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Contra Capa

Em uma área de mata densa e coberta por


pântanos, charcos e brejos instalou-se, no
Mississípi, a família Padgitt, desde sua origem,
notória por feitos ilícitos: vários anos de
fabricação de uísque ilegal, contrabando, roubo,
suborno, prostituição e até assassinato.
Reservados e unidos, resguardavam sua
privacidade, sempre temerosos de que alguém se infiltrasse em seu
pequeno reino e interrompesse seus lucros consideráveis. Cuidadosos,
inteligentes, determinados e pacientes em suas maquinações, nunca
qualquer de seus membros fora acusado de crime algum.
Até que Danny Padgitt, o filho caçula, é preso pelo estupro e
assassinato da jovem e atraente viúva Rhoda Kassellaw, e consegue,
assim, aterrorizar o pacato condado de Ford.
ORELHA 1

Em 1970, um dos mais pitorescos jornais semanais do estado do


Mississípi, The Ford County Times, foi à falência. Para surpresa e
consternação de muitos, o jornal foi comprado por um jovem de 23
anos, Willie Traynor, que largara a universidade antes de concluir o
curso. O futuro do jornal parecia sombrio, até que uma jovem mãe é
brutalmente estuprada e assassinada por um membro da notória
família Padgitt. Willie Traynor noticia todos os detalhes macabros, e
seu jornal começa a prosperar.
O assassino, Danny Padgitt, é julgado num tribunal lotado, em
Clanton, Mississípi. O julgamento teve um final surpreendente e
dramático, quando o réu ameaçou se vingar dos jurados, caso fosse
condenado. Mesmo assim, foi considerado culpado e condenado a
prisão perpétua.
No Mississípi daquela época, porém, “prisão perpétua” não
significava necessariamente “perpétua”. Por isso, nove anos depois de
proferida a sentença, Danny Padgitt obteve livramento condicional.
Voltou, então, para o condado de Ford. E a retaliação começou.
ORELHA 2

JOHN GRISHAM nasceu no


Arkansas, em 8 de fevereiro de 1955.
Formado em direito pela
Universidade do Mississípi, a
atividade de advogado influenciou a
temática de seus livros, que já
tiveram mais de 100 milhões de
exemplares vendidos e foram
traduzidos para 31 idiomas. Vários
de seus romances tornaram-se filmes
de sucesso, como A firma, O dossiê
Pelicano, O cliente e O homem que fazia chover. Todos os seus livros
publicados no Brasil foram lançados pela Rocco. Entre eles, A câmara
de gás, A casa pintada, A confraria, A intimação, O sócio, O advogado, O
júri, O testamento, Esquecer o Natal, Nas arquibancadas e O rei das fraudes.
Foto de capa: Mary Kocol
JOHN GRISHAM

O ÚLTIMO JURADO

Tradução de
A. B. PINHEIRO DE LEMOS
PARTE UM
CAPÍTULO 1

DEPOIS DE DÉCADAS de paciente desídia e afetuosa negligência, The


Ford County Times foi à falência em 1970. A proprietária e diretora,
Miss Emma Caudle, tinha 93 anos e estava confinada a uma cama,
numa casa de repouso em Tupelo. O editor, seu filho, Wilson Caudle,
já estava na casa dos setenta anos. Tinha uma placa de metal na
cabeça, de um ferimento sofrido na I Guerra Mundial. Um círculo
perfeito de pele escura enxertada cobria a placa, no alto da testa longa
e inclinada. Durante toda a sua vida adulta, ele suportara o apelido de
Spot, a mancha. Spot fez isso. Spot fez aquilo. Aqui, Spot. Ali, Spot.
Em seus anos mais jovens, ele fazia a cobertura das assembleias
municipais, jogos de futebol americano, eleições, julgamentos, eventos
sociais da igreja, os mais diversos tipos de atividades no condado de
Ford. Era um bom repórter, meticuloso e intuitivo. Obviamente, o
ferimento na cabeça não afetara sua habilidade para escrever. Mas, em
algum momento depois da II Guerra Mundial, a placa aparentemente
se deslocou. O fato é que o sr. Caudle parou de escrever tudo, com
exceção de obituários. Adorava obituários. Passava horas absorvido
nos obituários. Escrevia sucessivos parágrafos de prosa eloquente,
detalhando a vida até dos mais humildes cidadãos do condado de
Ford. A morte de um cidadão rico ou proeminente era notícia de
primeira página, e o sr. Caudle aproveitava a oportunidade com o
maior entusiasmo. Ele nunca perdia um velório ou um funeral, nunca
escrevia qualquer coisa desfavorável sobre ninguém. No final, todos
eram contemplados com a glória. O condado de Ford era um lugar
maravilhoso para se morrer. E Spot era um homem muito popular,
embora louco.
A única crise real de sua carreira jornalística ocorreu em 1967, na
época em que o movimento dos direitos civis finalmente chegou ao
condado de Ford. O jornal nunca demonstrara o menor sinal de
tolerância racial. Nenhum rosto negro aparecia em suas páginas, a não
ser quando pertencia a algum criminoso conhecido ou suspeito. Não
havia qualquer notícia de casamento entre negros. Nem estudantes
destacados ou times de beisebol negros. Mas, em 1967, porém, o sr.
Caudle fez uma descoberta surpreendente. Acordou certa manhã para
a noção de que os negros também morriam no condado de Ford. Suas
mortes, contudo, não eram noticiadas da maneira apropriada. Havia
todo um mundo novo e fértil de obituários à sua espera. O sr. Caudle
começou, então, a navegar por águas perigosas e inexploradas. No dia
8 de março de 1967, uma quarta— feira, o Times tornou-se o primeiro
jornal semanal de propriedade de brancos a publicar o obituário de
um negro. De um modo geral, passou quase despercebido.
Na semana seguinte, ele publicou três obituários de negros. As
pessoas começaram a comentar. Na quarta semana, já havia um
boicote ao jornal, com assinaturas sendo canceladas e os anunciantes
retendo seu dinheiro. O sr. Caudle sabia o que estava acontecendo,
mas sentia-se impressionado demais com sua nova posição como
integracionista para se preocupar com questões tão triviais como
vendas e lucros. Seis semanas depois do obituário histórico, ele
anunciou na primeira página, em letras enormes, sua nova política.
Explicou para os leitores que publicaria o que bem quisesse; e se os
brancos não gostassem, então simplesmente cortaria seus obituários.
Morrer de uma forma apropriada é uma parte importante da vida
no Mississippi, tanto para brancos quanto para negros. A perspectiva
de partir para o repouso final sem o benefício de um dos gloriosos
obituários de Spot era mais do que os brancos podiam suportar. E
todos sabiam que ele era bastante louco para cumprir a ameaça.
A edição seguinte estava repleta de todos os tipos de obituários,
negros e brancos, todos em rigorosa ordem alfabética, em absoluta
dessegregaçao. Toda a edição foi vendida, e seguiu-se um breve
período de prosperidade.
A falência foi chamada de involuntária, como se as outras tivessem
voluntários ansiosos. O pedido de falência foi encabeçado por um
fornecedor de material gráfico de Memphis, a quem o jornal devia
sessenta mil dólares. Vários credores não recebiam qualquer
pagamento havia seis meses. O velho Security Bank estava executando
um empréstimo vencido.
Eu era novo, mas já ouvira os rumores. Estava sentado a uma mesa
na redação do Times, lendo uma revista, quando um anão de sapatos
de bico fino passou pela porta e pediu para falar com Wilson Caudle.
— Ele está na agência funerária — informei.
Era um anão arrogante. Percebi que tinha uma arma na cintura,
por baixo do blazer azul-marinho amarrotado. A posição da arma
tinha a clara intenção de fazer com que as pessoas reparassem. Era
bem provável que ele tivesse porte de arma, mas isso não era
realmente necessário no condado de Ford, não em 1970. Mais do que
isso, todos desdenhavam as permissões oficiais.
— Preciso notificá-lo sobre este documento — declarou o anão,
acenando com um envelope.
Eu não tinha a menor intenção de ser prestativo, mas é difícil ser
grosseiro com um anão.
— Ele está na agência funerária — repeti.
— Neste caso, deixarei com você.
Embora eu estivesse no jornal havia menos de dois meses, e apesar
de ter cursado uma universidade no Norte, já havia aprendido
algumas coisas. Sabia que os documentos positivos nunca eram
remetidos às pessoas daquele jeito. Eram despachados pelo correio,
enviados por um mensageiro ou entregues em mão, mas nunca
notificados. Por isso, eu sabia que o tal documento era uma ameaça
qualquer e não queria ter nenhuma participação na história.
— Não vou receber nenhum documento.
As leis da natureza exigem que os anões sejam dóceis, não-
combativos. Aquele não era exceção. A arma era um artifício. Ele
correu os olhos pela redação, mas sabia que seu caso era perdido.
Com um instinto para o dramático, tornou a guardar o envelope
no bolso e perguntou:
— Onde fica a agência funerária?
Indiquei o caminho e ele foi embora. Uma hora depois, Spot entrou
cambaleante pela porta, acenando com o documento e gritando,
histérico:
— Acabou! Acabou!
Continuou a lamentar-se, enquanto eu pegava a Petição de
Falência Involuntária. Margaret Wright, a secretária, e Hardy, o
linotipista e impressor, vieram da sala dos fundos e tentaram
confortá-lo. Spot sentou numa cadeira, o rosto nas mãos, cotovelos nos
joelhos, soluçando de uma maneira deplorável.
O documento dizia que o sr. Caudle devia comparecer ao tribunal
dentro de uma semana, em Oxford, para se encontrar com os credores
e o juiz. Seria, então, tomada a decisão se o jornal continuaria a ser
publicado, sob a orientação de um administrador designado pelo
tribunal. Dava para perceber que Margaret e Hardy estavam mais
preocupados com seus empregos do que com o sr. Caudle e seu
colapso nervoso, mas permaneceram bravamente ao seu lado, dando-
lhe tapinhas nas costas. Quando o choro cessou, ele se levantou
subitamente, mordeu o lábio e anunciou:
— Tenho de contar à mamãe.
Nós três trocamos olhares. Miss Emma Caudle deixara esta vida
anos antes, mas seu coração débil continuava a bater, apenas o
suficiente para o funeral ser adiado. Ela não sabia nem se se
importava com a cor da gelatina com que a alimentavam, e com
certeza se preocupava ainda menos com o condado de Ford e seu
jornal. Era cega, surda e pesava menos de quarenta quilos. Agora,
Spot queria discutir o problema da falência involuntária com ela.
Nesse momento, compreendi que ele também não estava mais
conosco.
Spot recomeçou a chorar e foi embora. Seis meses depois, eu
passaria a escrever o obituário.
Porque eu cursara a universidade e estava com a petição na mão,
Hardy e Margaret olharam para mim, esperançosos, a espera de um
conselho. Eu era jornalista, não advogado, mas disse que entregaria o
documento ao advogado da família Caudle. Seguiríamos o conselho
que ele desse. Os dois sorriram sem muito ânimo e voltaram ao
trabalho.
Ao meio-dia, comprei uma embalagem de seis cervejas na Quincys
One Stop, em Lowtown, o bairro negro de Clanton, e fui dar uma
longa volta em meu Spitfire. Era final de fevereiro, o calor inesperado
para a época. Fui para o lago. Especulei o que exatamente estava
fazendo no condado de Ford, Mississippi.

Fui criado em Memphis e estudei jornalismo em Syracuse, durante


cinco anos, até que minha avó cansou de pagar pelo que estava se
tornando uma educação prolongada. Minhas notas nada tinham de
extraordinárias, e ainda faltava um ano para me formar. Talvez um
ano e meio. Ela, BeeBee, tinha muito dinheiro, detestava gastá-lo, e
depois de cinco anos concluiu que já financiara o suficiente minha
oportunidade na vida. Quando cortou-me o dinheiro, fiquei muito
desapontado, mas não me queixei. Ou pelo menos não para ela. Era o
único neto, e sua herança seria um prazer algum dia.
Estudei jornalismo porque não sabia o que mais fazer. Nos
primeiros dias em Syracuse, aspirava a ser um repórter investigativo,
no New York Times ou Washington Post. Queria salvar o mundo pela
descoberta e denúncia da corrupção, abuso ecológico, esbanjamento
do dinheiro dos contribuintes pelo governo e a injustiça sofrida pelos
fracos e oprimidos. Havia Pulitzers à minha espera. Depois de um ano
desses sonhos elevados, assisti a um filme sobre um correspondente
estrangeiro que se aventura pelo mundo à procura de guerras, seduz
lindas mulheres e, de alguma forma, ainda encontra tempo para
escrever reportagens premiadas. Ele falava oito línguas, usava barba,
botas de combate, roupa engomada que nunca ficava amarrotada.
Deixei crescer a barba, comprei botas e roupas cáqui, tentei aprender
alemão, tentei sair com as garotas mais bonitas. Depois, quando
minhas notas iniciariam um lento declínio para os últimos da turma,
tornei-me fascinado pela ideia de trabalhar para um jornal de cidade
pequena. Não posso explicar essa atração, exceto pelo fato de que foi
mais ou menos nessa ocasião que Conheci e me tornei amigo de Nick
Diener. Ele era da região rural de Indiana, e havia décadas sua família
era proprietária do próspero jornal do condado. Ele guiava um
pequeno Alfa Romeo e sempre tinha dinheiro em abundância.
Nick era um estudante brilhante, que poderia se dar bem em
medicina, direito ou engenharia. Seu único objetivo, no entanto, era
voltar para Indiana e dirigir o jornal da família. Isso me deixava
aturdido, até que tomamos um porre uma noite, e ele me disse quanto
seu pai ganhava todos os anos com o pequeno jornal semanal, cuja
circulação era de seis mil exemplares. Era uma mina de ouro, disse ele.
Apenas as notícias locais, avisos de casamentos, eventos sociais da
igreja, estudantes premiados, cobertura de competições esportivas,
fotos de times de basquete, umas poucas receitas, uns poucos
obituários e páginas de anúncios. Talvez um pouco de política, mas
mantenha-se à distância dos assuntos controvertidos. E conte seu
dinheiro. O pai era milionário. Era um jornalismo fácil e descontraído,
sem muita pressão, com o dinheiro crescendo em árvores, segundo
Nick.
Isso me atraía. Depois do quarto ano, que deveria ser o último,
mas não estava nem perto, passei o verão fazendo um estágio num
pequeno jornal semanal nas Montanhas Ozark, em Arkansas. O
pagamento era uma porcaria, mas BeeBee ficou impressionada porque
eu estava empregado. Todas as semanas eu lhe enviava o jornal.
Escrevia pelo menos a metade das matérias. O
proprietário/diretor/editor era um velho e maravilhoso cavalheiro,
que sentia a maior satisfação por ter um repórter que queria escrever.
Ele era muito rico.
Depois de cinco anos em Syracuse, minhas notas eram
irrecuperáveis e o poço secou. Voltei a Memphis, visitei BeeBee,
agradeci por seus esforços e disse que a amava. Ela me aconselhou a
arrumar um emprego.
Na ocasião, a irmã de Wilson Caudle vivia em Memphis. Acabou
conhecendo BeeBee em uma daquelas festas de bebedoras de chá
quente. Depois de alguns telefonemas, fiz as malas e parti para
Clanton, Mississippi, onde Spot me esperava com alguma ansiedade.
Depois de uma hora de orientação, ele me deixou à solta no condado
de Ford.
Na edição seguinte do jornal, ele publicou uma notícia lisonjeira,
com uma foto, anunciando meu “estágio” no Times. Saiu na primeira
página. Quase nada acontecia naqueles dias.
A notícia continha dois erros terríveis, que me assediariam ao
longo dos anos. O primeiro e menos sério era a informação de que
Syracuse, pelo menos segundo Spot, era agora parte da Ivy League, o
grupo de universidades do nordeste dos Estados Unidos de grande
reputação acadêmica e prestígio social. Ele comunicou aos seus
escassos leitores que eu recebera minha educação de Ivy League em
Syracuse. Um mês inteiro transcorreu antes que alguém comentasse o
assunto comigo. Eu já começava a pensar que ninguém lia o jornal; ou,
pior ainda, os que liam eram idiotas rematados.
A segunda informação errada mudou a minha vida. Nasci Joyner
William Traynor. Até os doze anos, pressionei meus pais com
perguntas sobre o motivo pelo qual duas pessoas supostamente
inteligentes impuseram o nome de Joyner a um recém-nascido. A
história finalmente aflorou. Um dos dois — e ambos negaram a
responsabilidade - insistira em Joyner, como um ramo de oliveira para
algum parente hostil, que parecia ter muito dinheiro. Jamais Conheci
meu xará. E ele morreu na miséria, pelo menos para mim. Não
obstante, fiquei com o nome de Joyner pelo resto da vida. Quando me
matriculei em Syracuse, fui J. William, um nome um tanto imponente
para um garoto de dezoito anos. Mas o Vietnã, a agitação estudantil,
toda a rebelião e convulsão social convenceram-me de que J. William
parecia pomposo demais, um nome ligado ao sistema de poder. E me
tornei Bill.
Spot, em ocasiões diversas, chamou-me de Will, William, Bill, ou
mesmo Billy. Como eu respondia a todos estes nomes, nunca sabia
qual seria o seguinte. Na notícia, sob o meu rosto risonho, saiu meu
novo nome. Willie Traynor. Fiquei horrorizado. Nunca sequer
sonhara que alguém pudesse me chamar de Willie. Terminei o ensino
médio em Memphis e fui para a universidade no estado de Nova York
sem jamais ter conhecido alguém chamado Willie. Não era o tipo de
bom rapaz que poderia ser chamado assim. Guiava um Triumph
Spitfire e usava os cabelos compridos.
O que diriam meus companheiros de fraternidade em Syracuse se
soubessem? Como eu explicaria para BeeBee?
Depois de me esconder no apartamento por dois dias, tomei
coragem para confrontar Spot e exigir que fizesse alguma coisa. Eu
não sabia direito o que poderia ser, mas ele cometera o erro e
precisava dar um jeito de repará-lo. Ao entrar na redação do Times,
encontrei Davey Bigmouth Bass, o editor de esportes do jornal.
— Ei, um nome sensacional! — comentou ele.
Segui-o para sua sala, em busca de um conselho.
— Meu nome não é Willie.
— Passou a ser agora.
— Meu nome é Will.
— Todo mundo por aqui vai adorar. Um cara esperto do Norte, de
cabelos compridos e um pequeno carro esporte importado. Todos vão
achar que você é o máximo com um nome como Willie. Pense em Joe
Willie.
— Quem é Joe Willie?
— Joe Willie Namath.
— Ah, ele...
— Isso mesmo. É um ianque como você, da Pensilvânia ou algum
outro lugar parecido. Mas, quando foi para o Alabama, passou de
Joseph William para Joe Willie. As mulheres o assediavam em toda
parte.
Comecei a me sentir melhor. Em 1970, Joe Namath era
provavelmente o atleta mais famoso do país. Saí para dar uma volta
de carro e repeti várias vezes o nome “Willie”. Duas semanas depois,
o nome começava a pegar. Todos me chamavam de Willie, e pareciam
se sentir mais à vontade comigo porque eu tinha um nome simples.
Assegurei a BeeBee que era apenas um pseudônimo temporário.

O Times era um jornal muito fino. Compreendí no mesmo instante


que isso era um problema. Havia muitos obituários, poucas notícias e
ainda menos anúncios. Os empregados estavam descontentes, mas
mantinham-se discretos e leais. Os empregos eram escassos no
condado de Ford em 1970. Depois de uma semana, ficou patente, até
mesmo para meus olhos de noviço, que o jornal operava com prejuízo.
Os obituários são gratuitos... os anúncios não são. Spot passava a
maior parte do tempo em sua sala atravancada, cochilando de vez em
quando e ligando a todo instante para a agência funerária. Às vezes o
procuravam. As famílias podiam aparecer no jornal, horas depois do
último suspiro de Tio Wilber, para entregar uma narrativa longa e
floreada, escrita à mão, que Spot pegava e levava com toda a
delicadeza para sua mesa. Por trás da porta trancada, ele escrevia,
editava, pesquisava e reescrevia, até que o texto ficasse perfeito.
Ele me disse que eu podia fazer a cobertura de todo o condado. O
jornal tinha outro repórter geral, Baggy Suggs, um velho conservado
em álcool, que passava horas no tribunal, no outro lado da rua,
farejando algum escândalo e bebendo bourbon com um pequeno
bando de advogados fracassados, velhos demais, e quase sempre de
porre para continuarem no exercício da profissão. Como eu logo
descobriria, Baggy era preguiçoso demais para consultar fontes e
procurar qualquer notícia interessante. Não era excepcional que sua
notícia na primeira página fosse um relato insípido de uma disputa de
limites de terras ou de uma esposa que levara uma surra.
Margaret, a secretária, era uma sólida cristã, que dirigia o jornal,
embora fosse bastante esperta para deixar que Spot pensasse que era
ele quem mandava. Tinha cinquenta e poucos anos de idade e
trabalhava ali havia vinte anos. Era o rochedo firme, a âncora, e tudo
no Times girava ao seu redor. Margaret tinha a fala macia, era quase
tímida. Desde o primeiro dia sentiu-se completamente intimidada por
mim, porque eu era de Memphis e cursara uma universidade no
Norte durante cinco anos. Eu tomava cuidado para não me comportar
como alguém que passara pela Ivy League, mas mesmo assim queria
que aqueles mississippianos rurais soubessem que minha educação
fora magnífica.
Margaret e eu nos tornamos colegas de fofocas. Depois de uma
semana, ela confirmou o que eu já desconfiava... que o sr. Caudle era
mesmo louco, e que o jornal se encontrava de fato numa situação
financeira crítica. Mas ela garantiu que os Caudle tinham dinheiro de
família.
Anos passariam antes que eu compreendesse esse mistério.
No Mississippi, dinheiro de família não deve ser confundido com
riqueza. Nada tinha a ver com dólares ou outros ativos.
Dinheiro de família era um status, uma posição social alcançada
por alguém que era branco, recebera alguma instrução além do ensino
médio, nascera numa casa grande com uma varanda na frente de
preferência cercada por plantações de algodão ou soja, embora isso
não fosse obrigatório — , fora criado, em parte, por uma amada criada
negra chamada Bessie ou Pearl, em parte por avós corujas, que
outrora eram os proprietários ancestrais de Bessie - ou Pearl, escravos,
e que faziam preleções para os netos, desde o nascimento, sobre as
rigorosas graças sociais dos privilegiados. Extensas propriedades e
fundos de investimentos ajudavam um pouco, mas o Mississippi
estava repleto de pessoas de sangue azul n.i insolvência, mas que
haviam herdado o status de dinheiro de família. Não era algo que se
podia conquistar. Tinha de ser adquirido no nascimento.
Quando falei com o advogado da família Caudle, ele explicou, de
uma maneira um tanto sucinta, o verdadeiro valor de seu dinheiro de
família.
— Eles são mais pobres do que a pobreza — disse ele, enquanto eu
sentava na cadeira estofada em couro, no outro lado da mesa de
mogno, larga e antiga.
O advogado era Walter Sullivan, de um escritório de grande
prestígio, Sullivan & O’Hara. Prestígio no condado de Ford... com sete
advogados. Ele examinou o pedido de falência e discorreu sobre os
Caudle e o dinheiro que possuíam no passado, como haviam sido
insensatos ao destruírem um jornal outrora lucrativo. Era o advogado
da família havia mais de trinta anos. No tempo em que Miss Emma
comandava, o Times tinha cinco mil assinantes e páginas e mais
páginas de anúncios. Em nome dela, havia um certificado de depósito
bancário no Security Bank no valor de quinhentos mil dólares, apenas
para um dia de chuva.
Depois, o marido morrera e ela tornara a se casar, com um
alcoólatra local, vinte anos mais moço. Quando sóbrio, ele era
semianalfabeto, mas fantasiava-se como um poeta e ensaísta
angustiado. Miss Emma amava-o profundamente e o promovera a co-
editor, um cargo que ele usava para escrever longos editoriais em que
condenava tudo que se mexia no condado de Ford. Fora o começo do
fim. Spot detestava o padrasto. Os sentimentos eram mútuos. O
relacionamento alcançou o clímax numa das mais pitorescas brigas a
socos na história do centro de Clanton. Aconteceu na calçada na frente
do prédio do Times, na praça central, com a presença de uma multidão
aturdida. Os habitantes locais acreditavam que o cérebro de Spot, já
frágil, sofrerá lesões adicionais naquele dia. Pouco depois, ele passou
a escrever apenas os abomináveis obituários.
O padrasto acabou fugindo com o dinheiro da mulher. Miss
Emma, desolada, tornou-se uma reclusa.
— Foi outrora um grande jornal - declarou o sr. Sullivan. - Mas
olhe como está agora. Menos de mil e duzentas assinaturas, todo
endividado. Na falência.
— O que o tribunal fará?
— Tentará encontrar um comprador.
— Um comprador?
— Isso mesmo. Vai aparecer alguém para comprar. O condado
precisa de um jornal.
Pensei no mesmo instante em duas pessoas, Nick Diener e BeeBee.
A família de Nick enriquecera com o jornal semanal de seu condado.
BeeBee já era muito rica e tinha apenas um amado neto. Meu coração
começou a bater forte quando farejei a oportunidade. O sr. Sullivan
observava-me atentamente. Era evidente que ele sabia o que eu
pensava.
— Pode ser comprado por uma bagatela - comentou ele.
— Quanto? — perguntei, com toda a confiança de um jovem foca
de 23 anos, cuja avó era firme e decidida.
— Provavelmente cinquenta mil dólares. Vinte e cinco pelo jornal,
a outra metade para iniciar a operação. A maior parte das dívidas
pode ficar na massa falida. Você renegociaria os prazos e condições
com os credores de que precisar.
Ele fez uma pausa. Inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos
na mesa. As sobrancelhas grisalhas e espessas se contraíram, como se
o seu cérebro estivesse funcionando acima do limite normal.
— Pode ser uma verdadeira mina de ouro.
BeeBee nunca investira numa mina de ouro, mas depois de três
dias de incessante pressão deixei Memphis com um cheque de
cinquenta mil dólares. Entreguei-o ao sr. Sullivan, que depositou
numa conta de custódia, e solicitou ao tribunal a venda do jornal. O
juiz, uma relíquia que pertencia à cama ao lado de Miss Emma,
concordou com a maior benevolência e assinou uma ordem que me
tornava o novo proprietário de The Ford County Times.
São necessárias pelo menos três gerações para ser aceito no
condado de Ford. Independentemente do dinheiro ou da família, uma
pessoa não pode simplesmente se mudar para lá e contar com a
confiança de todos. Uma nuvem escura de suspeita paira sobre
qualquer recém-chegado, e eu não fui exceção. As pessoas ali são
muito efusivas, generosas e polidas, quase a ponto de serem
intrometidas em sua cordialidade. Acenam com a cabeça em
cumprimento e falam com todos que encontram nas ruas do centro.
Perguntam sobre sua saúde, comentam o tempo, convidam-no para
sua igreja. Correm para ajudar estranhos.
Mas não confiam realmente em você a menos que já tenham
confiado antes em seu avô.
Depois que se espalhou a notícia de que eu, um jovem e
inexperiente forasteiro de Memphis, comprara o jornal por cinquenta
mil dólares, talvez cem mil, ou até duzentos mil, uma grande onda de
fofocas sacudiu a comunidade. Margaret informava-me de tudo.
Porque eu era solteiro, havia uma possibilidade de que fosse
homossexual. Porque estudara em Syracuse, onde quer que ficasse
esse lugar, então era provável que fosse um comunista. Ou pior ainda,
um liberal. Porque eu era de Memphis, tinha a intenção subversiva de
provocar um embaraço para o condado de Ford.
Apesar de tudo isso, como todos admitiram entre si, com a devida
discrição, eu agora controlava os obituários! E, por isso, era alguém!
O novo Times estreou no dia 18 de março de 1970, apenas três
semanas depois que o anão apareceu com a intimação. Era quase três
centímetros mais grosso e tinha mais fotos do que jamais se publicara
num jornal semanal de condado. Tropas de escoteiros, as meninas que
faziam as mesmas coisas que os escoteiros e eram chamadas de
Brownies, times de basquete do ensino médio, clubes de jardinagem,
clubes do livro, clubes de chá, grupos de estudos da Bíblia, equipes de
softball [a versão mais leve do beisebol] de adultos, clubes cívicos.
Dezenas de fotos. Tentei incluir todas as almas vivas no condado. E as
mortas foram exaltadas como nunca antes. Os obituários eram
embaraçosamente longos. Tenho certeza de que Spot ficaria
orgulhoso, mas nunca mais tive notícias dele.
As notícias eram leves e alegres. Nenhum editorial. As pessoas
adoram ler sobre crimes. Por isso, no canto esquerdo inferior da
primeira página, lancei a seção Notícias Criminais. Por sorte, duas
picapes haviam sido roubadas na semana anterior. Noticiei esses
roubos como se o Forte Knox tivesse sido saqueado.
No meio da primeira página, havia uma foto do grupo do novo
regime: Margaret, Hardy, Baggy Suggs, eu, nosso fotógrafo, Wiley
Meek, Davey Bigmouth Bass e Melanie Dogan, uma estudante de
ensino médio que trabalhava no jornal em meio expediente. Eu me
sentia orgulhoso de minha equipe. Trabalhamos 24 horas por dia
durante dez dias. O primeiro número da nova fase do jornal foi um
sucesso. Rodamos cinco mil exemplares e vendemos tudo. Mandei
uma caixa com vários exemplares para BeeBee, que ficou bastante
impressionada.
Ao longo do mês subsequente, o novo Times foi lentamente
assumindo forma, enquanto eu me empenhava em determinar o que
queria que se tornasse. Qualquer mudança é sempre dolorosa na zona
rural do Mississippi, e por isso decidi que seria gradativa. O antigo
jornal estava falido, mas pouco mudara em cinquenta anos. Escrevi
mais notícias, vendi mais anúncios, incluí mais e mais fotos de grupos,
de intermináveis variedades. E trabalhava com afinco nos obituários.
Nunca me senti atraído por longas horas de trabalho. Mas esqueci
o relógio depois que me tornei dono do jornal. Era muito jovem e
muito ocupado para me sentir assustado. Tinha 23 anos, c por sorte,
por ter uma avó rica, tornara-me de repente o proprietário de um
jornal semanal. Se hesitasse e avaliasse a situação, se procurasse o
conselho de banqueiros e contadores, tenho certeza de que eles me
incutiriam um pouco de bom senso. Mas você não sente medo quando
tem 23 anos. Não tem nada, então não há nada a perder.
Calculei que levaria um ano para que o jornal se tornasse lucrativo.
E, a princípio, a receita aumentou lentamente. Depois, Rhoda
Kassellaw foi assassinada. Acho que é da natureza do negócio vender
mais jornais depois de um crime brutal, quando as pessoas querem
detalhes. Vendemos 2.400 exemplares na semana anterior à sua morte
e quase quatro mil na semana seguinte.
Não foi um assassinato comum.

O condado de Ford era um lugar tranquilo, habitado por pessoas


que eram cristãs ou alegavam ser. As brigas a socos eram comuns,
mas quase sempre entre homens das classes inferiores que
frequentavam os bares ordinários. Uma vez por mês, um branco
pobre e rude agredia o vizinho, ou talvez a própria mulher. A cada
fim de semana, havia pelo menos uma pessoa ferida a faca entre os
negros. A morte raramente era uma consequência desses episódios.
Fui dono do jornal durante dez anos, de 1970 a 1980. Nesse
período, noticiáramos poucos assassinatos no condado de Ford.
Nenhum foi tão brutal quanto o de Rhoda Kassellaw; nenhum foi tão
premeditado. Trinta anos mais tarde, ainda penso a respeito todos os
dias.
CAPÍTULO 2
RHODA KASSELLAW RESIDIA na comunidade de Beech Hill, vinte
quilômetros ao norte de Clanton, numa modesta casa cinzenta de
alvenaria, numa estrada rural pavimentada e estreita. Os canteiros de
flores na frente da casa não tinham ervas daninhas e recebiam
cuidados todos os dias. Entre esses canteiros e a estrada, havia um
extenso gramado, sem falhas, sempre bem aparado. O caminho de
carro ao lado era coberto por pedras brancas. Havia patinetes, bolas e
bicicletas espalhadas por ali. As duas crianças pequenas estavam
sempre fora de casa, brincando. As vezes paravam para observar a
passagem de um carro.
Era uma casa rural aconchegante, perto dos vizinhos, sr. e sra.
Deece. O jovem que comprara aquela casa morrera num acidente
rodoviário em algum lugar do Texas. Aos 28 anos, Rhoda tornara-se
viúva. O seguro de vida do marido pagara o resto da casa e do carro.
O saldo fora investido para proporcionar uma modesta renda mensal,
que lhe permitia ficar em casa e cuidar das crianças. Ela também
passava horas fora da casa, cuidando de sua horta, plantando flores
em vasos, arrancando o mato, cobrindo os canteiros com adubo
vegetal.
Mantinha-se retraída. As velhas de Beech Hill consideravam-na
uma viúva exemplar, sempre em casa, com um ar triste, limitando as
ocasiões sociais a uma periódica visita à igreja. Mas deveria
comparecer com mais regularidade, sussurravam as comadres.
Pouco depois da morte do marido, Rhoda planejava voltar para a
família, que vivia em Missouri. Ela não era do condado de Ford, nem
o marido. Um emprego levara-os para lá. A casa já estava toda paga,
as crianças eram felizes, os vizinhos simpáticos e sua família
interessada demais no dinheiro do seguro de vida. Por isso, ela ficara,
sempre pensando em partir, mas nunca tomando a iniciativa.
Rhoda Kassellaw era uma linda mulher quando queria ser, o que
não acontecia com frequência. O corpo esbelto e atraente era em geral
oculto por um vestido largo de algodão, do tipo que não fica
amarrotado quando é pendurado para secar. Ou então por uma
enorme blusa de cambraia, que ela preferia quando cuidava do jardim
e da horta. Usava pouca maquiagem e mantinha os cabelos louros
penteados para trás e presos no alto da cabeça. Quase tudo o que
comia agora vinha da horta orgânica, e a pele tinha um brilho suave e
saudável. Uma viúva tão atraente, em circunstâncias normais,
causaria o maior alvoroço no condado. Ela, porém, se mantinha
apartada.
Depois de três anos de luto, no entanto, Rhoda começava a se
sentir irrequieta. Não estava se tornando mais jovem; os anos
passavam, inexoráveis. Era muito jovem e muito bonita para ficar em
casa nas noites de sábado, lendo histórias para as crianças na hora de
dormir. Devia haver alguma ação nas proximidades, embora
nenhuma, com toda a certeza, em Beech Hill.
Ela contratou uma jovem negra que morava ali perto para ficar
com as crianças. Saiu de carro e viajou durante uma hora, até a
fronteira com o Tennessee, onde existia, haviam lhe dito, alguns bares
e salões de dança respeitáveis. Talvez ninguém a conhecesse ali. Ela
gostava de dançar e flertar, mas nunca bebia e sempre voltava cedo
para casa. Tornou-se uma rotina, duas ou três vezes por mês.
Em breve, no entanto, a jeans se tornou mais justa, a dança mais
acelerada, as horas mais e mais longas. Ela começava a ser notada e
comentada nos bares e salões de dança no outro lado da fronteira
estadual.
Ele seguiu-a até em casa duas vezes, antes de matá-la. Era o mês de
março, e uma onda de calor trouxera a esperança de uma primavera
prematura. Era uma noite escura, sem lua. Bear, o vira-lata da família,
farejou-o quando ele se esgueirou para trás de uma árvore, nos fundos
da casa. Já se preparava para rosnar e latir quando foi silenciado para
sempre.
O filho de Rhoda, Michael, tinha cinco anos e a filha, Teresa, tinha
três. Vestiam pijamas de personagens da Disney, bem passados, e
fitavam os olhos brilhantes da mãe enquanto lia a história de Jonas e a
baleia. Ela ajeitou-os na cama em seguida, e deu um beijo de boa noite.
Quando Rhoda apagou a luz do quarto das crianças, o homem já
entrara na casa.
Uma hora depois, ela desligou a televisão, trancou as portas e
esperou por Bear, que não apareceu. O que não era surpresa, porque
ele tinha o hábito de perseguir coelhos e esquilos pelo bosque, e
acabava voltando tarde para casa. Bear dormiria na varanda dos
fundos e a acordaria quando uivasse de madrugada. Em seu quarto,
Rhoda tirou o leve vestido de algodão e abriu a porta do closet. Ele a
esperava lá dentro, no escuro. Agarrou-a por trás, cobriu-lhe a boca
com a mão grossa e suada, e disse:
— Tenho uma faca. Matarei você e as crianças.
Com a outra mão, ele suspendeu uma lâmina reluzente,
sacudindo-a diante dos olhos de Rhoda.
— Entendeu? — sussurrou-lhe o homem no ouvido.
Ela tremeu e conseguiu balançar a cabeça. O homem empurrou-a
para o chão do closet atravancado, de barriga para baixo. Puxou as
mãos de Rhoda para as costas. Pegou uma echarpe marrom de lã que
uma velha tia lhe dera de presente e passou-a em torno do rosto de
Rhoda, bruscamente.
— Não faça nenhum barulho, ou retalho as crianças.
Depois que a venda estava firme no lugar, ele agarrou-a pelos
cabelos, obrigou-a a levantar e arrastou-a para a cama. Encostou a
ponta da faca no queixo de Rhoda e disse:
— Não lute contra mim. A faca está bem aqui.
Ele rasgou a calcinha e o estupro começou. Queria ver os olhos de
Rhoda, aqueles lindos olhos que contemplara nos salões de dança.
Pagara-lhe drinques e dançara com ela, duas vezes. Quando tentara
um avanço, ela o repelira. Tente me rejeitar agora, meu bem,
murmurou ele, em voz bastante alta para que Rhoda ouvisse.
O homem e a garrafa de Jack Daniels haviam passado três horas
juntos, para tomar coragem. Agora, o uísque deixava-o entorpecido.
Seus movimentos eram lentos, sem qualquer precipitaçao, e ele
desfrutava cada segundo. Emitiu os grunhidos de satisfação de um
homem de verdade conquistando e obtendo o que queria.
O cheiro de uísque e suor deixaram-na nauseada, mas ela sentia-se
apavorada demais para vomitar. Poderia enfurecê-lo, fazer com que
ele usasse a faca. À medida que passava a aceitar o horror daquele
momento, ela começou a pensar. Mantenha-se quieta. Não acorde as
crianças. E o que ele fará com a faca quando acabar?
Os movimentos do homem foram se tornando mais rápidos, os
murmúrios mais altos.
— Fique quieta, meu bem - sussurrava ele, a todo instante. -Ou
usarei a faca.
A cama de armação de ferro estava rangendo. Não era bastante
usada, pensou o homem. O barulho era demais, mas ele não se
importava.
Os rangidos da cama acordaram Michael, que acordou Teresa.
Saíram de seu quarto e avançaram pelo corredor escuro, para
descobrir o que estava acontecendo. Michael abriu a porta do quarto
da mãe, viu o estranho em cima dela e gritou:
— Mamãe!
Por um segundo, o homem parou. Virou a cabeça na direção das
crianças.
O som da voz do filho horrorizou Rhoda, que se ergueu num
movimento brusco, as mãos estendidas para o estuprador, agarrando
o que podia. Um punho cerrado acertou-lhe no olho esquerdo, um
golpe firme, que o deixou atordoado. Depois, ela arrancou a venda,
enquanto empurrava-o com as pernas. O homem deu-lhe um tapa e
tentou imobilizá-la de novo.
— Danny Padgitt! - gritou Rhoda, ainda se debatendo.
Ele desferiu outro tapa.
— Mamãe! — gritou Michael.
— Fujam, crianças!
Rhoda tentou berrar, mas estava quase emudecida pelos golpes do
estuprador.
(lale essa boca! — grunhiu Padgitt.
Fujam! — balbuciou Rhoda de novo.
As crianças recuaram, saíram em disparada pelo corredor,
atravessaram a cozinha e deixaram a casa para a segurança do bosque.
Na fração de segundo depois de a mulher ter gritado seu nome,
Padgitt compreendeu que não tinha opção, a não ser silenciá-la.
Golpeou-a duas vezes com a faca, em seguida pulou da cama e pegou
suas roupas.

O sr. e sra. Aaron Deece assistiam a uma emissora de televisão de


Memphis quando ouviram a voz de Michael chamando, cada vez
mais próxima. O sr. Deece foi se encontrar com o menino na porta da
frente. O pijama estava encharcado de suor e orvalho e os dentes
batiam tão forte que tinha dificuldade para falar.
Através da escuridão entre as duas casas, o sr. Deece avistou
Teresa correndo atrás do irmão. Ela quase que corria no lugar, como
se quisesse ir para uma casa, mas sem deixar a outra. Quando a sra.
Deece finalmente alcançou-a, ao lado da garagem de sua casa, Teresa
chupava o polegar, incapaz de falar.
O sr. Deece correu para seu escritório. Pegou duas espingardas,
uma para ele, outra para a esposa. As crianças estavam na cozinha,
chocadas ao ponto da paralisia.
— Ele machucou mamãe - repetia Michael sem parar.
A sra. Deece abraçou-os e garantiu que tudo ficaria bem. Ela olhou
para a espingarda que o marido pôs em cima da mesa.
— Fique aqui — murmurou ele, antes de sair de casa.
O sr. Deece não foi muito longe. Rhoda quase conseguiu alcançar a
outra casa, antes de arriar na relva úmida. Estava completamente nua,
coberta de sangue do pescoço para baixo. Ele pegou-a e carregou-a
para a varanda da frente. Gritou para que a esposa levasse as crianças
para o quarto nos fundos da casa. Não podia deixar que vissem a mãe
em seus últimos momentos de vida. Enquanto o sr. Deece a punha no
balanço, Rhoda sussurrou:
— Danny Padgitt... foi Danny Padgitt.
Ele cobriu-a com uma colcha e chamou a ambulância.
Danny Padgitt mantinha sua picape bem no meio da estrada,
guiando a 140 quilômetros horários. Estava embriagado e apavorado,
mas relutava em admiti-lo. Chegaria em casa em dez minutos e estaria
seguro no pequeno reino da família, conhecido como Ilha Padgitt.
Aquelas crianças haviam estragado tudo. Mas pensaria a respeito
disso amanhã. Tomou um longo gole da garrafa de Jack Daniels e
sentiu-se melhor.
Foi um coelho, um cachorro pequeno, ou algum outro animal, mas
quando saiu em disparada do acostamento ele teve um vislumbre e
reagiu da pior maneira possível. Num gesto instintivo, pisou no freio,
apenas por uma fração de segundo, porque não se importava com o
que atropelava e até gostava do esporte de morte na estrada. Só que a
pressão no pedal do freio foi forte demais. Os pneus traseiros ficaram
travados e a picape derrapou. Antes de sequer compreender, Danny
estava numa situação crítica. Deu uma guinada no volante, só que
para o lado errado. A picape saiu para o acostamento de cascalho,
onde disparou como um stock car na reta oposta. Deslizou para a vala,
capotou duas vezes e foi se chocar contra uma fileira de pinheiros. Se
ele estivesse sóbrio, teria morrido. Os bêbados, contudo, costumam
escapar vivos.
Ele saiu rastejando por uma janela quebrada. Passou um longo
tempo encostado na picape, contando os cortes e arranhões, avaliando
suas opções. Sentiu uma perna subitamente rígida. Ao subir a encosta
para a estrada, compreendeu que não conseguiria andar muito. Não
que precisasse.
As luzes o alcançaram antes que notasse a aproximação. O guarda
saiu do carro, avaliando a cena à luz de uma lanterna preta comprida.
Mais luzes piscando apareceram na estrada.
O guarda viu o sangue, sentiu o cheiro de uísque e pegou as
algemas.
CAPÍTULO 3
O RIO BIG BROWN desce indolente ao sul do Tennessee. Segue reto
como um canal artificial por cinquenta quilômetros, através do centro
do condado de Tyler, no estado do Mississippi. Cerca de três
quilômetros ao norte do limite do condado de Ford, o rio começa a se
contorcer e dar voltas. Quando deixa o condado de Tyler, mais parece
uma cobra assustada, enroscando-se em desespero, sem ir para lugar
nenhum. A água é densa e pesada, turva e lenta, o rio raso na maioria
dos trechos. O Big Brown não é conhecido por sua beleza. Areia, limo
e faixas de cascalho assinalam suas incontáveis curvas. Uma centena
de brejos e córregos alimentam-no com um suprimento inesgotável de
água em lento movimento.
Sua jornada pelo condado de Ford é breve. Forma um círculo
largo, em torno de oitocentos hectares, no canto nordeste do condado,
depois vai embora, voltando ao Tennessee. O círculo é quase perfeito
e praticamente delineia a formação de uma ilha. No último momento,
porém, o Big Brown desvia-se de si mesmo, deixando uma estreita
faixa de terra entre suas margens.
O círculo é conhecido como Ilha Padgitt, uma área de mata densa,
coberta de pinheiros, cauchos, olmos e carvalhos, uma miríade de
pântanos, charcos e brejos, alguns ligados, mas isolados na maior
parte. Pouco do solo fértil jamais foi preparado para o plantio. Nada
era colhido na ilha, exceto madeira e muito milho... para uísque ilegal.
E maconha, mas essa foi uma história posterior.
Na estreita faixa de terra entre as margens do Big Brown há uma
estrada pavimentada, entrando e saindo da área, sempre observada
por alguém. A estrada foi construída há muito tempo pelo condado,
mas bem poucos contribuintes ousaram usá-la.
Toda a ilha pertence à família Padgitt desde a Reconstrução,
quando Rudolph Padgitt, um carpetbagger do Norte, chegou ao Sul,
algum tempo depois da Guerra Civil, para descobrir que toda a terra
de primeira qualidade já fora ocupada. Ele procurara em vão, sem
nada encontrar de atraente. Até que deparou com a ilha, infestada de
cobras. No mapa, a área parecia promissora. Ele reuniu um bando de
escravos recém-libertados, que se empenharam em alcançar a ilha,
com armas e facões. Ninguém mais queria aquela terra.
Rudolph casou com uma prostituta local e começou a cortar
madeira. Como havia uma grande demanda de madeira depois da
Guerra Civil, ele prosperou. A local provou ser bastante fértil e logo
havia uma horda de pequenos Padgitts na ilha. Um de seus ex-
escravos aprendera a arte da destilação. Rudolph tornou-se um
plantador de milho que não comia nem vendia sua colheita; em vez
disso, usava-a para produzir o que em breve se tornaria conhecido
como um dos melhores uísques do chamado Deep South.
Durante trinta anos, Rudolph fabricou o uísque ilegal, até que
morreu de cirrose, em 1902. A essa altura, havia um enorme clã de
Padgitt habitando a ilha, todos muito eficientes no corte de madeira e
na produção do uísque ilegal. Havia meia dúzia de destilarias
espalhadas pela ilha, bem protegidas e escondidas, todas operando
com os equipamentos mais modernos.
Os Padgitt eram famosos por seu uísque, embora a fama não fosse
uma coisa que procurassem. Eram reservados e unidos, resguardando
sua privacidade, sempre com medo de que alguém pudesse se infiltrar
em seu pequeno reino e interromper seus lucros consideráveis.
Diziam ser madeireiros, e era um fato conhecido que produziam
madeira e eram bons nisso. A Padgitt Lumber Company ficava
bastante visível na estrada principal, perto do rio. Eles alegavam que
tinham negócios legítimos, eram contribuintes, com os filhos em
escolas públicas.
Durante as décadas de 1920 e 1930, quando o álcool era ilegal e a
nação estava sedenta, o uísque dos Padgitt não podia ser destilado
com rapidez suficiente. Era embarcado em barris de carvalho através
do Big Brown e transportado em caminhões para o Norte, podendo
chegar até Chicago. O patriarca, presidente e diretor de produção e
comercialização, era um velho guerreiro sovina, Clovis Padgitt, filho
mais velho de Rudolph e da local. Clovis aprendera desde cedo que os
melhores lucros eram aqueles sobre os quais não se tinha de pagar
impostos. Essa foi a lição número um. A número dois pregava a
mensagem maravilhosa de negociar apenas com dinheiro vivo. Clovis
era um homem prático e objetivo: dinheiro na mão e sem impostos.
Circulavam rumores de que os Padgitt tinham mais dinheiro do que o
tesourou estadual do Mississippi.
Em 1938, três agentes da Receita Federal atravessaram
furtivamente o Big Brown, numa chata alugada, à procura da fonte do
Old Padgitt. A invasão secreta da ilha era falha sob muitos aspectos, o
mais óbvio sendo a própria ideia original. Mas, por alguma razão, eles
escolheram a meia-noite para a travessia do rio. Foram esquartejados e
enterrados em covas profundas.
Em 1943, ocorreu um estranho evento no condado de Ford: um
homem honesto foi eleito xerife. Ou Alto Xerife, como ele costuma ser
conhecido. Seu nome era Koonce Lantrip, e não era tão honesto assim,
mas, pelos discursos de campanha, sem dúvida parecia. Prometeu
acabar com a corrupção, limpar o governo do condado, pôr na cadeia
os fabricantes e contrabandistas de bebidas ilegais, até mesmo os
Padgitt. Era um bom discurso, e Lantrip foi eleito por uma diferença
de oito votos.
Seus partidários esperaram e esperaram. Finalmente, seis meses
depois de assumir o cargo, ele reuniu seus ajudantes e cruzou o Big
Brown, pela única ponte, uma antiga estrutura de madeira que fora
construída pelo condado em 1915, por insistência de Clovis. Os
Padgitt às vezes usavam essa ponte na primavera, quando o rio estava
cheio. Ninguém mais tinha permissão para cruzá-la.
Dois dos policiais foram baleados na cabeça, e o corpo de Lantrip
nunca foi encontrado. Foi enterrado na margem de um pântano por
três negros dos Padgitt. Buford, o filho mais velho de Clovis,
supervisionou o enterro.
O massacre foi notícia de destaque no Mississippi por semanas. O
governo ameaçou enviar a Guarda Nacional. Mas a II Guerra Mundial
estava no auge, e o Dia-D logo atraiu a atenção de todo o país. De
qualquer forma, não restava muito da Guarda Nacional, e os poucos
elementos em condições de lutar não tinham qualquer interesse em
atacar a Ilha Padgitt. As praias da Normandia seriam mais
convidativas.
Com o nobre experimento de um xerife honesto para trás, o bom
povo do condado de Ford elegeu alguém da velha guarda. Seu nome
era Mackey Don Coley. Seu pai fora o Alto Xerife nos anos 20, quando
Clovis estava no comando da Ilha Padgitt. Clovis e o velho Coley
eram muito ligados. Era um fato conhecido que o xerife era um
homem rico porque o Old Padgitt tinha permissão para circular
livremente pelo condado. Quando Mackey Don anunciou sua
candidatura, Buford mandou-lhe cinquenta mil dólares em dinheiro.
Mackey Don ganhou por uma maioria esmagadora. Seu adversário
alegou ser honesto.
Havia uma convicção disseminada no Mississippi, embora jamais
expressa às claras, de que um bom xerife tinha de ser um pouco
desonesto para garantir a lei e a ordem. Uísque, prostituição e jogo
eram simplesmente fatos da vida. Um bom xerife devia ser bem
informado sobre esses assuntos, a fim de controlá-los da maneira
apropriada e proteger os cristãos. Como esses vícios não podiam ser
eliminados, cabia ao Alto Xerife coordená-los e sincronizar o fluxo
ordenado do pecado. Por seus esforços de coordenação, ele receberia
um pequeno extra dos fornecedores dessas iniquidades. O xerife
esperava por isso. A maioria dos eleitores esperava por isso. Nenhum
homem honesto podia viver de um salário tão humilde. Nenhum
homem honesto podia se movimentar incólume pelas sombras do
submundo do crime.
Durante a maior parte dos cem anos subsequentes à Guerra Civil,
os Padgitt possuíram os xerifes do condado de Ford. Compravam-nos
diretamente, com sacos de dinheiro. Mackey Don Coley, segundo
rumores, recebia cem mil dólares por ano e, durante os anos de
eleição, tinha o que precisasse. E eles eram generosos também com
outros políticos. Compravam discretamente e mantinham sua
influência. Pediam pouco; queriam apenas que os deixassem em paz
em sua ilha.
Depois da II Guerra Mundial, a demanda de uísque ilegal entrou
num firme declínio. Como gerações de Padgitt haviam sido educadas
para operarem à margem da lei, Buford e a família começaram a
diversificar para outras formas de comércio ilícito. Vender apenas
madeira era uma chatice, ainda por cima sujeita aos fatores de
mercado; e ainda mais importante, não geravam as pilhas de dinheiro
que a família esperava. Eles contrabandeavam armas, roubavam
carros, falsificavam, compravam e queimavam prédios para receber o
seguro. Durante vinte anos operaram um bordel de grande
movimento no limite do condado, até que foi misteriosamente
destruído por um incêndio, em 1966.
Eles eram criativos e dinâmicos, sempre tramando e procurando
por uma oportunidade, sempre esperando alguém para roubar. Havia
rumores, bastante incisivos às vezes, de que os Padgitt eram membros
da Máfia de Dixie, uma organização criminosa de brancos rurais,
muito ativa por todo o Deep South durante os anos 60. Esses rumores
nunca foram confirmados, e houve até quem contestasse, pois os
Padgitt eram fechados demais para partilharem seus negócios com
alguém. Mesmo assim, os ruídos persistiram por anos. Os Padgitt
eram fonte de intermináveis conversas nos bares e cafés em torno da
praça central de Clanton. Nunca foram considerados heróis locais,
mas eram sem dúvida lendários.
Em 1967, um jovem Padgitt fugiu para o Canadá, a fim de evitar a
convocação para o Vietnã. Passou pela Califórnia, onde experimentou
a maconha e descobriu que tinha gosto pela erva. Depois de uns
poucos meses como peacenik, ele voltou para casa, e foi se refugiar na
Ilha Padgitt. Levava dois quilos de maconha, que partilhou com os
primos. Todos ficaram também fascinados. Ele explicou que o resto do
país, a Califórnia em particular, puxava fumo adoidado. Como
sempre, o Mississippi estava pelo menos cinco anos atrasado na
tendência.
A maconha poderia ser cultivada sem grandes custos e depois
levada para as grandes cidades, onde a demanda era cada vez maior.
O pai dele, Gill Padgitt, neto de Clovis, percebeu a oportunidade. Não
demorou muito para que vários dos antigos milharais fossem
convertidos em plantações da cannabis sativa. Uma faixa de terra de
seiscentos metros foi aberta para uma pista de pouso. Os Padgitt
compraram um avião. Dentro de um ano, havia voos diários para os
arredores de Memphis e Atlanta, onde os Padgitt haviam instalado
sua rede. Para satisfação da família, e com sua ajuda, a maconha
finalmente tornou-se popular no Deep South.
A fabricação do uísque ilegal diminuiu de maneira considerável. O
bordel acabou. Os Padgitt tinham contatos em Miami e México. O
dinheiro entrava aos montes. Durante anos, ninguém no condado de
Ford tinha a menor ideia de que os Padgitt haviam se envolvido no
tráfico de drogas. E nunca foram apanhados. Nenhum Padgitt jamais
foi indiciado por qualquer crime relacionado às drogas.
Mais do que isso, nem um único Padgitt jamais fora preso. Cem
anos de fabricação de uísque ilegal, roubo, contrabando de armas,
jogo, falsificação, prostituição, suborno, até mesmo assassinato, sem
uma só prisão. Eles eram inteligentes, cuidadosos, determinados,
pacientes em suas maquinações.
Até que Danny Padgitt, o filho mais novo de Gill, foi preso pelo
estupro e assassinato de Rhoda Kassellaw.
CAPÍTULO 4
O SR. DEECE ME CONTOU, no dia seguinte, que deixou Rhoda no
balanço na varanda da frente, quando teve certeza de que ela havia
mesmo morrido. Foi para o banheiro, onde tirou as roupas e tomou
um banho de chuveiro. Viu o sangue de Rhoda descer pelo ralo.
Vestiu uma roupa de trabalho e esperou pela polícia e ambulância.
Vigiava a casa de Rhoda, com uma espingarda nas mãos, ansioso em
atirar em qualquer coisa que se mexesse. Não houve, porém, qualquer
movimento, nenhum som. A distância, já podia ouvir uma sirene.
Sua esposa permaneceu com as crianças no quarto dos fundos, na
cama, por baixo de um cobertor. Michael perguntava pela mãe a todo
instante e queria saber quem era aquele homem. Teresa, no entanto, se
encontrava traumatizada demais para falar. Conseguia apenas emitir
um gemido baixo, enquanto chupava os dedos e tremia, como se
estivesse morrendo de frio.
Não demorou muito para que a Benning Road estivesse repleta de
veículos com luzes vermelhas e azuis faiscando. O corpo de Rhoda foi
fotografado por todos os ângulos, antes de ser removido. Sua casa foi
isolada pelos policiais, comandados pelo próprio xerife Coley. O sr.
Deece, ainda empunhando sua espingarda, prestou depoimento para
um investigador, depois para o xerife.
Pouco depois de duas horas da madrugada, um policial chegou
com a notícia de que um médico na cidade fora avisado, e sugerira
que as crianças fossem levadas até lá, para que pudesse examiná-las.
Foram no banco traseiro de uma radiopatrulha, Michael agarrado no
sr. Deece, Teresa no colo de sua esposa. No hospital, tomaram um
sedativo fraco. Ficaram num quarto semi-particular, onde as
enfermeiras lhes serviram biscoitos e leite, até que finalmente
adormeceram. Mais tarde, ainda naquele dia, uma tia chegou do
Missouri e levou-os.

