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Encontrar-se a si mesmo: o lugar como dispositivos de afetos

Em diversos momentos de sua obra Foucault trava um interessante debate, ainda


que de forma quase secreta, com a arquitetura, o urbanismo, a geografia e demais
disciplinas que priorizam o espaço como objeto de pesquisa. Noções como as de
“heterotopia”, ou a função arquitetural do “Panóptico”, exemplificam essa relação muitas
vezes subestimada que Foucault possuía com a espacialidade. Pois se é óbvio que há uma
presença forte do tempo e da histórica em Foucault, na noção de “acontecimento” por
exemplo, só agora que se começa a ser explorado o papel do espaço como trama teórica
nos pensamentos do autor francês.

De todo modo, trazer a ideia de espaço para o centro do debate requer certos
cuidados: entender que espaço não quer dizer somente espaço físico, empírico, mas tudo
aquilo que pode vir a se somar ao espaço (tanto físico quanto não-físico). Igualmente,
disso não se deve depreender que é no sujeito que se encontra o ponto fixo da análise: o
sujeito é uma parada, um ponto de congelamento, um instante de um fluxo contínuo que
se perde como um rio sem início ou fim. Nada dessas grandes teorias sobre o espaço, mas
sim a pequena teoria desses micro-espaços que formam nosso cotidiano.

Então, perguntamos, de modo pretensamente foucaultiano: como o espaço articula


essa multiplicidade de elementos os quais comumente se apresenta a ele? Isto é, pode o
espaço ser o campo de uma correlação de forças, de desejos e de verdades? Pode ele ser
o princípio de subjetivações? E dado que parece óbvio que haja relações de poder por
sobre o espaço, nos perguntamos, é possível o espaço como princípio de liberdade?

Recorremos então a três elementos que nos serão essenciais: lugar, dispositivo e
afetos. Deixemos de lado a noção de espaço, ainda marcada pela densidade e peso das
“Ciências duras”, para trazer à tona a noção de “lugar” – um misto de uma fenomenologia
ingênua (que ainda cabe usar) com uma metafísica embrionária (que se torna pois
inofensiva). O lugar, ao contrário do espaço, dificilmente é medido, quantificado,
catalogável analiticamente: ele comumente é apontado somente em referência a. O lugar
onde nasci, o lugar onde andei pela primeira vez, o lugar em que nos vimos, a ameixeira
como o lugar onde te vir dançar. Sempre um lugar, nunca o espaço.
Mas nem tudo é ingenuidade, claro: é preciso entender o lugar justamente como
multiplicidade de elementos que se articulam obedecendo uma lei, mas uma lei interna e
nômade, não uma jurisdição acabada e intransigente. Enquanto dispositivo, isto é,
enquanto conjunto de elementos heterogêneos, o lugar é marcado também pelo poder,
pelos regimes de verdade, e pela sujeição dos corpos. Pois nem tudo são flores no lugar:
esse lugar onde vi minha mãe morrer, esse lugar onde corpos são deitados nus no chão
frio, enquanto seu corpo é catalogado e despachado, esse lugar onde ninguém se importa
se alguém vive ou morre justamente por que é preço a pagar por nossa “segurança”. Esse
lugar onde se pensa, mas de acordo com o que os outros pensam. Esse lugar onde a
verdade aparece atravessada pelos ritos do poder que a constituem.

Mas enfim, os afetos, pois que o que faz um lugar não é só o que dele sabemos ou
o nele nos subjuga: em essência, é o que nele sentimos. Conscientemente ou não,
discursivamente ou não, visualmente ou não: não há lugar sem afetos, e principalmente
não há lugar que não produza afetos, pois é justamente isso que diz que lugar é esse. O
que é uma prisão, afinal? Um lugar que afeta, e afeta profundamente os corpos. O que é
uma procissão religiosa? Um lugar em movimento que põe para circular afetos
inexplicáveis. Primordialmente, o lugar afeta – é por sobre os afetos que o poder vai agir,
é no limite deles, é com eles, para eles e contra eles que o poder vai se instalar. Imaginar
um lugar sem afetos é imaginar um lugar que não existe. E na verdade, é impossível, pois
a própria imaginação faz questão de nos afetar enquanto imaginas esse lugar: a
imaginação como o último lugar possível.

