPIOS AMBIENTAIS E MEIO AMBIENTE

No momento atual, nossas posturas, atitudes e procedimentos com o meio ambiente


podem determinar a sobrevivência planetária e interplanetária. Estas posturas estão intima-
mente ligadas com a nossa responsabilidade de mudanças que está em cada um de nós.
Começar com nós mesmos, ensinando-nos a não fechar as nossas mentes para as ideias
novas significa começar este processo de reconstrução agora. Assim, nós e nossos filhos
poderemos tomar parte na reconstituição da própria civilização3.
Embora no passado não se tivesse um conceito definido sobre Ecologia, esta área da
ciência preocupava os pensadores da antiguidade, como Aristóteles (384 a.C. a 322 a.C.)
que em seu livro História dos Animais, percebia a interação das espécies no seu habitat,
através da cadeia alimentar, observações estas, mencionadas na obra Filosofia da História4.
Somente em 1866, o naturalista alemão Ernest H. Haeckel denominou essa ciência de
“ecologia”, palavra de origem grega, oikoslogia que significa “estudo da casa”5. Capra6 e
Simpson7 abordam o tema ecológico e pedagógico descrevendo em suas obras as influências
nefastas e deturpadoras que tiveram repercussões éticas, ideológicas e políticas que foram
e continuam sendo um legado negativo do uso da Tecnologia e da Ciência cuja finalidade
visava o domínio da Natureza, sem o cuidado da preservação e da reposição das espécies.
Simpson8 cita Darwin em sua obra A Origem das Espécies, para mostrar o efeito causa-
do pela ideia da Seleção Natural, em que o equilíbrio entre as espécies é alcançado apenas
pela eliminação ou luta entre as mesmas. A seleção possibilitaria, desta forma, o equilíbrio ao

3 TOFFLER, Alvin. A terceira onda. Rio de Janeiro: Record, 1980


4 DURANT, W. A História da Filosofia. Rio de Janeiro: Nova Cultura, 1996.
5 MARGALEF, R. Ecologia. Barcelona, Omega, 1982
6 CAPRA, Fritjof. Teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1996.
7 SIMPSON, G.G. O Significado da Evolução. São Paulo: Pioneira Editora, 1962 .
8 SIMPSON, op.cit. p.29

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 359


evitar a superpopulação. Ocorre, porém, que esse ensinamento gerou um enorme equívoco
ao se interpretar popularmente que “a Natureza teria garras e dentes sangrentos”.
Dias9 relata que filósofos, cientistas, artistas, religiosos têm ao longo da escalada
humana, expressado a sua admiração pela natureza, e a sua preocupação em protegê-la.
Foram legadas reflexões filosóficas de grande sensibilidade pelas culturas orientais e gregas
a respeito das relações entre homem-natureza.
Em 1863, Thomas Huxley escrevia sobre as interdependências entre os seres hu-
manos e os demais seres vivos no seu ensaio “Evidências sobre o Lugar do Homem na
Natureza”. No ano seguinte, George P. Marsh no seu livro “O Homem e a Natureza”, apre-
sentou um exame detalhado da ação do homem sobre os recursos naturais e chamava a
atenção para as causas do declínio de civilizações antigas, acentuando que as civilizações
modernas poderiam estar no mesmo caminho.
As primeiras evidências de uma preocupação ecológica mundial, embora não haja
nenhuma menção de maneira explícita, surgiu em 1945, na Organização das Nações
Unidas. Na época, propunha-se como tarefa fundamental a segurança mundial. Em 1972,
na esteira da ONU, o Clube de Roma lançou um alarme ecológico sobre o estado doentio
do planeta Terra. Após estudos e debates, esse grupo identificou como a principal causa o
“padrão de desenvolvimento consumista, predatório e perdulário”. Desde então surgiu, nos
meios que estudam a questão ecológica, o termo “desenvolvimento sustentado”.
A questão ecológica transcende o cuidado com a Criação, sendo necessário um novo
pacto social de responsabilidade entre todos os humanos, o que implicaria em uma revisão
das estruturas mais cristalizadas da sociedade mundial. Um documento foi escrito e cha-
mado de Carta da Terra10.
Ela enumera pelo menos quatro pontos básicos que precisariam ser revistos por esse
pacto: respeito e cuidado da comunidade da vida; integridade da vida; justiça social e eco-
nômica; democracia, não-violência e paz. Ou seja, a questão da Ecologia passa neces-
sariamente por um espectro muito mais amplo, envolvendo questões sociais, políticas e
econômicas ao redor do planeta.
A partir de então, um longo caminho foi percorrido através de Conferências, Congressos,
Declarações, Recomendações, Princípios e Estratégias, culminando na famosa Agenda 21
da Eco Rio-92, e, mais recentemente, com a elaboração de “A Carta Terra”, encontro ocorrido
em dezoito a dezenove de março de mil novecentos e noventa e sete, na cidade do Rio de
Janeiro, também conhecida por Rio+5.

9 DIAS, G.F. Atividades Interdisciplinares de Educação Ambiental. São Paulo: Global, 1994
10 A Carta da Terra é um documento que foi trabalhado por mais de 46 países e cerca de 100 mil pessoas. Depois de finalizado em mar-
ço de 2000 aguarda o endosso da Organização das Nações Unidas. Pretende-se que após aprovada pela ONU, ela tenha o mesmo
valor que a Carta dos Direitos Humanos. http://www.culturabrasil.org/cartadaterra.htm

360 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Nestes últimos encontros, ficou clara a necessidade de se respeitar os valores que
tornem a sociedade humana mais justa, tais como, o estudo da sociedade em si, a ética, o
respeito à vida, a responsabilidade, a honestidade, a amizade entre outros, a democracia.
Todos esses princípios, na verdade, são apontados como a base que define a prática da
Educação Ambiental (EA).
Portanto, o resgate desses valores deve ser realizado pela EA, a educação clássica
formal não cumpriu seu papel, pois parece ter se preocupado apenas com um massivo ensino
teórico. A EA veio aliar a teoria à prática, na tentativa de resgatar os valores já mencionados.
Segundo o Fórum Global, evento que ocorreu durante a Conferência da ONU sobre
Desenvolvimento e Meio Ambiente, no Rio de Janeiro, em 1992 (Rio-92) reafirma-se os
princípios da educação para sociedades sustentáveis e responsabilidade global:

1. A educação é um direito de todos; somos todos aprendizes e educadores.

2. A educação ambiental deve ter como base o pensamento crítico e inovador,


em qualquer tempo ou lugar, em seus modos: formal, não formal e informal,
promovendo a transformação e a construção da sociedade.

3. A educação ambiental é individual e coletiva. Tem o propósito de formar ci-


dadãos com consciência local e planetária, que respeitem a autodeterminação
dos povos e a soberania das nações.

A Carta da Terra é um documento que foi trabalhado por mais de 46 países e cerca de
100 mil pessoas. Depois de finalizado em março de 2000 aguarda o endosso da Organização
das Nações Unidas. Pretende-se que após aprovada pela ONU, ela tenha o mesmo valor
que a Carta dos Direitos Humanos. http://www.culturabrasil.org/cartadaterra.htm

4. A educação ambiental não é neutra, mas ideológica. É um ato político, ba-


seado em valores para a transformação social.

5. A educação ambiental deve envolver uma perspectiva holística, enfocando a


relação entre o ser humano, a natureza e o universo de forma interdisciplinar.

6. A educação ambiental deve estimular a solidariedade, a igualdade e o res-


peito aos direitos humanos, valendo-se de estratégias democráticas e interação
entre as culturas.

7. A educação ambiental deve tratar as questões globais críticas, suas cau-


sas e inter-relações em uma perspectiva sistêmica, em seu contexto social e
histórico. Aspectos primordiais relacionados ao desenvolvimento e ao meio
ambiente, tais como população, saúde, paz, direitos humanos, democracia,
fome, degradação da flora e fauna, devem ser abordados dessa maneira.

8. A educação ambiental deve facilitar a cooperação mútua e equitativa nos


processos de decisão, em todos os níveis e etapas.

9. A educação ambiental deve recuperar reconhecer, respeitar, refletir e utilizar

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 361


a história indígena e culturas locais, assim como promover a diversidade cul-
tural, linguística e ecológicas. Isto implica uma revisão da história dos povos
nativos para modificar os enfoques etnocêntricos, até de estimular a educação
bilíngue.

10. A educação ambiental deve estimular e potencializar o poder das diversas


populações, promover oportunidades para as mudanças democráticas de
base que estimulem os setores populares da sociedade. Isto implica que as
comunidades devem retomar a condução de seus próprios destinos.

11. A educação ambiental valoriza as diferentes formas de conhecimento.


Este é diversificado, acumulado e produzido socialmente, não devendo ser
patenteado ou monopolizado.

12. A educação ambiental deve ser planejada para capacitar as pessoas a


trabalharem conflitos de maneira justa e humana.

13. A educação ambiental deve promover a cooperação e o diálogo entre indi-


víduos e instituições, com a finalidade de criar novos modos de vida, baseados
em atender às necessidades básicas de todos, sem distinções étnicas, físicas,
de gênero, idade, religião, classe ou mentais.

14. A educação ambiental requer a democratização dos meios de comunicação


de massa e seu comprometimento com os interesses de todos os setores da
sociedade. A comunicação é um direito inalienável e os meios de comunicação
de massa devem ser transformados em um canal privilegiado de educação,
não somente disseminando informações em bases igualitárias, mas também
promovendo intercâmbio de experiências, métodos e valores.

15. A educação ambiental deve integrar conhecimentos, aptidões, valores, ati-


tudes e ações. Deve converter cada oportunidade em experiências educativas
de sociedades sustentáveis.

16. A educação ambiental deve ajudar a desenvolver uma consciência ética


sobre todas as formas de vida com as quais compartilhamos este planeta,
respeitar seus ciclos vitais e impor limites à exploração dessas formas de vida
pelos seres humanos11.

A natureza vem sendo massacrada, de forma contínua e infalível, posto que, as pa-
lavras dos governos que estão à frente dos destinos deste planeta, não condizem com a
realidade dos fatos. Falam a linguagem dos ambientalistas, com o desencantado desenvol-
vimento sustentável, mas na prática a realidade é outra. Caso mais recente é o dos Estados
Unidos da América que levou o presidente, a recusar-se a assinar o “Protocolo de Kyoto”
que estabelece regras para diminuir, a níveis aceitáveis, a quantidade de gases poluentes
na atmosfera, afirmando, conforme Dias12 que esta assinatura iria inviabilizar o desenvol-
vimento econômico do país

11 LEITE, Ana L.T. de Aquino e MININNI-MEDINA, Nana (Coord). Educação ambiental: curso básico à distância. 5v. Brasília: MMA,
2001.p.69-70.
12 DIAS, G.F. Educação ambiental: princípios e práticas. São Paulo: Gaia, 2000.

362 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


É necessário que entendamos as leis que regem a dinâmica da vida na natureza e sua
harmonia, bem como estar ciente de que não nos faltam ciência e tecnologia para enfrentar
a maioria dos problemas. Falta-nos um querer fazer.
Não é desde há muito tempo que a Igreja se preocupa, de forma contínua e sistema-
tizada, com os problemas da natureza, refletindo teologicamente sobre as condições do
meio ambiente, as suas possíveis consequências para a vida e a nossa responsabilidade
na preservação da Criação.
Mesmo que na Conferência sobre o Meio Ambiente promovida pelas Nações Unidas
em 1972, em Estocolmo, esteve presente e teve uma intervenção importante um represen-
tante da Comissão das Igrejas para os Assuntos Internacionais do Conselho Mundial de
Igrejas, realmente foi só na década de 80 que as Igrejas começaram a levar mais a sério
a problemática da Criação e da responsabilidade cristã para com ela, tomando iniciativas
que culminaram com a realização da Assembleia Ecumênica Europeia de Basiléia em 1989,
sob o tema “Paz e Justiça para toda a Criação”, e com o congresso mundial de Seul, orga-
nizado pelo CMI em 1990, para ser o ponto alto do programa “Paz, Justiça e Integridade
(salvaguarda) da Criação”.
A continuação deste programa havia de ser decidida na Assembleia Geral do CMI,
realizada em Camberra em 1991, e, finalmente, o Comitê Central do CMI decidiu, em 1994,
na África do Sul, que uma das quatro Unidades de serviço do Conselho se chamaria precisa-
mente “Paz, Justiça e Integridade da Criação” e se ocuparia de forma regular e sistemática
de toda esta problemática.

Ecologia e suas facetas

O termo ecologia surgiu no final do século XIX para designar a inter-relação entre
plantas e animais nos seus respectivos ambientes. Somente em meados do século XX, o
termo começou a ser aplicado também às comunidades humanas recebendo a acepção
corriqueira de ciências que estuda a estrutura e desenvolvimento das “comunidades hu-
manas em seu processo de adaptação ao ambiente, tomando em consideração os efeitos
advindos deste processo”13.
Estando todo o planeta experimentando mudanças profundas, especialmente, a que
se refere ao habitat maior das pessoas, observa-se uma mudança radical e profunda da
zona rural para a zona urbana. É neste contexto agora urbano, que os valores e princípios
do Reino de Deus precisam ser vivenciados pela Igreja do Senhor Jesus, como uma nova
compreensão teológica da missão.

13 WESTHELLE, Vitor. A voz que vem da natureza. In: Estudos teológicos. São Leopoldo, ano 30, nº1, 1990, p.16 .

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 363


Ferry14, um escritor francês e professor de Filosofia, lembra que para uns, ecologia é
uma ciência, enquanto para outros é uma política. “A ecologia, politicamente nascida nos
anos 60, toma hoje o lugar dos movimentos contestadores que marcaram a História do final
do século XX”. Para ele, existem três visões bem distintas da Ecologia nos países onde
ela se estruturou.
A primeira é uma visão humanista, em que através da proteção do meio ambiente é
o homem que se procura salvaguardar. Nessa visão, o meio ambiente em si não tem um
valor intrínseco. A visão humanista da ecologia, antropocentrista, diz que a natureza tem
papel indireto – o centro é o homem. O meio ambiente é nossa periferia, o que engloba,
envolve o homem.
A segunda visão baseia-se no princípio de que não se deve apenas militar em defesa
dos direitos do homem. Deve-se visar também à ampliação do bem-estar de tudo o que se
encontra na Terra. Assim, atribui-se um valor pelo menos moral a certos seres não humanos
e aspira-se um bem-estar de todas as espécies.
A terceira visão sobre Ecologia verbaliza a reivindicação de um “direito das árvores
e das pedras”, ou seja, da natureza como tal. Os princípios dessa Ecologia mais radical
passam pela revisão do conceito de humanismo moderno. Não se trata mais de considerar
o homem como centro do mundo, e sim o cosmos, que, se necessário, deve ser protegido
do próprio homem.
O ecossistema – ou biosfera – passa a adquirir valor próprio, superior ao da espécie
humana. A visão cristã contrasta com as três acima citadas. Logo no primeiro versículo da
Bíblia, uma diferenciação é posta de maneira clara: “No princípio criou Deus os céus e a
terra” (Gênesis 1.1). Há um Criador, há uma criação. Isso nega todo materialismo que diz
não haver um Criador, e nega todo panteísmo que eleva a criação ao nível de Deus.
Todo o drama ecológico ressalta a incapacidade do ser humano de “conviver”, com as
demais criaturas, sem lhe causar danos. Mostra-se incapaz porque, não conseguindo des-
cobrir o ser profundo das coisas, posiciona-se como senhor absoluto de tudo. Como vimos,
o ser humano recebe a ordem de “enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do
mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra” (Gn. 1.28).
De acordo com Westhelle15

a questão do domínio aparece como uma tarefa democratizadora. Dominar os


animais é estabelecer uma convivência pacífica. Neste sentido que a conversão
à Natureza, mais do que uma atitude romântica, constitui-se uma atitude de
profundo respeito por todas as formas de vida. Cada criatura tem o seu próprio
lugar e a sua própria função. Somos responsáveis de evitar que espécies sejam
extintas. Os problemas ecológicos revelam o gemido da criação.

14 FERRY, L. Ecodúvidas. In: Veja 25 anos: reflexões para o futuro, 1993. p. 173
15 WESTHELLE, Vitor. Op.cit. p.p 20-21

364 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


GÊNESIS E O MEIO AMBIENTE

As narrativas da criação, no Gênesis, sendo lidas em comparação com as narrativas


de criação dos povos vizinhos de Israel revelam a mão poderosa, a preferência de Deus
pela vida, vida de todos, animais, plantas e pessoas. Não há nada que se exclua da criação
de Deus. A criação é, portanto, sinal de Deus no meio dos homens.
A responsabilidade humana diante de Deus é muito grande, dado o alto valor de tudo
o que foi criado, não apenas, pelo valor extrínseco, o que aparenta ser, mas, também,
pelo intrínseco, pois, acima de tudo, é obra das mãos de Deus e do poder da Sua pala-
vra, ao criar todas.
No princípio criou Deus o céu e a terra (Gn 1:1). O verbo hebraico traduzido por criar
é (Bará), o que significa que tem somente Deus como sujeito e nunca outra pessoa
caracteriza o ato de criação por parte de Deus como um gesto espontâneo, incomparável,
livre e sem analogia, revelando o profundo e extraordinário trabalho de Deus, em criar, do
primeiro ao sexto dia, uma quantidade enorme de coisas e ver que, tudo era bom (Gn 1:25).
Deus expressa o Seu grande contentamento com toda Sua obra: E viu Deus tudo quanto
fizera, e eis que era muito bom! (Gn 1:31). Notemos que no primeiro capítulo de Gênesis,
o homem aparece como o vértice de uma pirâmide, é a última criatura feita por Deus. Das
seis vezes que o termo hebraico (Bará) aparece no capítulo 1, ocorre três vezes no
versículo 27: “E Deus criou o homem segundo sua própria imagem, criando-o à imagem de
Deus, criando-os homem e mulher”.
Se fossemos enumerar a partir de Gênesis 1 o pensar de Deus, poderíamos fazê-lo
da seguinte maneira: 1 - A Natureza é intencional, é uma obra deliberada. 2 - A Natureza
é a expressão da vontade de Deus. 3 - A Natureza é revestida de racionalidade, já que é
resultado do pensar de Deus. 4- A Terra é um sistema destinado a fornecer o suporte ime-
diato da vida - tudo nela foi preparado, para dar condições à existência humana. 5- A vida
tal como se apresenta nos seres humanos, representa o ponto de mais alta complexidade,
em todo o processo da criação.
“No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gn 1:1). Quando cremos de fato neste versí-
culo, temos pouca dificuldade de crer em todo o restante da Palavra de Deus. Sendo assim:

Uma correta visão do mundo, com base religiosa, é uma concepção do homem
como ser dotado de faculdades racionais e de autoconsciência, que o diferem
do restante da Natureza, e lhe conferem atributos e problemas que os outros
seres vivos não têm. No âmbito da narrativa da Criação, vamos encontrar três
textos em que esta concepção do Homem é apresentada e detalhada, com uma
amplitude como não se encontrará em nenhuma outra parte das Escrituras.
A narrativa é rica em detalhes e em conteúdos; a primeira ideia que o texto
passa é a certeza de que o homem é o final de uma longa cadeia criativa:
do inanimado para a vida, da vida vegetal para a vida animal, e desta para

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 365


o homem. Deus encontrou o ponto terminal de sua atividade criativa: com o
homem o mundo está completo. O homem é um ser que se define através de
uma equação única: “argila do solo” + “hálito de vida” = homem (”ser vivente”).
Desta forma bela e simples, o texto sagrado exprime a dicotomia básica do ser
humano, a sua eterna divisão entre o material (o imediato, o visível, o físico, o
biológico) e o espiritual (o transcendente, o eterno, o divino). O homem é um
ser vivente, exatamente porque, é capaz de compartilhar essas duas esferas da
realidade, e ele jamais poderá ser completamente feliz e realizado se abando-
nar qualquer uma dessas esferas a que está vinculado. Devemos lembrar que,
depois do homem nada se cria. Depois do homem vem o repouso de Deus16.

Mandato cultural

As forças da natureza foram e sempre serão gigantescas, quando comparadas às


nossas pequenas capacidades e habilidades, de modo que o contínuo progresso e domínio
sobre essas forças, mesmo que se apresente aos nossos olhos como espetacular, jamais
deixará de ser apenas um leve arranhão na superfície quase infinita dos problemas que
ainda temos para desvendar. “A natureza que recebemos de Deus é maravilhosa e imensa
demais, complexa e fascinante como o próprio caráter de Deus, sempre infinita quando
comparada à nossa humanidade perecível e transitória”17
Há, pelo menos, duas maneiras de estabelecermos as bases para a percepção da cria-
ção: através das Ciências Naturais e da Religião. Não que um negue o outro ou o descarte,
mas, uma abordagem partindo da Religião, poderá, com muito mais facilidade, abarcar o
conhecimento científico. “A situação inversa, nem sempre, fará o mesmo. É preciso afirmar
que, o texto de Gênesis 1, não foi escrito para ser compreendido à luz do que a ciência tenha
para nos dizer, seja qual for o seu estágio”18.
A formação do universo surge de uma intenção de Deus, de eliminar o vazio, transfor-
mando-o em cosmos. Não foi um processo aleatório, mas, exigiu uma definição de Deus. Por
sete vezes, aparece a expressão: E disse Deus! É o pensar de Deus que traz à existência as
sucessivas etapas da criação. A natureza é uma obra intencional, é a expressão da vontade
de Deus, ela é revestida de racionalidade, já que é o resultado do pensar de Deus e é um
sistema destinado a fornecer o suporte imediato da vida.

Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e
mulher os criou. E Deus os abençoou, e lhes disse: sede fecundos, multiplicai-
vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves
do céu e sobre todo animal que rasteja pela terra. E disse Deus, ainda: eis que
vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície da
terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente. Isso vos será para
mantimento. (Gn. 1.27-29)

16 OLIVEIRA, Paulo F. Uma sinfonia para a vida. São Paulo: ABU, 1994. p.39-41
17 OLIVEIRA. Op.cit. p.11.
18 OLIVEIRA. Op.cit. p.27

366 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem conforme a nossa seme-
lhança. O homem é a imagem de Deus (Tzélém), porque o representa e está investido
de sua autoridade. Deus é aquele que cria o universo e os seres viventes. Os textos bíblicos
descrevem como Deus cria por meio de sua palavra ou por meio de ações incluindo materiais
como por exemplo o barro. Tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos
céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam
pela terra. Pelo menos até o período neolítico (3000 aC), os animais representavam uma
ameaça a própria raça humana, que era estimada em 100 milhões de habitantes19. São as
comunidades humanas, o elo fraco no equilíbrio.
Porque os seres humanos são criados à imagem de Deus, são chamados a governar
a Terra como vice-regentes de Deus. Sabemos que muitos têm compreendido mal o sentido
bíblico da co-regência ou da mordomia, pois essa tarefa não nos permite explorar e subjugar
ilimitadamente a natureza20.
A humanidade recebe de Deus a ordem de agir como seu representante sobre a terra e
suas criaturas. Assim, deve tratar a Criação da mesma maneira que Deus o ordenou. O jar-
dim deveria ser dominado pelo ser humano. No entanto “a Criação existe não para servir a
interesses humanos, mas para refletir a glória de Deus (Jó 12.10; Sl 148.7- 10.14)21.
Gênesis 1 e 2 descrevem Deus, como uma espécie de “Deus trabalhador”. Deus “for-
mou” (Yatzar) Adão, “plantou” ( Natá) o jardim e “construiu” (Banáh) a Eva
do lado santo de Adão. São três termos, os mais humanos possíveis, usados constantemente
para os ofícios correspondentes a oleiro ou escultor (Is. 45:9; 64:8), agricultor e carpinteiro.
Em particular, o verbo ( Yatzar) é usado para numerosos aspectos da ação salvífica
de Deus: Deus “formou” a Israel (Is. 43:21; 44:1s, 24; cf.27:11). Também, (Natá) pode ter
sentido salvífico: Deus “plantou” a Israel (Jer. 2:21; 11:17; 31:28). Em outras passagens, o
verbo ( Banáh) se aplica a Israel. Deus promete a Davi construir uma casa e um trono
(II Sm. 7.27; Sal. 89.3s.); depois, promete reconstruir o povo no seu retorno do cativeiro (Sl.
102:16s; 147:2).
Este relato, no hebraico original, caracteriza-se por uma série de jogos de palavras,
tão simpáticos como significativos. Destes, três são especialmente importantes, segundo a
evidente intenção do autor:

1.- Em 2:7, o autor diz que da terra (adamah), Deus fez adam; o jogo adamah/
adam destaca, fortemente, a inseparável e essencial vinculação entre o ser

19 WESTHELLE, Vitor. A voz que vem da natureza. In: Estudos teológicos. São Leopoldo, ano 30, nº1, 1990, p.21
20 PESKETT, H. & RAMACHANDRA, V. A mensagem da missão: a glória de Cristo em todo o tempo e espaço. São Paulo, ABU Editora,
2005, p. 45.
21 PESKETT, H. & RAMACHANDRA. Op.cit.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 367


humano e a terra, entre homos e humus. Aqui, temos uma forma muito dife-
rente da do capítulo 1º. Uma nova e dramática insistência na materialidade,
que depois, vai caracterizar todo o plano da salvação; 2.- O segundo jogo
de palavras, destaca a solidariedade misteriosa e profunda entre ish (varão)
e ishah (varoa) (2:23), conforme homem/mulher, unidos, inseparavelmente,
numa vida comum; 3.- Do nome “Eva”, se faz um jogo com a palavra “viver”
(Gn.3:20 - Eva, javah; viver, jayah)22.

É o Criador que implanta no Homem sua própria criatividade e faz dele seu legítimo
representante, confiando-lhe a mordomia de sua criação. Ao Homem, como sua imagem,
seu representante, Deus dá faculdade de reproduzir-se e confia a mordomia do mundo.
A tarefa humana fundamental é o governo da realidade criada, em representação a
Deus e sob sua autoridade. Esse é o Mandato Cultural, em cujo cumprimento o ser humano
manifesta, efetivamente, que é Imago Dei. O Homem completo, (´avad), assemelha-se
a Deus porque a ele foi confiada à mordomia da criação. Nisso se radica a base da respon-
sabilidade humana no uso e cuidado dos recursos naturais, bem como, no desenvolvimento
científico e tecnológico.
Para J. Stott23, Mandato Cultural se estabelece em três afirmações legítimas:

Deus deu ao homem domínio sobre a terra. Assim, pois, desde o princípio,
os seres humanos foram dotados de uma dupla unicidade: têm a imagem de
Deus (que compreende qualidades racionais, morais, sociais e espirituais
que tornam possível nosso conhecimento d’Ele), e exercemos domínio sobre
a terra e suas criaturas. De fato, o caráter único do domínio sobre a terra se
deve ao caráter único da nossa relação com Deus.
Este domínio é corporativo. Ao exercer o domínio recebido de Deus, não se cria
os processos da natureza, senão que se coopera com eles. Neste sentido é um
senhor, de acordo com o propósito de Deus e seu mandato. Porém, também,
é um filho em sua dependência última da providência paterna de Deus, que é
quem lhe dá a luz do sol, a chuva e estações frutíferas do ano.
Este domínio é delegado e, portanto, responsável. O domínio que exercemos
sobre a terra, não nos pertence por direito, senão, somente por favor. A terra
nos “pertence” não porque a criamos nem porque somos seus proprietários,
senão, porque seu Criador no-la tem confiado para dela cuidar.

Não há como ocultar a intenção do texto: o homem foi colocado sobre a terra para
exercer domínio e controle sobre todas as formas de vida! É interessante notar que o texto
não diz que o homem tem o domínio sobre a Natureza, no sentido de que a ele foram en-
tregues os rios, os mares, as terras e a atmosfera, mas, ao homem foi dado, tão somente, o
domínio sobre a vida, permanecendo a Natureza, diretamente ligada ao Criador, enquanto
base de apoio da vida.
Sabemos que, para a tradição judaica o nome de qualquer coisa significa a essência
dessa mesma coisa, de modo que o nome traduz o que a coisa é. Por isso, havia o cuidado
22 STAM, J.B. Las buenas nuevas de La creación. Editora Nueva Creacion, 1994.p.26
23 STOTT, John. La fé cristiana frente a los desafios contemporaneos. Editora nueva creacion, 1991.p.32.

368 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


em dar aos filhos nomes que tivessem um sentido bem determinado, em geral, ligado às
circunstâncias do nascimento da criança. Também, dar o nome é um direito dos pais, o que
significa uma confirmação de sua autoridade paterna.
Portanto, ao permitir que o homem denomine o que foi criado, Deus reafirma a primazia
do homem sobre a vida criada e os seus direitos de dominador. No versículo 5 de Gênesis
2, lemos que não havia, ainda, nenhum arbusto e nenhuma erva na Terra, em parte porque,
até então, não havia chovido, mas também, porque “não havia homem para cultivar o solo”.
Arbustos, ervas, árvores, sementes, frutos, chuva, enfim, toda a criação necessita do serviço
do homem. Encontramos o verbo (´avad) que tem como significado “serviço de escravo
para o seu senhor”, ou seja, o homem deve trabalhar na terra para que ela possa produzir.
Talvez, nenhuma outra passagem desta narrativa da criação seja tão marcante quanto
esta, em sua capacidade de mostrar a intencionalidade da criação e a busca do ser humano
de um ser igual a ele. De forma concisa e extremamente clara, temos aqui indicadas as
atividades básicas do ser humano: trabalhar e conservar a Natureza. Trabalhar para prover
o sustento material de que carece para preservar a sua existência, produzindo toda a gama
de serviços e bens que o estilo de vida de sua época indique como necessários.
As primeiras responsabilidades, que Deus deu a Adão e Eva, tornam explícitas certas
atividades que integram a verdadeira essência, como seres humanos. Essas atividades,
primariamente, envolviam sua existência como seres sociais: vida a dois (procriação e fazer
surgir à humanidade), trabalho (domínio, cultivo, guarda) e governo.
Deus usou palavras chaves como: dominem, cultivem, preservem e coloquem nomes em
todas as criaturas. Essas ordens marcam o início de uma série de outras obrigações, ainda por
vir: constituir família e comunidade, estabelecer a lei e a ordem, fazer surgir às culturas e civili-
zações e as preocupações ecológicas que se ampliam e se aprofundam, através das Escrituras.
Através destas responsabilidades ou Mandatos, Deus chama todos os que trazem sua
imagem e semelhança, para serem mordomos da criação, participando assim, com respon-
sabilidade, nesta tarefa. Assim

Não é surpresa o fato de que, ao criar a raça humana, de acordo com sua ima-
gem e semelhança, Deus transfere para os seres humanos seu próprio instinto
criativo Esse instinto criativo, é admitido como secundário e derivado, pois, é
limitado pelo potencial de cada um e pela disponibilidade de material com o
qual se possa expressar essa função criativa. Além disso, este instinto precisa
ser descoberto, treinado e então usado como serviço em favor de outros e não
para o próprio poder, benefício e deleite. Isso significa que, as possibilidades
criativas devem ser mostradas claramente e colocadas, firmemente, para ca-
pacitar todo aquele que estiver no seu exercício, em benefício de outros. O
Mandato Cultural, literalmente, implica que, enquanto a raça humana exerce
controle sobre a terra, sob a direção de Deus e para Sua glória, encontrará,
também, resistências24.
24 GLASSER, Arthur. Anunciando o reino. WWW.igrejapresbiteriana.org/diaigreja. Acessado em 01/02/2010.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 369


Nada acontece a não ser pelo agir de Deus. No ápice da obra divina ergue-se o homem
criado, reflexo visível do criador, príncipe do mundo da graça, da luz e da vida. Do barro
Javé, como um oleiro, forma uma estatueta. Soprando-lhe ele nas narinas ela se torna,
ser vivente. A origem, a essência e o propósito do homem, tornam-se claros e especiais,
nos relatos da criação, pois, em relação a todas as outras criaturas, as narrativas são
menores e sem muitos detalhes. Entretanto, há uma especial atenção, um registro mais
demorado e alongado.

Relação da criação e a dignidade humana

Stott25 ao se deparar com os relatos da criação, encontra neles o que ele chama de
Dignidade Humana, que se estabelece por três relações: a) A primeira é a nossa relação
com Deus - Os seres humanos são seres de semelhança divina, criados a imagem de Deus,
segundo Seu propósito. A imagem divina compreende aquelas qualidades racionais, morais
e espirituais que nos separam dos animais e nos vinculam a Deus. b) A segunda é a nossa
relação uns com os outros - O Deus que criou a humanidade é um ser social, um Deus que
compreende em si mesmo três pessoas, eternamente distintas. Portanto, Deus fez o homem
varão e a mulher e lhes mandou procriar. A sexualidade foi criada por Deus, o casamento
foi instituído por Ele e o companheirismo humano estava em Seu propósito, quando disse:
“Não é bom que o homem esteja só”. De maneira que, todas as liberdades humanas que
chamamos de santidade do sexo, o casamento e a família, o direito de se reunir e o direito
de ser respeitado, sem distinção de idade, sexo, raça ou condição, correspondem à segun-
da categoria de nossa relação de uns para com os outros. c) A terceira é nossa relação
com a terra e suas criaturas - Deus nos tem dado o domínio, com o mandato de sujeitar
e cultivar a terra fértil e governar sobre suas criaturas. De modo que, os direitos humanos
que chamamos de direito ao trabalho e ao descanso, o direito de participar dos recursos da
terra, o direito à alimentação, o vestir e o morar, o direito a vida e a saúde e a sua proteção,
assim como a libertação da pobreza, da fome, da enfermidade, correspondem à terceira
classificação da relação com a terra.
“E Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois
de toda a obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou
depois de toda a sua obra de criação” (Gn. 2.2-3). O dia de repouso se destina a lembrar
ao homem que ele foi posto no mundo provido abundantemente de tudo que é necessário
e de muitas coisas belas. Para o homem libertado por Deus, a semana não se encerra com
um dia de repouso, ela começa com ele. Segundo Wolff: 26

25 STOTT, John. Op.cit. p.167


26 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo; Loyola 1983.p.186

370 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


que mais pode o homem fazer no seu trabalho do que cuidar de que aquilo
que foi preparado pelo criador seja acolhido e aproveitado devidamente e não
estragado, mas protegido contra a destruição pelo abuso humano? Sem o
olhar para a obra anterior de Deus, o homem não encontra a relação devida
nem para com o trabalho nem para com o repouso.