Meu telefone tocou segundos antes da meia-noite. Era Wiley Meek,


o fotógrafo do jornal. Ouvira a notícia no rádio da polícia e já estava
na frente da cadeia, esperando para emboscar o suspeito. Havia
policiais por toda parte, informou ele, num excitamento que mal
podia controlar. Depressa, exortou-me ele. Esta pode ser a maior de
todas as notícias.
Na ocasião, eu morava em cima de uma garagem, ao lado de uma
mansão vitoriana em decadência, mas ainda grandiosa, conhecida
como Hocutt House. Era ocupada pelos idosos Hocutt, três irmãs e
um irmão, que se revezavam sendo meu senhorio. A propriedade de
dois hectares ficava a poucos quarteirões da praça central de Clanton.
A mansão fora construída um século antes, com dinheiro de família. O
terreno era repleto de árvores, canteiros de flores invadidos por ervas
daninhas, um mato denso em muitos trechos e animais em quantidade
suficiente para abastecer uma reserva de caça. Coelhos, esquilos,
gambás, guaxinins, um milhão de pássaros, uma variedade
assustadora de cobras pretas e verdes — todas não-venenosas,
segundo me garantiram —, e dezenas de gatos. Mas nenhum
cachorro. Os Hocutt detestavam cachorros. Cada gato tinha um nome,
e uma cláusula verbal no meu contrato obrigava-me a respeitar os
gatos.
E eu os respeitava. O apartamento de quatro cômodos em cima da
garagem era espaçoso e limpo. Custava-me a ridícula quantia de
cinquenta dólares por mês. Se queriam seus gatos respeitados por esse
preço, não havia qualquer problema para mim.
O pai deles, Miles Hocutt, fora um excêntrico médico em Clanton
por décadas. A mãe morrera no parto da última criança. Segundo a
lenda local, o dr. Hocutt se tornara muito possessivo em relação aos
filhos depois de sua morte. Para protegê-los do mundo, inventou uma
das maiores mentiras já contadas no condado de Ford. Explicou às
crianças que a insanidade estava enraizada na família. Por isso, não
deviam casar, pois poderiam gerar alguma variedade hedionda de
criança retardada. Os filhos idolatravam-no e acreditaram nele. É bem
provável que já estivessem expostos a algum desequilíbrio. O filho,
Max Hocutt, tinha 81 anos quando me alugou o apartamento. As
gêmeas, Wilma e Gilma, estavam com 77 anos, enquanto Melberta, a
caçula, tinha 73 anos e era completamente insana.
Foi Gilma, se não me engano, quem espiou da janela da cozinha
quando desci a escada de madeira, à meia-noite. Um gato dormia no
último degrau, bem na minha frente, mas tratei de contorná-lo, com o
devido respeito. Embora minha vontade fosse a de dar-lhe um chute
tão forte que o jogaria na rua.
Havia dois carros na garagem. Um era meu Spitfire, a capota
levantada para impedir a entrada dos gatos. O outro era um Mercedes
preto, comprido e lustroso, com facões de açougueiro pintados nas
portas, em vermelho e branco. Por baixo dos facões, havia telefones,
pintados de verde. Alguém dissera uma ocasião ao sr. Max Hocutt
que poderia abater do imposto, na totalidade, o custo de um carro
novo, qualquer que fosse, se o usasse para o trabalho e o logotipo de
sua atividade estivesse pintado nas portas. Ele comprou um Mercedes
novo e tornou-se um afiador de facas. Dizia que carregava as
ferramentas na mala do carro.
O carro tinha dez anos e andara menos de doze mil quilômetros. O
pai também pregava que era um pecado as mulheres guiarem. Por
isso, o sr. Max era o motorista.
Desci com o Spitfire pelo caminho de cascalho e acenei para Gilma,
ainda espiando de trás da cortina. Ela recuou num movimento brusco,
desaparecendo. A cadeia ficava a seis quarteirões de distância. Eu
dormira apenas por meia hora.
Tiravam as impressões digitais de Danny Padgitt quando cheguei.
O gabinete do xerife ficava na parte da frente da cadeia. Estava
atulhado de policiais, reservas e bombeiros voluntários, todos com
acesso a um uniforme e à frequência de rádio da polícia. Wiley Meek
esperava-me na calçada.
— E Danny Padgitt! - gritou ele, no maior excitamento.
Fiquei imóvel por um instante, tentando pensar.
— Quem?
— Danny Padgitt, da ilha!
Eu estava no condado de Ford havia menos de três meses e ainda
não encontrara nenhum Padgitt. Como sempre, eles mantinham-se
retraídos. Mas já ouvira vários episódios da lenda da família, com
muito mais prometido. Contar histórias dos Padgitt era uma forma
comum de diversão no condado de Ford.
— Bati algumas fotos sensacionais no momento em que o tiraram
do carro - acrescentou Wiley. - Tinha sangue por todo o corpo!
Grandes fotos! A mulher morreu!
— Que mulher?
— A mulher que ele matou. E estuprou também, segundo os
rumores.
Danny Padgitt, murmurei para mim mesmo, enquanto a
reportagem começava a se delinear. Tive o primeiro vislumbre da
manchete, sem dúvida a mais sensacional que o Times já publicara, em
muitos e muitos anos. O pobre Spot procurava se abster de publicar as
notícias mais chocantes. O pobre Spot fora à falência. Eu tinha outros
planos.
Entramos e olhamos ao redor, procurando pelo xerife Coley. Já o
encontrara duas vezes, durante minha breve permanência no Times.
Ficara impressionado com sua natureza polida e efusiva. Ele tratava
todo mundo de “senhor” e “senhora”, sempre sorrindo. Era xerife
desde o massacre de 1943, o que significava que já avançara bastante
pela casa dos setenta anos. Era alto e magro, sem a barriga estufada
obrigatória para a maioria dos xerifes sulistas. Aparentemente, era um
cavalheiro; e em nossos dois encontros eu me perguntara como um
homem tão simpático podia ser tão corrupto. Ele veio de uma sala nos
fundos, acompanhado por um guarda. Tratei de demonstrar minha
assertividade, avançando ao seu encontro.
— Xerife, só algumas perguntas.
Não havia outros repórteres presentes. Seus homens - os policiais
de fato, os que só trabalhavam em ocasiões especiais, os que
sonhavam em ser agentes da lei, os amadores em uniformes feitos em
casa — se calaram e me lançaram olhares desdenhosos. Afinal, eu
ainda era o garoto rico e atrevido que conseguira de alguma forma
assumir o controle do jornal do condado. Era um forasteiro, sem
direito a me intrometer numa situação como aquela, sem direito a
fazer perguntas. O xerife Coley sorriu, como sempre. Parecia até que
aqueles encontros, por volta de meia-noite eram frequentes.
— Pois não, sr. Traynor.
A voz era arrastada, lenta, tranquilizadora. Um homem assim era
incapaz de dizer uma mentira, não é mesmo?
— O que pode nos dizer sobre o assassinato?
Os braços cruzados, ele ofereceu alguns dos elementos básicos no
jargão da polícia:
— Sexo feminino, idade 31 anos, foi atacada em sua casa, na
Benning Road. Estuprada, esfaqueada, assassinada. Não posso dar o
nome antes de falar com os parentes.
— E já efetuou uma prisão?
— Já, sim, senhor, mas não posso dar detalhes por enquanto. Dê-
nos mais umas poucas horas. Estamos investigando. Isso é tudo, sr.
Traynor.
— O rumor é de que mantém Danny Padgitt sob custódia.
— Não lido com rumores, sr. Traynor. Não em minha profissão. E
na sua também não se deve.
Wiley e eu fomos para o hospital. Farejamos durante uma hora,
sem descobrir nada que pudéssemos publicar. Fomos para o local do
crime, na Benning Road. Os policiais haviam isolado a casa. Uns
poucos vizinhos agrupavam-se em silêncio por trás da fita amarela da
polícia, junto da caixa do correio. Ficamos juntos, atentos, mas quase
nada ouvimos. E nos afastamos, depois de alguns minutos olhando
para a casa.
Wiley tinha um sobrinho que era ajudante eventual do xerife.
Fomos encontrá-lo guardando a casa dos Deece. Ainda havia homens
examinando a varanda e o balanço em que Rhoda dera o último
suspiro. Nós o chamamos para um lado, por trás de uma fileira das
extremosas do sr. Deece. Ele nos contou tudo. Em termos
confidenciais, é claro, como se os detalhes macabros pudessem de
alguma forma permanecer em segredo no condado de Ford.
Havia três pequenos cafés em tomo da praça de Clanton, dois para
os brancos, um para os negros. Wiley sugeriu que fôssemos ocupar
uma das mesas, bem cedo, e esperássemos.
Não costumo tomar o chamado café da manhã, e em geral não
estou acordado durante as horas em que essa pequena refeição é
servida. Não me importo de trabalhar até meia-noite, mas prefiro
dormir até que o sol esteja a pino, em plena vista. Como logo descobri,
uma das vantagens de possuir um pequeno jornal semanal era de que
eu podia trabalhar e dormir até tarde. As matérias poderiam ser
escritas a qualquer momento, desde que os prazos fossem cumpridos.
O próprio Spot não costumava aparecer no jornal muito antes de
meio-dia, sempre depois de passar pela agência funerária, é claro. Eu
gostava de seu horário.
No segundo dia que passei no apartamento em cima da garagem
dos Hocutt, Gilma bateu na porta às nove e meia da manhã. E bateu e
bateu. Finalmente levantei, cambaleei, de cueca, pela pequena cozinha
e a vi espiando pelas venezianas. Ela anunciou que já estava prestes a
chamar a polícia. Os outros Hocutt estavam lá embaixo, vagueando
pela garagem, examinando meu carro, convencidos de que um crime
fora cometido.
Ela perguntou o que eu estava fazendo. Respondi que dormia até
que alguém começara a bater na porta. E ela perguntou por que eu
continuava a dormir às nove e meia de uma manhã de quarta-feira.
Esfreguei os olhos e tentei pensar numa resposta apropriada. Tive a
súbita noção de que estava quase nu, na presença de uma virgem de
77 anos. Ela não parava de olhar para minhas coxas.
Haviam levantado às cinco horas da manhã, ela explicou.
Ninguém dorme até nove e meia em Clanton. Eu me embriagara?
Tinham Ficado preocupados, só isso. Enquanto fechava a porta,
expliquei que estava sóbrio, ainda com sono, obrigado pela
preocupação, mas muitas vezes durmo até depois de nove horas da
manhã.
Eu já estivera na Tea Shoppe duas vezes, para um café no final da
manhã e outra para almoçar. Como dono do jornal, achava necessário
circular e ser visto numa hora razoável. Tinha plena consciência de
que escreveria sobre o condado de Ford, seus habitantes, lugares e
acontecimentos, por muitos anos.
Wiley dissera que os cafés estariam lotados desde cedo.
— É o que sempre acontece depois dos jogos de futebol americano
e dos desastres de carro — explicou ele.
— E os assassinatos?
— Já faz muito tempo que não temos nenhum.
Ele tinha razão. O lugar estava mesmo apinhado quando
entramos, pouco depois de seis horas da manhã. Wiley cumprimentou
algumas pessoas, apertou mãos estendidas, trocou uns poucos
insultos. Ele era do condado de Ford e conhecia todo mundo. Acenei
com a cabeça, sorri e surpreendi alguns olhares estranhos. Levaria
anos. As pessoas eram cordiais, mas também cautelosas com
estranhos.
Encontramos dois lugares vagos no balcão e pedi um café. Nada
mais. A garçonete não aprovou. Mas adorou quando Wiley pediu
ovos mexidos, presunto, biscoitos, cereais e uma porção de batata frita
com cebola, colesterol suficiente para entupir as artérias de uma mula.
As conversas eram sobre o estupro e assassinato, mais nada. Se o
tempo podia causar discussões, imaginem o que um crime tão
hediondo podia provocar. Os Padgitt mandavam e desmandavam no
condado havia cem anos. Era tempo de prender todos. Cercar a ilha
com a Guarda Nacional, se fosse necessário. Mackey Don tinha de cair
fora; passara tempo demais no bolso da família. Quando se deixava
que um bando de canalhas fizesse o que queria, eles começavam a
pensar que estavam acima da lei. Agora, acontece uma coisa dessas.
Não se falou muito sobre Rhoda, porque pouco se sabia. Alguém
disse que ela andara frequentando bares no outro lado da fronteira do
estado. Alguém comentou que ela vinha dormindo com um advogado
local. Não sabia o nome dele. Apenas um rumor.
Os rumores circulavam desenfreados na Tea Shoppe. Dois
boquirrotos se revezavam no comando da conversa, e fiquei surpreso
ao constatar como eram temerários em suas versões da verdade. Era
uma pena que eu não pudesse publicar todas as maravilhosas intrigas
que ouvimos ali.
CAPÍTULO 5
MESMO ASSIM, PUBLICAMOS muita coisa. A manchete proclamava que
Rhoda Kassellaw fora estuprada e assassinada e que Danny Padgitt
fora preso pelo crime. Podia ser lida a vinte metros de distância em
qualquer esquina em torno da praça do tribunal.
Logo abaixo, havia duas fotos: uma de Rhoda, no ensino médio, e
a outra de Padgitt, ao ser levado algemado para a cadeia. Wiley fora
sensacional na emboscada. Era uma foto perfeita, com Padgitt
sorrindo desdenhoso para a câmera. Havia sangue, do acidente em
sua testa, e sangue na camisa do crime. Ele parecia repulsivo, infame,
insolente, bêbado e absolutamente culpado. Eu sabia que a foto
causaria a maior sensação. Wiley achou que seria melhor evitá-la, mas
eu tinha 23 anos na ocasião e era jovem demais para me conter. Queria
que os leitores vissem e soubessem da terrível verdade. Queria vender
jornais.
A foto de Rhoda fora obtida com uma irmã no Missouri. Na
primeira vez em que falei com ela, pelo telefone, a irmã não tinha
quase nada para dizer e se apressou em desligar. Na segunda vez, ela
degelou um pouco. Disse que as crianças estavam tendo
acompanhamento médico, que o funeral seria realizado na tarde de
terça-feira, numa pequena cidade perto de Springfield, e que, para a
família, todo o estado do Mississippi podia arder no inferno.
Assegurei a ela que compreendia muito bem, que era de Syracuse,
um dos mocinhos. A mulher concordou, finalmente em me mandar
uma foto.
Usando um punhado de fontes anônimas, descrevi em detalhes o
que acontecera na noite do sábado anterior, na Benning Road. Quando
tinha certeza de um fato, tratava de destacá-lo. Quando não,
prolongava-me nas considerações, com muitas insinuações para
transmitir o que julgara ter acontecido. Baggy Suggs ficou sóbrio pelo
tempo suficiente para reler e editar a matéria. Provavelmente evitou
que fôssemos processados ou fuzilados.
Na segunda página havia um mapa do local do crime e uma foto
grande da casa de Rhoda, tirada na manhã seguinte ao crime, com
radiopatrulhas e a fita amarela da polícia por toda parte. A foto
também incluía as bicicletas e os brinquedos de Michael e Teresa,
espalhados pelo jardim. Sob muitos aspectos, essa foto era mais
sinistra do que seria qualquer outra do próprio cadáver, que eu não
tinha, embora tentasse obter. A foto proclamava com toda clareza que
havia crianças morando ali e que estavam envolvidas num crime tão
brutal que a maioria dos fordianos ainda tentava acreditar que aquilo
acontecera de fato.
O que as crianças teriam visto? Essa era a questão mais crucial.
Não a respondi no Times, mas cheguei tão perto quanto possível.
Descrevi a casa e a disposição do interior. Citando uma fonte
anônima, calculei que as camas das crianças ficavam a cerca de dez
metros da cama da mãe. As crianças fugiram da casa antes de Rhoda.
Estavam em choque ao chegarem à casa vizinha, a tal ponto que
haviam sido tratadas por um médico em Clanton, e vinham sendo
submetidas a alguma terapia no Missouri. Haviam visto muita coisa.
Poderiam prestar depoimento num julgamento? Baggy disse que
não havia a menor possibilidade; eram pequenas demais. Mas fiz a
indagação assim mesmo, a fim de proporcionar aos leitores alguma
coisa para discutir e se afligir. Depois de avaliar as possibilidades de
apresentar as crianças no tribunal, concluí que os “especialistas”
concordavam que essa perspectiva era improvável. Baggy gostou de
ser considerado um especialista.
O obituário de Rhoda foi tão longo quanto pude esticá-lo, o que
nada tinha de excepcional, considerando-se a tradição do Times.
Começamos a rodar por volta das dez horas da noite de terça-feira;
o jornal estava nos suportes em torno da praça de Clanton às sete
horas da manha de quarta-feira. A circulação caíra para menos de
1.200 exemplares na ocasião da falência, mas depois de um mês da
minha destemida administração, já tínhamos quase 2.500 assinantes.
Portanto, era um objetivo realista calcular uma circulação para cinco
mil exemplares.
Para o assassinato de Rhoda Kassellaw, rodamos oito mil
exemplares, que foram espalhados por toda parte: nas portas dos cafés
em torno da praça, no prédio do tribunal, nas mesas de todos os
funcionários públicos do condado, nos saguões dos bancos. Enviamos
três mil exemplares de cortesia para assinantes em potencial, como
parte de uma campanha promocional, súbita e especial.
Segundo Wiley, era o primeiro assassinato cometido no condado
em oito anos. E o assassino era um Padgitt! Uma notícia sensacional, e
tratei de aproveitá-la como minha grande oportunidade. Por isso,
parti para o choque, o sensacionalismo, as manchas de sangue. Era um
jornalismo ordinário, é verdade, mas por que eu haveria de me
importar?
Não tinha a menor ideia de que a reação poderia ser tão rápida e
desagradável.

Às nove horas da manhã de quinta-feira, a sala principal do


tribunal, no segundo andar, estava lotada. Era o domínio do
Meritíssimo Reed Loopus, juiz do Circuito do Condado de Tyler, que
passava por Clanton oito vezes por ano para dispensar justiça. Era um
velho guerreiro, um homem lendário, que presidia o tribunal com
mão de ferro. Segundo Baggy, que passara a maior parte de sua vida
profissional no tribunal, ouvindo intrigas ou criando-as, era um juiz
absolutamente honesto, que conseguira de alguma forma evitar os
tentáculos do dinheiro dos Padgitt. Talvez porque fosse de outro
condado, o juiz Loopus achava que os criminosos deveriam cumprir
longas sentenças, de preferência de trabalhos forçados, embora não
pudesse mais ordenar essa última parte.
Na segunda-feira depois do assassinato, os advogados dos Padgitt
começaram a tomar as providências para tirar Danny da cadeia. O juiz
Loopus estava preocupado com um julgamento em outro condado -
seu distrito incluía seis condados — e recusou-se a ser pressionado a
uma audiência de fiança imediata. Em vez disso, marcou a audiência
para nove horas da manhã de quinta-feira, proporcionando, assim, à
cidade mais alguns dias para ponderar e especular.
Como membro da imprensa, proprietário do jornal local, achei que
era meu dever chegar cedo e conseguir um bom lugar. Os outros
espectadores estavam ali por curiosidade. Mas eu tinha um trabalho
muito importante a realizar. Baggy e eu já estávamos sentados na
segunda fila quando a multidão começou a chegar.
O principal advogado de Danny Padgitt chamava-se Lucien
Wilbanks, um homem a quem eu logo passaria a odiar. Era o que
restara de um clã outrora proeminente de advogados, banqueiros e
outros profissionais similares. A família Wilbanks empenhara-se por
muito tempo, com o maior afinco, em desenvolver Clanton. Depois,
Lucien apareceu e quase arruinou a reputação da família. Fantasiava-
se um advogado radical, o que era bastante raro naquela parte do
mundo em 1970. Usava barba, praguejava como um estivador, bebia
muito e preferia clientes que fossem estupradores, assassinos e
molestadores de crianças. Era o único membro branco, no condado de
Ford, da NAACP, a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas
de Cor, o que era, por si só, o suficiente para alguém ser fuzilado ali.
Mas ele não se importava.
Lucien Wilbanks era agressivo, destemido e impiedoso. Esperou
que todos se acomodassem - pouco antes da entrada do juiz Loopus -
para depois avançar lentamente em minha direção. Segurava um
exemplar do último número do Times, que começou a brandir,
enquanto gritava:
— Seu filho da puta escroto! — falou bastante alto e todos no
tribunal ficaram em total silêncio. — Quem você pensa que é?
Fiquei mortificado demais para tentar responder. Senti Baggy se
afastar. Todas as pessoas no tribunal olhavam para mim. Compreendí
que precisava falar alguma coisa.
— Apenas disse a verdade - murmurei, tentando expressar alguma
convicção.
— É jornalismo sensacionalista! — berrou ele. — Um tabloide que
só merece ir para o lixo!
O jornal balançava a poucos centímetros de meu nariz.
— Obrigado — respondi, tentando ser irônico.
— Vamos entrar com um processo amanhã! - avisou ele, os olhos
faiscando. - Um milhão de dólares de indenização!
— Tenho advogados.
Senti-me subitamente apavorado de estar prestes a falir, como a
família Caudle. Lucien jogou o jornal em meu colo, virou-se e voltou
para sua mesa. Consegui finalmente soltar o ar dos pulmões; o
coração havia disparado. Sentia as faces arderem de embaraço e
medo.
Ainda assim mantive um sorriso estúpido. Não podia deixar
transparecer para os locais que eu, o proprietário/editor de seu jornal,
tinha medo de qualquer coisa. Mas um milhão de dólares de
indenização! Pensei no mesmo instante em minha avó em Memphis.
Seria uma conversa muito difícil.
Houve uma movimentação por trás da bancada e um guarda abriu
uma porta.
— Todos de pé! — gritou ele.
O juiz Loopus entrou e foi para sua cadeira, a toga preta desbotada
esvoaçando em sua esteira. Depois de acomodado, correu os olhos
pela multidão e disse:
— Bom-dia. Um comparecimento maciço para uma audiência de
fiança.
Aquelas questões de rotina não costumavam atrair ninguém,
exceto o acusado, seu advogado e talvez sua mãe. Mas havia trezentas
pessoas reunidas no tribunal.
Não era apenas uma audiência de fiança. Era o primeiro round
num julgamento de estupro/homicídio, e poucas pessoas em Clanton
queriam perdê-lo. Porém, como eu sabia muito bem, um grande
número de pessoas não poderia comparecer. Os cidadãos
dependeriam, portanto, do Times, e eu estava disposto a relatar todos
os detalhes.
Cada vez que olhava para Lucien Wilbanks, eu não podia deixar
de pensar na ação judicial para uma indenização de um milhão de
dólares. Ele não podia processar meu jornal, não é mesmo? Qual seria
a acusação? Não houvera difamação nem calúnia.
O juiz Loopus acenou com a cabeça para outro guarda. Uma porta
lateral foi aberta. Danny Padgitt foi trazido para a sala, as mãos
algemadas na cintura. Usava uma camisa branca bem passada, calça
cáqui e mocassins. Tinha o rosto barbeado, sem qualquer lesão
aparente. Estava com 24 anos, um a mais do que eu, mas parecia
muito mais jovem. Era bem-proporcionado, bonito, e não pude deixar
de pensar que deveria estar estudando em alguma universidade. O
jeito de andar era arrogante, e, quando o guarda tirou as algemas,
exibiu um sorriso desdenhoso. Correu os olhos pela multidão. Por um
momento, pareceu muito satisfeito com a atenção. Demonstrava toda
a confiança de alguém cuja família tinha uma reserva inesgotável de
dinheiro, que usaria para tirá-lo daquela situação um pouco
desagradável.
Sentados logo atrás dele, no outro lado da grade, na primeira fila,
estavam os pais e vários outros Padgitt. O pai, Gill, neto do infame
Clovis Padgitt, tinha um diploma universitário. Corria o rumor de que
era o responsável pela lavagem de dinheiro da quadrilha. A mãe
estava bem vestida e era atraente, o que achei insólito para uma
mulher tão obtusa a ponto de casar no clã Padgitt e passar o resto da
vida como uma reclusa na ilha.
— Nunca a vi antes — sussurrou Baggy para mim.
— E quantas vezes viu Gill?
— Talvez duas vezes nos últimos vinte anos.
O Estado era representado pelo promotor do condado, Rocky
Childers, que exercia a função em tempo parcial. O juiz Loopus
dirigiu-se a ele:
— Sr. Childers, presumo que o Estado se oponha à concessão da
fiança.
Childers levantou-se e disse:
— Sim, senhor.
— Sob que alegação?
— A natureza hedionda dos crimes, Meritíssimo. Um estupro
brutal, na própria cama da vítima, na frente de seus filhos pequenos.
Um assassinato simultâneo, causado por dois ferimentos de faca no
mínimo. A tentativa de fuga do acusado, sr. Padgitt. — As palavras de
Childers soavam incisivas no silêncio do tribunal. - A grande
probabilidade de nunca mais vermos o sr. Padgitt se ele sair da cadeia
agora.
Lucien Wilbanks mal podia esperar o momento de se levantar e
começou a tamborilar com os dedos na mesa. Não se conteve mais e
ficou de pé.
— Protesto, Meritíssimo. Meu cliente não tem antecedentes
criminais. Nunca foi preso antes.
O juiz Loopus fitou-o calmamente, por cima dos óculos de leitura,
e disse:
— Sr. Wilbanks, espero que seja a primeira e última vez que
interrompe alguém nesta audiência. Sugiro que sente agora. Será
avisado quando o tribunal estiver disposto a ouvi-lo.
As palavras eram geladas, quase ríspidas. Não pude deixar de
especular quantas vezes aqueles dois já haviam se confrontado
naquela sala.
Nada perturbava Lucien Wilbanks; sua pele era tão grossa quanto
couro cru.
Childers relatou, então, um pouco de história. Onze anos antes, em
1959, um certo Gerald Padgitt fora indiciado por roubar carros em
Tupelo. Levaram um ano para encontrar dois oficiais de justiça
dispostos a entrar na Ilha Padgitt para entregar a intimação. Embora
sobrevivessem, não tiveram êxito na missão. Gerald Padgitt fugira do
país, ou se isolara em algum lugar da ilha.
— Onde quer que ele esteja, nunca foi preso, nunca foi encontrado
- disse Childers.
— Já ouviu falar de Gerald Padgitt? - sussurrei para Baggy.
— Não.
— Se este réu for solto sob fiança, Meritíssimo, nunca mais
tornaremos a vê-lo.
Childers sentou-se.
— Sr. Wilbanks - disse o juiz.
Lucien levantou-se devagar. E acenou com a mão para Childers.
— Como sempre, o promotor está confuso - começou ele, em tom
jovial. — Gerald Padgitt não foi acusado por esses crimes. Mas não o
represento, e que aconteceu com ele não significa porra nenhuma para
mim.
— Modere sua linguagem — ordenou Loopus.
— Ele não está em julgamento aqui. Esta audiência envolve apenas
Danny Padgitt, um jovem sem antecedentes criminais.
— Seu cliente tem alguma propriedade neste condado? —
perguntou Loopus.
— Não, não tem. Ele está apenas com 24 anos.
— Vamos à conclusão, sr. Wilbanks. Sei que a família tem uma
vasta propriedade. Só concederei a fiança se todos se comprometerem
a garantir sua presença no julgamento.
— Isso é afrontoso! - exclamou Lucien.
— E os crimes de que o réu é acusado também são.
Lucien largou seu bloco de anotações na mesa.
— Dê-me um minuto para consultar a família.
Isso causou a maior agitação entre os Padgitt. Todos se agruparam
por trás da mesa da defesa, com Wilbanks. Houve divergência desde o
início. Foi quase divertido observar aqueles bandidos muito ricos
sacudirem a cabeça e se irritarem uns com os outros. As brigas de
família são rápidas e encarniçadas, ainda mais quando há dinheiro em
jogo. Cada Padgitt presente parecia ter uma opinião diferente sobre o
curso que se deveria seguir. Só se podia imaginar o que acontecia
quando dividiam o saque.
Lucien sentiu que seria improvável um acordo. A fim de evitar
embaraços, ele virou-se e declarou ao tribunal:
— As terras dos Padgitt têm pelo menos quarenta proprietários, a
maioria dos quais ausente, neste momento. A exigência deste tribunal
é arbitrária, um ônus absurdo.
— Eu lhe darei alguns dias para providenciar a concordância de
todos - declarou Loopus, visivelmente satisfeito com a aflição que
estava causando.
— Isso não é justo. Meu cliente tem direito a uma fiança razoável,
como qualquer outro réu.
— Neste caso, a fiança é negada até a audiência preliminar.
— Renunciamos à audiência preliminar.
— Como quiser — disse Loopus, tomando anotações.
— E solicitamos que o caso seja apresentado ao grande júri tão
depressa quanto possível.
— No momento devido, sr. Wilbanks, como todos os outros casos.
— Porque vamos solicitar uma mudança de foro assim que for
possível - disse Lucien, incisivo, como se houvesse necessidade de
uma proclamação importante.
— Não acha que é um pouco cedo para isso? — indagou Loopus.
— Será impossível para meu cliente ter um julgamento justo neste
condado.
Wilbanks correu os olhos pelo tribunal enquanto continuava a
falar, quase ignorando o juiz, que no momento parecia curioso.
— Já está ocorrendo uma campanha para indiciar, julgar e
condenar meu cliente antes mesmo que ele tenha uma chance de se
defender. Acho que o tribunal deve interferir imediatamente, com
uma ordem de mordaça.
Lucien Wilbanks era o único no recinto que precisava de uma
mordaça.
— Aonde está querendo chegar, sr. Wilbanks? - perguntou o juiz.
— Tem visto o jornal local, Meritíssimo?
— Não ultimamente.
Todos os olhos pareciam se fixar em mim. Mais uma vez, meu
coração parou por completo. Wilbanks fitou-me com uma expressão
furiosa, enquanto explicava:
— Reportagem na primeira página, fotos sangrentas, fontes
anônimas, meias-verdades e insinuações em quantidade suficiente
para condenar qualquer homem inocente!
Baggy outra vez se afastou de mim, e me senti muito sozinho.
Lucien atravessou o tribunal e jogou um exemplar do jornal na
bancada do juiz.
— Dê uma olhada nisto!
Loopus ajustou os óculos de leitura, levantou o Times e recostou-se
na cadeira de couro. Começou a ler, dando a impressão de que não
tinha a menor pressa.
Ele lia mesmo devagar. Em algum momento, meu coração voltou a
funcionar, recomeçando com a fúria de uma britadeira. Notei, então,
que tinha o colarinho molhado, onde encostava na nuca. Loopus
terminou a leitura da primeira página e, lentamente, abriu o jornal. O
tribunal mantinha-se em silêncio. Ele me prenderia imediatamente?
Mandaria que um guarda me algemasse e me arrastasse para a
cadeia? Eu não era advogado. Acabara de ser ameaçado com um
processo de um milhão de dólares, por um homem que já devia ter
tratado de muitas ações judiciais desse tipo. Agora, o juiz lia meu
relato um tanto melodramático, enquanto toda a cidade aguardava
seu veredicto.
Muitos olhares agressivos continuavam a ser lançados em minha
direção. Por isso, achei que era mais fácil escrever em meu bloco de
repórter, embora não fosse capaz de ler qualquer coisa que escrevia.
Tratei de me esforçar para manter o rosto impassível. O que eu
realmente queria, no fundo, era fugir daquele tribunal e voltar
correndo para Memphis.
As páginas continuaram a ser viradas, até que o Meritíssimo
finalmente acabou. Ele inclinou-se um pouco para o microfone à sua
frente e pronunciou as palavras que decidiram minha carreira:
— Está muito bem escrito. Fascinante, talvez um pouco macabro,
mas certamente não há nada que destoe da ordem judiciária.
Continuei a escrever, como se não tivesse ouvido isso. Numa
escaramuça súbita, imprevista e angustiante, eu prevalecera sobre os
Padgitt e Lucien Wilbanks.
— Meus parabéns - sussurrou Baggy.
Loopus dobrou o jornal e largou-o. Deixou que Wilbanks
arengasse por mais alguns minutos, sobre vazamentos dos policiais,
vazamentos da promotoria, vazamentos potenciais da sala do grande
júri, todos coordenados de alguma forma por uma conspiração de
pessoas indefinidas, empenhadas em tratar seu cliente com a maior
injustiça. O que ele fazia, na verdade, era exibir-se para os Padgitt.
Perdera a tentativa de obter a fixação da fiança, e por isso tinha de
impressioná-los com seu fervor.
Só que Loopus não engoliu nada daquilo.
Como em breve descobriríamos, o ato de Lucien fora apenas uma
cortina de fumaça. Ele não tinha a menor intenção de tirar o
julgamento do condado de Ford.
CAPÍTULO 6
QUANDO COMPREI o Times, o prédio pré-histórico entrou na
transação. Tinha bem pouco valor. Ficava no lado sul da praça de
Clanton, uma de quatro estruturas em decadência, grudadas umas nas
outras, construídas por alguém com pressa. Era comprido e estreito,
três andares, com um porão que todos os empregados temiam e do
qual se esquivavam. Havia várias salas na frente, todas com um tapete
manchado e puído, as paredes descascando, o cheiro da fumaça de
cachimbo do último século para sempre impregnado no teto.
Nos fundos, tão longe quanto possível, ficava a rotativa. Toda
noite de terça-feira, Hardy, nosso linotipista e impressor, dava um
jeito de pôr a velha máquina para funcionar e produzia mais uma
edição do jornal. Seu espaço recendia ao cheiro forte da tinta de
impressão.
Na redação, no primeiro andar, havia prateleiras vergadas ao peso
de livros empoeirados, que não eram abertos havia décadas. Existiam
coleções de livros de história, obras de Shakespeare, poesia irlandesa e
fileiras de enciclopédias britânicas ultrapassadas. Spot achava que a
vista desses livros impressionaria qualquer um que ali se aventurasse.
Diante da janela da frente, olhando-se através das vidraças sujas,
onde alguém pintara há muito tempo a palavra “TIMES”, podia-se
avistar o tribunal do condado de Ford e o sentinela de bronze
confederado que o guardava. Uma placa sob os pés do sentinela
relacionava os nomes dos 61 homens do condado que haviam morrido
na Grande Guerra, a maior parte em Shiloh.
O sentinela podia ser visto também da minha sala, que ficava no
segundo andar. Também era forrada de livros, com a biblioteca
pessoal de Spot, uma coleção eclética, que parecia ter sido tão
negligenciada quanto os livros lá embaixo. Anos passariam antes que
eu pegasse algum daqueles livros.
A sala era espaçosa, atravancada, cheia de artefatos inúteis e
arquivos sem valor, ornamentada com falsos retratos de generais
confederados. Eu adorava o lugar. Ao partir, Spot não levara nada.
Depois de alguns meses, ninguém parecia querer qualquer coisa de
seu lixo. Por isso, tudo permaneceu onde estava, negligenciado como
sempre, sem que eu praticamente tocasse e pouco a pouco se tornando
minha propriedade. Encaixotei suas coisas pessoais -cartas, extratos
bancários, anotações, cartões-postais - e guardei em uma das salas não
usadas no fundo do corredor, onde continuaram a acumular poeira e a
se deteriorar lentamente.
Minha sala tinha duas portas de vidro, que abriam para uma
pequena varanda, com uma grade de ferro batido. Havia espaço
suficiente para quatro pessoas sentarem, em cadeiras de vime,
observando a praça. Não que houvesse muita coisa para ver, mas era
uma maneira agradável de passar o tempo, ainda mais com um
drinque na mão.
Baggy estava sempre disposto para um drinque. Levou uma
garrafa de bourbon depois do jantar, e assumimos nossas posições nas
cadeiras de balanço. A cidade ainda fervilhava com a audiência de
fiança. Muitos haviam presumido que Danny Padgitt seria solto,
assim que Lucien Wilbanks e Mackey Don Coley acertassem tudo.
Haveria promessas. Dinheiro trocaria de mãos. O xerife Coley
garantiria pessoalmente a presença de Danny no julgamento. O juiz
Loopus, no entanto, tinha outros planos.
A esposa de Baggy era enfermeira. Trabalhava no turno da noite
na emergência do hospital. Ele trabalhava durante o dia, se é que suas
lânguidas observações da cidade poderiam ser consideradas um
trabalho. Quase nunca se viam, e era melhor assim, porque tinham
brigas constantes. Os filhos crescidos haviam saído de casa, deixando
os dois a travarem sua pequena guerra. Depois de dois drinques,
Baggy sempre começava a fazer comentários sarcásticos sobre a
mulher. Ele tinha 52 anos, mas aparentava no mínimo setenta. Eu
desconfiava que a bebida fosse o principal motivo de seu
envelhecimento precoce e da desavença conjugal.
— Demos uma lição em todo mundo — disse ele, orgulhoso. —
Nunca antes a reportagem de um jornal foi eximida de
tendenciosidade de uma maneira tão clara. Em plena audiência, para
todo mundo ouvir.
— O que é uma ordem de mordaça?
Eu era um foca desinformado e todo mundo sabia disso. Não havia
sentido em fingir que sabia de uma coisa que ignorava.
— Nunca vi nenhuma. Já ouvi falar, e acho que é usada pelos
juízes para calar os advogados e litigantes.
— Quer dizer que não se aplicam aos jornais?
— Nunca. Wilbanks estava fazendo jogo de cena, mais nada. O
cara é membro da ACLU, a organização que defende os direitos civis,
o único associado no condado de Ford. Conhece muito bem a Primeira
Emenda. Não há a menor possibilidade de um tribunal determinar a
um jornal que não publique alguma coisa. Ele estava tendo um
péssimo dia, e era evidente que seu cliente continuaria na cadeia. Por
isso, precisava se exibir. Uma típica manobra de advogado. Ensinam
até na faculdade.
— Quer dizer que você acha que não seremos processados?
— Claro que não. Em primeiro lugar, não há nenhuma base para
uma ação judicial. Não caluniamos nem difamamos ninguém.
Tomamos uma certa liberdade com alguns fatos, mas era tudo coisa
pequena... e, de qualquer forma, provavelmente era verdade.
Segundo, se Wilbanks quisesse nos processar, teria de entrar com a
ação aqui, no mesmo tribunal, com o mesmo juiz: o Meritíssimo Reed
Loopus, que esta manhã leu nossas matérias e declarou que estavam
ótimas. A ação judicial seria indeferida antes mesmo que Wilbanks
escrevesse a primeira palavra. Brilhante.
Eu não me sentia nem um pouco brilhante. Ficara preocupado com
um milhão de dólares da indenização, especulando onde poderia
conseguir essa quantia. O bourbon finalmente começou a fazer efeito e
relaxei. Era noite de quinta-feira em Clanton e havia bem poucas
pessoas na rua. Cada loja e escritório ao redor da praça já fora
fechado.
Baggy, como sempre, mantinha-se relaxado havia muito tempo.
Margaret me sussurrara que muitas vezes ele tomava bourbon no café
da manhã. Ele e um advogado perneta chamado Major gostavam de
um gole de uísque junto com o café. Os dois se encontravam na
varanda do escritório de Major, no outro lado da praça, para fumar,
beber e discutir sobre direito e política, enquanto o tribunal começava
a funcionar. Major perdera uma perna em Guadalcanal, segundo sua
versão da II Guerra Mundial. Seu escritório de advocacia era tão
especializado que ele quase não fazia mais nada além de preparar
testamentos para idosos. Ele mesmo os datilografava, pois não tinha
necessidade de uma secretária. Trabalhava tanto quanto Baggy. Os
dois podiam ser vistos com frequência no tribunal, meio embriagados,
acompanhando algum julgamento.
— Acho que Mackey Don pôs o garoto na suíte - comentou Baggy,
a voz começando a ficar engrolada.
— Suíte?
— Isso mesmo. Já viu a cadeia?
— Não.
— E imprópria até para animais. Não tem aquecimento nem ar-
condicionado, os encanamentos só funcionam na metade do tempo.
As condições mais insalubres. Comida estragada. E isso para os
brancos. Os negros ficam no outro lado, numa cela única, comprida. E
usam um buraco no chão para suas necessidades.
— Acho que dispenso o conhecimento.
— É um embaraço para o condado. O mais triste, porém, é que é
assim na maioria dos lugares por aqui. Seja como for, há uma pequena
cela com ar-condicionado, tapete, uma cama limpa, televisão em cores,
boa comida. É chamada de suíte, e Mackey Don instala seus prediletos
ali.
Eu fazia anotações mentais. Para Baggy, era apenas um fato
corriqueiro. Para mim, que pouco antes ainda estava na universidade,
que estudara jornalismo, era a perspectiva de uma reportagem sobre
corrupção.
— Acha que Padgitt está na suíte?
— Provavelmente. Ele compareceu à audiência com suas próprias
roupas.
— De que outra forma poderia ser?
— Aqueles macacões laranja da cadeia que todo mundo usa.
Nunca viu?
Claro que eu já tinha visto. Estivera no tribunal uma ocasião, cerca
de um mês antes, e vira dois ou três réus sentados ali, à espera de um
juiz, todos usando tonalidades diferentes do macacão laranja
desbotado. No peito e nas costas, estava escrito “Cadeia do Condado
de Ford”.
Baggy tomou um gole e explicou:
— Na audiência preliminar e outras, os réus, se ainda estão presos,
sempre se apresentam no tribunal vestidos como presos. Nos tempos
antigos, Mackey Don obrigava-os a usar o macacão mesmo durante o
julgamento. Lucien Wilbanks conseguiu anular um veredicto de
culpado sob a alegação de que os jurados estavam predispostos a
condenar seu cliente, porque o homem parecia culpado no macacão
laranja da cadeia. E ele tinha razão. É difícil convencer um júri de que
você não é culpado quando está vestido como um preso e calçando
botas de borracha.
Mais uma vez, fiquei admirado com o atraso do Mississippi. Podia
imaginar um réu criminal, ainda mais se fosse negro, enfrentando um
júri e esperando um julgamento justo, com o traje da cadeia, projetado
para ser visto a um quilômetro de distância. “Ainda lutando a
Guerra” foi um slogan que ouvi várias vezes no condado de Ford.
Havia uma resistência frustrante à mudança, em particular no que se
referia ao crime e sua punição.

No dia seguinte, por volta de meio-dia, fui até a cadeia,


procurando o xerife Coley. Sob o pretexto de fazer algumas perguntas
sobre a investigação Kassellaw, eu planejava ver tantos presos quanto
pudesse. A secretária informou, de uma maneira um tanto brusca, que
ele estava numa reunião. O que era melhor para mim.
Havia dois presos limpando as salas da frente do prédio. Lá fora,
havia outros dois, arrancando o mato dos canteiros de flores. Dei a
volta pelo quarteirão. Nos fundos da cadeia, havia uma pequena área
aberta, com uma cesta de basquete. Seis presos estavam ali, à sombra
de um pequeno carvalho. No lado leste da cadeia, avistei mais três
presos, por trás de uma janela gradeada, olhando para mim.
Treze prisioneiros no total. Treze prisioneiros com o macacão
laranja.
O sobrinho de Wiley foi consultado sobre a situação na cadeia. A
princípio, relutou em falar, mas sentia um ódio profundo contra o
xerife Coley, e achou que podia confiar em mim. Confirmou o que
Baggy suspeitara: Danny Padgitt levava uma vida boa, na cela com ar-
condicionado, comendo qualquer coisa que quisesse. Vestia-se como
preferia, jogava damas com o xerife e dava telefonemas durante o dia
inteiro.

A edição seguinte do Times contribuiu e muito para consolidar


minha reputação como um dedicado e destemido idiota de 23 anos.
Na primeira página, havia uma enorme foto de Danny Padgitt sendo
conduzido aio tribunal para a audiência de fiança. Estava algemado e
usava roupas comuns. Também lançava para a câmera um de seus
olhares' patenteados, ao estilo de vá-se ferrar. Logo acima, ficava a
manchete enorme: NEGADA FIANÇA PARA DANNY PADGITT. A
reportagem era longa e detalhada.
Ao lado, havia outra reportagem, quase tão longa e muito mais
escandalosa. Descrevi minuciosamente, citando fontes anônimas, as
condições do encarceramento do sr. Padgitt. Mencionei todos os
privilégios que lhe eram concedidos, inclusive o tempo pessoal com o
xerife Coley,, jogando damas. Falei sobre sua comida e dieta, televisão
em coires, o uso ilimitado do telefone. Tudo que eu podia confirmar.
E, depois, comparei com as condições dos outros 21 presos.
Na segunda página, publiquei uma foto antiga, em preto e branco,
de quatro réus sendo levados para o tribunal. Cada um deles, como
era de se esperar, usava o macacão de presidiário. Cada um deles
estava algemado e tinha os cabelos desgrenhados. Escureci seus rostos
para que não sofressem mais embaraços, quem quer que fossem.
Pus outra foto de Damny Padgitt a caminho do tribunal ao lado da
foto de arquivo. Exceto pelas algemas, ele podia estar a caminho de
uma festa. O contraste era impressionante. O garoto estava sendo
mimado pelo xerife Coley, que até agora se recusava a discutir o
assunto comigo. Um grande erro.
Na reportagem, detalhei meus esforços para conversar com o
xerife. Meus telefonemas não eram respondidos. Fora à cadeia duas
vezes, e ele não me recebera. Deixara uma lista de perguntas, que ele
optara por ignorar. Descrevi um jovem repórter agressivo,
procurando desesperadamente pela verdade, mas sendo repelido pela
autoridade eleita.
Como Lucien Wilbanks era um dos homens menos populares em
Clanton, tratei de incluí-lo na refrega. Usando o telefone, um grande
igualador, como eu rapidamente aprendia, liguei para seu escritório
quatro vezes, antes que ele me ligasse de volta. A princípio, ele não
tinha comentários a fazer sobre seu cliente ou as acusações. Mas
quando insisti, com perguntas sobre o tratamento dispensado a
Danny Padgitt na cadeia, ele explodiu:
— Não controlo a droga da cadeia, Filho!
Quase podia ver seus olhos vermelhos faiscando para mim. Citei-o
no seguinte diálogo.
— Tem entrevistado seu cliente na cadeia? - perguntei.
— Claro.
— O que ele vestia?
— Não tem coisas melhores para noticiar?
— Não, senhor. O que ele vestia?
— Posso garantir que não estava nu.
Era um diálogo bom demais para deixar de lado. Publiquei num
boxe, em negrito.
Com um estuprador/assassino, um xerife corrupto e um advogado
radical de um lado, enquanto eu ficava sozinho no outro, sabia que
não podia perder a luta. A reação à reportagem foi espantosa. Baggy e
Wiley informaram que os cafés fervilhavam de admiração pelo jovem
e destemido editor do jornal. Os Padgitt e Lucien eram desprezados
havia muito tempo. Agora, era a vez de se livrarem de Coley.
Margaret disse que recebemos inúmeras ligações de leitores
indignados com o tratamento indulgente que Danny recebia. O
sobrinho de Wiley informou que reinava o caos na cadeia e que
Mackey Don estava em guerra com seus policiais. Ele estava mimando
um assassino... e 1971 era um ano de eleição. As pessoas estavam
furiosas, e todos poderiam perder o emprego.