Esses três conceitos então nos dão uma equação interessante: o lugar como
dispositivo de afetos. Isto é, o lugar como essencialmente um conjunto ordenado que
produz fluxos contínuos e descontínuos de elementos que afetam: afetividades. Parece
fácil de entender, mas esconde uma complexidade profunda. Marca um retrocesso e ao
mesmo tempo um avanço na cultura ocidental: enquanto que para os Chineses, um lugar,
qualquer lugar, é o espaço de penetração das almas dos antepassados (afetividade
familiar-nostálgico), ou para o Japão qualquer lugar pode ser marcado pelas divindades
(afetividade mítico-real), ou ainda para os árabes, qualquer lugar guarda em si uma beleza
única (afetividade estético-imaginário), para o ocidente qualquer lugar é somente um
elemento a mais numa cadeia economicamente produtiva: é terra para monocultura, é
jazida para escavar, é pasto para alimentar o gado, é rua a ser asfaltada – mas também é
casa a ser comprada, um quarto a ser mobiliado, uma cama para descansar depois de tanto
trabalhar.

Não é que não haja afetos envolvidos, pelo contrário, para o ocidente o lugar é
sempre extremamente afetivo: o que há, na verdade, é o domínio de um único afeto
possível. Ou melhor, o domínio de uma categoria de afetividade, usando a intuição de
Espinoza, no Ocidente só há espaço para afetos tristes, afetos negativos, que empurram
tudo para uma única direção. Uma verdadeira monocultura dos afetos.

Dito isso, nos propomos o seguinte: investigar duas formas de produção de afetos
diferentes. Primeiro, os afetos tristes, negativos, encapsulados pela ideia do medo de
perder-se num lugar. O medo de ser tragado, consumido, esquecido nesse lugar. É um
afeto triste, que nos consome a cada dia, que nos entrava, que nos paralisa, mas também
que nos faz correr. É um afeto que circula livremente, o mais livre dos afetos. É uma
afetividade que se transmuta, se desdobra, se adapta e sempre retorna – é um vírus para o
qual, parece, não possuímos anticorpos, vacina ou tratamento.

Mas há também outro afeto, tímido, pequeno, por vezes alienado e ultrapassado.
Afeto alegre, positivo, que parece se subsumir nas aglomerações do cotidiano. É a alegria
de se encontrar num lugar. De perceber que esse lugar é aquele lugar, o único lugar. Um
pouco como a cama dos pais, usando uma analogia de Foucault, por cima da qual pulamos
e nos alegramos, por tempo limitado, claro, enquanto nossos país não apareçam e
estraguem a brincadeira, mas ainda sim uma alegria de se encontrar nesse lugar – na
verdade, a alegria de encontrar-se a sim mesmo.

O medo de perder-se

Pois bem, o medo: o medo é um dos afetos mais antigos, talvez o mais antigo, que
nos cerca. Medo de ser morto, medo de passar fome, medo de perder quem amamos. É
um afeto que nos chega aos montes, servido numa bandeja de prata tecnológica e
midiática: tiroteios, corrupção, assassinatos. É um afeto que paralisa, mas que também
movimento. A economia principalmente: medo de recessão, medo da inflação. O que é a
bolsa de valores se não esse lugar mítico onde homens engravatados jogam com o medo
dos outros?

Mas ao lado desses grandes medos, há os medos pequenos: medo dos cantos
escuros, medo de um cômodo vazio, medo de uma rua deserta. Especialmente este último,
como lugar de incontáveis medos para quem cotidianamente expõe seu corpo. Uma rua é
um complexo de elementos diferencialmente dispostos: n elementos concorrem para
produzir afetos negativos. Um poste de luz que não funciona, uma rua não asfaltada ou
precariamente asfaltada, estreita e irregular.