Gênesis 2 é a ordem probatória dada ao homem! Esta ordem probatória tinha duas tare-
fas: primeiro - cultivar e preservar o jardim; segundo - comer livremente de todas as árvores,
exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A primeira tarefa define seu relaciona-
mento com a terra, enquanto a segunda, define seu relacionamento com o Deus. O homem
só poderia cumprir sua missão com relação a terra, se ele não tivesse quebrado a conexão
que o unia ao céu, ou seja, somente se ele continuasse a obedecer a Deus. Ele deveria
servir a Deus e servir-se a si mesmo, enquanto servia a terra.
Trabalho e descanso, domínio e serviço, vocação terrena e celestial, civilização e
religião, cultura e culto, esses pares caminham juntos desde o princípio. Eles pertencem e
estão contidos na vocação do grande, santo e glorioso propósito do homem. Toda cultura,
isto é, todo trabalho que ele realiza para subjugar a terra, seja através da agricultura, da
pecuária, do comércio, da indústria, da ciência, ou de qualquer outra forma, é o cumprimento
de um mandato divino. Mas, para que o homem, realmente, cumpra esse mandato divino, ele
tem de depender e obedecer à Palavra de Deus. A religião deve ser o princípio que anima
toda a vida e que a santifica, a serviço de Deus.Para Agostinho, o grande teólogo cristão
do IV Século, suas noções de criação podem ser assim resumidas:

Deus fez tudo por criação. O mundo, pois, não é antidivino. Porque Deus criou o
mundo livremente, por isso está perto dele. Porque o criou do nada, existe uma
distância. Tudo, pois, sem exceção é bom. Também a matéria pela criação ex
nihilo. Esta é uma afirmação constante de Agostinho, que procura explicar esta
criação, afirmando que Deus cria o mundo sem uma matéria prima preexistente
sobre a qual agiria o ato criador. A criação tem a sua universalidade: o mundo
tem começo, ele é temporal, não é eterno. A criação é obra da Trindade. Deus
cria por amor. A criação é teofania, espetáculo de luz e de vozes que proclama a
beleza de Deus, através de sua própria beleza. Para se ver a natureza de Deus
é preciso à superação do materialismo e a elevação da humildade. Pergunta
que é o que ama um homem, não perguntes pelo que sabe. Não existe nada
mais querido a Deus do que sua imagem. Por isso, colocou ele tudo debaixo
do homem e o homem debaixo de si. Queres que tudo o que Deus fez esteja
aos teus pés? Fica debaixo de Deus… De tal maneira Deus ordenou as coisas
criadas que colocou a sua imagem debaixo de si e tudo o mais debaixo dela.27

O homem tem sido para Agostinho um mistério e um ser surpreendente. Os seres


humanos são os mais preciosos da criação. Esta interpretação da criação, eminentemen-
te antropocêntrica, é também, agostiniana. Devemos acrescentar que ele, o homem, é o
guardião e agricultor da criação e, ao mesmo tempo e enquanto tal, totalmente dependente
27 SILVA. www.igreja.presbiteriana.org/diaigreja. Acessado em 02/02/2010.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 371


e orientado para Deus. Para “Agostinho não concorda com os autores que defendem que
o mundo criado por Deus desenvolve de um modo completamente autônomo para além de
qualquer outra influência de Deus. Esta opinião leva a negar uma relação estável entre a
criação e seu Deus”28.
O motivo do homem, imagem de Deus, não implica em explicação alguma direta da
natureza desta semelhança divina; seu centro de gravidade se acha, antes, na definição do
fim para o qual ela foi comunicada ao homem. A dificuldade para nós está no fato de que o
texto considera a simples declaração desta semelhança com Deus como suficiente e explíci-
ta. Podemos dizer a tal respeito, duas coisas: as palavras (Tzélém) “imagem, estátua,
objeto esculpido” e ( Demut) “semelhança, equivalência”- sendo que a segunda inter-
preta a primeira, salientando a noção de correspondência e de semelhança - referem-se ao
homem todo, não exclusivamente à sua natureza espiritual, mas também, e principalmente,
à glória de seu aspecto corporal.29
A ação criadora de Deus chega ao seu clímax, com a criação do homem, “imagem de
Deus”. Basta assinalar que, o encargo conferido ao homem (representar o criador enquanto
à sua imagem; exercer em seu nome um domínio senhorial e tarefas de governo sobre o
resto da realidade criada) outorga à doutrina criacionista bíblica, um caráter de novidade
revolucionária; o mundo saído das mãos de Deus não é uma magnitude fechada e concluída;
agora, passa às mãos do homem para que ele o aperfeiçoe e dirija até o fim.

Em Gênesis 1, resume, prodigiosamente, o discurso sobre o todo e o discurso


sobre as partes, a expansão temporal de tudo (do primeiro ao sétimo dia, (do
próton ao éschaton), e sua expansão espacial (do céu à terra e aos abismos
marinhos). Nenhuma outra cosmogonia é tão globalizante quanto essa. Fora
deste grandioso afresco, só nos resta a totalidade em fragmentos. E, mais do
que nunca, hoje, quando a especialização crescente das ciências naturais
pode oferecer apenas retalhos de um mundo fragmentado, e quando a tarefa
de recompor a unidade é chamada de missão impossível, em certos círculos
acadêmicos. O falar englobante acerca do todo, confirmar-se-á, vigorosamente,
na cristologia cósmica do Novo Testamento30.

Em I Coríntios 4:2 “Ora, além disso, o que se requer nos despenseiros é que cada
um seja encontrado fiel”. Para quem tem juízo e personalidades de preservador este é um
aviso importante, administrar bem o que lhe confiado. Aqueles que destroem a terra serão
destruídos. Isto está bem explicito na natureza, com respostas visíveis em nossos dias.

28 SILVA. Op.cit.
29 VON RAD, Gerhard. Teologia do antigo testamento. São Paulo; ASTE, 1973. p.152.
30 DE LA PEÑA, Juan L. Ruiz. Teologia da Criação. São Paulo: Loyola, 1989.p.35 e 37.

372 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


O gemido da criação

No jardim o ser humano esta colocado num espaço vital onde existem os riscos de não
guardar, não servir e da desobediência. Também não é possível diminuir atividade e forma
culposa pela intervenção no meio ambiente. O jardim dispõe de irrigação garantida (Gn 2.5)
o provimento de alimentação esta assegurada (Gn. 2.8s).
Junto com o triunfo da ideia do progresso “herdamos a consciência de que não só
comemos do fruto da árvore da vida como também fincamos o machado no seu tronco”31.
No princípio, Deus deixou a cargo da humanidade, o cuidado com mundo belo e perfei-
to. A Bíblia diz em Gênesis 2:15 “Tomou, pois, o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim
do Éden para o lavrar e guardar”. Ele deseja que sejamos dignos de confiança na mordomia
dos nossos recursos. Deus se compromete com a Sua criação e não a abandona. A criação
não pode ser imaginada sem a Sua presença criadora, histórica e salvífica.
A questão ecológica não é um problema técnico e não se trata fazer certos ajustes. É ne-
cessário reorganizar e reorientar nossa compreensão de relação com a natureza. A crise
ecológica exige uma renovação espiritual, apreciando a natureza como um lugar de epifania,
apreciando a natureza como criação divina.
O ecossistema tem sido tratado a partir da perspectiva única da acumulação de rique-
za. É devido a este aspecto de embrutecimento já não se consegue mais louvar ao Criador
pelas obras que Ele fez. O ser humano não consegue agir como criatura de Deus. Julga-se
senhor sobre aquilo que cerca: quer ser igual a Deus. Tornou-se escravo de sua própria
cobiça. O ser humano se desumanizou.
Sabemos que há uma relação direta entre a destruição ambiental e os problemas so-
ciais que acarreta. Por detrás está o desrespeito com o valor fundamental da vida. Na des-
truição ambiental, o empobrecimento e a marginalização de povos inteiros transgridem
a ordem criadora.
Podemos nos conscientizar também deste fato quando lembramos que a proteção
ambiental resulta em um combate isolado e inócuo dos sintomas em vez das causas, se
os desafios ecológicos pelo valor fundamental da vida não forem compreendidos na sua
plena abrangência do complexo social. O nosso SIM à criação e ao meio ambiente em todo
o caso, deve ser acompanhado do nosso NÃO às distorções no sistema global, isto é, na
economia, na tecnologia, na produção e no consumo.
Como obra da graça e ordem divinas, incluídos na graça da aliança de Javé, a na-
tureza e o meio ambiente merecem por si mesmo respeito; o ser humano faz parte da
criação que traz em si salvação e benção; dentro dela e não contra ela lhe foi destinado se
lugar. O ser humano, portanto, deve cumprir sua função e tarefa que lhe cabe de acordo
31 WESTHELLE. Op.cit. p.17

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 373


com as necessidades da natureza. No primeiro relato da criação podemos verificar que os
seres vivos foram adaptados aos espaços vitais que foram criados.
Quando Israel chegou a “Terra prometida”, os camponeses cultivavam a terra na ple-
na consciência de sua intervenção na natureza. O camponês israelita tinha que retirar da
natureza a alimentação vegetal e animal: ele desmata ou queima as florestas (Js. 17.14ss)
para cultivar terras virgens; ele rasga o solo, prende e domestica os animais (Gn 2.20). Ele
percebia com maior intensidade o poder doador do meio ambiente (Sl 104. 10s). Por isso
os seres humanos podem habitar sobre toda a terra (Gn 9.19; 10), porque a terra lhes foi
cedida como espaço vital (Gn 2.19; 8.22; 9.19), porque dispõe para o seu sustento e sua
vestimenta da terra cultivada com o solo arável e pastagem (Gn. 2.5, 3.17-19, 4.2), com ani-
mais e plantas. Alimento diário, portanto não dependia apenas do esforço próprio, mas era
antes um presente dado pelo meio ambiente representando um benefício e dádiva de Deus.
De acordo com Gn 2.15, o homem não foi criado somente para o prazer idílico e bem-
-aventurado, mas para o trabalho na lavoura e a preservação do meio ambiente, o javista
opõe-se a agressão ambiental da época salomônica que beneficiava uma classe superior
que levava uma vida frívola e regalava-se com condições luxuosas. Em I Rs 5.28 e II Cr
2.15, relata-se que milhares de lenhadores dizimaram as matas do Líbano para que fossem
realizados projetos ambiciosos como a Casa da Floresta do Líbano (I Rs 7.22ss; II Cr 2.7ss).
Neste contexto é notável que em II Rs 19.23ss, a arrogância dos tiranos assírios é relacio-
nada justamente com o cortar dos cedros do Líbano que Deus havia plantado. Em I Rs 9.26,
fala-se da construção de navios a mando de Salomão que trouxe prejuízos às madeiras de
Edom. É óbvio que os projetos megalômanos da época salomônica devem ter levado a uma
degradação do meio ambiente local. Porém, há de salientar que segundo I Rs 10.27; II Cr
1.15 houve um reflorestamento em e ao redor de Jerusalém.
Movidos por seus delírios de poder, no qual povos inteiros eram pisoteados e triturados,
campos e terras devastadas, os reis do Antigo Oriente, revestidos de poder divino (Sl 8.6)
não somente trouxeram o mal sobre a população civil, mas também sofrimento inominável
sobre a fauna e a flora.
A natureza está a nossa mercê. Nós podemos guardá-la e cultivá-la (Gn. 2.15) e fa-
zer dela um jardim; assim viveremos. Porém, podemos envenená-la ou transformá-la em
um deserto, e assim sucedendo morreremos. A julgar pelo que acontece nos últimos anos
estamos avançando para a morte. A criação de Deus encontra-se envenenada, poluída,
devastada e seca.
A devastação e depredação arbitrárias da natureza têm nos ensinado que nem tudo é
renovável nesta terra. O que exterminarmos com insensibilidade hoje pode faltar para outros

374 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


amanhãs. O que esbanjarmos hoje, faltará na mesa do próximo amanhã. Precisamos pensar
nesta e nas próximas gerações.
A Bíblia não tem ilusões quanto à origem dos problemas relacionados com a terra ha-
bitável: é unicamente por causa do homem e de suas ações que ela é considerada “maldita”
(Gn 3.17) cheia de luto (Os. 4.1-9), devastada (Is. 1.4-9). Uma terra que não foi feita para
tornar-se um caos (Is. 45.18) foi banhada pela injustiça carecendo de renovação. Nosso
uso ou abuso vai determinar decisivamente se pensarmos curto, de forma egoísta, só em
nós, ou se soubermos também zelar pelos espaços para as gerações futuras. A natureza
depende e espera pela decisão do ser humano. Que deixe de tomar atitudes egoístas e
volte-se para Deus, o criador da criação. O próprio Deus responde conforme lemos em II Cr
7.14ss “se o meu povo que me chama pelo meu nome, se humilhar, orar, buscar a minha
presença e se arrepender de seus maus caminhos, eu, do céu, escutarei, perdoarei os seus
pecados e sanarei seu país”. Em outras versões se diz “e sararei a sua terra”. É, portanto,
o ser humano, imagem (Tzélém) e semelhança (Demut) de Deus, aquele que pode fazer
para que a natureza seja sarada, quando ele se voltar novamente para o seu criador.

CONCLUSÃO

Compreender o propósito de Deus em nossas vidas nos aproxima do Criador e também


da criação. É imperativo que saibamos reconhecer na natureza a vontade de Deus. A Igreja
de Deus precisa estar a serviço da causa ecológica, convocando a todos a contribuir para
a melhoria da natureza. Os princípios ambientais permeiam todas as atividades e procuram
estabelecer o equilíbrio normal entre homem e meio ambiente.
A nossa contribuição e defesa do meio ambiente precisam acontecer de duas manei-
ras: pessoal e coletiva. Há tarefas, responsabilidades que nos competem e não podemos
transferi-las. Precisamos reconhecer o nosso pecado contra a criação, e proclamar a todos, o
cuidado e proteção que devemos ter com a natureza, pois foi criada por Deus e que era bom.
O afastamento do homem da presença de Deus e consequentemente a depredação
e devastação do meio ambiente contrariam a ordem dada pelo Criador de ter o domínio
sobre a criação.
É necessário, como imagem e semelhança do Criador, reconhecer que os proble-
mas enfrentados pelo meio ambiente têm uma causa certa, a nossa desobediência com
o Criador. Em nossas comunidades é necessário, através das pregações e atitudes, re-
conhecer o amor incondicional de Deus pela natureza criada, lembrando de que tudo o
que criou era bom.
Como representantes de Deus Criador, nos é delegada a função de dominar (Gn1) e
servir (Gn2) coerentemente e com amor o que nos foi confiado por Deus. Na Bíblia, toda a

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 375


criação é importante e espera-se que funcionemos em harmonia com o mundo que Deus fez
para nos sustentar. Esforcemo-nos em cuidar do meio ambiente e das pessoas que ali vivem.

REFERÊNCIAS
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378 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


27
“ Religião familiar tradicional e
uma Lulik/casa sagrada de
Timor - Leste

Antônio Quenser do Balino do Carmo

10.37885/201001659
RESUMO

Timor-Leste é um país situado na parte Leste de uma ilha, no sudeste Asiático, e faz
fronteira com a Indonésia, um país coberto por paisagens equatoriais e iluminado pela
claridade esfuziante do seu sol trópico, e por esta razão, constituído também por múltiplas
identidades linguísticas e culturais. Timor-Leste é mestiço na língua e na cultura também
como outros países do mundo têm a sua história, a sua cultura e a sua tradição. A Cultura
de Timor-Leste, a Ilha do Crocodilo, tem a sua raíz na Uma Lulik. É esta a designação
que se dá à Casa Sagrada e Tradicional onde os rituais são realizados, pelos timorenses,
para chamar os seus antepassados. Uma Lulik era o local mais relevante na cultura do
povo timorense antes de os missionários portugueses terem tido contacto com povo timo-
rense, em 1512. A Religião Familiar Tradicional Timorense se baseia numa cosmologia
timorense é, como muitas sociedades do sudeste asiático, amplamente definida como
uma cosmologia dual. Os autores afirmam a existência das entidades fundamentais na
cosmologia timorense: o deus supremo (Maromak), os espíritos da natureza e os espí-
ritos dos antepassados. O lugar sagrado na Religião Familiar Tradicional para muitas
populações em Timor-Leste é Uma Lulik/Casa Sagrada que encarna a presença das
divindades e os antepassados.

Palavras-chave: Uma Lulik, Antepassados, Religião Familiar, Cosmologia, Lulik.


INTRODUÇÃO

O presente artigo, intitulado Religião Familiar Tradicional e Uma Lulik (Casa Sagrada)
de Timor-Leste, pretende apresentar os valores e as realidades da religiosidade dos timo-
renses em relação às existências das Casas Sagradas/Uma Lulik. Os motivos para esta
abordagem prendem- se ao fato de, como se verá, poucas pessoas escreveram sobre
este assunto. Na realidade Timor- Leste declara-se majoritariamente católico. O número de
pessoas que é considerado cristão, batizado (sarani) soma 96,9% da população conforme
dados do censo de 2010. Mesmo assim, o antigo patrimônio cultural, a Religião Familiar
Tradicional como sistema de crença tradicional já existia antes do Cristianismo, e continua
conservado como uma das maiores riquezas da história e da identidade cultural timorense,
apesar de poucos registros sobre o assunto.
Neste contexto, a idéia de herança sagrada, da memória e da tradição são cultivadas,
lembrando-se sempre de Deus/Maromak, de Cosmos e dos antepassados, como raízes da
existência e identidade do povo. Parecem ter sobrevivido, ou até se reforçaram as memórias
de alguns momentos: a) Antes da colonialização dos portugueses, b) Durante colonialização
dos portugueses, c) Durante a ocupação da Indonésia que teve de retirar-se em 1999 por
interferência da ONU que administrou até 2002, quando concedeu a independência aos
timorenses, d) Após a independência até os dias de hoje.
Portanto, este artigo aborda Religião Familiar Tradicional e Casa Sagrada/Uma Lulik
de Timor-Leste a partir de uma perspectiva historica-religiosa e ao mesmo tempo histórica-
antropológica num âmbito da diversidade religiosa.

METODOLOGIA

A Metodologia da Análise Qualitativa Explorativa e Bibliográfica a partir dos grandes


autores e pesquisadores que tiveram grande interesse de coletar as evidências fenomenoló-
gicas e as realidades históricas e religiosas timorenses no mundo asiático. Os fundamentos
da pesquisa são fundamentos históricos, antropológicos e arqueológicos.

RESULTADO E DISCUSSÃO

Religião Familiar Tradicional

Os dados estatísticos antigos do recenseamento relativamente à religião mostraram que


existiam em 1970, 153.000 pessoas que se consideravam Católicas Romanas (25.1%), 2.400
eram Protestantes (0.4%); outras denominações cristãs 400 (0.07%); 900 eram Islâmicas

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 381


(0.15%), e as restantes 452.777 (74.3%) não indicavam nenhuma religião. Destas restantes,
o autor australiano Chrys Chrystello afirma que a maioria praticava ritos animistas ou pagãos,
idolatrando antepassados e outros espíritos. Já em 1996, as estatísticas do Vaticano indica-
vam existirem 692.000 católicos numa população de 834.000, mais de 80% da população,
comparada com 25% em 1970, e estes dados recentes, publicados pelo Catholic Institute
for International Relations em Londres, setembro de 1996 (CHRYSTELLO, 2012, p. 47).
Emile Durkheim (1858-1917) definiu a religião como “sistema unificada de crenças e
práticas relativas às coisas sagradas, que se unem em uma comunidade moral única, todos
aqueles que a eles aderem”. Nesse caminho de pensamento, o antropólogo Alberto Fidalgo,
no seu estudo ligado à religião tradicional timorense, definiu “O conceito de religião tradi-
cional, tal como o utilizou, refere-se ao sistema de crenças que localmente é definido em
oposição ao cristianismo; isto é, aquilo que os informadores entendem como pertencente à
esfera de crenças e práticas gentio — por vezes também referida como lisan1, kultura2 ou
kultura-adat3” (FIDALGO apud NASCER, 2012, p.80). Por isso, o próprio autor fundamenta:

A interação entre catolicismo e religião tradicional em Timor apresenta-se mui-


tas vezes como uma hibridação, uma mistura sincrética derivada do contacto
cultural que tem vindo a acontecer há cinco séculos, também parece pertinente
considerar as apropriações pela religião tradicional de elementos católicos
assim como as apropriações pelo catolicismo de elementos da religião tradi-
cional, muitos dos elementos reverenciados e particularmente significativos
na tradição timorense têm passado a fazer parte do meio das igrejas cristãs,
como os ai-to’os4 presentes na maioria dos átrios eclesiais (FIDALGO apud
NASCER. 2012, p. 90).

Portanto, o que entendemos por religião familiar tradicional? Religião familiar tradicio-
nal pode significar um sistema da crença própria cultivada pelas famílias numa cultura em
determinado local ou região. E o que é a família timorense? A definição da família timorense
segundo Ruy Cinatti é: “A forma primeira e indivisa a partir da qual se edifica toda a complexa
estrutura social timorense. O casamento barlaque5, ato natural de constituição da família e
o compromisso mais importante assumido pelo homem e mulher nativos durante as suas
vidas” (CINATTI, 1987, p. 32). Por isso, há uma expressão popular “Quando um homem se
casar com uma mulher, quem casa é as duas famílias”. A instituição de uma família timorense
envolve todas as linhas de parentesco. Na visão cultural tradicional, uma pequena família

1 Lisan – significa costume, usos ou hábito, especialmente aplicada para costume da linhagem da família.
2 Kultura – é transliteração para Tétum da palavra português: Cultura
3 Kultura-adat – povo tem costume de utilizar as duas palavras juntas com mesmo sentido. A tradução seria Kultura (cultura), adat
(cultura) – vem de origem da língua melaia/bahasa melayu (língua oficial de Indonésia, Malásia, Brunei e Singapura).
4 Ai-to’os – um poste destinado para os sacrifícios. Um modelo de altar de Uma Lulik. Trata-se de uma forma emergente, vertical, de
origem vegetal normalmente, em geral situado nas proximidades das uma lulik. Em bunak chamase-lhe talak, ai-tosa em mambae e
ai-to’os em tétum.
5 Barlaque – um conceito específico dentro do processo de casamento cultural (ritual e material – animais, dinheiro e outros objetos).
Intercâmbio de bens entre família de noiva e do noivo. Na compreensão moderna é como dote.

382 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


timorense, pode ser constituída por pai, mãe, filhos, mas também inclui avôs, tios e parentes
próximos, que sempre vivem juntos no mesmo local ou terreno da herança familiar, e que
vivem sob a proteção da entidade divina e dos ancestrais mortos.
Podemos dizer que cada família timorense ou clã na sua circunstância territorial, vive
com a sua própria tradição – estilo, concentrada em Uma Lulik, praticando os rituais da fa-
mília conforme os tempos, interesses e objetivos da família, com a sua própria maneira de
honrar as entidades divinas, de modo especial aos ancestrais – matebian6. Nesta concepção,
podemos entender que dentro da religião de Uma Lulik a presença do espírito dos antepas-
sados é extremamente importante. Por isso, os antepassados são considerados já como
entidades sagradas da família além de Ser Supremo - Maromak7. Como um exemplo, H. G.
Schulte Nordholt fez um estudo sobre a instituição da casa sagrada dentro da religião do-
méstica do Povo Atoni. Atoni é denominação de um grupo étnico grande de parte oeste
da ilha de Timor. Na religião do Atoni têm o seu próprio sistema e estrutura. O sistema da
crença do Atoni relaciona sempre com vida agrícola e poder (rei). Existe várias expressões
em relação a crença do Atoni. Dois termos importantes Uis Neno (deus do céu) e Uis Pah
(deus da terra). O povo Atoni no seu ritual em trabalho agricultura invoca sempre as duas
entidades referentes. Na frente da casa sagrada (Ume Le’u ou Uma Lulik – em Tetum) é
como centro do ritual. Na frente da casa de amaf (pais) sempre tem dois altares de poste
hau monef (pilar masculino) e hau tes (pilar central) e junto com ni ainaf (pilar materno)
que está dentro de ume formam a trindade do culto sacrifício de Atoni relacionado com a
vida de ume. Um poste de altar também pode se ramificar em três pontas, uma das quais é
mais longa que as outras. O mais longo é o Uis Neno Mnanu, o segundo o Uis Neno Pala,
e o terceiro representa be’i na’i os ancestrais feminino e masculino (NORDHOLT, 1971, p.
141 – 156). De modo geral, este exemplo representa a realidade das Uma Lulik do Timor
em relação a seu papel principal no ritual ligado à vida agrícola e vida das pessoas antes e
depois da morte. E outra coisa é que a divindade não é singular. Nordholt afirma, que:

De fato, Uis Neno ser considerado como o ser supremo não implica que a
religião de Atoni seja monoteísta, a menos que Uis Pah (o senhor da terra) e
o espírito da terra (pah nitu), os espíritos que assombram nascentes, rochas
e árvores, devam ser considerados como emanações de Uis Neno. Mesmo
assim, não seria monoteísmo no sentido histórico da abnegação do politeísmo
que encontramos em Israel (NORDHOLT, 1971, p.146).

6 Matebian – tradução literal seria: Alma dos mortos. Uma das entidades respeitadas da família timorense.
7 Maromak – denominação própria para Ser Supremo ou Ente Supremo.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 383


Figura 1. Religião do Povo Atoni

De modo geral, Religião de Uma Lulik do Timor é um sistema de crença tradicional


timorense onde a família é como fundamento e núcleo da sua relação com Uma Lulik –
lugar físico e espaço social de encontro religioso e cultural tradicional - com a invocação
da presença das entidades sagradas tradicionais, onde cada um com graus ou níveis di-
ferentes. Religião de Uma Lulik é uma religião doméstica onde existe várias entidades e
divindades sagradas que são representadas pelos símbolos nas casas sagradas. No caso
da religião do povo Tétum, David Hicks sintetiza o conceito da Religião de Uma Lulik: “Os
contrastes mais proeminentes na religião do povo Tétum e o parentesco é entre os seres
humanos (ema) e os espíritos ancestrais (matebian) e entre homens (mane) e mulheres
(feto)” (HICKS, 1988, p. 19).

Uma Lulik

Noção e existência

Uma Lulik ou em português foi traduzida por casa (uma) sagrada (lulik), é o nosso ponto
de referência se falar sobre a religião familiar timorense. Não somente um espaço físico sa-
grado para atividade ritual da família, mas também em sua existência como símbolo da uni-
dade, cultural e social-política. Uma Lulik é simbolicamente como templo no seu uso e âmbito
religioso, porque reúne família e membros da família da mesma linha de parentesco, reúne
também pessoas de outras linhagens da família. Muitas vezes, as reuniões são feitas nas
festas tradicionais sagradas que exigem obrigatoriamente a presença de todos os membros

384 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


da família. Estas festas são culturalmente sagradas porque celebradas na casa sagrada.
Sobre o conceito da sacralidade de Uma Lulik. Andrew McWilliam analisa as qualidades de
Uma Lulik, e argumenta que esta evocação da casa sagrada fala do valor simbólico central
das estruturas da casa na sociedade e cultura de Timor- Leste. Como formas construídas,
as casas timorenses encontram expressão em estilos arquitetônicos variados na paisagem
cultural (McWILLIAM, 2005, p. 27-44). E ligado à concepção de Uma Lulik, James Fox tem
uma outra visão, que o povo tradicional timorense tem um relacionamento forte com a terra
manifestada na linguagem ritual em relações formais e nas cerimonias. Por isso, o mais
importante para construção de qualquer Uma Lulik foi a negociação, reestabelecimento e
celebração de relacionamento social específico que é sustentado a casa como a identidade
ritual – chamado santuário e lugar geométrico da identidade. E a essencial caraterística a
cada Uma Lulik é no seu próprio nome, nas suas origens narrativas e a sua fundamentação
passada. Portanto, a Uma Lulik não existe só em si, mas em relação à outra Uma Lulik (FOX
apud McWILLIAM et al, 2011, p. 241 – 255). Portanto, além da sua existência no âmbito
religioso, podemos ver também o seu aspecto social da sua existência. Na sua existência,
Maria Pena argumenta que:

Principalmente o valor cultural de Uma Lulik, representa a continuidade no


tempo de Uma Lisan8, a família no sentido amplo ou a linhagem na linguagem
antropológica. Expressa o vínculo entre os antepassados, a geração atual e as
gerações futuras. E o espaço para a celebração dos rituais e cerimonias que
oferecem coerência interna aos grupos sociais (PENA, 2010, p.11).

Na realidade, o lugar considerado sagrado na religião familiar tradicional para muitas


populações em Timor-Leste é Uma Lulik/Casa Sagrada que encarna a presença das divin-
dades e os antepassados. Cada comunidade é orientada por um conjunto de procedimen-
tos definidos a partir dos vínculos das pessoas com os objetos, ancestrais e poderes Lulik.
Como afirma Ruy Cinatti: “Para os timorenses tudo o que é Lulik tem alma como a gente”
(CINATTI, 1987, p.34). Uma Lulik simboliza a continuidade entre passado, presente e futuro.
Osorio de Castro sintetiza essa ligação entre a existência de Uma Lulik, seu papel, rituais e
presença das divindades, diz:

Uma Lulik é o ‘templo’ dos objetos Lulik ou tabus da povoação, o seu Palácio.
Cada família tem o seu Uma Lulik doméstico ou familiar, em que os objetos
Lulik são guardados, se fazem oferendas de alimentos por ocasião das semen-
teiras e da colheita, e quando em casa há óbitos ou nascimentos (CASTRO
apud Silva, 2017, p. 26).

8 Uma lisan - refere à Casa de Linhagem é o principal centro de referência de uma pessoa, de uma linhagem. É nela se realizam en-
contros/reuniões importantes, onde se tratam de assuntos de vida ou de morte dos membros da Linhagem.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 385


Figura 2. Tipos de casas sagradas do Timor

Além disso, a uma outra visão feminista da existência de Uma Lulik como casa sagrada
dos timorenses onde se celebram os rituais sagrados dos ancestrais, e onde se encontra
a representação simbólica do “fluxo da vida”, uma referência à essência da fertilidade das
mulheres timorenses como a Mãe-Terra que sustenta seus filhos (ARAÚJO, 2013, p. 36).
Baseia-se nessa ideia de “fluxo da vida” através dos símbolos femininos, Ruy Cinatti descreve:

Uma Lulik distingue-se das outras casas típicas timorenses, através dos or-
namentos e esculturas de aves em madeira, pelos remates das coberturas
e pelos crocodilos e lagartos, ou seios de mulher esculpidos ou incisos na
madeira das portas. Também as apresentações de pedras, árvores, ribeiras,
florestas que acreditam trazem a força dos espíritos, porque tudo o que é Lulik
tem alma como a gente. A figura de seios de mulher esculpidos, isto significa
que a mulher é o símbolo de proteção da natureza e que fomenta a sua família
e o universo (CINATTI, 1987, p. 40).

Para ele, nas casas sagradas, a presença das figuras e imagens, possuem significa-
do totémico e dão uma notícia do simbolismo dualista religioso timorense (CINATTI apud
CENTENO, 2001, p.79). Uma Lulik simboliza santuário ou templo da religião familiar, onde
os ancestrais mortos são venerados através dos símbolos de imagens e objetos que têm
maior significativo para família e linhagem da família.

Construção e Papel

Um escritor português, Paulo Braga considera que Uma Lulik é o templo dos cultos
indígenas, é lugar do culto do povo nativo. E ele apresenta: “Nos lembramos de que nas Uma
Lulik há sempre a recordação dos mortos e, em algumas, o domínio do feiticeiro, do Makái
Lulik9 temido por toda a gente” (BRAGA, 1936, p. 27). Podemos ter já uma noção e função

9 Makaer-lulik literalmente: o que guarda o lulik na sua mão. São especialistas rituais tradicionais (os lulik-na’in), são os responsáveis
de determinar que elementos ou que circunstâncias têm invalidado o equilíbrio cósmico básico. Alguns reflectiram o makaer-lulik
como uma autoridade tradicional (Alberto Fidalgo, 2012, p. 98).

386 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


de Uma Lulik dentro da vida da família e da sociedade antiga. Com certeza, precisamos
saber o processo da sua construção e as suas funções. Por isso, Maria Pena fundamenta
que: “As Uma Lulik ou casas sagradas são bem mais do que uma edificação formalmente
simples. As Uma Lulik são a expresso materializada do grupo familiar que representam,
constituem a natureza do culto tradicional dos antepassados como cenário privilegiado da
praxe ritual e das cerimonias” (PENA, 2010, p.11).
O processo da construção de casa sagrada, segundo Renata da Silva (2017, p. 23-24),
na sua pesquisa, argumenta que existe quatro etapas da construção das casas sagradas:
As etapas:

1. A primeira etapa ocorre uma reunião entre os mais velhos para fazer o planejamen-
to da construção, a distribuição das tarefas e a definição dos respectivos responsá-
veis. É necessário pedir licença aos ancestrais para começar os trabalhos e fazer
os sacrifícios indicados pelas autoridades locais que intermedeiam o mundo dos
vivos, a natureza e os antepassados.

2. A segunda etapa ocorre a identificação e coleta dos materiais que serão usados. As
narrativas sobre as construções indicam que os materiais usados no passado eram
basicamente madeira, bambu, palha e cordas vegetais.

3. A terceira é o tempo da construção da casa sagrada. Essa etapa envolve carpintei-


ros (aqueles que conhecem as técnicas de construção), os donos das palavras – lia
na’in10 (os que se comunicam com os ancestrais) e as mulheres (responsáveis pela
comida).

4. A quarta fase é a inauguração cerimonial da casa sagrada.


De quatro etapas, tem uma coisa que atrai a nossa atenção, é o momento da inau-
guração da casa. O processo da construção de Uma Lulik que a autora apresenta termina
com uma cerimónia de inauguração, que dura 5 dias de atividades. Dentro desses dias em
que a família celebra os ritos da inauguração. Começa com a invocação dos membros da
família que tem linhagem mais próximos ao ancestral mítico; cerimónia da entrega de objetos
sagrados; momentos de sacrifício aos ancestrais e oferenda das famílias; ritual de orações e
interpretações de oráculo por meio do fígado do porco sacrificado e festas de encerramento
(SILVA, 2017, p. 24-25).

10 Lia-na’in foi traduzido muitas vezes como ‘senhor da palavra’, seria mais corretamente ‘o que fala’, ‘o que sabe falar’, ‘o que pode
falar’, ‘guardião da palavra’, ‘o que tem o direito de falar’, ‘orador’, ‘o custódio da palavra’, etc.. Mas também ‘senhor dos rituais’, ou
‘organizador de um ritual’ porque lia também se poderia traduzir, entre muitas outras formas, como «ritual» (halo-lia = fazer + ritual) –
Alberto Fidalgo (2012, p. 97).

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 387


É importante realçar que as Uma Lulik na sua construção e papel são diferentes com
a existência de outras casas em comum ou casas de domicílio. Francisco Menezes tenta
esclarecer essa diferença:

As Uma Lulik, se distinguem das outras casas, essencialmente porque, reú-


nem dentro de si objetos sagrados diversos, e ocupa em regra, o centro de
uma aldeia, havendo casos em que se situa fora desta, numa local lulik ou
que ofereça condições especiais, despertando atenção pela sua configura-
ção, enquadramento panorâmico, e terreiro ou espaço para os dias de estilo.
(MENEZES, 2006, p. 99).

A duração da construção de uma casa sagrada demora, dependendo também no plano


da família. As qualidades dos materiais da construção também determinam a sua sacralidade
e duração. E Cada etapa envolve rituais, deslocamento de pessoas, encontros, investimento
econômico e emocional. Por isso, Ruy Cinatti (1987, p. 112), disse que até uma construção
de qualquer uma casa simples da família, efetua também um ritual ou uma cerimónia simples
de consagrar a casa pelas orações dirigidas aos antepassados
A casa sagrada tem a principal função que é o lugar do culto tradicional da família.
Além disso, várias funções importantes também, como lugar onde a família guarda objetos
sagrados; lugar da reunião da família nas festas tradicionais (colheita de arroz e milho,
nascimento, casamento e morte); lugar de resolver problemas da família se houver conflito;
lugar onde transmite as normas de conduta moral da família; e lugar onde transmite a sabe-
doria tradicional de geração a geração. Portanto, a função central de Uma Lulik é centro de
encontro entre homem e entidades divinas, também momento de encontro entre as famílias.