Aquelas duas semanas no Times foram cruciais para sua


sobrevivência. Os leitores estavam ansiosos por detalhes, e dei o que
queriam, aproveitando a oportunidade, com um pouco de sorte, e
alguma coragem. O jornal tornara-se subitamente vivo; era uma força.
Merecia confiança. As pessoas queriam que noticiasse em detalhes e
sem medo.
Baggy e Margaret me disseram que Spot nunca teria usado as fotos
mostrando sangue, nunca teria desafiado o xerife. Mas, ainda assim,
se mantinham bastante hesitantes. Não posso dizer que meu ímpeto
servisse para animar a equipe. O Times era — e continuaria a ser —
um espetáculo de um homem só, com um elenco de apoio um tanto
fraco.
O que pouco me importava. Eu estava dizendo a verdade, e que se
danassem as conseqüências. Era um herói local. As assinaturas
saltaram para quase três mil. A receita de publicidade dobrou. Não
apenas eu acendia uma nova luz no condado, mas também ganhava
dinheiro ao mesmo tempo.
CAPÍTULO 7
A BOMBA ERA UM ARTEFATO incendiário um tanto elementar; se
detonada, as chamas teriam dominado num instante a oficina do
jornal. Ali, o fogo seria incrementado pelas várias substâncias
químicas e nada menos que 110 galões de tinta de impressão,
espalhando-se para as salas da frente. Depois de alguns minutos, sem
sistema de sprinkler e sem alarme, não dava para prever quanto se
poderia salvar nos dois andares superiores do prédio. Provavelmente
não muita coisa. Era bem possível que o incêndio, se a bomba fosse
detonada no início da manhã de quinta-feira, tivesse destruído a
maior parte dos quatro prédios ligados.
Foi descoberta, ameaçadora, ainda intacta, ao lado de uma pilha de
jornais velhos, na oficina, pelo idiota da aldeia. Ou, melhor dizendo,
por um dos idiotas da aldeia. Clanton tinha mais do que sua cota.
Seu nome era Piston. Como o prédio, a rotativa antiga e as
bibliotecas, a de cima e a de baixo, faziam parte da transação. Piston
não era um empregado oficial do Times, mas mesmo assim aparecia
toda sexta-feira para receber seus cinquenta dólares, em dinheiro.
Nada de cheque. Por essa quantia, ele varria os pisos de vez em
quando, rearrumava a sujeira nas salas da frente e removia o lixo
quando alguém reclamava. Não tinha horário, entrava e saía quando
queria, não acreditava em bater nas portas mesmo quando havia uma
reunião no outro lado, gostava de usar nossos telefones e tomava
nosso café. Podia parecer um tanto sinistro à primeira vista - os olhos
bem separados e cobertos por óculos de lentes grossas, um gorro
enorme de caminhoneiro puxado para baixo, dentes salientes mas era
inofensivo. Oferecia seus serviços de faxineiro a várias empresas
instaladas na praça, e conseguia de alguma forma sobreviver.
Ninguém sabia onde ele morava, ou com quem, ou como chegava a
cidade. Quanto menos se soubesse a respeito de Piston, melhor.
Piston chegou cedo na manhã de quinta-feira. Havia décadas que
tinha uma chave. Disse que primeiro ouviu um tique-taque.
Adiantou-se para descobrir o que era. Encontrou três recipientes de
plástico, de cinco galões cada um, amarrados juntos, com uma caixa
de madeira no chão, ao lado. O tique-taque vinha da caixa. Piston já
estivera muitas vezes na oficina, ao longo dos anos. Em algumas
ocasiões, até ajudara Hardy nas noites de terça-feira, quando ele
rodava o jornal.
Para a maioria das pessoas, o pânico logo se seguiria a curiosidade.
Para Piston, no entanto, demorou um pouco. Depois de verificar se os
recipientes estavam mesmo cheios de gasolina e de determinar que
alguns fios de aparência perigosa ligavam tudo, ele foi até a sala de
Margaret e ligou para Hardy. Disse que o tique-taque era cada vez
mais alto.
Hardy chamou a polícia. Fui acordado por volta das nove horas da
manhã com a notícia.
A maior parte do centro da cidade já havia sido evacuada quando
cheguei. Piston estava sentado no capô de um carro, perturbado por
ter escapado por um triz. Cercado por alguns conhecidos e pelo
motorista da ambulância parecia apreciar toda aquela atenção.
Wiley Meek fotografara a bomba antes da polícia remover os
recipientes com gasolina, levando-os para a viela atrás do nosso
prédio.
— Explodiria metade do centro — comentou Wiley, numa
avaliação de leigo.
Ele circulava pelo local, bastante nervoso, registrando o
excitamento para uso futuro.
O chefe de polícia explicou-me que toda a área ainda estava
interditada, porque a caixa de madeira não fora aberta e o que havia lá
dentro ainda funcionava.
— Pode explodir - declarou ele, solene, como se fosse o primeiro
bastante inteligente para compreender o perigo.
Duvidei que ele tivesse qualquer experiência com bombas, mas
não podia deixar de aceitar sua alegação. Um perito da polícia
estadual já fora chamado. Ficou decidido que os quatro prédios
ligados Ficariam interditados até que o perito completasse o trabalho.
Uma bomba no centro de Clanton! A notícia espalhou-se mais
depressa do que o fogo teria feito e todo o trabalho parou. Os
escritórios do condado esvaziaram, assim como os bancos, lojas e
cafés. Não demorou muito para que enormes grupos estivessem
reunidos, sob os enormes carvalhos no lado sul do tribunal, a uma
distância segura. As pessoas olhavam aturdidas para o nosso pequeno
prédio, obviamente preocupadas e assustadas, mas também à espera
de algum excitamento. Nunca haviam testemunhado antes a explosão
de uma bomba.
A polícia da cidade de Clanton foi reforçada pelos guardas do
xerife. Todos os uniformes do condado logo estavam presentes,
reunidos nas calçadas, sem fazer absolutamente nada. O xerife Coley e
o chefe de polícia conferenciaram, observando a multidão no outro
lado da rua. Depois, gritaram algumas ordens; mas ninguém notou se
foram cumpridas. Era óbvio para todos que a cidade e o condado não
sabiam o que fazer com uma bomba.
Baggy precisava de um trago. Ainda era muito cedo para mim.
Mesmo assim, o acompanhei até os fundos do prédio do tribunal.
Subimos por uma escada estreita em que eu não reparara antes,
atravessamos um corredor apertado e subimos mais vinte degraus,
para uma sala pequena e suja, com o teto baixo.
— Aqui era a antiga sala do júri - informou ele. - Depois, virou a
biblioteca jurídica.
— O que é agora? - perguntei, quase com medo da resposta.
— Bar Room. Entendeu a piada? A sala dos advogados e o bar ao
mesmo tempo.
— Entendi.
Havia uma mesa de cartas de pernas dobráveis e um tanto
escalavrada, indicando muitos anos de uso. Ao redor, havia meia
dúzia de cadeiras diferentes, refugos passados de um escritório do
condado para outro, até virem parar naquela pequena sala.
A um canto, uma pequena geladeira, com um cadeado. Baggy, é
claro, tinha uma chave. Pegou uma garrafa de bourbon. Despejou uma
dose generosa num copo de papel e disse:
— Puxe uma cadeira.
Levamos duas cadeiras para a janela. Podíamos divisar lá embaixo
a cena que acabáramos de deixar.
— Não é uma vista das piores, não é mesmo? - comentou Baggy,
orgulhoso.
— Com que frequência vem aqui?
— Talvez duas vezes por semana, às vezes mais. Jogamos pôquer
toda terça e quinta-feira, ao meio-dia.
— Quem mais faz parte do clube?
— É uma sociedade secreta.
Ele tomou um gole do uísque e estalou os lábios, como se estivesse
no deserto houvesse um mês. Uma aranha desceu por uma teia
grossa, ao longo da janela. A poeira, no peitoril, tinha uma espessura
de dois ou três centímetros.
— Acho que eles estão perdendo o jeito — murmurou ele, olhando
para toda a agitação lá embaixo.
— Eles?
Quase senti medo de perguntar.
— Os Padgitt.
Baggy falou com uma certa presunção. Deixou o nome pairando
no ar, em meu benefício.
— Tem certeza de que foram os Padgitt?
Baggy pensava que sabia de tudo, e estava certo na metade das
vezes. Ele sorriu, soltou um grunhido, tomou outro gole, antes de
dizer:
— Eles vêm queimando prédios há muito tempo. É um dos seus
golpes... a fraude do seguro. Ganharam uma fortuna das seguradoras.
- Um gole rápido. — Mas é estranho que tenham usado gasolina. Os
incendiários mais talentosos se mantêm à distância da gasolina,
porque é detectada com uma certa facilidade. Sabia disso?
— Não.
— É verdade. Um bom perito em incêndios pode sentir o cheiro de
gasolina minutos depois que o fogo é extinto. E um incêndio
criminoso significa que não haverá pagamento do seguro. — Outro
gole. - É claro que, neste caso, provavelmente queriam que você
soubesse que o incêndio seria criminoso. Faz sentido, não é?
Nada fazia sentido naquele momento. Eu me sentia muito confuso
para dizer qualquer coisa. Mas Baggy mostrou-se contente pela
oportunidade de continuar a falar.
— Pensando bem, talvez tenha sido esse o motivo de a bomba não
ter sido detonada. Queriam que você visse. Se explodisse, o condado
ficaria sem o Times, o que poderia deixar algumas pessoas irritadas.
Mesmo deixando outras felizes.
— Obrigado.
— Seja como for, isso explica melhor o que aconteceu. Foi um ato
sutil de intimidação.
— Sutil?
— Isso mesmo, em comparação com o que poderia ser. Pode ter
certeza de que aqueles caras sabem como queimar um prédio. Você
teve sorte.
Notei como ele se dissociava do jornal. Era “eu” quem tinha sorte,
não “nós”.
O bourbon já subira para o cérebro e começava a afrouxar a língua.
— Há cerca de três anos, talvez quatro, houve um grande incêndio
em uma das serrarias da família, na rodovia 401, perto da ilha. Nunca
incendiaram nada na ilha, porque não querem as autoridades
bisbilhotando ali. A seguradora farejou um golpe. Recusou-se a pagar.
E Lucien Wilbanks entrou com um processo. Compareci ao
julgamento, presidido pelo Meritíssimo Reed Loopus. Ouvi tudo o
que se disse ali.
Um gole longo e satisfatório.
— Quem ganhou?
Baggy ignorou minha pergunta, porque ainda não relatara toda a
história.
— Foi um grande incêndio. Os bombeiros de Clanton foram para
lá, com todos os seus caminhões. Os voluntários de Karaway também
partiram na direção da Ilha Padgitt, até mesmo um idiota com a sirene
ligada. Não há nada como um incêndio para deixar o pessoal por aqui
todo excitado. Isso e uma bomba, eu acho, mas não me lembro
quando foi a última bomba.
— O que aconteceu?
— A rodovia 401 passa por uma área de terras baixas perto da Ilha
Padgitt, uma região pantanosa. Há uma ponte sobre o Masseys Creek.
Quando os caminhões dos bombeiros entraram na ponte, encontraram
uma picape virada de lado, como se tivesse capotado duas vezes. A
estrada estava completamente bloqueada. Não dava para se desviar
da ponte, porque só havia valas e brejos nos lados.
Ele estalou os lábios de novo e serviu-se de mais uísque. Era tempo
de dizer mais alguma coisa. O que quer que eu falasse, no entanto,
seria ignorado. Era assim que Baggy preferia ser estimulado.
— De quem era a picape?
As palavras mal saíram de minha boca quando ele começou a
balançar a cabeça, como se a pergunta fosse totalmente irrelevante.
— O incêndio era muito grande, como o fogo do inferno. Os
caminhões estavam retidos na 401, porque algum palhaço capotara
com sua picape. Ele nunca foi encontrado. Nenhum sinal do
motorista. Nenhum sinal do proprietário, porque não havia registro.
Nenhuma pista. O número de identificação do veículo fora raspado.
Nunca apareceu ninguém para reivindicar a posse da picape. Que não
ficou muito avariada. Tudo isso foi exposto no tribunal. Todos sabiam
que os Padgitt atearam o incêndio e viraram uma de suas picapes
roubadas para bloquear a estrada. Só que a seguradora não podia
provar.
La embaixo, o xerife Coley pegara seu megafone. Pediu às pessoas
que se mantivessem à distância da rua do jornal. A voz estridente
imprimia urgência à situação.
— Quer dizer que a seguradora ganhou? - indaguei, ansioso em
ouvir o fim da história.
— Foi um julgamento sensacional. Prolongou-se por três dias.
Wilbanks consegue em geral fazer um acordo com uma ou duas
pessoas no júri. Vem fazendo isso há anos, sem nunca ter sido
apanhado. Além disso, ele conhece todo mundo no condado. Os
advogados da seguradora eram de Jackson, e não sabiam como as
coisas funcionam por aqui. O júri deliberou por duas horas. Voltou
com um veredicto favorável à reivindicação, de cem mil dólares e
mais um milhão de dólares de indenização punitiva.
— Um milhão e cem mil dólares!
— Isso mesmo. O primeiro veredicto de um milhão de dólares no
condado de Ford. Perdurou durante um ano, até que o Supremo
Tribunal decidiu cortar a parte da indenização punitiva.
A ideia de que Lucien Wilbanks podia influenciar jurados daquela
maneira não era nem um pouco confortadora. Baggy negligenciou seu
bourbon por um momento, enquanto observava alguma coisa lá
embaixo.
— É um mau sinal, filho - acrescentou ele, finalmente. - O pior
possível.
Eu era seu patrão e não gostava de ser tratado como “filho”, mas
deixei passar. Tinha questões mais prementes para tratar.
— A intimidação?
— Isso mesmo. Os Padgitt quase nunca deixam a ilha. O fato de
terem vindo até aqui para montar seu pequeno espetáculo significa
que estão prontos para a guerra. Se conseguirem intimidar o jornal,
tentarão com o júri. Já mandam no xerife.
— Mas Wilbanks disse que quer uma mudança de foro.
Ele soltou uma risada e redescobriu o uísque.
— Não conte com isso, filho.
— Por favor, chame-me de Willie.
Por mais estranho que pudesse parecer, eu começava a me apegar
a esse nome.
— Não aposte nessa possibilidade, Willie. O garoto é culpado. Sua
única chance é ter um júri que possa ser comprado ou apavorado.
Aposto dez contra um como o julgamento será realizado aqui mesmo,
neste prédio.
Depois de duas horas de espera, em vão, para que a terra tremesse,
a cidade queria almoçar. A multidão se dispersou. Os peritos
criminais do estado chegaram e começaram a trabalhar na oficina.
Não me deram permissão para entrar no prédio, o que era melhor
para mim.
Margaret, Wiley e eu comemos um sanduíche no coreto da praça.
Comemos quase em silêncio, só falando uma ou outra coisa, sempre
olhando para o prédio do jornal, no outro lado da rua. De vez em
quando alguém parava para trocar umas poucas palavras
constrangidas. O que se pode dizer a vítimas de atentados com
bombas que não explodem? Por sorte, os habitantes da cidade não
tinham muita experiência nessa área. Ouvimos palavras de simpatia e
umas poucas ofertas de ajuda.
O xerife Coley aproximou-se e fez um relatório preliminar sobre a
bomba. O relógio era um despertador de dar corda, de um tipo
encontrado em todas as lojas. À primeira vista, o perito achava que
havia um problema com os fios. Um trabalho de amador, disse ele.
— Como pretende investigar? - perguntei, com algum nervosismo.
— Procurar impressões digitais, descobrir se há testemunhas... as
coisas de sempre.
— Vai falar com os Padgitt?
Sentia-me cada vez mais nervoso. Afinal, estava na presença de
meus empregados. Embora estivesse apavorado, queria impressioná-
los com a minha coragem.
— Sabe de alguma coisa que eu ignoro?
— Eles não são suspeitos?
— Você é o xerife agora?
— Os Padgitt são os incendiários mais experientes do condado. Há
anos que incendeiam prédios impunemente. O advogado deles me
ameaçou no tribunal na semana passada. E já mostramos uma foto de
Danny Padgitt na primeira página duas vezes. Se eles não são
suspeitos, então quem pode ser?
— Vá em frente e escreva sua reportagem, filho. Pode dar seus
nomes. Parece que está mesmo determinado a ser processado.
— Eu cuido do jornal, enquanto você pega os criminosos.
Ele inclinou o chapéu para Margaret e afastou-se.
— A reeleição é no próximo ano - comentou Wiley, enquanto
observávamos Coley parar e conversar com duas mulheres, perto do
chafariz. - Espero que ele tenha um adversário.

A intimidação continuou, à custa de Wiley. Ele morava a um


quilômetro e meio da cidade, num sítio de dois hectares, onde a
esposa criava patos e cultivava melancias. Naquela noite, quando
saltou do carro, ao lado da casa, dois marginais saíram das moitas e o
agrediram. O homem maior derrubou-o e acertou um chute em sua
cara, enquanto o outro pegava duas câmeras no banco traseiro. Wiley
tinha 58 anos, mas era um ex-fuzileiro. Em algum momento da briga,
acertou um pontapé no atacante, jogando-o no chão. Houve uma troca
de socos. Quando Wiley parecia estar levando a melhor, o outro
bandido bateu-lhe na cabeça com uma das câmeras. Wiley disse que
não se lembrava de muita coisa depois disso.
Sua mulher ouviu o tumulto. Encontrou Wiley caído, semi
inconsciente, as duas câmeras quebradas. Dentro da casa, ela pôs
compressas de gelo em seu rosto. Verificou que não havia qualquer
osso quebrado. O ex-fuzileiro não queria ir para o hospital.
Um policial apareceu e ele fez um relato. Wiley apenas
vislumbrara os agressores, mas tinha certeza de que nunca os vira
antes.
— Eles já voltaram para a ilha a esta altura - disse ele. - Não vai
encontrá-los.
A esposa acabou impondo sua vontade. Uma hora depois, eles me
ligaram do hospital. Falei com Wiley entre radiografias. Seu rosto
estava todo arrebentado, mas ele conseguiu sorrir. Pegou minha mão
e puxou-me para perto, murmurando entre os lábios cortados e as
maxilas inchadas:
— Na próxima semana, primeira página.
Deixei o hospital poucas horas depois. Dei uma longa volta de
carro pelas estradas. Olhava pelo espelho a todo instante, como se
esperasse que outra horda de Padgitt viesse em meu encalço, as armas
disparando.
Aquele não era um condado sem lei, em que o crime organizado
podia fazer o que bem quisesse com os cidadãos honestos. Acontecia
justamente o contrário: o crime era raro. A corrupção, era em geral,
desaprovada. Eu estava certo e eles errados. Decidi que não cederia.
Compraria uma arma. Não era problema, já que todo mundo no
condado andava com duas ou três. E, se necessário, contrataria um
guarda-costas para me acompanhar. Meu jornal se tomaria ainda mais
firme a medida que se aproximasse o julgamento por homicídio.
CAPÍTULO 8
ANTES DA FALÊNCIA e da minha improvável ascensão para a
proeminência no condado de Ford, eu ouvira uma história fascinante
sobre uma família local. Spot nunca se aprofundara, porque exigiria
alguma pesquisa e uma viagem através dos trilhos do trem, que
separavam a cidade entre a parte rica e a parte pobre.
Agora que o jornal era meu, decidi que a história era boa demais
para ignorá-la.
Em Lowtown, o bairro colored da cidade, vivia um casal
extraordinário, Calia e Esau Ruffin. Eram casados havia mais de
quarenta anos. Haviam criado oito filhos, sete dos quais tinham
obtido um Ph.D. e eram agora professores universitários. As
informações sobre o filho restante eram vagas. Segundo Margaret, ele
se chamava Sam, e era um fugitivo da justiça.
Liguei para a casa deles. A sra. Ruffin atendeu. Expliquei quem era
e o que queria. Ela parecia saber de tudo a meu respeito. Disse que lia
o Times havia cinquenta anos, da primeira à última página, tudo
mesmo, inclusive os obituários e os anúncios de procura-se. Depois de
um momento, ela comentou que o jornal estava em mãos muito
melhores agora. Reportagens mais longas. Menos erros. Mais notícias.
Ela falava devagar, a voz clara, com uma dicção precisa, que eu não
ouvia desde que deixara Syracuse.
Quando finalmente tive uma oportunidade, agradeci e disse que
gostaria de encontrá-la, para conversar sobre a sua extraordinária
família. Ela sentiu-se lisonjeada e insistiu que eu fosse almoçar.
Foi assim que começou uma amizade que abriu meus olhos para
muitas coisas, uma das quais, não a menos importante, a cozinha
sulista.
Minha mãe morreu quando eu tinha treze anos. Era anoréxica, e só
houve necessidade de quatro homens para carregarem seu caixão.
Pesava menos de 45 quilos e parecia um fantasma. A anorexia era
apenas um de seus muitos problemas.
Porque não comia, também não cozinhava. Não posso me lembrar
de uma única refeição quente que ela tenha preparado para mim. O
café da manhã era uma tigela de Cheerios, o almoço um sanduíche
frio, e o jantar uma porcaria congelada, que eu costumava comer na
frente da televisão. Eu era filho único e meu pai nunca estava em casa,
o que era um alívio, porque sua presença causava atritos entre os dois.
Ele preferia comer, ela não. E brigavam por tudo.
Nunca passei fome; a despensa estava sempre bem abastecida com
manteiga de amendoim, cereais e coisas no gênero. De vez em quando
eu comia na casa de um amigo e me espantava como as famílias de
verdade cozinhavam e passavam tanto tempo à mesa. A comida
simplesmente não era importante em nossa casa.
Como adolescente, vivi de refeições congeladas. Em Syracuse,
minha dieta era cerveja e pizza. Durante os primeiros 23 anos de
minha vida, eu só comia quando tinha fome. O que era um erro.
Como logo aprendi em Clanton. No Sul, comer quase nada tinha a ver
com a fome.

A casa dos Ruffin ficava na melhor parte de Lowtown, numa


sucessão do que costumava chamar de shotgun houses, de um só andar,
estreitas, um corredor por toda a extensão, um cômodo se sucedendo
a outro no lado, sem janelas laterais. Tinha esse nome porque diziam
que um tiro de espingarda disparado da porta da frente atravessaria
toda a casa e sairia pela porta dos fundos. Ali, todas as casas eram
bem conservadas e pintadas. Os números da rua estavam nas caixas
de correspondência. Ao parar o carro, não pude deixar de sorrir pela
cerca de estacas brancas e as flores -peônias e íris — à beira da
calçada. Como era o início de abril, eu arriara a capota do Spitfire. Ao
desligar o carro, senti um aroma delicioso. Costeletas de porco!
Calia Ruffin recebeu-me no portão de vaivém, que se abria para
um gramado impecável. Era uma mulher corpulenta, tronco e ombros
largos, com um aperto de mão firme, que parecia de um homem.
Tinha os cabelos grisalhos e exibia os efeitos de criar tantos filhos. Mas
quando sorria, o que acontecia a todo instante, iluminava o mundo
com duas fileiras de dentes brilhantes e perfeitos. Eu nunca tinha visto
dentes assim.
— Fico contente que tenha vindo - disse ela, no meio do caminho
de lajotas.
Eu também me sentia contente. Era mais ou menos meio-dia, o
horário em que eu costumava comer alguma coisa. Os aromas que
vinham da varanda estavam me deixando tonto.
— Uma casa adorável - comentei, contemplando a fachada.
Era de madeira, pintada de branco. Dava a impressão de que
sempre havia alguém ali com uma brocha e uma lata de tinta. A
varanda, com um telhado verde de metal, estendia-se por toda a
frente da casa.
— Obrigada. Temos esta casa há trinta anos.
Eu sabia que a maioria das residências em Lowtown pertencia a
senhorios brancos, que viviam no outro lado dos trilhos. Possuir uma
casa era um feito extraordinário para negros em 1970.
— Quem é seu jardineiro? - perguntei, enquanto parava para
aspirar uma rosa amarela.
Havia flores por toda parte, beirando o caminho, ao longo da
varanda, nos dois lados dos limites do terreno.
— Pode dizer que sou eu - respondeu ela, com uma risada, os
dentes faiscando ao sol.
Subi três degraus para a varanda. Lá estava... a comida! Uma mesa
pequena, ao lado da grade, fora posta para duas pessoas: uma toalha
branca de algodão, guardanapos brancos, flores num vaso, um jarro
grande com chá gelado e pelo menos quatro travessas tampadas.
— Quem mais vai almoçar? — perguntei.
— Só nós dois. Esau pode aparecer mais tarde.
— Há comida suficiente para um exército.
Aspirei tão fundo quanto possível e meu estômago até doeu na
expectativa.
— Vamos comer agora, antes que esfrie - propôs ela.
Fiz um esforço para me controlar, andando sem pressa até a mesa.
Ela ficou na maior satisfação por eu ser tão cavalheiro. Sentei na sua
frente. Já me dispunha a arrancar as tampas e mergulhar de cara no
que encontrasse quando ela segurou minhas mãos e baixou a cabeça.
E começou a orar.
Seria uma longa oração. Ela agradeceu ao Senhor por tudo de bom,
inclusive eu, “seu novo amigo”. Orou pelos que estavam doentes e
pelos que poderiam adoecer. Orou pela chuva e o sol, a saúde,
humildade e paciência. Embora começasse a recear que a comida
esfriasse, estava fascinado por sua voz. A cadência era lenta, com uma
reflexão concedida a cada palavra. A dicção era perfeita, as consoantes
tratadas com justiça, cada vírgula e ponto respeitado. Tive de espiar
para ter certeza de que não sonhava. Nunca ouvira uma fala assim de
uma negra sulista... nem de uma branca sulista, diga-se de passagem.
Espiei de novo. Ela conversava com o Senhor, com uma expressão
de absoluto contentamento. Por alguns segundos, cheguei a esquecer
a comida. Ela apertou minhas mãos, enquanto suplicava ao Todo
Poderoso, com uma eloquência derivada de anos de prática. Citou as
Escrituras, a Bíblia King James, com certeza. Foi um tanto estranho
ouvi-la dizer palavras como “babujeis”, “azorrague” e “porquanto”.
Mas ela sabia com precisão o que fazia. Nunca me senti mais próximo
de Deus quanto na presença daquela santa mulher.
Não podia imaginar uma devoção tão prolongada a uma mesa
com oito crianças. Alguma coisa me dizia, no entanto, que todos se
calavam quando Calia Ruffin orava.
Finalmente, ela concluiu com um floreio, um longo fluxo em que
apelou para o perdão de seus pecados, que presumi que eram poucos
e espaçados, e para os meus, que... ora, Calia não fazia a menor ideia.
Ela soltou minhas mãos e começou a retirar as tampas das tigelas.
A primeira continha uma pilha de costeletas de porco, com um molho
que incluía, entre muitos ingredientes, cebolas e pimentões. Mais
vapor atingiu meu rosto e tive vontade de comer com as mãos. Na
segunda tigela, havia um monte de milho amarelo, salpicado com
pimentão verde, recém-saído do forno. Havia ainda quiabo cozido,
que ela preferia, como explicou enquanto se preparava para servir, à
variedade frita, porque se preocupava demais com a gordura em sua
dieta. Fora ensinada a preparar tudo à milanesa e fritar, de tomates a
picles, mas passara a compreender que os pratos assim não eram tão
saudáveis. Havia feijão manteiga, sem a milanesa e sem a fritura, mas
cozido com bacon. Havia uma travessa com pequenos tomates
vermelhos, cobertos por pimentão e azeite. Ela era uma das poucas
cozinheiras na cidade que usava azeite, informou, enquanto
prosseguia em sua narrativa. Eu absorvia cada palavra, à medida que
meu prato era preparado.
Um filho em Milwaukee lhe enviava o azeite da melhor qualidade,
pois era um produto que não se costumava usar em Clanton.
Pediu desculpas por ter comprado os tomates; os seus só estariam
prontos para serem colhidos no verão. O milho, o quiabo e o feijão
eram de sua horta, colhidos e enlatados em agosto do ano anterior. O
único vegetal “fresco” era a couve ou “couve da primavera”, como
chamava.
Uma enorme frigideira preta estava oculta no centro da mesa.
Quando ela tirou o guardanapo, descobri que havia ali pelo menos
dois quilos de pão de milho quente. Ela pegou uma enorme fatia, pôs
no meio do meu prato e disse:
— Pronto. Pode começar.
Eu nunca tivera tanta comida no prato à minha frente antes. E o
banquete começou.
Tentei comer devagar, mas era impossível. Chegara de barriga
vazia. Em algum ponto, entre os aromas concorrentes e a beleza da
mesa, entre a bênção um tanto longa e a descrição de cada prato, eu
me tornei absolutamente faminto. Concentrei-me em comer, e ela
parecia contente pela incumbência de falar por nós dois.
Sua horta produzira a maior parte da refeição. Ela e Esau
plantavam quatro tipos diferentes de tomate, feijão manteiga, feijão
fradinho, vagem, ervilha preta, pepino, berinjela, abóbora, couve,
mostarda, nabo, cebola branca, cebola amarela, cebola roxa, repolho,
quiabo, batata vermelha, batata-inglesa, cenoura, beterraba, milho,
pimentão verde, melão cantalupo, duas variedades de melancia e mais
algumas coisas de que ela não podia se lembrar no momento. As
costeletas de porco eram fornecidas por seu irmão, que ainda vivia na
velha propriedade da família, no campo. Ele matava dois porcos a
cada inverno, e a carne era guardada no freezer. Em troca, eles
mantinham-no abastecido de legumes e hortaliças frescos.
— Não usamos substâncias químicas - comentou ela, observando
enquanto eu me empanturrava. - Tudo é natural.
E o gosto certamente era.
— Mas está tudo guardado, como pode imaginar, desde o ano
passado. O gosto é melhor no verão, quando colhemos e comemos
poucas horas depois. Poderá voltar nessa ocasião, sr. Traynor?
Soltei um grunhido e acenei com a cabeça em concordância.
Consegui de alguma forma transmitir a mensagem de que voltaria a
qualquer momento que ela quisesse.
— Gostaria de ver minha horta?
Eu tornei a acenar com a cabeça, a boca cheia à capacidade
máxima.
— Ótimo. Fica lá nos fundos. Pode levar alfaces e outras verduras.
Estão crescendo muito bem.
— Maravilhoso! — consegui balbuciar.
— Calculo que um homem sozinho como você precise de toda
ajuda que puder obter.
— Como sabe que sou sozinho?
Tomei um gole do chá gelado. Poderia servir de sobremesa, de
tanto açúcar que tinha.
— As pessoas estão falando a seu respeito. E as notícias se
espalham. Não há muitos segredos em Clanton, nos dois lados dos
trilhos.
— O que mais soube?
— Deixe-me ver... Alugou o apartamento dos Hocutt. Veio do
Norte.
— Memphis.
— Tão longe assim?
— Fica a uma hora de distância.
— Era brincadeira. Uma de minhas filhas estudou na universidade
ali.
Eu tinha muitas perguntas sobre seus filhos, mas ainda não estava
disposto a fazer anotações. Ocupava as duas mãos para comer. Em
algum momento, chamei-a de Miss Calia, em vez de Miss Ruffin.
É Callie — disse ela. — Miss Callie ficará ótimo.
Um dos primeiros hábitos que absorvi em Clanton foi o de me
referir às mulheres, independentemente da idade e do estado civil,
pelo uso da palavra “Miss” na frente de seus nomes. Miss Brown,
Miss Webster, para as conhecidas recentes com mais alguns anos nas
costas. Miss Martha, Miss Sara, para as mais novas. Era um sinal de
cavalheirismo e boa criação. Como eu não tinha nenhuma das duas
coisas, era importante usar tantos costumes locais quanto pudesse.
— De onde veio o nome Calia?
— É italiano.
Ela falou como se isso explicasse tudo. Comeu um pouco de feijão-
manteiga. Cortei uma costeleta de porco, para depois repetir:
— Italiano?
— Isso mesmo. Foi minha primeira língua. É uma longa história,
entre muitas. Tentaram mesmo incendiar o jornal?
— Tentaram.
Eu ainda especulava se aquela mulher negra na região rural do
Mississippi acabara mesmo de dizer que sua primeira língua fora o
italiano.
— E agrediram o sr. Meek?
— Isso mesmo.
— Quem são eles?
— Ainda não sabemos. O xerife Coley está investigando.
Eu estava ansioso em ouvir sua opinião sobre o xerife. Enquanto
esperava, peguei outra fatia do pão de milho. Não demorou muito
para que houvesse manteiga pingando de meu queixo.
— Ele é o xerife há muito tempo, não é?
Apesar da pergunta, tenho certeza de que ela sabia o ano exato em
que Mackey Don Coley comprara a eleição para o cargo pela primeira
vez.
— O que acha dele? - indaguei.
Ela tomou um pouco do chá, enquanto pensava. Miss Callie não se
precipitava em suas respostas, ainda mais quando falava de outras
pessoas.
— Neste lado dos trilhos, um bom xerife é aquele que mantém os
jogadores, os fabricantes de bebidas e os cafetões longe de nós. Sob
esse aspecto, o sr. Coley tem feito um trabalho apropriado.
— Posso lhe perguntar uma coisa?
— Claro. É um repórter.
— Fala de uma maneira excepcionalmente articulada e precisa.
Quanta instrução recebeu?
Era uma pergunta delicada numa sociedade em que, por muitas
décadas, a instrução nunca tivera qualquer valor. Era o ano de 1970, e
o estado do Mississippi ainda não tinha jardins de infância públicos e
leis de frequência escolar obrigatória. Ela riu, concedendo-me o pleno
benefício daqueles dentes.
— Concluí a nona séria, sr. Traynor.
— A nona série?
— Isso mesmo. Mas minha situação era excepcional. Tive um tutor
maravilhoso. O que é outra longa história.
Comecei a compreender que aquelas longas histórias que Miss
Callie prometia ao longo da conversa levariam meses para serem
relatadas, talvez anos. Acalentei a esperança de que pudessem ser
contadas na varanda, durante um banquete semanal.
— Vamos deixá-la para mais tarde — acrescentou ela. — Como vai
o sr. Caudle?
— Não muito bem. Ele não quer sair de casa.
— Um homem de bem. Ele estará sempre junto do coração da
comunidade negra. Ele tinha muita coragem.
Pensei que a “coragem” de Spot tinha mais relação com a expansão
da quantidade de obituários do que com o compromisso de
tratamento justo com todos. Mas eu já aprendera como morrer era
importante para os negros: o ritual do velório, muitas vezes se
prolongando por uma semana; a maratona de serviços memoriais,
com caixões abertos e muitas lágrimas; as procissões fúnebres com um
quilômetro de comprimento; e, no final, as despedidas à beira da
sepultura, impregnadas de emoção. Quando Spot, numa atitude
radical, abriu sua página de obituários para os negros, tornara-se um
herói em Lowtown.
— Um homem de bem... - repeti, pegando minha terceira costeleta.
Já começava a me sentir empanzinado, mas ainda restava muita
comida na mesa!
— Está deixando-o orgulhoso com os obituários que passou a fazer
- comentou ela, com um sorriso afetuoso.
— Obrigado. Ainda estou aprendendo.
— Também tem a coragem, sr. Traynor.
— Pode me chamar de Willie? Só tenho 23 anos.
— Prefiro sr. Traynor.
E essa questão foi resolvida. Seriam precisos quatro anos para que
ela cedesse e passasse a me tratar pelo primeiro nome.
— Não tem medo da família Padgitt - anunciou ela.
Era novidade para mim.
— É apenas parte do meu trabalho.
— Espera que a intimidação continue?
— É bem provável. Eles estão acostumados a conseguirem tudo o
que querem. São violentos e implacáveis, mas uma imprensa livre
precisa resistir.
A quem eu tentava enganar? Mais uma bomba ou agressão e eu
voltaria para Memphis antes do amanhecer.
Ela parou de comer e desviou os olhos para a rua, sem se fixar em
qualquer coisa específica. Estava absorvida em pensamento, enquanto
eu, como não podia deixar de ser, continuava a manter a boca cheia.
Finalmente, ela murmurou:
— Aquelas pobres crianças, vendo a mãe daquele jeito...
A imagem fez com que meu garfo parasse em pleno ar. Limpei a
boca, respirei fundo e deixei a comida de lado por momento. O horror
do crime atiçara a imaginação de cada pessoa. Durante dias, Clanton
praticamente não falara de outra coisa. Como sempre acontece, os
comentários e rumores eram ampliados, versões diferentes surgiam e
eram repetidas, outra vez ampliadas. Senti-me curioso, querendo
saber como as histórias eram contadas em Lowtown.
— Disse pelo telefone que é leitora do Times há cinquenta anos -
lembrei, quase arrotando.
— É verdade.
— Pode se lembrar de um crime mais brutal?
Ela fez uma pausa, por um segundo, enquanto revisava cinco
décadas. Depois, sacudiu a cabeça.
— Não, não posso.
— Alguma vez se encontrou com um Padgitt?
— Nunca. Eles permanecem na ilha. Sempre foi assim. Até seus
negros ficam por lá, fabricando uísque, fazendo seu vodu, todos os
tipos de tolices.
— Vodu?
— Isso mesmo. É do conhecimento de todos neste lado dos trilhos.
Ninguém aqui se mete com os negros dos Padgitt. Nunca se meteram.
— As pessoas neste lado dos trilhos acreditam que Danny Padgitt
estuprou e matou a pobre coitada?
— As pessoas que lêem seu jornal claro que acreditam.
Isso me afligiu mais do que ela poderia imaginar.
— Apenas relatamos os fatos - declarei, presunçoso. - O garoto foi
preso. Acusado. Está na cadeia, aguardando o julgamento.
— Não há uma presunção de inocência?
Mais um sobressalto de constrangimento, no outro lado da mesa.
— Claro.
— Acha que foi justo usar uma foto dele algemado, com sangue na
camisa?
Fiquei aturdido com seu senso de justiça. Por que ela, ou qualquer
outro negro do condado de Ford, haveria de se importar se Danny
Padgitt era tratado com justiça? Poucas pessoas um dia se
preocuparam se os réus negros recebiam um tratamento decente da
polícia ou da imprensa.
— Ele tinha sangue na camisa quando chegou à cadeia. Não
pusemos o sangue.
Nenhum dos dois estava apreciando aquele pequeno debate.
Tomei um gole de chá, e descobri que tinha dificuldade para engolir.
Estava empanturrado.
Ela fitou-me com um daqueles sorrisos cativantes e teve a coragem
de perguntar:
— O que me diz de uma sobremesa? Fiz um pudim de banana.
Eu não podia dizer não. Mas também não conseguiria comer mais
nada. Era preciso fazer uma concessão.
— Vamos esperar um pouco. Dar tempo para assentar o que já
comi.
— Então tome mais chá - disse ela, já enchendo meu copo de novo.
Respirando com dificuldade, reclinei-me tanto quanto possível na
cadeira, decidido a bancar o jornalista. Miss Callie, que comera muito
menos do que eu, estava terminando uma porção de quiabo.
Segundo Baggy, Sam Ruffin fora o primeiro estudante negro a se
matricular numa escola branca em Clanton. Acontecera em 1964,
quando Sam estava na sétima série, doze anos de idade. A experiência
fora difícil para todo mundo. Baggy me advertira que Miss Callie
poderia não falar sobre o filho caçula. Havia um mandato de prisão
contra ele, que fugira da região.
A princípio, ela relutou mesmo. Em 1963, os tribunais decidiram
que um distrito escolar branco não podia negar a matrícula de um
estudante negro. A integração compulsória ainda estava a anos no
futuro. Sam era o filho caçula. Quando ela e Esau tomaram a decisão
de levá-lo para a escola branca, esperavam que outras famílias negras
fizessem a mesma coisa. Não fizeram, e durante dois anos Sam fora o
único aluno negro na Clanton Junior High School. Era perseguido e
agredido, mas logo aprendeu a usar os punhos. Com o passar do
tempo, deixaram-no em paz. Ele suplicou aos pais que o pusessem de
volta na escola negra. Mas Callie e Esau insistiram na escola branca,
mesmo depois que ele ingressou na senior high. A situação logo
mudaria, eles alegavam para si mesmos. A luta pela dessegregação era
intensa por todo o Sul e sempre se prometia aos negros que a decisão
de Brown versus Board of Education seria cumprida.
— É difícil acreditar que mesmo já estando em 1970 ainda haja
segregação nas escolas por aqui - disse ela.
Processos federais e decisões de tribunais de recursos minavam a
resistência por todo o Sul, mas o estado do Mississippi, tipicamente,
lutaria até o amargo fim. Quase todos os brancos que eu conhecia em
Clanton estavam convencidos de que suas escolas nunca seriam
integradas. Eu, um nortista de Memphis, podia perceber o óbvio.
— Arrepende-se de ter mandado Sam para a escola branca?
— Sim e não. Alguém precisava ter coragem. Era angustiante saber
que ele se sentia muito infeliz, mas tínhamos de assumir uma posição.
Não podíamos recuar.
— Como ele está hoje?
— Sam é outra história, sr. Traynor, sobre a qual poderemos
conversar mais tarde... ou nunca mais falar. Gostaria de conhecer
minha horta?
Era mais uma ordem do que um convite. Segui-a através do
corredor. Havia dezenas de fotos emolduradas de filhos e netos nas
paredes. O interior da casa era tão meticuloso quanto o exterior. A
cozinha abria-se para uma varanda, a partir da qual, estendendo-se
até a cerca nos fundos do terreno, estava o Jardim do Éden. Não havia
um único palmo de terra desperdiçado.
Era um cartão-postal de lindas cores, fileiras esmeradas de plantas,
trilhas de terra estreitas, para que Callie e Esau pudessem cuidar de
sua plantação espetacular.
— O que fazem com tudo o que colhem aqui? — indaguei,
impressionado.
— Comemos um pouco, vendemos um pouco, damos a maior
parte. Ninguém passa fome por aqui.
Naquele momento, meu estômago doía como nunca antes.
A fome era uma noção que eu não podia compreender. Segui-a
pela horta, avançando devagar através das trilhas, enquanto Miss
Callie apontava o canteiro de ervas e o de melancias, de todos os
outros legumes, hortaliças e frutas de que ela e Esau cuidavam com
tanto carinho. Callie fazia comentários sobre cada planta. Ao
encontrar uma erva daninha, arrancou-a quase com raiva e jogou-a na
direção de uma trepadeira. Era impossível para ela percorrer a horta e
ignorar os detalhes. Procurava por insetos, matou uma lagarta verde
de aparência repulsiva num tomateiro, arrancava ervas daninhas,
fazia anotações mentais sobre futuras tarefas para Esau. O passeio
lento e descontraído estava fazendo maravilhas por meu sistema
digestivo.
Portanto, é daqui que vem a comida, pensei, em minha ignorância.
O que eu esperava? Era um garoto da cidade grande. Nunca estivera
numa horta antes. Tinha muitas perguntas, todas banais, e por isso
preferi me conter.
Ela examinou um pé de milho e não ficou nada satisfeita com o
que viu. Pegou uma vagem, partiu ao meio, analisou como um
cientista e ofereceu sua opinião cautelosa de que precisavam de muito
mais sol. Encontrou um canteiro cheio de ervas daninhas e informou-
me que Esau seria enviado para arrancá-las assim que chegasse em
casa. Não invejei Esau.

Depois de três horas, deixei a casa dos Ruffin, outra vez


empanzinado, agora com o pudim de banana. Também parti com um
saco de “couve da primavera” - e não sabia o que fazer com aquilo - e
umas poucas anotações preciosas como base para uma reportagem.
Saí ainda com um convite para outro almoço, na quinta-feira seguinte.
Por fim, levava uma lista manuscrita de todos os erros que Miss Callie
encontrara na edição do Times naquela semana. Quase todos eram
erros tipográficos e palavras escritas com algum erro. Eram doze, no
total. No tempo de Spot, a média era de vinte. A redução fora
considerável. Era um hábito vitalício de Miss Callie.
— Algumas pessoas gostam de fazer problemas de palavras
cruzadas — comentou ela. — Eu gosto de procurar erros.
Era difícil não considerar em termos pessoais. Tenho certeza de
que ela não tinha a intenção de criticar ninguém. Decidi, porém, que
leria as provas de todos os textos com muito mais entusiasmo.
Também parti com a sensação de que iniciara uma amizade nova e
gratificante.
CAPÍTULO 9
PUBLICAMOS OUTRA FOTO grande na primeira página. Era a foto que
Wiley tirara da bomba, antes de ser desmontada pela polícia. A
manchete por cima apregoava: BOMBA ENCONTRADA NA
OFICINA DO TIMES.
A reportagem começava com Piston e sua descoberta sinistra.
Incluía todos os detalhes que eu podia confirmar e alguns que não
podia. Nenhum comentário do chefe de polícia, umas poucas frases
sem qualquer importância do xerife Coley. Terminava com um
resumo das descobertas do laboratório de criminalística do estado e
uma predição de que a bomba, se detonada, causaria danos “maciços”
aos prédios no lado sul da praça.
Wiley não me permitiu usar uma foto de seu rosto todo
machucado, embora eu suplicasse desesperadamente. Na metade
inferior da primeira página, publiquei outra manchete: FOTÓGRAFO
DO TIMES AGREDIDO EM CASA. Outra vez, a reportagem não
poupava detalhes, embora Wiley insistisse em ter permissão para
editá-la.
Nas duas reportagens, sem qualquer esforço de sutileza, eu ligava
os crimes e insinuava, de uma forma um tanto incisiva, que pouco
vinha sendo feito pelas autoridades, especialmente o xerife Coley,
para prevenir novas intimidações. Não citei o nome dos Padgitt em
nenhum momento. Nem precisava. Todos no condado sabiam que
eles estavam tentando me amedrontar e ao jornal.
Spot era muito indolente para fazer editoriais. Escrevera apenas
um durante todo o tempo em que eu fora seu empregado. Um
deputado federal do Oregon apresentara um projeto meio doido que
afetava o corte das sequóias... mais corte, ou talvez menos, não era
muito claro. Isso deixara Spot transtornado. Passara duas semanas
trabalhando num editorial, até que finalmente publicara um protesto
de duas mil palavras. Era óbvio para qualquer pessoa com instrução
secundária que ele escrevia com a caneta numa das mãos e o
dicionário na outra. O primeiro parágrafo, repleto de palavras com
mais de seis sílabas do que qualquer um já vira, era praticamente
indecifrável. Spot ficara chocado quando não houvera reação da
comunidade. Esperava um dilúvio de cartas de apoio. Poucos de seus
leitores poderiam ter sobrevivido ao seu dilúvio do Websters.
Finalmente, três semanas depois, um bilhete escrito à mão fora
enfiado por baixo da porta da frente do jornal:

Prezado Editor:
Lamento que tenha ficado tão furioso por causa
das sequóias, que não temos no Mississippi. Se o
Congresso começar a se intrometer com as
árvores usadas para a fabricação de papel,
poderia fazer o favor de nos avisar?
Não tinha assinatura, mas Spot publicou assim mesmo. Sentia-se
aliviado por descobrir que alguém lhe prestava atenção. Baggy me
contou mais tarde que o bilhete fora escrito por um de seus
companheiros de copo no tribunal.
Meu editorial começava assim: “Uma imprensa livre e sem
restrições é essencial para um sólido governo democrático. ” Sem ser
pomposo ou chato, continuei por quatro parágrafos, enaltecendo a
importância de um jornal dinâmico e inquisitivo, não apenas para o
país, mas também para cada pequena comunidade. Garanti que o
Times não seria dissuadido pela intimidação de noticiar os crimes
locais, quer fossem estupro e assassinato, ou atos corruptos de
autoridades públicas.
Era ousado, corajoso e brilhante. Os habitantes da cidade estavam
do meu lado. Era o Times contra os Padgitt e seu xerife. Assumíamos
uma posição vigorosa contra os bandidos. Embora eles fossem
perigosos, era evidente que não estavam me intimidando. Continuei a
dizer a mim mesmo para agir com coragem. Na verdade, não havia
opção. O que meu jornal deveria fazer?
Ignorar o assassinato de Kassellaw? Ser indulgente com Danny
Padgitt?
Minha equipe ficou exultante com o editorial. Margaret comentou
que a fazia se sentir orgulhosa por trabalhar no Times. Wiley, ainda se
recuperando dos ferimentos, andava armado agora, ansioso por uma
briga.
— Vamos dar uma lição nessa gente, meu foca.
Só Baggy se mostrava cético.
— Você vai sair machucado - comentava.
E Miss Callie outra vez me descreveu como corajoso. O almoço na
quinta-feira seguinte durou apenas duas horas e incluiu Esau.
Comecei a tomar anotações sobre sua família. E ainda mais
importante, ela descobriu apenas três erros na edição daquela semana.