Nos grandes centros urbanos, as ruas talvez sejam os maiores produtores desses
afetos tristes. É o que mais comumente oblitera a consciência e anula a subjetividade,
lançando-a contra o esquecimento, o apagamento, o perder-se. Justamente por que nela
estamos sempre imensamente vulneráveis, expostos, pelo menos aqueles de nós que
precisam estar na rua, passar por ela. Mas a rua não é o único grande produtor de medo:
há um outro lugar, ainda mais pérfido justamente por ser tão banal – a própria casa. O que
pode parecer cotidiano para alguns, constitui-se como uma imensa máquina de morte:
uma cozinha com facas, um quintal com arames, uma porta firme, paredes grossas. Todo
um jogo de elementos que fazem circular uma afetividade perigosa, produzida por
dispositivos de morte. Fala-se muito dos refugiados das grandes guerras, que tem que
abandonar seu país quando este se transforma numa gigantesca máquina de matar. Mas
pouco se fala, ainda que hoje já se fala bem mais, desses refugiados menores, que não
podem fugir ou esconder-se, para os quais a própria casa se tornou uma guerra – uma
guerra no entanto desbalanceada, pois que só um lado normalmente possui as armas, tanto
em sentido metafórico quanto literal.

Dentro de casa, o medo de perder-se na própria morte é não só uma conjectura


como por exemplo o medo de vir a ser assaltado é uma conjectura, que pode não se
realizar): é uma promessa pérfida que está em vias de se realizar. Pensemos nas grandes
aglomerações nas periferias, onde tudo concorre para ampliar esse medo: medo sanitário,
quando o esgoto joga sua imundice para dentro das casas; medo climático, quando uma
chuva invade e arrasta tudo; medo policial, quando pura e simplesmente são assassinados
covardemente pelo próprio Estado em troca de migalhas de uma pretensa segurança
pública. O que fazer quando sua comunidade inteira é transformada contra a sua vontade
e covardemente por cima dela, em um lugar que produz tanto medo?

O medo de perder-se num lugar provavelmente demanda muito mais do que texto
esteticamente bonitos ou denúncias politicamente duras para ser resolvido. Requer ação,
requer políticas públicas de qualidade, requer uma remodelação dessa máquina de matar
que se instalou a anos no país. Remodelação não, sua completa destruição!
Mas tristemente, e isso envergonha-me, só posso oferecer o que tenho: palavras.
Se fosse possível mudar tudo com palavras, destruir a imensidade de afetos tristes e pôr
em seu lugar uma miríade de afetividades alegres! Mas não o é, é só a ação real, de
indivíduos e coletividades reais que podem fazer isso. É sempre bom lembrar Marx, ainda
que por sobre aviso: não é o indivíduo mistificado, abstrato e romântico, com dores irreais
e pesadelos eloquentes que importa mudar – é o indivíduo real, força produtora da
sociedade, com seus medos de fome, de morrer, de perder tudo, com seu medo de ser
tragado numa vida sem sentido e padecer numa morte que ninguém se importa: é este o
indivíduo que é preciso salvar, e mais do que isso, é este indivíduo que precisa salvar-se!

A alegria de encontrar-se

Mas eis o que ofereço: uma barganha. Entregar essas palavras, e em troca requisito
a realidade que o leitor possui. Pois como autor, simplesmente não existo. Sou apenas
essa voz mental, sua voz, que dita essas palavras lidas dentro da cabeça de quem lê. O
real está com que consome estas palavras, e é desse real e somente dele que a mudança
há de vir. Pois então o que ofereço? Palavras para reencontrar-se a si mesmo num lugar.

Obviamente, todo lugar é sempre um lugar inacabado. Nas grandes cidades isso é
mais claro: sempre há uma construção em andamento, sempre há uma rua sendo
pavimentada, sempre há uma casa sendo reformada. Indo mais fundo, todo local está
sempre afetivamente em construção. Mesmo que ele aparente estar rigidamente fechado,
solidamente construído, cercado por afetos cristalizados – sempre há um pouquinho,
mínimo que seja, de abertura.