Figura 3. Uma Lulik Berteni da linhagem familiar em Hatudo, Ainaro – Timor

388 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Divindades sagradas da Religião de Uma Lulik

Conceito das entidades sagradas da família

Qual é a compreensão do conceito sagrado para os timorenses? Ao longo do processo


da civilização, a cada família doméstica começa a perceber o sentido do sagrado através da
sua própria experiência cotidiana, na prática dos rituais tradicionais e também pelo contato
com a civilização de outra cultura. Francisco Menezes (2006, p. 106), sita as designações
ou os nomes que os timorenses utilizam para designar o Ente Supremo – o Mais Sagrado
nos principais dialetos locais por exemplo: Maromak (Tetum, Tokodede, Idaté, Mambae,
Lakalei, e Hábu); Akai (Kemak); Dato Geme (Bunak); Laraula (Uai-m’a, Midik e Galole); Uru
Uatu (Makassae); Uruvatchu ou Otchava (Dagadá/Fataluku); Usi Neno (Baikenu). E interes-
sante, uma hipótese do Pe. Ezequiel Pascoal de que: “A própria palavra Maromak pela qual
o Ente Supremo se designa hoje em todo o Timor, seja possivelmente, uma modificação da
palavra naroman que significa luz, esplendor” (PASCOAL apud MENEZES, 2006, p. 106).
No outro lado, James Fox relembra a existência de Wehale, antiga confederação ritual
que havia sido destruída após a marcha de capitão-mor Francisco Fernandes em Timor
em 1642. O autor afirma que Wehale resumiu o princípio da autoridade feminina. Wehale
como a autoridade da complexa confederação ritual interconectada de Timor. No centro de
Wehale estava o Na’i Boot
– ‘O Grande Senhor’ - que recebeu o título de Maromak Oan – ‘o filho do sol’ - ou “o
Filho de Ente Supremo”. Embora masculino, este Grande Senhor foi considerado como
corporificando todas as características femininas representadas por Wehale. Este Senhor
representava a terra - a própria ilha de timor (FOX, 1982, p. 22-33).
O sagrado para a família timorense é designado por Lulik. Cada cultura de cada região
em Timor entende este conceito do seu modo e da sua experiência religiosa. Um religioso e
escritor timorense, Pe. Francisco Maria Fernandes, acentua a existência de Lulik,

Supersticioso e crente por natureza, o Timorense conta também no seu re-


portório musical cantos de carácter religioso para rogar a proteção dos entes
superiores ou Lulik, seres sagrados e intocáveis com poderes super-humanos.
No campo religioso, pode-se afirmar que é difícil encontrar um timorense que
seja um incrédulo ou ateu. Todo timorense admite a existência de um Ser
superior, Maromak (FERNANDES, 2011, p. 39).

Alguns autores defendem que palavra Lulik tem a possibilidade de ser traduzida para
português com a palavra sagrado, por um motivo que na cultura e na memória dos timo-
renses representam a história ligada aos ancestrais mortos, ciclos da vida, e também papel
da natureza como mediador da relação entre homem com a sua divindade ou as entidades

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 389


sagradas (CARDOSO apud ARAÚJO, 2016, p. 57). Na análise e perspectiva antropológica
e cosmológica sobre Lulik e Maromak de um timorense, Josh Trindade (2011, p.1-22), deu
um exemplo de Lulik no sistema da religião tradicional timorense com uma coleção de ima-
gem, guardada numa caixa dentro de um lugar especial em Foho Lulik11 e Uma Lulik, essa
imagem de uma mulher pelada mostrando órgão sexual. E essa imagem para os timorenses
é como símbolo de fertilidade e a continuidade da geração numa aldeia ou clã. E dentro
desse sistema da religião tradicional, existe sanção ou castigo Lulik para quem contra a lei
ou regra de Lulik, doença e morte como dois castigos mais fortes. Por isso que Francisco
Menezes fala sobre Lulik manas: “Lulik identificados com nomes, esses tipos são mais
rigorosos, disciplinados ou exigentes do que os outros, e acreditando que a força de que
dispõem é mais ativa e violenta, sendo por isso mais temidos e respeitados” (MENEZES,
2006, p. 99). Josh Trindade tentou definir o sentido de Lulik,

A palavra Lulik tem origem no tétum e pode ser literalmente traduzida como
“proibido”, “santo” e “sagrado”. O conceito de Lulik existe em todas as línguas
de Timor-Leste em diferentes termos. Por exemplo, “po” em Bunak, “luli” em
Naueti, “tei” em Fataluku, e “phalun” em Makasae. O Lulik refere-se ao cos-
mos espiritual que contém a criatura divina, o espírito dos ancestrais e a raiz
espiritual da vida, incluindo as regras e os regulamentos sagrados que ditam
as relações entre as pessoas e entre as pessoas e a natureza (TRINDADE
apud PAULINO et al, p. 28).

Figura 4. Foho Lulik (montanha sagrada)

A religião tradicional timorense baseia-se numa: “Cosmologia timorense, como muitas


sociedades do sudeste asiático, que é amplamente definida como uma cosmologia dual”
(FOX apud RESTIVO, 2015, p. 33). Essa cosmologia dual que no estudo de David Hicks
sobre símbolos empregados no ritual e mito da sociedade do Tétum, apresenta:

11 Foho Lulik – Foho (montanha em Tétum) e Lulik (sagrada em Tétum), seria montanha sagrada. A denominação muitas vezes depen-
de das lendas, mitos, sequências históricas reconhecidas na tradição oral, etc.

390 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


O mundo sagrado, embora habitado por membros de ambos os sexos, é do-
minada por fantasmas ancestrais femininos. O Tétum chama as profundezas
subterrâneas de rai laran, “o mundo interior”. O mundo secular é conhecido
simplesmente como o rai, “a terra”. Os aldeões têm uma palavra para “secular”
(sa’un) e um termo (lulik) que pode ser traduzido como “sagrado”, “proibido”
ou “separado”. Eles parecem considerar o mundo sagrado como sendo um
enorme ventre, uma espécie de grande Mãe-Terra. Em seu sistema de classi-
ficação cósmica, o Tétum associa homens com o mundo secular e mulheres
com o mundo sagrado (HICKS, 1988, p. 20)

Esse fenômeno dos símbolos indica muitas vezes sinais de uma semelhança ao po-
liteísmo do antigo Israel antes da instituição do monoteísmo. Essa cosmologia timorense
significa que, “Tudo no mundo é composto por pares de opostos e que a harmonia do cosmos
depende do equilíbrio desses opostos; se esse equilíbrio é ameaçado, é preciso restaurá-lo
através de sacrifícios rituais. Assim, o indivíduo é constituído por uma parte sagrada, a alma,
e uma parte secular, o corpo, que devem estar em harmonia” (HICKS apud RESTIVO, 2015,
p. 33). A cosmologia timorense foi estudada com atenção por alguns investigadores. Os au-
tores analisados afirmam que:

A existência de três entidades fundamentais na cosmologia timorense: ser


divino supremo (Maromak), os espíritos da natureza e os espíritos dos ante-
passados, muitas vezes constituído por um par deus-deusa, os espíritos da
natureza e os espíritos dos antepassados (RESTIVO, 2015, p. 33).

Ligado a estas três entidades sagradas, corresponde também uma divisão tripartida do
mundo, que segundo Ruy Cinatti são: mundo superior, mundo terrestre e mundo subterrâneo
ou inferior (CINATTI apud RESTIVO, 2015, p. 33). Uma outra pesquisadora timorense, segue
a mesma linha de pensamento mas com uma maneira de expressão diferente, ela coloca o
desenvolvimento da relação humana timorense com todas as partes existentes no universo
numa união tridimensional: “Mundo visível, mundo dos espíritos e espaço celestial, e concluiu
que a natureza para timorenses é o centro da ligação entre o mundo dos vivos, mundo dos
espíritos dos antepassados e o mundo da divindade” (ARAÚJO apud PAULINO et al, p.61-
62). Mesmo tem divergência na interpretação no que se refere à caracterização deste tipo
de cosmologia, ela é caracterizada de duas formas, António Duarte de Almeida defende que
esta cosmologia é caracteriza cosmologia monoteísta (CARMO, 1965, p.132), e Francisco
Menezes também afirma que, por detrás desta religião doméstica/familiar, transparece um
conceito de Deus que se pode considerar um Deus incertus et remotus, e de um monoteísmo
primitivo (MENEZES, 2006, p. 106). Mas, vários autores a classificam como animista. Ou em
outra expressão quer dizer uma caraterística politeísta. Por isso, Januário de Correia (2013,
p. 13) argumenta que, “De facto, nas religiões primitivas (totemismo), alguns objetos, como

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 391


plantas e animais, eram divinizados, portanto, a religião era um símbolo de representação
coletiva na sua forma ideal.”

RITUAL AOS ANCESTRAIS

Para os timorenses, existem três entidades sagradas ou Lulik são: Natureza,


Antepassados e Ser Supremo. E essas três entidades, são respeitadas e veneradas nos
rituais sagrados onde acontecem em lugares sagrados como Uma Lulik, centro e a princi-
pal referência. Ritual é um ato principal da religião familiar, por exemplo ritual ou cerimonia
relativas à produção agrícola sendo próprio lugar é Uma Lulik: Cerimónia Kero We/Udan,
realiza-se para evitar a chuva; Cerimónia Ke’e Bee Liman/Irrigação; Cerimónia Fase Karau
Ain; Cerimónia Fo Han Rai Lulik; Cerimónia Tara Bandu Boot (Eugenio Sarmento apud
CASTRO, 2010, p. 57). Os elementos principais de um ritual, geralmente, com a presença
de lia-nain; materiais de sacrifício principalmente bétel e areca, animais de sacrifício (galo,
porco, cabrito e boi ou búfalo), matérias de ofertas como tais – traje tradicional e dinheiros,
comidas (arroz e carne), presença dos espíritos dos antepassados através dos objetos
sagrados e sem dúvida o próprio processo ritual. Além dos rituais ligados à vida agrícola,
existe ritual da família como ritual do novo nascimento, do casamento cultural e até o ritual
da morte (ritos funerários), onde a família comemora esses ritos de passagem do ciclo vital
dos homens (CASTRO, 2010, p. 52). Existem ainda inúmeros exemplos de ritos tradicionais
timorenses fora e dentro de Uma Lulik.

Figura 5. Aito’os – altar de sacrifício aos ancestrais

De acordo com Renata da Silva, “Uma Lulik é uma metonímia do mundo cósmico,
expresso na aldeia e na casa de habitação. Com o propósito de manter o bem-estar das

392 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


relações e da vida social, é preciso cumprir um conjunto de obrigações e prestar uma série
de deferências relacionadas à casa sagrada” (SILVA, 2017, p. 26). Ela continua afirmar que:

A presença dos antepassados confere sacralidade à casa. Uma casa rodeada,


protegida pelos mortos e ancestrais, produz efeitos e traz implicações aos que
dela fazem parte. O culto aos antepassados ganha dimensões mais públicas
e intensas nas comemorações do Dia de Finados. Oferendas de vários tipos
são realizadas nesse dia (ou próximo à data) nas casas de moradia, nas ca-
sas sagradas, nos túmulos espalhados pelas ruas, residências e cemitérios
(SILVA, 2017, p. 49).

Figura 6. Oferendas aos antepassados

Portanto, coisas boas e ruins, sucesso ou fracasso na vida estão relacionados a dá-
divas, ou a castigos de Ente Supremo - Maromak e dos antepassados que estão no outro
mundo. Se não fazer esses rituais de oferendas pode ser considerada como uma traição aos
antepassados. É um mode de ação de graças aos antepassados (ibid. 2017, p. 57). Um exem-
plo concreto conhecido na cultura timorense, é o ritual de Tara Bandu12. É uma sabedo-
ria ecológica tradicional timorense, promovida para proteger a vida humana e a natureza
(CARVALHO et al, 2011, p. 52). Esse ritual acontece com objetivo principal de proteger e
conservar o ambiente, terra, árvores e animais. Convida as entidades sagradas a prote-
ger a ecologia, para o bem das pessoas e das criaturas. Na religião doméstica timorense,
Ruy Cinatti fundamenta que “Tudo tem alma, as pedras, as almas, as árvores, os gondões
frondosos, as montanhas elevadas que são habitas pelas almas dos mortos (matebian), as
ribeiras tumultuosas, as florestas primárias, impenetráveis e sempre verdes” (CINATTI, 1987,
p. 36). Uma indicação que mostra a presença dos espíritos dos antepassados da família

12 Tara Bandu – literalmente significa: dependurar proibição. É um dispositivo local de governança que opera pela imposição ritual de
regras, proibições e punições. Nos rituais que o instituem tomam parte autoridades locais e/ou nacionais, bem como entidades espiri-
tuais às quais se credita, em seu conjunto, agência nos processos de reprodução social. Em tais ocasiões, são realizados sacrifícios e
falas rituais. Tais procedimentos têm como objetivo instaurar canais de comunicação entre as autoridades (vivas e mortas) presentes
e validar publicamente as proibições prescritas, as quais são lidas em alta voz para a comunidade e inscritas em símbolos, que são
a seguir fixados nas áreas de cobertura de tara bandu.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 393


em todos os elementos da vida da família. Por isso, Cinatti relembra a fonte da cosmologia
timorense ligada aos antepassados em Uma Lulik: “O simbolismo cósmico do mundo ex-
presso na aldeia e na casa de habitação é retomado na casa cultual, na Uma Lulik. Ela é
habitada pelos espíritos dos antigos guerreiros, antepassados dos que habitam o povoado
ou o reino” (CINATTI, 1987, p. 38).

Figura 7. Lia-Nain/dono da palavra – sacerdote tradicional

Objetos dos antepassados

Fala de ritual, é sempre ligado aos objetos rituais. Normalmente, os objetos sagrados
da religião familiar timorense são guardados no lugar considerado digno e sagrado. E maioria
destes objetos são objetos de herança de uma linhagem familiar. São guardados em Uma
Lulik. Portanto, fala de ritual e objeto sagrado, a primeira intuição já vai à Uma Lulik. É claro
que cada família ou linhagem da família tem seu próprio objeto considerado Lulik. Paulo
Braga nos lembra que materialmente, “Casa sagrada de uma família é uma casa que se
distingue das outras casas porque reúne dentro de si objetos sagrados, fetiches, vulgares
utensílios de uso indígena que, por qualquer motivo, passaram a ser Lulik” (BRAGA, 1936,
p. 27). Podemos mencionar alguns exemplos de objetos sagrados, Ruy Cinatti mencionou:
uma espada, uma pedra de feito singular, um saco de masca que foi pertença de um avô, são
Lulik conservados dentro da casa e dependurados na coluna principal (CINATTI, 1987, p. 34).
Para definir exatamente quais são os objetos sagrados. Alberto Fidalgo, a partir da sua
investigação nas Uma Lulik em Ainaro, define que:

Um objeto pode converter-se em sagrado/Lulik através de três processos.


Em primeiro lugar, quando é o resultado duma herança ou transmissão dos
antepassados. Em segundo lugar, um objeto passa a ser Lulik quando a sua
obtenção, por elaboração, compra ou intercâmbio ritual, esteja destinada a
usos de tipo ritual. Em terceiro lugar, quando se reconhece ou descobre no

394 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


objeto uma qualidade Lulik ou sobrenatural específica, como pode ser o caso
de algumas pedras (FIDALGO apud CASTRO, 2010, p. 223).

Fidalgo (2010, 224-229), considera que os objetos considerados sagrados (sasán lulik)
existe uma grande variedade. Existem alguns muito frequentes e comuns: Surik, Belak, Rota,
Diman, Hiura, Biru, Titir, Baba-dook, Tala, Kaibauk, Kelu, Loku, Morten, Belak, Manu fulun,
etc. Outros objetos são obtidos mediante intercâmbios rituais no contexto de cerimónias de
muito diverso tipo, sendo os derivados do barlaque, por exemplo, determinados Tais, Kohe
e Mama. Na concepção comum da religião familiar, quanto mais dura de anos um objeto
sagrado, qualidade de sacralidade daquele objeto aumenta, mesmo que já é sagrado em si.

Figura 8. Surik (espada) Figura 9. Kaibauk e Belak

CONCLUSÃO

Na perspectiva do autor, na religião doméstica timorense a expressão da fé, fundamen-


ta- se em Ente-Supremo – Maromak e os ancestrais mortos - Matebian. Onde se encontra nas
famílias. A Família é o núcleo da religião doméstica. Dentro dessa família, os antepassados
ou ancestrais (matebian) da família foram divinizados em Uma Lulik. A religião doméstica
de Uma Lulik do Timor-Leste considera:

• O culto aos antepassados – Matebian. E representação de entidade divina nas


famílias.

• Ritos verbais – Lulik/santo e Lia Nain/sacerdote, lugares de culto – Uma Lulik, cada
família tem sua casa sagrada. E imagens e figuras – representações de divindade.
Exemplo: os símbolos de animais.

• Sacrifícios ou oferendas: Ente Supremo, antepassado e natureza. Universo da

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 395


crença: céu, terra e subterrânea.

• Divindade como protetora e que gera a vida. Exemplo: imagem de uma mulher pe-
lada nas casas sagradas, simboliza Mãe-Terra – figura da fertilidade e continuidade
da vida.

REFERÊNCIAS
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de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil.

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do grupo linguístico Mambai-Timor. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Política
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pical, Museu de Etnologia, 1987.

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Timorense: uma perspectiva sobre o desenvolvimento e o turismo comunitário no distrito de
Baucau. Dissertação de mestrado, Universidade do Minho, Portugal.

10. FERNANDES, Francisco M. Radiografia de Timor Lorosae. Macau: St. Joseph Academic
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396 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


16. ______et al. Land and Life in Timor-Leste. Austrália: ANU E Press, 2011.

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23. RESTIVO, Maria Manuela de Castro. A coleção de Timor da Faculdade de Letras da Univer-
sidade do Porto: uma introdução às artes tradicionais timorenses. Dissertação de mestrado,
Portugal: Universidade do Porto, 2015.

24. SILVA, Renata Nogueira da. De cultura a Patrimônio: Uma lulik no Timor-leste pós- colonial e
seus efeitos na reprodução social. Pesquisa desenvolvida no âmbito da 1ª Chamada Pública
de Pesquisas do Centro Lucio Costa/CLC-IPHAN, Centro de Categoria 2 sob os auspícios da
UNESCO. Rio de Janeiro, 2017

25. TRINIDADE, Josh. Lulik: The core of Timorese values. In: Conferência Communicating New
Research on Timor-Leste 3rd Timor-Leste Study Asscociation (TLSA) em 30 de June de 2011.
O trabalho foi apresentado também em: Creative Industry Conference in July 16th, 2011.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 397


28
“ Religião, cultura e sistema
simbólico

Thais Alves Marinho


UnB

Clóvis Ecco
PUC Goiás

10.37885/201001639
RESUMO

Em comemoração aos 20 anos de existência do Programa de Pós-Graduação em Ciências


da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, este artigo pro- põe perspec-
tivar um caminho epistemológico e metodológico, a partir da produção dos docentes e
discentes vinculados à linha de pesquisa Cultura e Sistema Simbólico, para lidar com
a religião enquanto sistema simbólico. Defendemos análises tanto sincrônicas, quanto
diacrônicas, que possibilitem perspectivar ao mesmo tempo as psicogêneses e as soio-
gêneses, com o intuito de desconstruir os essencialismos, amparados em regimes de
verdades e representações, que silenciam a alteridade e as desigualdades de gênero. Tal
reflexão epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade, sincretismo
religioso e gênero são necessárias para lançarmos luz sobre as mesclas, encontros e
choques religiosos contemporâneos.

P a l a v r a s - c h a ve: R e l i g i ã o, S i s t e m a S i m b ó l i c o, S i n c r e t i s m o, G ê n e r o, R e g i m e
de Representações.
INTRODUÇÃO

A prerrogativa original das ciências da religião é que a religião, enquanto objeto, se


fundamenta pela existência de sujeitos que a manifestam de uma forma intencional, cabe
ao fenomenólogo “se colocar com compreensão ao lado do que se mostra e olhá-lo” (VAN
DER LEEUW, 2009, p. 182). Percebemos, portanto, que o edifício fenomenológico se ergue
sobre múltiplas perspectivas como: epistemologia (ponto de partida), método (caminho),
filosofia (construção) e ciência (intenção).
No entanto, como já indicara Husserl não há pura consciência separada do mundo,
uma vez que ela é sempre consciência de alguma coisa, e não há objeto em si, já que este
só existe para um sujeito que lhe dá significado, logo, não há pura consciência religiosa ou
puro objeto religioso separados do mundo. De modo que a religião somente se dá na mani-
festação, como experiência religiosa, a partir da vivência diante do mistério, do sagrado e do
inexplicável num meio mundano, e, portanto, inexoravelmente social e moral. Logo, mesmo
que a revelação não seja um fenômeno, a resposta que homens e mulheres dão à ela, “o
que dizem do que é revelado é um fenômeno, que permite concluir indiretamente que há a
revelação (per viam negationis)” (VAN DER LEEUW, 2009, p. 182).
Essa perspectiva gnosiológica pressupõe um agnosticismo metodológico, que requer
uma suspensão sobre as explicações teístas porque as ferramentas científicas, como indica
Carl Stohnen (SHEEDY, 2016), simplesmente não estão equipadas para considerá-las. Isso
porque, conforme Otto (2007), apesar de termos uma predisposição cognitiva que possibilita
e leva ao encontro dessa dimensão do sagrado, que ele chama de numinoso, ela é irracio-
nal por excelência, e por isso, escapa a qualquer conceituação e conceito que explicaria a
presença constante da dimensão religiosa ao longo da história.
Assim, de um lado, a moral teria como base ética a energia própria à dimensão do
sagrado (orgé), que anula a própria existência (magestas) e provoca um misterium tremen-
dum, ultrapassando nosso entendimento (o completamente outro), promovendo o fascínio
e a atração ao sagrado (fascinans) (OTTO, 2007). Mas, por outro lado, o sagrado, como
completamente outro, se faz presente em lugares, em momentos, em pessoas e/ou objetos
que estão envolvidos na manifestação do sagrado, por meio do que Eliade (1992) chama
de hierophonias, logo, as transferências de energias religiosas para o mundo se dão a
partir de projeções humanas, e somente, assim, o sagrado entra no alcance das expe-
riências humanas.
Dessa forma, compreendemos que para além do embate sobre a imanência do social,-
em que a cultura seria uma totalidade na qual as religiões seriam alguns dos fios - , ou por
outro lado, sobre a transcendência da religião, - que percebe a importância da cultura e da

400 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


história, mas que advoga que essas são incapazes de explicar os mistérios da preocupação
suprema, - as ciências da religião pode captar as experiências religiosas, redescobrindo o
significado em sua totalidade, abarcando tanto o télos intencional, do qual falava Husserl
(1965), quanto a epóche, que permite o acesso à intuição, a partir dos sujeitos que experi-
mentam a religião. No entanto, em nossa compreensão, tal totalidade só pode ser abarcada
se adicionarmos à análise a indagação de como a busca pelo poder pelos seres humanos,
que demandam da vida alguma coisa (um sentido), e que inaugura a possibilidade de cultura
e religião, como advoga Van der Leeuw (2009), se articula com estruturas de poder simbó-
licas históricas, a partir da institucionalização e secularização da religião.
Dito de outra forma, a significação da experiência vivida pelos humanos “se estende
sobre múltiplas unidades experimentadas simultaneamente, provindo mesmo da compreen-
são dessas unidades experimentadas” (VAN DER LEEUW, 2009, p. 180) que se faz em um
determinado contexto histórico, social, cultural, moral, ideológico, político e econômico, que
dialogam e alimentam a vontade de potência. É sobre esse complexo sistema simbólico que
propomos compreender as múltiplas experiências religiosas.
Esse percurso pressupõe, portanto, analisar a religião enquanto sistema simbólico, que
como diria Geertz (1989, p. 105) “atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras
disposições e motivações nos homens” e mulheres “através da formulação de conceitos de
uma ordem de existência geral, vestindo essas concepções com tal aura de factualidade,
que as disposições e motivações parecem singularmente realistas”. No entanto, como aler-
ta Ortner (2011, p. 424), embora Geertz (1989) tenha usado com frequência “a expressão
“sistema cultural”, ele nunca prestou muita atenção aos aspectos sistêmicos da cultura”.
Então, lançamos mão do estruturalismo construtivista de Pierre Bourdieu, da ecologia
cultural de Marshal Sahlins, da antropologia simbólica de Clifford Geertz, dos estudos culturais
de Stuart Hall, do pós-colonialismo de Homi-Bhaba e Gayatry Spivak, do pós-estruturalismo
de Michel Foucault, do decolonialismo de Mignolo, Dussel, Quijano, entre outros e outras
para perspectivar um caminho metodológico que possa lidar com os “padrões de relações
entre categorias e de relações entre relações” (ORTNER, 2011, p. 444), que possa captar
a nível micro e macro como as representações sociais se articulam aos regimes de repre-
sentações, no contexto contemporâneo, a fim de traçar uma perspectiva epistemológica e
metodológica para lidar com a religião enquanto sistema simbólico.
Assim, propomos um diálogo que combine elementos de afeto, revelação, ethos e
valor com esquemas de classificação cognitivos, que perspective a sociedade, a história
e as religiões para além de “uma soma de respostas ad hocs e de adaptações a estí-
mulos particulares, mas que são governadas por esquemas organizacionais e avaliativos

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 401


(incorporados às formas institucionais, simbólicas, materiais e religiosas) que constituem o
sistema” (ORTNER, 2011, p. 444).
Tomamos como ponto de partida dessa incursão epistemológica o rol de estudos e
pesquisas desenvolvidos pela linha de pesquisa Cultura e Sistema Simbólico do Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás,
que ao longo de 20 anos de existência tem se voltado à produção de conhecimento dentro
desse enlace. Para tanto, traremos elementos das teses e dissertações dessa linha de pes-
quisa visando perspectivar como as religiões se estabelecem enquanto sistemas simbólicos
e quais as perspectivas teórico-metodológicas para essa agenda de estudos.

DIMENSÃO SIMBÓLICA NOS ESTUDOS CLÁSSICOS: CONTINUIDADES


E ESTABILIDADES

A dimensão simbólica do fenômeno religioso é salientada, por distintos autores, desde


o surgimento das ciências sociais. August Comte (1890), Karl Marx (2010), Émile Durkheim
(1968), Max Weber (1999), Bronisław Malinowski (1994) salientam em seus estudos o simbó-
lico como elemento regular e estável, que opera ora como determinante da ação individual,
ora como fonte motivadora da mesma. A religião, mesmo sendo entendida enquanto fato
social (DURKHEIM, 1968), universal (MALINOWSKI, 1994), não transcendental (COMTE,
1890) ou instituição própria à superestrutura (MARX, 2010), que contribui na deli- mitação
de uma ordem legítima (WEBER, 1999) apresenta uma dinâmica histórica que pressupõe
movimento, seja pela disputa entre os distintos sistemas simbólicos (estrutura social, política,
economia, religião, cultura), seja pela disputa por distintos símbolos, quando os sistemas se
estabilizam. Em todo caso, a estabilidade ou a continuidade nessas disputas são salientadas
nesses estudos clássicos, em detrimento das rupturas e diferenciações.
No início do século XX, o tratamento da religião, enquanto sistema simbólico, ganha
novas roupagens. A efervescência coletiva despertada nos indivíduos pela religião e pelo
sagrado, passa a ser compreendida também a partir do inconsciente, seja em resposta ao
desamparo humano (FREUD, 1978), seja a partir da latência do símbolo tripartido de Victor
Turner (1974), ou do si-mesmo como arquétipo da totalidade com Jung (1971), que inclui
o numinoso de Otto (2007).
Assim, essas novas compreensões permitem compreender a força dinamogênica eri-
gi- da da religião e de seus ritos e rituais, a partir do coletivo, por um lado, e/ou a partir do
numinoso, por outro, já que as identificações e respostas dos indivíduos aos símbolos religio-
sos seriam dirigidos por associações e interpelações conduzidas pelo próprio inconsciente
a partir de um sistema simbólico e/ou a partir do transcendental.

402 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


À medida que a história caminha, o desenvolvimento tecnológico se acirra, propiciando
um intenso e crescente fluxo e intercâmbio de informações, pessoas, serviços, bens a nível
mundial. Esse processo fora evidenciado, especialmente após a primeira metade do século
XX, quando fica cada vez mais claro que os estudos sobre o fenômeno religioso, embora
bebessem das fontes clássicas, não podiam mais focar nas continuidades e regularidades
dos sistemas simbólicos e dos símbolos.
Gradativamente, se tornou irredutível a percepção de que muitos dos líderes carismá-
ticos, profetas, promotores de movimentos religiosos interpelados tanto pela energia criativa
e subjetiva do inconsciente, quanto pelas novas dinâmicas sociais promovidas pela mun-
dialização da cultura e pela globalização tecnológica (ou pela soma de ambas) produziram
releituras que levaram a cisões, ao surgimento de diferenças, e de novos quadros religiosos.
Observamos no quadro abaixo, elaborado por Isaia (2014) que a estabilidade do projeto
de identidade católica para o Brasil, paradigmaticamente, corroborava com a percepção da es-
tabilidade e continuidade como marca do fenômeno religioso, já que os adeptos dessa religião
até a primeira metade do século XX se mantinham como maioria absoluta. Já nas duas últimas
décadas desse século esse quadro começa a ser drasticamente revertido, enquanto em 1872
havia 99,7% da população brasileira sendo católica, em 1980 esse número é de 89,9%, che-
gando a 64,6% em 2010 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE).

Figura 1. Gráfico sobre a distribuição religiosa da população brasileira desde 1872

Fonte: IBGE (apud ISAIA, 2014, p. 178)

OS ESTUDOS SOBRE RELIGIÃO NO BRASIL: SINCRETISMO, ACULTU-


RAÇÃO, ASSIMILAÇÃO

A inserção do pentecostalismo com a vinda mítica de Gunnar Vingren e Daniel Berg ao


Pará, surgimento mítico da Umbanda quando a entidade do Caboclo das Sete Encruzilhadas
teria anunciado ou fundado a Umbanda, por meio de Zélio Fernandino de Moraes, ambos
no início do século XX, e, por fim, o reconhecimento (pelo menos para a academia) do
Candomblé, a partir da Macumba e do Calundu passam a colocar em xeque a unanimidade

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 403


católica na metade do século XX. Conceitos como sincretismo, aculturação, assimilação co-
meçam a ser formulados para compreender os movimentos de mudanças que se deflagram,
mas contaminados pelos paradigmas clássicos, buscam ainda valorizar as continuidades e
estabilidades do sistema simbólico religioso.
Os estudos sobre o Candomblé e sobre a Umbanda, começam a ser realizados sob
a lógica culturalista, que perspectiva a cultura como sistema autônomo, a par- tir das con-
tribuições de Roger Bastide (1971 e 1973) e Arthur Ramos (1942) (considerados pais, ao
lado de Nina Rodrigues e Gilberto Freyre, dos estudos afro-brasileiros no Brasil), focando
justamente as continuidades culturais da tradição e contribuição africana, vistas de forma
estática, promovendo a essencialização das particularidades desse grupo para a composição
nacional (MARINHO, 2019a). Tal incursão se fazia necessária, justamente para posicionar
o Candomblé enquanto símbolo em disputa do sistema religioso brasileiro, que vivia sob a
égide hegemônica do catolicismo. E também para consolidar os estudos afro-brasileiros como
área de estudos acadêmicos, já que predominava na academia uma herança eurocêntrica
de ciência, fruto da colonialidade do poder, do saber e do ser (QUIJANO, 2000), do racis-
mo epistêmico denunciado por (MALDONADO-TORRES, 2008), da negação da alteridade
epistêmica (CASTRO-GÓMEZ, 2005) que se esqueceu ou se descuidou em considerar
“as contribuições das manifestações africanas e afro-brasileiras para a cultura nacional”
(MARINHO, 2019b, p. 161). Por outro lado, mas ainda em um bojo culturalista, Gilberto Freyre
(2001), passa a valorizar a miscigenação enquanto marca estrutural da formação brasileira,
solidificando a ideia do sincretismo como símbolo da religiosidade brasileira.
Como aponta Marinho (2019b) na década de 1970, há uma mudança de perspectiva, e
Renato Ortiz (1991) passa a focar justamente as mudanças culturais e as situações nas quais
o contato das religiões de matriz africana estabelecem com o catolicismo e o Kardecismo,
eliminando, como prerrogativa a lógica essencialista fundada na crença de um ponto de
origem para o contato, como defendia Arthur Ramos (1942). Nessa perspectiva, a proposta
de desconstrução do culturalismo possibilita visualizar os choques culturais, tratados por
Ortiz (1991) dentro da lógica da “bricolagem”, como partes integrantes da sociedade global,
permeado por imposição de valores, nada recíprocos, por parte dos dominantes, mas que
são submetidos ao crivo das lógicas culturais dos dominados, como já salientara Wacthel
(1976), ao tratar da questão da “aculturação”.