Eu estava sozinho no escritório, no início da tarde de sexta-feira,


quando alguém fez uma entrada ruidosa lá embaixo. Subiu fazendo
ainda mais barulho. Empurrou a porta de minha sala sem sequer dar
um “Alô”. Enfiou as mãos nos bolsos. Parecia vagamente familiar; já
devíamos ter nos encontrado em algum lugar da praça.
— Tem um desses, garoto?
Ele tirou a mão direita do bolso e por um instante senti o coração e
os pulmões ficarem congelados. Empurrou uma arma reluzente por
cima da mesa, como se fosse um chaveiro. A arma girou por alguns
segundos, antes de parar bem na minha frente, o cano felizmente
virado para a janela. O homem inclinou-se por cima da mesa,
estendendo a mão enorme.
— Harry Rex Vonner. Muito prazer.
Eu estava atordoado demais para falar ou me mexer, mas, depois
de um momento, aceitei o aperto de mão, embora meio fraco, de uma
maneira embaraçosa. Ainda olhava para a arma.
— É um Smith & Wesson trinta e oito, seis tiros, um revólver
danado de bom. Tem um?
Sacudi a cabeça em negativa. O simples nome já me provocava um
calafrio.
Harry Rex tinha um repulsivo charuto preto no lado esquerdo da
boca. Dava a impressão de ter passado a maior parte do dia ali,
lentamente se desintegrando, como um pedaço de fumo de rolo. Não
havia fumaça, porque o charuto não estava aceso. Ele arriou o corpo
enorme numa cadeira de couro, como se pretendesse passar algumas
horas ali.
— Sabia que você é um filho da puta maluco?
Ele mais resmungava do que falava. E foi então que me lembrei do
nome. Era um advogado local, que Baggy descrevera uma vez como o
mais hábil especialista em divórcio do condado. Tinha o rosto grande
e cheio, os cabelos curtos espetados em todas as direções, como palha
soprada pelo vento. O velho terno cáqui era amarrotado e manchado,
apregoando para o mundo que Harry Rex não se importava com coisa
alguma.
— O que devo fazer com isto? — indaguei, apontando para o
revólver.
— Primeiro, tem de carregar. Eu lhe darei algumas balas. Depois,
guarde no bolso, e leve para qualquer lugar que for. E quando um
daqueles bandidos dos Padgitt saltar das moitas na sua frente, acerte-
lhe um tiro entre os olhos.
Para ajudar a transmitir a mensagem, ele deslocou o dedo
indicador pelo ar, espetando-o entre os olhos.
— Não está carregado?
— Claro que não. Não sabe nada sobre armas?
— Infelizmente, não.
— Pois é melhor aprender, garoto, pelo ritmo em que está indo.
— A situação é tão ruim assim?
— Fiz um divórcio uma ocasião, acho que há uns dez anos, para
um homem cuja jovem esposa gostava de se esgueirar às escondidas
para o bordel e ganhar alguns dólares. O cara trabalhava no mar,
passava dias fora de casa, não tinha a menor ideia do que ela fazia.
Mas ele finalmente descobriu. Os Padgitt eram donos do bordel, e um
deles gamara pela mulher. - De alguma forma, o charuto permanecera
no lugar, subindo e descendo com a narrativa. - Meu cliente ficou
desolado. Queria sangue. E conseguiu. Eles pegaram-no uma noite e
bateram até que o deixaram sem sentidos.
— Eles?
— Os Padgitt, tenho certeza, ou alguns de seus agentes.
— Agentes?
— Isso mesmo. Há uma porção de bandidos trabalhando para eles.
Quebradores de pernas, lançadores de bombas, ladrões de carros,
assassinos de aluguel.
Ele deixou que a palavra “assassinos” pairasse no ar, enquanto me
observava estremecer. Dava a impressão de que poderia contar
histórias para sempre sem se preocupar demais com a veracidade.
Harry Rex tinha um sorriso sinistro e um brilho nos olhos. Desconfiei
de que a história era bastante exagerada.
— E é claro que eles nunca foram apanhados - comentei.
— Os Padgitt nunca foram apanhados.
— O que aconteceu com seu cliente?
— Passou alguns meses no hospital. A lesão cerebral foi bastante
severa. Ele entrava e saía dos internamentos. A família se desagregou.
Ele acabou se mudando para a Costa do Golfo, onde foi eleito para o
senado estadual.
Sorri e acenei com a cabeça pelo que esperava que fosse uma
mentira, mas não insisti no assunto. Sem tocar no charuto com as
mãos, ele inclinou a cabeça e fez um rápido movimento com a língua,
transferindo o charuto apagado para o lado direito da boca.
— Alguma vez já comeu bode? - perguntou Harry Rex.
— Como?
— Já comeu bode?
— Nem sabia que se comia.
— Vamos assar um, esta tarde. Na primeira sexta-feira de cada
mês ofereço uma festa do bode, em minha cabana no bosque. Música,
cerveja gelada, diversão e jogos, cerca de cinquenta pessoas, todas
escolhidas a dedo, a nata da sociedade. Nada de médicos, banqueiros
ou os idiotas do country club. Uma turma de classe. Por que não
aparece por lá? Tenho um estande de tiro atrás de um pequeno lago.
Levarei a arma e você poderá aprender a usá-la.
A viagem de carro de dez minutos até a cabana de Harry Rex
levou na verdade quase uma hora, e isso apenas na parte pela estrada
pavimentada. Quando atravessei “o terceiro córrego, depois do posto
de gasolina Hecks, da rede da Union 76”, deixei o asfalto e entrei
numa estrada de cascalho. Por algum tempo, foi uma boa estrada de
cascalho, com caixas de correspondência indicando alguma esperança
de civilização. Depois de cinco quilômetros, no entanto, as caixas de
correspondência acabaram e o cascalho também. Quando vi “um
trator Massey Ferguson enferrujado, sem pneus”, virei à esquerda,
numa estrada de terra. O mapa tosco indicava o caminho como uma
trilha de porcos, embora eu não visse nenhum porco. Quando a trilha
desapareceu numa floresta densa, pensei em voltar. Meu Spitfire não
fora projetado para aquele terreno. Já fazia 45 minutos que estava ao
volante quando finalmente avistei o telhado da cabana.
Havia uma cerca de arame farpado com um portão de metal
aberto. Parei ali, porque o jovem com uma espingarda queria que eu
parasse. Ele manteve a arma no ombro, enquanto olhava desdenhoso
para o meu carro.
— Que carro é esse?
— Triumph Spitfire. É inglês.
Eu estava sorrindo, tentando não ofendê-lo. Por que uma festa de
bode precisava de segurança armada? Ele tinha a aparência rústica de
alguém que nunca vira um carro fabricado em outro país.
— Qual é o seu nome?
— Willie Traynor.
Acho que “Willie” fez com que ele se sentisse melhor, porque
acenou com a cabeça para o portão.
— Belo carro — comentou ele, quando passei.
As picapes eram mais numerosas do que os carros. O
estacionamento era a esmo, num campo que se estendia a partir da
cabana. Merle Haggard gemia por dois alto-falantes instalados nas
janelas. Um grupo de convidados se amontoava em torno de um
buraco cavado na terra, de onde saía fumaça. Era ali que assavam o
bode. Outro grupo jogava ferraduras, ao lado da cabana. Três
mulheres vestidas com algum exagero estavam na varanda, tomando
alguma coisa que não era cerveja. Harry Rex apareceu e me
cumprimentou, efusivo.
— Quem é o garoto com a espingarda? - perguntei.
— Ah, ele... É Duffy, o sobrinho de minha primeira mulher.
— Por que ele está no portão?
Se a festa do bode incluía alguma coisa ilegal, eu queria pelo
menos ser avisado.
— Não se preocupe. Duffy passa o tempo todo ali, mas a arma não
está carregada. Há anos que ele monta guarda por nada.
Sorri como se isso fizesse todo o sentido do mundo. Ele me levou
até o buraco, onde vi meu primeiro bode, morto ou vivo. Com a
exceção da cabeça e pele, o animal parecia intacto. Fui apresentado aos
muitos chefs. Cada nome era acompanhado por uma ocupação, um
advogado, um financiador de fianças, um revendedor de carros, um
fazendeiro. Enquanto eu observava o bode girar no espeto,
lentamente, descobri que havia muitas teorias conflitantes sobre a
melhor maneira de fazer um churrasco de bode. Harry Rex me
entregou uma cerveja. Fomos para a cabana, falando com todo mundo
que encontrávamos na passagem. Uma secretária, “um corretor de
imóveis que é um autêntico escroque”, a atual esposa de Harry Rex.
Todos pareciam satisfeitos em conhecer o novo proprietário do Times.
A cabana ficava à beira de um lago lamacento, do tipo que as
cobras acham atraente. Um deque projetava-se por cima da água, e
havia uma pequena multidão ali. Harry Rex demonstrou o maior
prazer em me apresentar a seus amigos.
— Ele é um bom garoto, não o idiota típico da Ivy League -disse
ele, mais de uma vez.
Não me agradava ser chamado de “garoto”, mas já estava
começando a me acostumar. Fiquei num pequeno grupo, que incluía
duas mulheres, que davam a impressão de terem passado anos nos
cabarés locais. Maquiagem exagerada nos olhos, cabelos armados,
roupas apertadas. Demonstraram um interesse imediato por mim. A
conversa começou pela bomba e a agressão a Wiley Meek, a nuvem de
medo que os Padgitt espalhavam sobre o condado. Comportei-me
como se aquilo não passasse de mais um episódio rotineiro em minha
longa e movimentada carreira no jornalismo. Crivaram-me de
perguntas e acabei falando mais do que queria.
Harry Rex juntou-se a nós. Entregou-me um jarro com um líquido
de aparência suspeita.
— Beba devagar — disse ele.
— O que é isto?
Notei que os outros observavam, curiosos.
— Conhaque de pêssegos.
— Por que está num jarro de fruta?
— Porque é assim que eles fabricam.
— Uma fabricação ilegal, o que chamamos de moonshine -explicou
uma das mulheres... a voz da experiência.
Não era com frequência que aqueles rurais viam alguém da “Ivy
League” tomar o seu primeiro gole de moonshine. Por isso, a multidão
se aproximou. Eu tinha certeza de que consumira mais álcool nos
cinco anos anteriores, em Syracuse, do que qualquer um dos
presentes. Por isso, lancei a cautela ao vento. Levantei o jarro, disse:
“A nós! ”, e tomei um gole pequeno. Estalei os lábios.
— Nada mau.
E tentei sorrir como um calouro numa festa na fraternidade. A
ardência começou pelos lábios, o ponto inicial de contato, passou pela
língua e gengivas. Quando atingiu o fundo da garganta, pensei que
estava em chamas. Todos me observavam. Harry Rex tomou um gole
do seu jarro.
— De onde vem? - perguntei, tão descontraído quanto possível,
embora o fogo escapasse através dos dentes.
— De um lugar perto daqui - informou alguém.
Escaldado e dormente, tomei outro gole, ansioso para que a
multidão me ignorasse por algum tempo. Por mais estranho que possa
parecer, no entanto, o terceiro gole revelou uma insinuação do sabor
de pêssego, como se as papilas gustativas tivessem sofrido um choque
antes de começarem a funcionar. Quando ficou patente que eu não
mais respirava fogo, não estava prestes a vomitar ou gritar, a conversa
recomeçou. Harry Rex, sempre ansioso em apressar minha educação,
estendeu um prato com alguma coisa frita.
— O que é isto? - perguntei, desconfiado.
Minhas duas damas pintadas torceram o nariz e viraram o rosto,
como se o cheiro pudesse fazer com que passassem mal.
— Chitlins - respondeu uma delas.
— E o que isso significa?
Harry Rex meteu um pedaço na boca, como se quisesse provar que
não era veneno; e tornou a estender o prato para mim.
— Experimente - insistiu ele, mastigando como se fosse uma
iguaria refinada.
As pessoas observavam-me de novo. Por isso, peguei o pedaço
menor e pus na boca. A textura era parecida com borracha, o gosto
acre. O cheiro tinha uma essência de curral. Mastiguei com toda força
possível, engoli em seguida e arrematei com um gole do conhaque. E,
por alguns segundos, pensei que ia desmaiar.
— Tripa de porco frita, meu garoto — explicou Harry Rex, dando
um tapa em minhas costas.
Ele meteu na boca outro pedaço, grande. Estendeu o prato em
minha direção.
— Onde está o bode? — consegui perguntar, pois qualquer coisa
seria melhor do que aquilo.
O que havia acontecido com a cerveja e a pizza? Por que aquelas
pessoas comiam coisas tão repugnantes?
Harry Rex afastou-se, o cheiro pútrido dos chitlins seguindo-o
como fumaça. Pus o jarro em cima da grade, esperando que caísse e
desaparecesse. Observei os outros passarem a bebida de mão em mão,
quase sempre um jarro só para um grupo inteiro. Não havia a menor
preocupação com germes e coisas similares. Porque nenhuma bactéria
seria capaz de sobreviver a menos de um metro da beberagem infame.
Pedi licença para deixar o deque, alegando que precisava ir ao
banheiro. Harry Rex saiu pela porta dos fundos da cabana, trazendo
duas armas e uma caixa de munição.
— É melhor darmos alguns tiros antes de escurecer - disse ele. —
Venha comigo.
Paramos junto do espeto com o bode. Um caubói chamado Rafe
desligou-se do grupo para nos acompanhar.
— Rafe é meu corredor de casos - informou Harry Rex, enquanto
nós três entrávamos no bosque.
— E o que é um corredor de casos? - indaguei.
— Ele corre atrás dos casos.
— Sou o cara que segue a ambulância — acrescentou Rafe,
prestativo. - Embora quase sempre a ambulância fique atrás de mim.
Eu ainda tinha muito que aprender, mas sentia que efetuava um
progresso real. Não era pouca coisa experimentar chitlins e moonshine
no mesmo dia. Percorremos uma centena de metros, por uma antiga
estrada de terra, através do bosque, e chegamos a uma clareira. Entre
dois carvalhos magníficos, Harry Rex erguera um muro em
semicírculo, com fardos de feno, na altura de seis metros. No meio
havia um lençol branco, no qual alguém desenhara os contornos
toscos de um homem. Um atacante. O inimigo. O alvo.
Não houve nenhuma surpresa quando Rafe sacou sua própria
arma. Harry Rex estendeu a minha.
— O negócio é o seguinte - disse ele, iniciando a lição. — Este é um
revólver de ação dupla, com seis balas. Aperte aqui e o cilindro pula
para fora.
Rafe inclinou-se e inseriu as seis balas nas aberturas. Era óbvio que
ele já fizera aquilo muitas e muitas vezes.
— Empurre o tambor de volta para o lugar, desse jeito, e está
pronto para atirar.
Estávamos a cerca de quinze metros do alvo. Eu ainda podia ouvir
a música na cabana. O que os outros convidados pensariam quando
ouvissem os tiros? Nada. Acontecia sempre. Rafe pegou minha arma e
virou-se para o alvo.
— Para começar, abra as pernas na largura dos ombros, dobre
ligeiramente os joelhos, use as duas mãos assim e aperte o gatilho com
o dedo indicador direito.
Ele fez a demonstração enquanto falava. Claro que tudo parecia
fácil. Eu me encontrava a menos de um metro e meio de distância
quando a arma disparou. O estampido provocou-me um sobressalto.
Por que tinha de ser tão alto?
Eu nunca ouvira tiros ao vivo.
O segundo tiro atingiu o alvo bem no peito. Os quatro seguintes
acertaram em vários pontos da barriga. Rafe virou-se para mim, abriu
o cilindro, tirou os cartuchos vazios e disse:
— Agora é a sua vez.
Minhas mãos tremiam quando peguei a arma. Estava quente. O
cheiro de pólvora pairava intenso ao nosso redor. Consegui inserir as
seis balas e fechar o cilindro sem machucar ninguém. Virei-me para o
alvo, levantei a arma com as duas mãos, meio agachado como alguém
num filme de segunda classe, fechei os olhos e puxei o gatilho. A
sensação e o estrondo foram da explosão de uma pequena bomba.
— Tem de manter a droga dos olhos abertos — resmungou Harry
Rex.
— O que acertei?
— Aquela colina além dos carvalhos.
— Tente de novo - disse Rafe.
Tentei olhar pela mira, mas tremia tanto que não era de qualquer
proveito. Apertei o gatilho de novo, desta vez com os olhos abertos,
esperando ver onde a bala acertava. Não notei qualquer marca em
torno do alvo.
— Ele errou o lençol - murmurou Rafe, por trás de mim.
— Atire de novo — insistiu Harry Rex.
Foi o que fiz. Mais uma vez, não pude ver onde a bala acertou.
Rafe, gentilmente, pegou-me pelo cotovelo e me adiantou três metros.
— Está indo bem - assegurou ele. — Temos bastante munição.
Não acertei nem no feno no quarto tiro. Harry Rex disse:
— Acho que os Padgitt estão seguros, no final das contas.
É a bebida - murmurei.
— Só é preciso prática - disse Rafe.
Ele tornou a me adiantar mais um pouco. Minhas mãos suavam, o
coração galopava dentro do peito, os ouvidos zumbiam.
No quinto tiro acertei o lençol, embora apenas por pouco, no canto
superior direito, a pelo menos dois metros do alvo. No sexto tiro errei
tudo de novo. Ouvi a bala acertar um galho de um dos carvalhos.
— Bom tiro - comentou Harry Rex. - Você quase liquidou um
esquilo.
— Cale-se! - resmunguei.
— Relaxe - disse Rafe. - Está tenso demais.
Ele me ajudou a recarregar. Apertou minhas mãos em torno da
arma.
— Respire fundo — instruiu Rafe, por cima do meu ombro. -Exale
um momento antes de puxar o gatilho.
Rafe firmou a arma, enquanto eu olhava pela mira. A bala
disparada atingiu o alvo na virilha.
— Agora começamos para valer - comentou Harry Rex.
Rafe soltou-me. Como um pistoleiro num duelo no Velho
Oeste, descarreguei rapidamente os cinco tiros seguintes. Todos
atingiram o lençol. Uma bala arrancaria a orelha do alvo. Rafe
aprovou e tornamos a carregar.
Harry Rex trouxera uma automática Glock de 9mm, de sua vasta
coleção. Enquanto o sol descia lentamente pelo céu, nós nos
revezamos em atirar. Ele era bom e não teve dificuldade para acertar
dez tiros consecutivos na parte superior do tronco do alvo, a quinze
metros de distância. Depois de quatro rodadas, comecei a relaxar e
apreciar o esporte. Rafe era um excelente mestre. À medida que eu
progredia, ele ia me dando algumas dicas.
— Só é preciso prática — repetiu ele, várias vezes.
Quando acabamos, Harry Rex anunciou:
— A arma é um presente. Pode vir praticar aqui a qualquer
momento.
— Obrigado.
Meti o revólver no bolso, como um autêntico sulista das regiões
rurais. Sentia-me satisfeito porque o ritual terminara, porque realizara
uma coisa que todos os machos do condado experimentavam desde os
doze anos de idade. Não me sentia mais seguro. Qualquer Padgitt que
pulasse de trás das moitas teria a vantagem da surpresa e o benefício
de anos de prática de tiro. Quase que podia me imaginar sacando
minha arma no escuro, para disparar uma bala que teria mais
probabilidade de me acertar do que atingir o atacante.
Enquanto voltávamos pelo bosque, Harry Rex informou, por trás
de mim:
— Aquela loura oxigenada que você conheceu, Carleen...
— O que tem ela? - perguntei, com um súbito nervosismo.
— Ela gostou de você.
Carleen tinha pelo menos quarenta anos bem vividos. Não pude
pensar em nada para dizer.
— Ela está sempre disposta a cair na cama.
Eu desconfiava que Carleen conhecia muitas camas no condado de
Ford.
— Não, obrigado. Tenho uma garota em Memphis.
— E daí?
— Boa pergunta - murmurou Rafe.
— Uma garota aqui, outra ali. Que diferença isso faz?
— Vamos fazer um acordo, Harry Rex. Se eu precisar de sua ajuda
para arrumar mulher, pode deixar que o avisarei.
— Apenas um balanço no feno - insistiu ele.
Eu não tinha nenhuma garota em Memphis, mas conhecia várias.
Preferia pegar o carro para ir até lá a me rebaixar para uma mulher
como Carleen.

O bode tinha um gosto característico; não chegava a ser bom, mas


depois dos chitlins não era tão ruim quanto eu receava. A carne era
dura, com um molho gorduroso de churrasco, que desconfiei ter sido
aplicado em camadas generosas para disfarçar o gosto. Voltamos ao
deque, com Loretta Lynn cantando ao fundo. A bebida voltou a
circular e alguns convidados começaram a dançar. Carleen
desaparecera com alguém e por isso eu me sentia seguro. Harry Rex
contava a todo mundo como eu fora eficiente ao atirar em esquilos e
coelhos. Seu talento para relatar uma história era extraordinário.
Eu era um corpo estranho, mas foram envidados todos os esforços
para me incluir. Ao voltar, pelas estradas escuras, fiz-me a mesma
pergunta que formulava todos os dias. O que estava fazendo ali, no
condado de Ford, no estado do Mississippi?
CAPÍTULO 10
A ARMA ERA GRANDE demais para o meu bolso. Durante algumas
horas, ainda tentei andar armado, mas me sentia apavorado com a
possibilidade de que a arma disparasse de repente e atingisse as
chamadas partes íntimas. Por isso, decidi levá-la numa pasta de couro
surrada que meu pai me dera. Por três dias, a pasta me acompanhou
por toda parte, até mesmo no almoço. Mas também me cansei de
carregá-la. Depois de uma semana, passei a deixar a arma sob o banco
do meu carro; e três semanas mais tarde, quase que esquecera sua
existência. Não voltei à cabana para mais exercícios de tiro ao alvo,
mas compareci a outras festas do bode, em que evitei chitlins,
moonshine e Carleen, que se tornava cada vez mais agressiva.
O condado andava quieto, uma calmaria antes do frenesi do
julgamento. O Times não publicou nenhuma reportagem sobre o caso,
porque nada acontecera. Os Padgitt ainda se recusavam a oferecer
suas terras como garantia da fiança de Danny. Por isso, ele continuou
como hóspede na cela especial do xerife Coley, assistindo à televisão,
jogando cartas ou damas, descansando muito e recebendo uma
comida melhor do que a servida aos outros presos.
Na primeira semana de maio, o juiz Loopus voltou à cidade; e
meus pensamentos voltaram ao meu fiel Smith & Wesson.
Lucien Wilbanks apresentara uma petição de mudança de foro e o
juiz marcou uma audiência para as nove horas da manhã de segunda-
feira. Metade do condado compareceu, ao que parecia. Quase todos os
frequentadores regulares da praça estavam lá. Baggy e eu chegamos
cedo ao tribunal para garantir bons lugares.
A presença do réu não era obrigatória, mas obviamente o xerife
Coley queria exibi-lo. Ele chegou algemado, usando um macacão
laranja da prisão, novinho. Todos olharam para mim. O poder da
imprensa provocara uma mudança.
— É uma armação? — sussurrou Baggy.
— Como assim?
— Estão nos jogando uma isca, querendo que publiquemos uma
foto de Danny em seu elegante uniforme de preso. Se isso acontecer,
Wilbanks pode procurar o juiz e alegar que os jurados em potencial
foram envenenados contra Danny, mais uma vez. Não caia nessa.
Minha ingenuidade me deixou outra vez chocado. Wiley ficara
esperando junto da cadeia, em outro esforço para emboscar Padgitt
quando saísse a caminho do tribunal. Minha imaginação projetara
uma enorme foto sua na primeira página, usando o macacão laranja.
Lucien Wilbanks entrou na sala pela porta que dava para o
gabinete do juiz. Como sempre, parecia furioso e perturbado, como se
tivesse acabado de perder uma discussão com o juiz. Foi até a mesa da
defesa, largou ali seu bloco de anotações e avaliou o público. Seus
olhos encontraram-se com os meus. Contraíram-se, enquanto os
maxilares tremiam. Por um instante, pensei que ele poderia pular por
cima da grade para me agredir. Seu cliente virou-se e começou a olhar
também para os espectadores. Alguém apontou e o sr. Danny Padgitt
passou a me fitar também, com uma expressão furiosa, como se eu
pudesse ser sua próxima vítima. Sentí alguma dificuldade para
respirar, mas tentei me mostrar calmo. Baggy tratou de se afastar de
mim.
Na primeira fila, por trás da mesa da defesa, sentavam vários
Padgitt, todos mais velhos do que Danny. Também se empenharam
em me fitar fixamente. Nunca me senti tão vulnerável. Eram homens
violentos, que só sabiam viver com o crime, intimidação, agressão e
assassinato. Eu me encontrava na mesma sala, enquanto eles
sonhavam com a melhor maneira de cortar minha garganta.
Um oficial de justiça mandou que todos se levantassem para a
entrada do juiz.
— Sentem-se, por favor - disse ele depois.
Loopus consultou os papéis na bancada e todos ficaram
esperando. Ele ajustou os óculos de leitura e disse:
— Tenho uma petição para mudança de foro, apresentada pela
defesa. Sr. Wilbanks, quantas testemunhas tenciona chamar?
— Meia dúzia, mais ou menos. Decidiremos de acordo com as
circunstâncias.
— E o Estado?
Um homem baixo e redondo, careca, de terno preto, levantou-se de
um pulo.
— Mais ou menos a mesma coisa.
Era Ernie Gaddis, havia muito tempo promotor distrital, que viera
do condado de Tyler.
— Não quero passar o dia inteiro aqui - murmurou Loopus, como
se tivesse uma partida de golfe marcada para a tarde. -Chame sua
primeira testemunha, sr. Wilbanks.
— Sr. Walter Pickard.
O nome me era desconhecido, o que se podia esperar, mas Baggy
também nunca ouvira falar. Durante as perguntas preliminares, ficou
determinado que ele morava em Karaway havia mais de vinte anos,
frequentava a igreja todos os domingos e ia a reuniões do Rotary Club
toda quinta-feira. Era dono de uma pequena fábrica de móveis.
— Deve comprar madeira dos Padgitt - sussurrou Baggy.
A esposa era professora. Ele fora treinador de beisebol na Pequena
Liga e trabalhava com os escoteiros. Lucien continuou, fazendo uma
manobra magistral para deixar bem claro que o sr. Pickard era um
grande conhecedor de sua comunidade.
Karaway era uma cidade menor, 29 quilômetros a oeste de
Clanton. Spot sempre negligenciara o lugar e vendíamos bem poucos
jornais ali. E havia ainda menos anúncios. Em minha ansiedade
juvenil, eu já cogitava a expansão de meu império. Um pequeno
semanário em Karaway venderia mil exemplares, pensei.
— Quando ouviu falar pela primeira vez que Miss Kassellaw havia
sido assassinada? - perguntou Wilbanks.
— Dois dias depois que aconteceu — respondeu o sr. Pickard. —
As notícias às vezes demoram a chegar a Karaway.
— Quem lhe contou?
— Uma das minhas empregadas contou a história. Ela tem um
irmão que mora em Beech Hill, onde aconteceu.
— Ouviu falar que alguém fora preso pelo homicídio?
Lucien andava de um lado para outro do tribunal, como um gato
entediado. Parecia que apenas se movimentava despreocupado, mas
na verdade nada escapava à sua atenção.
— O rumor era de que um dos jovens Padgitt havia sido preso.
— Confirmou isso mais tarde?
— Confirmei.
— Como?
— Li a reportagem em The Ford County Times. Havia uma foto
grande de Danny Padgitt na primeira página, ao lado de uma foto
grande de Rhoda Kassellaw.
— Leu a reportagem do Times?
— Li.
— E formou uma opinião sobre a culpa ou inocência do sr.
Padgitt?
— Ele me parecia culpado. Na foto, tinha sangue por toda a
camisa. E aparecia ao lado do rosto da vítima. A manchete era enorme
e dizia, se bem me lembro, DANNY PADGITT PRESO POR
HOMICÍDIO.
— Portanto, presumiu que ele era culpado?
— Era impossível pensar de outra maneira.
— Qual foi a reação ao assassinato em Karaway?
— Choque e indignação. Este é um condado pacífico. Os crimes
mais graves são raros.
— Em sua opinião, as pessoas por lá, de um modo geral, acham
que Danny Padgitt estuprou e assassinou Rhoda Kassellaw?
— É isso mesmo. Ainda mais pela maneira como o jornal noticiou
o crime.
Eu podia sentir os olhares frios de todas as direções, mas continuei
a dizer a mim mesmo que não fizera nada de errado. As pessoas
suspeitavam de Danny Padgitt porque o filho da puta asqueroso
cometera os crimes.
— Em sua opinião, o sr. Padgitt pode receber um julgamento justo
no condado de Ford?
— Não.
— Em que baseia essa opinião?
— Ele já foi julgado e condenado pelo jornal.
— Acha que sua opinião é partilhada pela maioria de seus amigos
e vizinhos em Karaway?
— Acho.
— Obrigado.
O sr. Ernie Gaddis levantou-se, segurando um bloco de anotações
como se fosse uma arma.
— Disse que está no negócio de móveis, sr. Pickard?
— Correto.
— Compra a madeira no condado?
— Compramos.
— De quem?
Pickard reajustou o peso na cadeira e ponderou sobre a questão.
— Gates Brothers, Henderson, Tiffee, Voyles & Sons, talvez mais
uma ou duas serrarias.
Baggy sussurrou:
— Os Padgitt são donos da Voyles.
— Compra alguma madeira dos Padgitt? - indagou Gaddis.
— Não, senhor.
— Nem agora nem em qualquer momento do passado?
— Não, senhor.
— Alguma dessas serrarias pertence aos Padgitt?
— Não, até onde eu sei.
A verdade é que ninguém realmente sabia o que os Padgitt
possuíam. Fazia décadas que eles haviam estendido seus tentáculos
para muitos negócios, legítimos ou não. O sr. Pickard podia não ser
bem conhecido em Clanton, mas naquele momento era suspeito de ter
alguma relação com os Padgitt. Por que outro motivo ele
testemunharia voluntariamente a favor de Danny?
Gaddis mudou de rumo.
— Disse que a foto com a camisa ensanguentada teve muita
influência em sua suposição de que o rapaz é culpado. É isso mesmo?
— Fazia com que ele parecesse muito suspeito.
— Leu toda a reportagem?
— Acho que sim.
— Leu a parte que diz que o sr. Danny Padgitt esteve envolvido
num acidente de carro, do qual saiu ferido, e que foi também acusado
de guiar embriagado?
— Acho que li.
— Gostaria que eu lhe mostrasse?
— Não precisa. Eu me lembro.
— Ótimo. Então por que presumiu tão depressa que o sangue era
da vítima e não do próprio sr. Padgitt?
Pickard tornou a mudar a posição do corpo. Parecia frustrado.
— Eu apenas disse que as fotos e a reportagem, quando vistas
juntas, faziam com que ele parecesse culpado.
— Já serviu alguma vez num júri, sr. Pickard?
— Não, senhor.
— Compreende o que se quer dizer com presunção de inocência?
— Compreendo.
— Acha que todos os acusados de um crime têm direito a um
julgamento justo?
— Claro que acho,
— Isso é ótimo. Vamos supor que é chamado para o serviço no júri
neste caso. Leu as notícias do jornal, ouviu todas as fofocas e rumores.
Entra neste mesmo tribunal para o julgamento. Já depôs que acha que
o sr. Padgitt é culpado. Vamos supor que seja selecionado para o júri.
O sr. Wilbanks, um advogado muito hábil e experiente, condena as
alegações do Estado e levanta sérias dúvidas sobre nossas provas.
Digamos que haja dúvidas em sua mente, sr. Pickard. Poderia a esta
altura votar pela inocência do acusado?
O homem acenava com a cabeça enquanto ouvia, para depois
dizer:
— Claro que sim, nas circunstâncias.
— Portanto, independentemente da maneira como se sente agora
sobre a culpa ou inocência, estaria disposto a ouvir as alegações e
avaliá-las de uma maneira justa, antes de decidir sobre o caso?
A resposta era tão óbvia que o sr. Pickard não tinha opção que não
dizer:
— Sim, senhor.
— Claro - concordou Gaddis. - E sua esposa? Mencionou-a, não é
mesmo? Teria a mesma mente aberta?
— Acho que sim.
— E o que me diz daqueles rotarianos em Karaway? Seriam tão
justos quanto você?
— Acho que sim.
— E seus empregados, sr. Pickard? Tenho certeza de que contrata
pessoas honestas e justas. Seriam capazes de ignorar o que leram e
ouviram para julgar esse rapaz de uma maneira justa?
— Suponho que sim.
— Não tenho mais perguntas, Meritíssimo.
O sr. Pickard deixou o banco das testemunhas e saiu apressado da
sala. Lucien Wilbanks levantou-se e disse, a voz alta demais:
— Meritíssimo, a defesa chama o sr. Willie Traynor.
Um tijolo no nariz não poderia atingir o sr. Willie Traynor com
mais força. Ofeguei para respirar e ouvi Baggy resmungar:
— Mas que merda!
Harry Rex estava sentado no recinto do júri, junto com outros
advogados, acompanhando tudo. Também se levantou.
— Meritíssimo, represento o sr. Traynor, e este jovem não foi
avisado de que seria uma das testemunhas.
Vá em frente, Harry Rex! Faça alguma coisa!
O juiz deu de ombros.
— E daí? Ele está aqui. Qual é a diferença?
Não havia o menor vestígio de preocupação em sua voz.
Compreendi que não tinha escapatória.
— Preparação, para começar. Uma testemunha tem o direito de
estar preparada.
— Ele não é o editor do jornal?
— É, sim.
Lucien Wilbanks encaminhava-se para o recinto do júri como se fosse agredir
Harry Rex.
— Meritíssimo, ele não é um litigante e não será testemunha no
julgamento - disse ele. - Mas escreveu reportagens sobre o caso.
Vamos ouvi-lo diretamente.
— É uma emboscada, juiz - insistiu Harry Rex.
— Sente-se, sr. Vonner - disse o juiz.
Fui para a cadeira das testemunhas. Lancei um olhar para Harry
Rex, como se dissesse: “Bom trabalho, advogado. ”
Um escrevente postou-se na minha frente.
— Está armado?
— Como?
Eu me sentia mais do que nervoso e nada fazia sentido.
— Uma arma. Tem uma arma?
— Tenho.
— Pode me entregar, por favor?
— Ahn... está no carro.
A maioria dos espectadores achou que isso era engraçado. No
Mississippi, ao que parecia, uma pessoa armada não podia prestar um
depoimento apropriado. Wilbanks começou de uma maneira bastante
cordial, com perguntas preliminares a meu respeito e sobre a
aquisição do jornal. Consegui dar as respostas corretas, embora
desconfiasse muito de cada pergunta. Ele estava querendo chegar a
algum lugar, mas eu não tinha a menor ideia de qual poderia ser.
Depois de alguns minutos de amenidades, o sr. Gaddis, que eu
presumia estar do meu lado, já que Lucien com certeza não estava,
levantou-se e disse:
— Meritíssimo, tudo isso é muito informativo, mas qual é o
objetivo?
— Boa pergunta. Sr. Wilbanks?
— Espere um instante, juiz.
Lucien pegou exemplares do Times, que entregou a mim, Gaddis e
Loopus. Fitou-me e indagou:
— Apenas para constar dos autos, sr. Traynor, quantos assinantes
o Times tem agora?
— Cerca de 4.200.
Era um número que me deixava um pouco orgulhoso. Antes da
falência, Spot perdera a maioria dos assinantes, até ficar reduzido a
1.200.
— E quantos exemplares são vendidos nas bancas?
— Mais ou menos mil.
Apenas doze meses antes, eu vivia no terceiro andar de uma casa
de fraternidade em Syracuse, estado de Nova York, frequentando as
aulas de vez em quando, empenhado em ser um bom soldado na
revolução sexual, bebendo quantidades prodigiosas de álcool,
fumando maconha, dormindo até meio-dia sempre que tinha vontade.
Como exercício, participava das manifestações contra a guerra e
gritava insultos para a polícia. Achava que tinha problemas. E,
subitamente, ficou um tanto vago para mim como viera parar numa
cadeira de testemunha no tribunal do condado de Ford.
Naquele momento crucial em minha nova carreira, porém, havia
várias centenas de concidadãos e assinantes me observando. Não era o
momento de parecer vulnerável.
— Qual a porcentagem da tiragem do jornal vendida no condado
de Ford, sr. Traynor? — perguntou ele, em tom descontraído, como se
fosse uma simples conversa sobre negócios, durante um café.
— Praticamente toda a tiragem é vendida aqui. Não tenho os
números exatos.
— Tem algum ponto de venda fora do condado de Ford?
— Não.
O sr. Gaddis efetuou outra tentativa de resgate, sem muito ânimo.
Levantou-se de novo e indagou:
— Meritíssimo, por favor, aonde o advogado de defesa está
querendo chegar?
Wilbanks alteou a voz de repente, um dedo apontado para o teto.
— Argumentarei, Meritíssimo, que os jurados em potencial neste
condado foram envenenados pela cobertura sensacionalista de The
Ford County Times. Por sorte, este jornal não é visto nem lido em outras
partes do estado, o que é mais do que compreensível. A mudança de
foro não apenas é justa, mas também indispensável.
A palavra “envenenados” mudou o clima da audiência de uma
maneira dramática. Deixou-me irritado e assustado. Mais uma vez,
perguntei-me se fizera alguma coisa errada. Olhei para Baggy em
busca de consolo, mas ele se abaixava por trás da mulher à sua frente.
— Eu decidirei o que é justo e indispensável, sr. Wilbanks -
declarou o juiz Loopus, ríspido. - Continue.
O sr. Wilbanks levantou o jornal e apontou para a primeira página.
— Estou me referindo à foto de meu cliente. Quem tirou esta foto?
— O sr. Wiley Meek, nosso fotógrafo.
— E quem tomou a decisão de publicá-la na primeira página?
— Fui eu.
— E o tamanho? Quem determinou o tamanho?
— Fui eu.
— Não lhe ocorreu que isso poderia ser considerado sensacional?
Claro que ocorrera. E o que eu procurava era mesmo algo
sensacional.
— Não - respondi, com a devida frieza. - Por acaso era a única foto
que tínhamos de Danny Padgitt no momento. E, por acaso, ele foi a
única pessoa presa pelo crime. Publicamos a foto. E eu a publicaria de
novo.
Minha altivez me surpreendeu. Olhei para Harry Rex e vi um de
seus sorrisos insidiosos. Ele acenava com a cabeça. Caia de pau em
cima deles, garoto.
— Quer dizer que, em sua opinião, foi justo publicar esta foto?
— Não acho que foi injusto.
— Responda à minha pergunta. Foi justo?
— Foi, sim... foi justo e foi acurado.
Wilbanks pareceu registrar a resposta, arquivando-a para uso
futuro.
— Sua reportagem apresenta uma descrição um tanto detalhada
do interior da casa de Rhoda Kassellaw. Quando inspecionou a casa?
— Não inspecionei.
— Quando entrou na casa?
— Não entrei.
— Nunca viu o interior da casa?
— Isso mesmo.
Ele abriu o jornal, examinou-o por um momento, para dizer em
seguida:
— Informa que o quarto dos dois filhos pequenos de Miss
Kassellaw ficava ao final de um pequeno corredor, a cerca de cinco
metros do quarto da mãe. Calcula que a distância de suas camas para
a cama da mãe era de dez metros. Como sabe disso?
— Tenho uma fonte.
— Uma fonte... Sua fonte esteve dentro da casa?
— Esteve.
— Sua fonte é da polícia municipal ou do gabinete do xerife?
— A fonte permanecerá confidencial.
— Quantas fontes confidenciais usou para escrever as reportagens?
— Várias.
De meus estudos de jornalismo, eu recordava vagamente o caso de
um repórter que, numa situação similar, baseara-se em fontes, para
depois se recusar a revelar a identidade. Isso irritara o juiz, que
ordenara que o repórter divulgasse suas fontes. Quando ele se
recusara de novo, o juiz acusara-o de desacato. Os guardas levaram-
no para a cadeia, onde ele passara muitas semanas ocultando a
identidade dos informantes. Não podia me lembrar direito do final da
história, mas sabia que o repórter acabara sendo solto e que a
imprensa livre sobrevivera.
Num relance, vi-me sendo algemado pelo xerife Coley e arrastado
do tribunal, gritando por Harry Rex. Seria levado para a cadeia,
obrigado a tirar minhas roupas e a vestir o macacão laranja.
Com toda a certeza, isso resultaria em grandes benefícios para o
Times. Quantas matérias eu poderia escrever na cadeia!
— Informa que as crianças ficaram em estado de choque -
continuou Wilbanks. - Como soube disso?
— Conversei com o sr. Deece, o vizinho.
— Ele usou a palavra “choque”?
— Usou.
— Informa que as crianças foram examinadas por um médico aqui
em Clanton, na noite <do crime. Como soube disso?
— Uma fonte me contou e mais tarde confirmei com o médico.
— E informa também que as crianças estão recebendo terapia no
Missouri. Quem lhe disse isso?
— Conversei com a tia das crianças.
Ele jogou o jornal na mesa. Deu alguns passos em minha direção.
Os olhos injetados contraíram-se, fitando-me com uma expressão
furiosa. A arma me seria útil nesse momento.
— A verdade, sr. Traynor, é que tentou pintar a cena inconfundível
de que essas duas crianças inocentes viram a mãe ser estuprada e
assassinada, em sua própria cama, não é mesmo?
Respirei fundo e avaliei a resposta. O tribunal estava em silêncio,
esperando.
— Tenho informado os fatos da forma mais acurada possível.
Olhei direto para Baggy, que me espiava de trás da mulher à sua
frente, mas pelo menos acenava com a cabeça.
— Num esforço para vender jornal, baseou-se em fontes anônimas,
meias-verdades, intrigas e especulações, tudo para tornar o caso mais
sensacional.
— Tenho informado os fatos da maneira mais acurada possível -
reiterei, fazendo força para permanecer calmo.
Ele soltou um grunhido.
— É mesmo? - Wilbanks tomou a pegar o jornal. - Cito: “As
crianças vão depor no julgamento? ” Escreveu isto, sr. Traynor?
Eu não podia negar. E me repreendi por ter escrito. Fora a última
coisa que Baggy e eu havíamos discutido sobre a reportagem. Ambos
hesitáramos em incluir isso. Com a visão posterior, compreendi que
deveríamos ter seguido nosso instinto. Seja como for, a negação não
era possível.
— Escrevi.
— Em que fatos acurados baseou essa questão?
— Foi uma indagação que ouvi várias vezes depois do crime.
Ele jogou o jornal em sua mesa, como se fosse uma imundície.
Balançou a cabeça num arremedo de espanto.
— São duas crianças, não é, sr. Traynor?
— Isso mesmo. Um menino e uma menina.
— Que idade tem o menino?
— Cinco anos.
— E que idade tem a menina?
— Três.
— E qual é a sua idade, sr. Traynor?
— Vinte e três.
— E nos seus 23 anos de vida, quantos julgamentos cobriu como
repórter?
— Nenhum.
— Quantos julgamentos já acompanhou, em qualquer
circunstância?
— Nenhum.
— Como é tão ignorante em julgamentos, que tipo de pesquisa
judicial realizou para se preparar de maneira apropriada para essas
reportagens?
A esta altura, era bem provável que eu virasse a arma para mim
mesmo.
— Pesquisa judicial? - repeti, como se ele estivesse falando em
outra língua.
— Isso mesmo, sr. Traynor. Quantos casos encontrou em que
crianças com cinco anos de idade ou menos tiveram permissão para
depor num julgamento criminal?
Olhei na direção de Baggy, que evidentemente se escondera agora
por baixo do banco de madeira.
— Nenhum.
— Uma resposta perfeita, sr. Traynor. Nenhum. Na história deste
estado, nenhuma criança com menos de onze anos jamais
testemunhou num julgamento criminal. Por favor, anote isso em
algum lugar, e lembre-se na próxima vez em que tentar inflamar seus
leitores com um jornalismo ordinário.
— Já chega, sr. Wilbanks.
O juiz Loopus falou com gentileza demais para meu gosto. Creio
que ele e os outros advogados, provavelmente até Harry Rex, estavam
se divertindo com aquele massacre de alguém que se intrometera em
questões judiciais e acabara fazendo besteira. Até mesmo o sr. Gaddis
parecia contente em me deixar sangrar.
Lucien teve a sensatez de parar quando o sangue escorria.
Resmungou o que me pareceu ser o seguinte:
— Já acabei com ele.
O sr. Gaddis não tinha perguntas a fazer. O escrevente gesticulou
para que eu me levantasse. Tentei desesperadamente me manter
empertigado enquanto voltava para o banco, onde Baggy encolhia-se
todo, como um cachorro sem dono numa chuva de granizo.
Escrevi algumas anotações durante o resto da audiência, mas foi
um esforço fracassado para parecer ocupado e importante. Podia
sentir os olhares. Fora humilhado e queria passar os próximos dias
trancado em meu quarto.
Wilbanks concluiu com uma súplica eloquente para que o
julgamento fosse transferido para outro lugar, talvez mesmo para a
Costa do Golfo, onde talvez algumas pessoas tivessem ouvido falar do
crime, mas ninguém fora “envenenado” pela cobertura do Times.
Tornou a me insultar e ao jornal, chegando ao exagero. O sr. Gaddis,
em suas alegações no final da audiência, lembrou um ditado antigo ao
juiz:
— Palavras fortes e amargas indicam uma causa fraca.
Anotei a frase. Depois, saí apressado do tribunal, como se tivesse
um prazo improrrogável para cumprir.
CAPÍTULO 11
BAGGY ENTROU EM MINHA SALA ao final da manhã seguinte com a
notícia de que Lucien Wilbanks acabara de retirar sua petição para
mudança de foro. Como sempre, ele tinha muita análise para oferecer.
A primeira opinião, pomposa, foi a de que os Padgitt não queriam
que o julgamento fosse transferido para outro condado. Sabiam que
Danny era culpado e quase que certamente seria condenado por um
júri escolhido de maneira apropriada, em qualquer outro lugar. A
única chance era ter um júri que pudesse ser comprado ou intimidado.
Como todos os veredictos de culpado devem ser unânimes, eles só
precisavam de um único voto a favor de Danny. Apenas um voto, e o
júri não poderia dar um veredicto. O juiz seria obrigado por lei a
declarar o julgamento nulo. Haveria outro julgamento, sem dúvida,
mas o resultado seria o mesmo. Depois de três ou quatro tentativas, o
Estado desistiria.
Eu tinha a certeza de que Baggy passara a manhã no tribunal,
avaliando com seu pequeno clube a audiência sobre a mudança de
foro. Ao final, assumira as conclusões dos advogados. Ele explicou,
solene, que a audiência do dia anterior fora armada por Lucien
Wilbanks, por dois motivos. Primeiro, Lucien oferecia uma isca ao
Times, desafiando o jornal a publicar outra foto grande de Danny,
agora com o uniforme da cadeia. Segundo, Wilbanks queria me levar
à cadeira das testemunhas para me esfolar um pouco.
— E não resta a menor dúvida de que ele conseguiu - arrematou
Baggy.
— Obrigado, Baggy.
Wilbanks preparava o cenário para outro julgamento, que sabia
que ocorreria em Clanton, e queria que o Times abrandasse a
cobertura.
A terceira - ou quarta - razão era a de que Lucien Wilbanks nunca
perdia uma oportunidade de se exibir na presença de uma multidão.
Baggy já vira isso acontecer muitas vezes e partilhou algumas
histórias.
Não sei se acompanhei o seu pensamento extensivo, mas naquele
momento nada mais fazia sentido. Parecia um desperdício de tempo e
esforço realizar uma audiência de duas horas já sabendo que tudo não
passava de um espetáculo. Calculei que coisas piores já haviam
acontecido num tribunal.

O terceiro banquete foi uma carne assada. Comemos na varanda,


enquanto chovia sem parar. Como sempre, confessei que nunca havia
comido uma carne assada. Por isso, Miss Callie descreveu a receita e a
preparação em detalhes. Levantou a tampa de uma panela de ferro
grande, que estava no centro da mesa, e fechou os olhos para aspirar o
aroma que se elevou. Eu acordara havia apenas uma hora e naquele
momento seria capaz de comer até a toalha da mesa.
Ela alegou que era o seu prato mais simples. Bastava pôr um bom
pedaço de lagarto redondo, deixando a gordura, no fundo da panela,
depois cobrir com batatas pequenas, cebolas, nabos, cenouras e
beterrabas; acrescentar um pouco de sal, pimenta e água, levar ao
forno, à temperatura baixa, e esperar cinco horas. Ela encheu meu
prato com a carne e os legumes, depois acrescentou um molho grosso.
— As beterrabas deixam tudo com uma tonalidade púrpura —
explicou ela.
Perguntou-me se eu queria proferir a bênção, mas declinei. Havia
muito tempo que não fazia uma oração. Ela era muito mais dotada.
Pegou minhas mãos. Fechamos os olhos. Enquanto ela falava para o
céu, a chuva tamborilava no telhado de metal por cima de nossas
cabeças.
— Onde está Esau? - perguntei, depois das três primeiras
mordidas, todas vorazes.
— No trabalho. Às vezes ele pode sair para o almoço, outras não.
Ela estava preocupada com alguma coisa, até que não pôde mais se
conter:
— Posso lhe fazer uma pergunta um tanto pessoal?
— Claro que pode.
— Você é cristão?
— Sou. Minha mãe costumava me levar à igreja na Páscoa.
Isso não era satisfatório. Não era o que ela procurava, o que quer
que fosse.
— Que tipo de igreja?
— Episcopal. St. Luke, em Memphis.
— Não sei se temos uma dessas em Clanton.
— Não vi nenhuma. — Não que eu tivesse efetuado uma busca
diligente por uma casa de culto. - Que tipo de igreja você frequenta?
— Igreja de Deus em Cristo. - O rosto de Callie tinha um brilho
sereno. - Meu pastor é o reverendo Thurston Small, um admirável
homem de Deus. E um pregador eloquente. Devia aparecer para ouvi-
lo.
Eu já ouvira histórias sobre a maneira como os negros realizavam
seus cultos, como passavam todo o Sabá na igreja, como os serviços
prolongavam-se pela noite afora, só parando quando o espírito
finalmente ficava exausto. E eu tinha nítidas lembranças de
sofrimento ao longo dos serviços episcopais na Páscoa, que, por lei,
não podem durar mais que sessenta minutos.
— Há brancos comparecendo ao culto com vocês?
— Só nos anos de eleições. Alguns políticos aparecem, farejando
como cães. Fazem uma porção de promessas.
— E permanecem durante todo o serviço?
— Não. Estão sempre ocupados demais para ficar.
— Então é possível entrar e sair?
— No seu caso, sr. Traynor, é, sim. Abriremos uma exceção.
Ela se lançou numa longa história sobre sua igreja, que ficava
tão perto de sua casa que podia ir a pé, e de um incêndio que a
destruira, não muitos anos antes. O Corpo de Bombeiros, que ficava
no lado branco da cidade, como não podia deixar de ser, nunca tinha
pressa quando atendia a chamados em Lowtown. Perderam a igreja,
mas isso acabara sendo uma bênção. O reverendo Small mobilizara a
congregação. Reuniram-se durante quase três anos num armazém
emprestado pelo sr. Virgil Mabry, um bom cristão. O prédio ficava a
um quarteirão da Main Street e muitos brancos não gostaram da ideia
de negros fazendo o culto em seu lado da cidade. O sr. Mabry, porém,
manteve-se firme. O reverendo Small levantara o dinheiro. Três anos
depois do incêndio, eles cortaram a fita de inauguração do novo
santuário, duas vezes maior do que o antigo. Agora, ficava lotado
todos os domingos.
Eu adorava quando ela falava. Permitia-me comer sem parar, o
que era uma prioridade. Mas ainda me sentia cativado por sua dicção
precisa, cadência e vocabulário, que só podiam ser do nível
universitário. Quando acabou de falar sobre o novo santuário, ela
perguntou:
— Lê a Bíblia com frequência?
— Não - respondi, balançando a cabeça e mastigando um nabo
quente.
— Nunca?
Mentir não me passou pela cabeça.
— Nunca.
Isso a desapontou de novo.
— Com que frequência costuma orar?
Hesitei por um segundo.
— Uma vez por semana.
Lentamente, ela baixou o garfo e a faca para os lados do prato.
Franziu o rosto para mim, como se estivesse prestes a dizer alguma
coisa profunda.
— Sr. Traynor, se não vai a igreja, não lê a Bíblia e não ora, não sei
se é realmente um cristão.
Eu também não sabia. Continuei a mastigar, pois assim não teria
de falar e me defender. Callie continuou:
— Jesus disse: “Não julgueis, para não serdes julgado. ” Não me
cabe passar julgamento sobre a alma de qualquer pessoa, mas devo
confessar que estou preocupada com a sua.
Eu também me preocupava, mas não a ponto de interromper o
almoço.
— Sabe o que acontece com as pessoas que vivem fora da vontade
de Deus?
Nada de bom; pelo menos isso eu sabia. Mas estava com muita
fome e muito assustado para responder. Ela pregava agora, em vez de
comer, e isso não me agradava nem um pouco.
— Paulo escreveu em Romanos: “A paga do pecado é a morte, mas
a dádiva de Deus é a vida eterna, através de Jesus Cristo, nosso
Senhor. ” Sabe o que isso significa, sr. Traynor?
Eu tinha um pressentimento. Acenei com a cabeça, numa resposta
afirmativa, e pus na boca um pedaço de carne. Ela memorizara a
Bíblia inteira? E eu estaria prestes a ouvir tudo?
— A morte é sempre física, mas uma morte espiritual significa a
eternidade longe do Senhor Jesus. A morte significa uma eternidade
no inferno, sr. Traynor. Compreende isso?
Ela estava deixando bem claro.
— Podemos mudar de assunto?
Miss Callie sorriu subitamente.
— Claro. É meu convidado e meu dever é fazer com que se sinta a
vontade.
Ela tornou a pegar o garfo e por algum tempo comemos sem falar
nada, ouvindo a chuva.
— Tem sido uma primavera com bastante chuva - comentou ela. -
O que é ótimo para as leguminosas. Mas os tomates e melões precisam
de sol.
Senti-me confortado em saber que ela planejava refeições futuras.
Minha reportagem sobre Miss Callie, Esau e seus filhos
extraordinários estava quase pronta. Eu prolongava a pesquisa na
esperança de aproveitar mais alguns almoços de quinta-feira em sua
varanda. A princípio, sentia-me culpado por tanta comida preparada
só para mim. Afinal, comíamos apenas uma fração. Mas Miss Callie
me assegurou de que nada era jogado fora. Ela e Esau, talvez alguns
amigos, sempre aproveitavam as sobras.
— Hoje em dia só cozinho três vezes por semana - admitiu ela,
com uma insinuação de vergonha.
A sobremesa foi bolo de pêssego e sorvete de baunilha.
Concordamos em esperar uma hora antes de podermos andar. Ela
serviu duas xícaras de café forte e fomos para as cadeiras de balanço.
Peguei o bloco e a caneta e comecei a fazer perguntas. Miss Callie
adorava quando eu escrevia as coisas que ela dizia.
As sete primeiras crianças tinham nomes italianos: Alberto (Al),
Leonardo (Leon), Massimo (Max), Roberto (Bobby), Gloria, Carlota e
Mario. Somente Sam, o caçula, o que era fugitivo da polícia, segundo
os rumores, tinha um nome americano. Na minha segunda visita, ela
explicara que fora criada num lar italiano, ali mesmo, no condado de
Ford, mas era uma história muito longa, e deixaria para mais tarde.
Os sete primeiros filhos haviam sido os oradores da turma na
Burley Street High, a escola colored. Cada um alcançara um Ph.D. e
agora era professor universitário. Os detalhes biográficos preenchiam
páginas. Miss Callie, com toda a razão, podia falar sobre os filhos
durante horas.
E era o que fazia. Eu tomava notas, balançava devagar na cadeira,
ouvia a chuva, até que finalmente adormecia.
CAPÍTULO 12
BAGGY TINHA ALGUMAS restrições à reportagem sobre a família
Ruffin.
— Não é notícia - declarou ele.
Tenho certeza de que Hardy o alertara para o fato de que eu
considerava publicar na primeira página uma reportagem sobre uma
família de negros.
— Isso costuma ser matéria para a página cinco - acrescentou ele.
Na falta de um homicídio, a noção de Baggy de primeira página
era uma acirrada disputa sobre limites de propriedade travada no
tribunal, sem jurados, com um punhado de advogados sonolentos e
um juiz de noventa anos, tirado da sepultura para decidir essas
questões.
Em 1967, o sr. Caudle demonstrara coragem ao publicar obituários
de negros. Porém, nos três anos transcorridos desde então, o Times
não manifestara muito interesse por qualquer coisa no outro lado dos
trilhos. Wiley Meek relutara em me acompanhar para fotografar Callie
e Esau na frente de sua casa. Consegui marcar a foto para uma quinta-
feira, ao meio-dia. Lampreia frita, bolinhos de milho e salada de
repolho. Wiley comeu tanto que depois teve dificuldade para respirar.
Margaret também não gostou da reportagem, mas acabou se
submetendo à vontade do patrão, como sempre. Na verdade, todos no
jornal detestaram a ideia. Não me importei. Estava fazendo o que
achava ser certo. Além disso, havia a iminência de um grande
julgamento.
Assim, na quarta-feira, 20 de maio de 1970, numa semana em que
não aconteceu absolutamente nada para se publicar sobre o caso
Kassellaw, o Times devotou mais da metade de sua primeira página à
família Ruffin. Começava com uma enorme manchete: FAMÍLIA RUFFIN
ORGULHA-SE DE SETE PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS.
Logo abaixo, uma foto
grande de Callie e Esau, sentados nos degraus da varanda, sorrindo
orgulhosos para a câmera. Em seguida, havia fotos dos oito filhos no
ensino médio, de Al a Sam. A reportagem começava assim:

Quando foi obrigada a abandonar a escola, na


décima série, Calia Harris prometeu a si mesma
que seus filhos não apenas estariam aptos a
completar o ensino médio, mas também
ingressariam na universidade. O ano era 1926.
Calia — ou Callie, como ela prefere ser chamada
— tinha quinze anos de idade, a mais velha de
quatro filhos. A instrução tornou-se um luxo
quando o pai morreu de tuberculose. Callie
trabalhou para a família DeJarnette até 1929,
quando casou com Esau Ruffin, carpinteiro e
pregador ocasional. Alugaram uma pequena
casa em Lowtown, a quinze dólares por mês, e
começaram a poupar cada centavo. Precisariam
de tudo o que pudessem poupar.
Em 1931, Alberto nasceu.