Isso por que que todo local é sempre retalho, feito de restos. O que a civilização
fez na verdade o capitalismo fez) é pintar por cima desses restos um logotipo qualquer.
Qualquer grande prédio é sempre o resto que foi escavado da terra, do aço e do concreto,
é o resto que foi tragado da energia, da agua, da vida. Se pensarmos por exemplo nas
grandes fazendas de monocultura, percebemos que ela é só uma grande aglomeração de
restos: o resto de uma terra que antes era fértil, povoada de uma diversidade viva. O que
sobrou foi o gado pastando ou plantas geneticamente modificadas. Enquanto lugar de
afetos, estes espaços subsume a própria vida, ou seja, a própria potência de existir, em
negatividade – com a promessa de, por meios econômicos, fazer a vida renascer em outro
lugar na forma de alimentação e consumo.
Mas como restos, os lugares sempre são quebra-cabeças: é possível desmontá-los,
remodela-los ou simplesmente virar as peças do avessa e ver surgir um outro desenho,
totalmente o contrário do primeiro. E esse desenho, por que é feito por nós, nos permite
enfim encontrarmo-nos. Em 1917, os camponeses russos viraram de cabeça para baixo o
enorme quebra-cabeça que era o império czarista, e por algum tempo encontraram-se a si
mesmo num lugar de afetos revolucionários. Em meio a uma pandemia devastadora,
moradores de favelas no Rio de Janeiro inverteram as peças do jogo, e a despeito de
qualquer intervenção estatal, transformaram o lugar onde vivem não só num espaço de
solidariedade, mas num circuito afetivo que realmente impôs à realidade a potência da
vida (afetividade biológica-sanitária). Não foi somente uma questão de discursos, de
abstrações: só se pode remodelar, reconfigurar ou destruir um circuito de afetos tristes,
por meio da construção real de indivíduos reais de um circuito alegre. E nesse processo,
esses indivíduos reais encontram a si mesmos, em seu destino histórico, como Marx
queria, claro, mas também e sua intimidade biológica, psicológica, emotiva, etc.: ou seja,
em sua própria afetividade.

***

Lembro que quando criança, eu e meu irmão construímos uma pequena cabana
com os restos que encontramos no quintal: restos de tijolos, restos de madeira, restos de
uma lona de plástico, restos de um tanque de água. Era uma cabana nada funcional: nada
ali estava pregado, amarrado ou preso de alguma forma – era tudo arrumado num frágil
equilíbrio, o melhor que podíamos fazer. Em poucas horas começa a chover. A água se
acumula na lona e ameaça levar abaixo o teto. As paredes de madeira e tijolos
precariamente equilibrados ameaçam tombar sobre si. Nesse meio tempo meu irmão
cansou da brincadeira e foi se abrigar em nossa casa real, nossa casa de Lei, digamos
assim. Eu permaneci ali, sentado observando a agua se acumular e as paredes balançarem.
Apesar da fragilidade da coisa toda, do espaço pequeno, da chuva que trazia o frio, apesar
de todo esse aparente desconforto, ali eu me sentia bem – alie eu havia encontrado meu
lugar, pela primeira vez em muito tempo: justamente por que havia sido eu, com minhas
mãos (e com a ajuda do meu irmão, claro, mas como ele abandonou a construção, me
sinto no direito de reivindicá-la para mim), que havia construído aquele lugar. Ali
circulavam meus afetos. Ali eu havia alegrado de me encontrar.

Anos depois, casado e com filho, vejo o pequeno Miguel brincar com uma grande
caixa de plástico vermelho (grande para a perspectiva dele claro). Usamos essa caixa para
guardar seus brinquedos. Mas vez ou outra ele derrama os brinquedos pelo chão, como
se eles fossem os verdadeiros restos, inverte a caixa de ponta cabeça e se esconde dentro
dela, como uma casa sem janelas ou portas. E ali permanece, até que se levanta e anda
pela casa com o corpo parcialmente dentro da caixa. Suspeito que é ali, naquele lugar,
que ele encontrou a si mesmo.

Por que talvez, todos os lugares sejam como minha cabana malfeita, ou a caixa
vermelha do meu filho: lugares que apesar de tudo somos nós, indivíduos reais e não um
destino inexorável, que construiu ou modelou. E cabe somente a nós, em nossa atividade
real, virar de ponta cabeça a caixa de brinquedos e construir um novo mundo – lugar de
afetos alegres e justos.

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