RUPTURAS E DISTORÇÕES: BRICOLAGEM, HIBRIDISMO E CRIPTO-RE-


LIGIÕES

O sincretismo se torna a base para experimentação da experiência religiosa em gran-


de parte dos estudos desenvolvidos na linha de pesquisa Cultura e Sistema Simbólico do

404 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Goiás. Das 17 (dezessete)
teses de doutorado defendidas por essa linha de 2013 a 2019, o sincretismo se torna cate-
goria analítica de pelo menos 7 (sete) teses. Alguns autores buscam trabalhar o sincretismo
como síntese de distintos matizes, que privilegia, no entanto, a base cristã como discurso de
legitimação e aceitação social, como a tese intitulada “Mitologia dos Orixás e Umbanda: Duas
Bacias Semânticas na Perspectiva de Durand” de Cilma Laurinda Frei- tas, sob orientação
da Dra. Irene Dias de Oliveira, defendida em 2016.
Outros autores adotam a perspectiva analítica da mudança, que enfatiza o processo
de consolidação da religião na década de 1950, a partir de elementos indígenas, kardecistas
e católicos, mas também seu declínio a partir dos anos de 1980, e sua posterior reformu-
lação a partir do século XXI, representada por três grandes segmentos religiosos a saber:
a Umbanda Iniciática, a Umbanda Sagrada e a Linha Cruzada, como no trabalho de Hulda
Silva Cedro da Costa, com a tese intitulada “Umbanda, uma religião sincrética e brasilei-
ra”, sob supervisão da Dra. Irene Dias de Oliveira, defendida em 2013. O diferencial dessa
perspectiva é a problematização de conceitos como sincretismo, hibridismo e bricolagem e
suas validades epistemológicas para lidar com o fenômeno da Umbanda.
A hibridação, enquanto, variável analítica de explicação do fenômeno da umbanda,
também é utilizada na tese de Roberto Francisco de Oliveira, intitulada “Hibridação Bantu:
o percurso cultural adotado por um povo”, sob orientação da professora Dra. Irene Dias de
Oliveira, de 2015, que busca reavaliar a importância que os africanos escravizados de matriz
Bantu tiveram na consolidação da cultura brasileira, que não absorveram simplesmente o
cristianismo hegemônico ocidental, criando, na realidade, distintas estratégias de conser-
vação e manutenção das tradições africanas, que passaram a influenciar as congadas, a
formação da umbanda e dos candomblés angolanos. Salienta que, os Bantu atestam sua
contribuição cultural ao Brasil, mesmo erguendo a bandeira da hibridação.
As congadas da Vila João Vaz, em Goiânia, se tornam foco da análise de Rosinalda
Correa da Silva Simoni, na tese intitulada “A Congada da Vila João Vaz Em Goiânia (Go):
Memória e Tradição”, sob supervisão da Dra. Irene Dias de Oliveira, defendida em 2017. A au-
tora busca, por meio da memória e das tradições seguidas pelos congadeiros, salientar como
as ações e práticas desses agentes se tornam fundamentais para legitimar a cultura afro-re-
ligiosa-goiana e refletem seus interesses na patrimonialização dessa religiosidade popular.
Essas pesquisas lançam luz sobre o fato de que as religiões, enquanto sistemas sim-
bólicos, não são meramente respostas ad hoc ou adaptações a estímulos particulares.
Possibilita-nos vislumbrar que existem regimes de verdades (FOUCAULT, 2012) e regimes
de representações (HALL, 1996) que se estabelecem como esquemas organizacionais e
avaliativos e que significam os discursos, tornando-os plausíveis e dotando-os de eficácia

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 405


prática. Tais regimes não são fechados e mostram-se aptos a incorporar novos elementos
à rede de significados em questão, mantendo um núcleo original de sentidos, contudo, inal-
terado (HALL, 1996, p. 201).
Os discursos se servem de “arquivos” ou fontes de conhecimento comum para se cons-
tituírem. Ao longo do processo de expansão colonial, os conhecimentos clássicos, as fontes
bíblicas e religiosas, as mitologias, além dos relatos de viajantes, se tornam os principais
recursos que vão nutrindo e constituindo o discurso do Catolicismo (Norte/West), enquanto
base hegemônica para a cultura brasileira (Sul/Rest), enquanto delineia a contribuição dos
indígenas e dos africanos no contexto da diáspora como representante do selvagem, do
atrasado, do sub-desenvolvido, do ruim. Daí a importância de questionamento do conceito
de sincretismo, uma vez que ele se pauta nesse regime de representações, e por isso, acaba
elegendo a matriz católica como mais fundamental nos encontros culturais.
Esse regime de representações do outro (não europeu, não católico, não branco =
Rest) faz com que as análises sobre suas culturas e religiões sejam compreendidas a partir
da ideia de ausência e incompletude, já que tomam as religiões cristãs como padrão. Isso
ocorreu com conceitos como de: animismo, entendido como “doutrina geral das almas” em
Tylor (1970); totemismo, que fora entendido como “disposição contingente de elementos não
específicos” ou como uma operação classificatória universalista (LÉVI-STRAUSS, 1980);
e fetichismo, que denota a doutrina ou culto daqueles que usam fetiches, certos objetos
vis- tos como dotados de poder sobrenatural por populações da África ocidental, como na
perspectiva de Brosses (1760), reificadas no contexto brasileiro por Nina Rodrigues (1935).
Essa narrativa ainda muito presente nas ciências da religião reduz a história moderna
a uma catequização cristã e heroica do mundo, sem levar em consideração as diferentes
“temporalidades e historicidades [que] foram irreversível e violentamente juntadas” (HALL,
1996, p. 223). Assim, é importante observar que não há simetria de poder entre os elementos
religiosos oriundos do catolicismo, das religiões africanas e indígenas, mas vale perspectivar
que ao invés de serem vistas como antagônicas, separadas e opostas, se completam histórica
e semanticamente, são “histórias partilhadas” interdependentes e que se apresentam em
simultaneidade formando uma “modernidade entrelaçada” (RANDERIA, 2000), como indica
Costa (2006, p. 121), ao salientar a necessidade de contextualização das transformações
que se realizam “num feixe de relações interdependentes entre as diferentes regiões do
mundo, de forma a dar sentido às assimetrias e às desigualdades construídas no interior
da história moderna comum”.
Seguindo essa lógica, a religião, assim como a cultura, enquanto sistemas, não são
tomadas enquanto mistificações, ou falsas consciências, já que a subjetividade e a reali-
dade dos sujeitos são constituídas pelo próprio sistema simbólico. Os discursos produzem

406 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


“um lugar para o sujeito” e ganham sentido à medida que nos posicionamos, assim, “nos
tornamos sujeitos em face do regime de verdade e de representações que uma determinada
formação discursiva estabelece” (COSTA, 2006, p. 127). Logo, a questão é compreender
como e porque cada sistema exclui configurações alternativas e possíveis.
Na tese de Célio de Pádua Garcia, intitulada “Em terras de sincretismos: apropriações e
ressignificações iurdianas” sob orientação da Dra. Irene Dias de Oliveira, defendida em 2015,
o foco é precisamente a lógica dos encontros, choques e seleções culturais das influências
socioculturais e religiosas provenientes das religiões de matrizes africanas sobre a Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD). O autor observa importantes mudanças ritualísticas no
âmbito neo-pentecostal, em específico, na Igreja Universal do Reino de Deus, que passou
a utilizar elementos originários de religiões afro-brasileiras em seus rituais.
Maria Emília Carvalho de Araújo, na dissertação “Tecendo os Fios da Trama Coletiva:
Pos- sessão e Exorcismos Rituais da Igreja Universal” de 2001, sob orientação do Dr. Manuel
Ferreira Lima Filho, já havia observado que as religiões afro-brasileiras, como Umbanda,
Quimbanda e Candomblé, são em muitos casos associadas à fonte de ação demoníacas
pelos membros da IURD, indicando que há um negativo regime de representação sobre as
religiões de matriz africana. Mas, Garcia (2015) avança em mostrar um processo antagô-
nico, ao mesmo tempo em que a IURD combate veementemente os adeptos de religiões
afro-brasileiras e mediúnicas, se utiliza de tais elementos em seus rituais e discursos, que
foram analisados pela ótica da análise do discurso de Foucault. O autor observa que a IURD
passa a utilizar-se de termos, elementos, rituais e expressões encontradas nas religiões de
matrizes africanas, o que tem contribuído para reposicionar a identidade negra dentro da
própria IURD, enquanto busca deturpar a identidade negra nas religiões de matriz afrodes-
cendentes. Ao atribuir-lhes aspectos negativos relacionando-as com o diabo, estabelece,
dessa forma, certo clima de intolerância religiosa entre a IURD e as religiões de matrizes
afrodescendentes. Demonstra, pois, que a utilização dos elementos da religião tida como
oposta e a ressignificação desses elementos passam a configurar um novo pro- cesso sin-
crético religioso.

RACISMO, INTOLERÂNCIA RELIGOSA E MULTICULTURALISMO

O racismo projetado na intolerância religiosa indica que o estado, a partir de seus po-
deres legitimadores, elevou os cristãos (católicos, a princípio, e mais recentemente, evan-
gélicos, incluindo grupos pentecostais e neopentecostais), ao patamar de nação, cabendo
assim a esse determinado grupo representar a unidade nacional. Apesar da secularização
Baumann (2003) salienta que o estado preenche o vazio do embate entre nação e etnicidade
com ideias religiosas sobre o próprio estadonação, no caso brasileiro, a comunidade nacional

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 407


se une em torno de valores e de uma identidade moral cristã. Como salienta Baumann
(2003) o problema surge justamente quando o grupo escolhido para representar a unidade
nacional tem que reconhecer os outros grupos étnicos como parte da nação. Esse encontro
entre etnicidade, religião e nação, seria a base para os debates multiculturais. O multicultu-
ralismo se transforma em área de concepção de lutas por reconhecimento da existência de
pluralidade de valores e de diversidade cultural, constituindo, em alguns países ocidentais,
terreno de debates e polêmicas intermináveis, confrontando diferentes ideologias quanto aos
modos de promover igualdade de oportunidades e o reconhecimento do direito à diferença
(MARINHO, 2009).
No Brasil, a resolução desses embates se deu, enquanto expectativa, na promulgação
da Constituição de 1988, como demonstra a tese de Vinicius Wagner de Sousa Maia Nakano,
intitulada “Constitucionalismo Brasileiro e Multiculturalismo: a Afirmação das Diferenças
Religiosas”, sob orientação da Dra. Irene Dias de Oliveira, defendida em 2017. O autor in-
vestiga precisamente como identidades religiosas erguem fronteiras que estabelecem limites
e barreiras conceituais e semióticas, influenciando comportamentos e formas de pensamen-
to, e também os modos como os sujeitos representam e autor representam sua condição
religiosa. A partir da relação entre religião e Estado, são produzidas não apenas leis, mas
discursos que colidem entre si na manutenção de uma sociedade multicultural. O advento
da constituição, no contexto de redemocratização, alterou o discurso hegemônico de matriz
católica, incorporado ao discurso do Estado pelo longo período de vigência do padroado
régio, e após, quando da tentativa de construção da identidade nacional. A ressignificação
desta associação somente vem ocorrendo, segundo o autor, diante da emergência de novos
atores discursivos, contra-hegemônicos, e do empoderamento de “minorias” e grupos vulne-
ráveis, antes silenciados, invisibilizados e negados em sua própria condição de ser e existir.
As mudanças podem ser atribuídas, em parte, aos processos de secularização e plu-
ralismo, que tornaram possível o constitucionalismo como teoria normativa da política se-
gundo a qual se impõem limites ao poder do Estado e asseguram-se os direitos humanos
e fundamentais, e principalmente à práxis dialógica no sentido bakhtiniano, que torna pos-
sível a coexistência de diferentes sujeitos, enunciados e discursos religiosos na mesma
comunidade política. Por este caminho diferentes práticas religiosas migraram do campo
da ilicitude para o campo da licitude, ainda que isso não implique dizer que a percepção de
liberdade religiosa seja experimentada da mesma maneira pelos diversos atores a partir de
seus próprios discursos.
Essa é a mesma lógica que sustenta a noção de hibridismo, embora Bhabha (1995)
negue o caráter intencional de que fala Bakhtih. Isso porque para Bhabha (1995) o fenôme-
no da hibridação independe da vontade do sujeito e muitas vezes se presta à afirmação do

408 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


próprio poder dominante e colonizador, que, no caso do Brasil, é cristão. Assim, cadeias de
significações hibridizam-se, à luz da lógica da religião dominante, mas ao mesmo tempo,
esvaziando a simbologia da dominação em suas práticas, gostos, emoções, indicando o que
Oliveira (2015) chama de novas sensibilidades.
No âmbito das Ciências da Religião, Oliveira (2015, p. 89) tem salientado uma neces-
sidade de abertura hermenêutica para lidar com essas novas “sensibilidades”, que segundo
ela, foram desperdiçadas em nome de um cientificismo dogmático que engessa o saber,
essa nova postura possibilitaria ver o mundo a partir da alteridade, do ‘não-dito’ e do não
pensado. A pesquisa nas Ciências da Religião deveria derrubar as certezas e abrir os ra-
ciocínios, fechados aos conhecimentos e em busca da sustentabilidade da vida e da vida
em toda a sua plenitude.
Nessa busca, muitos dos trabalhos apresentados acima valorizam as falas daqueles que
experienciam a vivência religiosa e a revelação de que fala Van der Leeuw (2009). No entan-
to, como advoga os pós-coloniais e de coloniais, a demanda é maior do que simplesmente
dar voz aos subalternizados e esquecidos dos discursos, há uma necessidade de entender
como a dominação colonial cristã se coloca como cerceamento da resistência mediante a
imposição de um regime de verdades e representações que torna a fala do “outro” silencio-
sa e desqualificada. Além disso, como advoga Oliveira (2015, p. 48) é “necessário o reco-
nhecimento do outro; é preciso pensar a fé a partir do outro, de outras tradições culturais e
religiosas e reconhece-las como espaços de verdade, de salvação e de identidades”.
O desafio posto para a linha de pesquisa Cultura e Sistema Simbólico, portanto, é o
de compreender como o sistema constrange as práticas, o que requer uma incursão tanto
nos elementos culturais, quanto psicológicos, já que eles são os mecanismos de formação
e transformação da consciência. O material e o político, incluindo a força, prestam um papel
relevante, mas a agência humana, como argumenta Ortner (2011, p. 450): é constrangida
mais profunda e sistematicamente pelas maneiras com que a religião (e a cultura) controla
as definições de mundo dos atores, limita suas ferramentas conceituais e restringe seus
repertórios emocionais. A religião, por meio da cultura, se torna parte do self.
Tomando como exemplo a honra, entre os Kabila, Bourdieu (1978, p. 15) diz: a honra
é uma disposição permanente, enraizada nos próprios corpos dos agentes em forma de
disposições mentais, esquemas de percepção e pensamento, extrema- mente gerais em
sua aplicação, tais como aquelas que dividem o mundo de acordo com as oposições entre
masculino e feminino, leste e oeste, futuro e passado, acima e abaixo, direita e esquerda etc.,
e também, num nível mais profundo, na forma de posturas e atitudes corporais, modos de
estar em pé, sentar, olhar, falar ou andar. O que é chamado o senso de honra não é mais do
que a disposição cultivada, inscrita no esquema corporal e nos esquemas de pensamento.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 409


De maneira semelhante, Foucault (1980, p. 44) diz sobre o discurso das “perversões”:
A mecânica do poder que ardorosamente persegue todo esse despropósito só pretende
suprimi-lo atribuindo-lhe uma realidade analítica visível e permanente: encrava-o nos corpos,
o introduz nas condutas, torna-o princípio de classificação e de inteligibilidade e o constitui
em razão de ser e ordem natural da desordem [...] Trata-se, através de sua disseminação,
de semeá-las no real e de incorporá-las ao indivíduo.
A dominação, portanto, é uma questão cultural e psicológica (psicogênese), de um
lado, mas também fruto de processos materiais e políticos (sociogênese), de outro. A domi-
nação opera conformando as disposições dos agentes, de modo que, em última instância,
“as aspirações dos agentes têm os mesmos limites que as condições objetivas das quais
elas são o produto” (BOURDIEU, 1978, p. 166).
Assim, conforme narram Marinho (2019) e Birman (1997), na esteira de Sahlins (1997),
é salutar observar os interesses do grupo em eleger determinadas narrativas em detrimento
de outras, já que estas “escolhas” podem oferecer uma compreensão maior sobre as con-
tinuidades e descontinuidades.
Metodologicamente, uma análise sobre tais interesses, possibilita a percepção da
permeabilidade das ordens locais e globais, já que é a partir desses interesses que os
grupos locais realizam uma apropriação instrumental e local que possibilita a permanência
de culturas tradicionais. Nessa perspectiva, seria pobre considerar somente a hipótese de
uma instrumentalização de um universo cultural fragmentado nas suas manifestações cul-
turais e sem princípios, que passem pela intenção de defesa da ‘cultura tradicional’. Assim,
o movimento de racionalização da Umbanda, por exemplo, não indica necessariamente o
desmantelamento de formas tradicionais de existência, pode, por outro lado, indicar o uso
de instrumentos modernos e tradicionais, em defesa da tradição, como formas de resistência
à homogeneização cultural do mundo (MARINHO, 2019, p. 165).
Isso porque conforme Sahlins (1997, p. 136), “a defesa da tradição implica alguma cons-
ciência, a consciência da tradição implica alguma invenção, a invenção da tradição implica
alguma tradição”. Essa concepção coloca em xeque a noção de sincretismo e nos faz refletir
sobre o conceito de hibridismo, já que este possibilita pensar, como alerta Marinho (2019,
p. 162), “o encontro cultural tanto como “fusão” quanto como uma articulação dialética, que
demarca as formas pós-colonias e decoloniais de compreensão do sincretismo, a partir da
lógica das cripto-religiões”. Assim, os choques culturais operam, tanto, de forma orgânica
(YOUNG, 1995), hegemonizando, criando novos espaços, estruturas e cenas, quanto, ao
mesmo tempo, opera diasporizando, de forma intencional (YOUNG, 1995), intervindo como
uma forma de subversão, tradução e transformação.

410 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Por outro lado, lança luz sobre os interesses postos na construção da realidade mo-
derna capitalista. Uma vez que, como indica Quijano (2000), raça, gênero e trabalho são
três linhas principais de classificação que constituíram a formação do capitalismo munidal
colonial/moderno, e seriam nessas três instâncias que as relações de exploração/domina-
ção/conflito estão ordenadas, especialmente, na América Latina. Dussel (2000), de forma
semelhante, argumenta que a modernidade, assentada e iniciada nesses pilares, justifica
uma “práxis irracional da violência”, que torna inevitável os sofrimentos ou sacrifícios “dos
outros povos ‘atrasados’ (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser
frágil, etecetera” (DUSSEL, 2000, p. 49).

GÊNERO, CIÊNCIAS DA RELIGIÃO E SISTEMA SIMBÓLICO

Essa incursão histórica pelos conceitos e abordagens adotados pelas Ciências da


Religião, a partir da linha de pesquisa Cultura e Sistema Simbólico, indicam, que essa ciência
como as demais, são também uma construção social. O sistema de valores e as relações de
poder, inerente a ele, delimitam as epistemologias, metodologias e mesmo as teorias que
assentam as ciências da religião. Os objetos de estudo, as técnicas e métodos de coleta,
seleção e interpretação dos dados são também oriundos dos regimes de verdade e repre-
sentações historicamente construídos em cada sistema simbólico. Logo, em uma sociedade,
como a brasileira, gnosiologicamente constituída por uma imposição do patriarcado não é
de se estranhar que há poucos estudos sobre as relações de gênero, conforme já indicaram
Ecco, Marinho e Araújo (2018), inclusive na linha de pesquisa Cultura e Sistema Simbólico
do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião (PPGCR) da PUC Goiás.
A própria categoria de gênero surge no âmbito das ciências tardiamente, apenas na dé-
cada de 1980, após a constituição da história das mulheres como campo de conheci- mento,
em função da atuação do movimento feminista das décadas de 1960 e 1970. Dos quais é
salutar a menção à Simone de Beauvoir e Betty Friedman como precursoras fundamentais
desse movimento, e da antropóloga Margarth Mead, que possibilitaram que Joan Scott
apresentasse a categoria gênero em 1986, no artigo intitulado Gênero: uma categoria útil de
análise histórica (no Brasil a publicação é de 1995). Na tentativa de superação da dualidade
entre natureza (sexo) e cultura (gênero) Scott (1986) indica que não há separação entre
saber e poder, e que, o gênero se estabelece como um orientador fundante e naturalizador
das relações de poder entre homens e mulheres. Daí em diante, autoras como Judith Butler,
Gayatri Spivak, Jenny Sharpe, Mrinalini Sinha, Cristiane Lasmar, Tânia Navarro Swain,
Francine Descarries, entre tantas outras, passam a debater o assunto.
As denúncias do movimento feminista sobre a opressão do patriarcado e o crescimento
dos men studies, desde a década de 1980, teriam levado à uma crise da masculinidade,

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 411


gerando sentimentos de: culpa, arrependimento e/ou negação da opressão exercida pelos
homens (GIFFIN, 2005). Muitos estudos, então, passam a focar em suas análises modelos
que pudessem compreender melhor as subjetividades relacionadas às identidades de gênero.
Logo, as pesquisas permeadas pelas discussões sobre gênero passam a fazer par-
te dos estudos desenvolvidos pela linha de pesquisa Cultura e Sistemas Simbólicos do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Goiás. Das setenta e oito
(78) Dissertações defendidas na Linha de Pesquisa, entre os anos de 1999 e 2019, são
pelo menos 6 (seis) dissertações que abordam a relação da hegemonia masculina com os
discursos de legitimação e aceitação social a partir das ideias religiosas, de base cristã.
No entanto, nem todas as pesquisas que tiveram como objeto a análise dos sexos
na dinâmica religiosa utilizaram a categoria de gênero proposta por Joan Scott (1995) ou
Judith Butler (1997) como análise científica, mas muitas das pesquisas apontaram para uma
desigualdade de gênero nas religiões e nas relações institucionais.
Na dissertação de Isabel Ortega Peralías, intitulada: “Participação e Autonomia das
Mulheres nas Comunidades”, com orientação da Dra. Zilda Fernades Ribeiro, defendida em
2005, o destaque está na investigação se as mulheres que atuam na comunidade eclesial
de base, tem um espaço favorável à autonomia, à participação e às relações de igualdade
de Gênero. Já na dissertação de Grazielly Maria de Oliveira Siqueira, intitulada “A Relação
entre Religião e Violência Contra A Mulher”, defendida em 2019, sob a orientação do Dr.
Clóvis Ecco, o enfoque foi investigar a relação que há entre a religião e a violência e entender
os fenômenos que ocasionam tais violências, numa perspectiva patriarcal.
José Batista de Costa Sobrinho na dissertação com o título “A vivência das relações
de gênero no Conselho Nacional de Leigos e Leigas – CNL”, sob a orientação da Dra. Zilda
Fernandes Ribeiro, defendida em 2001, deu destaque ao perfil da vivência das relações de
gênero no Conselho Nacional de leigos e leigas Católicos do Brasil. A dissertação sobre gê-
nero de Clóvis Ecco, com o título “Identidade de Gênero - ideias religiosas sobre o masculino
como ângulo de análise” sob a orientação do Dr. José Carlos Avelino da Silva, defendida em
2007, apresentou o campo de pesquisa para demostrar como as ideias religiosas determinam
a autonomia da masculinidade.
Claudomilson Fernandes Braga, na dissertação intitulada “Celibato e Gênero – Uma
Releitura Crítica”, sob a orientação do Dr. José Carlos Avelino da Silva, de- fendida em
2007, apresenta um recorte teórico sobre a sexualidade e o aprisionamento dos corpos e
dos desejos, numa análise sobre o celibato clerical. E por último, Iran Lima Aragão Filho, na
dissertação intitulada “Religião e Gênero: o Imaginário Sobre o Lugar da Mulher na Igreja”,
sob a orientação da Dra. Irene Dias de Oliveira, defendida em 2011, apresentou mulheres

412 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


que são lideranças de destaque em suas igrejas, e consequentemente, são levadas a ocupar
cargos públicos de destaque, contribuindo para um novo olhar sobre as assimetrias.
Nestes estudos as mitologias, as fontes bíblicas e religiosas, que orientam a construção
dos conhecimentos clássicos, são apontados como sustentáculos da opressão masculina
e consequente desigualdade nos papeis e posições relacionadas aos gêneros no mundo
contemporâneo, em especial, nos ambientes religiosamente institucionalizados. Esses re-
cursos nutrem e constituem, portanto, o discurso (SAID, 1978), as práticas (BOURDIEU,
1998) e as representações (JDELET, 2009) sobre os gêneros, conformando regimes de
verdades (FOUCAULT, 2012) e de representações (HALL, 1996). Assim, como constata
Spivak (1988) o “sujeito historicamente, emudecido da mulher subalterna” em particular,
estava inevitavelmente fadado a ser ou mal compreendido ou mal representado segundo
os crivos e interesses particulares de quem tem poder para representar.
Logo, a partir dessas fontes constituem-se polaridades entre homem e mulher, masculi-
no e feminino. Sendo a masculinidade calcada nos modelos tradicionais (nos deuses gregos,
no guerreiro oitocentista, no cavaleiro medieval, nos grandes soldados) e dos “predicativos
da personalidade do homem” como: machista, viril, heterossexual, que apresenta “distancia-
mento emocional, agressividade e comportamento de risco no seu dia a dia” (SILVA, 2006);
em detrimento da ideia do cuidado doméstico voltado à reprodução e à maternidade e de
uma su- posta sensibilidade e fragilidade do sexo feminino como padrão universal, que a teria
levado à cair em tentação e introduzido o pecado, a desgraça e a morte, como a Pandora
Grega ou a Eva judaica, por exemplo (DELUMEAU, 1993).
A tese de Oli Santos da Costa, intitulada “A Pombagira: Ressignificação Mítica da Deusa
Lillith”, sob supervisão da Dra. Irene Dias de Oliveira, defendida em 2015 se volta justamente
há uma dessas mitologias clássicas, relacionada à deusa Lilith, da mitologia sumeriana, que
orientaria as significações atribuídas à entidade sincrética Pombagira. Essa deusa mítica
esquecida pelas doutrinas religiosas institucionalizadas, e por vezes pela história e pelas
ciências, sedimentou-se ao longo do tempo por meio das crenças religiosas europeias,
africanas, ciganas e indígenas no imaginário popular. Tal esquecimento estaria relacionado
ao fato de que tanto o mito de Lilith, quanto o comportamento da entidade Pombagira, re-
presentam a não aceitação ao cerceamento advindo das instituições religiosas e culturais,
que tentam, por meio da dominação masculina, o controle sobre o sexo feminino, inibindo
e colocando a mulher como um ser objetal, negando a sua condição de sujeito na história.
Na mesma esteira, Maria Cristina de Freitas Bonetti, na tese intitulada “O sagrado
feminino e a serpente: performance mítica na simbologia das danças circulares sagradas”,
sob supervisão do Dr. José Carlos Avelino da Silva, defendida em 2013 se volta para o Mito
da Serpente e do culto à Grande Mãe nas performances míticas e ritualísticas das Danças

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 413


Circulares Sagradas na contemporaneidade. Refaz a trajetória do mito desde a antiguidade,
explorando o imaginário da criação e suas diversas expressões em culturas arcaicas no
mundo ocidental, e sua polissemia de sentido nas Danças Circulares atuais. Busca então
salientar o universo Sagrado Feminino, problematizando as relações de poder que levaram
ao esquecimento da Deusa Mãe, ao apagamento da sua força e poder de cura e visão, e à
formação violenta da mulher enquanto frágil vítima.
Essa mulher universalizada e ficcional, inspirada numa “ordem cósmica imaginada” é
vista como alteridade, é produzida e reproduzida como inferior, que reflete o que o homem
não é e não que ser, enquanto afirma a superioridade dele. Tal regime de representações é
alimentado, confirmado e atualizado por meio das próprias imagens e conhecimentos que
(re)cria sobre o “nós” e sobre o “outro”.
Tais representações, portanto, constituem-se como formas de conhecimento prático,
estruturados a partir de configurações de curta e longa duração, orientadas tanto para a
compreensão do mundo, quanto para a comunicação com os demais indivíduos da socie-
dade, e se tornam a base para as performances de gênero.
Indicam tanto a expressão de permanências culturais, quanto o locus da multiplici-
dade, da diversidade e da contradição. Mas, fundamentalmente, promovem a proteção e
legitimação de identidades sociais, ao atuarem no rol das produções mentais necessárias
para a produção de integridade e que promovem estabilidade e dinamicidade, coerência e
contradição, a fim de amenizar o sofrimento psíquico próprio ao processo de construção do
sujeito, indicado pela psicanálise e psicologia.
Assim, é preciso flexibilizar a categoria “mulher”, passando do sujeito abstrato ao su-
jeito concreto, reconhecendo assim que se a mulher não existe como universal, isto é, como
sujeito uno, há, no entanto, mulheres concretas, heterogêneas, múltiplas, que compartilham,
cada uma ao seu modo, uma série de opressões, e que podem, então, no mínimo como es-
tratégia de ação política, compartilhar também de um objetivo comum. No mesmo passo, os
estudos sobre masculinidade deixam a mesma compreensão de que não é possível falarmos
em uma masculinidade, mas em diversas masculinidades sócio-historicamente construídas,
sendo uma delas a portadora de um status de “hegemônica” e as demais masculinidades
periféricas, as concorrentes ou afirmadoras dessa (KIMMEL, 1998).
É desse modo que a tese de doutorado de Clóvis Ecco, intitulada “Religião e soropo-
sitivos para o HIV/AIDS: preconceitos sobre doença e sexualidade”, sob orientação da Dra.
Irene Dias de Oliveira, defendida em 2013, possibilita compreender que existem múltiplos
tipos de família, em função da diversificação de gêneros, embora ainda haja forte presença
de preconceitos no que diz respeito à sexualidade e, sobretudo, no que tange à questão da
homossexualidade. Destaca que no caso dos sujeitos soropositivos para o HIV/AIDS (SSP/

414 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


HIV/ AIDS - Vírus da Imunodeficiência Humana) há ainda um forte ideário religioso subja-
cente às identidades de gênero masculino e feminino, bem como das formas de exercício
da sexualidade que tais identidades de gênero comportam. Ademais, as representações
religiosas sobre a própria doença, oriundas especialmente da tradição judaico-cristã, a ele-
varam ao status de doença maligna, sendo o sujeito culpabilizado e estigmatizado por sua
própria condição.
Assim, não há elementos meramente objetivos que estabeleça fixamente a relação
opressor e oprimido, inferior e superior, seja no tocante aos sexos e gêneros, seja no tocante
à etnia e à “raça”, o foco de análise para entendimento dessas posições são os valores tácitos
atribuídos e as estratégias de reprodução adotadas pelos grupos em posição dominante e
opressora num dado sistema simbólico.
No pano de fundo capitalista, imperialista, eurocêntrico e cristão (WEST/REST; NOR-
TE/SUL) é interessante descortinar o contexto no qual os discursos sobre a realidade é
produzido, possibilitando uma incursão sobre o “regime de verdade” (FOUCAULT, 2012),
ou “regimes de representação” (HALL, 1996) que orientam os processos de significação e
subjetivação dos indivíduos, de forma prática e eficaz. Esses regimes de representações
sobre a realidade expressam uma fronteira cultural, que é definidora de sentidos entre um
“nós” e um “eles”.
Logo, apesar de existir uma abertura e plasticidade desses regimes que mostram-se
favoráveis à incorporação de novos elementos à rede de significados. Há a manutenção de
um núcleo original de sentidos inalterado, fundado na distinção hierárquica entre o nós (su-
periores) e o outro (inferior), como indicam os pós-coloniais e pós-estruturalistas. De modo
que, urge à essa agenda de pesquisas uma reflexão sobre a noção de entre-lugar, e sobre
o lugar fronteiriço da cultura e da religião, sobre a importância de uma lógica de alteridade
e de uma perspectiva ecumênica para os processos sociorreligiosos, bem como para as
possibilidades de inserção religiosa nos processos de globalização contra-hegemônicos
que possam ocorrer como crítica à lógica e ao poder imperial. E como já salientara Bhabha
(1995), é na fronteira o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente. Essas frontei-
ras que fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação e possibilitam
o posicionamento de colaboração ou contestação sobre a sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A religião foi problematizada aqui enquanto um sistema simbólico, composto de mapas


simbólicos e afetivos, por imagens, indumentárias e discursos persuasivos, que conformam
a subjetividade de cada indivíduo, e provêm motivações para as ações. Tal modelo imagi-
nário orienta a adaptação dos indivíduos às suas funções sociais numa psicopatologia da

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 415


vida cotidiana, que delimita suas neuroses, anseios, psicoses pela repressão ou supressão,
como diria Freud e Althusser. Fundamentalmente orientam o “sentir” e o “pensar”, gerando
padrões delimitados de comportamento, mas à revelia da subjetividade humana, delimitada
pela eletividade entre aprendizado, acaso e contexto sócio histórico, produzindo rolls variados
e únicos de personalidades e de reflexividade.
A compreensão dessa ordem, portanto, envolve a investigação sobre as afinidades
entre as conexões dos eventos, discursos e interesses que produzem tal ordem, fugindo a
qualquer tipo de naturalismo ou transcendência causal. Essa atuação requer um esforço
intelectual de descrição densa sobre o fluxo do discurso social, visando captar “o dito” e
o “não dito”, que seriam as ações sociais e os sentimentos, uma vez que estas refletem a
organização e a concepção da sociedade e de suas respectivas ordens religiosas. Assim, o
intuito é apreender tanto as diretrizes, leis, regras postas pelo campo religioso, que retroa-
limentam regimes de verdades e representações (na concepção de Bourdieu seria a doxa
do campo religioso) como os discursos heréticos e pré–paradoxais, expressos a partir das
disposições internalizadas por cada agente (o que Bourdieu chama de habitus), que admi-
nistram os esforços de auto-interpretação e de tentativas de solução dos dilemas morais
cotidianos. Afinal, a agência humana resulta de um processo histórico que inclui critérios
avaliativos que são irredutíveis aos meros desejos dos indivíduos.
Os critérios segundo os quais nós decidimos qual é o caminho da vida plena e da
frustração são desenvolvidos no contexto de uma comunidade, que se engaja ao longo
de seu processo histórico em campos de interesses e saberes específicos, que tendem a
valorar hierarquicamente alguns conteúdos segundo o arbítrio do contexto cultural, político,
econômico, religioso ultrapassando a noção utilitarista de projeção de desejos sobre uma
ordem neutra de valores e bens, que assumem multifaces.
Tal diversidade das estruturas simbólicas e materiais complexas da atualidade, or-
ganizadas sobre redes globais de comunicação, consumo, serviços e transportes refletem
a crescente reflexividade da humanidade em relação aos seus próprios contornos, que
historicamente, de forma incessante e contínua, refaz suas fronteiras ontológicas, produti-
vas, sociais, estéticas, políticas, espirituais e evolutivas ao longo do tempo. Desse modo,
as estruturas sociais e a ideologia de cada agrupamento humano, nascem de conjunturas
específicas de situações históricas, assumindo características do grupo, especialmente da-
queles responsáveis em delimitar as diretrizes legitimadas, e se transformando de acordo
com esse grupo, por isso, vivemos num mundo tão plural e tão diverso, mas governado por
uma lógica do “sistema mundo europeu/euro-norte-americano moderno/ capitalista/ colonial/
patriarcal” (GROSFOGUEL, 2008, p. 113).

416 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Desse modo, compreendemos que para lidar com a cultura e a religião enquanto siste-
mas simbólicos é preciso reconhecer tanto a religião quanto a cultura como produtos huma-
nos, ao mesmo tempo, que se conformam como realidades objetivas, como já delinearam
os estudos clássicos, mas também os homens e as mulheres precisam ser tratados como
produtos sociais, que produzem e reproduzem a religião e a cultura por meio de suas ações
e intenções, a partir dos regimes de verdades e representações, conduzidos pelo sistema-
mundo moderno/colonial. Para uma avaliação complexa desses fenômenos, é preciso uma
incursão tanto sincrônica, quanto diacrônica, que possibilite perspectivar ao mesmo tempo as
psicogêneses, e as sociogêneses, a partir de macroestruturas de longa duração, com o intuito
de desconstruir os essencialismos, amparados em regimes de verdades e representações,
que silenciam a alteridade. Tal reflexão epistemológica crítica às concepções dominantes
de modernidade, sincretismo religioso e gênero são necessárias para lançarmos uma luz
sobre as mesclas, encontros e choques religiosos.
Um diálogo com os estudos culturais, pós-coloniais e decoloniais, nesse sentido, se
mostra produtivo, já que nessas concepções o sincretismo, enquanto enunciação, vem de
algum lugar, sendo um dos lócus de produção o conhecimento científico, que privilegiou
modelos e conteúdos próprios que foram definidos como cultura nacional, a partir de uma
lógica dos países europeus, sem, no entanto, considerar o contexto brasileiro marcado
pela invasão e imposição colonial aos nativos e aos africanos, esses últimos submetidos
ao violento processo diaspórico. Desse modo, as experiências das ditas “minorias” sociais,
especialmente no tocante à vivência religiosa, foram tratadas a partir de suas relações de
funcionalidade, semelhança ou divergência com o que se denominou centro.
Assim, salientamos a necessidade de captar o significado das relações hierárquicas,
reconhecendo o caráter discursivo do social, bem como observar/descrever o descentra-
mento das narrativas e dos sujeitos contemporâneos, com foco nas fronteiras que envolvem
situações de opressão diversas definidas a partir das fronteiras de gênero, étnico-raciais e
de classe. Afinal, conforme Mignolo (2003) o pensamento fronteiriço resiste às cinco ideolo-
gias da modernidade: cristianismo, liberalismo, marxismo, conservadorismo e colonialismo.
Notas
Dados da Diretoria Geral de Estatística (DGE) de 1872 no contexto do Brasil Império.
Foram recenseados todos os moradores em domicílios (chamados de “fogo”) particulares
e coletivos e que se encontravam nele na data de referência do censo que foi o dia 1º de
agosto de 1872. A distribuição da população se fez segundo a cor, o sexo, o estado de livres
ou escravos, o estado civil, a nacionalidade, a ocupação e a religião.
Há de se considerar, ao tomar esses dados como verdadeiros, as evidentes dificuldades
na obtenção desses dados, como o sincretismo, e as imposições simbólicas do catolicismo

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 417


como única religião, além da possibilidade da prática simultânea em mais de uma deno-
minação religiosa.
As cripto-religiões são indicadas como sendo os grupos em situações interculturais
que ex- postos à uma imposição de valores religiosos recusam-se a abandonar as tradições
religiosas de seus antepassados, e criam estratégias de manifestação de suas religiões ca-
muflando seus aspectos em público. A fé original é, então, professada em segredo, enquanto
perante a sociedade é manifestado bom comportamento e devoção cristã.
O movimento e os estudos feministas não são únicos, tampouco, homogêneos. Segundo
Descarries (2000) há pelo menos três correntes do feminismo. A primeira seria o Feminis-
mo Igualitário ou Universalista que liderou o ressurgimento do movimento nos anos 60 e
fomentou a adoção de uma questão das mulheres; atualmente, continua a fundamentar a
ação de um grande número de organizações feministas e de organismos governamentais e
sindicais. A segunda corrente é o Feminismo Radical, que ocupa uma grande parte do espaço
teórico dos anos 70 e propõe uma leitura feminista das relações sociais de sexo nos termos
de dominante e dominada. Algumas tendências desta corrente apresentam-se sob diversas
formas, ao longo dos anos 80. Podem ser reagrupadas em torno de um movimento muitas
vezes designado como Feminismo Global, que Descarries chama de Feminismo Solidário.
Enfim, a terceira corrente é a do Feminismo da Feminitude (fémelleité), que se desenvolve
paralelamente às diferentes tendências do feminismo Igualitário e Radical.