Em 1970, o dr. Alberto Ruffin era professor de sociologia na


Universidade de Iowa. O dr. Leonardo Ruffin era professor de
biologia em Purdue. O dr. Massimo Ruffin era professor de economia
na Universidade de Toledo. O dr. Roberto Ruffin era professor de
história em Marquette. A dra. Gloria Ruffin Sanderford ensinava
italiano em Duke. A dra. Carlota Ruffin era professora de estudos
urbanos na Universidade da Califórnia em Los Angeles. O dr. Mario
Ruffin acabara de tirar seu Ph.D. em literatura medieval e era
professor no Grinnell College, em Iowa. Mencionei Sam, mas não
discorri a seu respeito.
Pelo telefone, eu conversara com os sete professores e citava-os
generosamente na reportagem. Os temas eram comuns: amor,
sacrifício, disciplina, trabalho árduo, encorajamento, fé em Deus, fé na
família, ambição, perseverança; nenhuma tolerância com a preguiça
ou o fracasso. Cada um dos sete tinha uma história de sucesso que
poderia ocupar uma edição inteira do Times. Cada um trabalhara em
pelo menos um emprego, em horário integral, enquanto se
empenhava em estudar na faculdade e na pós-graduação. A maioria
tivera dois empregos. Os mais velhos ajudavam os mais novos. Mario
me contou que recebia cinco ou seis pequenos cheques todos os
meses, dos irmãos e dos pais.
Os cinco mais velhos haviam sido tão tenazes em seus estudos que
adiaram o casamento até o final da casa dos vinte anos e o início dos
trinta. Carlota e Mario continuavam solteiros. A geração seguinte
também estava sendo planejada com todo o cuidado. Leon tinha o
neto mais velho, com cinco anos. Havia um total de cinco netos. Max e
a esposa esperavam a segunda criança.
Havia tanto material sobre os Ruffin que publiquei apenas a Parte
Um naquela semana. Quando fui almoçar em Lowtown, no dia
seguinte, Miss Callie recebeu-me com lágrimas nos olhos. Esau
também me esperava. Deu-me um aperto de mão firme e um abraço
viril, meio desajeitado. É desnecessário dizer que fui o alvo das
conversas em Lowtown, com os vizinhos indo até a casa da família
durante toda a tarde de quarta-feira e manhã de quinta, levando
exemplares extras. Eu enviara pelo correio meia dúzia de exemplares
para cada professor.
Durante o café e a torta de maçã frita, o pregador da família,
reverendo Thurston Small, estacionou seu carro na rua e veio até a
varanda. Fomos apresentados, e ele parecia satisfeito por me conhecer.
Aceitou no mesmo instante a oferta da sobremesa, e iniciou um
discurso prolongado sobre a importância da reportagem com os
Ruffin para a comunidade negra de Clanton. Os obituários eram uma
grande coisa, pois, na maioria das pequenas cidades do Sul os pretos
ainda eram ignorados. Graças ao sr. Caudle, houvera progresso em
uma frente. Porém, apresentar um perfil digno e impressionante de
uma família negra na primeira página representava um passo
gigantesco para a tolerância racial na cidade. Eu não via assim. Era
apenas uma boa reportagem de interesse humano sobre Miss Callie
Ruffin e sua extraordinária família.
O reverendo apreciava a comida e também possuía um talento
para adjetivar tudo. Na segunda porção, tornou-se monótono em seu
louvor à reportagem. Como ele não dava qualquer indicação de que
poderia se retirar em qualquer momento daquela tarde, pedi licença e
fui embora.

Além de ser o faxineiro extraoficial e um tanto não confiável de


várias empresas sediadas na praça, Piston tinha outra ocupação.
Mantinha um serviço de mensageiro informal. A cada hora, mais ou
menos, ele passava pela porta da frente dos clientes - basicamente
escritórios de advocacia, mas também três bancos, alguns corretores
de imóveis, corretores de seguros, e o Times - e ficava parado ali por
alguns momentos, à espera de alguma coisa para entregar. Um
simples aceno negativo de cabeça de uma secretária levava-o para a
próxima escala. Se uma carta ou um pequeno pacote precisava ser
entregue, as secretárias aguardavam a chegada de Piston. Ele pegava a
encomenda e corria para seu destino. Se pesasse mais de cinco quilos,
era melhor esquecer. Como ele só andava a pé, o serviço limitava-se à
praça e talvez um ou dois quarteirões além. Quase em todos os
momentos do horário comercial, Piston podia ser visto no centro,
andando, se não tinha qualquer encomenda para entregar ou correndo
caso tivesse.
A maior parte do movimento era de cartas entre os escritórios de
advocacia. Piston era muito mais rápido do que o correio, e muito
mais barato. Não cobrava nada. Dizia que era seu serviço para a
comunidade, embora no Natal esperasse ganhar um presunto ou um
bolo.
Ele entrou correndo no jornal na manhã de sexta-feira, trazendo
uma carta, endereçada, à mão de Lucien Wilbanks. Quase tive medo
de abri-la. Poderia ser a ação judicial de um milhão de dólares que ele
prometera? A carta dizia o seguinte:

Prezado sr. Traynor:


Gostei de sua reportagem sobre a família Ruffin, um
clã
extraordinário. Eu já tinha ouvido falar de seus feitos,
mas a
reportagem proporcionou uma percepção
extraordinária. Admiro
sua coragem.
Espero que continue nessa veia mais positiva.
Atenciosamente, Lucien Wilbanks

Eu detestava o homem, mas quem não ficaria satisfeito com o


bilhete? Ele cultivava sua reputação como um liberal radical que
adotava causas impopulares. Como tal, seu apoio naquele momento
oferecia um conforto limitado. E eu sabia que era apenas temporário.
Não houve outras cartas. Nem telefonemas anônimos. Nem
ameaças. A escola estava em férias e fazia calor. Os ventos sinistros e
muito temidos de dessegregação acumulavam suas forças. Os bons
cidadãos do condado de Ford tinham coisas mais importantes com
que se preocupar.
Depois de dez anos de lutas e tensões por causa dos direitos civis,
muitos mississippianos brancos tinham medo de que o fim fosse
iminente. Se os tribunais federais pudessem integrar as escolas, as
igrejas e residências seriam os próximos alvos?
No dia seguinte, Baggy foi a uma reunião pública no porão de uma
igreja. Os organizadores tentavam avaliar o apoio para uma escola
particular só de brancos em Clanton. A multidão era grande,
assustada, furiosa e determinada a proteger seus filhos. Um advogado
resumiu a situação de vários recursos na justiça federal, e apresentou
a conclusão angustiante de que a decisão final viria naquele verão.
Previu que crianças cursando da décima à décima segunda série
seriam enviadas para a Clanton High School, enquanto crianças
brancas da sétima a nona série iriam para a Burley Street, em
Lowtown. Isso fez com que os homens sacudissem a cabeça e as
mulheres chorassem. A perspectiva de crianças brancas serem levadas
para o outro lado dos trilhos era absolutamente inaceitável.
Uma nova escola estava sendo organizada. Pediram que não
noticiássemos, pelo menos naquele momento. Os organizadores
queriam obter alguns apoios financeiros antes de divulgarem o plano.
Atendemos ao pedido. Eu estava ansioso em evitar controvérsias.
Um juiz federal em Memphis ordenou uma maciça integração nos
ônibus, o que dividiu a cidade. Crianças negras dos bairros pobres do
centro seriam levadas para as comunidades suburbanas brancas. No
caminho, passariam por crianças brancas seguindo na direção inversa.
A tensão se tornou ainda maior ali e descobri-me a evitar qualquer
viagem a Memphis por algum tempo.
Seria um verão quente e longo. Parecia que esperávamos por uma
explosão.

Deixei passar uma semana, e depois publiquei a segunda parte da


reportagem sobre Miss Callie. Na base da primeira página, apresentei
fotos atuais dos sete professores Ruffin. A reportagem informava onde
estavam agora e o que faziam. Sem exceção, eles manifestaram seu
amor por Clanton e o Mississippi, embora nenhum planejasse voltar
em caráter permanente. Recusaram-se a julgar um lugar que os
mantivera em escolas inferiores, num único lado dos trilhos, que os
impedira de votar e comer na maioria dos restaurantes, de beber água
na fonte no gramado na frente do tribunal. Recusaram-se a falar de
qualquer coisa negativa. Em vez disso, agradeceram a Deus por sua
bondade, pela saúde, família, os pais, por suas oportunidades.
Fiquei impressionado com tanta humildade e generosidade. Cada
um dos sete prometeu se encontrar comigo nos feriados do Natal,
quando sentaríamos na varanda de Miss Callie, comeriamos torta de
noz-pecã e contaríamos histórias.
Encerrei a longa reportagem com um detalhe fascinante sobre a
família. Desde o dia em que cada criança Ruffin saía de casa, recebia a
instrução de Esau de escrever pelo menos uma carta por semana para
a mãe. Foi o que todos Fizeram e as cartas nunca pararam. Em algum
momento, Esau decidiu que Callie deveria receber uma carta por dia.
Sete professores, sete dias por semana. Assim, Alberto escrevia sua
carta no domingo e a remetia. Leonardo escrevia na segunda-feira e a
remetia. E assim por diante. Havia dias em que Callie recebia duas ou
três cartas. Em outros dias, não chegava nenhuma. Mas a curta
caminhada até a caixa de correspondência era sempre emocionante.
E ela guardava cada carta. Num armário no quarto da frente, ela
me mostrou pilhas de caixas de papelão, contendo centenas de cartas
dos filhos.
— Deixarei que as leia algum dia - prometeu ela.
Por alguma razão, no entanto, não acreditei nessa promessa.
Também não queria lê-las. Seriam pessoais demais.
CAPÍTULO 13
ERNIE GADDIS, O PROMOTOR DISTRITAL, apresentou uma petição para
aumentar a relação de pessoas que poderiam ser escolhidas para
jurados. Segundo Baggy, que a cada dia se tornava um especialista
maior, no típico julgamento criminal do Tribunal do Circuito, o
escrevente convocava cerca de quarenta pessoas para o serviço no júri.
Cerca de 35 apareciam e pelo menos cinco eram velhas ou doentes
demais para se qualificarem. Gaddis argumentou em sua petição que
a notoriedade cada vez maior do caso Kassellaw tornaria mais difícil
encontrar jurados imparciais. Por isso, solicitou que o tribunal
convocasse pelo menos cem possíveis jurados.
O que ele não disse por escrito, mas todos sabiam, foi que os
Padgitt teriam muito mais dificuldade para intimidar cem pessoas;
Lucien Wilbanks protestou vigorosamente e exigiu uma audiência. O
juiz Loopus disse que não havia necessidade e ordenou que a lista de
jurados em potencial fosse aumentada. Ele também tomou a
providência excepcional de manter a lista em segredo de justiça.
Baggy e seus companheiros de copo, assim como todas as pessoas que
frequentavam o tribunal, ficaram surpresos com a decisão. Era algo
que jamais acontecera antes. Os advogados e litigantes sempre
recebiam a lista completa dos possíveis jurados duas semanas antes
do julgamento.
A decisão foi considerada, de um modo geral, como uma grande
derrota para os Padgitt. Se eles não sabiam quem poderia se tornar
jurado, como poderiam subornar e assustar?
Gaddis pediu ao tribunal que o aviso de convocação dos possíveis
jurados fosse enviado pelo correio, em vez de ser entregue em mãos
pelo gabinete do xerife. Loopus também gostou dessa ideia. Era
evidente que ele estava a par do relacionamento estreito entre os
Padgitt e o nosso xerife. Não foi surpresa quando Lucien Wilbanks
protestou contra esse esquema. Em suas reações um tanto frenéticas,
ele ressaltava que o juiz Loopus vinha tratando seu cliente de uma
maneira diferente e injusta. Ao ler suas petições, eu ficava espantado
pela maneira como ele era capaz de arengar com a maior clareza por
muitas páginas.
Era cada vez mais óbvio que o juiz Loopus estava determinado a
presidir um julgamento seguro e sem distorções. Ele fora promotor
distrital na década de 1950, antes de ingressar na magistratura. Era
conhecido por suas tendências a favor da Promotoria. Dava a nítida
impressão de que não se preocupava muito com os Padgitt e seu
legado de corrupção. Além disso, no papel (inclusive em meu jornal),
o caso contra Danny Padgitt parecia incontestável.
Na segunda-feira, 15 de junho, em meio ao maior sigilo, um
funcionário do Tribunal do Circuito remeteu pelo correio uma centena
de convocações para o serviço de júri, endereçada a eleitores
registrados, em todo o condado de Ford. Uma delas foi parar na caixa
de correspondência sempre cheia de Miss Callie Ruffin. Quando
cheguei para almoçar, na quinta-feira, ela me mostrou.

Em 1970, o condado de Ford era 26 por cento negro, 74 por cento


branco, sem frações para outros ou aqueles que não eram certos. Seis
anos depois do tumultuado verão de 1964, com a campanha maciça
para registrar eleitores negros, e cinco anos depois da Lei de Direito ao
Voto de 1965, poucos haviam se dado ao trabalho de fazer o registro
no condado de Ford. Nas eleições estaduais de 1967, quase 70 por
cento dos brancos registrados no condado votaram, em comparação
com apenas 12 por cento dos negros. As campanhas pelo registro de
eleitor em Lowtown eram recebidas com indiferença geral. Uma razão
era o fato do condado ser tão branco que nenhum negro jamais
poderia ser eleito para um cargo público. Então por que se
incomodar?
Outra razão era o abuso histórico no ato do registro. Durante uma
centena de anos, os brancos haviam usado uma extensa variedade de
manobras para negar aos negros o registro apropriado: impostos
eleitorais, exames de alfabetização, a lista era longa e infame.
Outra razão, no entanto, era a hesitação da maioria dos negros em
se registrar em qualquer coisa sob autoridades brancas. O registro
podia significar mais impostos, mais vigilância, mais intromissões.
Podia significar mais serviço em júri.
Segundo Harry Rex, que era uma fonte sobre assuntos do tribunal
um pouco mais confiável do que Baggy, nunca houvera um jurado
negro no condado de Ford. Como os jurados em potencial eram
escolhidos apenas entre os eleitores registrados, nunca em qualquer
outra lista, poucos apareciam na relação. Os que sobreviviam às
primeiras rodadas do interrogatório eram rotineiramente dispensados
antes que os doze finais fossem aceitos. Em casos criminais, a
Promotoria costumava recusar os negros, pela convicção de que
simpatizariam demais com o acusado. Em casos cíveis, a defesa
rejeitava-os, porque temia que seriam liberais demais com o dinheiro
dos outros.
Mas essas teorias nunca haviam sido testadas no condado de Ford.

Callie e Esau Ruffin registraram-se para votar em 1951. Juntos,


entraram na sala de expediente do tribunal e pediram para ser
acrescentados à lista de eleitores. A funcionária, como fora instruída a
fazer, entregou-lhes um cartão com as palavras “Declaração de
Independência” no topo. O texto estava escrito em alemão.
A mulher, presumindo que o sr. e a sra. Ruffin eram tão
analfabetos quanto a maioria dos negros no condado de Ford,
indagou:
— Podem ler isto?
— Não está em inglês, mas em alemão - disse Callie.
— Podem ler? - insistiu a funcionária, compreendendo que poderia
ter um problema com aquele casal.
— Posso ler tanto quanto você — comentou Callie, polida.
A mulher recolheu o cartão e entregou outro.
— Pode ler isto?
— Posso - respondeu Callie. - É a Declaração de Direitos.
— O que diz o número oito?
Callie leu devagar, para depois acrescentar:
— A Oitava Emenda proíbe multas excessivas e punições cruéis.
Mais ou menos nessa ocasião, dependendo de quem era a versão
descrita, Esau inclinou-se e disse:
— Somos proprietários de um imóvel.
Ele pôs a escritura da casa no balcão. A funcionária examinou-a.
Ter um imóvel não era um requisito para votar, mas era um enorme
trunfo para quem era negro. Sem saber o que mais fazer, a mulher
disse:
— Está bem. A taxa é de dois dólares para cada um.
Esau entregou o dinheiro. Com isso, eles se tornaram eleitores,
junto com 31 outros negros, todos homens.
Nunca perderam uma eleição. Miss Callie sempre se preocupara
com o fato de que bem poucos de seus amigos se davam ao trabalho
de fazer o registro e votar. Mas ela andava muito ocupada com a
criação de oito filhos para fazer alguma coisa em relação a esse
problema. O condado de Ford foi poupado da turbulência social que
era comum na maior parte do estado. Por isso, nunca houve ali uma
campanha organizada para registrar eleitores negros.

A princípio, não pude determinar se Miss Callie estava ansiosa ou


excitada. Não tenho certeza se ela própria sabia. A primeira eleitora
negra do condado poderia se tornar agora a primeira jurada negra. Ela
nunca recuara de um desafio, mas tinha graves preocupações morais
com o julgamento de outras pessoas.
— Não julgueis para não serdes julgados - dissera-me mais de uma
vez, citando Jesus.
— Mas se todos seguissem esse versículo das Escrituras, nosso
sistema judiciário fracassaria, não é mesmo? - indaguei.
— Não sei.
Ela desviou os olhos. Eu nunca a vira tão preocupada. Comíamos
galinha frita com purê de batata e molho. Esau não pudera almoçar
em casa.
— Como posso julgar um homem que sei que é culpado? —
perguntou Miss Callie.
— Primeiro, você avalia as provas e as alegações. Tem a mente
aberta. Não será difícil.
— Mas você sabe que ele a matou. Foi o que disse em seu jornal.
A brutal honestidade de Miss Callie sempre atingia o alvo em
cheio.
— Apenas relatamos os fatos, Miss Callie. E se os fatos fazem com
que ele pareça culpado, não podemos evitar.
Os momentos de silêncio foram longos e numerosos naquele dia.
Absorvida em pensamento, ela comeu pouco.
— O que me diz da pena de morte? Vão querer mandar o rapaz
para a câmara de gás?
— É possível. O caso é de pena capital.
— Quem decide se ele será executado?
— O júri.
Ela foi incapaz de comer depois disso. Informou que sua pressão
subira desde que recebera a convocação do júri. Já fora ao médico.
Ajudei-a a ir para o sofá na sala e servi-lhe um copo com água gelada.
Miss Callie insistiu para que eu terminasse de comer, o que fiz com o
maior prazer, em silêncio. Mais tarde, ela se recuperou um pouco.
Sentamos na varanda, em cadeiras de balanço, conversando sobre
qualquer coisa que não fosse Danny Padgitt e seu julgamento.
E, finalmente, obtive resultados, quando indaguei sobre a
influência italiana em sua vida. Em nosso primeiro almoço, ela me
dissera que aprendera a falar italiano antes do inglês. Sete de seus oito
filhos tinham nomes italianos.
Ela precisava me contar uma longa história. Eu não tinha
absolutamente mais nada para fazer.

Na década de 1890, o preço do algodão subiu de uma maneira


espetacular, à medida que crescia a demanda no mundo inteiro. As
regiões férteis do Sul estavam sob pressão para produzir mais. Os
donos de plantações no delta do Mississippi precisavam
desesperadamente aumentar as suas colheitas, mas enfrentavam uma
severa escassez de mão de obra. Muitos dos negros em plenas
condições físicas haviam fugido das terras em que seus ancestrais
trabalharam como escravos, em busca de salários e vidas melhores no
Norte. Os que ficaram para trás, como era compreensível, não
demonstravam muito entusiasmo para colher algodão por um salário
ínfimo.
Os plantadores armaram um esquema para importar imigrantes
europeus, esforçados e diligentes, para cultivar algodão. Mediante
contatos com agentes de trabalhadores italianos, em Nova York e New
Orleans, foram feitas ligações, promessas trocadas, mentiras
apregoadas, contratos forjados. Em 1895, o primeiro navio com
famílias italianas chegou ao delta. Eram do norte da Itália, da região
de Emilia-Romagna, perto de Verona. De um modo geral, tinham
pouca instrução e quase não falavam inglês. Em qualquer língua,
porém, logo deu para perceber que se encontravam no lado errado de
uma tremenda fraude. Receberam acomodações miseráveis, num
clima subtropical. Enquanto lutavam contra a malária, mosquitos,
cobras e água potável contaminada, ainda tinham de cultivar algodão
por salários com que ninguém podia sobreviver. Foram obrigados a
tomar dinheiro emprestado dos patrões, a juros escorchantes. A
comida e todos os demais suprimentos vinham do armazém da
companhia, a preços exorbitantes.
Porque os italianos trabalhavam com afinco, os plantadores
queriam mais. Tornaram mais atraentes suas operações, fizeram mais
promessas a mais agentes italianos de mão de obra e os imigrantes
continuaram a chegar. Foi criado quase que um sistema de trabalhos
forçados. Os italianos eram tratados de uma maneira muito pior que
os camponeses negros.
Com o passar do tempo, houve alguns esforços para dividir o lucro
e transferir a propriedade da terra. Os mercados de algodão, contudo,
oscilavam tanto que os acertos nunca podiam ser estabilizados.
Depois de vinte anos de abusos, os italianos finalmente se
dispersaram e o experimento virou história.
Os que permaneceram no delta foram considerados cidadãos de
segunda classe, por décadas. Eram excluídos das escolas. Por serem
católicos, não eram bem recebidos nas igrejas. Os clubes
mais sofisticados não admitiam sua entrada. Eram os dagos, os
carcamanos, empurrados para o fundo da escada social. Mas porque
trabalhavam com afinco e guardavam dinheiro, pouco a pouco, foram
acumulando terras.
A família Rossetti desembarcou perto de Leland, Mississippi, em
1902. Vinha de uma aldeia perto de Bolonha e tivera o infortúnio de
escutar o agente de trabalho errado naquela cidade. O sr. e a sra.
Rossetti trouxeram quatro filhas. A mais velha era Nicola, com doze
anos. Embora passassem fome durante o primeiro ano, conseguiam
evitar a inanição. Indigente ao chegar, depois de três anos de trabalho
a família acumulara uma dívida no valor de seis mil dólares com a
plantação, sem qualquer possibilidade de pagar. Fugiram do delta
durante a noite e viajaram para Memphis num vagão de carga, onde
um parente distante abrigou-os.
Aos quinze anos, Nicola tinha uma beleza extraordinária. Cabelos
escuros compridos, olhos castanhos... uma beldade italiana clássica.
Parecia mais velha. Arrumou um emprego numa loja de roupas,
dizendo ao proprietário que tinha dezoito anos. Depois de três dias, o
homem pediu-a em casamento. Estava disposto a se divorciar da
esposa, com vinte anos de casamento, e se afastar dos filhos, se Nicola
concordasse em fugir com ele. A jovem disse que não. Ele ofereceu
cinco mil dólares ao sr. Rossetti como incentivo. O sr. Rossetti disse
que não.
Naquele tempo, as ricas famílias rurais do norte do Mississippi
faziam suas compras e confraternização social em Memphis,
geralmente nas proximidades do Peabody Hotel. Foi ali que o sr.
Zachary DeJarnette, de Clanton, teve a pura sorte de conhecer Nicola
Rossetti. Casaram três semanas depois.
Ele tinha 31 anos, viúvo, sem filhos, empenhado na busca de uma
esposa. Era também o maior proprietário de terras no condado de
Ford, onde o solo não era tão fértil quanto no delta, mas ainda assim
bastante lucrativo, se você possuía uma extensão considerável. O sr.
DeJarnette herdara mais de 1. 600 hectares da família. Seu avô fora
outrora o dono do avô de Calia Harris Ruffin.
O casamento foi um acordo. Nicola era sensata além de sua idade e
estava ansiosa em proteger sua família. Haviam sofrido demais.
Percebeu a oportunidade e tratou de aproveitá-la. Antes que ela
concordasse com o casamento, o sr. DeJarnette prometeu que não
apenas empregaria seu pai, como supervisor de plantação, mas
também providenciaria para sua família uma residência confortável.
Também concordou em pagar a educação das três irmãs menores. E
em pagar as dívidas que o sr. Rossetti deixara no delta. O sr.
DeJarnette sentia-se tão apaixonado que concordaria com qualquer
coisa.
Os primeiros italianos no condado de Ford não chegaram num
carro de boi quebrado, mas sim na primeira classe de um trem da
Illinois Central Rail Line. Um comitê de recepção descarregou as
malas novas e ajudou a família a embarcar em dois Fords Model T, de
1904. Os Rossetti foram tratados como a realeza, acompanhando o sr.
DeJarnette de festa em festa, em Clanton. A cidade logo fervilhava
com descrições da beleza da noiva. Falou-se numa cerimônia de
casamento formal, para complementar o serviço rápido em Memphis.
Como não havia igreja católica em Clanton, porém, a ideia foi
descartada. Os recém casados ainda precisavam resolver a questão
delicada da preferência religiosa. Naquela ocasião, se Nicola pedisse
ao sr. DeJarnette para se converter ao hinduísmo, ele aceitaria sem
hesitar.
A família Finalmente chegou à casa grande, nos arredores da
cidade. Quando os Rossetti viram a mansão imponente, construída
antes da Guerra Civil pelo primeiro sr. DeJarnette, desataram a
chorar.
Foi decidido que eles ficariam ali até que uma casa de supervisor
fosse reformada. Nicola assumiu seus deveres como a dona da casa e
tentou ao máximo engravidar. Professores particulares foram
contratados para as irmãs menores, que em poucas semanas falavam
um bom inglês. O sr. Rossetti passava os dias com o genro, que era
apenas três anos mais moço, e aprendeu a administrar a plantação.
E a sra. Rossetti foi para a cozinha, onde conheceu a mãe de Callie,
índia.
— Minha avó cozinhou para os DeJarnette e minha mãe também
— disse Miss Callie. - Pensei que faria a mesma coisa, mas não foi o
que aconteceu.
— Zack e Nicola tiveram filhos?
Eu estava no terceiro ou quarto copo de chá. Fazia tanto calor que
o gelo derretia depressa. Miss Callie vinha falando havia duas horas.
Esquecera a convocação para o júri e o julgamento por homicídio.
— Não. Foi muito triste, pois eles queriam muito ter filhos.
Quando eu nasci, em 1911, Nicola quase que me tirou de minha mãe.
Insistiu que eu tivesse um nome italiano. Mantinha-me na casa grande
em sua companhia. Minha mãe não se importava. Tinha muitos outros
filhos e passava a maior parte do dia na casa.
— O que seu pai fazia?
— Trabalhava na plantação. Era um bom lugar para trabalhar e
viver. Tínhamos sorte porque os DeJarnette cuidavam de nós. Eram
pessoas boas e justas. Sempre foram. Não era esse o destino para
muitos negros. Naquele tempo, sua vida era controlada pelo branco
que possuía a casa em que você morava. Se ele era mesquinho e
abusivo, então sua vida era miserável. Os DeJarnette eram pessoas
maravilhosas. Meu pai, meu avô e meu bisavô trabalharam nas terras
da família, sem nunca serem maltratados.
— E Nicola?
Ela sorriu pela primeira vez em uma hora.
— Deus me abençoou. Tive duas mães. Ela me vestia com roupas
que comprava em Memphis. Quando comecei a andar, ela me ensinou
a falar italiano, ao mesmo tempo em que eu aprendia o inglês.
Ensinou-me a ler quando eu tinha três anos.
— Ainda fala italiano?
— Não. Já faz muito tempo. Ela adorava me contar histórias de ser
uma menina na Itália. Prometeu que um dia me levaria até lá, para
conhecer os canais em Veneza, o Vaticano em Roma, e a torre em Pisa.
Adorava cantar, e me ensinou tudo o que sabia sobre ópera.
— Ela tinha instrução?
— A mãe tinha alguma instrução, mas o sr. Rossetti não tinha. Ela
cuidou para que Nicola e as irmãs soubessem ler e escrever. Nicola
prometeu que me mandaria para uma universidade no Norte, ou até
mesmo na Europa, onde as pessoas eram mais tolerantes. A ideia de
uma negra cursando a universidade era totalmente absurda na década
de 1920.
A história se desenvolvia em muitas direções. Eu queria registrar
alguma coisa, mas não trouxera um bloco. A imagem de uma menina
negra morando numa mansão do Sul, construída antes da Guerra
Civil, falando italiano e ouvindo ópera, no Mississippi, cinquenta anos
antes, era excepcional.
— Trabalhou na casa?
— Trabalhei. Era arrumadeira. Mas nunca tive de trabalhar tanto
quanto as outras. Nicola queria minha companhia. Pelo menos uma
hora por dia, sentávamos na sala de estar e conversávamos. Ela estava
determinada a perder o sotaque italiano. Queria também que eu
tivesse uma dicção perfeita. Havia uma professora aposentada na
cidade, Miss Tucker, uma velha solteirona, que jamais esquecerei.
Nicola mandava um carro buscá-la todas as manhãs. Enquanto
tomávamos chá quente, líamos uma lição e Miss Tucker corrigia a
menor pronúncia errada. Estudávamos gramática. Memorizávamos
vocabulário. Nicola esforçou-se até falar um inglês perfeito.
— O que aconteceu com a ida para a universidade?
Miss Callie sentia-se subitamente exausta e o tempo de contar
história acabara.
— Foi muito triste, sr. Traynor. O sr. DeJarnette perdeu tudo o que
tinha na década de 1920. Investira em ferrovias, navios, ações e coisas
assim. Ficou quebrado quase que da noite para o dia. Matou-se com
um tiro... mas isso já é outra história.
— O que aconteceu com Nicola?
— Ela conseguiu se manter na casa grande até a II Guerra
Mundial. Mudou-se então para Memphis, com o sr. e a sra. Rossetti.
Trocamos cartas todas as semanas durante anos. Ainda guardo as
cartas que recebi. Ela morreu há quatro anos. Tinha 76 anos. Chorei
durante um mês. Ainda choro quando penso nela. Como eu amava
aquela mulher...
A voz definhou nas últimas palavras. Pela experiência, eu sabia
que ela estava pronta para um cochilo.
Mais tarde, naquela noite, fui verificar nos arquivos do Times. No
dia 12 de setembro de 1930, uma notícia na primeira página anunciava
o suicídio de Zachary DeJarnette. Arrasado com o colapso de seus
negócios, ele deixara um testamento e um bilhete de despedida para a
esposa, Nicola. Depois, a fim de facilitar o trabalho de todos, fora até a
agência funerária de Clanton. Entrara pela porta dos fundos, com uma
espingarda de cano duplo, encontrara a sala de embalsamamento,
sentara, tirara um sapato, enfiara o cano da arma na boca e puxara o
gatilho com o dedão do pé.
CAPÍTULO 14
NA SEGUNDA-FEIRA, 22 DE JUNHO, quase todos os cem jurados em
potencial compareceram ao tribunal, para o julgamento de Danny
Padgitt. Menos oito. Como logo descobrimos, quatro haviam morrido
e os quatro restantes simplesmente desapareceram. A maioria dos
outros parecia muito ansiosa. Baggy comentou que, de um modo
geral, os jurados não têm a menor ideia do caso para o qual podem ser
selecionados quando chegam. Não foi o que aconteceu com o
julgamento de Danny Padgitt. Todas as pessoas no condado de Ford
sabiam que o grande dia Finalmente chegara.
Poucas coisas atraem uma multidão numa pequena cidade quanto
um bom julgamento por homicídio. A sala do tribunal já estava lotada
antes de nove horas da manhã. Os jurados em potencial ocuparam um
lado, enquanto os espectadores Ficaram no outro. Como
demonstração de força, o xerife Coley convocou todos os que usavam
uniforme, exibindo um ar de importante, mas sem fazerem nada de
produtivo. A ocasião perfeita para assaltar um banco, pensei.
Baggy e eu sentamos na primeira fila. Ele convencera o escrevente
do Tribunal do Circuito de que tínhamos direito a credenciais da
imprensa, o que nos garantia lugares especiais. Ao meu lado, sentou
um repórter de um jornal de Tupelo, um homem simpático, que
recendia a fumo de cachimbo ordinário. Informei-o sobre os detalhes
do homicídio, com a condição de meu nome não ser citado. Ele se
mostrou impressionado com o meu conhecimento.
Os Padgitt compareceram em peso. Sentaram perto da mesa da
defesa, agrupados em torno de Danny e Lucien Wilbanks,
como se ali fosse o covil dos ladrões. Eram arrogantes e sinistros, e
não pude deixar de odiar todos. Não os conhecia pelos nomes; poucas
pessoas sabiam como se chamavam. Enquanto observava-os, especulei
qual teria sido o incendiário incompetente que entrara na oficina do
jornal com galões de gasolina. Eu tinha minha arma na pasta. Tenho
certeza de que eles também estavam armados. Um movimento em
falso aqui ou ali, e haveria um antiquado tiroteio. Acrescente-se o
xerife Coley e seus homens mal treinados, mas ansiosos em puxar o
gatilho, e metade da cidade seria exterminada.
Recebi uns poucos olhares furiosos dos Padgitt, mas eles estavam
muito mais preocupados com os jurados do que comigo. Observavam-
nos atentamente, quando entraram na sala e receberam instruções de
um oficial de justiça. Os Padgitt e seus advogados examinavam as
listas que haviam obtido em algum lugar. Comparavam anotações.
Danny estava bem vestido, mas de uma maneira informal, com
uma camisa branca de mangas compridas e uma calça cáqui
engomada. De acordo com a instrução de Wilbanks, sorria muito,
como se fosse de fato um bom garoto, cuja inocência estivesse prestes
a ser revelada.
No outro lado do corredor, Ernie Gaddis e sua equipe menor
também observavam os jurados em potencial. Gaddis tinha dois
assistentes, um ajudante que não era advogado e um advogado que
assessorava na acusação de vez em quando, chamado Hank Hooten.
O ajudante carregava as pastas. Hooten parecia fazer pouca coisa.
Dava a impressão de que só estava ali para que Ernie tivesse alguém
com quem pudesse conferenciar. Baggy inclinou-se para mim, como
se fosse tempo de sussurrar.
— Aquele cara ali, de terno marrom... — Ele acenou com a cabeça
na direção de Hooten. - Ele trepava com Rhoda Kassellaw.
Fiquei chocado, e meu rosto deixou transparecer. Virei-me
bruscamente para a direita, fitando Baggy. Ele balançou a cabeça,
presunçoso, e acrescentou o que sempre dizia quando tinha uma
notícia ruim:
— É mesmo o que estou lhe dizendo.
Isso significava que ele não tinha dúvidas. Baggy errava com
frequência, mas nunca tinha dúvidas.
Hooten parecia ter quarenta anos, cabelos prematuramente
grisalhos, bem vestido, um homem bonito.
— De onde ele é? — sussurrei.
O tribunal estava barulhento, enquanto esperávamos pelo juiz
Loopus.
— Daqui mesmo. Cuida do direito de propriedade, coisas sem
muita pressão. Um idiota rematado. Já se divorciou duas vezes, e vive
atrás de mulher.
— Gaddis sabe que seu assessor tinha um relacionamento com a
vítima?
— Claro que não. Ernie o tiraria do caso.
— Acha que Wilbanks sabe?
— Ninguém sabe — garantiu Baggy, com uma presunção ainda
maior.
Era como se ele os tivesse surpreendido pessoalmente na cama,
guardando o segredo até aquele momento no tribunal. Eu não sabia se
devia acreditar nele.
Miss Callie chegou poucos minutos antes de nove horas. Esau
acompanhou-a, mas depois teve de se retirar, porque não conseguiu
arrumar um lugar para sentar. Ela falou com um funcionário, foi
encaminhada para a terceira fila e recebeu um questionário para
preencher. Olhou ao redor, à minha procura, mas havia muitas
pessoas entre nós. Contei quatro outros negros entre os possíveis
jurados.
Um oficial de justiça mandou que nos levantássemos, e a
impressão foi de um estouro de boiada. O juiz Loopus disse que
podíamos sentar. O chão tremeu. Ele começou imediatamente a
trabalhar. Parecia estar com uma ótima disposição. Tinha um tribunal
cheio de eleitores e era candidato à reeleição dentro de dois anos,
embora nunca tivesse um adversário. Seis jurados foram dispensados
porque tinham mais de 65 anos. Cinco foram dispensados por motivos
médicos. A manhã começou a se arrastar. Eu não conseguia desviar os
olhos de Hank Hooten. Ele tinha mesmo a aparência de um
conquistador.
Concluídas as questões preliminares, a lista fora reduzida a 79
pessoas qualificadas para o júri. Miss Callie estava agora na segunda
fila, o que não era um bom sinal, se queria evitar o serviço no júri. O
juiz Loopus passou a palavra a Ernie Gaddis, que tornou a se
apresentar aos possíveis jurados. Explicou, minuciosamente, que
estava ali por conta do Estado do Mississippi, os contribuintes, os
cidadãos que o haviam eleito para processar aqueles que cometiam
crimes. ' Era o advogado do povo.
Sua função era processar o sr. Danny Padgitt, que fora indiciado
por um grande júri, formado por seus concidadãos, pelo estupro e
assassinato de Rhoda Kassellaw. Ele perguntou se era possível que
alguém ali não tivesse ouvido qualquer coisa sobre o assassinato. Não
houve mão que se levantasse.
Ernie falava para júris havia trinta anos. Era afável e suave, dava a
impressão de que era possível discutir qualquer coisa com ele, mesmo
em pleno tribunal. Andava devagar pela chamada área de
intimidação. Alguém fora de sua família procurou-o para conversar
sobre o caso? Um estranho? Um amigo tentou influenciar sua opinião?
A convocação foi despachada pelo correio; a lista de possíveis jurados
estava sob sigilo. Ninguém deveria saber que você era um jurado em
potencial. Alguém mencionou o fato para você? Alguém o ameaçou?
Alguém ofereceu alguma coisa? O tribunal mantinha silêncio total
enquanto Ernie conduzia os jurados em potencial por essas perguntas.
Ninguém levantou a mão; nem se esperava que alguém o fizesse.
Mas Ernie conseguiu transmitir a mensagem de que aquelas pessoas,
os Padgitt, vinham se esgueirando pelas sombras do condado de Ford.
Lançou uma nuvem ainda mais sinistra sobre a família e deu a
impressão de que ele, como o promotor distrital e advogado do povo,
conhecia a verdade. E iniciou a conclusão com uma indagação que
ressoou pelo tribunal como um tiro de rifle:
— Todos vocês compreendem que a interferência com o júri é um
crime?
Eles pareciam compreender.
— E eu, como promotor, devo processar, indiciar, levar a
julgamento e fazer tudo o que puder para condenar qualquer pessoa
culpada de interferência com o júri. Também compreendem isso?
Quando Ernie terminou, todos sentíamos que fôramos alvos de
alguma interferência. Qualquer pessoa com quem conversáramos
sobre o caso — ou seja, todos no condado - parecia correr o perigo de
ser indiciada por Ernie e atormentada até a sepultura.
— Ele é bastante eficiente - sussurrou o repórter de Tupelo.
Lucien Wilbanks começou com uma preleção longa e chata sobre a
presunção de inocência, como era a base da jurisprudência americana.
Independentemente do que pudessem ler no jornal local — e neste
ponto ele conseguiu lançar um olhar desdenhoso na direção do lugar
em que eu sentava —, seu cliente, sentado ali naquele momento, era
um homem inocente. E se alguém achava que não, tinha o dever de
levantar a mão e declarar agora.
Ninguém levantou a mão.
— Isso é ótimo. Por seu silêncio, todos vocês podem olhar para
Danny Padgitt agora e dizer que ele é inocente. São capazes de fazer
isso?
Ele insistiu nesse ponto por tempo demais. Depois, transferiu o
ônus da prova, com outra preleção sobre o monumental desafio do
Estado de provar que seu cliente era culpado, além de qualquer
dúvida razoável.
— Essas duas proteções sagradas: a presunção de inocência e a
prova além de qualquer dúvida razoável, foram concedidas a todos
nós, inclusive aos jurados, pelos homens muito sábios que escreveram
nossa Constituição e a Declaração de Direitos.
Era quase meio-dia e todos estavam ansiosos pelo intervalo.
Wilbanks pareceu não perceber e continuou a falar. Quando sentou,
ao meio-dia e quinze, o juiz Loopus anunciou que estava morrendo de
fome. O tribunal entraria em recesso até duas horas da tarde.
Baggy e eu comemos um sanduíche no Bar Room, com alguns de
seus colegas, três advogados idosos e acabados, que não perdiam um
julgamento havia anos. Baggy queria muito tomar um uísque, mas
achou, por alguma estranha razão, que o cumprimento do dever não
permitia. O que não aconteceu com seus companheiros. O escrevente
nos dera uma lista dos jurados, na ordem atual. Miss Callie era a 22ª, a
primeira pessoa negra e a terceira mulher.
A impressão geral era a de que a defesa a recusaria, por ser negra.
Segundo a teoria predominante, os negros simpatizavam com as
pessoas acusadas de crimes. Eu não entendia como uma negra podia
simpatizar com um criminoso branco como Danny Padgitt. Aqueles
advogados, porém, mantiveram-se inabaláveis em sua convicção de
que Lucien Wilbanks a aceitaria com a maior satisfação.
Sob a mesma teoria, a Promotoria exerceria uma de suas
contestações arbitrárias e peremptórias, eliminando-a da lista de
possíveis jurados. Não era bem assim, declarou Chick Elliot, o mais
velho e também mais afeito da turma ao uísque.
— Eu a aceitaria se estivesse na promotoria — alegou ele, para
depois tomar uma dose reforçada de bourbon.
— Por quê? — indagou Baggy.
— Porque agora a conhecemos muito bem, graças ao Times. Ela se
destaca como uma mulher sensata, temente a Deus, uma patriota que
gosta de citar a Bíblia, que criou todos os filhos com a mão firme e
uma palma decidida quando saíam da linha.
— Concordo - disse Tackett, o mais jovem dos três, que tinha uma
tendência a sempre concordar com a teoria predominante, qualquer
que fosse. - Ela seria uma jurada ideal para a Promotoria. Além do
mais, é mulher. Num caso de estupro, eu aceitaria todas as mulheres
que pudesse obter.
Eles argumentaram por uma hora. Era a minha primeira sessão
com aqueles advogados. Compreendi como Baggy era capaz de
recolher tantas opiniões divergentes sobre tantos assuntos. Embora
fizesse um esforço para não deixar transparecer, eu me sentia bastante
preocupado com a possibilidade de que minhas longas e generosas
reportagens sobre Miss Callie pudessem de alguma forma voltar para
afligi-la.

Depois do almoço, o juiz Loopus iniciou a fase mais séria do


interrogatório dos possíveis jurados, tratando da pena de morte. Ele
explicou a natureza do crime capital e os procedimentos que seriam
adotados. Em seguida, passou a palavra para Ernie Gaddis.
O jurado número 11 era membro de uma igreja obscura e deixou
claro que nunca poderia votar para enviar uma pessoa à câmara de
gás. O jurado numero 34 era um veterano de duas guerras e
lamentava que a pena de morte não fosse usada com mais frequência.
Isso, é claro, deixou Ernie na maior satisfação. Ele fez perguntas a
alguns jurados específicos sobre julgar os outros e aplicar a pena de
morte. Chegou a vez de Miss Callie.
— Li a seu respeito, sra. Ruffin, e parece ser muito religiosa. Isso é
verdade?
— Amo o Senhor - respondeu ela, incisiva como sempre.
— Sente alguma hesitação em julgar outro homem?
— Sim, senhor.
— Quer ser dispensada?
— Não, senhor. É meu dever como cidadã estar aqui, o que
também acontece com todas as outras pessoas.
— E se participar do júri e o júri decidir que o sr. Padgitt é culpado
por aqueles crimes, pode votar pela pena de morte?
— Eu não gostaria.
— A minha pergunta foi outra: “Pode votar pela pena de morte? ”
— Posso seguir a lei, assim como essas outras pessoas. Se a lei
determina que devemos considerar a pena de morte, então posso
aceitar a lei.

Quatro horas mais tarde, Calia H. Ruffin tornou-se a última jurada


escolhida, a primeira negra a integrar um júri no condado de Clanton.
Os bêbados no Bar Room haviam acertado. A defesa a queria porque
ela era negra. O Estado a queria porque os promotores a conheciam
muito bem. Além disso, Ernie Gaddis precisara guardar suas rejeições
para personagens menos propícios.
Mais tarde, naquela noite, eu sentava sozinho em minha sala,
escrevendo a reportagem sobre o primeiro dia do julgamento e a
escolha dos jurados. Ouvi um barulho familiar lá embaixo. Harry Rex
tinha um jeito de empurrar a porta da frente e pisar forte no assoalho
de madeira que permitia que todo mundo no Times,
independentemente da hora do dia, soubesse de sua chegada.
— Willie! - gritou ele lá de baixo.
— Estou aqui em cima!
Harry Rex subiu a escada, ruidoso como sempre. Arriou em sua
cadeira predileta.
— O que acha do júri, Willie?
Ele parecia estar completamente sóbrio.
— Só conheço uma jurada. Quantos no júri você conhece?
— Sete.
— Acha que escolheram Miss Callie por causa de minhas
reportagens?
— Claro que sim. - Ele era brutalmente honesto, como sempre. -
Todos falaram sobre ela. Os dois lados achavam que a conheciam.
Estamos em 1970, e nunca tivemos uma pessoa negra no júri. Ela
parecia tão boa quanto qualquer outra. Isso o preocupa?
— Acho que sim.
— Por quê? O que há de errado em servir num júri? Já era tempo
dos negros serem jurados. Ela e o marido sempre se mostraram
ansiosos em derrubar barreiras. Não é perigoso. Isto é, normalmente
não é perigoso.
Eu não conversara com Miss Callie e agora só poderia fazê-lo
depois do julgamento. O juiz Loopus ordenara que os jurados
permanecessem isolados durante a semana. Naquele momento,
estavam escondidos num motel em outra cidade.
— Alguma pessoa suspeita no júri? - perguntei.
— É possível. Todos estão preocupados com aquele garoto aleijado
de Dumas... o tal de Fargarson. Teve um problema na coluna quando
trabalhava na serraria que pertencia ao tio. O tio vendia madeira para
os Padgitt há muitos anos. O garoto parece decidido. Gaddis queria
cortá-lo, mas não tinha mais rejeições automáticas.
O garoto aleijado andava com uma bengala e tinha pelo menos 25
anos. Harry Rex referia-se a qualquer um mais jovem do que ele - a
mim em particular - como “garoto”.
— Mas nunca se sabe quando os Padgitt estão em cena -
acrescentou ele. - É possível que, a esta altura, eles já tenham a metade
do júri no bolso.
— Não acredita de fato nisso, não é?
— Não, não acredito. Mas também não me surpreenderia com um
júri indefinido. Talvez Ernie precise disparar duas ou três vezes antes
de acertar o garoto de jeito.
— Mas ele vai para a prisão, não é?
O pensamento de Danny Padgitt escapar da punição me assustava.
Eu investira tudo na cidade de Clanton e não gostaria de continuar ali
se sua justiça fosse tão corrupta.
— Vão acabar com ele.
— Ainda bem. A pena de morte?
— Eu apostaria que sim, mais cedo ou mais tarde. Aqui é a fivela
do Cinturão da Bíblia, Willie. Olho por olho, toda essa besteira.
Loopus fará tudo o que puder para ajudar Ernie a obter um veredicto
de morte.
Cometi, então, o erro de perguntar por que ele estava trabalhando
até tarde. Um cliente de divórcio deixara a cidade a negócios. Voltara
às escondidas para surpreender a esposa com o namorado. O cliente e
Harry Rex haviam passado as duas últimas horas numa picape
emprestada, num motel de encontros amorosos no norte da cidade. E
descobriram que a esposa tinha dois namorados. Ele levou meia hora
para contar a história.
CAPÍTULO 15
NA MANHÃ DE TERÇA-FEIRA, quase duas horas foram desperdiçadas
com os advogados argumentando com veemência por petições
apresentadas no gabinete do juiz.
— Provavelmente é por causa dos fotógrafos — comentou Baggy. -
Eles sempre brigam por causa dos fotógrafos.
Como não estávamos a par dessa guerra em particular, esperamos
impacientes no tribunal, guardando nossos lugares. Escrevi páginas
de anotações inúteis, num garrancho que qualquer repórter veterano
teria admirado. As anotações mantiveram-me ocupado e desviaram
minha atenção dos olhares persistentes dos Padgitt. Com o júri fora da
sala, eles se concentraram no público, especialmente em mim.
Os jurados ficaram na sala das deliberações, com guardas na porta,
como se alguém pudesse ganhar alguma coisa ao atacá-los. A sala era
no segundo andar, com janelas grandes, e dava para o lado leste do
gramado do tribunal. Na base de uma janela havia um barulhento
aparelho de ar-condicionado, que podia ser ouvido em qualquer lugar
da praça quando ligado na potência máxima. Pensei em Miss Callie e
sua pressão alta. Sabia que ela estava lendo a Bíblia, e talvez isso a
tranquilizasse. Eu havia ligado para Esau no início daquela manhã.
Ele estava irritado pelo fato da mulher ser mantida no isolamento.
Esau estava agora na última fila, esperando com o resto de nós.
Quando o juiz Loopus e os advogados finalmente voltaram à sala,
davam a impressão de que saíam de uma briga a socos. O juiz acenou
com a cabeça para o oficial de justiça, e os jurados foram trazidos. Ele
cumprimentou-os, agradeceu, perguntou pelas acomodações, pediu
desculpas pela inconveniência, pelo atraso naquela manhã e prometeu
que tudo seria mais fácil dali por diante.
Ernie Gaddis assumiu a posição por trás do pódio e começou as
alegações iniciais para o júri. Tinha um bloco de anotações, mas não o
consultou. Com extrema eficiência, relatou os elementos necessários
que o Estado provaria contra Danny Padgitt. Depois que todas as
provas fossem apresentadas, todas as testemunhas ouvidas, depois
que os advogados concluíssem suas alegações, depois que o juiz desse
as instruções necessárias, caberia aos jurados fazerem justiça. Ele não
tinha a menor dúvida de que decidiriam que Danny Padgitt era
culpado de estupro e homicídio. Não desperdiçou uma só palavra, e
cada palavra atingiu seu objetivo. Teve a generosidade de ser breve. O
tom confiante e os comentários precisos transmitiram a mensagem
evidente de que ele tinha os fatos, um caso sólido, e obteria o
veredicto que queria. Não precisava de argumentos longos e
emocionados para convencer o júri. Baggy adorava dizer:
— Quando os advogados têm poucos argumentos, falam muito
mais.
Estranhamente, Lucien Wilbanks adiou suas alegações iniciais até
o momento em que a defesa concluísse a apresentação de seu caso,
uma opção que quase nunca era exercida.
— Ele está tramando alguma coisa - murmurou Baggy, como se ele
e Lucien estivessem pensando juntos. - Não será uma surpresa.
A primeira testemunha do Estado foi o próprio xerife Coley. Parte
de seu trabalho era testemunhar em processos criminais, mas era
duvidoso que jamais tivesse sonhado em fazer isso contra um Padgitt.
Dentro de poucos meses, ele seria candidato à reeleição. Era
importante que assumisse uma boa posição perante os eleitores.
Com o planejamento meticuloso e o estímulo de Ernie, eles
examinaram todos os fatos do crime. Foram apresentadas plantas da
casa de Rhoda Kassellaw e da casa dos Deece, além de um mapa de
todas as ruas e estradas de Beech Hill, com a indicação do ponto exato
em que Danny Padgitt fora preso. Foram mostradas fotos da área.
Depois, as fotos do cadáver de Rhoda, uma série de fotos de 20 x 25
cm, entregues aos jurados e passadas de mão em mão. As reações
foram espantosas. Cada rosto ficou chocado. Alguns estremeceram.
Miss Callie fechou os olhos, dando a impressão de que orava. Outra
mulher no júri, a sra. Barbara Baldwin, deixou escapar um ofego ao
ver a primeira foto, e desviou os olhos. Depois, fitou Danny Padgitt
como se quisesse fuzilá-lo à queima-roupa.
—Meu Deus! - balbuciou um dos homens.
Outro tapou a boca, como se estivesse prestes a vomitar. Os
jurados sentavam em cadeiras giratórias acolchoadas, que balançavam
um pouco. À medida que as fotos macabras eram passadas adiante,
não houve uma única cadeira que ficasse parada. As fotos eram
inflamatórias, bastante prejudiciais, mas sempre admissíveis como
provas. Enquanto causavam comoção no júri, pensei que Danny
Padgitt já podia se considerar condenado. O juiz Loopus aceitou
apenas seis fotos como provas. Uma só seria suficiente.
Já passava de uma hora da tarde e todos precisavam de um
intervalo. Duvidei de que os jurados pudessem sentir algum apetite.