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422 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


29
“ Um olhar sobre a relação
espiritualidade e saúde no
contexto Psicoterápico

Flávio Aparecido de Almeida

10.37885/200801033
RESUMO

A presente pesquisa busca analisar de que forma a espiritualidade pode exercer in-
fluência positiva sobre a saúde dos indivíduos, servindo de ponto de apoio, de conforto
para pessoas com problemas de saúde. Muitos estudos vêm confirmando uma relação
positiva da espiritualidade com a saúde física e mental, por prover aspectos como re-
curso de enfrentamento, aumento de emoções positivas, favorecendo o processo de
recuperação. O aporte teórico da pesquisa contou com autores tais como: Fleck (2000),
Dalgalarrondo (2008), Mesquita (2013), dentre outros estudiosos da temática. Acredita-se
que é necessário o olhar mais aprofundado dos profissionais da saúde sobre a espiritua-
lidade para que ela possa ser utilizada como instrumento terapêutico.

Palavras-chave: Espiritualidade, Saúde, Psicoterapia.


INTRODUÇÃO

A espiritualidade e suas relações com a saúde tem sido tema de diversos debates nos
últimos tempos, pois estudiosos vem demonstrando em seus trabalhos que a espiritualida-
de tem exercido de forma significativa e positiva influência no processo de recuperação de
pacientes e em suas expectativas de vida. A espiritualidade passa a representar para os
pacientes um bem-estar psicológico, diminuindo o estresse e trazendo fortalecimento pessoal
e colaborando no processo de recuperação de doenças.
Muitos trabalhos e estudos que se propõem a explorar a interface da psicologia com a
espiritualidade tem apontado a carência de um posicionamento teórico e metodológico das
abordagens psicoterápicas e dos terapeutas quando o tema em questão se faz presente na
clínica. A presença do sagrado ou as diversas manifestações de fenômenos ou experiências
espirituais são muitas vezes ignoradas na prática da psicoterapia.
A pesquisa busca traçar um panorama sobre a presença da espiritualidade no contexto
psicoterápico e sua relação com o bem-estar psicológico do paciente, buscando compreender
este cenário a partir do olhar do profissional psicoterapeuta.
É preciso que o paciente seja encarado de forma holística e respeitado seus valores,
suas concepções religiosas e suas crenças, pois dessa forma ele se sentirá mais aberto
para compreender o processo saúde-doença.

DESENVOLVIMENTO

A resolução da 101ª sessão da Assembleia Mundial de Saúde propôs uma alteração


do conceito de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS) para um estado dinâmico
de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social (FLECK, 2000).
Podemos dizer que isso evidencia que a questão espiritual é considerada relevante para
a saúde, por isso interessa à ciência explorar essa questão. E é isso que tem acontecido,
pois é crescente o número de estudos que têm como proposta a investigação da associação
espiritualidade/religiosidade como fator de promoção de saúde física e mental.
De forma geral, as evidências empíricas, dentre elas, estudos examinados por Koenig
têm evidenciado uma associação positiva entre saúde e fatores espirituais e religiosos.
Segundo Guimarães e Avezum (2007), esses efeitos positivos da religiosidade sobre a vida
do sujeito não têm relação com uma filiação religiosa específica, mas com a força da mes-
ma. Essa influência pode ser explicada, por exemplo, no âmbito da prevenção, pelo papel
da religião como promotora de comportamentos saudáveis e redutora de comportamentos
nocivos à saúde, ou seja, o envolvimento religioso promove um estilo de vida que diminui o
risco de doenças, já que inclui uma vida mais regrada.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 425


Para Dalgalarrondo (2008, p. 179), “a adesão à religião, em geral, está relacionada à
adesão a códigos de conduta associados a menor risco, tais como fumo, consumo de álcool,
padrão de atividade sexual”. Além disso, há evidências de que pessoas que frequentam
cultos religiosos ou praticam algum tipo de religião professada, apresentam menor uso de
drogas lícitas ou ilícitas; e, ainda, que usuários de drogas têm melhoras mais significativas
quando sua recuperação é permeada por experiências religiosas ou espirituais (de qualquer
ordem), comparando-se com os que são tratados exclusivamente por meio médico.
Esses estudos têm confirmado essa relação entre espiritualidade e saúde, também no
âmbito da qualidade de vida que pode ser definida utilizando-se como referência a defini-
ção do The WHOQOL Group – como “a percepção do indivíduo de sua posição na vida no
contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos,
expectativas, padrões e preocupações” (FLECK, 2000, p. 34).
A Organização Mundial da Saúde, compreende a religiosidade como um dos aspectos
determinantes para definição de qualidade de vida e tem explorado e dado espaço de pes-
quisa para o tema em questão. Outro campo que tem procurado investigar essa associação
religião-saúde é a forma de lidar com dificuldades ou sofrimento, o chamado coping religioso.
O enfrentamento ou coping religioso é utilizado, especialmente, em situações de crise
ou estresse psicológico e pode ser definido como uso de crenças para facilitar a resolução
ou prevenir e aliviar as consequências do sofrimento significando a maneira como o sujeito
enfrenta a dificuldade.
O coping é encontrado na associação que o paciente faz acerca do sentido das circuns-
tâncias, lidando de forma mais positiva com as mesmas, possibilitando a ressignificação da
situação de dificuldade numa perspectiva religiosa (LEÃO; LOTUFO NETO, 2007).
O conceito de coping religioso espiritual foi, originalmente, definido por Panzini (2007)
e diz respeito ao recurso à religião em circunstâncias estressoras, onde religião passa a ter,
por objetivos, a reorganização do indivíduo, através de busca de significados, de controle
e conforto espiritual, de intimidade com Deus e com outros membros da sociedade e de
transformação da vida, e tem sido utilizado nos mais diversos contextos de saúde.
Através de uma leitura fenomenológica, isso se dá estritamente relacionado ao sentido
que o sujeito atribui à questão vivenciada. As práticas religiosas apresentam o sofrimento sob
perspectivas dotadas de significado e isso promove benefícios no enfrentamento da questão.
De maneira geral, as diversas formas de religião possibilitam a construção de uma
perspectiva que fornece sentido ao sofrimento, esse enfrentamento ou coping religioso se
caracteriza pelo uso das crenças possibilitando maneiras de manejar situações de estresse,
acarretando benefícios em todos os aspectos.

426 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Isso se torna possível porque essa significação possibilita a construção de estratégias
cognitivas focadas no emocional ou mesmo comportamentais focadas no problema, pro-
movendo busca de significado, de bem-estar, controle, conforto, auxiliando o sujeito a lidar
com as circunstâncias de forma mais positiva. Existem, portanto, indicações científicas de
que a área da saúde pode e deve explorar a questão da religiosidade em qualquer âmbito
terapêutico e mesmo frente a isso, a psicologia e suas abordagens teóricas pouco têm se
aprofundado nessa temática (MESQUITA et al., 2013).
No contexto psicoterápico, Giovanetti (2010, p. 88), afirma que “os psicólogos, em sua
maioria, não se preocupam com a dimensão religiosa nem dão importância a ela; e mais:
na clínica, quando atendem as pessoas, ignoram o problema”.
A relevância do tema, bem como sua atualidade, no contexto brasileiro, pode ser
exemplificada tanto pelas recentes polêmicas relacionadas ao trabalho das Comunidades
Terapêuticas – no contexto da atenção à saúde mental –, quanto pelos conflitos em torno
da atuação de psicólogos em relação a possíveis diálogos com as religiões; mas, e princi-
palmente, pelos debates cada vez mais fundamentados, que a comunidade científica bra-
sileira vem desenvolvendo em torno das relações entre saúde, saúde mental e experiência
religiosa, observada em recente reunião de pesquisadores de Psicologia e Senso Religioso
(MARTINS, 2012).
Qualquer trabalho que envolva a temática da religiosidade pode ser perpassado por um
olhar da Psicologia, já que nenhuma ciência está tão próxima da religião quanto esta. Ao longo
da história, vários autores se propuseram a explorar o tema de modo a apontar a relevância
das relações entre a psicologia e a religião.
Entre eles destaca-se William James, autor de uma das mais expressivas e tradicionais
obras no campo da psicologia da religião – As Variedades da Experiência Religiosa, na qual
postula a experiência religiosa como principal objeto de estudo da religião. Sua influência se
fez presente em toda uma posterior geração de estudiosos do tema, desde Gordon Allport,
a P.G. Pruyser, passando por Carl G. Jung e Viktor Frankl.
Desde longa data a temática religiosa também foi objeto de estudos pela comunidade
acadêmica, bastando para tal observar que já nos primeiros periódicos estadunidenses en-
contramos reflexões dessa natureza, como o estudo sobre a “Psicologia da súbita conversão
religiosa”, publicada em 1906, no Journal of Abnormal Psychology.
Marques (2003) relata que o paciente quer ser visto e tratado como um todo, como uma
pessoa que tem dimensões física, emocional e espiritual. Bello (2006), ao examinar os atos
do ser humano, apresenta a mesma estrutura geral e caracteriza-o como corpo-psique-es-
pírito, sendo essas três dimensões estritamente conectadas, ou seja, o ser humano poten-
cialmente tem essas três características, as quais podem ser mais ou menos desenvolvidas

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 427


e ignorar qualquer um desses aspectos faz com que o paciente se sinta incompleto e pode
ainda interferir no tratamento.

A psicologia, enquanto ciência que se propõe a estudar o fenômeno humano na


dimensão da sua totalidade, na relação pessoa-mundo em toda sua plenitude
e dinamismo, ao olhar para o homem não pode excluir o seu aspecto espiritual.
Isso seria “o mais alienante descompromisso da ciência e/ou da academia para
com a verdade humana, para com a totalidade existencial humana, da qual
nasce todo e qualquer significado” (RIBEIRO, 2004, p. 14).

Segundo Giovanetti (2010), a psicoterapia consiste num encontro no qual se olha para
o homem em sua totalidade, portanto, a psicologia especialmente na prática psicoterápica
deve considerar essa dimensão, a significação que o sujeito atribui à sua existência, sua fé,
já que esse sentido da vida aparece como o elemento central da existência humana. É im-
portante ressaltar que nossa história, sociedade e cultura são fortemente demarcadas e, de
maneira relevante, constituídas pela religiosidade, ou seja, que estas tem sido “atravessadas”
por significativas relações com os diversos modos de manifestação religiosas.
Esse elemento influencia a subjetividade e as percepções do sujeito, delimitando um
lugar muito importante na clínica não é suficiente lidar somente com as mudanças externas ou
com os comportamentos, pois estes têm ou expressam diversas fontes e motivações que são
dotadas de significado. O ser humano é um ser religioso, mesmo que não se possa afirmar
se por razões culturais ou por predisposições naturais, e que, por isso, “a boa psicoterapia
tem um espaço reservado para a religiosidade humana, independentemente de os clientes
ou o terapeuta estarem, ou não, ligados a uma instituição religiosa” (PINTO, 2010, p. 23).
Quando tratamos de saúde mental ou do bem-estar do sujeito, é preciso considerar o
papel que a religiosidade ou a espiritualidade desempenham na sua orientação de sistema
de valores; assim, numa prática de psicoterapia sensível à espiritualidade, deve ser consi-
derado o histórico religioso de cada sujeito individualmente, e ainda, mesmo frente àqueles
cuja religiosidade aparece exercendo um papel de menos destaque, esse pode contribuir
para o processo terapêutico, para o curso do tratamento e sua expressão.
Na verdade, o que se quer dizer é que a psicoterapia deve ser um espaço aberto para
o diálogo – ou, pelo menos, para a consideração – com o religioso, buscando compreender
o papel que a religiosidade assume na vida do sujeito em questão, valorizando a relação
cliente-religião como fenômeno formador do sujeito, portanto elemento que merece nossa
atenção no processo psicoterápico.
Isso porque essa experiência pode contribuir para a tomada de consciência da pró-
pria existência, ajudando o homem a entender e atribuir sentido para sua vida, ampliando a
consciência da própria vivência ou, nas palavras de Pinto (2010, p. 74), se pressupõe que
“qualquer processo psicoterapêutico que explore de forma mais profunda a psique humana

428 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


irá eventualmente chegar à beira do reino espiritual, podendo o cliente e terapeuta reconhe-
cer esse lugar ou não”
Cambuy, et al (2006) fazem uma relação direta entre as modificações no cenário re-
ligioso social, ou seja, as “novas ofertas religiosas”, e muitas das mudanças psicológicas
que se referem às queixas cada vez mais recorrentes na clínica psicoterápica, as quais
têm relação com o tema da religiosidade. Segundo os autores, essas queixas não são
aleatórias, mas muitas vezes estão relacionadas de forma direta à questão-problema que
é trazida para a terapia.
Mesmo frente a essa recorrência, com exceção de algumas abordagens, de forma
geral, as psicoterapias não consideram o tema da religiosidade, ou seja, não oferecem
embasamento científico para os psicólogos lidarem com essa demanda quando ela se faz
presente em seus consultórios, restando a eles recorrer a outros tipos de orientação ou a
sua própria experiência (ANCONA-LOPEZ, 2005).
Pesquisas têm demonstrado que é bastante comum relatos de terapeutas que “tem
medo” ou ainda evitam as questões da religiosidade no contexto psicoterápico. Diversos
autores apontam que toda essa questão é dificultada pelo pouco ou nenhum contato que a
academia dispõe na formação dos profissionais no que se refere à psicologia da religião, ou
mesmo ao pouco que a psicologia se propõe a discutir sobre isso, mesmo que o tema não
seja “alheio” à sua perspectiva científica.
Cabe destacar que, mesmo com um número elevado de instituições formadoras de
Psicologia em nosso país, é quase certo afirmar que nenhum currículo de formação profissio-
nal contemple a temática da “psicologia da religião” como uma oferta regular ou obrigatória,
ou seja, o tema sequer pode ser considerado “transversal”, mas é praticamente negligenciado
na formação acadêmica.
À medida que essa formação não tem dado conta de incluir as relações da psicologia
e da religião nos currículos acadêmicos, pesquisas norte-americanas revelaram que a pers-
pectiva pessoal do terapeuta acerca da religião e da espiritualidade está relacionada com a
sua percepção e abertura para o tema na clínica psicológica.
Enquanto o terapeuta é treinado para lidar com questões sociológicas, filosóficas e
culturais com respeito e ética no que se refere a temas como raça, etnia, gênero, orienta-
ção sexual, dentre tantos outros, a mesma competência não é desenvolvida para lidar com
questões acerca da religiosidade e espiritualidade do cliente. Isto pode ser considerado
como um reflexo do “esquecimento” de questões importantes da prática psicológica, o que
promove – no caso da religiosidade – sua exclusão do campo vivencial do sujeito em sofri-
mento (MESQUITA, 2013).

No contexto da clínica psicoterápica, a capacidade de estabelecer uma escuta

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 429


e facilitar um diálogo acerca da religiosidade, permite que o terapeuta cumpra
sua função de acolhimento de uma forma mais ampla e total, pronto a dife-
renciar e distinguir elementos que podem representar aspectos relevantes da
vida do sujeito (PINTO, 2010, p. 41).

Além disso, questões importantes para o contexto psicoterápico, como satisfação de


vida, esperança, bem-estar emocional, atribuição de significado e propósito, otimismo, entre
outros, são mais presentes quando o sujeito relata ter algum tipo de envolvimento religioso.
Assim, dar vez e voz à espiritualidade no processo psicoterapêutico é permitir que
o sujeito expresse mais das suas vivências, explore e trabalhe no campo do sentido da
sua existência criando um ambiente acolhedor e propício ao desenvolvimento do seu
potencial humano.
Rejeitar ou mesmo ignorar a religiosidade presente no discurso do paciente empobrece
e limita o trabalho psicoterapêutico consequentemente, essa exclusão pode enfraquecer a
aliança terapêutica, e com isso reduzir a disposição do paciente em expor questões signifi-
cativas para o processo ou ainda mantê-las num nível superficial.
Martins (2012) aponta uma série de pesquisas que mostram o reconhecimento cres-
cente da necessidade de se levar em consideração a bagagem cultural dos pacientes em
processo psicoterapêutico, como o relato de que práticas religiosas atuam como mecanis-
mos de enfrentamento em refugiados tibetanos; ou que a crença numa vida após a morte
atua como fator protetor e positivamente na qualidade de vida. Destaca ainda estudos que
demonstram que o conhecimento do sistema de crenças dos pacientes, e sua valorização,
auxiliam na adesão ao tratamento; além do fato que pode criar facilidades no rapport entre
terapeuta e cliente.
É fundamental para o processo psicoterapêutico identificar valores, convicções e atri-
buições de significado que regem a vida do sujeito dando ordem e coerência aos seus
comportamentos e à sua vida (MESQUITA et al., 2013).
Quando o terapeuta se propõe a ir além e explorar esses vínculos de valores pessoais
e significados, cria-se um espaço para entender e relacionar a religiosidade na psicoterapia.
Cabe ao psicólogo penetrar essa vivência da religiosidade do seu paciente, embasado teórica
e metodologicamente e preparado para investigar a experiência dele, “sondar as motivações,
os sentimentos, os desejos, as compreensões e as atitudes expressos nos comportamentos
religiosos” (Valle, 2005, p. 95), buscando compreender a dinâmica dessa experiência, o modo
como ela influencia e o papel que a religiosidade exerce na vida do sujeito.
Em outras palavras, reinseri-la no contexto das produções subjetivas significativas.
Essa seria uma posição mais ética e coerente do profissional da psicologia no que tange o
tema em questão, nas diferentes situações ligadas à clínica psicológica.

430 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Essa atitude, apontada por Ancona-Lopez (2005), numa análise do segundo quadrante
de Wulff, é denominada interpretação restauradora; nela se considera a experiência religiosa
como real, busca-se compreender e se aproximar do fenômeno religioso, sempre prezando
pelo exame crítico dessa religiosidade e suas implicações na vida do sujeito.
No entanto, quando se discute esse tema no contexto da psicoterapia, é importante
ressaltar que “integrar dimensões espirituais e religiosas de vidas dos clientes durante a
psicoterapia requer profissionalismo ético, alta qualidade de conhecimento e habilidades
para alinhar as informações coletadas sobre as crenças e valores ao benefício do processo
terapêutico” (PERES; SIMÃO; NASELLO, 2007, p. 138).
É recomendação da APA (American Psychological Association) que os psicólogos
mantenham um comportamento ético e respeitem as crenças espirituais e religiosas de seus
clientes, pois essas influenciam a visão de mundo, o funcionamento psicossocial do sujeito
e suas expressões de angústia.
Mesmo no Brasil, essa preocupação se encontra presente – ainda que de uma forma
mais restritiva e limitada – no Código de Ética Profissional do Psicólogo, em seu art. 2º,
alínea “b”, que veda ao profissional “induzir a convicções religiosas (...)” (AMATUZZI, 2006,
p. 71). Cabe então ao psicólogo, se distanciar de suas representações pessoais acerca da
religiosidade, pois valores incompatíveis podem interferir em uma escuta clínica.
Por isso, é essencial suspender julgamentos e preconceitos bem como os seus pró-
prios conceitos e explicações de cunho religioso para proporcionar um espaço de escuta
ausente de julgamentos; observar para compreender como seu cliente dá sentido à sua
experiência, pois ali está demarcado muito da sua percepção acerca de si mesmo e do
mundo oferecendo um lugar no qual se permite “a crítica, o questionamento e a abertura
para novas experiências rumo ao crescimento” (AMATUZZI, 2006, p. 91) levando o sujeito
a compreender a relação que ele estabelece com sua religiosidade reconhecendo-lhes a
especificidade e a singularidade de suas experiências.
Tudo isso pode ser proporcionado por um treino prático que desde a formação do
terapeuta preze por essa compreensão ética acerca do papel do fenômeno religioso na
vida do sujeito.
É importante ressaltar que, explorar os valores religiosos a fim de enriquecer o processo
terapêutico e criticar os mesmos são atitudes separadas por uma linha sutil, por isso, o psi-
coterapeuta deve estar atento para que seja mantido o respeito pelo sujeito e sua autonomia.
É papel do profissional da psicologia aceitar, acolher e respeitar seu cliente indepen-
dentemente da sua crença, já que essa postura do psicólogo pode levar o sujeito à reflexão
sobre o papel da religiosidade em sua vida, e isso requer que o psicólogo seja sensível,
criativo e flexível para que consiga entrar no mundo do cliente e compreender a relação que

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 431


ele estabeleceu com a sua religiosidade (FLECK, 2000). Essa suspensão de pressupostos
consiste numa atitude de conversão epistêmica que preza pelo respeito fenomenológico
exige maturidade emocional, profissional e humana além de preparação e treinamento, o
reino é que desenvolve a competência para lidar com esse tema, assim como ocorre em
relação a diversas questões possivelmente conflituosas com as quais o terapeuta se depara
no contexto clínico.

CONCLUSÃO

Há propostas de intervenção no contexto da clínica psicoterápica a fim de explorar


o aspecto religioso, proporcionando um espaço para se falar das questões religiosas, um
espaço para significação do sofrimento, dando ao coping religioso um lugar na psicoterapia
enquanto um modo de intervenção, e fazendo uso dos benefícios que esse enfrentamento
pode proporcionar.
Para que esse tipo de intervenção ocorra de forma coerente com o que é proposto, é
necessário que os profissionais que atuam na clínica psicológica tenham conhecimento e
respaldo teórico bem definido no que tange ao tema da religiosidade no contexto da psico-
terapia; além do compromisso ético, fortemente demarcado quando se trata da religiosidade
e os possíveis impasses e conflitos que possam surgir acerca da experiência.
Reconhecer que a espiritualidade se apresentam no contexto clínico nada mais é do
que reconhecer que a religião “atravessa” a dimensão da existência humana, como uma
realidade concreta e inalienável.
O reconhecimento de que a espiritualidade são recursos imediatamente disponíveis, e
simultaneamente necessários ao contexto da atenção à saúde mental, também é um dado
claro presente na literatura. Mesmo assim, os espaços de discussão e de presentificação do
tema na perspectiva da psicologia enquanto ciência e profissão ainda são limitados.
É importante ressaltar que frente ao que foi proposto por esse trabalho, deparamo-nos
com a existência da necessidade de formação e treinamento para o profissional da psicologia
no que diz respeito às especificidades do campo religioso. Uma vez que, a espiritualidade do
sujeito, apesar de ter relação com outras dimensões dele, como a psicológica, a social e a
cultural, apresenta características próprias, entende-se que não se pode reduzi-la a nenhum
desses outros campos de estudo.
Por isso, é necessário desprender uma atenção mais focada em estudos especializados
que abordem o assunto com propriedade científica.

432 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


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Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 433


30
“ Uma breve história do Diabo na
Literatura

Patrícia Leonor Martins


UFSC/Capes

Artigo original publicado em: 2020


Revista de Literatura e da Múltiplas Linguagens da Arte - ISSN 2179-1937.
Oferecimento de obra científica e/ou literária com autorização do(s) autor(es) conforme Art. 5, inc. I da Lei de Direitos Autorais - Lei 9610/98

10.37885/201001660
RESUMO

A Bíblia, como livro sagrado cristão, constitui-se em uma fonte rica para que possamos
entender as origens do Diabo e tentar compreender essa personagem que tanto tem
influenciado autores ao longo dos séculos. O texto apresenta uma breve contextualização
sobre o texto bíblico como literatura e, em seguida, faz-se uma breve contextualização
da história do Diabo na literatura, tendo como base teóricos com Robert Muchembled,
Giovani Papini, Henry Ansgar Kelly, Salma Ferraz, entre outros.

Palavras-chave: Diabo; Lúcifer, Literatura, Bíblia, Teoliteratura.


TEOLOGIA E LITERATURA

“[...] onde quer que haja Teologia, o Diabo também deve entrar no quadro,
preservando sua autenticidade complementar a de Deus.”
Thomas Mann,
Dr. Fausto (1984).

Os estudos acadêmicos que buscam relacionar Teologia e Literatura estão se tornando


cada vez mais frequentes nos meios acadêmicos, os quais consideraram a Bíblia como uma
vasta e complexa obra literária, e Deus, Jesus, e o Diabo tornaram-se personagens centrais
dessa obra. Como aponta Ferraz (2006, p.238):

O cristianismo é tão importante para o mundo ocidental que quase chega a


confundir-se com ele e eis aqui o motivo de o porquê mesmo sendo ateia uma
pessoa nascida no Ocidente está imersa numa cultura cristã e, certamente co-
nhecerá personagens como Deus, Diabo, Madalena, Judas e tantos outros mais.

Na esteira dos entendimentos de Kuschel, Ferraz e Magalhães, atualmente podemos


afirmar que a teopoética vai analisar a Bíblia do ponto de vista literário, reconstruindo por
meio de palimpsestos episódios do Novo Testamento, tendo a Bíblia como texto base, texto
histórico, talvez, não menos teológico que o texto base. A teopoética começou com a análise,
pelo viés da justiça, sobre a poética de Deus, porém, na realidade ela traz não só a vida de
Jesus no Novo Testamento, ou no Velho Testamento, mas sim as grandes figuras bíblicas,
analisando como é que essas personagens saem do Velho Testamento - saga judaica -, e
do Novo Testamento - saga cristã.
Nesse sentido, pode-se dizer que agora se estuda essas personagens também para
entender como elas saem do texto canônico e vão parar na literatura, no cinema, nos qua-
drinhos, nas músicas. Para Salma Ferraz (2018), falar da Bíblia como literatura também já é
um equívoco, uma vez que ela já é literatura, ela nasce como literatura oral, e por diversas
mãos ela vai sendo reescrita, no Novo Testamento, quando surge o Cristianismo, eles já têm
um texto em mãos, que é o texto das narrativas orais sobre Jesus, e por volta dos anos 60,
70 d.C. tem-se o texto criado. Então, não há motivo para falar em Bíblia enquanto literatura
se ela já nasce como literatura. 1
Nos estudos sobre essa personagem, vale destacar dois momentos da longa história do
diabo, e entender que é necessário estudar a história do diabo a partir de nuances e matizes
que essa figura foi assumindo nas ideias religiosas e nas teologias que tentaram sistematizar
essas ideias, tanto dentro das Igrejas quanto pra fora, em um processo civilizatório maior.

1 Fala proferida em discussão na aula da disciplina: Filosofia e Literatura, oferecida no departamento de Pós-Graduação em literatura
da Universidade Federal de Santa Catarina, semestre 2018/2.

436 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Em um primeiro momento há a pessoalização dessa figura do diabo e, posteriormente,
em uma pessoalização de figura do mal, e não podemos esquecer o seguinte, a cultura é
violenta, toda cultura carrega consigo as forças do mal, quer dizer que, dentro de uma con-
cepção de mundo, toda cultura carrega consigo violência. Por isso, por exemplo, em um dos
ritos da Bolívia, os índios pedem desculpas à pachamama2 porque vão violentar a terra para
plantar, quer dizer, toda cultura carrega uma intromissão, ela violenta este estado natural.
Então, para expressar o que a cultura produz cria-se o imaginário em torno das forças
do mal. Uma das mais cativantes foi o Diabo, só que o Diabo tem essa longa história que,
segundo Magalhães (2019)3:

[...] no primeiro momento expressar uma face do divino, quer dizer, o primeiro
momento do diabo é ele ainda divino, ele é uma face de Deus, então a primeira
grande aparição do Diabo na história das ideias religiosa, em muitos contextos,
é uma aparição sedutora. Nesse sentido, o mal seria a ruptura do coletivo,
quer dizer, seria essa atitude egóica, exacerbada [...] eu quero matizar um
pouco isso, há momentos em que o coletivo precisa ser transgredido, eu vou
usar a imagem do mito do paraíso, o que é o mito do paraíso? Pertencemos
ao jardim, tudo está bem se obedecemos a tudo o que Deus determina, não
coma, caminhe com deus...ora o Diabo, a figura do mal aponta para esse
poder sedutor de dizer “eu não pertenço ao jardim”, eu pertenço à história, eu
pertenço ao pó.[...] É interessante na narrativa mítica que o casal é expulso e
o texto diz, inclusive no hebraico, que volta ao lugar a que pertence, quer dizer,
o humano, em outras palavras, não é para jardins harmônicos, o humano é
para a história, para a finitude e morre, por isso que o ato do Eva na narrativa
mítica da Bíblia é uma ato tão emancipador, porque come do conhecimento
do bem e do mal, e o conhecimento do bem e do mal diz “somos mortais”[...].

Magalhães quer dizer que “o coletivo te acolhe, te protege, mas também te domina” e
a figura do mal te seduz, te seduz para romper de certa forma, mas também para se inau-
gurar com pessoa, que significa se inaugurar na finitude. Em outras palavras, Adão e Eva
como figuras míticas descobrem que são mortais. Constatam isso, mas no fundo mortais
somos todos nós.
Então, uma das primeiras expressões do mal nas histórias religiosas foi seduzir-se o
humano para assumir-se na sua radical finitude e sua radical mortalidade. Somos mortais
e somos pó. Não pertencemos à jardins, ainda que jardins nos seduzam. Esse é o primeiro
momento, como diria Magalhães “momento metafísico”, o Diabo nesse primeiro momento
pertence a Deus. É uma dimensão pedagógica do divino, ele não está dissociado.
Não se pode esquecer que não existe processo inquisitorial no mundo da religião que
não passe por uma demonização do outro. Os processos inquisitoriais no mundo da religião

2 Pachamama é a Deusa da fertilidade ou a maior Divindade feminina cultuada em diversas culturas – principalmente a Inca -, onde
ela teve suas origens na mitologia do mesmo local. Seu nome deriva-se de Quéchua, uma antiga língua utilizada pelos povos andi-
nos, anteriores aos Incas. Pachamama, tem o significado de “Mãe Terra”.
3 Fala proferida em no Grupo de Trabalho

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 437


são sempre processos que colocam o outro que é negado cooptado, perseguido, torturado
... sempre no lugar de pertencimento da figura ou de representação do mal. Não existe inqui-
sição em que não tenha um Diabo funcionando para o bem de uma teologia, que protege os
conversos, e os seus , ainda segundo Magalhães (2019) “ é aí nesse momento que se tem
uma outra dimensão da figura do Diabo, que é a absoluta dicotomia e o absoluto dualismo,
quer dizer, é um outro momento.”
Assim, compreende-se, na esteira do entendimento de Magalhães, que no primeiro
momento o Diabo, como uma figura do mal, faz parte do divino, é um elemento pedagógico
do divino e nesse momento das inquisições, das grandes inquisições, a figura do Diabo já
é a pessoalização do contra divino, ele passar ser o senhor dos incrédulos, o senhor dos
hereges, o senhor do outro, quer dizer, aquele não se converte, ele não pertence mais a
Deus, ele pertence às forças do Diabo.
Então, existe nesse momento da história das ideias religiosas uma verdadeira pessoa-
lização das forças do mal, ai você tem a figura do Diabo com a sua identidade demarcada
o seu papel dentro desse grande teatro da história, Balthasar trabalhou isso como uma tea-
trologia4, e a figura do Diabo é essa pessoa que tem domínios sobre grupos como judeus
não convertidos, mulçumanos que forma expulsos, e o judeu que fica e que é obrigado a se
converter, mas ele carrega já o ódio ao mulçumano que foi expulso décadas antes desse
processo teológico.
Dessa forma, para Magalhães:

[...] a história do Diabo, história que tem vários momentos de realização, onde
no início o Diabo é divino, poderia dizer que nesse momento “o Diabo é bom”,
o Diabo é sedutor, o Diabo aponta para aquilo que tu pode ser, aquilo que tu
és em tua condição humana. Ele não tanto aterroriza, ele te conduz a novas
possibilidades da tua condição humana, ele te faz reconhecer que tu és mortal,
passageiro e finito. Em outro momento nas histórias das religiões, por vários
motivos, você tem o estabelecimento de uma dicotomia radical, e nessa dico-
tomia radial, o outro, o inimigo, o herege, o incrédulo, que no fundo ele não é
mais filho de Deus, ele é filho do Diabo. O Diabo é o seu senhor, e aí você tem
um outro momento da dicotomia, um ápice da herança dicotômica que está aí
marcando a história do Cristianismo, e parte do judaísmo.

Sendo assim, podemos pensar na contra música, por exemplo, tem a música e tem a
dissonância, a dissonância no primeiro momento assusta e intimida, mas dissonância é a
outra música, é a possibilidade de ouvirmos diferente, porque o excesso de harmonia tam-
bém aponta para uma possibilidade da música, mas não pode ser toda a música, porque
a ela também poder ser dissonante e o dissonante pode dizer muito do que somos... essa
ambiguidade que está aí nesse movimento do universo mítico, quer dizer “deveríamos levar

4 Para aprofundamento na questão consultar: Balthasar H. U. von, Theodramatik, I–IV, Einsiedeln 1973–1983.

438 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


em consideração que aí temos o movimento de nuances e matises” e não tanto de dicotomia.
Que já temos no caso da teologia cristã do século XVI, XVII.
Se pensarmos a figura do Diabo enquanto personagem literária, é possível concordar
com o pensamento de vários estudiosos, os quais definem afigura do Diabo como impres-
cindível à literatura, pois é dele que se originam grandes enredos literários. Já que também
é ele a personagem que traduz os dilemas e desejos ínfimos da natureza humana.
Portanto, estudar a figura de do Diabo na literatura possibilita compreender a existência
dos homens a partir de suas relações, uma vez que a imagem que temos dele é tão hetero-
gênea quanto nossas próprias personalidades. Essa afinidade é retratada por Dostoievski,
em Os Irmãos Karamázov (1880), quando Ivan decreta que o homem criou o Diabo à sua
imagem e semelhança. Demonstrando que ao ser conduzido à literatura mundial, para di-
ferentes contextos histórico-sociais, a personagem do Diabo ganha vida e assume atitudes
e interesses alheios à imagem criada pela Igreja e acaba por mostrar aos leitores um novo
olhar sobre a condição de estar no mundo. Pode-se dizer que, no plano literário, existe uma
intrínseca relação entre o que é considerado humano e diabólico.

LÚCIFER, DIABO, DEMÔNIO, SATÃ OU SATANÁS?

Dentro dessa gama da teopoética tem-se Lúcifer, ou o Diabo, Demônio, Satanás, Satã,
e tantos outras denominações dadas a essa personagem, que seria o símbolo do mal, a
qual sempre esteve presente na cultura, na memória e nas narrativas ocidentais, seja em
textos sagrados como a Bíblia ou em textos literários das mais variadas naturezas. Uma
das personalidades mais inquietantes, apresentando-se como a caixa de pandora, ou seja,
ela se oferece à teologia e às especulações da literatura, como uma arca inesgotável de
tesouros. Que Ser é esse? Que Anjo é esse? Por que caiu? Anjo caído tem salvação? Essas
perguntas nos rementem às perguntas “para onde vim?”, “para onde vou?”.
Na caixa de pandora já mergulharam, só a título de exemplo, escritores como: Dante
Alighieri, que com A Divina Comédia desenha à sua maneira o Diabo; Milton, em O Paraíso
Perdido, o pinta de outra forma. Diferente será também o desenho do Diabo em Fausto, de
Goethe; ou Litanias de Satanás, de Baudelaire; o mesmo se dará na obra de Shakespeare; de
Thomas Mann; Paul Valéry; Walter Scott; Allan Poe; Gil Vicente; Fernando Pessoa; Saramago;
Christopher Marlowe; Clive Staples Lewis. Bem como em Eça de Queiroz; Guimarães Rosa;
Machado de Assis; Álvares de Azevedo; Ariano Suassuna; Franklin Joaquim Cascaes.
Assim, autores das mais variadas épocas trataram de utilizar a personagem do Diabo
em suas obras, bem como se utilizam das questões que envolvem a crença e a descren-
ça no Cristianismo. No leste europeu o Diabo também fez sucesso, especialmente na
Rússia. O Diabo também estendeu as suas garras. Vários autores russos se utilizaram

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 439


dessa personagem para construir seus imaginários literários, como: Fiódor Mikhailovitch
Dostoiévski; Liev Nikoláievich Tolstói; Leonid Nicolaevitch Andreiev; Mikhail Afanásievitch
Bulgákov. Portanto, na língua russa o ser de papel faz sucesso, tanto que podemos dizer
que o Diabo também fala russo.5
Salma Ferraz (2012), em As Malasartes de Lúcifer, aponta algumas reflexões entorno
“do brilho luciferino da Estrela da Manhã na Teologia, na Literatura, [...]”. Na qual, apresen-
ta-nos uma série de artigos que demonstram a dualidade entre Deus e o Diabo.

[...] se os estudos teológicos e literários dão conta de uma Teopoética que se


manifesta em vários autores, conforme o proposto por Karl-Josef Kuschel,
em seu livro Os Escritores e as Escrituras (1999); se a Teodiceia (do grego
θεός - theós, “Deus”, e δίκη - díkē, ―Justiça‖) foi proposta pelo alemão
Gottfried Leibniz em 1710, tentando entender o paradoxo da coexistência de
um Deus Todo Poderoso e o mal; se a epopeia de Jesus já foi centenas de
vezes revisitada, quem afinal contou a epopeia ou a antiépica de Lúcifer, ou
aquilo que denominamos antiteodiceia de Lúcifer, ou odisseia luciferina, ou a
Sataniceia? Porque se Deus, conforme tão bem apontou Jack Miles em Deus:
uma biografia (1997) é um membro quase virtual da família ocidental e está
impregnado no DNA da civilização ocidental, o que dizer do Diabo, de Lúci-
fer? Afinal, a outra face da moeda deveria acompanhar o sucesso Daquele!
Como o homem ocidental consegue equilibrar-se entre a hipótese Deus e a
hipótese Lúcifer? Será que somente a estória de Troia, de Ulisses e de Jesus
são o suficiente para a humanidade, conforme lembrou Borges? E a magnífica
trajetória de Lúcifer, onde fica? Talvez ele esteja mais próximo do ser humano
do que qualquer pessoa da Trindade, justamente por ter sido demasiadamente
humano (FERRAZ, 2012, p. 15-16).

O Diabo, além de uma excepcional personagem da literatura, sendo talvez uma das
mais importantes do texto bíblico e do Cristianismo, em muitos grupos religiosos é responsa-
bilizado por todo o mal presente no mundo. O imaginário religioso atribui-o muitas imagens
e personificações. O livro O Diabo no Imaginário Cristão, de Carlos Roberto Nogueira, nos
fornece o panorama histórico necessário para compreendermos a estrutura da figura do
Diabo. De acordo com Nogueira (1986), na antiguidade não se tem registro de alguma figura
que pudesse correlatamente representar o mal. Tratando-se de textos bíblicos, no Antigo
Testamento a única contribuição que se tem à personificação do mal se encontra no Livro de
Jó. O Anjo “Satã” – que significa aquele que acusa ou que calunia - levanta a suspeita perante
o Senhor de que um de seus servos seria fiel por interesse. A partir do Novo Testamento,

5 A Revista Teoliterária publicou um dossiê temático sobre a Teologia e Literatura Russa. Volume 8, n. 16 (2018). Teologia e Literatura
Russa. Nele podemos encontrar diversas abordagens sobre a presença do diabo na literatura. Nesse dossiê publiquei na seção te-
mática artigo intitulado O Mestre e Margarida de Mikhail Bulgákov: Um Diabo Russo, no qual abordo o Diabo russo a partir do olhar do
humor. Para consultar: https://revistas.pucsp.br/teoliteraria/article/view/39390. Acesso em: 14 de out. 2019. Recentemente, publiquei
artigo intitulado A conversão do diabo: de discípulo a mestre, na revista Guavira Letras, que apresenta uma leitura da personagem
do diabo na obra A Conversão do Diabo, de Leonid Andreiev. Artigo que pode ser conferido em: Guavira Letras, v. 15, nº 39, 2019.
Disponível em: http://websensors.net.br/seer/index.php/guavira/article/view/791. Acessado em: 14 de out. 2019. Também estudo no
âmbito do meu doutorado a personagem do diabo na obra O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov. O texto ora apresentado, faz
parte, parcialmente, da construção da minha tese, que se encontra qualificada.

440 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


passa-se a se evidenciar a existência de um ser como símbolo do mal. É quando surge
o termo Diabo, do grego Diabolos, que significa aquele que leva o juízo. Neste sentido, a
passagem de Jesus no deserto sendo tentado pelo Diabo é uma das que mais contribuíram
para formação desta personificação do mal.
Durante a Idade Média surgiram uma série de textos não canônicos, os quais tratavam
das Legiões de Demônios e do Apocalipse. A escrita sobro o Diabo passou a ser escrita
pelos pensadores da Igreja Católica como Eusébio, Cipriano e Tertuliano. Tem-se então a
Institucionalização do Diabo (NOGUEIRA, 1986). É neste período que surgirá a leitura da
Serpente como um dos disfarces do Diabo. O Diabo, então, passa a ser culpado pela Igreja
por todas as desgraças, promovendo o medo; ele teve sua imagem associada ao mal, fato
que ainda é presente na contemporaneidade. No entanto, a excessiva evidenciação da figura
do Diabo faz com que ele cresça mais e mais no imaginário coletivo, transformando-o em
uma figura maligna. Conquanto, essa construção foi fundamental para muitos autores, os
quais abraçaram a personagem das mais variadas formas e a foram moldando, cada uma
a seu criador, e enriquecendo a literatura mundial.
Giovanni Papini (1953), em sua obra O Diabo: apontamentos para uma futura dia-
bologia, denominou o Diabo de “segundogênito do Pai” e Salma Ferraz (2012), em sua
obra As Malasartes de Lúcifer, nomeou de “a antiodisséia de Lúcifer, antiépica de Lúcifer,
antiteodicéia de Lúcifer, Odisseia Luciferina ou Satanicéia.” Em sua obra, Papini vai afir-
mar a necessidade de que conheçamos as informações, sobretudo, bíblicas, mas também
extrabíblicas, sobre o Diabo. Ainda segundo o autor, há impasses na relação do Diabo x
Cristianismo, para ele: os teólogos deveriam estudar Deus e se envergonhar de suas ideias
esdrúxulas sobre o Diabo, investigando as teorias acerca de sua origem e natureza, da
rebelião e seus motivos; que coube aos poetas a admiração ao antagonista; como o Diabo
figura na Literatura; como outras tradições religiosas veem o Diabo que é pouco conhecido,
apesar de onipresente, ora negado, ora adorado, ora temido, ora decantado, vilipendiado,
mais popular que realmente compreendido. Para Papini (1953), o cristão não pode e não
deve cultivar a rebeldia e o mal no Diabo, mas é preciso compreendê-lo como a criatura
mais infeliz de toda a Criação; que se o mal não existisse, não existiriam santos e, nesse
sentido, pode-se afirmar que o Diabo é, por vontade divina, um coadjutor de Deus; que o
Diabo foi o primeiro a reconhecer o caráter crístico de Jesus, antes de qualquer de seus
discípulos e antes mesmo de que o próprio Nazareno tivesse proclamado sua divindade
etc. (PAPINI, 1953).
Segundo Salma Ferraz (2019, p. 2), Papini “adjetiva Lúcifer de Anjo Fulminante e
constrói uma espécie de Summa Diabológica. Para Papini, o Diabo merece ser perdoado,
foi uma personagem necessária à paixão de Jesus, sendo, nesta tragédia, talvez o único

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 441


inocente.” Papini (1953), no capítulo intitulado O diabo irmão do verbo, vai analisar a obra
apologética – Dininae Institutiones, II, 9, na qual demonstra que Lactancio aponta Lúcifer
como nada menos que o irmão do Logos, do verbo, isto é, da Segunda Pessoa da Trindade,
que Lúcifer dominado pela inveja passou “do bem ao mal...”:

No Espírito primogênito, cumulado de todas as virtudes divinas e que Deus


amou sobre todos os outros, é fácil reconhecer o Verbo, isto é, o Filho por
excelência. Mas a narrativa de Lactancio faz pensar que o outro espírito, igual-
mente dotado, era o secundogénito do Pai: o futuro Satã, seria destarte nada
menos que o irmão mais novo do futuro Jesus Cristo. E Satã não teria sido
invejoso do homem – como sustentaram S. Cipriano, S. Ireneu e S. Gregório
de Nissa –, mas invejoso sim do próprio irmão. O ciúme de Cain para com
Abel teria sido prefigurado no céu, ao princípio dos tempos, pelo de Lúcifer
para com Logos (PAPINI, 1954, p. 93-94).

É certo que há muita contradição e especulação a cerca da personagem do Diabo


nas escrituras, e é justamente essas especulações que os escritores se lançam em busca
da personagem do Diabo em suas obras literárias. Teria sido ele um bom Diabo ou um ser
realmente do mal? Talvez essa seja uma pergunta sem resposta, a qual a imaginação de
cada escritor é que vai criar uma possibilidade de resposta.
Sobre a teoria da Trindade Diabólica de Papini, assim consta em Pfützenreuter (2014, p.133).

Sendo então o Diabo um imitador de Deus, Papini (s.d., p. 35) também o


reconhece como uma entidade que se manifesta em três pessoas distintas,
uma cópia adaptada daquilo que os cristãos reconhecem como a Santíssima
Trindade. Assim, o Diabo se manifesta: como Rebelde, a criatura que quer
substituir o criador; como Tentador, que convida os homens a imitar Deus, tal
qual aparece para Jesus nos Evangelhos; e como Colaborador, o qual, com o
consentimento divino, responsabiliza-se por atormentar os homens na Terra e
no Inferno. É sob este aspecto que o Diabo se converte no avesso da terceira
pessoa da Trindade, o Espírito Santo ou o Consolador.

Portanto, para Papini (1953, p. 35), em verdade, as três pessoas da trindade diabólica
seriam as três pessoas da trindade divina invertida “o Pai cria e Satã destrói; o Filho resgata
e Satã escraviza; o Espírito Santo ilumina e consola, ao passo que Satã entenebrece e tortu-
ra”. Nesse sentido, Papini parece entender que o Diabo faz é um papel que lhe é reservado.
O professor emérito da Universidade da Califórnia, Henry Ansgar Kelly, em seu livro
Satã – Uma Biografia, publicado em 2008, coteja as pericopes bíblicas em que o Diabo
aparece com as representações que teve na teologia, literatura ou em outras formas de arte.
Satã tornou-se uma das figuras centrais do Cristianismo, para Kelly (2008), Satã possuía
uma biografia original, bíblica, que não o colocava como inimigo, mas sim como um subor-
dinado de Deus. Nesse sentido, cabe uma sintetização de Henry Ansgar Kelly, em Satã:
uma biografia (2008, p. 365-366, destaque do autor):

442 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Entre os estudiosos da Bíblia aceita-se de maneira geral que os satãs de Jó
e de Zacarias são espécies de funcionários públicos do Tribunal Divino. Mas
tal sentimento não inclui o Satã do Novo Testamento. Ao contrário, assume-
-se que ele é visto como “maléfico” de tal modo que a figura em Jó não é; e
que ele é, de fato, um inimigo de Deus assim como do homem, um tipo de
Malfeitor Cósmico.

Para Kelly (2008), a Bíblia revela que o demônio era uma espécie de “empregado de
Deus”, uma entidade moralmente correta, pois seu papel era de observar, perseguir e para
assim acusar os verdadeiros pecadores. Para o autor, no século 2, os pais da Igreja ao in-
terpretarem o episódio bíblico de Adão e Eva no jardim do Éden, associaram-no à imagem
da serpente, transformando-o assim em inimigo de Deus. Parece-nos que o autor tinha uma
proposta de visão menos maniqueísta do Diabo, que estaria mais em sintonia com o conceito
de “mal” observado em algumas religiões como o budismo e o hinduísmo.
No último capítulo do livro Uma História do Diabo – Séculos XII a XX, de Robert
Muchembled (2001), o autor nos oferece o que ele chamou de “fio vermelho” da obra, que,
curiosamente, a crença em poderes demoníacos provenientes do próprio Diabo, sempre
terá estado mais intrinsecamente estabelecida no seio das chamadas classes superiores e
em menor escala ao nível das classes mais baixas.
O autor parte de forma inversa à cultura, “indo do presente para remontar o fluxo até
a sua fonte, que foi em descoberta do diabo.” Segundo o autor, “para compreender o lugar
que ele (o Diabo) tem atualmente em nosso universo mental, em nosso imaginário, em que
sentido as representações introjetadas por um indivíduo influem em suas ações, precisáva-
mos encontrar todas as suas pegadas” (MUCHEMBLED, 2001, p. 341).
O que Robert Muchembled faz é mostrar-nos um Diabo visto como instrumento de
controle e poder da Igreja, como forma de manter fiéis e eliminar de modo legítimo os de-
nominados hereges. Livrar-se do mal pelo mal – era a prática comum daqueles tenebrosos
tempos. Muchembled (2001) destaca que, no primeiro milênio cristão, o Diabo era uma figura
difusa, dissolvida no politeísmo popular e, portanto, sem poder de persuasão sobre as mas-
sas. No entanto, o Diabo resiste na sociedade por meio de uma série de arquétipos literários
com grande peso cultural, contudo, a crença no Ser ou Seres sobrenaturais vocacionados
para a prática do mal, não encontra raízes profundas nesta Europa progressista, no entanto,
segundo o autor, o contraponto europeu é o exemplo americano com as suas práticas e
crenças conservadoras em que parece sobressair o conceito de povo escolhido por Deus,
destinado em derrotar o mal. Robert Muchembled (2001) situa a figura do Diabo como motor
de regressões e progressões nas sociedades europeia e americana ao longo dos séculos.
Todavia, seria de se esperar que a vasta fortuna crítica, construída ao longo dos séculos,
sobre a personagem do Diabo, com autores vivenciando distintas realidades sociais, haveria

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 443


lapsos de coerência entre a obra tida como palavra inspiradora, a Bíblia. Não obstante, as
Escrituras permanecem como uma das mais antigas fontes de literatura.
Para Albert Cousté (1996), em seu livro Biografia do Diabo: o Diabo como sombra de
Deus na História, afirma que, no século XIX e no século XX, Satanás como personagem
literário foi sua maior estratégia, sua grande obra para sobreviver, “é converte-se em per-
sonagem de ficção e convencer-nos de que ele não existe, como já afirmava Baudelaire.”
(PFÜTZENREUTER, 2014, p. 134).
Contudo, não tenho pretensão de fazer uma biografia do diabo, porque o espaço aqui
não seria suficiente já que hoje temos uma fortuna crítica do diabo abundante. Uma vez que
isso seria improdutivo, pois grandes estudiosos já o fizeram, nesse sentido remete-se ao
leitor às principais biografias, levadas a cabo, sobre o Diabo que dentre eles estão:
Salma Ferraz, que fez estudo sobre as origens de Lúcifer, a ausência da figura do
Demônio no Primeiro Testamento, sua ínfima participação no sofrimento e tentação de
Jó, sua evolução para o Diabo poderoso do Novo Testamento, o Diabo entre o teólogos,
o Diabo entre os críticos, o Diabo como magnífica personagem da Literatura Ocidental e a
transformação dele em mero ser de papel, inesgotável baú a ser explorado, que pode ser
conferido nos livro As Malasartes e Lúcifer (2012) e O Demoníaco na Literatura (et al. 2012).
Pfützenreuter (2014) também nos brinda com uma tese sobre a presença do Diabo na li-
teratura infantil, na qual ele aponta que “A literatura infantil dos séculos XX e XXI também
aborda o Diabo como personagem, tal qual ocorre em obras nacionais como; O Diabo na
noite de Natal, de Osman Lins (2005); De Morte, de Ângela Lago (1992); Belzebu.com, de
Luís Fernando Veríssimo (2005).” (PFÜTZENREUTER, 2014, p. 287). Bem como na literatura
mundial com Os Contos de Grimm, dos Irmãos Grimm.
As aventuras literárias do Diabo ultrapassam a questão das línguas, invade o imaginário
do leitor, pois o ser humano busca na literatura o prazer e o entretenimento. Os escritores
perceberam como a personagem mitificada de Lúcifer pode envolver e promover uma cons-
trução de sentidos por meio de uma plurissignificação. Encerro com o que afirma Ferraz
(2019, p. 3): “as travessias, as travessuras e agruras de Lúcifer na Teologia, na Literatura,
no Sertão, no Rock, no Cordel, no Cinema, do Ser que tem uma triste nostalgia do céu” não
há respostas para as infinitas perguntas e questionamentos a cerca dessa personagem miti-
ficada, nós somos apenas “Riobaldos liliputianos tentando encontrar veredas neste ser tão...”

REFERÊNCIAS
1. BULGÁKOV, Mikhail. O Mestre e Margarida. Tradução Irineu Franco Perpetuo. São Paulo:
Editora 34, 2017 (1ª edição).

444 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


2. COUSTÉ, Alberto. Biografia do diabo: o diabo como a sombra de Deus na história. Tra-
dução de Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos, 1996.

3. FERRAZ, Salma. (Org.) As Malasartes de Lúcifer: Textos críticos de Teologia e Literatura.


Londrina: EDUEL, 2012.

4. FERRAZ, Salma. MAGALHÃES, A. C. de M.; BRANDÃO, E.; LEOPOLDO, R.N. (Org.). O De-
moníaco na Literatura. Campina Grande: EDUEPE, 2012.

5. FERRAZ, Salma. O Rebelde, o fóssil teológico mais famoso do ocidente completa dois mil anos
de existência. Revista Guavira Letras - Dossiê: O Diabo na Literatura Ocidental. V. 15, nº
39. 2019. Disponível em: http://websensors.net.br/seer/index.php/guavira/article/view/825/549.
Acessado em: 14 de out. 2019.

6. FERRAZ, Salma. O Diabo na Máquina de Brincar. In: Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 27,
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7. KELLY, Henry Ansgar. Satã: uma biografia. São Paulo: Globo, 2008.

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em: 14 out. 2019.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 445


31
“ Universo Luterano e Calvinista:
representações simbólicas em
sua arquitetura e arte sacra

André Tadeu de Oliveira


Universidade do Estado do Pará

Kellen I. R. Borges
Universidade do Estado do Pará

10.37885/200901460
RESUMO

Este artigo tem a pretensão de abordar temas como: símbolo, arquitetura e arte sacra
dentro do protestantismo. Devido à elevada pluralidade arquitetônica existente nes-
se universo religioso – pluralidade esta decorrente de vários fatores históricos e so-
ciais –, este artigo delimitou suas reflexões a partir das seguintes tradições: Luterana e
Calvinista. A escolha dessas duas tradições tem o propósito de apresentar a postura das
duas correntes da Reforma diante da arquitetura e da arte sacra. Essa temática nasceu
devido à especulação de que os templos protestantes seriam “vazios”, ou despidos de
símbolos religiosos. Tal questão ao ser analisada com profundidade revela que as duas
tradições escolhidas assimilam os símbolos religiosos de maneiras distintas, mas isso
não quer dizer que dentro delas não existam, pois, consideramos que a experiência
religiosa recorre a linguagem simbólica para ser expressa a comunidade. E ainda mais
a questão do “vazio” tem um significado. Dessa forma, um dos objetivos desse artigo é
também refletir o espaço litúrgico e a presença desses símbolos. Para da base as nossas
reflexões, procuramos dialogar com diferentes perspectivas, como por exemplo, Paul
Tillich, José Severino Croatto, Carter Linderg, John Leith e entre outros. Sendo assim,
este artigo tem como base uma pesquisa bibliográfica de perspectiva multidisciplinar
onde história, teologia, ciências da religião e outras áreas convergem para um diálogo
reflexivo que de conta da pretensão deste artigo.

Palavras-chave: Luteranismo, Calvinismo, Símbolo, Arquitetura, Arte Sacra.


INTRODUÇÃO

A religião, como fenômeno que busca dar sentido à vida e ao cosmos, tem uma relação
profunda com o uso de linguagens simbólicas. A partir disso, este artigo procura abordar
a arquitetura protestante – Luterana e Calvinista – para observamos a presença de sím-
bolos religiosos.
Devido à elevada pluralidade arquitetônica existente no universo religioso – pluralidade
esta decorrente de vários fatores históricos e sociais –, este artigo delimitou sua análise a
partir dos símbolos que podemos encontrar no espaço arquitetônico litúrgico das tradições
Luteranas e Calvinistas.
A escolha dessas duas tradições tem o propósito de apresentar a postura das duas
correntes da Reforma diante da arquitetura e arte sacra. Postura esta que, inclusive, influen-
ciou outros segmentos evangélicos. Embora essas tradições possam divergir em aspectos
relacionados às imagens, ou símbolos religiosos, também existem pontos de convergências
em suas teologias.
Abaixo colocamos algumas imagens a fim de apenas ilustrar a ideia a respeito da
arquitetura e arte sacra.

Figura 1. Igreja Presbiteriana Independente Central de Brasília, DF.

Fonte: T. Oliveira, 2018.

448 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Figura 2.Igreja Presbiteriana Central de Brasília, DF.

Fonte: Autor desconhecido.

Procuramos dividir em artigo em três intens. No primeiro momento, realizamos breves


considerações a respeito do Luteranismo e do Calvinismo. No segundo procuramos abordar
o aspecto da experiência simbólica. No terceiro, adentramos gradativamente na arquitetura
e arte sacra que é divido em duas partes: a primeira é responsável por pontuar a tradição e
os símbolos; e a segunda, pelo simbolismo em templos luteranos e calvinistas. E por fim, nas
conclusões organizamos algumas reflexões para se cogitar futuras pesquisas nessa temática.

LUTERANISMO E CALVINISMO: BREVES CONSIDERAÇÕES.

O movimento religioso surgido na Europa Ocidental no século XVI e conhecido posterior-


mente como Reforma Protestante não deve ser considerado algo monolítico. A despeito das
doutrinas basilares unirem as principais correntes, há notórias diferenças entre elas. As con-
tribuições atuais do pesquisador e teólogo Alister McGrath apontam que a Reforma é mais
bem concebida como uma:

série de movimentos reformistas, inicialmente independentes, com programas


e compreensões da natureza da teologia e seu papel na vida da igreja bem
distintos. O conceito de protestantismo surgiu da tentativa, no início do século
16, de ligar uma série de eventos a fim de formar uma narrativa comum de
transformação. Para o historiador, nunca existiu algo chamado protestantis-
mo, antes, houve diversos movimentos, cada um com seu distinto programa
regional, teológico e cultural (McGRATH, 2012, p. 67).

Essa assertiva de Alister McGrath é corroborada pela própria história, já que no final
do século XVI, o protestantismo encontrava-se dividido nos seguintes ramos: luteranismo,
calvinismo, anabatismo e anglicanismo. Reconhecendo a complexidade desse movimento

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 449


que possui distintas vertentes, optamos para nossa temática as reformas calvinista e luterana
e, suas posturas diante da arquitetura sacra.1
Conforme dito anteriormente, as duas linhas reformatórias apresentavam nuances rela-
tivamente diferenciadas. Teologicamente, por exemplo, enquanto o luteranismo tinha como
coluna vertebral de seu arcabouço doutrinário a ideia da justificação pela fé, o universo refor-
mado possuía como elemento demarcatório a crença na absoluta soberania de Deus. Esta
soberania expressa de forma contundente por meio da doutrina da predestinação humana
para a salvação e danação. Não obstante, a despeito das diferenças, o polo central de suas
crenças era muitíssimo semelhante. Christopher Dawson em suas pesquisas demonstra a
dialética existente entre as duas principais linhas da Reforma:

Do ponto de vista puramente doutrinário, as diferenças entre Lutero e Calvino


são extremamente pequenas. Ambos baseiam seus sistemas no dogma central
da justificação somente pela fé, ambos dão ênfase à importantíssima doutrina
da predestinação e à necessidade de o crente possuir consciência de sua jus-
tificação; ambos tornam a Bíblia a única regra de fé excluindo toda a tradição
eclesiástica; ambos denunciam o papado como Anticristo; e ambos concebem
a verdadeira igreja católica como uma sociedade invisível de santos eleitos.
Assim, a margem de diferença teológica é muito estreita, e é fácil, em teoria,
acolher a noção de um protestantismo comum. Não obstante, o espírito dos
dois sistemas diferiu tão amplamente quanto o espírito dos dois reformadores.
A teologia de Lutero é cristocêntrica, ao passo que das Institutas é teocêntrica
e centrada no mistério dos decretos de Deus (DAWSON, 2015, p. 161).

Tal compreensão teológica, com aproximações e afastamentos, também será reproduzida


por ambas as tradições diante das artes sacras e da arquitetura nos espaços litúrgicos, como
discutiremos mais a frente. Neste momento é importante ressaltar apenas essas duas Reformas
—Luterana e Calvinista —foram sendo implantadas pelas autoridades principescas ou citadinas.
Para John Leith (1997), os primeiros templos construídos diretamente pelas novas
confissões religiosas datam da segunda década do século XVII, e até esse período, as
grandes catedrais ou pequenas paróquias utilizadas anteriormente para a missa Católica
foram readaptadas aos nascentes cultos evangélicos. Tal adaptação seguiu caminhos dife-
renciados entre os dois segmentos.
Esta breve consideração entre Luteranismo e Calvinismo possibilita enxergamos algumas
de suas semelhanças e diferenças. Mas antes que possamos ir direto para arquitetura e a
arte sacra precisamos pontuar alguns aspectos da experiência simbólica como “chave” para
compreendê-la. Ao compreendemos algumas propriedades do símbolo como linguagem que
comunica, perceberemos no terceiro tópico como a experiência religiosa é capaz de ressignificar

1 Essa escolha também se deu por consideramos que ambas estão inseridas em um mesmo período histórico, onde semelhanças e
diferenças podem ser pontuadas, como por exemplo, a questão da arquitetura e da arte sacra.

450 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


ou criar novos símbolos possíveis de se observar na arquitetura e na arte sacra dessas tra-
dições religiosas, como por exemplo, o espaço litúrgico, a música e até mesmo as imagens.

A EXPERIÊNCIA SIMBÓLICA.

Para que nossas análises e interpretações da arquitetura e arte sacra entre Luteranos
e Calvinistas comecem, é relevante destacar que as experiências religiosas são de extrema
importância na constituição dos símbolos religiosos. E essa característica é pontuada por
José Severino Croatto (2010), pois ele alega que símbolo seria um tipo chave para com-
preendermos a linguagem de tal experiência. Dessa forma, as significativas experiências
que cada ser humano possa ter são passíveis de ser interpretadas, compreendida e repre-
sentada pela linguagem simbólica.
Mas o que poderia ser um símbolo? Entre as diversas contribuições optamos tanto as refle-
xões do fenomenologo José S. Croatto e do teólogo Paul Tillich. Dessa forma, na perspectiva de
Croatto (2010), no símbolo estariam presentes dois tipos de elementos que de alguma maneira se
conectariam. Em Tillich, “o símbolo faz parte daquilo que ele indica” (2002, p. 31). Sendo assim,
o símbolo carregaria dois elementos – significados – que indicam – comunica – algo dele próprio.

[...] duas coisas separadas, mas que se complementam. [...] uma parte remete
a outra. Podemos deduzir que no símbolo estão presentes dois elementos que
de alguma forma se inter-relacionam. Mas devemos manter-nos no nível do
sentido, não do das coisas em si mesmas. Dois aspectos do símbolo devem
ser levados em consideração [...] primeiro, que o “segundo sentido” não está
objetivado nas coisas, mas é uma experiência humana e singular em cada ser
humano. (CROATTO, 2010, p. 85-86).

O fato de carregar dois elementos remonta-nos a ideia de que no primeiro momento, a


coisa com seu sentido primário (podendo ser, um objeto, uma pessoa, uma situação e etc.)
é transportado para um segundo sentido e, esse seria o segundo momento (ou segunda
parte que completa a ideia do símbolo). Os elementos que constituem a ideia do símbolo (o
sentindo primário da coisa mais o segundo sentido – o que está além do primeiro) reúnem
em si aquilo que o símbolo indica. E aí entra o aspecto em que o símbolo está relacionado
com “transignificação” (CROATTO, 2010, p. 108).
Dentro das experiências religiosas a linguagem simbólica é de extrema importância
para dizer o indizível. Um dos exemplos que poderíamos destacar é a respeito dos místicos
e suas relações “experiencial”2 o mistério. Conhecer o mistério é diferente de poder dizer
2 “A distinção entre experimental e experiencial, decisiva para o estudo da experiência religiosa no cristianismo e, em particular, da
experiência mística, deve-se a Jean Mouroux, L’expérience chrétienne, Paris, Aubier, 1952, 19-54. O experiencial é o campo de uma
experiência estritamente pessoal, mas obedecendo a uma estrutura definida, ao passo que o experimental é o domínio da experiência
científica, com suas condições e regras. Ver igualmente L. Gardent, Théologio de la mystique. Revue Thomiste 71 (1971): 571-588.”.
In: VAZ, Henrique. Experiência Mística e Filosofia na Tradição Ocidental. São Paulo: Loyola, 2014, p. 15.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 451


do que se trata o mesmo. Os textos que expressam essa profunda experiência são repletos
de símbolos, ou ainda, de figuras de linguagens, como por exemplo, a metáfora – para que
seja possível expressar tal experiência.
De uma forma geral, podemos observar o elo entre emoção humana e sua capacidade
de simbolizar suas experiências. Nesse sentido, a arte é um espaço onde a criação dos
símbolos encontra-se em constante dinâmica com os significados atribuídos as experiências
que o ser humano nutre com a realidade na qual ele faz parte.
É possível cogitarmos que há uma relação intensa entre experiência, arte e símbolo
através das seguinte reflexão de Tiliich, porque o símbolo:

nos leva a níveis de realidade que, não fosse ele, nos permaneceriam inaces-
síveis. Toda a arte cria símbolos para uma dimensão da realidade que não nos
é acessível de outro modo. Um quadro ou uma poesia, por exemplo, revelam
traços da realidade que não podem ser captados cientificamente (TILLICH,
2002, p. 31).

E ainda mais, o símbolo abriria dimensões e estruturas de nossa psique


que corresponderia:

às dimensões e estruturas da realidade. Um grande drama não nos dá apenas


uma nova intuição do mundo dos homens, mas também revela profundezas
ocultas do nosso próprio ser. Com isso nos tornamos capacitados a entender
aquilo que a peça propriamente quer dizer. Existem aspectos dentro de nós
mesmos, dos quais apenas nos podemos conscientizar através dos símbolos.
Assim, também melodias e ritmos na música podem se transformar em sím-
bolos (TILLICH, 2002, p. 31).

A respeito das músicas, a tradição protestante tem como gênio de melodias religio-
sas Johann Sebastian Bach (1685-1750). Nas imagens artísticas, encontramos também
Rembrandt Harmenszonn (1606-1669) que teria pintado cenas bíblicas onde seria possível
observar características protestantes.3
A partir desses dois exemplos – música e pintura – podemos perceber que a arte é um
elemento presente dentro do universo do sujeito protestante, e o simbolismo religioso está
presente em suas constituições artísticas, como por exemplo, “Jesus, joy of man’s desiring”
de Bach e “O sacrifício de Isaac” (1635) de Rembrandt.
Embora, como veremos, a tradição protestante tenha formulado ideias a respeito das
imagens e objetos religiosos em seus espaços de culto, o sujeito religioso (que também é
intérprete da religião) está envolto em um sistema de representações, onde símbolos, mitos
e ritos são elementos significativos dento do fenômeno religioso.

3 Cf. Pulici, Carolina. Traços Puritanos na Pintura de Rembrandt. Disponível em: <<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-
t&pid=S0100-85872007000100004>. Acesso em dezembro de 2016.

452 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Sabemos que a bíblia detém um vasto panorama das representações a respeito da
divindade, da corte celeste, assim como também de seus profetas, heróis e etc. Dessa for-
ma, é possível refletir que a narrativa sagrada oferece diferentes meios de compreensões
sobre a forma ou aparência do divino. Nesse sentido, o sujeito religioso pode estar envolto
de inúmeras possibilidades de se envolver com o divino e assim interpretá-lo, compreendê-lo
e até apresentá-lo por uma perspectiva diferente.
De um modo geral, as representações do divino têm variado ou se ressignificado (isso
se nós tomamos como parâmetro a história das religiões). Mas, como há diversas repre-
sentações do sagrado, procuramos delimitar tal abordagens e citar alguns exemplo: a partir
do monoteísmo, podemos observar que Deus já foi representado, por exemplo, através da
sarça ardente e pela arca da aliança; no entanto, há outras maneiras em que o divino foi
representado e continua sendo.
É interessante notar que as experiências religiosas possibilitam que as representações
não apenas criem novos símbolos, mas também pode ressignificá-los de acordo com o con-
texto. A cruz, no universo cristão, é um símbolo que detém o significado da morte Jesus, mas
também pode ser compreendida de outras formas que iremos nos prolongar. As represen-
tações desse episódio importante na tradição cristã são representadas de diferentes formas
e contêm significados que vão variar em cada vertente do cristianismo, como por exemplo,
há representações onde observamos um corpo na cruz ou apenas a cruz.
Quando observamos a arquitetura e arte sacra na tradição Lutera e Calvinista, nós
especulamos se é possível encontrar símbolos religiosos que estejam ligados com a re-
presentação da divindade. Diferentemente dos Católicos e suas vastas representações,
Luteranos e Calvinistas sistematizam suas compreensões sobre o símbolo a partir de uma
perspectiva teológica que se pata na experiência religiosa (e, é nessa perspectiva, que va-
mos discorrer no próximo tópico).

ARQUITETURA E ARTE SACRA.

Nossa abordagem deste tópico tem como pretensão lançar reflexões para que seja
possível cada vez mais esta temática seja discutida no espaço da academia.
Antes de adentrarmos nas interpretações de nossa temática é necessário que façamos
uma breve história da arquitetura. Para as questões relativas à arquitetura recorremos a
algumas definições básicas sobre o significado da mesma. Sendo assim, para Lúcio:

Arquitetura é, antes de mais nada, construção, mas construção concebida com


o propósito primordial de ordenar ou organizar o espaço para determinada
finalidade e visando a determinada intenção . E nesse processo fundamental
de ordenar e expressar-se ela se revela igualmente arte plástica. A intenção

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 453


plástica que semelhante escolha subentende é precisamente o que distingue
a arquitetura da simples construção (COSTA, 1995, p. 608).

A partir das reflexões de L. Costa arquitetura não significa o simples erquer de uma
estrutura física, mas encontra-se cercada de pressupostos artísiticos e estéticos. Tais conjec-
turas, por sua vez, não são aleatórias, mas cumprem uma finalidade. É importante ressaltar
que não é somente a intencionalidade que define um projeto arquitetônico, mas uma série
de fatos, como exemplo, a época, o espaço físico, o contexto social e outras características.

Por outro lado, a arquitetura depende da época de sua ocorrência, do meio


físico e social a que pertence, da técnica decorrente dos materiais emprega-
dos e, finalmente, dos objetivos e dos recursos financeiros disponíveis para
a realização da obra, ou seja, do programa proposto (COSTA, 1995, p. 608).

As ponderações que retiramos de L. Costa nos auxiliam a situar a nossa temática, pois:
de um lado temos a arquitetura como espaço de intenção, e de outro, relevância do contexto
em que a mesma se encontra.
Estas citações de L. Costa servirão como uma das bases para observamos à arquiteria
protestante como parte de um conjunto de representações simbólicas. Convém ressaltar que
o presente trabalho não focalizará de forma específica a arquitetura protestante brasileira,
devido à pequena representatividade da mesma par ao foco de nosso estudo.

A TRADIÇÃO E OS SÍMBOLOS.