A segunda testemunha do Estado foi uma das irmãs de Rhoda, do


Missouri. Seu nome era Ginger McClure. Eu conversara várias vezes
com ela, depois do homicídio. Ao saber que eu estudara em Syracuse
e não era um nativo do condado de Ford, ela degelara um pouco.
Embora relutante, acabara me enviando uma foto para o obituário.
Mais tarde, ligara-me e perguntara se eu poderia enviar exemplares
do Times quando mencionasse o caso de Rhoda. Expressara sua
frustração por não conseguir os detalhes no gabinete do promotor
distrital.
Ginger era uma ruiva esguia, muito atraente e bem vestida.
Prendeu a atenção de todos quando sentou na cadeira das
testemunhas.
Segundo Baggy, alguém da família da vítima sempre prestava um
depoimento. A morte tornava-se real quando as pessoas amadas
ocupavam a cadeira das testemunhas e olhavam para os jurados.
Ernie queria que Ginger fosse vista pelo júri e despertasse
simpatia. Também queria lembrar ao júri que a mãe de duas crianças
pequenas lhes fora arrancada por um assassinato premeditado. O
depoimento de Ginger foi breve. Sensatamente, Lucien Wilbanks não
tinha perguntas a fazer na reinquirição. Quando foi dispensada, ela se
encaminhou para uma cadeira reservada por trás da grade, perto do
lugar ocupado por Ernie Gaddis, e assumiu sua posição como
representante da família. Cada movimento seu foi observado, até ser
chamada a testemunha seguinte.
Foi um retorno aos fatos sangrentos. Um patologista do laboratório
de criminalística estadual foi chamado para discorrer sobre a autópsia.
Trouxera muitas fotos, mas nenhuma foi usada. Não havia
necessidade. Em termos de leigos, a causa da morte era óbvia: perda
de sangue. Havia um talho de dez centímetros, que começava logo
abaixo da orelha esquerda e descia quase em linha reta. Tinha cerca de
cinco centímetros de profundidade. Em sua opinião — e já examinara
muitos ferimentos a faca - fora causado por um movimento rápido e
vigoroso de uma lâmina que devia ter quinze centímetros de
comprimento e dois centímetros e meio de largura. Era mais do que
provável que a pessoa que dera o golpe com a faca fosse destra. O
talho cortara completamente a veia jugular esquerda. Depois disso, a
vítima só teria mais uns poucos minutos de vida. Um segundo talho
tinha dezesseis centímetros de comprimento, com dois centímetros e
meio de profundidade. Seguia da ponta do queixo até a orelha direita,
que fora quase cortada em duas. Era provável que esse ferimento, por
si só, não causasse a morte.
O patologista descreveu esses ferimentos como se estivesse falando
sobre uma picada de mosquito. Não havia nada de mais. Nada de
excepcional. Em seu trabalho, via carnificinas como aquela todos os
dias, e as descrevia para os jurados. Para todas as outras pessoas no
tribunal, no entanto, os detalhes eram angustiantes. Em algum
momento, durante o seu depoimento, cada jurado olhou para Danny
Padgitt e votou silenciosamente:
“Culpado. ”
Lucien Wilbanks iniciou a reinquirição com extrema amabilidade.
Os dois já se haviam enfrentado antes, em outros julgamentos. Ele fez
o patologista admitir que algumas de suas opiniões podiam estar
erradas, como o tamanho da arma do crime e o fato do assassino ser
destro.
— Declarei que essas coisas eram possibilidades - lembrou o
médico, paciente.
Tive a impressão de que ele já fora interrogado tantas vezes que
nada o perturbava. Wilbanks pressionou e sondou um pouco, mas
teve o cuidado de não perguntar sobre as provas condenatórias. O júri
já ouvira demais sobre os ferimentos; seria uma insensatez voltar a
essa área.
Um segundo patologista prestou depoimento. Por ocasião da
autópsia, ele efetuara um exame meticuloso do cadáver. Encontrara
várias pistas para a identificação do assassino. Na área vaginal,
encontrara sêmen que combinava Perfeitamente com o tipo sanguíneo
de Danny Padgitt. Sob a unha do dedo indicador direito de Rhoda,
encontrara um fragmento de pele humana. Também combinava com o
tipo sanguíneo do réu.
Na reinquirição, Lucien Wilbanks perguntou se ele examinara
pessoalmente o sr. Padgitt. Não, ele não fizera isso. Onde o corpo do
sr. Padgitt fora raspado, arranhado ou rasgado daquele jeito?
— Não o examinei - disse o patologista.
— Examinou fotos dele?
— Não.
— Portanto, se ele perdeu alguma pele, não pode dizer ao júri de
onde veio, não é mesmo?
— Receio que não.
Depois de quatro horas de depoimentos descritivos, todos no
tribunal estavam exaustos. O juiz Loopus dispensou os jurados, com
severas advertências para evitar todo e qualquer contato externo.
Parecia um exagero, ao se considerar que estavam sendo escondidos
em outra cidade, sob a vigilância da polícia.
Baggy e eu seguimos apressados para o jornal, onde escrevemos,
frenéticos, até quase dez horas da noite. Era terça-feira e Hardy
gostava de rodar o jornal até onze horas, no máximo. Nas raras
ocasiões em que não havia problemas mecânicos, ele podia rodar
cinco mil exemplares em menos de três horas.
Hardy trabalhou no linotipo tão depressa quanto podia. Não havia
tempo para editar e revisar provas. Mas eu não estava muito
preocupado com aquela edição, porque Miss Callie estava no júri e
não poderia verificar nossos erros. Baggy estava ansioso por um trago
quando acabamos e mal podia esperar para ir embora. Eu já ia seguir
para meu apartamento quando Ginger McClure passou pela porta da
frente e me cumprimentou como se fôssemos velhos amigos. Usava
uma jeans apertada e uma blusa vermelha. Perguntou se eu tinha
alguma coisa para beber. Não tinha nada no escritório, mas isso não
nos deteria.
Deixamos a praça no meu Spitfire. Fomos para o Quincys, onde
comprei uma embalagem de seis Schlitz. Ela queria ver a casa de
Rhoda pela última vez, da estrada, não de muito perto. No caminho,
perguntei pelas duas crianças, cauteloso. As informações foram vagas.
As crianças viviam com outra irmã - Ginger apressou-se em me contar
que acabara de se divorciar - e recebiam uma terapia intensa. O
menino parecia estar quase normal, embora às vezes mergulhasse em
prolongados períodos de silêncio. A situação da menina era muito
pior. Tinha pesadelos constantes com a mãe e perdera a capacidade de
controlar a bexiga. Era encontrada com frequência enroscada em
posição fetal, chupando o dedo e gemendo angustiada. Os médicos
vinham experimentando várias drogas. Nenhuma das duas crianças
dissera à família ou ao médico o quanto viram naquela noite.
— Viram a mãe ser estuprada e esfaqueada - murmurou Ginger,
acabando a primeira cerveja, enquanto a minha ainda estava pela
metade.
A casa ao lado dava a impressão de que o sr. e a sra. Deece
dormiam havia dias. Entramos no caminho de cascalho do que fora
outrora o lar feliz dos Kassellaw. A casa estava vazia, escura, com
uma aparência de abandonada. Havia uma placa de À VENDA no
jardim. A casa era o único ativo do pequeno patrimônio de Rhoda. O
dinheiro obtido com a venda iria todo para as crianças.
A pedido de Ginger, apaguei os faróis e desliguei o motor. Não
achei uma boa ideia, porque os vizinhos andavam muito nervosos, o
que era compreensível. Além do mais, meu Triumph Spitfire era o
único do tipo no condado de Ford e por isso era naturalmente
suspeito. Ela pôs a mão sobre a minha, com extrema gentileza, e
perguntou:
— Como ele entrou na casa?
— Encontraram algumas pegadas junto da porta do pátio. Não
devia estar trancada.
E durante um longo silêncio, nós dois reconstituímos o ataque, o
estupro, a faca, as crianças fugindo de casa na escuridão, gritando
para que o sr. Deece fosse salvar a mãe.
— Você era muito ligada a ela? - perguntei, enquanto ouvia a
aproximação de um veículo distante.
— Quando éramos crianças, mas não recentemente. Ela saiu de
casa há dez anos.
— Costumava vir visitá-la?
— Vim duas vezes. Também me mudei, para a Califórnia.
Perdemos o contato. Depois que o marido dela morreu, suplicamos
que Rhoda voltasse para Springfield. Mas ela disse que gostava daqui.
A verdade é que ela nunca se deu bem com a nossa mãe.
Atrás de nós, na estrada, uma picape diminuiu a velocidade.
Tentei parecer despreocupado, mas sabia como as coisas podiam ser
perigosas numa parte tão escura do condado. Ginger olhava para a
casa, perdida em alguma imagem sinistra, e dava a impressão de não
ouvir nada. Ainda bem que a picape não parou.
— Vamos embora - murmurou ela, apertando minha mão. -Estou
com medo.
Quando nos afastamos, avistei o sr. Deece agachado nas sombras
de sua garagem, empunhando uma espingarda. Ele deveria ser a
última testemunha chamada pelo Estado.
Ginger estava num motel local, mas não queria ir para lá. Já
passava de meia-noite e nossas opções eram mínimas. Por isso, levei-a
para a casa dos Hocutt. Subimos a escada, passando por cima dos
gatos, até meu apartamento.
— Não tenha nenhuma ideia - murmurou ela, enquanto tirava os
sapatos e sentava no sofá. — Não estou com a menor disposição.
— Nem eu — menti.
O tom de Ginger era quase frívolo, como se o seu ânimo pudesse
mudar muito depressa, e quando isso acontecesse poderíamos fazer
qualquer coisa. Eu esperaria na maior felicidade. Encontrei cerveja
gelada na cozinha e nos acomodamos como se fôssemos conversar até
o amanhecer.
— Fale sobre sua família — pediu ela.
Não era o meu assunto predileto, mas por uma mulher como ela
eu era capaz de falar sobre qualquer coisa.
— Sou filho único. Minha mãe morreu quando eu tinha treze anos.
Meu pai vive em Memphis, numa velha casa da família de onde nunca
sai, porque ele e a casa têm algumas telhas soltas. Ele tem um
escritório no sótão. Passa ali os dias e as noites, negociando ações e
outros títulos. Não sei se ele é competente nessas negociações, mas
tenho a impressão de que perde mais do que ganha. Falamo-nos pelo
telefone uma vez por mês.
— Você é rico?
— Não. Minha avó é rica. A mãe de minha mãe, BeeBee. Ela me
emprestou o dinheiro para comprar o jornal.
Ginger pensou a respeito, enquanto tomava um gole da cerveja.
— Éramos três irmãs, agora só restam duas. Fomos bastante
levadas quando meninas. Meu pai saiu de casa uma noite, para
comprar leite e ovos, e nunca mais voltou. Minha mãe tentou mais
dois casamentos desde então, mas parece que não consegue acertar.
Sou divorciada. Minha irmã mais velha é divorciada. Rhoda morreu. -
Ela estendeu sua garrafa, para bater de leve na minha. - Um brinde a
duas famílias fracassadas.
Bebemos a isso.
Divorciada, sem filhas, impetuosa, muito atraente. Eu poderia
passar algum tempo com Ginger.
Ela queria saber sobre o condado de Ford e seus personagens...
Lucien Wilbanks, os Padgitt, xerife Coley e assim por diante. Falei e
falei, sempre esperando que o ânimo dela mudasse.
Não mudou. Em algum momento, depois de duas horas da
madrugada, ela deitou no sofá e eu fui para a cama sozinho.
CAPÍTULO 16
TRÊS DOS HOCUTT - MAX, WILMA E GILMA - espreitavam em torno da
garagem, por baixo de meu apartamento, quando Ginger e eu saímos,
poucas horas depois. Fitaram-na desdenhosos, enquanto eu fazia
apresentações cordiais. Meio que esperava que Max dissesse alguma
coisa ridícula, como: “Não cogitávamos do sexo ilícito quando
alugamos o apartamento para você. ” Mas nada de ofensivo foi dito, e
seguimos para o jornal. Ali, Ginger pegou seu carro e desapareceu.
A última edição estava empilhada do chão ao teto na sala da
frente. Peguei um exemplar para um rápido exame. A manchete era
bastante comedida:
COMEÇA JULGAMENTO DE DANNY PADGITT:
JÚRI ISOLADO.
Não havia fotos do réu. Já publicáramos muitas, e eu queria
reservar mais uma para a semana seguinte, quando esperava mostrar
o desgraçado saindo do tribunal depois de condenado à pena de
morte. Baggy e eu preenchêramos as colunas do jornal com tudo o que
víramos e ouvíramos durante os dois primeiros dias do julgamento.
Senti-me bastante orgulhoso de nossas matérias. Eram objetivas,
baseadas em fatos, detalhadas, bem escritas, nem um pouco
sensacionalistas. O julgamento em si era tão sensacional que causava
todo o impacto necessário. E, para ser franco, eu já aprendera a lição
sobre tentar sensacionalizar as notícias. Por volta de oito horas da
manhã, o tribunal e a praça estavam cobertos de exemplares de
cortesia do Times.
Não houve escaramuças preliminares na manhã de quarta-feira.
Às nove horas em ponto, os jurados foram conduzidos para a sala do
julgamento. Ernie Gaddis chamou sua próxima testemunha. Era Chub
Brooner, o veterano investigador do departamento do xerife. Segundo
Baggy e Harry Rex, Brooner era famoso por sua incompetência.
Para despertar o júri e prender a atenção dos espectadores, Gaddis
mostrou a camisa branca ensanguentada que Danny Padgitt usava na
noite em que fora preso. Não fora lavada; as manchas de sangue
tinham uma tonalidade marrom escura. Ernie sacudia a camisa de
leve, para que todos no tribunal a vissem, enquanto falava com
Brooner. Fora removida do corpo de Danny Padgitt por um guarda
chamado Grice, na presença de Brooner e do xerife Coley. Os exames
revelaram dois tipos de sangue, O Positivo e B Positivo. Testes
adicionais, no laboratório de criminalística estadual, compararam o B
Positivo com o sangue de Rhoda Kassellaw.
Observei Ginger enquanto ela olhava para a camisa. Depois de
alguns minutos, Ginger desviou os olhos e começou a escrever
alguma coisa. Não me surpreendeu o fato de que ela parecia ainda
mais atraente no segundo dia no tribunal. Mas eu me sentia muito
preocupado com seus ânimos.
A camisa estava rasgada na frente. Danny se cortara ao sair da
picape acidentada e recebera doze pontos. Brooner fez um trabalho
razoável de explicar isso ao júri. Depois, Ernie puxou um cavalete,
onde pôs duas fotos ampliadas das pegadas encontradas no pátio da
casa de Rhoda. Foi pegar na mesa das provas os sapatos que Padgitt
usava ao chegar à cadeia. Brooner foi vacilante em seu depoimento,
que deveria ter sido muito mais fácil, mas foi ressaltado o fato de que
tudo combinava.
Brooner tinha pavor de Lucien Wilbanks e começou a gaguejar à
primeira pergunta. Lucien, numa manobra sensata, ignorou o fato de
que o sangue de Rhoda fora encontrado na camisa de Danny. Em vez
disso, optou por pressionar Brooner sobre a arte e ciência de comparar
pegadas. O treinamento do investigador não fora muito amplo, ele
finalmente admitiu. Lucien concentrou-se numa série de sulcos no
calcanhar do sapato direito e Brooner não pôde localizar as marcas nas
pegadas. Por causa do peso e movimento, um calcanhar costuma
deixar uma impressão melhor do que o resto da sola, segundo o
depoimento de Brooner na inquirição direta. Lucien arengou a ponto
de confundir todo o mundo. Tive de admitir que me tomei cético em
relação às pegadas. Não que isso importasse. Havia muitas outras
provas.
— O sr. Padgitt estava usando luvas quando foi preso? —
perguntou Lucien.
— Não sei. Não fui eu quem o prendeu.
— Mas vocês tiraram sua camisa e sapatos. Também tiraram
luvas?
— Não, ao que eu saiba.
— Examinou todas as provas, sr. Brooner, não é mesmo?
— Examinei.
— Como investigador-chefe, está a par de todos os aspectos deste
caso, não é?
— É, sim, senhor.
— Encontrou nos arquivos de provas qualquer referência a luvas
usadas ou tiradas do sr. Padgitt?
— Não.
— Muito bem. Espalharam pó na cena do crime à procura de
impressões digitais?
— Claro.
— Uma rotina, não é mesmo?
— Sempre fazemos isso.
— E tirou as impressões digitais do sr. Padgitt quando ele foi
preso, não é?
— Correto.
— Muito bem. Quantas impressões digitais do sr. Padgitt
encontrou no local do crime?
— Nenhuma.
— Nem uma única?
— Absolutamente nenhuma.
Nesse momento, Lucien escolheu a melhor ocasião para sentar. Era
difícil acreditar que o assassino pudesse entrar na casa, esconder-se ali
por algum tempo, estuprar e assassinar a vítima e depois escapar sem
deixar impressões digitais. Mas Chub Brooner não inspirava muita
confiança. Com ele no comando da investigação, parecia haver uma
grande possibilidade de que dezenas de impressões digitais
passassem despercebidas.
O juiz Loopus determinou o recesso do meio da manhã. Quando
os jurados levantaram-se para sair, fiz contato visual com Miss Callie.
Seu rosto se desmanchou num enorme sorriso. Ela acenou com a
cabeça, como se dissesse: “Não se preocupe comigo. ”
Esticamos as pernas e comentamos o que acabáramos de ouvir.
Tive a satisfação de avistar muitas pessoas no tribunal lendo o Times.
Fui falar com Ginger.
— Você está bem?
— Só quero voltar para casa — murmurou ela.
— Que tal almoçar comigo?
— Convite aceito.

A última testemunha do Estado foi o sr. Aaron Deece. Ele se


levantou para depor pouco antes de onze horas da manhã. Todos nos
preparamos para suas recordações daquela noite. Ernie Gaddis
conduziu-o por uma série de perguntas, visando a personalizar Rhoda
e as duas crianças. Haviam residido na casa ao lado por sete anos,
vizinhos perfeitos, pessoas maravilhosas. Ele sentia muita saudade;
não podia acreditar que nunca mais voltariam. Em determinado
momento, o sr. Deece enxugou uma lágrima no olho.
Tudo isso era completamente irrelevante para as questões
examinadas. Lucien, habilmente, deixou passar alguns minutos.
Depois, levantou-se e disse, muito polido:
— Meritíssimo, tudo isso é muito comovente, mas não é admissível
no julgamento.
— Seja mais objetivo, sr. Gaddis - determinou o juiz Loopus.
O sr. Deece descreveu a noite, a hora, a temperatura, o tempo.
Ouviu a voz em pânico do pequeno Michael, de cinco anos, gritando
seu nome, clamando por ajuda. Encontrou as crianças do lado de fora,
de pijama, molhadas do orvalho, em choque com o medo. Levou-as
para dentro de sua casa, onde a esposa envolveu-as com cobertores.
Depois de calçar os sapatos e pegar suas armas, ele saiu de casa, para
encontrar Rhoda cambaleando em sua direção. Estava nua e toda
coberta de sangue, exceto pelo rosto. O sr. Deece pegou-a no colo,
levou-a para sua varanda, ajeitou-a no balanço.
Lucien estava de pé, esperando.
— Ela disse alguma coisa? - perguntou Ernie.
— Meritíssimo, protesto contra essa testemunha depor sobre
qualquer coisa que a vítima disse. É testemunho indireto.
— Sua petição consta dos autos, sr. Wilbanks. Já debatemos a
questão em meu gabinete, e ficou tudo registrado. Pode responder à
pergunta, sr. Deece.
O sr. Deece engoliu em seco, respirou fundo e exalou, olhou para
os jurados.
— Duas ou três vezes, ela disse: “Foi Danny Padgitt. Foi Danny
Padgitt. ”
Pelo efeito dramático, Ernie deixou que as balas ressoassem pelo
ar, ricocheteando pelo tribunal, enquanto fingia consultar suas
anotações.
— Alguma vez se encontrou com Danny Padgitt, sr. Deece?
— Não, senhor.
— Já tinha ouvido seu nome antes daquela noite?
— Não, senhor.
— Ela disse mais alguma coisa?
— A última coisa que ela disse foi: “Tome conta de meus filhos. ”
Ginger comprimia um lenço de papel nos olhos. Miss Callie orava.
Vários jurados olhavam para seus pés.
Ele concluiu a história: ligou para o xerife; a esposa ficou com as
crianças num quarto, com a porta trancada; ele tomou um banho de
chuveiro, porque estava todo ensanguentado; os homens do xerife
apareceram e iniciaram a investigação; a ambulância veio e removeu o
corpo; ele e a esposa ficaram com as crianças até duas horas da
madrugada, e depois acompanharam-nas até o hospital em Clanton.
Continuaram com as crianças até a chegada de um parente do
Missouri.
Não havia nada em seu depoimento que pudesse ser contestado ou
desacreditado; por isso, Lucien Wilbanks abriu mão da reinquirição. O
Estado encerrou a apresentação de testemunhas e iniciamos o recesso
para o almoço. Levei Ginger para Karaway, onde ficava o único
restaurante mexicano que eu conhecia por ali. Comemos enchiladas sob
um carvalho e conversamos sobre tudo menos o julgamento. Ela
estava arrasada e queria deixar o condado de Ford para sempre.
E eu queria muito que ela ficasse.

Lucien Wilbanks iniciou a defesa com um discurso em que


demonstrava que Danny Padgitt era um jovem correto e amável.
Concluira o ensino médio com boas notas, trabalhava por longas
horas nas serrarias da família, sonhava em ter um dia a sua própria
empresa. Não tinha ficha na polícia. Seu único problema com a lei fora
uma multa por excesso de velocidade, apenas uma, quando tinha
dezesseis anos.
As habilidades persuasivas de Lucien eram relativamente bem
desenvolvidas, mas ele estava desmoronando sob o peso do esforço.
Era impossível fazer com que um Padgitt parecesse gentil e afetuoso.
Houve muitas pessoas se contorcendo no tribunal, alguns risos
reprimidos aqui e ali. Mas não eram essas pessoas que decidiriam o
julgamento. Lucien falava para os jurados, fitando-os nos olhos.
Ninguém sabia se ele e seu cliente já haviam garantido um ou dois
votos.
Danny, no entanto, não era um santo. Como a maioria dos jovens
bonitos, descobrira que gostava da companhia das mulheres. Só que
conhecera a mulher errada, uma mulher que por acaso era casada com
outro homem. Danny estava com ela na noite em que Rhoda
Kassellaw fora assassinada.
— Prestem toda a atenção! - berrou Lucien para os jurados. - Meu
cliente não matou Miss Kassellaw! No momento deste horrível
assassinato, ele estava com outra mulher, na casa dela, não muito
longe da propriedade dos Kassellaw. Tem um álibi incontestável.
Essa revelação deixou todo o mundo no tribunal atônito. Por um
longo minuto, esperamos pela surpresa seguinte. Lucien desenvolveu
o drama com perfeição.
— Essa mulher, a amante de meu cliente, será nossa primeira
testemunha — anunciou ele.
Trouxeram-na momentos depois que Lucien concluiu suas
alegações iniciais. Seu nome era Lydia Vince. Sussurrei uma
indagação para Baggy e ele disse que não conhecia Vince em Beech
Hill. Houve muitos sussurros no tribunal, enquanto as pessoas
tentavam situar a testemunha. Pelos rostos franzidos, olhares
perplexos e balanços de cabeça, parecia que a mulher era uma total
desconhecida. As perguntas preliminares de Lucien revelaram que ela
residia numa casa alugada na Hurt Road, em março, mas agora
morava em Tupelo. Ela e o marido tinham uma criança e agora
estavam se divorciando. Fora criada no condado de Tyler, e no
momento estava desempregada. Tinha cerca de trinta anos e era
atraente, de uma maneira um tanto vulgar, de saia curta, blusa justa
por cima dos seios fartos, cabelos louros pintados. Estava visivelmente
apavorada com o depoimento.
Ela e Danny mantinham uma ligação adúltera havia cerca de um
ano. Olhei para Miss Callie e não fiquei surpreso ao constatar que não
recebia muito bem a revelação.
Na noite do assassinato de Rhoda, Danny estava em sua casa.
Malcolm Vince, o marido, teria ido para Memphis, para fazer alguma
coisa com os amigos, ela não sabia direito o quê. Ele saía de casa com
frequência naqueles dias. Ela e Danny fizeram sexo duas vezes. Por
volta de meia-noite, ele se preparava para ir embora quando ouviram
a picape do marido se aproximar. Danny escapuliu pela porta dos
fundos e desapareceu.
O choque de uma mulher casada admitir em pleno tribunal que
cometera adultério fora projetado para convencer o júri de que ela
dizia a verdade. Nenhuma mulher, respeitável ou não, admitiria o
fato. Abalaria sua reputação, se estivesse se importando com tais
coisas. Causaria um impacto inevitável no divórcio, talvez pusesse em
risco a custódia da criança. Podia até possibilitar ao marido processar
Danny Padgitt por alienação de afeição, embora fosse duvidoso que os
jurados alcançassem esse ponto.
Suas respostas às perguntas de Lucien foram breves, muito bem
ensaiadas. Tanto o advogado quanto a testemunha tomaram o
cuidado de não se aventurarem fora do roteiro.
— Ela está mentindo - sussurrou Baggy, um pouco alto, uma
opinião com a qual eu não podia deixar de concordar.
Quando terminou a inquirição direta, Ernie Gaddis levantou-se e
se encaminhou em passos decididos para o pódio, olhando com
evidente suspeita para a adúltera confessa. Ele manteve os óculos de
leitura na ponta do nariz. Olhava por cima, com a testa franzida, os
olhos contraídos. Muito parecido com um professor que acaba de
surpreender um aluno relapso colando.
— Miss Vince, quem era o proprietário dessa casa na Hurt Road?
— Jack Hagel.
— Por quanto tempo morou ali?
— Cerca de um ano.
— Assinou um contrato de locação?
Ela hesitou por uma fração de segundo a mais, antes de responder:
— Talvez meu marido tenha assinado. Não me lembro.
— Qual era o valor do aluguel mensal?
— Trezentos dólares.
Ernie anotava cada resposta de uma maneira meticulosa, como se
cada detalhe devesse ser investigado com todo o cuidado, para que as
mentiras fossem desmascaradas.
— Quando deixou essa casa?
— Não lembro direito... há cerca de dois meses.
— Por quanto tempo residiu no condado de Ford?
— Não me lembro direito... uns dois anos.
— Alguma vez registrou-se para votar no condado de Ford?
— Não.
— E seu marido?
— Também não.
— Como é mesmo o nome dele?
— Malcolm Vince.
— Onde ele mora agora?
— Não sei. Ele se muda com frequência. A última vez em que eu
soube, estava vivendo em algum lugar nos arredores de Tupelo.
— E estão se divorciando, não é mesmo?
— É, sim.
— Quando entrou com o pedido de divórcio?
Ela levantou os olhos no mesmo instante e fitou Lucien, que
escutava com toda a atenção, mas se recusava a observá-la.
— Ainda não demos entrada nos papéis.
— Desculpe. Pensei que havia dito que estavam se divorciando.
— Estamos separados e ambos contratamos advogados.
— E quem é seu advogado?
— O sr. Wilbanks.
Lucien teve um sobressalto, como se isso fosse novidade para ele.
Ernie deu tempo para que a resposta assentasse, antes de continuar:
— Quem é o advogado de seu marido?
— Não consigo lembrar seu nome.
— Ele é o autor da ação de divórcio ou é o contrário?
— É uma coisa mútua.
— Com quantos outros homens dormia?
— Só com Danny.
— Sei... E agora mora em Tupelo, não é?
— Isso mesmo.
— Disse que está desempregada, não é mesmo?
— Por enquanto.
— E se separou de seu marido?
— Acabei de dizer que estamos separados.
— Onde mora em Tupelo?
— Num apartamento.
— De quanto é o aluguel?
— Duzentos dólares por mês.
— E mora ali com sua criança?
— Isso mesmo.
— A criança trabalha fora?
— A criança só tem cinco anos.
— Portanto, paga o aluguel e as contas de serviços públicos?
— Dou um jeito de sobreviver.
— Qual é o seu carro?
Ela hesitou de novo. Era o tipo de pergunta que exigia uma
resposta que podia ser confirmada com uns poucos telefonemas.
— Um Mustang 68.
— Um bom carro. Quando o comprou?
Mais uma vez, havia ali a chamada trilha de papel. Até mesmo
Lydia, que não primava pela inteligência, pôde perceber a armadilha.
— Há cerca de dois meses - respondeu ela, num tom de desafio.
— O carro está em seu nome?
— Está.
— A locação do apartamento está em seu nome?
— Está.
Os documentos, sempre os documentos. Ela não podia mentir a
respeito e não tinha condições de ter aquelas coisas. Ernie pegou
algumas anotações de Hank Hooten. Examinou-as com uma
expressão desconfiada.
— Quanto tempo deitava com Danny Padgitt?
— Quinze minutos, em geral.
Num tribunal tenso, essa resposta provocou risos esparsos. Ernie
tirou os óculos, esfregou-os com a ponta da gravata, ofereceu um
sorriso insinuante e reformulou a pergunta:
— Seu caso com Danny Padgitt... quanto tempo durou?
— Quase um ano.
— Onde o conheceu?
— Nas casas noturnas no outro lado da fronteira do estado.
— Alguém os apresentou?
Não me lembro. Ele estava ali, eu estava ali e dançamos uma vez.
Uma coisa levou a outra.
Não havia a menor dúvida de que Lydia Vince passara muitas
noites em cabarés, e jamais se esquivara de um novo parceiro de
dança. Ernie precisava de mais umas poucas mentiras que pudessem
ser inequívocas.
Ele fez uma série de perguntas sobre os antecedentes de Lydia e do
marido, nascimento, nível escolar, casamento, emprego, família.
Nomes, datas e eventos que pudessem ser conferidos, como falsos ou
verdadeiros. Ela estava à venda. Os Padgitt haviam encontrado uma
testemunha que podiam comprar.
Ao deixarmos o tribunal, no final daquela tarde, eu me sentia
confuso e apreensivo. Estivera convencido por muitos meses de que
Danny Padgitt matara Rhoda Kassellaw; e ainda não tinha qualquer
dúvida a respeito. Mas o júri, subitamente, tinha um fato novo. Uma
testemunha sob juramento cometera um lamentável ato de perjúrio,
mas era possível que um jurado tivesse uma dúvida razoável.

Ginger sentia-se mais deprimida do que eu. Por isso, decidimos


tomar um porre. Compramos hambúrgueres, batata frita e uma caixa
de cerveja. Fomos para o seu pequeno quarto no motel, onde
afogamos nossos medos e o ódio a um sistema judiciário corrupto. Ela
disse mais de uma vez que sua família, abalada como se encontrava,
não suportaria se Danny Padgitt fosse solto. Sua mãe não era nem um
pouco equilibrada, é um veredicto de inocente a empurraria pela beira
do abismo. O que diriam um dia aos filhos de Rhoda?
Tentamos assistir à televisão, mas nada prendia nosso interesse.
Cansamos de nos preocupar com o julgamento. Quando eu já estava
prestes a dormir, Ginger saiu nua do banheiro, e a noite teve uma
reviravolta para melhor. Fizemos amor de forma intermitente, até que
o álcool prevaleceu e mergulhamos no sono.
CAPÍTULO 17
SEM QUE EU SOUBESSE - e não havia razão para que eu soubesse,
porque era um recém-chegado na comunidade e não tinha qualquer
envolvimento em questões judiciais, além de estar, literalmente, com
as mãos cheias de Ginger, ambos perdendo por completo o interesse
pelo julgamento durante algumas horas maravilhosas -, houve uma
reunião secreta pouco depois do recesso do tribunal ao final da tarde
de quarta-feira. Ernie Gaddis foi ao escritório de Harry Rex para
tomar um drinque. Ambos admitiram que estavam enojados com o
depoimento de Lydia. Começaram a dar telefonemas e dentro de uma
hora haviam mobilizado um grupo de advogados em que podiam
confiar, além de alguns políticos.
A opinião unânime era de que os Padgitt estavam no processo de
esvaziar o que parecia um caso sólido. Haviam conseguido encontrar
uma testemunha que podiam subornar. Era óbvio que Lydia fora paga
para inventar a história, e se encontrava tão sem dinheiro ou era
estúpida demais para compreender os riscos do perjúrio.
Independentemente de todo o resto, porém, ela proporcionara ao júri
uma razão, por mais fraca que fosse, para rejeitar os argumentos da
acusação.
Uma absolvição num julgamento tão claro deixaria a cidade
furiosa e seria um escárnio para o sistema judiciário. Um júri
inconcluso transmitiria uma mensagem similar: a justiça podia ser
comprada no condado de Ford. Ernie, Harry Rex e outros advogados
empenhavam-se todos os dias em manipular o sistema em benefício
de seus clientes, mas as regras eram aplicadas com justiça. O sistema
funcionava porque os juízes e jurados eram imparciais e sem
preconceitos. Permitir que Lucien Wilbanks e os Padgitt
corrompessem o processo causaria danos irreparáveis.
Havia um consenso de que um júri inconcluso era uma grande
possibilidade. Como uma testemunha crível, Lydia Vince deixava
muito a desejar, mas os jurados não eram muito informados sobre
depoimentos fabricados e clientes desonestos. Os advogados
concordavam que Fargarson, “o garoto aleijado”, parecia hostil à
Promotoria. Depois de dois dias inteiros e quase quinze horas
observando os jurados, os advogados achavam que eles podiam
compreendê-los.
O sr. John Deere também os preocupava. Seu nome verdadeiro era
Mo Teale. Fora mecânico da revendedora de tratores durante mais de
vinte anos. Era um homem simples, com um guarda-roupa limitado.
Ao final da tarde de segunda-feira, quando os jurados foram
finalmente selecionados e o juiz Loopus os mandara para casa, a fim
de fazerem as malas para pegar o ônibus, Mo levara apenas o
sortimento de uniformes de trabalho para uma semana. Todas as
manhãs, ele entrava no recinto do júri de camisa amarela com gola
verde e calça verde com bainhas amarelas, como se estivesse
preparado para mais um dia de trabalho vigoroso, manejando chaves
de porca.
Mo sentava de braços cruzados. Franzia o rosto sempre que Ernie
Gaddis se levantava. Sua linguagem corporal assustava a Promotoria.
Harry Rex achava que era importante descobrir o marido separado
de Lydia. Se eles estavam mesmo se separando, era mais do que
provável que o processo não fosse amigável. Era difícil acreditar que
ela estivesse tendo um caso com Danny Padgitt, mas ao mesmo tempo
tudo indicava que não era alheia a uma atividade extraconjugal. O
marido poderia prestar um depoimento que talvez desacreditasse por
completo o que Lydia dissera.
Ernie queria investigar sua vida particular. Queria criar dúvidas
sobre sua situação financeira, a fim de poder indagar ao júri: “Como
ela é capaz de viver com tanto conforto quando está desempregada e
separada do marido? ”
— Porque ela recebeu 25 mil dólares dos Padgitt - comentou um
dos advogados.
A especulação sobre o valor do suborno tornou-se um longo
debate durante a noite. A busca por Malcolm Vince começou, com
Harry Rex e dois outros ligando para todos os advogados em cinco
condados. Por volta de dez horas da noite, encontraram um advogado
em Corinth, a duas horas de distância, de carro, que disse ter se
encontrado com Malcolm Vince uma vez, para tratar de um divórcio,
mas não fora contratado. O sr. Vince residia num trailer em algum
lugar no meio do mato, perto da fronteira do condado de Tishomingo.
Não podia lembrar onde Malcolm trabalhava, mas tinha certeza de
que anotara em algum papel, no escritório. O próprio promotor
distrital entrou na linha para convencê-lo a ir ao escritório
imediatamente.
Às oito horas da manhã seguinte, mais ou menos na hora em que
eu saía do motel, deixando Ginger, o juiz Loopus concordou sem
hesitar em assinar uma intimação para Malcolm Vince. Vinte minutos
depois, um policial da cidade de Corinth parou uma empilhadeira
num armazém e comunicou a seu operador que acabara de ser
emitida uma intimação para seu comparecimento a um julgamento
por homicídio no condado de Ford.
— Por quê? - indagou o sr. Vince.
— Estou apenas cumprindo ordens.
— O que devo fazer?
— Tem duas opções, companheiro - explicou o policial. -Continuar
aqui até que venham buscá-lo ou podemos partir agora e acabar logo
com isso.
O chefe de Malcolm autorizou sua saída e ele partiu apressado.
Depois de um atraso de noventa minutos, os jurados foram
conduzidos à sala do julgamento. O sr. John Deere ainda se mantinha
tão empertigado quanto antes, mas os outros começavam a parecer
cansados. Parecia que o julgamento se prolongava havia um mês.
Miss Callie procurou-me entre os espectadores e ofereceu um
sorriso contido, não um daqueles seus sorrisos espetaculares, que
animavam o dia de qualquer um. Ainda tinha na mão um pequeno
exemplar do Novo Testamento.
Ernie levantou-se e comunicou ao tribunal que não tinha mais
perguntas para Lydia Vince. Lucien disse que também já encerrara
sua parte. Ernie anunciou que tinha uma testemunha de refutação,
que gostaria de chamar fora de ordem. Lucien protestou e os dois
foram discutir junto do juiz. Ao saber quem era a testemunha, Lucien
ficou visivelmente transtornado. Um bom sinal.
Era evidente que o juiz Loopus também estava preocupado com
um veredicto falho. Por isso, decidiu contra a defesa. Malcolm Vince,
completamente aturdido, foi chamado para depor no tribunal lotado.
Ernie passara menos de dez minutos com ele, numa pequena sala.
Estava tão despreparado quanto Malcolm se mostrava confuso.
Ernie começou devagar, com os dados básicos, nome, endereço,
emprego, história familiar recente. Com alguma relutância, Malcolm
admitiu ser casado com Lydia e que partilhava o desejo dela de
escapar da união. Disse que não via a esposa nem a criança havia
cerca de um mês. Sua história recente de emprego era irregular, na
melhor das hipóteses, mas tentava enviar um cheque de cinquenta
dólares por semana, para sustento da criança. Sabia que a mulher
estava desempregada, mas morando num bom apartamento.
— Não está pagando o aluguel? - perguntou Ernie, com a maior
desconfiança, enquanto lançava um olhar cauteloso para o júri.
— Não, senhor, não estou.
— É a família dela que paga o aluguel?
— A família de Lydia não tem condições de pagar uma noite num
motel - respondeu Malcolm, com uma satisfação evidente.
Depois de dispensada, Lydia deixara o tribunal. Era bem provável
que estivesse prestes a fugir do condado. O espetáculo fora concluído,
a performance apresentada, a remuneração recebida. Ela nunca mais
tornaria a pôr os pés no condado de Ford. É duvidoso que sua
presença pudesse inibir o depoimento de Malcolm, mas a ausência lhe
proporcionava liberdade para disparar todas as salvas que quisesse
disparar.
— Não era muito ligado à família de sua esposa? - indagou Ernie,
uma pergunta que servia como trampolim.
— Quase todos os parentes de Lydia estão na cadeia.
— Entendo... Ela declarou ontem, em seu depoimento aqui, que há
cerca de dois meses comprou um Ford Mustang 1968. Ajudou-a nessa
compra?
— Não.
— Tem alguma ideia de como uma mulher desempregada pode
comprar um carro assim? - perguntou Ernie, lançando um olhar para
Danny Padgitt.
— Não.
— Sabe se ela fez qualquer outra compra fora do normal
ultimamente?
Malcolm olhou para os jurados, viu alguns rostos afáveis e
respondeu:
— Ela comprou uma televisão em cores para si mesma e uma
motocicleta nova para o irmão.
Parecia que todos à mesa da defesa haviam parado de respirar. A
estratégia fora a de apresentar Lydia de repente, sem qualquer aviso,
deixá-la contar suas mentiras, confirmar o álibi, tirá-la da cadeira de
testemunhas e precipitar um veredicto, antes que o depoimento
pudesse ser desacreditado. Ela conhecia bem poucas pessoas no
condado e agora residia a uma hora de distância de carro.
Só que a estratégia estava sendo deslindada, com resultados
desastrosos. Todos no tribunal podiam perceber e sentir a tensão entre
Lucien e seu cliente.
— Conhece um homem chamado Danny Padgitt? - perguntou
Ernie.
— Nunca ouvi falar.
— Sua esposa declarou ontem que mantinha um caso com ele
durante quase um ano.
É raro ver um marido que não desconfia de nada ser confrontado
com tal notícia de uma maneira tão pública, mas Malcolm pareceu
absorver o golpe muito bem.
— É mesmo?
— É, sim, senhor. Ela declarou que o relacionamento terminou há
cerca de dois meses.
— Posso dizer uma coisa... é difícil acreditar.
— Por quê?
Malcolm se contorceu, demonstrando um súbito interesse por seus
pés.
— É uma questão muito pessoal.
— Tenho certeza que é, sr. Vince. Mas às vezes as questões
pessoais devem ser discutidas no tribunal. Um homem está em
julgamento aqui, acusado de homicídio. É uma grave acusação e
precisamos saber de toda a verdade.
Malcolm passou a perna esquerda por cima do joelho direito.
Coçou o queixo por alguns segundos.
— O problema é o seguinte, senhor. Paramos de fazer sexo há
cerca de dois anos. É por isso que estamos nos divorciando.
— Há algum motivo específico para deixarem de fazer sexo? —
indagou Ernie, prendendo a respiração.
— Há, sim, senhor. Ela disse que detestava fazer sexo comigo, que
isso a deixava nauseada. Disse que preferia fazer sexo... sabe como é...
com outras mulheres.
Embora soubesse qual seria a resposta, Ernie deu um jeito de
parecer bastante chocado. Junto com todos os outros. Afastou-se do
pódio e foi conferenciar com Hank Hooten, apenas um breve intervalo
para permitir que os jurados absorvessem todo o golpe. Só depois é
que ele disse:
— Não tenho mais perguntas, Meritíssimo.

Lucien aproximou-se de Malcolm Vince como se estivesse olhando


para uma arma carregada. Beliscou pelas beiradas por alguns
minutos. Segundo Baggy, um bom advogado de júri nunca faz uma
pergunta se não conhece a resposta, ainda mais com uma testemunha
tão perigosa quanto Malcolm Vince. Lucien era um bom advogado e
não tinha a menor ideia do que Malcolm poderia responder.
Ele admitiu que não sentia mais qualquer afeição por Lydia, que
mal podia esperar para concluir logo o processo de divórcio, que os
últimos anos em sua companhia não haviam sido nada agradáveis e
assim por diante. Típica conversa de divórcio. Lembrou que ouvira
falar do assassinato Kassellaw na manhã seguinte. Passara a noite fora
e voltara para casa muito tarde. Lucien marcou um ponto, embora
muito fraco, ao provar que Lydia estava mesmo sozinha em casa
naquela noite, como havia declarado.
Era, porém, de pouca importância. Os jurados e os espectadores
ainda tinham dificuldade para absorver a enormidade dos pecados de
Lydia.