Quando nos debruçamos sobre a trajetória espiritual de Martinho Lutero (1483-1546),


visualizamos um religioso agostiniano que se sentia angustiado diante de sua pecaminosi-
dade. Tal estado era responsável por gerar medo, dúvida e um sentimento de ser esmagado
pela própria divindade. O criador tornar-se ausente ou um terrível juiz cuja ira seria aplacada
por inúmeros afazeres religiosos.4
Com o transcorrer de sua vida monacal de M. Lutero, essa sensação de abandono
e esmagamento foi sendo trocada pela convicção de que o ser humano justificado por fé,
e não por obras, agora não se encontrava mais alvo da ira de Deus. Para o monge, a hu-
manidade não estaria mais no alvo da ira de Deus, assim como também, tal espécie não

4 Lutero levava tão a sério a ideia de se aperfeiçoar a fim de ganhar a aceitação de Deus, que logo se tornou um fardo para seus confrades.
A prática monástica prezava a introspecção e o auto-exame que sondava a consciência. “Será que realmente dei o melhor de mim em
favor de Deus? Será que realizei plenamente o potencial que me foi dado por Deus?” Nenhuma pessoa sensível, vivendo sob tal pressão
introspectiva de alcançar a justiça diante de Deus, tem condições de responder estas perguntas afirmativamente. Lutero vivia em um estado
de contínua ansiedade no tocante a sua justiça. Ele buscava constantemente orientação espiritual e confessores. Anos mais tarde, fez a
seguinte observação a respeito disso tudo: “Às vezes meu confessor me dizia, quando eu discutia repetidamente uma série de pecados
tolos com ele; “Tu és um idiota (...) Deus não está zangado contigo, tu és que estás zangado com Deus” (LW 54, p.15). Ironicamente, Lutero
entrou no mosteiro para superar sua incerteza de salvação, mas confrontou-se ali com a mesma introspecção que causara sua ansiedade
diante de Deus, introspecção agora intensificada ao ponto de tornar-se uma arte altamente especializada (LINDBERG, 2001, p.83-84).

454 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


estaria totalmente só, pois, Deus apesar de ser transcendente, ao mesmo tempo, poderia
mostra-se imannente para o crente.
Esta dialética entre imanência e transcendência levou M. Lutero a reformular a doutri-
na da consubstanciação, onde pão e vinho mantinham suas formas naturais, mas, sob as
mesmas persistiam a ideia do sangue e corpo de Cristo.
A compreensão da relação entre imanência e transcendência de Deus gerou reflexos na
arquitetura Luterana e, principalmente, na forma como a arte sacra passou a ser compreen-
dida nos ambientes vinculados a essa corrente reformatória. Essa questão é extremamente
interessante de ser abordado, pois M. Lutero não via grandes problemas na representação
sacra nas igrejas que abraçaram a causa da Reforma: imagens crucifixos ou pinturas no
interior dos templos seriam considerados algo secundário que não seria capaz de macular
a essência da fé cristã;
Para o reformador o problema da idolatria residia no comportamento compulsivo do
ser humano em reder culto a qualquer outro objeto ou ser além da divindade, e não nos
símbolos religiosos em si. Modificando esse comportamento humano, qualquer peça de
arte sacra seria praticamente inofensiva. Mas, após os distúrbios iconoclastas que asso-
laram Wittenberg5, Lutero procurou se aprofundar ainda mais nessa questão que pode ser
encontrada no escrito Contra os profetas celestiais, a respeito de imagens e sacramentos
(1524). A respeito desse escrito Wilhelm Wachholz faz o seguinte comentário:

Lutero chegou a afirmar que primeiramente as imagens precisam ser elimina-


das do coração, pois então elas não mais fariam mal aos olhos. Segundo ele,
as obras de justificação estão relacionadas ao culto às imagens. Além disso,
em Moisés, a proibição se refere a uma imagem de Deus. Contudo, fazer um
crucifixo ou imagem de santo não é proibido. Mais do que isso, a questão
fundamental não gira em torno do fazer imagens, mas do adorar imagens.
Enquanto memórias ou testemunhas, as imagens não somente devem ser
toleradas, senão até mesmo devem ser consideradas louváveis e honrosas.
Em sua Bíblia Alemã, que os iconoclastas também gostavam de usar, existem
muitas figuras. Aliás, ele próprio chegou a sugerir que se pintassem figuras nas
paredes, considerando-as uma obra cristã. Segundo ele, quando se ouve ou
lê sobre as obras de Deus, a gente cria uma imagem disso em seu coração.
Por que, então, seria pecado ter um símbolo, por exemplo, da crucificação de
Jesus, perante os olhos? (WACHHOLS, 2010, p. 163).

As diretrizes defendidas por Lutero se cristalizaram no luteranismo posterior. Grandes


e pequenas Igrejas Luteranas localizadas não só na Alemanha, mas também em países
escandinavos e até nos Estados Unidos da América concedem espaço para peças sa-
cras (crucifixos, velas, vitrais e até imagens de Jesus ou dos apóstolos) em seus ambien-
tes arquitetônicos.

5 Situada na Alemanha, Lutherstdt Wittenberg é uma cidade de notória importância para a história da Reforma Protestante.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 455


Ao contrário de Lutero, o reformador francês João Calvino (1509-1564) acreditava que
o uso de determinados adornos nos templos reformados, principalmente imagens e pintu-
ras, contrariava diretamente um mandamento encontrado no Decálogo atribuído a Moisés.
Além do mais, as imagens seriam responsáveis por diminuir a glória e a sabedoria de Deus.
Wilhelm Wachholz pontua que:

Em suas Institutas de 1536, Calvino externou-se contrário às imagens, afirman-


do que Deus é Espírito e precisa ser adorado em Espírito. É pagão e carnal
quem retrata a Deus. A representação de Deus através da imagem leva ao
antropomorfismo. Esses mesmos pensamentos retornam nas Institutas de
1559. Segundo ele, Deus permite ser ouvido, mas não mostra sua forma. Por
isso imagens de Deus nada mais são do que superstições. As teofanias do
Antigo Testamento são prelúdios da futura revelação em Jesus Cristo, contudo,
não justificam a representação de Deus como tal (WACHHOLZ, 2010, p. 167).

A postura de Calvino diante do tema, já defendida por reformadores anteriores como


Ulrico Zuínglio (1484-1531) e Martin Bucer (1491-1551), tornou-se normativa na nascente
igreja reformada. Como consequência, os espaços arquitetônicos pertencentes a essa tradi-
ção tornaram-se quase que completamente destituídos de antigos ornamentos sacros. John
Leith descreve as principais características de um templo evangélico-reformado:

No início, os cristãos reformados tiveram de reconstruir o arranjo das catedrais


e igrejas que receberam do passado. Algumas vezes, a parafernália do culto
medieval, como estátuas e mesmo janelas de vidro coloridas, eram removidos
ou destruídos com um entusiasmo irresponsável. Mais expressivo ainda foi o
arranjo do espaço das igrejas mais antigas para acolher uma nova visão acerca
da natureza da Igreja e do culto. Isso significava fechar santuários e arranjar
os bancos de tal forma que a congregação ficasse reunida em torno do púlpito
e da mesa de comunhão. O arranjo era importante para ajudar os adoradores
a se reunir como comunidade, ouvir a palavra de Deus pregada, ver os atos
sacramentais e participar do culto da Igreja. Em Genebra, isso significava ter
uma congregação assentada em lugares com ângulos diferentes, ao redor do
púlpito e da mesa (LEITH, 1997, p. 330-331).

A teologia elaborada por João Calvino difere de Martinho Lutero também na relação
entre transcendência e imanência de Deus. Mesmo admitindo que Deus se fizera humano
por meio de Jesus Cristo, e que, portanto, esteve próximo da humanidade em certo período
histórico, na época atual (século XVI), Calvino acreditava que Deus manteria contato com
sua criação através do Espírito Santo. Para Wachholz (2010, p.172), “Calvino, por sua vez,
chegou a afirmar a transcendência de Deus de uma forma tão vigorosa, que havia quem con-
cluísse que fazia ressurgir o escotismo novamente”. Dessa forma, o reformador de Genebra
reclamava para a divindade uma absoluta transcendência.
A ideia teológica de Calvino fora mantida por seus discípulos e sucessores, tendo claro
reflexo na adaptação e construção das casas de oração pertencentes à tradição reformada.

456 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Sendo Deus o Totalmente Outro e verdadeiramente Transcendente, não caberia ao ser
humano representá-lo de forma antropomórfica. Assim, o “vazio” presente nos templos cal-
vinianos sinaliza claramente que qualquer tentativa humana de aproximar a divindade dos
fiéis, no caso por meio das artes visuais, seria responsável por destituir Deus de sua glória e
majestade. Não incorremos em erro quando afirmamos que esse vazio arquitetônico é tam-
bém um símbolo bastante forte e contundente, pois reafirma de forma material a soberania
de Deus, um Deus que se encontra além de qualquer espaço concebido por mãos humanas.

O SIMBOLISMO EM LUTERANOS E CALVISTAS.

Ao contrário do catolicismo-romano, as correntes protestantes não sacralizam seus


ambientes de culto. Os templos merecem respeito, mas não são totalmente depositários
do sagrado. O luteranismo apresentou uma nova forma de conceber a função das artes em
seus templos. Imagens, vitrais, crucifixos e demais elementos pictóricos não continham mais
o elemento divino, mas apontavam para ele.

Enquanto a teologia católico-romana compreendia os símbolos sacros de forma


a privilegiar neles o caráter da imanência de Deus, em Zwínglio, nos anaba-
tistas e em Calvino, os símbolos foram arrancados dos templos sob alegação
de idolatria. Afinal, segundo eles, Deus não pode ser retratado sem o perigo
do antropomorfismo. Lutero buscou novamente um caminho intermediário, em
concordância com seu posicionamento, por exemplo, a respeito dos elementos
(sinais) dos sacramentos (água, pão e vinho), para afirmar que os símbolos são
meios auxiliares para a fé, utilizados por Deus (WACHHOLZ, 2010, p. 172).

O interior dos templos luteranos, ao reinterpretar a função dos objetos artísticos, consi-
dera-os como símbolos de um Deus ainda transcendente e soberano, mas que, ao mesmo
tempo, se compadeceu do pecador ao ponto dele se aproximar. Wachholz (2016) nos lembra
de que a arte luterana também apresenta uma noção pedagógica, simbolizando, assim, o
papel da igreja como fiel escola do Espírito.
O simbolismo nos templos reformados primevos não se encontra restrito ao vazio.
Mesmo bastante “empobrecido”, se comparado com seu similar luterano, encontramos em
várias igrejas calvinistas cruzes em suas torres (o presbiterianismo irlandês e escocês, por
exemplo, manteve o uso da cruz céltica em seus cemitérios, por exemplo), pias batismais
etc. Mas três elementos considerados absolutamente pragmáticos e utilitários foram guina-
dos à condição de símbolo nesta família confessional. Referimo-nos à Bíblia, ao púlpito e a
mesa de comunhão. Leith comenta esse importante ponto:

A remoção ou destruição dos símbolos do culto medieval não quer dizer que os
reformados desprezavam os símbolos. Eles os consideravam de importância
decisiva e, por isso, mudaram os símbolos e arranjos do culto. Estavam preocu-

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 457


pados em organizar a congregação no culto da forma adequada à sua teologia
e à centralidade do púlpito, da Bíblia e da mesa, reduzindo ao mínimo qualquer
distração com relação a esse ponto fundamental (LEITH, 1991, p. 331).

O destaque do púlpito, quase sempre em posição elevada na típica congregação re-


formada, simbolizava a importância do anúncio da palavra pregada. A bíblia, sempre visível
neste mesmo púlpito e de tamanho considerável, era o símbolo da própria Palavra escrita
de Deus. A mesa, também colocada no centro do templo, apontava para a importância do
sacramento da Ceia.
Os dois pontos centrais do culto evangélico-luterano sempre foram à prédica e a ce-
lebração da Santa Ceia. A correta ministração dos sacramentos deveria ser acompanha-
da do anúncio do Evangelho. Assim, o templo luterano deveria ser organizado de acordo
com essas duas bases orientadas pelo próprio Lutero. Thomas Kaufmann esclarece bem
esta problemática:

A concentração litúrgica e teológica na pregação e na eucaristia correspondia


numa focalização especial arquitetônica no púlpito e no altar; altares laterais,
por essa razão, foram eliminados, decorações pictóricas e plásticas eram
utilizadas mediante o critério de possibilidade de sua compatibilidade com a
tradição bíblica e seu possível uso para a atualização da mensagem da salva-
ção; carreiras de bancos para sentar, também nas tribunas, foram instaladas
para os participantes da celebração litúrgica, que antes de mais nada deviam
ser atingidos como ouvintes. A apropriação produtiva artística de temas bíbli-
cos, principalmente as representações de Cristo, bem como a visualização de
perícopes isoladas ocorreram no luteranismo preponderantemente no século
XVII (KAUFMANN,2014, p.417).

Notemos que o espaço arquitetônico luterano era organizado com finalidades peda-
gógicas. Tudo deveria colaborar para o correto entendimento da palavra anunciada, seja
de forma verbal ou artística.
Em comum com a tradição reformada, a ênfase concedida ao púlpito e ao altar (no
calvinismo conhecido simplesmente como mesa de comunhão) revela não somente prag-
matismo, mas aponta para um simbolismo bastante marcante: a importância da pregação
(representada pelo púlpito) e da eucaristia (representada pelo altar) na vida comunitária.
Levando-se em consideração o que fora dito sobre a questão no universo luterano,
cria-se a impressão de que o templo calvinista ou reformado seja desprovido de qualquer
elemento simbólico, haja vista a destacada simplicidade quase sempre presente nesse re-
cinto religioso. Sobre a típica igreja de corte calviniana, Leith esclarece:

No início, os cristãos reformados tiveram de reconstruir o arranjo das catedrais


e igrejas que receberam do passado. Algumas vezes, a parafernália do culto
medieval, como estátuas e mesmo janelas de vidro colorido, eram removidos
ou destruídos com um entusiasmo irresponsável (LEITH,1997, p. 330).

458 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Não obstante, até nessa fase marcada por uma pujante iconoclastia, o símbolo não fora
abolido das igrejas reformadas. A arquitetura e as artes no templo reformado, a despeito de
sua simplicidade e singeleza, se enquadraram na categoria de símbolos, pois apontam para
algo além (com o “vazio” sinalizando para o Deus Transcendente), sempre estiveram unidos
a esse algo (com a Bíblia, o Púlpito e a mesa eucarística demonstrando a união da igreja com
o Totalmente outro) e revelavam para seus adeptos aspectos existenciais tanto exteriores
como interiores (a natural distância entre Deus e o ser humano, mas, ao mesmo tempo, a
aproximação deste mesmo Deus com seus eleitos, por meio da Palavra e dos Sacramentos).
Kaufmann traz uma descrição da arquitetura de um típico templo reformado capaz de
complementar o que já fora citado por Leith.

O purismo do espaço sagrado, em grande parte desprovido de ornamentação,


transformado em auditório, totalmente centrado no púlpito, concebido como
edifício centralizado ou em forma de salão, que ao menos permitia ilustrações
caligráficas representando as tábuas de mandamentos, do Pai-Nosso, ou então
colorações e decorações nas bochechas do órgão, correspondia a uma piedade
decididamente auditiva e a uma estética de concentrada e santa simplicidade,
que criava a espaço para a ideia de Deus totalmente espiritual e absolutamente
desvinculada da matéria (KAUFMANN, 2014, p. 422).

Deparamo-nos aqui com um conceito também presente na elaboração do espaço litúr-


gico luterano; a importância de se conceber um ambiente cúltico que priorize a comunicação
da Palavra. Mas, neste caso, tal comunicação encontra-se restrita tão somente em sua for-
ma verbal, não concedendo espaço para representações artísticas. Convém ressaltar que
a partir do final do século XIX, como fruto de um reavivamento litúrgico ocorrido em várias
igrejas reformadas ou presbiterianas, a tradição reformada tem flexibilizado sua gênese
iconoclasta, por meio da confecção de vitrais contendo temas bíblicos em seus templos e
do uso da cruz sempre vazia.
A partir do momento que a tradição protestante foi se consolidando na Europa Ocidental
e na América do Norte, templos já direcionados à nova expressão da fé cristã foram ergui-
dos de acordo com os pressupostos teológicos citados acima. Abumanssur esclarece que,
dentre várias escolas arquitetônicas, predominavam nos espaços litúrgicos protestantes a
neoclássica e o neogótica.
A preferência pelo neoclássico, fortemente representado em várias igrejas puritanas
da Nova Inglaterra, demonstrava a busca por um racionalismo que se contrapusesse ao
barroco católico, este bastante rico em detalhes e significados. De acordo com Abumanssur
(20008), o uso do neogótico, preferido entre reformados europeus continentais e britânicos,
tinha como propensão demonstrar, por meio de seus tetos elevados, pilares longínquos e
janelas ogivais a majestade e grandeza de Deus.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 459


CONCLUSÕES

Em Dinâmica da Fé (2002), Paul Tillich inicia suas considerações alegando ser natural
que o ser humano possua algo que lhe toque de maneira incondicional, algo absolutamente
transcendental e que seja responsável por conceder sentido à própria existência. Não obs-
tante, esse incondicional não pode ser representado, compreendido e vivenciado segundo
um prisma meramente racionalista. Somente os símbolos religiosos acabam representando e
comunicando o elemento incondicional, pois, “aquilo que toca o homem incondicionalmente
precisa ser expresso por meio de símbolos, porque apenas a linguagem simbólica consegue
expressar o incondicional” (TILLICH, 2002, p. 30).
As questões teológicas e o contexto histórico são temas significativos para compreen-
demos a Reforma, mas quando nos voltamos para os interpretes da religião —Luterana e
Calvinista — observamos que ainda assim a símbolos são elementos importante da expe-
riência religiosa, mesmo que essa ideia seja “velada” por um discurso que deixa de enaltecer
os símbolos religiosos. O que acontecem é que a interpretação desses símbolos difere na
questão de serem de fato extremamente importantes a ponto de ultrapassar a relevância de
Deus no culto. Como já mencionado anteriormente, em ambas as tradições encontramos
como símbolos centrais, a bíblia, ao púlpito e a mesa de comunhão, e entre outros. Mas
esses três elementos detêm significados atrelados à narrativa mítica e o ritual, temas esses
de extrema importância para a dinâmica do fenômeno religioso.
Em seu livro As Linguagens da Experiência Religiosa (2010) José Severino Croatto
elenca uma série de argumentos sobre o símbolo, o mito e o rito como esses três elemen-
tos dinâmicos interagem entre si. Entre eles o símbolo seria a chave para entendermos a
experiência religiosa. E nesse sentindo, embora Luteranos e Calvinistas tenham compreen-
sões teológicas um tanto quanto diferente sobre as imagens e esculturas que procuram
representar a divindade, devemos também compreender que os símbolos dos quais eles
comungam —bíblia, púlpito e mesa de comunhão — permanecem como elementos de sig-
nificados profundos para o interpretes dessas religiões que organizam seus cultos entorno
da importância atribuída a esses três elementos simbólicos.
Ainda que a ideia de pinturas artísticas e esculturas que procuram representar Deus
tenham compreensões distintas dentro da tradição protestante, à arquitetura das igrejas, a or-
ganização dentro dos templos é feitas dentro de uma lógica de comunhão que recorre a mitos
sagrados do cristianismo, que por sua vez são ritualizados através da oratória da palavra e da
ceia, símbolos esses importantes na constituição da fé. E assim, os símbolos também teriam
“uma função social” que gera “vinculo entre os seres humanos” (CROATTO, 2010, p. 114).
A intenção de nosso trabalho foi apresentar algumas reflexões — mesmo que de forma
breve — a respeito das duas linhas fundantes da Reforma: o Luteranismo e o Calvinismo.

460 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Ambas reinterpretaram a ideia dos símbolos religiosos levando-se em conta o contexto da
época. Após diversas especulações teológicas esse movimento constituiu suas compreen-
sões que gradativamente foi se instaurando nas perspectivas do fieis, em especial aqueles
que se envolveram com a arte e com a arquitetura dos espaços de culto. Saber como os
artistas que se declaram como protestantes representam temas vinculados à religião, seria
um tema para se investigar.
A partir do Luteranismo e do Calvinismo podemos observar que a simbologia ainda
permanece em seus espaços litúrgicos, assim como também, no pensamento do adepto de
tais tradições religiosas. Atualmente, observamos que as outras tradições do cristianismo
reformado ainda conservam um discurso crítico em relação às imagens religiosas que pro-
curam representar a divindade. Mas esse é um tema que também se deve ser aprofundado
em pesquisas, pois em algumas igrejas reformadas podemos encontrar, como por exemplo,
em suas torres uma cruz. A partir disso, por exemplo, nós poderíamos nos indagar: Por que
ou qual a finalidade de uma cruz no espaço de tradições cristã reformadas?
Sugerimos que os demais pesquisadores e estudiosos do fenômeno religioso que ob-
servem e estudem com maior atenção os espaços litúrgicos das mais variadas arquiteturas
religiosas. O olhar atento a espaços litúrgicos “despidos” de uma variedade em ornamen-
tações simbólicas não quer expressar propriamente que eles não detêm significados ou
símbolos religiosos. Pelo contrário, nesses espaços contém um universo de significados que
diz respeito ao sujeito religioso como experimentador e intérprete do divino.

REFERÊNCIAS
1. ABUMANSSUR, Edin Sued. Arquitetura Protestante. In: FILHO, Fernando Bortolleto. Dicionário
Brasileiro de Teologia. São Paulo: ASTE, 2008.

2. COSTA, Lúcio. Considerações sobre arte contemporânea. São Paulo: Empresa das Artes,
1995.

3. CROATTO, José Severino.

4. DAWSON, Christopher. A Divisão da Cristandade- Da Reforma Protestante à Era do Ilu-


minismo. São Paulo: É Realizações, 2014.

5. LEITH, John H. A Tradição Reformada- Uma maneira de ser a comunidade cristã. São
Paulo: Pendão Real, 1997.

6. LINDBERG, Carter. As Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

7. KAUFMANN, Thomas. História Ecumênica da Igreja- Da alta Idade Média até o início da
Idade Moderna. São Paulo/São Leopoldo: Paulus, Loyola e Sinodal, 2014.

8. TILLICH, Paul. Dinâmica da Fé. São Leopoldo: Sinodal, 2002.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 461


9. McGRATH, Alister. A Revolução Protestante. Brasília: Palavra, 2012.

10. WACHHOLZ, Wilhelm. História e Teologia da Reforma- Introdução. São Leopoldo: Sinodal,
2010.

462 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


32
“ Vivências de cristianismo
primitivo na Comunidade Mucker
(1868-1874)

Maria de Lurdes Zanon


PUCRS

10.37885/201001657
RESUMO

Na colônia alemã de São Leopoldo, de 1868 a 1874, Jacobina Mentz liderou o movimento
religioso, influenciando os adeptos a viver, segundo o evangelho de Jesus Cristo, no seu
sentido primeiro. O grupo reunia-se na casa de Jacobina e seu marido, João Jorge Maurer
para ler e interpretar a Sagrada Escritura, orar e entoar cânticos. Acreditavam que o dia
do juízo final se aproximava e era preciso se preparar. A rejeição da comunidade, da
imprensa e das autoridades civis e religiosas fez com que o grupo se isolasse e não par-
ticipasse mais dos atos comuns da comunidade como da Igreja e da escola. Perseguidos
e não atendidos pelas autoridades, os mucker passaram a revidar as agressões que so-
friam, usando a violência para se defender e se vingar. O exército interveio para aplacar
a violência na colônia alemã, mas longe de pacificar, marcou com um desfecho trágico
um capítulo da História do Rio Grande do Sul.

Palavras-chave: Mucker, Cristianismo Primitivo, Conflito.


O MOVIMENTO MUCKER

Na colônia Padre Eterno, Ferrabraz, região de São Leopoldo, um movimento chamou


atenção da comunidade local e regiões vizinhas. Desde 1868, um número acentuado e
crescente visitava Jacobina e João Jorge Maurer, à procura de um esclarecimento ao redor
dos seus sonhos, cura com ervas medicinais e interpretações das Escrituras. Esses colonos
dialogavam com uma entidade superior denominada Espírito da Natureza, rezavam, can-
tavam, preparavam refeições em comum, descansavam e retornavam aos seus afazeres
domésticos e roças. Essa divindade natural chamava o espírito de Jacobina, que se ausen-
tava do corpo, para ensinar a tratar doenças, interpretar as Escrituras, aconselhar e fazer
profecias. Nas reuniões, ao redor de palavras inconscientes de Jacobina e interpretações de
textos bíblicos, os colonos sentiam-se atendidos nos males do corpo e nas inquietações da
alma. Essas práticas, passadas de boca em boca, representavam procuras e possibilidades
terapêuticas coletadas por esses colonos e seus ancestrais desde 1824. Um sobreviven-
te do movimento, Miguel Noé, relata que as palavras de Jacobina, quando em estado de
inconsciência, não lhes vinham à mente quando voltava a si, tendo um dos presentes que
repeti-las para ela. Havia esclarecimentos para todos os tipos de doenças, independente de
como se chamavam, que logo eram tratadas com infusões tanto para friccionar como para
ingerir, tendo sempre muito cuidado com as correntes de ar1.
A partir de 1872, os seguidores de Jacobina e João Jorge Maurer tomaram várias me-
didas que causaram estranhamento à comunidade em que estavam inseridos: começaram
a se ausentar de suas comunidades católicas ou protestantes, a não aceitar a forma com
que a comunidade comprava e vendia os produtos, trocando entre eles os excedentes; a
não aceitar o cemitério dos demais, enterrando seus mortos nas roças; a julgar o sistema
escolar inadequado para seus filhos, responsabilizando-se pela educação das crianças e
explicar o mundo na concepção literária apocalíptica. Daquele momento em diante, seriam
tratados numa arena pública composta de representantes do clero, da política, da mídia, do
poder legal e de parte da população, sendo acusados de ter formado uma corporação de
fanáticos, bárbaros, criminosos e de alienados mentais. E foram feito “Mucker” condenados
pelas concepções sociais, através de vozes dos clérigos que se levantavam de seus púlpitos
para pregar contra os falsos beatos, das vozes da polícia, da imprensa, da maçonaria, do
poder legal e parte da população local. Mucker tornou-se a patologia e um estágio religioso
criminoso que deveria ser exterminado pelas concepções filosóficas, religiosas e éticas,
presentes naquela incipiente sociedade teuto-alemã. O confronto que objetivou pôr um fim

1 BIEHL, J. G. A guerra dos imigrantes: o espírito alemão e o estranho Mucker no Sul do Brasil. In: Psicanálise e Colonização: leituras
do sistema social no Brasil. Porto Alegre: Artes Ofício, 1999, p. 156.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 465


nesse mundo, muito religioso, de forma traumática, de fato regerou uma sociedade com
reordenamentos simbólicos e práticas governamentais daquele momento e no século por
vir. A guerra Mucker seria uma prova de fogo da existência de uma normalidade e legalidade
e de um forte e independente germanismo liberando um ar alemão no Estado2.
Ao lutarem para manter suas ideias e direitos na colônia, os chamados mucker foram
pegos participando das ideias e práticas estimuladas pelo germanismo local. Antes do seu
desaparecimento, eles foram além da ferocidade de animais selvagens, literalmente, pu-
seram fogo em seus opositores e suas propriedades. Na noite de 24 para 25 de junho de
1874, depois da prisão de alguns deles, os mucker mataram 14 pessoas entre crianças e
adultos pertencentes às famílias que os haviam hostilizado, cortando o rabo de seus cavalos
e conspirando com as autoridades locais contra eles3.

A REAÇÃO DA COMUNIDADE FRENTE AO MOVIMENTO

A imprensa, através do jornal Deutsche Zeitung, em 10 de dezembro de 1873, faz uma


intensa campanha contra o movimento liderado por Jacobina Maurer: que as ações dessa
seita são perniciosas, o governo precisa reprimi-las com todos os seus meios disponíveis,
que os mucker são imorais, praticam o comunismo em diversas formas, inclusive no casa-
mento, ensinam que o mundo se tornará bom, quando vier a idade de ouro, tempo em que
os rebentos serão mortos contra a parede... Eles fazem ameaças de morte aos que não
aceitarem o muckerismo, julgam não ser pecado algum atirar contra os incrédulos. As ações
dessa seita, além de serem perigosas à comunidade, são perigosas ao estado, pois estão
a preparar uma revolução, não cumprem as leis civis, estão armados e estão preparados
para desativar a sociedade. Se as motivações dos mucker fossem somente de natureza
religiosa, baseadas no senso comum, até se permitiria que isso fosse levado adiante. A his-
tória ensina que as seitas quando reprimidas, multiplicavam-se, mas ensina também que
as loucuras religiosas levam a aumentar os números das estatísticas criminais. Os mucker
adoram uma mulher como Cristo, no entanto deveriam chamá-la de p... (puta) babilônica; a
prisão ou o manicômio deveria ser o refúgio desse bando; eles são devotos de muitos atos
de maldade que se operam na sociedade como um veneno mortal que destrói as pessoas e
a comunidade; se o governo não livrar a sociedade desse monstro, as pessoas farão justiça
com as próprias mãos, linchando-os4.

2 BIEHL, J. G. A guerra dos imigrantes: o espírito alemão e o estranho Mucker no Sul do Brasil. In: Psicanálise e Colonização: leituras
do sistema social no Brasil. Porto Alegre: Artes Ofício, 1999, p. 157.
3 BIEHL, J. G. A guerra dos imigrantes: o espírito alemão e o estranho Mucker no Sul do Brasil. In: Psicanálise e Colonização: leituras
do sistema social no Brasil. Porto Alegre: Artes Ofício, 1999, p. 160.
4 Ibid., p. 157.

466 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Em maio de 1873, Jacobina foi levada por uma escolta policial de oito praças de sua
casa até a casa da Câmara de São Leopoldo.5 Estava, na ocasião, doente de um mal que
lhe acometia costumeiramente, ficando sem sentido por horas e até dias. Durante a viagem,
que durou nove horas, foi humilhada pela população e, chegando à cidade, foi exposta ao
público. Dr. Hillenbrand submeteu-a a vários exames para saber se a doença de Jacobina
era psicossomática, não encontrando nada, além do estado de inconsciência. Depois do
exame e o depoimento, o chefe de polícia, Dr. Sampaio, encaminhou Jacobina ao Hospital
Santa Casa de Misericórdia em Porto Alegre para achar um possível diagnóstico da doença
dela. Três semanas depois, soube-se que Jacobina Mentz Maurer não era portadora de
mal algum. Koseritz registrou a volta da ordem na colônia, durante a estada do senhor e da
senhora Maurer na Capital do estado. Eles assinaram um compromisso de bem-viver que,
dentre outras coisas, comprometiam-se a não fazer mais reuniões religiosas em sua casa6.
No dia anterior ao extermínio dos mucker no Ferrabraz, dia 1º de agosto de 1874, o
jornal Deutsche Zeitung mais uma vez reiterava sua opinião sobre as medidas que o governo
deveria tomar para exterminar os mucker: os seguidores de Jacobina deveriam ser caçados
como cachorros; ser mortos na espada e no fogo para que não restasse nenhum rastro deles;
a opinião da população era de que não se tivesse compaixão com esses canibais; as suas
cabeças deveriam ser cortadas, pois eles eram responsáveis pelas mudanças da comuni-
dade, provocadas por uns fanáticos e assassinos que queriam mudar o mundo através de
suas contemplações, embora mal soubessem escrever e ler seus nomes.
No dia 2 de agosto de 1874, na colônia de São Leopoldo, a polícia e vários colonos
voluntários puseram em prática, mais uma vez, as sugestões do jornal Deutsche Zeitung.
Dezessete colonos, identificados como mucker, falsos beatos, santarrões foram exterminados
pela força da Guarda Nacional, do Exército e da Polícia da Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul. Essa intervenção militar foi articulada pela elite de ascendência germânica,
encabeçada pelo filósofo e maçom Karl Von Koseritz, diretor do Deutsche Zeitung e endos-
sada pelos missionários jesuítas e pastores luteranos.

CRENÇAS E REZAS NO MOVIMENTO

Até 1871, os mucker não usavam a Sagrada Escritura e não se preocupavam em fazer
uma congregação de fiéis. As reuniões na casa dos Maurer eram uma atividade paralela à

5 A Câmara Municipal de São Leopoldo foi criada em 24 de julho de 1846, sendo abrigada na mesma casa a cadeia municipal. A Lei nº
4, de 1º de abril de 1846 fez nascer a Vila de São Leopoldo, instituindo a municipalização do povoado do mesmo nome. A vila tornar-
-se-ia cidade em 12 de abril de 1864, pela Lei nº 563 (SILVA, H. R. K. Fontes para a história da Câmara Municipal de Vereadores de
São Leopoldo. In: SILVA, H. R. K.; HARRES, M. M. (Orgs.). A história da Câmara e a Câmara na história. 1. ed. São Leopoldo: Oikos,
2006, p. 15).
6 BIEHL, J. G. A guerra dos imigrantes: o espírito alemão e o estranho Mucker no Sul do Brasil. In: Psicanálise e Colonização: leituras
do sistema social no Brasil. Porto Alegre: Artes Ofício, 1999, p. 159.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 467


atividade religiosa da comunidade7. Todos os que a frequentavam, os crentes na Divindade
Natural, eram fiéis a sua religião, buscavam os sacramentos e participavam dos rituais estabe-
lecidos juntamente com o colono-padre ou colono-pastor, conforme a denominação religiosa8.
Para entrar na seita bastava concordar com Maurer, o prosélito deveria ser precavido, não
cometer falta, ser forte, não se deixar influenciar pelos outros e não se desviar do caminho9.
Segundo os relatos de Schupp, o marco inicial da seita de Jacobina deu-se no dia
19 de maio de 187210, nesse dia ela tentou dar legitimação à sua “igreja”. Havia avisado a
todos que, no dia de Pentecostes11, portanto, naquele dia, iria acontecer algo extraordiná-
rio, que a todos surpreenderia. Depois das preces, os presentes viram a profetisa, em seu
leito, hirta, imóvel, com os olhos inundados de misticismo, fixos, voltados para o alto, com
o semblante transfigurado, desaparecer, juntamente com um estrondo, semelhante a uma
trovoada. Ao som de um novo hino ela reapareceu, vestida de branco, com expressões de
um ser sobre-humano12.
O texto de Schupp sobre isso tem acentuada assonância evangélica.

Jacobina para, parece tornar do êxtase à vida terrena, e lança um olhar sobre
os circundantes. Depois fixa os olhos num ponto: o seu gesto toma uma expres-
são suave, risonha. Todas as vistas voltam-se para aquela banda. Ali se acha
um homem, quase quinquagenário, espadaúdo, de cabelo negro e sobrance-
lhas hirsutas. Jacobina acena-lhe. Então aquele indivíduo, rompendo por entre
a turba e exclamando: - Sim, eu creio, eu creio que tu és Cristo – prostra-se
de joelhos a seus pés. Jacobina olha para ele, com ar benévolo. Pois bem!
Diz ela – Já que assim procedes, perdoo-te a inimizade que alimentavas, no
íntimo, contra mim. És digno de pertencer ao número dos meus discípulos...
Tu disseste – acrescentou ela – que eu sou o Cristo, e eu o sou, na verdade; e
estas palavras do espírito de Cristo; eu sofro e sofrerei, mas também eu terei
a minha ressurreição. Quem acreditar esta verdade e algumas outras mais,
esse terá a vida eterna13.

Talvez Jacobina misturasse o texto bíblico (Mt 16,17-19) em que Pedro responde a
Jesus: “Tu és o Cristo o filho do Deus vivo” com o texto da Transfiguração, no monte Tabor,
pois ambos os acontecimentos parecem acenar para o ritual de Jacobina no dia quatro
de maio de 1872. No primeiro texto, Pedro reconheceu em Jesus o Cristo, o filho de Deus
vivo. Jesus lhe chama de Bem-aventurado, filho de Jonas, pois Deus havia lhe havia feito
essa revelação; no segundo, Deus fez os apóstolos verem que Jesus, seu filho, tinha uma

7 NOÉ, M. História do ano de 1874. In: DOMINGUES, M. A nova face dos Muckers. 1. ed. São Leopoldo: Rotermund, 1977, p. 387.
8 DOMINGUES, M. A nova face dos Muckers, p. 72.
9 NOÉ, M. História do ano de 1874. In: DOMINGUES, M. A nova face dos Muckers. 1. ed. São Leopoldo: Rotermund, 1977, p. 387.
10 “O equívoco do Pe. Schupp, que parece ter seguido as pegadas de Koseritz, foi este: o fato aconteceu a 4 de maio de 1873 e não a
19 de maio de 1872, quando faziam apenas 19 dias que Aurélia, última filha de Jacobina, havia sido batizada pelo pastor de Campo
bom. Engano muito sério, pois deixa o intervalo de um ano entre a fundação da seita e a intervenção das autoridades, quando na
realidade esse intervalo foi de apenas 4 dias” (DOMINGUES, M. A nova face dos Muckers, p. 101).
11 Padre Schupp diz que dia 19 de maior de 1872 era o dia de Pentecostes.
12 SCHUPP, A. Os Muckers, p. 59.
13 SCHUPP, A. Os Muckers, p. 60.