Depois de um longo recesso, Lucien levantou-se lentamente e


declarou ao tribunal:
— Meritíssimo, a defesa não tem outras testemunhas. Meu cliente,
no entanto, deseja depor. Quero que fique expresso nos autos que ele
prestará depoimento contra o meu conselho.
— Ressalva anotada - declarou Loopus.
— Um erro estúpido... inacreditável! - sussurrou Baggy, em voz
bastante alta para que metade do tribunal ouvisse.
Danny Padgitt levantou-se de um pulo e foi até a cadeira das
testemunhas. Sua tentativa de sorrir saiu como uma mera contração
dos lábios. Sua tentativa de se mostrar confiante aflorou como
arrogância. Ele prestou o juramento para só dizer a verdade, mas
ninguém esperava ouvi-la.
— Por que insiste em prestar depoimento?
Essa foi a primeira pergunta de Lucien. Todos no tribunal
mantinham-se calados e imóveis.
— Porque quero que essa boa gente saiba o que realmente
aconteceu — respondeu Danny, olhando para os jurados.
— Pois então conte tudo a eles - disse Lucien, acenando com a mão
para o júri.
A versão apresentada por Danny foi maravilhosamente criativa,
porque não havia ninguém para refutá-lo. Lydia sumira, Rhoda estava
morta. Ele começou por dizer que passara algumas horas com a
namorada, Lydia Vince, que morava a menos de um quilômetro e
meio da casa de Rhoda Kassellaw. Sabia onde Rhoda morava porque
já a visitara, em diversas ocasiões. Ela queria um romance sério, mas
ele andava muito ocupado com Lydia. Tivera relações íntimas com
Rhoda duas vezes. Haviam se conhecido em bares além da fronteira
do estado e passaram muitas horas bebendo e dançando. Era uma
mulher cheia de tesão, um tanto fácil, que ia para a cama com todo o
mundo.
O insulto acrescentado à injúria, Ginger baixou a cabeça e tapou os
ouvidos. O gesto não passou despercebido dos jurados.
Ele não acreditava nas mentiras do marido de Lydia sobre suas
tendências homossexuais; a mulher gostava mesmo da intimidade dos
homens. Malcolm mentia para obter a custódia da criança.
Padgitt não era uma péssima testemunha, mas também estava
depondo por sua vida. Cada resposta era rápida, houve muitos falsos
sorrisos na direção do júri, a narrativa foi clara e precisa, tudo se
ajustando da melhor forma possível. Observei os jurados enquanto ele
falava, e não percebi muita simpatia. Fargarson, o garoto aleijado,
parecia tão cético quanto se mostrara com as outras testemunhas. O sr.
John Deere continuou sentado com os braços cruzados, o rosto
franzido. Miss Callie não demonstrava a menor tolerância com
Padgitt, mas também o mandaria para a prisão pelo adultério com a
mesma rapidez com que o condenaria por homicídio.
Lucien foi o mais breve que podia. Seu cliente já dera bastante
corda para se enforcar e não havia sentido em facilitar ainda mais o
trabalho do Estado. Ao sentar, Lucien lançou um olhar irritado para
os Padgitt mais velhos, como se os detestasse. Depois, preparou-se
para o que estava prestes a acontecer.
A reinquirição de um criminoso de culpa tão evidente é um sonho
de promotor. Ernie, em passos determinados, foi até a mesa das
provas e levantou a camisa ensanguentada de Danny.
— Prova número oito - disse ele para a taquígrafa do tribunal.
Ernie levantou a camisa para que os jurados a vissem de novo.
— Onde comprou esta camisa, sr. Padgitt?
Danny ficou imóvel, como se estivesse indeciso, sem saber se
negava que a camisa lhe pertencia ou admitia a propriedade e tentava
recordar onde a comprara.
— Não a roubou, não é? - insistiu Ernie.
— Não, não a roubei.
— Então responda à minha pergunta. E, por favor, tente se lembrar
que está sob juramento. Onde comprou esta camisa?
Enquanto falava, Ernie levantava a camisa na sua frente,
segurando-a com as pontas dos dedos, como se o sangue ainda
estivesse úmido e pudesse sujar suas roupas.
— Acho que foi em Tupelo. Não me lembro direito. É apenas uma
camisa.
— Há quanto tempo tinha a camisa?
— Talvez há um ano, ou por aí. Não mantenho registros de minhas
roupas.
— Nem eu - disse Ernie. - Tirou esta camisa quando estava na
cama com Lydia naquela noite?
A resposta foi cautelosa:
— Tirei.
— Onde estava a camisa enquanto os dois... ahn... mantinham
relações?
— Acho que no chão.
Agora que estava bem determinado que a camisa pertencia a
Danny, Ernie tinha plena liberdade para massacrá-lo. Ele pegou o
relatório do laboratório de criminalística estadual, leu-o para Danny e
perguntou como seu próprio sangue manchara a camisa. Isso levou a
uma avaliação de sua capacidade como motorista, a tendência para a
alta velocidade, e o fato de que estava ilegalmente embriagado
quando capotara com a picape. Com Ernie pressionando, duvido que
qualquer outro caso de guiar sob a influência do álcool pudesse
parecer tão terrível. Como Danny tinha pavio curto, não foi de
surpreender que começasse a se irritar com as perguntas incisivas e
sardônicas de Ernie.
Sobre as manchas de sangue de Rhoda. Se ele estava na cama com
Lydia, a camisa no chão, como o sangue de Rhoda fora parar no
quarto de Lydia, a um quilômetro e meio de distância?
Era uma conspiração, disse Danny, propondo uma nova teoria e
abrindo um buraco do qual nunca escaparia. Muito tempo sozinho
numa cela de cadeia pode ser perigoso para o criminoso culpado. Ele
tentou explicar que alguém manchara sua camisa com o sangue de
Rhoda, uma teoria que divertiu a multidão; ou então, o que era mais
provável, alguma pessoa misteriosa que examinara a camisa estava
pura e simplesmente mentindo, tudo num esforço para condená-lo.
Ernie teve um dia cheio com os dois cenários, mas desfechou os
maiores golpes com uma série de perguntas brutais sobre o motivo
pelo qual Danny, que tinha o dinheiro para contratar os melhores
advogados, não contratara seu próprio perito para comparecer ao
tribunal e explicar ao júri os exames do sangue que manchara a
camisa.
Talvez não fosse encontrado nenhum perito porque nenhum perito
podia chegar às conclusões absurdas de Padgitt.
O mesmo para o sêmen. Se Danny produzira sêmen em Lydia,
como podia ter chegado em Rhoda? Não havia problema... era parte
de uma vasta conspiração para condená-lo pelo crime. Os relatórios
do laboratório de criminalística eram falsos; o trabalho da polícia era
falho. Ernie pressionou até que todos nos sentíamos exaustos. Ao
meio-dia e meia, Lucien levantou-se e sugeriu uma pausa para o
almoço.
— Ainda não acabei! - berrou Ernie, a voz ressoando através do
tribunal.
Ele queria encerrar a aniquilação antes que Lucien falasse com seu
cliente, para a tentativa de reabilitá-lo, uma tarefa que parecia
impossível. Padgitt estava nas cordas, acuado, ofegante, e Ernie não
tinha a menor intenção de ir para um canto neutro.
— Continue - decidiu o juiz Loopus.
Ernie gritou subitamente para Padgitt:
— O que você fez com a faca?
A pergunta surpreendeu todo o mundo, especialmente a
testemunha, que recuou, sobressaltado, e se apressou em dizer:
— Eu... ahn...
Ele se calou.
— Você o quê? Vamos, sr. Padgitt, diga-nos o que fez com a faca, a
arma do crime!
Danny sacudiu a cabeça vigorosamente. Parecia assustado demais
para falar.
— Que faca? - conseguiu balbuciar, depois de um longo momento.
Danny não poderia parecer mais culpado se a faca escapulisse de
seu bolso e caísse no chão.
— A faca que usou em Rhoda Kassellaw.
— Não fui eu.
Como um carrasco lento e cruel, Ernie fez uma pausa prolongada.
Foi consultar Hank Hooten de novo. Depois, pegou o relatório da
autópsia e perguntou a Danny se se lembrava do depoimento do
primeiro patologista. O relatório dele era também parte da
conspiração? Danny não sabia como responder. Todas as provas
estavam sendo usadas contra ele; por isso, calculava que o relatório
também fosse falar.
E o pedaço de sua pele encontrado sob a unha da vítima também
era parte da conspiração? E seu sêmen? E assim por diante, Ernie
continuou a pressionar. De vez em quando, Lucien olhava para trás e
fitava o pai de Danny, com uma expressão que dizia: “Eu falei. ”
A presença de Danny na cadeira das testemunhas permitiu que
Ernie apresentasse todas as provas mais uma vez. O impacto foi
devastador. Seu fraco protesto, de que tudo fora distorcido por uma
conspiração, parecia ridículo, até mesmo cômico. Observá-lo ser
massacrado diante do júri foi gratificante. Os mocinhos estavam
vencendo. O júri parecia preparado para empunhar os rifles e formar
um pelotão de fuzilamento.
Ernie largou seu bloco de anotações na mesa. Parecia finalmente
pronto para o almoço. Enfiou as mãos nos bolsos da frente, fitou a
testemunha com uma expressão irritada e disse:
— Sob juramento, está dizendo ao júri que não estuprou e
assassinou Rhoda Kassellaw?
— Não fui eu.
— Não a seguiu até sua casa, cruzando a fronteira do estado,
naquela noite de sábado?
— Não.
— Não entrou na casa às escondidas pela porta do pátio?
— Não.
— E não se escondeu no closet enquanto ela punha as crianças
para dormir?
— Não.
— E não a atacou quando ela foi pegar uma camisola para dormir?
— Não.
Lucien levantou-se e disse:
— Protesto, Meritíssimo. O sr. Gaddis está tomando o lugar da
testemunha.
— Protesto indeferido! — disse Loopus, ríspido.
O juiz queria um julgamento justo. Para contrabalançar todas as
mentiras da defesa, a promotoria recebia uma liberdade considerável
na descrição da cena do crime.
— Não a vendou com uma echarpe?
Padgitt balançava a cabeça sem parar, enquanto a narrativa se
aproximava do clímax.
— E não cortou a calcinha com sua faca?
— Não.
— E não a estuprou em sua própria cama, com duas crianças
pequenas dormindo ali perto?
— Não fui eu.
— E não acordou as crianças com seu barulho?
— Não.
Ernie aproximou-se da cadeira da testemunha, tão perto quanto o
juiz permitiria.
— Michael e Teresa correram para descobrir o que estava
acontecendo com a mãe, não é mesmo, sr. Padgitt?
— Não sei.
— E o encontraram em cima dela, não é mesmo?
— Eu não estava lá.
— Rhoda ouviu as vozes dos filhos, não é mesmo? E as crianças
gritaram para você, suplicaram que deixasse sua mãe em paz?
— Eu não estava lá.
— E Rhoda fez o que qualquer mãe faria, gritou para que as
crianças fugissem... não é mesmo, sr. Padgitt?
— Eu não estava lá.
— Você não estava lá! - O berro de Ernie fez com que as paredes
parecessem tremer. — Sua camisa estava lá, suas pegadas estavam lá,
e deixou seu sêmen lá! Acha que os jurados são idiotas, sr. Padgitt?
A testemunha não parava de balançar a cabeça. Ernie encaminhou-
se lentamente para sua cadeira, e puxou-a de baixo da mesa. Fez
menção de sentar, mas disse antes:
— Você é um estuprador, um assassino e um mentiroso, não é
mesmo, sr. Padgitt?
Lucien se levantou no mesmo instante, gritando:
— Protesto, Meritíssimo! Isto é demais!
— Protesto deferido. Mais alguma pergunta, sr. Gaddis?
— Não, Meritíssimo. O Estado encerra com essa testemunha.
— Deseja fazer alguma pergunta, sr. Wilbanks?
— Não, Meritíssimo.
— A testemunha pode se retirar.
Danny levantou devagar. Havia muito que desaparecera o sorriso,
desvanecera-se a arrogância. O rosto estava vermelho de raiva e
molhado de suor.
Quando já ia deixar o banco das testemunhas e voltar para a mesa
da defesa, virou-se subitamente para os jurados e disse uma coisa que
surpreendeu o tribunal. Tinha o rosto contraído em puro ódio, o dedo
indicador direito espetando o ar.
— Vocês me condenam, e pegarei cada um de vocês.
— Guarda! - exclamou o juiz Loopus, batendo com o martelo. -Já
chega, sr. Padgitt!
— Pegarei todos vocês! - reiterou Danny, mais alto.
Ernie levantou-se de um pulo, mas não pôde pensar em nada para
dizer. E por que deveria dizer qualquer coisa? O réu passava a corda
em torno do próprio pescoço. Lucien levantou-se, mas também
parecia indeciso sobre o que fazer. Dois guardas adiantaram-se e
arrastaram Danny para a mesa da defesa. Enquanto se afastava, ele
ainda lançou um olhar furioso para os jurados, como se quisesse
lançar uma granada no recinto do júri naquele momento.
Depois que tudo assentou, percebi que meu coração batia forte de
excitamento. Até mesmo Baggy sentia-se aturdido demais para falar.
— Vamos entrar em recesso para o almoço - declarou o juiz.
Deixamos o tribunal. Eu não tinha mais fome. Minha única
vontade era correr para o apartamento e tomar um banho de chuveiro.
CAPITULO 18
O JULGAMENTO RECOMEÇOU às três horas da tarde. Todos os jurados
estavam presentes. Nenhum dos Padgitt se retirara durante o almoço.
Miss Callie sorriu para mim, mas seu coração não se empenhava no
sorriso.
O juiz Loopus explicou ao júri que aquele era o momento para as
alegações finais. Depois, ele leria para os jurados suas instruções
formais. Deveriam chegar a um veredicto em cerca de duas horas.
Todos escutaram com a maior atenção, mas tenho certeza de que
ainda sentiam-se atordoados com o choque de estarem sendo
intimidados de uma maneira tão flagrante. Toda a cidade sentia-se
atordoada. Os jurados eram uma amostragem do resto da
comunidade, e ameaçá-los era como ameaçar a todos.
Ernie falou primeiro. Em poucos minutos, a camisa ensanguentada
voltou a ser exibida. Mas ele tomou cuidado para não exagerar. Os
jurados compreendiam. Eles conheciam as provas muito bem.
O promotor distrital foi meticuloso, mas surpreendentemente
breve. Enquanto fazia um último apelo por um veredicto de culpado,
observávamos os rostos dos jurados. Não vi qualquer simpatia pelo
réu. Fargarson, o garoto aleijado, balançava a cabeça enquanto
acompanhava a argumentação de Ernie. O sr. John Deere descruzara
os braços e absorvia cada palavra.
Lucien foi ainda mais breve, mas também tinha muito menos com
que trabalhar. Começou por falar sobre as palavras finais de seu
cliente para os jurados. Pediu desculpas por seu comportamento.
Atribuiu-o à pressão do momento. Imaginem só, pediu ele aos
jurados, ter 24 anos e enfrentar a possibilidade de passar o resto da
vida na prisão; ou ainda pior, ir para a câmara de gás. A pressão sobre
o seu jovem cliente — sempre se referia a ele por “Danny”, como se
fosse um menino inocente - era tão intensa que se preocupava com
sua estabilidade mental.
Como não podia insistir na ridícula teoria da conspiração proposta
pelo cliente, e como sabia que era melhor não falar sobre as provas,
Lucien passou meia hora louvando os heróis que escreveram a
Constituição e a Declaração de Direitos. A maneira como interpretou a
presunção de inocência e a exigência de que o Estado provasse seu
caso, acima e além de qualquer dúvida razoável, levou-me a especular
como qualquer criminoso alguma vez era condenado.
O Estado tinha a chance de uma refutação; a defesa não tinha. Por
isso, Ernie teve a última palavra. Ignorou as provas e não mencionou
o réu. Em vez disso, optou por falar sobre Rhoda. Sua juventude e
beleza, a vida simples em Beech Hill, a morte do marido e o desafio de
criar duas crianças pequenas sozinha.
Ele foi bastante eficaz, e os jurados absorveram cada palavra. Ernie
teve um refrão: “Não vamos esquecer de Rhoda. ” Um orador
refinado, ele guardou o melhor para o final.
— E não vamos esquecer as crianças - disse ele, fitando os jurados
nos olhos. - Estavam presentes quando a mãe morreu. O que viram
naquela casa foi tão horrível que ficarão marcadas para sempre. As
crianças têm uma voz aqui, neste tribunal... e essa voz pertence a
vocês.
O juiz Loopus leu as instruções para o júri. Depois, mandou que se
retirassem, para iniciarem as deliberações. Passava um pouco de cinco
horas da tarde. As lojas em torno da praça estavam fechadas e os
comerciantes e seus clientes tinham ido para casa havia muito tempo.
O tráfego fluia normalmente, o estacionamento era fácil.
Mas quando um júri começava a deliberar era diferente.
Muitos espectadores permaneceram no gramado na frente do
tribunal, fumando, conversando, tentando prever quanto tempo
levaria para sair o veredicto. Outros foram para os cafés, onde pediam
um lanche atrasado ou um jantar antecipado. Ginger foi comigo para
o jornal. Sentamos na varanda da minha sala, observando a atividade
na frente do tribunal. Ela sentia uma exaustão emocional e não queria
fazer outra coisa que não deixar o condado de Ford.
— Até que ponto conhece Hank Hooten? - perguntou ela, em
determinado momento.
— Nunca falei com ele pessoalmente. Por quê?
— Ele me abordou durante o almoço. Disse que conheceu Rhoda
muito bem e tinha certeza de que ela não andava indo para a cama
com qualquer homem, muito menos com Danny Padgitt. Respondi
que não acreditara por um instante sequer que ela tivesse algum
relacionamento com aquele canalha.
— Ele disse que namorava sua irmã?
— Não, não disse. Mas tive a impressão de que namorava. Quando
examinamos suas coisas, uma semana depois do funeral, encontrei seu
nome e telefone no caderno de endereços.
— Conhece Baggy, não é?
— Conheço.
— Baggy vive aqui há uma eternidade e acha que sabe de tudo. Ele
me disse na segunda-feira, quando o julgamento começou, que Rhoda
e Hank tinham um caso. Informou que Hank já se divorciara duas
vezes, e era conhecido como um conquistador.
— Quer dizer que ele não é casado?
— Acho que não. Perguntarei a Baggy.
— Creio que deveria me sentir melhor por saber que minha irmã
dormia com um advogado.
— Por que isso faria com que se sentisse melhor?
— Não sei.
Ela tirou os sapatos. A saia curta subiu ainda mais pelas coxas.
Comecei a acariciá-las, e meus pensamentos se afastaram do
julgamento.
Mas foi apenas por um instante. Houve uma comoção na porta da
frente do tribunal e ouvi alguém gritar qualquer coisa sobre um
“veredito”.

Depois de deliberar por menos de uma hora, o júri estava pronto.


Assim que os advogados e espectadores se acomodaram, o juiz
Loopus disse a um guarda:
— Pode trazê-los.
— Culpado como o inferno - sussurrou Baggy, quando a porta foi
aberta e Fargarson entrou na frente, claudicando. — Os veredictos
rápidos são sempre de culpado.
Para constar, a previsão de Baggy fora de júri inconcluso, mas não
o lembrei disso, pelo menos não naquela ocasião.
O primeiro jurado entregou um papel dobrado ao guarda, que o
levou para o juiz. Loopus examinou-o por um longo momento, depois
inclinou-se para o microfone.
— Que o réu se levante, por favor.
Padgitt e Lucien levantaram-se, devagar, contrafeitos, como se o
pelotão de fuzilamento estivesse assumindo sua posição. O juiz
Loopus leu:
— Na denúncia número um, a acusação de estupro, nós do júri
consideramos que o réu, Danny Padgitt, é culpado. Na denúncia
número dois, a acusação de homicídio, nós do júri consideramos que o
réu, Danny Padgitt, é culpado.
Lucien não estremeceu e Padgitt tentou se controlar. Olhou para os
jurados com todo o veneno que podia transmitir, mas estava
recebendo ainda mais em troca.
— Podem sentar. — O juiz virou-se para o júri. — Senhoras e
senhores, obrigado por seus serviços até agora. Isto completa a fase de
culpado ou inocente do julgamento. Passamos agora para a fase da
pena, em que será pedido que decidam se o réu recebe a sentença de
morte ou de prisão perpétua. Voltarão agora para o hotel. Ficaremos
em recesso até as nove horas da manhã. Obrigado e boa-noite.
Acabou tão depressa que a maioria dos espectadores não se mexeu
por um momento. Padgitt foi levado, algemado desta vez. Sua família
parecia completamente atordoada. Lucien não tinha tempo para
conversar com os parentes.
Baggy e eu fomos para o jornal, onde ele começou a escrever com
uma fúria intensa. Ainda faltavam dias para o nosso prazo, mas
queríamos captar o momento. Como era de se esperar, no entanto, ele
perdeu o ímpeto depois de meia hora, quando ouviu o chamado do
uísque. Já estava quase escurecendo quando Ginger apareceu, numa
jeans bem justa, blusa ainda mais justa, cabelos soltos, com uma
expressão que dizia: “Leve-me para algum lugar. ”
Paramos de novo no Quincys, onde compramos outra embalagem
com seis cervejas para viagem. Com a capota arriada, o ar quente
soprando ao nosso redor, seguimos para Memphis, a noventa minutos
de distância.
Pouco falamos. Não indaguei coisa alguma. Ela fora obrigada pela
família a comparecer ao julgamento. Não pedira por aquele pesadelo.
Por sorte, encontrara-me para ter um pouco de diversão.
Nunca mais esquecerei aquela noite, correndo por estradas escuras
e vazias, tomando uma cerveja gelada, segurando de vez em quando a
mão de uma linda mulher, que fora me procurar, com quem eu já
deitara uma vez e tinha certeza de que deitaria outra vez.
Só restavam umas poucas horas para o nosso doce romance. Eu
quase que podia contá-las. Baggy achava que a fase da determinação
da sentença levaria menos de um dia. Portanto, o julgamento
terminaria no dia seguinte, sexta-feira. Ginger mal podia esperar para
deixar Clanton, sacudir a poeira dos sapatos. Claro que eu não tinha a
menor possibilidade de acompanhá-la. Verificara num atlas.
Springfield, Missouri, era longe, pelo menos seis horas de carro. Viajar
durante toda a semana de um lado para outro seria difícil, mas eu
tentaria, se ela quisesse.
Alguma coisa, porém, me dizia que Ginger desapareceria de
minha vida tão depressa quanto surgira. Estava convencido de que ela
tinha um ou dois namorados em sua cidade, e por isso eu não seria
bem recebido. E se me visse em Springfield, ela se lembraria do
condado de Ford e suas horríveis recordações.
Apertei a mão de Ginger e decidi que aproveitaria ao máximo
aquelas últimas horas.
Em Memphis, seguimos para os prédios altos à beira do rio. O
mais famoso restaurante da cidade era o Rendez-vous, que servia uma
costela deliciosa. Pertencia a uma família de gregos. Quase toda a boa
comida de Memphis era preparada por gregos ou italianos.
O centro de Memphis, em 1970, não era um lugar seguro.
Estacionei numa garagem e atravessamos apressados uma viela, até a
porta do Rendez-vous. O aroma de costela assando saía dos dutos de
ar e pairava entre os prédios, como um nevoeiro denso. Era o aroma
mais apetitoso que eu já sentira. Como a maioria dos outros clientes,
estávamos famintos quando descemos por um lance de escada e
entramos no restaurante.
A quinta-feira era um dia de pouco movimento. Esperamos apenas
cinco minutos. Quando meu nome foi chamado, seguimos um garçom
em ziguezague entre as mesas, através de salas cada vez menores, por
cavernas cada vez mais profundas. Ele piscou para mim e nos deu
uma mesa para dois, num canto escuro. Pedimos costela e cerveja.
Trocamos carícias enquanto aguardávamos.
O veredicto de culpado era um imenso alívio. Qualquer outro teria
sido um desastre cívico, com Ginger fugindo da cidade sem olhar para
trás. Ela fugiria amanhã, mas eu a tinha comigo até lá. Brindamos ao
veredicto. Para Ginger, significava que a justiça prevalecera. Para
mim, significava isso também, mas ainda por cima nos proporcionava
outra noite juntos.
Ginger comeu pouco, o que me permitiu acabar minha porção de
costela e comer em seguida o que ela deixara no prato. Falei sobre
Miss Callie e os almoços na varanda, sobre os filhos extraordinários,
sua infância e adolescência. Ginger disse que adorava Miss Callie,
como também adorava os outros onze jurados.
Essa admiração não duraria muito tempo.

Como eu esperava, meu pai estava encerrado no sótão, o lugar que


ele sempre chamara de escritório. Era o último andar de uma torre
vitoriana, na frente de nossa casa velha e mal cuidada, perto do centro
de Memphis. Ginger queria conhecê-la e no escuro parecia muito mais
imponente que à luz do dia. Era um bairro maravilhoso, muito
arborizado, com casas em decadência de famílias em decadência,
sobrevivendo corajosamente na pobreza elegante.
— O que ele faz lá em cima? - perguntou Ginger.
Estávamos sentados no carro, parado na frente da casa, o motor
desligado. O velho schnauzer da sra. Duckworth latia para nós de
quatro casas de distância.
— Já expliquei. Ele negocia com ações e outros títulos.
— À noite?
— Ele faz pesquisa de mercado. Nunca sai de casa.
— E perde dinheiro?
— Não ganha nenhum, tenho certeza.
— Vamos entrar para cumprimentá-lo?
— Não. Isso só serviria para deixá-lo irritado.
— Quando foi a última vez que o viu?
— Há três ou quatro meses.
Visitar meu pai era a última coisa que eu queria fazer naquele
momento. Sentia-me consumido pelo desejo e ansioso em começar
logo. Deixamos a cidade e encontramos um Holiday Inn, ao lado da
rodovia interestadual.
CAPÍTULO 19
NA MANHÃ DE SEXTA-FEIRA, no corredor fora da sala principal do
tribunal, Esau Ruffin encontrou-me, com uma agradável surpresa. Al,
Max e Bobby (Alberto, Massimo e Roberto) estavam com ele, ansiosos
por me cumprimentarem. Eu falara pelo telefone com todos os três,
um mês antes, quando preparava a reportagem sobre Miss Callie e
seus filhos. Trocamos apertos de mão e palavras cordiais.
Polidamente, eles me agradeceram pela amizade com sua mãe e pelas
palavras generosas que eu escrevera sobre a família. Tinham uma voz
suave e agradável... e eram tão articulados quanto Miss Callie.
Haviam chegado na noite anterior para oferecer apoio moral à
mãe. Esau falara com ela uma vez durante a semana - cada jurado
tivera direito a um telefonema -, e Miss Callie dissera que estava bem,
mas preocupada com a pressão.
Conversamos por um momento, enquanto a multidão se
encaminhava para a sala principal do tribunal. Entramos juntos. Eles
sentaram logo atrás de mim. Poucos momentos depois, quando sentou
no recinto do júri, Miss Callie olhou para mim e viu os três filhos. O
sorriso foi como um raio de luz. A fadiga em torno dos olhos
desapareceu no mesmo instante.
Durante o julgamento, eu vira um certo orgulho em seu rosto. Ela
sentava onde nenhuma pessoa negra jamais estivera, junto com seus
concidadãos, julgando um branco, pela primeira vez no condado de
Ford. Eu também percebera a ansiedade que deriva de se aventurar
por águas inexploradas.
Agora que os filhos estavam ali para assistir, o orgulho estampava-
se em seu rosto, sem qualquer insinuação de medo. Ela sentou um
pouco mais empertigada. Embora nada tivesse escapado à sua atenção
no tribunal até aquele momento, os olhos agora deslocavam-se ainda
mais depressa por toda parte, como se estivesse ansiosa em registrar o
que estava para acontecer, encerrando sua missão.
O juiz Loopus explicou aos jurados que, na fase de determinação
da sentença, o Estado apresentaria provas de circunstâncias
agravantes, em apoio ao pedido de pena de morte. A defesa
apresentaria provas atenuantes. Ele não esperava que demorasse
muito. Era sexta-feira; o julgamento já durara uma eternidade; os
jurados e todas as outras pessoas em Clanton queriam que Padgitt
fosse logo enviado à prisão, para que a vida pudesse voltar ao normal.
Ernie Gaddis avaliou corretamente a disposição no tribunal.
Agradeceu aos jurados pelo veredicto apropriado de culpado e
confessou que achava que não havia necessidade de mais nenhum
depoimento adicional. O crime era tão hediondo que nada mais
agravante poderia ser acrescentado. Pediu aos jurados que se
lembrassem da foto de Rhoda no balanço na varanda do dr. Deece,
assim como o depoimento do patologista sobre a violência dos golpes
e como ela morrera. E as crianças, por favor, não esqueçam as
crianças.
Como se alguém pudesse esquecê-las.
Ele apresentou uma súplica eloquente pela pena de morte. Fez um
breve histórico sobre os motivos pelos quais nós, como bons e
decididos americanos, acreditávamos na necessidade da pena de
morte. Explicou que era um dissuasivo e uma punição. Citou as
Escrituras.
Em quase trinta anos como promotor, em seis condados, ele nunca
vira um caso que clamasse de tal forma pela pena de morte. Observei
os rostos dos jurados. Fiquei convencido de que Ernie obteria o que
pedia.
Ao encerrar, ele lembrou aos jurados que cada um fora escolhido
na segunda-feira depois de prometer que seguiria a lei. Leu a lei que
estabelecera a pena de morte.
— O Estado do Mississippi provou tudo o que era preciso — disse
ele, fechando o grosso livro de capa verde. - Vocês concluíram que
Danny Padgitt é culpado de estupro e assassinato. A lei exige agora a
pena de morte. Vocês são obrigados pelo dever a aplicá-la.
O desempenho fascinante de Ernie durou 51 minutos — eu estava
tentando gravar tudo - e quando ele acabou eu sabia que o júri
enforcaria Padgitt não apenas uma vez, mas duas.
Segundo Baggy, num caso de pena capital, o réu, depois de
protestar inocência ao longo do julgamento, mas sendo considerado
culpado pelo júri, pedia para falar e dizia que lamentava muito,
qualquer que fosse o crime que negara durante a semana.
— Eles suplicam e choram - informara Baggy. - É um espetáculo
incrível.
Mas o desastre de Padgitt no dia anterior impedia-o de sequer
chegar perto do júri. Lucien chamou para o banco das testemunhas a
mãe de Danny, Lettie Padgitt. Era uma mulher na casa dos cinquenta
anos, com um rosto simpático e cabelos grisalhos curtos. Usava um
vestido preto, como se já estivesse de luto pela morte do filho.
Conduzida por Lucien, iniciou hesitante seu depoimento, que parecia
ter um roteiro meticuloso, inclusive com a indicação das pausas e da
cadência. Lá estava o pequeno Danny, ainda menino, pescando todos
os dias, depois das aulas, quebrando a perna ao cair de uma casa na
árvore e ganhando o prêmio de soletração na quarta série. Nunca
tivera qualquer problema naquele tempo. Na verdade, Danny jamais
causara qualquer problema na infância e adolescência, um filho que
era uma permanente alegria. Os dois irmãos mais velhos estavam
sempre envolvidos em alguma travessura, mas isso nunca acontecia
com Danny.
O depoimento foi tão insensato e distorcido que beirava o ridículo.
Mas havia três mães no júri: Miss Callie, a sra. Barbara Baldwin e
Maxine Root. Lucien queria conquistar apenas uma delas. Um único
jurado já era suficiente.
Como era de se esperar, a sra. Padgitt logo estava em lágrimas.
Nunca acreditaria que o filho cometera um crime tão terrível. Mas se o
júri achava que sim ela tentaria aceitar. Mas por que matá-lo? O que o
mundo ganharia se ele fosse executado?
Sua angústia era sincera, suas emoções intensas. Uma cena difícil
de assistir, de suportar. Qualquer ser humano sentiria compaixão de
uma mãe prestes a perder um filho. Ela finalmente se descontrolou.
Lucien deixou-a chorando no banco das testemunhas. O que começara
como uma performance empolada acabou como uma súplica
desesperada e comovente, que levou a maioria dos jurados a baixar os
olhos e examinar o chão.
Lucien disse que não tinha outras testemunhas. Ele e Ernie fizeram
breves alegações finais. Por volta de onze horas da manhã, o júri mais
uma vez se retirou para tomar a decisão final.

Ginger desapareceu na multidão. Fui para o jornal e esperei. Como


ela não aparecesse, atravessei a praça até o escritório de Harry Rex.
Ele mandou a secretária comprar sanduíches. Comemos numa sala de
reunião atravancada. Como a maioria dos advogados de Clanton, ele
passara a semana inteira no tribunal, acompanhando um julgamento
que nada significara para ele em termos financeiros.
— Sua garota vai se manter firme? - indagou ele, a boca cheia do
sanduíche de peru e queijo suíço.
— Miss Callie?
— Isso mesmo. Ela não vai se incomodar com a câmara de gás?
— Não tenho a menor ideia. Não conversamos a respeito.
— Ela nos deixou preocupados, assim como aquele garoto aleijado.
Harry Rex envolvera-se no caso de tal forma que era de se pensar
que trabalhava para Ernie Gaddis e o Estado. Mas não era o único
advogado na cidade que secretamente apoiava a Promotoria.
— Levaram menos de uma hora para chegar ao veredicto de
culpado - comentei. - Isso não é um bom sinal?
— Pode ser. Mas os jurados fazem coisas estranhas quando chega
o momento de assinar a sentença de morte.
— É mesmo? Neste caso, ele pegará prisão perpétua. E pelo que
ouvi falar de Parchman, a vida ali seria pior do que a câmara de gás.
— Perpétua não é perpétua, Willie — disse ele, limpando o rosto
com uma toalha de papel.
Larguei meu sanduíche, enquanto ele dava outra mordida no seu.
— O que é perpétua?
— Dez anos, talvez menos.
Tentei compreender.
— Está querendo dizer que uma sentença de prisão perpétua no
Mississippi corresponde a dez anos?
— Agora entendeu. Depois de dez anos, até menos, um assassino
condenado a prisão perpétua tem direito a livramento condicional.
Uma insanidade, não acha?
— Mas por que...
— Não tente compreender, Willie. Apenas é a lei. Vigora há
cinquenta anos. E o pior é que o júri não sabe disso. Não se pode
dizer. Quer um pouco de salada de repolho?
Sacudi a cabeça em negativa.
— Nosso distinto Supremo Tribunal decidiu que se o júri souber
como uma sentença de prisão perpétua pode ser leve, talvez se torne
mais propenso a aplicar a pena de morte. Assim, seria injusto com o
réu.
— A prisão perpétua dura dez anos - murmurei para mim mesmo.
No Mississippi, as lojas de bebidas permanecem fechadas no dia
de eleição, como se os eleitores não pudessem, de outra forma, se
embriagar e votar nas pessoas erradas. Outra lei inacreditável.
— É isso aí, Willie.
Harry Rex terminou seu sanduíche, com uma enorme mordida.
Pegou um envelope numa prateleira, abriu-o e tirou uma foto em
preto e branco, que estendeu para mim.
— Apanhado em flagrante, companheiro - disse ele, com uma
risada.
Era uma foto minha, saindo apressado do quarto de Ginger no
motel, na manhã de quinta-feira. Parecia cansado, de ressaca, culpado
de alguma coisa, mas também satisfeito.
— Quem tirou?
— Um dos meus homens. Trabalhava num caso de divórcio, viu
seu carrinho comunista aparecer naquela noite e decidiu se divertir
um pouco.
— Não foi o único a se divertir.
— Ela é um espetáculo. Ele bem que tentou tirar uma foto através
das cortinas, mas não conseguiu o ângulo apropriado.
— Devo autografar para você?
— Fique com ela.

Depois de três horas de deliberação, o júri enviou um bilhete para


o juiz Loopus. Estavam num impasse, fazendo pouco progresso. Ele
decidiu reiniciar a audiência e atravessamos a rua correndo.
Se o júri não consegue chegar a um veredicto unânime para a pena
de morte, então o juiz deve, por lei, aplicar a sentença de prisão
perpétua.
O medo dominava os espectadores, enquanto esperávamos pelos
jurados. Havia alguma coisa errada. Os Padgitt teriam conseguido
finalmente dominar um jurado?
Miss Callie mantinha-se impassível, como eu nunca a vira. A sra.
Barbara Baldwin estivera obviamente chorando. Vários homens
davam a impressão de que haviam acabado de brigar e estavam
ansiosos por recomeçar a troca de socos.
O primeiro jurado levantou-se. Muito nervoso, explicou ao juiz
que o júri estava dividido, e não conseguira efetuar qualquer
progresso durante a última hora. Ele não estava otimista sobre a
possibilidade de um veredicto por unanimidade e todos sentiam-se
ansiosos por voltar para casa.
O juiz Loopus perguntou a cada jurado se achava possível chegar a
um veredicto unânime. A resposta unânime foi não.
Pude sentir a raiva aumentar entre a multidão. Todos se agitavam
e sussurravam, o que não ajudava nem um pouco os jurados.
O juiz Loopus fez, então, o que Baggy descreveu mais tarde como
a “carga de dinamite”: uma preleção rigorosa sobre o cumprimento da
lei e das promessas feitas durante a seleção do júri. Foi uma
repreensão firme e prolongada, com algum desespero.
Não adiantou. Duas horas depois, um tribunal aturdido ouviu o
juiz Loopus interrogar outra vez os jurados, com o mesmo resultado.
Ao final, relutante, ele agradeceu a todos e dispensou-os.
Depois que os jurados se retiraram, ele mandou que Danny Padgitt
se adiantasse. Criticou-o com tanta veemência que me deixou todo
arrepiado. Chamou-o de estuprador, assassino, covarde, mentiroso e,
o pior de tudo, de ladrão, por ter roubado a mãe de duas crianças
pequenas. Foi uma agressão verbal veemente e desmoralizante. Ainda
tentei anotar palavra por palavra, mas era tão eloquente que tive de
parar e apenas escutar. Um pregador irado não seria capaz de
despejar tantos insultos sobre o pecado.
Se ele tivesse poder para isso, aplicaria a pena de morte, ainda por
cima rápida e dolorosa.
Mas a lei era a lei, e o juiz não podia deixar de respeitá-la.
Condenou-o à prisão perpétua e ordenou que o xerife Coley levasse o
prisioneiro imediatamente para a penitenciária estadual, em
Parchman. Coley algemou Danny e tirou-o do tribunal.
Loopus bateu com o martelo e se retirou apressado. Irrompeu uma
briga no fundo da sala, quando um dos tios de Danny esbarrou em
Doc Crull, um barbeiro local, conhecido por ser estourado. A briga
atraiu uma multidão, e várias pessoas xingaram os Padgitt, mandando
que voltassem para sua ilha.
— Voltem para seu pântano e fiquem lá! - gritou alguém.
Vários guardas interferiram, e os Padgitt deixaram o tribunal. A
multidão ainda ficou mais um pouco, como se o julgamento não
tivesse acabado, como se não houvesse um pleno cumprimento da
justiça. Havia raiva e imprecações, e tive uma noção da maneira como
se formavam as turbas de linchamento.

Ginger não apareceu. Dissera que passaria pelo jornal depois de


fechar a conta no motel para se despedir, mas obviamente mudara de
ideia. Podia imaginá-la a correr pela noite, chorando e praguejando,
contando os quilômetros até sair do estado do Mississippi. Quem
poderia culpá-la por isso?
Nosso romance de três dias chegou a um fim abrupto, da maneira
como ambos esperávamos, mas nenhum dos dois quisera admitir.
Não me passava pela cabeça que nossos caminhos pudessem se cruzar
de novo; e se por acaso isso acontecesse, o mais provável é que
fôssemos para a cama uma ou duas vezes, antes da vida nos desviar,
antes de seguirmos em frente, por caminhos separados. Ginger
passaria por muitos homens, antes de encontrar aquele com quem
ficaria. Sentei na varanda de minha sala e fiquei esperando que ela
estacionasse lá embaixo, mesmo sabendo que Ginger já devia estar no
Arkansas àquela altura. Começáramos o dia juntos na cama, ansiosos
em voltar ao tribunal para assistir ao assassino de sua irmã recebendo
a sentença de morte.
No calor do momento, comecei a escrever um editorial sobre o
veredicto. Seria uma condenação vigorosa das leis penais do estado do
Mississippi. Seria franco e emocionado, prenderia a atenção de todos
os leitores.
Esau telefonou e me interrompeu. Estava no hospital, com Miss
Callie, e me pediu para ir até lá o mais depressa possível.
Ela desmaiara quando entrava no carro, à saída do tribunal. Esau e
os três filhos levaram-na imediatamente para o hospital, uma sábia
decisão. A pressão arterial se tornara perigosamente alta e o médico se
preocupara com a possibilidade de um derrame. Depois de duas
horas, porém, ela estabilizara, a aparência melhorara. Segurei-lhe a
mão por um instante, disse que me orgulhava dela e coisas do gênero.
Mas o que eu queria mesmo era ouvir a história interna, o que
acontecera na sala de deliberação do júri.
Era uma história que eu nunca saberia.
Tomei café com Al, Max, Bobby e Esau, na cantina do hospital, até
meia-noite. Miss Callie não dissera uma só palavra sobre as
deliberações do júri.
Conversamos sobre eles, seus irmãos e irmãs, seus filhos, suas
carreiras, a vida em Clanton quando eram jovens. As histórias iam
saindo, e quase peguei uma caneta e um bloco de anotações.
CAPÍTULO 20
DURANTE OS SEIS primeiros meses em que vivi em Clanton, em geral
fugia de lá nos fins de semana. Havia muito pouco a fazer. Exceto um
bode assado ocasional no sítio de Harry Rex e um ou outro coquetel
horrível, que eu costumava deixar vinte minutos depois de chegar,
não havia confraternização social. Quase todos os jovens da minha
idade eram casados e sua ideia de diversão era um “jantar” de sorvete
para levantamento de fundos na noite de sábado, em uma das
inúmeras igrejas na cidade. Muitos dos que deixavam Clanton para
cursar uma universidade nunca mais voltavam.
Por tédio, eu passava fins de semana ocasionais em Memphis, em
geral no apartamento de um amigo, quase nunca na casa da família.
Fiz várias viagens a New Orleans, onde vivia uma antiga namorada
minha do ensino médio, divertindo-se no circuito de festas. Mas o
Times era meu, pelo menos no futuro próximo. Eu era um residente de
Clanton. Tinha de aceitar a vida numa pequena cidade, inclusive os
fins de semana chatos. E o jornal tornou-se meu refugio.
Fui para lá no sábado, depois do veredicto, por volta de meio-dia.
Queria escrever várias reportagens sobre o julgamento. Além disso,
ainda não terminara o editorial. Encontrei sete cartas no chão, logo
depois da porta. Era uma tradição no Times havia muitos anos. Nas
raras ocasiões em que Spot escrevia alguma coisa que provocava uma
reação de um leitor, a carta ao editor era quase sempre enfiada por
baixo da porta.
Quatro eram assinadas, três anônimas. Duas eram datilografadas,
as outras escritas à mão, uma delas quase indecifrável. Todas
expressavam indignação por Danny Padgitt ter escapado com vida do
crime que cometera. Não fiquei surpreso com a sede de sangue da
cidade. Também me senti consternado porque seis das sete cartas
faziam alguma referência a Miss Callie. A primeira era datilografada e
sem assinatura. Dizia o seguinte:

Prezado Editor: Nossa comunidade mergulhou


ao ponto mais baixo no momento em que um
bandido como Danny Padgitt pôde estuprar,
matar e escapar vivo. A presença de uma negra
no júri deve nos despertar para o fato de que
essas pessoas não pensam da mesma maneira
que os brancos que respeitam a lei.

A sra. Edith Caravelle, de Beech Hill, escreveu, numa letra bonita:

Prezado Editor: Moro a um quilômetro e meio


do lugar em que ocorreu o crime. Sou mãe de
dois adolescentes. Como posso lhes explicar o
veredicto? A Bíblia diz: "Olho por olho.” Acho que isso
não se aplica no condado de Ford.

Outra carta anônima, em papel de carta rosa, perfumado, com


flores nas margens, dizia:

Prezado Editor: Veja o que acontece quando


negros são postos em posições de
responsabilidade. Um júri todo branco teria
acabado com Padgitt no tribunal. Agora, o
Supremo Tribunal está nos dizendo que negros
devem ensinar nossas crianças, policiar nossas
ruas e concorrer a cargos públicos. Deus nos
ajude.

Como editor (além de proprietário e diretor), eu tinha um controle


total sobre o que saía no Times. Podia editar as cartas, ignorá-las,
escolher as que queria publicar. Em questões e eventos controvertidos,
as cartas ao editor atiçavam as chamas e deixavam as pessoas
perturbadas. E vendiam jornais, porque era o único lugar em que
podiam ser publicadas. Eram absolutamente gratuitas e permitiam
que qualquer um encontrasse o foro que procurava.
Enquanto lia a primeira leva, decidi que não publicaria nada que
fosse injurioso para Miss Callie. E me irritei ao descobrir que havia
pessoas presumindo que fora ela a responsável pelo impasse no júri,
impedindo a pena de morte.
Por que a cidade se mostrava tão ansiosa em atribuir a culpa por
um veredicto impopular à única pessoa negra no júri? E sem qualquer
prova? Decidi descobrir o que realmente acontecera na sala do júri.
Pensei em Harry Rex no mesmo instante. Baggy, é claro, apareceria
trôpego na manhã de segunda-feira, na ressaca habitual, e fingiria
saber como exatamente o júri se dividira. A probabilidade maior seria
a de que estivesse errado. Se alguém podia conhecer a verdade, seria
Harry Rex.
Wiley Meek apareceu para contar o que se dizia na cidade. As
pessoas manifestavam sua indignação nos cafés. Padgitt era uma
palavra obscena. Lucien Wilbanks era desprezado, mas isso não
chegava a ser uma novidade. O xerife Coley podia muito bem se
aposentar; não teria cinquenta votos na próxima eleição. Dois
adversários já se apresentavam, e a eleição seria dentro de seis meses.
Uma história dizia que onze jurados haviam votado pela câmara de
gás, mas um resistira.
— Provavelmente a negra — dissera alguém.
Era esse o sentimento predominante na Tea Shoppe por volta das
sete horas daquela manhã. Um guarda vigiando a sala do júri teria
contado para alguém que havia uma divisão de seis a seis, mas essa
possibilidade não merecia muito crédito nos cafés às nove horas da
manhã. Havia duas teorias básicas circulando pela praça naquela
manhã: pela primeira, Miss Callie estragara tudo, só porque era negra;
pela segunda, os Padgitt haviam comprado dois ou três jurados, como
já tinham feito com aquela “vaca mentirosa”, Lydia Vince.
Wiley achava que a segunda teoria tinha mais partidários do que a
primeira, embora muitos parecessem dispostos a acreditar em
qualquer coisa. Eu estava aprendendo que os comentários nos cafés
eram inúteis.
Ao final da tarde de sábado, atravessei os trilhos e guiei devagar
por Lowtown. As ruas estavam repletas de crianças em bicicletas,
jogos de basquete, varandas apinhadas, música saindo pela porta
aberta de bares, risos dos homens na frente das lojas. Todos haviam
saído de casa, como se estivessem se preparando para os rigores da
noite de sábado. As pessoas acenavam e olhavam, mais interessadas
em meu carro do que em minha pele branca.
Havia uma pequena multidão na varanda de Miss Callie. Ai, Max
e Bobby estavam ali, junto com o reverendo Thurston Small e um
diácono bem vestido da igreja. Esau estava dentro da casa, cuidando
da esposa. Ela tivera alta do hospital naquela manhã, com instruções
expressas para permanecer na cama por três dias, sem levantar um
dedo. Max levou-me até o quarto.
Miss Callie estava sentada na cama, recostada em travesseiros,
lendo a Bíblia. Sorriu ao me ver e disse:
— É muita gentileza ter vindo, sr. Traynor. Sente-se, por favor.
Esau, traga um chá para o sr. Traynor.
Esau levantou-se de um pulo, como sempre acontecia quando ela
dava ordens. Sentei numa cadeira perto da cama. Ela não me parecia
nem um pouco doente.
— Estou muito preocupado com o nosso almoço na próxima
quinta-feira - comentei.
Ambos rimos.
— Pode deixar que farei o almoço.
— Nada disso. Tenho uma ideia melhor. Eu trarei a comida.
— Por que isso me preocupa?
— Comprarei em algum lugar. Alguma coisa mais leve, como um
sanduíche.
— Um sanduíche será ótimo. - Ela apertou meu joelho. -Meus
tomates estão quase maduros.
Miss Callie retirou a mão. Desviou os olhos por um momento,
ainda sorrindo.
— Não fizemos um bom trabalho, não é mesmo, sr. Traynor?
As palavras estavam impregnadas de tristeza e frustração.
— Não é um veredicto popular.
— Não é o que eu queria.
E isso foi o máximo que ela falaria sobre as deliberações do júri,
durante muitos anos. Esau me contou mais tarde que os outros onze
jurados haviam jurado sobre a Bíblia que não diriam nada a respeito
da decisão. Miss Callie não juraria sobre a Bíblia, mas dera sua palavra
de que guardaria os segredos.
Deixei-a para que pudesse descansar. Fui para a varanda. Passei
várias horas escutando os filhos e os visitantes conversarem sobre a
vida. Sentei num canto, tomando chá, tentando me manter a margem
das conversas. Às vezes me desligava da varanda e absorvia os sons
de Lowtown numa noite de sábado.
O reverendo e o diácono foram embora, deixando apenas os Ruffin
na varanda. A conversa logo se encaminhou para o julgamento e o
veredicto, qual era a reação no outro lado dos trilhos.
— Ele realmente ameaçou o júri? - perguntou Max.
Contei a história, com Esau acrescentando ênfase quando era
necessário. Os irmãos ficaram tão chocados quanto as pessoas que
haviam testemunhado a cena.
— Graças a Deus que ele passará o resto da vida na prisão -
murmurou Bobby.
Não tive coragem de contar a verdade. Todos sentiam o maior
orgulho da mãe, como sempre acontecera.
Eu estava cansado de ouvir falar sobre o julgamento. Saí de lá por
volta de nove horas. Fui guiando devagar, sem rumo certo. Atravessei
Lowtown, sozinho, sentindo muita saudade de Ginger.

Clanton fervilhou de conversas sobre o veredicto por vários dias.


Recebemos dezoito cartas para o editor. Publiquei seis na edição
seguinte. Metade referia-se ao julgamento, o que tornou a situação
ainda pior.
À medida que o verão se arrastava, comecei a pensar que a cidade
nunca pararia de falar sobre Danny Padgitt e Rhoda Kassellaw.
E depois, subitamente, os dois se tornaram história. Num piscar de
olhos, em menos de 24 horas, o julgamento foi esquecido.
Clanton, nos dois lados dos trilhos, tinha coisas muito mais
importantes com que se preocupar.
PARTE DOIS
CAPÍTULO 21
NUMA DECISÃO ABRANGENTE, que não deixava margem para qualquer
dúvida ou protelação, o Supremo Tribunal ordenou o fim imediato do
sistema escolar duplo. Não podia haver mais evasivas, nem ações
judiciais, nem promessas vagas. A integração seria imediata. Clanton
ficou tão chocada quanto todas as outras cidades do Sul.
Harry Rex levou-me o acórdão e tentou explicar suas
complexidades. Não era tão complicado. Cada distrito escolar tinha de
implementar imediatamente um plano de dessegregação.
— Isto venderá alguns jornais - previu ele, o charuto apagado no
canto da boca.
Reuniões de todos os tipos foram realizadas na cidade. Cobri
todas. Numa noite sufocante, em meados de julho, houve uma
reunião pública no ginásio da escola de ensino médio. As
arquibancadas estavam lotadas, a quadra ocupada por pais
preocupados. O sr. Walter Sullivan, o advogado do Times, também
servia como advogado da comissão escolar. Foi ele quem falou quase
tudo, porque não precisava ser eleito para qualquer cargo público. Os
políticos preferiram se esconder por trás dele. Sullivan foi objetivo e
incisivo, declarando que dentro de seis semanas o sistema escolar do
condado de Ford seria aberto e totalmente dessegregado.
Uma reunião menor foi realizada na escola negra, na Burley Street.
Baggy e eu comparecemos, junto com Wiley Meek, que tirou várias
fotos. Mais uma vez, o sr. Sullivan explicou para a multidão o que
estava prestes a acontecer. Seus comentários foram interrompidos
duas vezes por aplausos.
A diferença entre as duas reuniões foi espantosa. Os pais brancos
estavam furiosos e assustados e vi várias mulheres chorando. O dia
fatídico finalmente chegara. Na escola negra, havia um clima de
vitória. Os pais sentiam-se preocupados, mas também exultavam
porque seus filhos seriam finalmente matriculados nas melhores
escolas. Embora ainda tivessem quilômetros a percorrer em habitação,
emprego e saúde, a integração nas escolas públicas era um gigantesco
passo à frente, em sua batalha pelos direitos civis.
Miss Callie e Esau compareceram. Foram tratados com o maior
respeito pelos vizinhos. Seis anos antes, haviam entrado pela porta da
frente da escola branca com Sam e o entregaram como alimento aos
leões. Durante três anos, ele fora o único aluno negro em sua turma. A
família pagara um preço por isso. Agora, parecia que valera a pena,
pelo menos para eles. Sam não estava presente para ser entrevistado.
Houve também uma reunião no santuário da Primeira Igreja
Batista. Brancos apenas, quase todos da classe média alta. Seus
organizadores vinham levantando dinheiro para construir uma
academia particular. Agora, subitamente, a campanha de
levantamento de fundos se tornava mais urgente. Vários médicos e
advogados compareceram, a maioria de sócios típicos de country club.
Seus filhos, ao que parecia, eram bons demais para frequentarem a
escola com crianças negras.
Logo fizeram um plano para aulas abertas numa fábrica
abandonada, ao sul da cidade. O prédio seria arrendado por um ou
dois anos, até que fosse concluída a campanha de arrecadação de
recursos para uma nova escola. Eles se empenhavam em contratar
professores e encomendar livros didáticos, mas a preocupação maior,
além de fugir dos negros, era o que fazer com o time de futebol
americano. Houve momentos em que o clima foi de histeria, como se
um sistema escolar que era 75 por cento branco acarretasse graves
perigos para as crianças.
Escrevi longas reportagens e publiquei manchetes enormes. Harry
Rex tinha razão. O jornal vendia cada vez mais. Ao final de julho de
1970, nossa circulação passava de cinco mil exemplares, uma
reviravolta impressionante. Depois de Rhoda Kassellaw e da
dessegregação, eu compreendia o que meu amigo Nick Diener dissera
em Syracuse:
— Um bom semanário de cidade pequena não imprime jornais.
Imprime dinheiro.
Eu precisava de notícias, que nem sempre encontrava em Clanton.
Numa semana fraca, eu publicava uma reportagem exagerada sobre o
último despacho num recurso de Danny Padgitt. Em geral, saía no
fundo da primeira página e dava a impressão de que o garoto poderia
sair de Parchman a qualquer momento. Não sei se os leitores ainda se
interessavam pelo assunto. No início de agosto, o jornal teve outro
grande impulso, quando Davey Bigmouth Bass explicou-me os rituais
do futebol americano no ensino médio.
Wilson Caudle não se interessava por esportes, o que não teria
tanta importância se todas as demais pessoas em Clanton não
vivessem e morressem com o Cougars na noite de sexta-feira. Ele
relegara Bigmouth para o fundo do jornal e quase nunca publicava
fotos. Farejei dinheiro e o time do Cougars tornou-se notícia de
primeira página.

Minha carreira no futebol americano terminou na nona série, nas


mãos de um ex-fuzileiro sádico, que minha escola contratara por
algum motivo para ser nosso treinador. Memphis em agosto é
tropical; a prática do futebol americano nessa época deveria ser
terminantemente proibida. Eu dava voltas no campo, vestindo todo o
equipamento, inclusive o capacete, num calor de 35°C, com uma
elevada umidade. O treinador, por algum motivo, recusava-se a
permitir que tomássemos um pouco de água. As quadras de tênis
ficavam ao lado do campo. Depois que acabei de vomitar, olhei para
lá e vi duas garotas jogando com dois caras. Com as garotas em cena,
tudo o mais era agradável, mas o que realmente atraiu minha atenção
foram as garrafas de água gelada que eles bebiam sempre que tinham
vontade.
Larguei o futebol americano, passando a me dedicar ao tênis e às
garotas. Nunca me arrependi, por um instante sequer. Como minha
escola só jogava nas tardes de sábado, nunca fui batizado na religião
do futebol americano secundário na noite de sexta-feira.
Felizmente, tornei-me um convertido tardio.

Quando o Cougars reuniu-se para o primeiro treino, Bigmouth e


Wiley estavam presentes para fazer a cobertura. Publicamos na
primeira página uma foto grande de quatro jogadores, dois brancos e
dois negros, e outra do comando da equipe, que incluía um assistente
negro. Bigmouth escreveu uma longa reportagem sobre o time, os
jogadores e as perspectivas... e era apenas a primeira semana de
treino.
Cobrimos o início do ano letivo, inclusive com entrevistas de
estudantes, professores e administradores. Nosso ponto de vista era
otimista. Na verdade, Clanton teve pouco da agitação racial que foi
comum por todo o Deep South quando as aulas recomeçaram,
naquele mês de agosto.
O Times publicou reportagens sobre animadoras de torcida, a
banda, os times da divisão mais jovem... em suma, tudo o que
pudéssemos pensar. E cada reportagem tinha várias fotos. Não sei
quantos estudantes deixaram de aparecer nas páginas do jornal, mas
posso garantir que não foram muitos.
O primeiro jogo foi uma disputa familiar anual, contra Karaway,
uma cidade muito menor, mas que tinha um treinador muito melhor.
Sentei com Harry Rex e gritamos até ficarmos roucos. Os jogos sempre
tinham a lotação esgotada e quase todos os torcedores eram brancos.
Porém, os brancos que se opunham com tanta intransigência à
aceitação de estudantes negros mudaram de repente, naquela noite de
sexta-feira. No primeiro quarto do primeiro jogo nasceu um astro,
quando Ricky Patterson, um garoto negro bem pequeno, capaz de
voar, correu oitenta jardas na primeira vez em que recebeu a bola. Na
segunda vez, correu 45 jardas. Dali por diante, cada vez que ele
recebia a bola, os torcedores levantavam e gritavam. Seis semanas
depois que a ordem de dessegregação alcançou a cidade, vi brancos
tacanhos e intolerantes gritarem como loucos, pulando sem parar,
sempre que Ricky pegava a bola.
Clanton ganhou, 34 x 30, numa partida muito equilibrada. Nossa
cobertura foi a mais desmedida possível. Toda a primeira página foi
dedicada ao jogo. Lançamos uma promoção, Jogador da Semana, com
um prêmio de cem dólares em bolsa de estudo, num fundo que
levamos alguns meses para organizar. Ricky foi o primeiro
contemplado, o que exigiu outra entrevista sua, com mais uma foto.
Quando Clanton ganhou os quatro primeiros jogos, o Times estava
presente para estimular o frenesi. Nossa circulação aumentou para
5.500 exemplares.