468 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


importante missão e, por isso, deveriam ouvi-lo (Mt 17 1-8). No Ferrabraz, houve o reconhe-
cimento da messias diante de uma assembleia de adeptos, por uma influente pessoa de seu
meio, o ex-pastor da comunidade, outorgando-lhe, com isso, poder religioso, negado pelas
autoridades civis e religiosas. Após a “transfiguração” de Jacobina, houve a confirmação
da líder e de sua consciência messiânica. Se o homem que reconheceu nela o Cristo, era
Klein14, seu cunhado, sem dúvidas, era a pessoa mais qualificada intelectualmente para
confirmá-la, já que era versado em teologia, professor primário e ex-pastor15.
A partir desse momento, os mucker estabeleceram ritos religiosos, adotaram a livre
interpretação da Bíblia, passaram a entoar cânticos religiosos, identificaram Jacobina com a
revelação divina, começaram a acreditar no fim do mundo próximo. As reuniões, na casa de
Maurer eram marcadas por ele, que a auxiliava nas explicações da Bíblia. Jacobina sentia-se
inspirada por Deus e tinha o objetivo de explicar o verdadeiro espírito da Bíblia Sagrada. Com
o aumento dos adeptos, o grupo, composto por um círculo fechado de parentes, evoluiu para
o terreno da religião, enquanto explicação do mundo. E Jacobina, de atuação coadjuvante,
antes como auxiliar do marido, passou a ter o papel principal nessa história16.
No dia 07 de maio de 187317, dias antes de ser presa, numa nova reunião, Jacobina
novamente legitimou sua autoridade. Primeiramente, mostrou-se vestindo uma túnica branca
e uma coroa de flores na cabeça, depois interpelou mais uma vez, como no ano anterior, se
ainda havia alguém que não acreditava que ela era o Cristo. Como ninguém se manifestou,
explicou que há seis anos, no mato, um espírito, em segredo, havia lhe falado que ela era
o Cristo e que avisaria a hora da revelação. Explicou a todos que o irmão Francisco sabia
disso, que havia posto o que sabia no papel, mas que agora se recusava a confirmar. Como
o apóstolo Pedro que negou Jesus por três vezes, seu querido irmão mais velho negara-lhe
a confirmação de que a humanidade iria perecer e que só os eleitos, iriam se salvar18.
Ainda nesse dia, Jacobina deu orientações para os prosélitos que haviam ade-
rido ao novo movimento. Observa-se, no texto abaixo, novamente, referência evangéli-
ca (Mt 10, 34-39).

14 João Jorge Klein: Nasceu em 14/05/1820, em Hunsrück, na Alemanha e faleceu em 06/10/1915, em Canoas, Rio Grande do Sul.
Chegou no Brasil em 1853, em 13/4/1855, casou com Catarina Mentz, irmão mais velha de Jacobina. Destacava-se dos demais pela
cultura acima da média, contribuindo até para jornais locais, embora dado a brigas e intrigas. Em 1858, foi eleito pastor das picadas
do Café e da 48 colônias, onde desempenhara as atribuições que lhe competiam com muito com zelo. Foi considerado pela popu-
lação e autoridades locais, desde o início, um dos principais líderes dos mucker: “o misterioso” tido como diretor espiritual da seita e
dos acontecimentos em torno do casal milagreiro (SCHUPP, op. cit., p. 44-45; Cf.: DOMINGUES, M. A nova face dos Muckers, p. 49).
15 SCHUPP, op. cit., p. 59.
16 AMADO, J. A revolta dos Mucker, p. 189.
17 Moacyr Domingues põe esse acontecimento no dia 4 de maio de 1873.
18 SCHUPP, A. Os Muckers, p. 76-77.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 469


- E ouvi - continuou ela no mesmo tom – o que ainda tenho a dizer-vos. O
mundo perecerá em breve. Nenhum de vós mande mais os filhos à escola:
não será mais preciso ler nem escrever; também ninguém vá mais à igreja que
frequentava até aqui, mas retire-se da comunidade a que pertence, e conser-
ve-se fiel aos escolhidos. E, se uma mulher quiser vir ter comigo, e o marido
se opuser, ou, vice-versa, se o marido quiser vir e a mulher tentar impedi-lo,
não desanime por isso, pois ele será salvo e a outra parte perder-se-á. Pois
eu vos afirmo que, por minha causa, os filhos rebelar-se-ão contra os pais, as
mulheres contra os maridos; mas quem se conservar fiel a mim, nada lhe há
de faltar; tudo lhe será restituído centuplicadamente19

Pe. Schupp, em várias passagens de seu livro, narra que Jacobina se dizia ser o Cristo
na terra, incumbida de uma importante missão, tinha sido ungida por Deus20. Durante o in-
quérito policial do dia 22 de maio de 1873, Jacobina disse ao chefe de polícia, Dr. Luís José
de Sampaio, que entre ela e a divindade não necessitava de intermediários21. Essa fala é
relevante, pois aconteceu durante um inquérito policial e, por isso, tem veracidade. Na pre-
sença do chefe de polícia, em nenhum momento ela teria dito ser o Cristo. Com isso, há a
possibilidade de que essa afirmação não tenha sido feita por Jacobina, é provável que tenha
sido atribuído por seus detratores e teria chegado até hoje pelos relatos dos primeiros escritos
sobre os mucker. Se analisarmos o teor do inquérito policial, podemos ver a Jacobina como
uma líder religiosa, querendo que seus adeptos sigam o Evangelho no seu sentido literal,
preparando nova doutrina para embasar o ensino, afastando-se das igrejas, porque, ao seu
ver, os representantes religiosos não sabiam explicar a Escrituras Sagrada.
A carta que Jacobina mandou ao primo e delegado de São Leopoldo, Lúcio Schreiner,
em 19 de maio de 1874, sugere que Jacobina tem autoridade de cobrar que o primo leve uma
vida cristã. Ela pede a Schreiner que pare de perseguir os inocentes, de pecar, de endossar
calúnias, de organizar petições contra os mucker e, principalmente, pare de desrespeitar as
Sagradas Escrituras. Pede para que o primo se prepare para o dia do juízo final22. Em outra
carta, dessa vez ao primo Schroeder, Jacobina diz que o anticristo profetizado por Maria
Margarida Müller, mãe de Schroeder, era identificado como Lúcio Schreiner, pois “ha perto
de um ano”, vinha instigando Schroeder contra ela e seus seguidores. Que Schroeder viesse
visitá-los, assim também fizesse uma visita a Klein para ser contemplado de mais esclare-
cimentos sobre o que ela lhe falava através da carta23.
As práticas do mucker foram legitimadas por expressivo número de simpatizantes, entre
700 e 1000 pessoas, o que é significativo, considerada a população total da Colônia Alemã
de 14.000 pessoas daquele tempo. Em suas casas foram encontrados somente exemplares
da Sagrada Escritura e um hinário evangélico petista. Na concepção do historiador Martin

19 Ibid., p. 77.
20 Ibid., p. 76.
21 DOMINGUES, M. A nova face dos Muckers, p. 159.
22 Ibid., p. 242.
23 Ibid., p. 244.

470 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Dreher, O movimento desenvolvido na colônia alemã de São Leopoldo, século XIX, liderado
por Jacobina Mentz, faz parte das muitas tradições religiosas trazidas pelos imigrantes ale-
mães protestantes ao Brasil; a família da líder foi expulsa do território alemão da Turíngia,
Alemanha, por não querer renunciar a antiga fé e fechar-se à Ilustração. Os mucker são
herdeiros do Pietismo assim como diversas famílias que participaram do movimento eram
pietistas. Com eles, veio a Ilustração que já se fazia sentir em 1824 e se acentuou em 1851,
com a chegada de 1600 legionários alemães no Rio Grande do Sul. O Reavivamento veio a
esse Estado por meio de novas levas de imigrantes, por meio de padres e pastores, tendo
sua expressão maior no Catolicismo da Restauração e num Protestantismo da Restauração.
Com isso tudo, uma nova forma de pensar era expressa nos jornais e influenciava a política,
dando a conformação do Estado na República que iniciaria em 1889. O universo dos mucker
era o micro do macro, faziam parte dessas mudanças todas24.

PRÁTICAS CRISTÃS NO MOVIMENTO MUCKER

A organização religiosa dos alemães e seus descendentes que começaram a chegar a


São Leopoldo, Rio Grande do sul, nos meados da década de vinte do século XIX, perdurou
até o final da década de 1850, quando a Europa passou a enviar padres e pastores com
formação teológica. Os colonos haviam criado um universo religioso pouco ortodoxo. Nele,
sobreviviam os fortes de corpo e espírito, eles habituaram-se a se comunicar diretamente
com o divino, sem necessidade de intermediários ou dos clérigos, pois quando existia um
representante religioso, colono-pastor ou colono-padre, era fruto do ambiente. A vinda dos
pastores formados em academias provocou um choque para ambos os lados, pois a religião
criada junto à comunidade era um tanto diferente daquela que a ortodoxia propunha25.
A face religiosa do movimento Mucker foi de forma livre e desligada dos padrões ofi-
ciais. Os mucker passaram a ter outra compreensão do mundo e a explicaram à sua maneira.
Isso foi mais fácil para os protestantes do que para os católicos, pois esses últimos tiveram
que romper com a Igreja Católica, que, de certa forma, desde 1849, estava solidificada pela
presença de padres formados em academia. Algumas comunidades protestantes somente
receberam os pastores com formação teológica somente duas décadas depois dos cristãos
ligados à Roma26. A negativa dos colonos em aceitar uma hierarquia eclesiástica revela a
insatisfação contra o novo modelo de Igreja que os missionários, com formação acadêmica,

24 DREHER, M. N. Conversas a partir da margem: dialogando sobre os Mucker. In: SIDEKUM, A.; GRÜTZMANN, I.; ARENDT, I. (Orgs.).
Campos múltiplos identidade, cultura e história. São Leopoldo: Nova Harmonia: Oikos, 2008, p. 64.
25 DREHER, M. N. (Orgs.). Imigrações e História da Igreja no Brasil, p. 122.
26 AMADO, Janaína. A Revolta dos Mucker. pág. 172.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 471


queriam impor aos colonos. Essa insatisfação contra as ortodoxias católica e protestante,
aliada à insatisfação pelo desnível socioeconômico, explodiu no conflito Mucker no seu
tempo, 1868 a 187427.
Jacobina era atenta às datas sagradas do cristianismo. Previra um sinal dos céus para
o dia de Pentecostes do ano, 1873. Isso era de conhecimento das autoridades, pois lhe foi
perguntado no seu interrogatório, pelo chefe de polícia, em 23 de maio de 1873. Estava
ciente de que iria acontecer algo no dia de Pentecostes, mas por motivos de estar sempre
inconsciente, não sabia dizer28. O filme “A Paixão de Jacobina”, do diretor Fabio Barreto,
interpretou o sinal que Jacobina esperava do céu, mostrando a queda de um meteoro, fa-
zendo um grande clarão na colônia29. Não houve celebração de Pentecostes nesse ano, pois
Jacobina e João Jorge estavam em Porto Alegre e as autoridades policiais cuidaram para
que a reunião não acontecesse, enquanto o casal estava em Porto alegre30. Mas o sinal da
natureza deixou a população muito apreensiva e mais crente nas palavras da líder.
Depois da liberação de João Jorge pela polícia e a alta hospitalar de Jacobina, o casal
retornou ao Ferrabraz, em 5 de julho de 1873, e tomou várias medidas que fortaleceu a
coesão interna do grupo. Uma delas foi a construção de uma nova casa31 que foi construí-
da, perto da casa de Maurer, em regime de mutirão. Também nessa época, passaram a
ser cobradas contribuições em dinheiro de todos os mucker, fixadas de acordo com o ren-
dimento de cada um. Com esse dinheiro, os mucker pagaram o material de construção da
nova casa, compraram armas para se defenderem e investiram nas três viagens de Maurer
ao Rio de Janeiro, clamando ao Imperador Dom Pedro II que os justificassem. As doações,
além de solidificarem a união entre os membros da seita, identificava-os como grupo, tinham
o aspecto de desprendimento, ou seja, de desprezo pela riqueza, padrão social que regia
colônia nessa época32.
O seguidores de Jacobina acreditavam ser uma associação de eleitos de Deus, bus-
cavam a perfeição e seguiam, literalmente, a Sagrada Escritura. Entravam no movimento
por livre escolha e aceitavam as normas do grupo, achavam que a sociedade estava se
desviando do caminho de Deus e Jacobina era líder escolhida para conduzi-los ao caminho
certo. Por isso, negavam-se a participar das ações comunitárias, como educação, política
e religião, acreditavam na justiça de Deus que, em breve, viria para subverter a sua ordem
27 Ibid., p. 124.
28 DOMINGUES, M. A nova face dos Muckers, p. 159.
29 BARRETO, Fábio. A paixão de Jacobina. Direção: Fábio Barreto; Produção: Lucy Barreto, Luiz Carlos Barreto, Maria da Salete, Gi-
sele Hiltl e Borba Sidnei. São Paulo: Filmes do Equador, Luiz Carlos Barreto Produções Cinematográficas e Visional do Brasil, 2002.
1 DVD (103 min), color.
30 DOMINGUES, op. cit., p. 180.
31 Essa casa foi chamada de “fortaleza” pelos detratores dos mucker. Na verdade, ela consistiu num grande salão de madeira, com
dimensões não superiores a 75m² (5x15), comuns nas áreas rurais nas comunidades mais velhas. A casa fora erguida sobre pilares,
a 50-60 cm do chão, coberto por telhas de barro, com janelas de todos os lados (Cf. GALVÃO, A. M.; ROCHA, V. G. Mucker fanáticos
ou vítimas? p. 76).
32 AMADO, J. A revolta dos Mucker, p. 229.

472 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


de excluídos para eleitos. A partir disso, pode-se denominar os mucker como seita, pois se
incluiriam na denominação que Comblin dá para esse tipo de movimento33
Para a líder, a religião era o objetivo mais importante. Ditara as normas do bem viver
aos seus adeptos, isso incluía a abstinência do álcool, a prática da solidariedade coletiva, o
perdão das dívidas para os membros da seita, o repartir os bens entre os irmãos. Propunha
uma revolução, a nova sociedade deveria ser diferente tanto da antiga como a que estava
em formação. A camada superior deveria ser a dos pobres, como mandava a Bíblia, não
a dos ricos como se apresentava. De uma sociedade de parentela, surgiu um grupo unido
não por laços consanguíneos, mas de escolhidos para um novo reino.34 Alguns parentes
foram deixados de lado, até perseguidos, pois a irmandade era o verdadeiro sinal de união
entre eles. Mandava que cada qual tratasse de prover-se de quanto fosse preciso para o
dia da adversidade. Os ímpios se ergueriam contra os eleitos e estes eram obrigados a
defenderem-se daqueles. Aos eleitos nada aconteceria, mesmo que fossem arrastados aos
tribunais, as leis mundanas não tinham poder sobre eles.35
Os adeptos de Jacobina defendiam que a comunidade deveria voltar aos primórdios
da colonização, logo depois da chegada em 1824. Nesse tempo, todos se ajudavam, viviam
como membros de uma só família, não só por terem vivido na Alemanha, professar a mes-
ma fé, mas por sentimentos de uma verdadeira comunidade cristã. Na sua congregação
religiosa, a orientação era clara: repartir o que tinham com os menos favorecidos, perdoar
as dívidas, praticar o mandamento do amor e preparar-se que para o dia do juízo. E isso
era estar muito próximo do seguimento das pregações de Jesus. Assim viviam os primeiros
cristãos na Palestina, no século I, depois da crucificação e morte de filho de Deus.

CONCLUSÃO

Esse movimento, denominado messiânico e protestante é, em muitos sentidos, caso


único na América Latina, tendo sido liderado por uma mulher. Nele há lugar para gente
oprimida social, econômica e religiosamente. Eles lutam contra a marginalidade social,
marginalidade econômica e contra marginalidade religiosa, pois a sua religião não estava
sendo considerada. Com a dizimação dos mucker remanescentes em agosto de 1874, hou-
ve a submissão das congregações religiosas, católica, protestante e muckerismo ao poder
da ortodoxia oficial das duas Igrejas. A religião dos colonos-pastores e colonos-padres foi
submetida ao poder dos padres e pastores, formados em academias, que passaram a tomar
conta da vida religiosa da colônia36

33 COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos vol. I: 1-12. 1. ed. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1988. p. 48.
34 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no mundo. 2. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1977, p. 311.
35 SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers. 2. ed. Porto Alegre: Selbach e Mayer, 1910. p. 77-78.
36 Ibid., p. 125.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 473


A essência da religião mucker era a pregação do evangelho no seu sentido primeiro.
Mesmo semialfabetizada, Jacobina conseguia ler a Bíblia e explicar aos colonos o seu sig-
nificado, tinha a sua hermenêutica de que os seus seguidores gostavam tanto: explicava
a Bíblia de maneira simples, com o falar do povo e, em forma de discussão, em que os
adeptos também pudessem dar a sua opinião. Quando Jacobina percebeu que as Igrejas
oficiais estavam ao lado dos poderosos, fez o esforço de afastar os seus adeptos para le-
va-los a viver como os primeiros cristãos viviam: muita oração, destemor, vida comunitária
e práticas do evangelho. As normas do movimento eram de acordo com as necessidades
de seu grupo e de acordo com os ensinamentos de Jesus, literalmente. Para a líder, ela
e seus adeptos eram bem-aventurados, enquadravam-se em cada Bem-aventurança do
capítulo V do evangelista Mateus, seu texto preferido. No momento, sofriam, mas no dia do
juízo seriam recompensados.
Jacobina e seus adeptos romperam com os laços sociais e religiosos, desligaram-se de
suas comunidades, seus filhos foram retirados da escola enquanto o currículo fosse emba-
sado na nova doutrina37. Eles julgavam a vida religiosa, bem como os seus representantes
degenerados38 e, por fim, viviam um estado de tensão escatológica, aguardando o advento
do reino de Deus, quando eles seriam glorificados e os ímpios condenados39.
Os mucker eram rezadores, gostavam de ler e interpretar a Sagrada Escritura e de
entoar hinos. Viam em Jacobina a pessoa capaz de conduzi-los a Deus. As palavras da
Bíblia necessitavam de serem entendidas no seu sentido original e, de igual forma, postas
na comunidade, praticando a caridade. Decorrente disso, havia as práticas que faziam parte
das normas do muckerismo como perdoar as dívidas de outrem, absterem-se de bebidas
alcóolicas, partilhar os bens, não cometer faltas... Buscavam a perfeição do ideal religioso
cristão, tomando o cuidado para não cometer faltas. Os adeptos buscavam, através do em-
penho pessoal, os meios objetivos de salvação. Sua líder intimava-os para que se preparas-
sem para o dia do juízo final e se conservassem fiel aos seus ensinamentos, era necessário
deixar os tumultos do mundo40, portanto, a caminhada, apesar de inserida ao grupo, exigia
o compromisso individual41.
A seita era o lugar das pessoas convertidas e esse lugar era a casa dos Maurer; Jacobina
dissera que a entrada na associação era de livre vontade de quem quisesse. As reuniões
aconteciam nesse lugar e quando a casa ficou pequena, foi construída uma maior. No dia
19 de julho de 1874, a queima dessa casa, comandada pelo coronel Genuíno, tornou-se um

37 DOMINGUES, M. A nova face dos Muckers, p. 159.


38 NOÉ, M. História do ano de 1874. In: DOMINGUES, M. A nova face dos Muckers. 1. ed. São Leopoldo: Rotermund, 1977, p. 386.
39 Na carta que Jacobina enviou para Lúcio Schreiner, seu primo, delegado de São Leopoldo, em 19 de maio de 1874, ela queixou-se
do comportamento de Schreiner para com os mucker e para com a sua família. Preveniu-o de que o dia do juízo final viria logo, ele
deveria tomar tento, pois não poderia precisar o último dia de sua vida. Felizes seriam os quem não precisassem temer os castigos
no dia de juízo final, porque nesse dia seriam julgados todas as pessoas e seus atos (DOMINGUES, op. cit., p. 242).
40 DOMINGUES, op. cit., p. 86.
41 COMBLIN, J. Atos dos Apóstolos vol. I: 1-12, p. 48.

474 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


ato simbólico de destruição do movimento e motivo de regozijo das autoridades e grande
parte da população42.
O revide do grupo, matando e incendiando propriedade de seus detratores, não pode
ser visto como prática cristã, pois Jesus não ordenou a violência. É certo de que de acordo
com o cristianismo, não é permitido matar os inimigos. Não matarás é o que diz o quinto
mandamento da Lei de Deus, seguido pela Igreja Católica Apostólica Romana, ensinado
por Deus através de Moisés (Ex. 2, 20,13). E o verdadeiro enviado de Deus, Jesus Cristo,
conforme Mt 6, 9-13, ensina também que se deve sempre perdoar. ...E perdoa-nos as nossas
dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores, ensinou Ele.
Muitos estudiosos, um deles, Luís Antônio de Assis Brasil, da testemunha ocular do
Movimento, Miguel Noé, e até do líder que comandou a dizimação dos dezessete mucker
remanescentes em 02 de agosto de 12874, Capitão Dantas, entre outros, não se intimidam
em dizer que se o grupo tivesse sido deixado em paz, o desfecho trágico não teria aconteci-
do, muitas pessoas (de ambos os lados) não teriam morrido: os mucker por quererem levar
adiante sua religião e os opositores por se sentirem no direito de destruí-los.
Mas o extermínio brutal da seita de Jacobina e seus seguidores pode levar a pensar que
o movimento foi nocivo à comunidade e trouxe somente consequências ruins. No entanto,
o historiador e pastor da Igreja Protestante, Dr. Martin Norberto Dherer, vê o movimento de
outro modo. Ele baseia-se nos relatos dos pastores que chegaram, logo após o desfecho
trágico do movimento. Segundo o pastor Rotermund, aparentemente, ele e seus colegas
puderam construir sobre a piedade que esteve no movimento mucker, um sentimento reli-
gioso que possibilitou o despertar do Protestantismo, na colônia, na fase pré-sinodal, base
para uma face da atual Igreja Eclesial de Confissão Luterana do Brasil43.

REFERÊNCIAS
1. AMADO, Janaína. A revolta dos Mucker. 2. ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2002.

2. BARRETO, Fábio. A paixão de Jacobina. Direção: Fábio Barreto; Produção: Lucy Barreto, Luiz
Carlos Barreto, Maria da Salete, Gisele Hiltl e Borba Sidnei. São Paulo: Filmes do Equador, Luiz
Carlos Barreto Produções Cinematográficas e Visional do Brasil, 2002. 1 DVD (103 min), color.

3. BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição rev. e ampl. São Paulo: Paulus, 2002.

4. BIEHL, J. G. A guerra dos imigrantes: o espírito alemão e o estranho Mucker no Sul do Brasil.
In: Psicanálise e Colonização: leituras do sistema social no Brasil. Porto Alegre: Artes Ofício,
1999. p. 148-168.

42 AMADO, J. A revolta dos Mucker, p. 296.


43 DREHER, M. N. O movimento Mucker na visão de dois pastores evangélicos. Protestantismo em Revista, ano 02, n. 01, p. 36-53,
maio.-ago. 2003. Disponível em: <http://www.est.edu.br/nepp2002-2003©Copyright>. Acesso em: 05 jan. 2013.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 475


5. BODANZKY, Jorge. Os Mucker. Direção: Jorge Bodanzky e Wolf Gauer; Produção: Jorge
Bodanzky, Otto Engel e Wolf Gauer. Brasil: Stopfilm e Zweites Deutsches Fernsehen (ZDF).
1978. 1 DVD (105 min), mono, color.

6. COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos vol. I: 1-12. 1. ed. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo:
Sinodal, 1988.

7. DANTAS, F. C. de Santiago. Ligeira notícia sobre as operações militares contra os Muckers.


Rio de Janeiro: [s. e.], 1877.

8. DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e circunstâncias. Um estudo sobre os Mucker e seu
tempo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1996.

9. DOMINGUES, Moacyr. A nova face dos Mucker. 1. ed. São Leopoldo: Rotermund, 1977.

10. DREHER, Martin N. Igreja e Germanidade. 1. ed. São Leopoldo: Sinodal/EST/EDUCS, 1984.

11. _______. (Org.). Imigrações e História da Igreja no Brasil. 1. ed. Aparecida: (S.P): Santuário,
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12. _______. O movimento Mucker na visão de dois Pastores Evangélicos. Protestantismo em


Revista, ano 02, n. 01, p. 36-53, maio.-ago. 2003. Disponível em: <http://www.est.edu.br/
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15. DREHER, Martin Norberto; FISCHER, Joachim. Peregrinação: estudos em homenagem a Jo-
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16. FABRIS, Rinaldo. Jesus de Nazaré história e interpretação. 1. ed. São Paulo: Loyola, 1988.

17. _______. Pelos caminhos de Jacobina: memória e sentimentos (res)significados. Tese (Dou-
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18. GIRARD, René. O bode expiatório. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2004.

19. MAURER, Jacobina. Carta de Jacobina Maurer ao Sr. Mathias Schroeder, residente em Ma-
rata. Publicada na Revista do Instituto Histórico Brasileiro. In: PETRY, Leopoldo. O episódio
do Ferrabraz; os mucker. 2. ed. São Leopoldo, 1966.

20. NOÉ, Miguel. História do ano de 1874. In: DOMINGUES, Moacyr. A nova face dos Mucker. 1.
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21. PETRY, Leopoldo. O episódio do Ferrabraz: os Muckers. 2. ed. São Leopoldo: Rotermund. 1966.

476 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


22. RABUSKE, Arthur (SJ). A contribuição teuta à Igreja Católica no Rio Grande do Sul. Teoco-
municação, Porto Alegre, T. 7, n. 5; 35-38, p. 194-214, 1977.

23. SCHULTZ, A. Descrição cronológica do episódio Mucker. Protestantismo em Revista, São


Leopoldo, v. 02, p. 27-36, jan.-dez. 2003. ISSN 1678 6408. Disponível em: <http://www3.est.
edu.br/nepp/revista/002/ano02n1.pdf>. Acesso em: 30 set. 2012.

24. SCHULTZ, Adilson. Cartas de Jacobina e documentos do episódio Mucker. Protestantismo


em Revista, São Leopoldo, v. 02, jan./dez. 2003, p. 27-36. ISSN 1678 6408. Disponível em:
<http://www3.est.edu.br/nepp/revista/002/ano02n1.pdf>. Acesso em: 30 set. 2012.

25. SCHUPP, Ambrósio. Os Muckers. 2. ed. Porto Alegre: Selbach e Mayer, 1910.

26. ZANON, Maria de Lurdes. O Movimento Mucker à luz do movimento do cristianismo primitivo
na concepção de Rinaldo Fábris e José Comblin. Dissertação de mestrado. Faculdade de
Teologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Março de 2013.

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 477


SOBRE O ORGANIZADOR

Prof. Me. Flávio Aparecido de Almeida


Possui graduação em Psicologia pelo Centro Universitário Faminas(2015), graduação em
Filosofia pela Faculdade Entre Rios do Piauí(2015), graduação em Pedagogia pela Faculdade
do Noroeste de Minas(2010), graduação em História pela Universidade do Estado de Minas
Gerais(2008), especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Universidade Candido
Mendes(2013), especialização em Gestão de Processos Educativos: Supervisão e Inspeção
Escolar pela Universidade do Estado de Minas Gerais(2009), especialização em Psicologia
Comportamental e Cognitiva pela FAVENI-FACULDADE VENDA NOVA DO IMIGRANTE(2020),
especialização em Ensino Religioso pela Faculdade do Noroeste de Minas(2010), especialização
em Psicologia Existencial Humanista e Fenomemológica pela FAVENI-FACULDADE VENDA
NOVA DO IMIGRANTE(2020), especialização em Psicologia Escolar e Educacional pela FAVENI-
FACULDADE VENDA NOVA DO IMIGRANTE(2020), especialização em Neuropsicopedagogia pela
Universidade Candido Mendes(2015), especialização em Educação Inclusiva, Especial e Políticas de
Inclusão pela Universidade Candido Mendes(2012), especialização em Docência do Ensino Superior
pela Universidade Candido Mendes(2016), especialização em Psicologia Social pela Faculdade
Mantenense dos Vales Gerais(2017), especialização em História do Brasil pela Universidade
Candido Mendes(2012), especialização em Gestão em Saúde Mental pela Universidade Candido
Mendes(2012), especialização em Neuropsicologia pela Universidade Candido Mendes(2016),
especialização em Ética e Filosofia Política pela Faculdade Mantenense dos Vales Gerais(2017)
e mestrado-profissionalizante em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória(2020).
Atualmente é Psicólogo Clínico do Consultório de Psicologia, Psicólogo do Abrigo Institucional
de Espera Feliz, Membro de comitê assessor do Núcleo de Pesquisa em Ensino e Tecnologia,
Professor de Pós-Graduação do Instituto Superior de Educação Verde Norte e Membro de corpo
editorial da Editora Científica Digital. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em
Psicologia Social. Atuando principalmente nos seguintes temas:Ciências das Religiões; Psicologia
da Religião, Subjetividade; Experiencia Religiosa, Coping religioso; Qualidade de vida, Religião, Cultura
e Diversidade, Psicologia, Religião e Psicopatologia e Religião, Educação e Direitos Humanos.

478 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


ÍNDICE REMISSIVO

Criador: 123, 233, 234, 294, 305, 307, 357, 358,


A 364, 368, 373, 375

Aconselhamento: 101 Crise: 193

Adolescente: 31 D
Amor: 65, 106, 110, 244, 278, 310 Devoção: 271

Antepassados: 380, 392 Diabo: 304, 434, 435, 436, 437, 438, 439, 440,
441, 442, 443, 444, 445
Apocalipse: 68, 441
Dialética: 208
Aprendizagem: 132
Diálogo: 149, 237, 241, 244
Apropriação: 208
Dignidade: 228, 231, 370
Arquitetura: 447, 453, 461
Distanciamento: 207, 208, 209
B
Dom: 150, 220, 221, 321, 322, 323, 324, 325,
Bíblia: 63, 73, 103, 110, 112, 115, 117, 118, 154, 326, 333, 396, 397, 472
157, 248, 258, 259, 264, 267, 273, 276, 291, 342,
354, 358, 364, 373, 375, 435, 436, 437, 439, 443, Dostoiévski: 301, 302, 303, 304, 305, 306, 307,
444, 450, 455, 457, 458, 459, 469, 473, 474, 475 308, 309, 310, 311, 312, 313, 316, 440

Bodhisattva: 43, 44, 164 E


Buda: 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 174, 175, 176, Ecologia: 359, 360, 363, 364, 376
177
Educação: 76, 121, 133, 135, 136, 145, 148,
C 149, 150, 151, 248, 250, 251, 268, 269, 358,
360, 361, 362, 376, 377, 422
Calvinismo: 447, 449, 450, 460, 461
Ensino: 132, 133, 134, 135, 136, 138, 141, 142,
Catequese: 347, 352, 354 143, 145, 146, 148, 149, 151, 253

Ciências: 58, 83, 113, 132, 133, 134, 136, 138, Esperança: 236, 237, 377
141, 144, 145, 148, 149, 150, 151, 294, 295,
299, 366, 396, 399, 402, 405, 409, 411, 412, Espírito: 15, 36, 73, 113, 116, 149, 155, 181,
418, 419, 420, 421, 422 182, 221, 222, 223, 224, 225, 226, 282, 283,
284, 307, 309, 314, 343, 344, 345, 353, 442,
Compreensão: 208 456, 457, 465
Comunidade: 181, 190, 250, 252, 258, 259, Espiritualidade: 424, 433
260, 261, 262, 263, 264, 336, 352, 354, 463
Ética: 31, 66, 228, 234, 431
Cosmologia: 380, 390
Europa: 41, 42, 44, 45, 48, 50, 53, 88, 95, 96,
Crescimento na fé: 247 165, 303, 320, 321, 322, 397, 419, 443, 449,
459, 461, 471
Criação: 13, 228, 229, 360, 363, 365, 367, 372,
376, 377, 441 Evangélicos: 153, 476

479 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


Experiência: 13, 276, 347, 427, 451, 460 Meio Ambiente: 112, 376

F Memória: 13, 405

Fé: 112, 254, 257, 433, 460, 461 Mercado: 57

Filipenses: 101, 108 Metanoia: 61, 193

Formação Contínua: 246, 247 Mistério: 271, 272, 273, 274, 275, 276, 314

Fraternidade: 117, 121, 122, 243, 278 Mito: 76, 82, 85, 413

G Moderna: 461

Gênero: 399, 411, 412, 420, 422 Mucker: 463, 465, 466, 467, 469, 471, 472, 475,
476, 477
H
Mulher: 271, 274, 412
Helenismo: 68
N
Hermenêutica: 208, 209, 210, 212
Narrativas: 52, 337
Humano: 13, 203
Neopentecostais: 153
I
P
Imaginário: 76, 77, 84, 85, 412, 440
Paróquia: 179, 180, 185, 190
Imperialismo: 68
Paz: 123, 129, 130, 162, 237, 239, 240, 241,
Indígenas: 121, 228, 234 242, 245, 363

Individuação: 164 Penalização: 57

Individualismo: 336, 345 Pentecostais: 153

Inimigos: 278 Perdão: 122, 278

K Plágio: 41

Kénosis: 101, 105, 106, 110 Poder: 57, 231

L Poesia: 193, 196, 197, 199, 201, 202, 203, 205,


206
Línguas: 221
Populismo: 153
Literatura: 55, 68, 312, 315, 318, 336, 354, 434,
435, 436, 440, 441, 444, 445 Pós: 58, 59, 73, 113, 148, 149, 293, 299, 399,
402, 405, 411, 412, 420, 436, 445
Lúcifer: 435, 439, 440, 441, 442, 444, 445
Práxis: 112
Lulik: 379, 380, 381, 382, 383, 384, 385, 386,
387, 388, 389, 390, 392, 394, 395, 396, 397 Presente: 13

Luteranismo: 447, 449, 450, 460, 461 Presídio: 57

M Programas de Formação: 247

Mandato Cultural: 366 Psicoterapia: 424

480 Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar


R
Regime de Representações: 399

Religião: 58, 73, 87, 90, 98, 99, 113, 132, 133, 135, 136, 137, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150,
151, 176, 190, 237, 246, 272, 294, 295, 299, 300, 323, 327, 366, 379, 380, 381, 382, 384, 389, 398,
399, 402, 405, 409, 411, 412, 414, 418, 419, 420, 421, 422, 433
S
Salvação: 57, 237, 243

Saúde: 113, 121, 420, 424, 425, 426, 433

Seguimento: 336

Sequência Didática: 76

Símbolo: 447

Sincretismo: 327, 328, 399

Sistema Simbólico: 399

Sofrimento: 101

T
Tempo: 13, 19, 20, 22, 25, 149, 162, 195, 196, 197, 198, 211, 214, 215, 219

Teoliteratura: 435

Teologia: 73, 113, 144, 145, 148, 150, 180, 184, 185, 191, 220, 226, 268, 272, 302, 306, 307, 312,
316, 358, 372, 376, 377, 436, 440, 444, 445, 461, 462, 477

V
Violência: 87, 121, 235, 412

Ciências das Religiões: Uma Análise Transdisciplinar 481


editora científica

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