Num dia muito quente, no início de setembro, eu atravessava a


praça, seguindo do jornal para o banco. Usava meu traje habitual,
jeans desbotado, camisa de algodão de botões, amarrotada, com as
mangas enroladas, mocassins, sem meias. Tinha 24 anos na ocasião; e
como era dono de uma empresa, desviava pouco a pouco meus
pensamentos da perspectiva de voltar à universidade e seguir uma
carreira tradicional. Tinha os cabelos compridos e ainda me vestia
como um estudante. De um modo geral, pensava pouco no que vestia
e na imagem que projetava.
Essa ausência de preocupação não era partilhada por todos.
O sr. Mitlo pegou-me na calçada e levou-me para sua pequena loja
de roupas.
— Eu esperava por você - disse ele, em seu sotaque forte, um dos
poucos que se ouvia em Clanton.
Ele era húngaro e tinha uma pitoresca história de fuga da Europa,
deixando a família para trás. Constava da minha lista de reportagens
de interesse humano, para aproveitar assim que terminasse a
temporada de futebol americano.
— Olhe só para você!
Ele falou num tom que parecia desdenhoso, assim que parei,
dentro da loja, ao lado de um suporte cheio de cintos. Mas ele sorria, e
sempre se pode descartar a brusquidão de estrangeiros por conta dos
problemas idiomáticos.
Olhei para mim mesmo. Qual seria exatamente o problema? Era
evidente que havia muitos.
— Você é um profissional de nível superior — disse ele. — Um
homem muito importante nesta cidade, mas se veste como se fosse
um... ahn...
Ele coçou o queixo barbudo, enquanto procurava a palavra
apropriada. Tentei ajudar.
— Um estudante.
— Não.
Ele acenou com um dedo indicador para um lado e outro, como se
nenhum estudante pudesse ter uma aparência tão ruim. Desistiu de
encontrar a palavra pejorativa, e continuou na preleção:
— Você é único... quantas pessoas possuem um jornal? É instruído,
o que é raro por aqui. E é do Norte! É jovem, mas não deve parecer
tão... tão imaturo. Precisamos trabalhar sua imagem.
E começamos a trabalhar. Não que eu tivesse muita opção. O sr.
Mitlo era um dos grandes anunciantes do Times, e eu não podia deixar
de dar-lhe atenção. Além do mais, suas palavras faziam sentido. Os
dias de estudante haviam passado, a revolução acabara. Eu escapara
do Vietnã, dos anos 60 e da universidade. Embora ainda não estivesse
preparado para assentar com uma esposa e paternidade, começava a
sentir a minha idade.
— Deve andar de terno — decidiu ele, enquanto passava pelos
cabides com roupas.
Mitlo era capaz de se aproximar do presidente de um banco, no
meio de uma multidão, e tecer comentários sobre a camisa defeituosa,
o terno mal combinado, a gravata feia. Nunca se dera bem com Harry
Rex.
Mas eu não começaria a usar terno cinza e sapatos de bico fino. Ele
pegou um terno azul-claro riscado, uma camisa branca, depois foi
direto para a seção de gravatas. Escolheu uma gravata-borboleta
listrada, em vermelho e dourado.
— Vamos experimentar isto - anunciou ele, quando concluiu sua
seleção. - Ali.
Ele apontou para uma cabine. Por sorte, a loja estava vazia. Eu não
tinha opção.
Não consegui dar o laço na gravata-borboleta. Mitlo adiantou-se e
arrumou num segundo.
— Muito melhor - murmurou ele, examinando o produto acabado.
Contemplei-me no espelho por um longo momento. Não tive
certeza a princípio, mas depois me senti fascinado pela transformação.
Dava-me caráter e individualidade.
Quer eu quisesse ou não, aquela roupa estava prestes a se tornar
minha. Tinha de usá-la pelo menos uma vez.
Para rematar, ele encontrou um chapéu panamá branco, que se
adaptava com perfeição a minha vasta cabeleira. Enquanto ajustava
aqui e ali, ele puxou uma mecha de cabelos por cima da orelha e disse:
— Cabelo demais. Você é um profissional importante. Corte.
Ele ficou de fazer os ajustes na calça e no paletó, além de passar a
camisa. Fui buscar a roupa nova no dia seguinte. Planejava
simplesmente pegar e levar para casa. Esperaria um dia de pouco
movimento na cidade para usá-la. Tencionava seguir direto para a
loja, a fim de mostrar a Mitlo sua criação.
Mas é claro que ele tinha outros planos. Insistiu que eu
experimentasse a roupa. Depois que vesti, insistiu para que eu desse
uma volta pela praça para receber os elogios.
— Estou com muita pressa.
O tribunal comercial estava em sessão, e havia um grande
movimento no centro da cidade.
— Eu insisto.
Mitlo falou em tom dramático, brandindo o dedo, como se não
admitisse qualquer possibilidade de negociação. Depois de ajustar o
chapéu, ele acrescentou o adereço final, um charuto preto e comprido,
que enfiou na minha boca e acendeu com um fósforo.
— Uma imagem de poder - comentou Mitlo, orgulhoso. - O único
dono de jornal da cidade. Agora, saia.
Ninguém me reconheceu até a metade do primeiro quarteirão.
Dois fazendeiros na frente da loja de rações me lançaram um olhar
estranho, mas também não gostei da maneira como eles se vestiam. Eu
me sentia como Harry Rex com o charuto. A diferença é que o meu
estava aceso, e era muito forte. Passei apressado por seu escritório. A
sra. Gladys Wilkins dirigia a agência de seguros do marido. Tinha
cerca de quarenta anos, era muito bonita e estava sempre bem vestida.
Parou de repente, no instante em que me viu.
— Ora, Willie Traynor, você ficou distinto!
— Obrigado.
— Lembra-me Mark Twain.
Continuei a andar, sentindo-me melhor. Duas secretárias tiveram
uma reação de surpresa ao me reconhecerem.
— Adorei a gravata-borboleta - comentou uma delas.
A sra. Claire Ruth Seagraves me deteve para falar sobre uma
matéria que eu escrevera há meses e já esquecera. Enquanto falava, ela
examinou meu terno, a gravata-borboleta e o chapéu. Não se
importou nem mesmo com o charuto.
— Ficou muito bonito, sr. Traynor - comentou ela, ao final,
parecendo um pouco embaraçada pela franqueza.
Fui andando mais e mais devagar ao redor da praça. Cheguei à
conclusão de que Mitlo tinha razão. Eu era dono de um jornal, alguém
importante em Clanton, mesmo que não me sentisse tão importante.
Uma nova imagem era necessária.
Só que teríamos de encontrar charutos mais fracos. Quando
completei a volta pela praça, sentia-me tão tonto que tive de sentar.
O sr. Mitlo encomendou outro terno azul riscado e dois de um
cinza claro. Decidiu que meu guarda-roupa não seria escuro, como de
advogados e banqueiros. Em vez disso, seria claro, fresco e um pouco
anticonvencional. Empenhou-se em me arrumar gravatas-borboletas
exclusivas e tecidos apropriados para o outono e inverno.
Dentro de um mês, Clanton acostumou-se a ter um novo
personagem circulando na praça. Passei a ser notado, especialmente
pelo sexo oposto; Harry Rex riu de mim, mas também suas roupas
eram cômicas.
As mulheres adoraram.
CAPÍTULO 22
AO FINAL DE SETEMBRO, houve duas mortes notáveis, na mesma
semana. A primeira foi a do sr. Wilson Caudle. Ele morreu em casa,
sozinho, no quarto em que se isolara desde o dia em que deixara o
Times. Era estranho que eu não tivesse falado com ele nem uma única
vez nos seis meses desde que comprara o jornal, mas estivera ocupado
demais para me preocupar com isso. Não queria, é verdade, qualquer
conselho de Spot. E, muito triste, não conhecia ninguém que o tivesse
visto ou falado com ele nos últimos seis meses.
Spot morreu numa quinta-feira e foi enterrado no sábado. Na
sexta-feira, fui à loja do sr. Mitlo e tivemos uma sessão de guarda-
roupa, discutindo o traje apropriado de funeral para alguém na minha
posição. Ele insistiu num terno preto e tinha a gravata-borboleta
perfeita para acompanhar. Era estreita, com listras pretas e marrons,
muito distinta, muito respeitosa. O terno vestido, a gravata no lugar,
tive de admitir que a imagem impressionava. Ele pegou um chapéu de
feltro preto em sua coleção pessoal e emprestou-me, orgulhoso, para o
funeral. Dizia com frequência que era uma pena que os homens
americanos não usassem mais chapéu.
O toque final foi uma bengala de madeira, preta, lustrosa. Quando
Mitlo a trouxe, olhei aturdido.
— Não preciso de uma bengala.
Parecia tolice usá-la.
— É um bordão — declarou ele, estendendo a bengala.
— Qual é a diferença?
Mitlo contou uma história confusa sobre o papel crucial que a
bengala - ou bordão, como ele chamava — desempenhara na evolução
da moderna moda masculina europeia. Falou com veemência, e
quanto mais eloquente se tornava, maior era o sotaque, e menos eu
compreendia. Para fazer com que ele se calasse, peguei a bengala.
No dia seguinte, quando entrei na igreja metodista, para o funeral
de Spot, as mulheres ficaram olhando para mim. Alguns homens
também olharam, a maioria especulando o que eu fazia de chapéu
preto e bengala. Num sussurro bastante alto para que eu ouvisse, Stan
Atcavage, meu banqueiro, disse por trás de mim:
— Acho que ele vai cantar e dançar para nós.
— Aposto como ele esteve com Mitlo outra vez — sussurrou
alguém em resposta.
Sem querer bati com a bengala no banco à minha frente, e o
barulho provocou um sobressalto nas pessoas. Não sabia o que se
fazia com uma bengala quando se sentava numa igreja para um
funeral. Prendi-a entre as pernas e pus o chapéu no colo. Projetar a
imagem certa dava trabalho. Olhei para trás e avistei Mitlo. Ele me
fitava com uma expressão radiante.
O coro começou a cantar “Amazing Grace”, e todos entramos num
clima triste. O reverendo Clinkscale enunciou os dados básicos do sr.
Caudle: nascido em 1896, o único filho de nossa amada Miss Emma
Caudle, um viúvo sem filhos, veterano da I Guerra Mundial, e por
mais de cinquenta anos editor do jornal semanal do condado. Ali, ele
elevara os obituários a uma forma de arte, o que seria para sempre sua
garantia de fama.
O reverendo arengou mais um pouco e depois uma solista rompeu
a monotonia. Era o meu quarto funeral desde que chegara a Clanton.
Exceto pelo de minha mãe, eu nunca havia comparecido a nenhum
antes. Eram eventos sociais na pequena cidade e com frequência eu
ouvia comentários como:
— Não foi um serviço adorável?
Ou então:
— Vamos nos encontrar no funeral.
E o meu predileto:
— Ela teria adorado.
“Ela”, é claro, referia-se à falecida.
As pessoas tiravam uma folga no trabalho e usavam suas melhores
roupas. Se você não comparecia a funerais, era considerado esquisito.
Como eu já tinha muitas esquisitices em meu detrimento, estava
disposto a homenagear os mortos da maneira apropriada.

A segunda morte ocorreu mais tarde, naquela noite. Quando eu


soube, na segunda-feira, voltei imediatamente ao meu apartamento e
peguei a arma.
Malcolm Vince levara dois tiros na cabeça quando deixava um bar
numa parte remota do condado de Tishomingo. Era um condado seco,
como se chamavam os lugares em que era proibida a venda de
bebidas alcoólicas, e era por isso que o bar ficava escondido no meio
do mato.
Não houve testemunhas do assassinato. Malcolm estivera bebendo
cerveja e jogando sinuca. Comportava-se direito, de um modo geral,
sem causar qualquer problema. Dois conhecidos contaram à polícia
que Malcolm deixara o bar por volta de onze horas da noite, depois de
passar três horas ali. Parecia muito animado e não estava de porre.
Despedira-se e saíra. Segundos depois, eles ouviram os tiros. Tinham
quase certeza de que Malcolm não estava armado.
O bar ficava no final de uma estradinha de terra. A cerca de meio
quilômetro de distância, na entrada da estradinha, havia um sentinela
com uma espingarda. Em teoria, sua função era alertar o dono se a
polícia ou homens suspeitos se aproximassem. Tishomingo ficava no
limite do estado, e já tivera problemas com marginais do Alabama. Os
bares ilegais figuravam entre os lugares prediletos para acerto de
contas. O sentinela ouvira os disparos que mataram Malcolm, mas
garantia que nenhum carro ou picape fugira do local em seguida.
Qualquer veículo teria de passar por ele.
Quem matara Malcolm viera pelo mato, a pé, e executara-o.
Conversei com o xerife do condado de Tishomingo. Ele achava que
alguém estava atrás de Malcolm. Fora um crime de vingança, não a
variedade corriqueira que decorre de uma briga em bar daquele tipo.
— Alguma ideia de quem podia estar atrás do sr. Vince? -
perguntei, na esperança desesperada de que Malcolm tivesse feito
alguns inimigos no outro condado.
— Nenhuma. O garoto não viveu aqui muito tempo.
Passei dois dias com a arma no bolso. Depois, outra vez, acabei me
cansando. Se os Padgitt quisessem me liquidar, ou um dos jurados, ou
o juiz Loopus, ou Ernie Gaddis, ou qualquer um que considerassem
culpado de mandar Danny para a prisão, havia bem pouco que
pudéssemos fazer para impedir.

O jornal foi dedicado, naquela semana, ao sr. Wilson Caudle.


Peguei algumas fotos antigas nos arquivos e as publiquei na primeira
página. Havia depoimentos, histórias e muitos anúncios de
condolências pagos por seus inúmeros amigos. Depois, repeti tudo o
que já dissera a seu respeito no mais longo obituário na história do
jornal.
Spot merecia.
Eu não sabia o que fazer com a notícia da morte de Malcolm Vince.
Ele não era residente no condado de Ford e por isso não tinha direito
incontestável a um obituário. Nossas regras não eram muito flexíveis
nessa questão. Um cidadão fordiano proeminente que se mudara para
outro condado ainda podia se qualificar para um obituário, mas
obviamente haveria o que escrever a seu respeito. Alguém que apenas
passara pelo condado, não tinha família ali e pouco contribuira para o
nosso progresso não podia se qualificar. Era o caso de Malcolm Vince.
Se eu exagerasse na notícia, os Padgitt teriam a satisfação de
intimidar ainda mais o condado. Eles voltariam a nos deixar
apavorados. (Entre os que tomaram conhecimento do crime, ninguém
acreditava que pudesse ter sido cometido por outras pessoas que não
os Padgitt. )
Mas se eu ignorasse a notícia, estaria demonstrando medo e me
esquivando de minha responsabilidade como jornalista. Baggy achava
que era notícia para a primeira página, mas não havia mais espaço
quando concluí a nossa despedida para o sr. Caudle. Publiquei a
notícia no alto da terceira página, com o título de TESTEMUNHA DO CASO
PADGITT ASSASSINADA NO CONDADO DE TISHOMINGO. Meu primeiro título
fora MALCOLM VINCE ASSASSINADO NO CONDADO DE TISHOMINGO, mas
Baggy achou que deveríamos usar o nome Padgitt junto com a
palavra “assassinado”. A reportagem tinha trezentas palavras.
Fui até Corinth para tentar descobrir alguma coisa. Harry Rex me
deu o nome do advogado de divórcio de Malcolm, Pud Perryman. Seu
escritório era na Main Street, entre uma barbearia e uma costureira
chinesa. Assim que abri a porta, compreendi que o sr. Perryman era o
advogado de menos sucesso que poderia conhecer. O escritório
recendia a casos perdidos, clientes insatisfeitos e contas não pagas. O
tapete era manchado e puído. Os móveis eram sobras dos anos 50. Um
nevoeiro rançoso de fumaça de cigarro, nova e antiga, pairava em
camadas, perigosamente próximo de minha cabeça.
A própria pessoa do Sr. Perryman não exibia qualquer sinal de
prosperidade. Tinha em torno de 45 anos, barrigudo, desleixado, a
barba por fazer, os olhos injetados. A última ressaca ainda não passara
por completo. Ele me informou que era um especialista em divórcio e
direito de propriedade, o que deveria me impressionar. Mas ele não
cobrava o suficiente ou só atraía clientes que tinham muito pouco para
vender e ainda menos por que brigar.
Não via Malcolm fazia um mês, disse ele, enquanto procurava pela
pasta na mesa que mais parecia um vazadouro de lixo. O divórcio não
chegara a ser consumado. Seus esforços para entrar num acordo com o
advogado de Lydia haviam sido em vão.
— Ela sumiu - comentou Perryman.
— Como?
— Foi embora. Fez as malas depois que o julgamento acabou e caiu
na estrada. Desapareceu por completo.
Eu não estava muito interessado com o que acontecera com Lydia.
Minha preocupação era quem atirara em Malcolm. Pud ofereceu duas
teorias básicas, mas ambas se esfumaram depois de algumas
perguntas. Ele me lembrava Baggy, um frequentador do tribunal local
que inventava um rumor se não ouvia nenhum novo no prazo de uma
hora.
Lydia não tinha namorados, irmãos ou qualquer outra pessoa que
pudesse querer atirar em Malcolm na violência de um divórcio
litigioso. E ainda não havia um divórcio, é claro. A briga, se houvesse,
ainda nem começara.
O sr. Perryman dava a impressão de alguém que preferia
conversar e contar mentiras durante o dia inteiro, em vez de cuidar de
seus arquivos. Passei quase uma hora em seu escritório. Quando
consegui finalmente me retirar, saí correndo em busca de ar fresco.
Guiei por trinta minutos até Iuka, a sede do condado de
Tishomingo, onde encontrei o xerife Spinner a tempo de lhe pagar o
almoço. Enquanto comíamos uma galinha frita, num café lotado, ele
me forneceu todos os detalhes sobre o assassinato. Fora cometido por
alguém que conhecia bem a área e não deixara pistas. A arma fora
uma 44 Magnum. Os dois tiros praticamente arrancaram a cabeça de
Malcolm. Num gesto dramático, ele tirou sua arma do coldre.
— Esta arma é uma 44.
Era duas vezes mais pesada que a minha modesta arma. Quase me
fez perder o apetite.
Haviam falado com todos os conhecidos de Malcolm que puderam
encontrar. Ele residia no condado havia cerca de cinco meses. Não
tinha ficha na polícia, nenhuma prisão, nenhuma ocorrência de briga,
jogo de dados, perturbação da ordem pública, desavença em bar. Ia ao
bar no meio do mato uma vez por semana. Jogava sinuca, tomava
cerveja e nunca elevava a voz. Não havia contas ou empréstimos com
mais de sessenta dias de atraso. Parecia não haver ligações ilícitas ou
maridos ciumentos.
— Não consigo encontrar um motivo - disse o xerife. - Não faz
sentido.
Falei sobre o depoimento de Malcolm no julgamento de Padgitt,
sobre a maneira como Danny ameaçara o júri. O xerife escutou
atentamente e pouco disse depois. Tive a nítida impressão de que ele
queria permanecer no condado de Tishomingo, sem se envolver com
os Padgitt.
— Esse pode ter sido o motivo — comentei, ao final.
— Vingança?
— Isso mesmo. São pessoas violentas.
— Já ouvi. Acho que temos sorte por não estar naquele júri, não é
mesmo?
Enquanto voltava para Clanton, não pude apagar a imagem do
rosto do xerife ao fazer o comentário. Não havia mais a arrogância de
um homem da lei bem armado. Spinner sentia-se grato por estar a
dois condados de distância, e não ter nada a ver com os Padgitt.
Sua investigação acabara. Caso encerrado.
CAPÍTULO 23
O ÚNICO JUDEU EM CLANTON era o sr. Harvey Kohn, um homem
pequeno, elegante e ativo, que vendia sapatos e bolsas de mulher
havia décadas. Sua loja ficava na praça, ao lado do escritório de
advocacia de Sullivan, numa fileira de prédios que ele comprara
durante a Depressão. Era viúvo e os filhos haviam deixado Clanton
depois do ensino médio. Uma vez por mês, o sr. Kohn ia de carro a
Tupelo, para orar na sinagoga mais próxima.
A Kohns Shoes visava a parte superior do mercado, o que era no
mínimo arriscado, numa cidade pequena como Clanton. As poucas
mulheres ricas da cidade preferiam fazer compras em Memphis, onde
podiam pagar preços mais altos e falar a respeito quando voltassem
para casa. Para tornar seus sapatos atraentes, o sr. Kohn cobrava
preços absurdos, para depois oferecer enormes descontos. Assim, as
mulheres locais podiam apregoar o preço que quisessem quando
exibiam suas últimas aquisições.
Ele cuidava da loja sozinho, abrindo cedo e ficando até tarde, em
geral com a ajuda de um estudante, em meio expediente. Dois anos
antes de minha chegada a Clanton, ele contratara um garoto negro de
dezesseis anos, chamado Sam Ruffin, para desencaixotar as
mercadorias, pegar sapatos no estoque, limpar tudo, atender ao
telefone. Sam mostrou-se inteligente e esforçado. Era cortês, diligente
e vestia-se bem. Não demorou muito para que merecesse a confiança
do sr. Kohn e passasse a cuidar da loja quando ele ia para casa, todos
os dias, exatamente às ll:45h, para um rápido almoço e um longo
cochilo.
Uma mulher chamada Iris Durant apareceu um dia na loja, por
volta de meio-dia. Encontrou Sam sozinho. Iris tinha 41 anos e era
mãe de dois adolescentes, um deles na turma de Sam, na Clanton
High. Razoavelmente atraente, gostava de flertar e usar minissaias.
Costumava escolher seus sapatos entre o inventário mais exótico do
sr. Kohn. Experimentou quase duas dúzias de pares, sem comprar
nada, sem a menor pressa. Sam conhecia bem a mercadoria e tomava
o maior cuidado com os pés de Iris.
Ela voltou no dia seguinte, na mesma hora, a saia mais curta, a
maquiagem mais intensa. Descalça, seduziu Sam na mesa do sr. Kohn,
no pequeno escritório, atrás da caixa registradora. Começou, assim,
um relacionamento ardente, que mudaria a vida de ambos.
Iris ia à sapataria várias vezes por semana. Sam encontrou um
lugar mais confortável, um velho sofá na sobreloja. Trancava a porta
da frente por quinze minutos, apagava as luzes e se apressava.
O marido de Iris era sargento na Patrulha Rodoviária do
Mississippi. Alarmado com a quantidade de sapatos novos no closet
da mulher, ele ficou desconfiado. Com Iris, a suspeita era um estilo de
vida.
Ele contratou Harry Rex para investigar. Um escoteiro de dez anos
poderia descobrir os amantes. Por três dias consecutivos, Iris entrou
na Kohn's na mesma hora; por três dias consecutivos, Sam trancou a
porta da frente, olhando ansioso para todos os lados; por três dias
consecutivos, as luzes foram apagadas etc. No quarto dia, Harry Rex e
Rafe entraram pelos fundos da loja. Ouviram barulhos lá em cima.
Rafe foi até o ninho de amor, e em cinco segundos tinha provas
suficientes contra os dois.
O sr. Kohn despediu Sam uma hora depois. Harry Rex entrou com
a ação de divórcio naquela tarde. Iris foi levada mais tarde para o
hospital, com cortes, contusões e o nariz quebrado. O marido
espancara-a com os punhos até deixá-la inconsciente. Depois do
anoitecer, três patrulheiros uniformizados bateram na porta da casa
de Sam, em Lowtown. Comunicaram aos pais que ele era procurado
pela polícia por causa de uma vaga acusação de roubo na Kohn's. Se
condenado, ele poderia pegar vinte anos de prisão. Também disseram,
extraoficialmente, que Sam fora surpreendido fazendo sexo com uma
branca, esposa de outro homem, e por isso havia um contrato para sua
morte. Cinco mil dólares.
Iris deixou a cidade, em desgraça, divorciada, sem os filhos e com
medo de voltar.
Eu ouvira versões diferentes da história de Sam. Era fofoca antiga
quando cheguei em Clanton, mas ainda bastante sensacional para
aflorar em muitas conversas. No Sul, não era excepcional que os
homens brancos tivessem negras como amantes, mas o caso de Sam
era o primeiro documentado de uma mulher branca cruzando a
fronteira da cor em Clanton.
Fora Baggy quem me contara a história. Harry Rex confirmara a
maior parte.
Miss Callie recusava-se a falar a respeito. Sam era o caçula e não
podia voltar para casa. Fugira, abandonara a escola no ensino médio e
passara os dois últimos anos vivendo à custa dos irmãos e irmãs.
Agora, ele me telefonara.
Fui ao tribunal e vasculhei as gavetas de processos antigos. Não
encontrei qualquer registro de um indiciamento contra Sam Ruffin.
Perguntei ao xerife Coley se tinha um mandado de prisão ainda em
vigor. Ele esquivou-se à pergunta. Queria saber por que eu remexia
num caso tão antigo. Indaguei se Sam seria preso se voltasse para
casa. Mais uma vez, não tive uma resposta direta.
— Tome cuidado, sr. Traynor - advertiu ele, mas sem dar qualquer
explicação.
Procurei Harry Rex e perguntei sobre o contrato, agora lendário,
para a morte de Sam. Ele descreveu seu cliente, sargento Durant,
como um antigo fuzileiro, um exímio atirador com vários tipos de
armas, um policial de carreira, um homem estourado. Ficara
profundamente embaraçado com a infidelidade de Iris e achava que a
única saída honrosa era matar o amante. Pensara em matá-la, mas não
queria ir para a prisão. Concluira que era mais seguro matar um
garoto negro. Um júri no condado de Ford seria mais indulgente com
esse crime.
— E ele quer matá-lo pessoalmente — explicou Harry Rex. -
Poderá, assim, poupar os cinco mil dólares.
Harry Rex adorou quando me deu essa notícia sinistra, mas depois
admitiu que já fazia um ano e meio que não via seu cliente. Não tinha
certeza se o sr. Durant tornara a casar.

Na quinta-feira, ao meio-dia, sentamos a mesa na varanda e


agradecemos ao Senhor pela deliciosa refeição que estávamos prestes
a receber. Esau não pudera deixar o trabalho.
À medida que os produtos da horta amadureciam, com o avanço
do verão, desfrutávamos de muitos almoços vegetarianos. Tomates
vermelhos e amarelos, pepinos e cebolas no vinagrete, feijão-
manteiga, ervilha, quiabo, abóbora, batatas cozidas, milho no sabugo e
sempre o pão de milho quente. Agora, com o ar se tornando mais frio
e as folhas começando a cair, Miss Callie passou a preparar pratos
mais substanciosos, como ensopado de pato, guisado de cordeiro,
chili, feijão com arroz e linguiça, além do prato sempre repetido, a
carne assada.
O almoço naquele dia foi galinha e bolinhos. Eu comia devagar,
um hábito que ela me estimulara a adquirir. Já estava na metade do
prato quando anunciei:
— Sam me telefonou, Miss Callie.
Ela fez uma pausa, engoliu em seco e perguntou:
— Como ele está?
— Muito bem. Quer voltar para casa no Natal. Disse que todo o
mundo voltará e quer vir também.
— Sabe onde ele está?
— Você sabe?
— Não.
— Ele está em Memphis. Devemos nos encontrar lá amanhã.
— Por que vai se encontrar com Sam?
Ela parecia muito desconfiada do meu envolvimento.
— Ele me pediu para ajudá-lo. Max e Bobby lhe falaram sobre
nossa amizade. Ele acha que sou um branco em que pode confiar.
— Pode ser perigoso.
— Para quem?
— Para ambos.
O médico estava preocupado com o peso de Miss Callie. Às vezes
ela também se preocupava, mas nem sempre. A notícia sobre Sam
proporcionou-lhe um motivo para parar de comer. Dobrou o
guardanapo e começou a falar.
Sam deixou Clanton no meio da noite, num ônibus da Grey-
hound, a caminho de Memphis. Ligou para Callie e Esau quando
chegou lá. No dia seguinte, um amigo seguiu de carro para Memphis,
levando dinheiro e roupas. Enquanto a história de Iris espalhava-se
rapidamente pela cidade, Callie e Esau ficaram convencidos de que o
filho caçula estava prestes a ser assassinado por policiais. Carros da
patrulha rodoviária passavam por sua casa a todas as horas do dia e
da noite. Havia telefonemas anônimos, com ameaças e xingamentos.
O sr. Kohn entrou com uma petição no tribunal. A data da
audiência veio e passou sem que Sam aparecesse. Miss Callie nunca
vira um indiciamento oficial, mas também não sabia como era o
documento.
Memphis parecia muito perto e por isso Sam foi para Milwaukee,
onde se escondeu com Bobby por alguns meses. Havia dois anos que
ele vagueava de um irmão para outro, sempre viajando à noite,
sempre com medo de ser apanhado a qualquer momento. Os Ruffin
mais velhos ligavam para casa com frequência e escreviam uma vez
por semana, mas tinham medo de mencionar Sam. Alguém podia
estar escutando.
— Ele errou ao se envolver com uma mulher daquele jeito. -Miss
Callie tomou um gole do chá. Eu arruinara o seu almoço, mas não o
meu. - Mas ele era muito jovem. E não deu em cima da mulher.

No dia seguinte, tornei-me o intermediário extraoficial entre Sam


Ruffin e seus pais.
Nosso encontro foi num café num centro comercial ao sul de
Memphis. De algum lugar, à distância, ele me observou esperar por
meia hora, antes de surgir do nada e sentar na minha frente. Dois anos
em fuga haviam lhe ensinado algumas manobras.
O rosto jovem exibia a tensão da vida em fuga. Por hábito, ele
olhava a todo instante para a esquerda e direita. Fazia um tremendo
esforço para manter contato visual, mas só conseguia fazê-lo por
alguns segundos. Não era de surpreender que falasse baixo, fosse
articulado e polido. E muito grato por eu me mostrar disposto a
avaliar a possibilidade de ajudá-lo.
Agradeceu-me pelas cortesias e a amizade que eu demonstrava
com sua mãe. Bobby, em Milwaukee, mostrara-lhe as reportagens do
Times. Conversamos sobre os irmãos, os deslocamentos dele da UCLA
para Duke, e depois Toledo e Grinnell, em Iowa. Ele não poderia
continuar a viver assim por muito mais tempo. Sentia-se desesperado
por uma solução para a confusão em Clanton, a fim de recomeçar sua
vida normal. Estava concluindo o ensino médio em Milwaukee e
planejava ingressar na faculdade de direito. Mas não poderia fazê-lo
se continuasse a viver como um fugitivo.
— Há muita pressão em cima de mim - comentou ele. - Sete
irmãos, sete Ph.Ds.
Descrevi minha busca infrutífera por um indiciamento, as
perguntas ao xerife Coley e a conversa com Harry Rex sobre o ânimo
atual do sr. Durant. Sam agradeceu-me profusamente pelas
informações e por minha disposição para me envolver no caso.
— Não há ameaça de ser preso - assegurei. - Mas há a ameaça de
levar um tiro.
— Prefiro ser preso.
— Eu também.
— Ele é um homem muito assustado - comentou Sam, referindo-se
ao sr. Durant.
Ele contou uma história, sem entrar em detalhes. Iris vivia agora
em Memphis. Sam mantivera contato. Ela dissera coisas horríveis
sobre o ex-marido e os dois filhos adolescentes, as ameaças que
haviam feito. Não seria bem recebida em nenhum lugar do condado
de Ford. E sua vida também corria perigo. Os meninos haviam
declarado várias vezes que a odiavam e nunca mais queriam vê-la.
Era uma mulher abalada, angustiada pela culpa, vítima de um
colapso nervoso.
— E tudo é culpa minha - declarou Sam. — Fui criado melhor.
O encontro durou duas horas e combinamos que tornaríamos a
nos encontrar dentro de duas semanas. Ele me entregou duas cartas
extensas que escrevera para os pais e nos despedimos. Sam
desapareceu no meio da multidão de compradores. Não pude deixar
de fazer algumas especulações. Onde um garoto de dezoito anos se
esconde? Como ele viaja, como vai de um lugar para outro? Como
sobrevive no dia a dia? E Sam não era um garoto de rua, que
aprendera a viver pela esperteza e os punhos.

Relatei para Harry Rex nosso encontro em Memphis. Meu objetivo


era persuadir o sr. Durant a deixar Sam em paz.
Como eu vivia sob a suposição de que meu nome constava de uma
lista dos que não eram muito favorecidos na Ilha Padgitt, não queria
que fosse incluído também em alguma outra lista. Pedi a Harry Rex
que jurasse sigilo, e não tive dificuldade em acreditar que protegeria
meu papel como intermediário.
Sam concordaria em deixar o condado de Ford, terminar o ensino
médio no Norte, continuar por lá enquanto fazia a universidade,
provavelmente passar o resto de sua vida. O garoto queria apenas
poder ver os pais, fazer breves visitas a Clanton e ser capaz de viver
sem olhar para trás.
Harry Rex não gostava da situação e não queria se envolver. Mas
prometeu transmitir a mensagem ao sr. Durant. Só que não estava
nem um pouco otimista com a possibilidade de encontrar um ouvido
receptivo.
— Ele é um filho da puta nojento - disse Harry Rex, mais de uma
vez.
CAPÍTULO 24
NO INÍCIO DE DEZEMBRO, voltei ao condado de Tishomingo para uma
nova conversa com o xerife Spinner. Não fiquei surpreso ao saber que
não havia nenhuma novidade na investigação sobre o assassinato de
Malcolm Vince. Mais de uma vez, ele descreveu-o como um “crime
limpo”, sem pistas, em que havia apenas um cadáver e duas balas,
cuja origem era quase impossível descobrir. Seus homens haviam
conversado com todos os possíveis amigos, conhecidos e colegas de
trabalho, sem encontrarem ninguém que soubesse de algum motivo
para que Malcolm tivesse um fim tão violento.
Spinner também conversara com o xerife Mackey Don Coley.
Como era de se esperar, nosso xerife duvidara de que o assassinato
tivesse qualquer relação com o julgamento de Padgitt no condado de
Ford. Parecia que os dois xerifes haviam combinado uma história e
por isso fiquei aliviado quando Spinner comentou:
— O velho Coley não seria capaz de prender alguém atravessando
a Main Street fora do sinal.
Soltei uma risada estrondosa, para depois acrescentar, prestativo:
— Tem razão. Ele e os Padgitt são amigos há muito tempo.
— Contei que você veio bisbilhotar aqui. E ele disse: “Aquele
garoto vai acabar se dando mal. ” Achei que você gostaria de saber.
— Obrigado. Coley e eu vemos as coisas de maneiras diferentes.
— Faltam poucos meses para a eleição.
— Isso mesmo. E já soube que Coley terá dois ou três adversários.
— Basta um.
Mais uma vez, Spinner prometeu que me ligaria se houvesse
algum fato novo. Mas ambos sabíamos que isso não aconteceria.
Deixei Iuka e fui para Memphis.
O patrulheiro Durant ficou bastante satisfeito ao saber que suas
ameaças ainda pairavam sobre a cabeça de Sam Ruffin. Harry Rex
informou que o garoto continuava fugindo, mas queria
desesperadamente voltar para casa e ver a mãe.
Durant não tornara a casar. Vivia sozinho, amargurado, ainda
embaraçado pela aventura extra conjugal da mulher. Disse para Harry
Rex que sua vida fora destruída. Pior ainda, os dois filhos foram
submetidos a zombarias e insultos pelo que a mãe fizera. Os garotos
brancos na escola escarneciam deles todos os dias. Os garotos negros,
seis novos colegas na Clanton High, mostravam-se presunçosos e
faziam piadinhas a respeito.
Os dois meninos também eram atiradores exímios e ávidos
caçadores. Os três Durant haviam jurado que meteriam uma bala na
cabeça de Sam se ele lhes desse a oportunidade. Sabiam exatamente
onde os Ruffin moravam em Lowtown. Durant comentou sobre a
peregrinação anual que muitos negros do Norte faziam até o Sul, na
época do Natal.
— Se aquele garoto tentar voltar para casa às escondidas,
estaremos esperando - garantiu ele a Harry Rex.
Também reservou algum veneno para mim, por causa de minhas
reportagens efusivas sobre Miss Callie e seus filhos mais velhos.
Adivinhou corretamente que eu era o contato da família com Sam.
— É melhor não se envolver nessa confusão — advertiu-me Harry
Rex, depois da conversa com Durant. — A história é sórdida e
perigosa.
Eu não me sentia nem um pouco ansioso em ter alguém sonhando
com a minha morte dolorosa.
Tornei a me encontrar com Sam numa parada de caminhões no
Tennessee, a um quilômetro e meio da fronteira. Miss Callie mandara
bolos, tortas, cartas e algum dinheiro, numa enorme caixa de papelão,
que ocupou todo o outro banco do Spitfire. Era a primeira vez, em
dois anos, que ela conseguia fazer algum contato com o filho. Sam
tentou ler uma das cartas, mas ficou emocionado e tornou a metê-la
no envelope.
— Estou morrendo de saudade...
Ele enxugou lágrimas enormes, ao mesmo tempo em que tentava
escondê-las dos caminhoneiros que comiam ao redor. Era apenas um
menino perdido e assustado.
Com uma franqueza brutal, relatei a conversa com Harry Rex. Sam
pensara, ingenuamente, que a oferta de se manter longe do condado
de Ford, fazendo apenas visitas ocasionais, seria aceita pelo sr.
Durant. Tinha pouca noção do ódio que inspirara. Mas parecia
compreender o perigo.
— Ele vai matá-lo, Sam - declarei, solene.
— E escapará impune, não é mesmo?
— Que diferença isso faria para você? Estaria morto de qualquer
maneira. E Miss Callie prefere que você esteja vivo no Norte a morto
no cemitério de Clanton.
Combinamos que teríamos um novo encontro dentro de duas
semanas. Ele estava fazendo suas compras de Natal e teria presentes
para os pais e o resto da família.
Nós nos despedimos e deixamos o restaurante. Eu estava quase em
meu carro quando decidi voltar para ir ao banheiro. Ficava atrás de
uma elegante loja de presentes, ao lado do restaurante. Olhei pela
janela e avistei Sam, cauteloso, entrar num carro dirigido por uma
mulher branca. Parecia mais velha, com quarenta e poucos anos. Iris,
presumi. Algumas pessoas nunca aprendem.

O clã Ruffin começou a chegar três dias antes do Natal. Miss Callie
começara a cozinhar uma semana antes. Pediu-me para ir ao armazém
duas vezes, a fim de buscar suprimentos de emergência. Fui logo
adotado pela família e recebi privilégios integrais, o mais alto dos
quais era comer quando e qualquer coisa que quisesse.
Crescendo naquela casa, a vida das crianças se concentrara em
tomo dos pais, uns dos outros, da Bíblia e da mesa da cozinha. E, nos
feriados, havia sempre um prato fresco de alguma coisa na mesa, com
mais dois ou três em final de preparo no fogão ou no forno. O anúncio
de que: “As tortas de nozes estão prontas! ”, irradiava ondas de
choque pela pequena casa, através da varanda, alcançando até mesmo
a rua. A família reunia-se à mesa. Esau agradecia ao Senhor, mais uma
vez, por sua família e pela saúde de todos, pela comida que estavam
prestes a “compartilhar”; depois, as tortas eram cortadas em fatias
grossas, postas em pratos e levadas em todas as direções.
O mesmo ritual ocorria com as tortas de abóbora, tortas de coco,
tortas de morango, a lista se prolongando, interminável. E as tortas
eram apenas para os lanches feitos entre as refeições principais.
Ao contrário da mãe, os filhos e filhas não eram nem um pouco
corpulentos. E logo descobri o motivo. Queixaram-se de que não
conseguiam mais comer assim. Nos lugares em que viviam, a comida
era insípida, quase sempre congelada, de produção em massa. Havia
muitas comidas étnicas que eles não conseguiam digerir. E as pessoas
sempre comiam às pressas. A lista de reclamações aumentava sem
parar.
Meu pressentimento foi o de que haviam sido tão mimados pela
cozinha de Miss Callie que nada mais poderia ficar à altura.
Carlota, solteira e professora de estudos urbanos na UCLA, era
bastante engraçada quando contava histórias sobre as últimas e
exóticas tendências alimentares na Califórnia. Os alimentos crus eram
a moda atual. O almoço era um prato de cenoura e aipo crus, engolido
com a ajuda de um chá de ervas bem quente.
Gloria, professora de italiano em Duke, era considerada a mais
afortunada entre os sete irmãos, porque ainda permanecia no Sul. Ela
e Miss Callie comparavam receitas para iguarias diferentes, como pão
de milho, o ensopado Brunswick (no início com carne de esquilo,
agora de coelho ou galinha, com feijão de lima, milho, tomate, cebola e
outros ingredientes), até mesmo couve picada. As conversas muitas
vezes se tornavam sérias, com os homens oferecendo opiniões e
observações, uma discussão irrompendo em algumas ocasiões.
Depois de um almoço de três horas, Leon (Leonardo), professor de
biologia em Purdue, chamou-me para dar uma volta. Era o segundo
mais velho, e tinha um ligeiro ar acadêmico, que os outros haviam
conseguido evitar. Usava barba, fumava cachimbo, vestia um blazer
de tweed com proteção nos cotovelos e seu vocabulário devia exigir
horas de prática.
Circulamos pelas ruas de Clanton em seu carro. Ele queria saber
sobre Sam, e contei tudo. Em minha opinião, o que quer que valesse,
seu retorno ao condado de Ford seria muito perigoso.
Leon queria saber também sobre o julgamento de Danny Padgitt.
Eu enviara exemplares do Times para todos os Ruffin. Uma das
matérias de Baggy enfatizara a ameaça de Danny aos jurados. A
citação exata fora destacada: “Vocês me condenam, e pegarei cada um
de vocês. ”
— Algum dia ele sairá da prisão? — perguntou Leon.
— Acho que sim - respondi, relutante.
— Quando?
— Ninguém sabe. Recebeu perpétua pelo homicídio, perpétua pelo
estupro. Dez anos no mínimo para cada pena. Fui informado, porém,
de que coisas estranhas acontecem no sistema de livramento
condicional do Mississippi.
— Quer dizer que será um mínimo de vinte anos?
Tenho certeza de que ele estava pensando na idade da mãe. Miss
Callie tinha 59 anos.
— Ninguém tem certeza. Há a possibilidade de bom
comportamento, o que reduz o mínimo.
Ele parecia tão confuso com isso quanto eu ficara. A verdade era
que ninguém relacionado com o sistema judiciário ou o sistema penal
fora capaz de responder às minhas perguntas sobre a sentença de
Danny. O livramento condicional no Mississippi era um vasto abismo
escuro e eu tinha medo de chegar muito perto.
Leon me disse que interrogara a mãe com alguma insistência sobre
o veredicto. Para ser mais específico, ela votara pela prisão perpétua
ou a favor da pena de morte? A resposta de Miss Callie fora a de que
os jurados haviam prometido que manteriam as deliberações em
sigilo.
— O que você sabe? - perguntou ele.
Eu não sabia muita coisa. Miss Callie insinuara para mim que não
concordara com o veredicto, mas não havia nada definido.
Houve uma avalanche de especulações nas semanas seguintes ao
veredicto. A maioria dos frequentadores regulares do tribunal ficou
com a teoria de que três - ou talvez quatro - dos jurados haviam se
recusado a votar pela pena de morte. De um modo geral, considerava-
se que Miss Callie não fazia parte desse grupo.
— Os Padgitt conseguiram convencê-los? — perguntou Leon.
Entrávamos nesse momento no caminho longo e arborizado
da Clanton High School.
— Essa é a teoria predominante. Mas ninguém sabe com certeza. A
última pena de morte para um réu branco neste condado foi aplicada
há quarenta anos.
Ele parou o carro. Olhamos para as imponentes portas de carvalho
da escola.
— Finalmente a escola foi integrada - murmurou Leon.
— É verdade.
— Nunca pensei que veria esse dia. - Ele sorriu, com uma
profunda satisfação. - Eu costumava sonhar em estudar nesta escola.
Meu pai trabalhava como zelador aqui quando eu era pequeno. Eu
vinha com ele nas manhãs de sábado. Andava pelos longos
corredores, fascinado, porque tudo era perfeito. Compreendia por que
não era bem-vindo aqui, mas nunca aceitei.
Não havia muita coisa que eu pudesse acrescentar ao comentário.
Por isso, limitei-me a escutar. Ele parecia mais triste do que
amargurado.
Finalmente saímos de lá. Tornamos a atravessar os trilhos. De
volta a Lowtown, Fiquei impressionado com a quantidade de carros
com placas de outros estados estacionados nas ruas. Enormes famílias
sentavam nas varandas, apesar do frio, crianças brincavam nos
quintais e nas ruas. Outros carros chegaram, todos com pacotes de
presentes, visíveis pelas janelas traseiras.
— O lar é o lugar em que a mãe está - comentou Leon. - E todo o
mundo volta para o lar no Natal.
Ao pararmos, perto da casa de Miss Callie, Leon agradeceu-me por
ter feito amizade com sua mãe.
— Ela fala de você o tempo todo.
— E tudo por causa do almoço.
Ambos rimos. Sentimos no portão da frente o novo aroma que a
casa exalava. Leon ficou imóvel, aspirou fundo e disse:
— Torta de abóbora.
A voz da experiência.
Em ocasiões diversas, cada um dos sete professores agradeceu-me
pela amizade com Miss Callie. Ela partilhara sua vida com muitas
pessoas, tivera grandes amigos, mas durante mais de oito meses
apreciava em particular o tempo que passava comigo.
Deixei-os ao final da tarde, na véspera do Natal, quando a família
se preparava para a ida a igreja. Depois, haveria a distribuição de
presentes e cantos. Havia mais de vinte Ruffin hospedados na casa; eu
não podia imaginar onde todos eles dormiam, mas tinha a impressão
de que ninguém se importava com isso.
Por mais aceito que eu fosse, senti a necessidade de deixá-los em
algum momento. Mais tarde, haveria abraços e lágrimas, canções e
histórias. Tinha certeza de que eles não se importavam que eu
experimentasse tudo, mas sabia que havia ocasiões em que as famílias
precisavam ficar a sós.
O que eu sabia de famílias?
Fui para Memphis, onde a casa de minha infância não via uma
decoração de Natal havia dez anos. Meu pai e eu jantamos num
restaurante chinês, não muito longe da casa. Enquanto tomava a sopa
wonton, não pude deixar de pensar no caos que reinava na cozinha de
Miss Callie, com todos aqueles pratos maravilhosos que saíam do
forno.
Meu pai esforçou-se para parecer interessado em meu jornal. Eu
lhe enviava um exemplar todas as semanas. Depois de uns poucos
minutos de conversa, contudo, descobri que ele nunca lera uma só
palavra. Estava preocupado com alguma relação sinistra entre a
guerra no Sudeste Asiático e o mercado de ações.
Comemos depressa e seguimos por caminhos diferentes. Nenhum
dos dois se lembrara de fazer uma troca de presentes, o que foi muito
triste.
O almoço no dia do Natal foi com BeeBee, que ficou exultante ao
me ver, ao contrário do que acontecera com meu pai. Ela convidara
três de suas amigas viúvas de cabelos azuis para o presunto com jerez.
Ficamos um pouco altos. Encantei-as com histórias do condado de
Ford, algumas acuradas, outras bastante aumentadas. Na convivência
com Baggy e Harry Rex, eu estava aprendendo a arte de contar
histórias.
Já estávamos todos cochilando por volta de três horas da tarde. Na
manha seguinte, bem cedo, voltei correndo para Clanton.
CAPÍTULO 25
NUM DIA MUITO FRIO, no final de janeiro, tiros foram disparados de
algum lugar da praça. Eu sentava à minha mesa, datilografando em
paz uma reportagem sobre o sr. Lamar Farlowe e sua recente reunião
em Chicago com seu batalhão de paraquedistas do exército, quando
uma bala espatifou uma vidraça, a menos de seis metros de minha
cabeça. Foi o fim abrupto de uma semana de poucas notícias.
Minha bala foi a segunda ou terceira numa sequência bastante
rápida. Joguei-me no chão, com todos os tipos de pensamentos. Onde
estava minha arma? Os Padgitt estavam atacando a cidade? O
patrulheiro Durant e seus amigos estavam atrás de mim?
Engatinhando, fui até minha pasta, enquanto os estampidos
continuavam a ressoar. Parecia que vinham do outro lado da rua, mas
no horror do momento, eu não podia determinar com certeza. E
pareciam muito mais altos depois do tiro que acertara uma vidraça do
jornal.
Esvaziei a pasta antes de me lembrar de que a arma devia estar no
carro ou no apartamento. Desarmado, sentia-me como alguém fraco,
incapaz de se defender. Harry Rex e Rafe haviam me treinado melhor.
Sentia-me apavorado, a ponto de não conseguir me mexer. E
depois lembrei que Bigmouth Bass estava em sua sala lá embaixo.
Como a maioria dos homens em Clanton, ele tinha um arsenal à mão.
Havia pistolas em sua mesa, além de dois rifles de caça na parede,
para o caso de ter o súbito impulso de sair correndo e
matar um veado durante o almoço. Qualquer um que tentasse me
liquidar encontraria uma feroz resistência de minha equipe. Ou pelo
menos era o que eu esperava.
Houve uma pausa no ataque, povoada por gritos de pânico e o
caos nas ruas. Eram quase duas horas da tarde, o que costumava ser
uma ocasião bastante movimentada no centro da cidade. Rastejei para
baixo da mesa, como fora ensinado a fazer nos exercícios de alerta de
tornado. Ouvi Bigmouth gritar em algum lugar lá embaixo:
— Fiquem em suas salas!
Quase que podia vê-lo, pegando um 30. 06 e uma caixa de balas,
esgueirando-se para a porta, na maior expectativa. Não podia
conceber um lugar pior para alguém começar a atirar. Havia milhares
de armas ao alcance da mão em torno da praça central de Clanton.
Cada picape tinha dois rifles em suportes por cima das janelas, mais
uma espingarda por baixo do banco. E aquelas pessoas estariam
ansiosas para usar suas armas!
Não passaria muito tempo antes que os locais respondessem ao
fogo. E nesse momento a situação poderia se tornar trágica.
Os tiros recomeçaram. Não estavam mais tão próximos, concluí,
enquanto tentava respirar normalmente, por baixo da mesa, e analisar
a situação. Compreendi que não era o alvo expresso do ataque.
Apenas possuía, por acaso, uma janela próxima. Sirenes se
aproximaram. Soaram mais tiros, mais gritos.
Um telefone tocou lá embaixo e alguém atendeu no mesmo
instante.
— Você está bem, Willie? - gritou Bigmouth, do fundo da escada.
— Estou!
— Há um atirador de tocaia no alto do tribunal!
— Essa não!
— Fique abaixado!
— Não se preocupe!
Relaxei um pouco. Saí de baixo da mesa, apenas o suficiente para
pegar o telefone. Liguei para a casa de Wiley Meek, mas ele já estava a
caminho da praça. Rastejei pelo chão e abri uma das portas de vidro.
O movimento atraiu a atenção do atirador de tocaia. Ele estilhaçou
uma vidraça a pouco mais de um metro acima de mim. Os cacos
caíram como uma chuva forte. Estendi-me de barriga no chão e parei
de respirar pelo que pareceu uma hora. Os tiros eram incessantes. A
pessoa que atirava, quem quer que fosse, estava perturbada com
alguma coisa.
Oito tiros, cada um parecendo muito mais forte, agora que eu
estava na varanda. Uma pausa de quinze segundos, enquanto ele
recarregava, depois mais oito tiros. Eu ouvia o barulho de vidro
estilhaçado, o ricochete das balas em tijolos, as balas acertando em
postes de madeira. Em algum momento, no meio da barragem de
fogo, as vozes silenciaram.
Quando pude me mexer de novo, puxei de lado uma das cadeiras
de balanço, bem devagar, e me postei atrás. A varanda era cercada por
uma grade de ferro batido. Com isso e mais a cadeira à minha frente,
eu me imaginei oculto e protegido. Não sei por quê, senti-me
compelido a chegar o mais perto possível do atirador de tocaia. Mas
tinha 24 anos, era o dono do jornal e sabia que escreveria uma longa
reportagem sobre aquele episódio dramático. Precisava dos detalhes.
Quando finalmente espiei, através da cadeira e da grade, avistei o
atirador de tocaia. O prédio do tribunal tinha um domo
estranhamente achatado, em cima do qual havia uma pequena cúpula,
com quatro janelas abertas. Ele fizera seu ninho ali. Quando o vi pela
primeira vez, ele espiava por cima do peitoril de uma das janelas.
Parecia ter o rosto preto e cabelos brancos, o que me provocou um
calafrio. Estávamos lidando com um psicopata de primeiro grau.
Ele estava recarregando. Assim que terminou, ergueu-se um pouco
e recomeçou a atirar, a esmo. Dava a impressão de estar sem camisa.
Nas circunstâncias, isso parecia ainda mais estranho, já que a
temperatura beirava zero grau e havia uma possibilidade de nevar ao
final da tarde. Eu estava congelando, apesar do lindo terno de lã do
Mitlo's que usava.
O peito dele era branco, com listras pretas, como uma zebra. Era
um branco que se pintara parcialmente de preto.
Todo o tráfego cessara. A polícia da cidade bloqueara as ruas. Os
guardas corriam de um lado para outro, agachados, escondendo-se
por trás de seus carros. Um ou outro rosto aparecia de vez em quando
nas vitrines das lojas, para uma rápida verificação da situação, e
sumia no instante seguinte. Os tiros cessaram. O atirador de tocaia
abaixou-se e desapareceu por algum tempo. Três guardas do condado
correram pela calçada e entraram no prédio. Longos minutos
passaram.
Wiley Meek subiu a escada para a minha sala. Foi se abaixar ao
meu lado. A respiração era tão forte que pensei que ele viera correndo
de sua casa, distante, na zona rural.
— Ele nos acertou! - sussurrou Wiley, como se o homem pudesse
nos ouvir.
Ele olhava para os cacos de vidro espalhados pelo chão.
— Duas vezes - informei, acenando com a cabeça para as vidraças
estilhaçadas.
— Onde ele está? — perguntou Wiley, ajeitando uma câmera com
teleobjetiva.
— Na cúpula - respondi, apontando. - Tome cuidado. Ele acertou
na porta quando a abri.
— Chegou a vê-lo?
— Homem, branco, com manchas pretas.
— Um desses...
— Mantenha a cabeça baixa.
Continuamos ali, encolhidos e abaixados, por vários minutos. Mais
policiais correram de um lado para outro, sem qualquer destino
específico. Davam a nítida impressão de que se sentiam emocionados
por estarem ali, embora não tivessem a menor ideia do que fazer.
— Alguém ferido? — perguntou Wiley, subitamente ansioso com a
possibilidade de ter perdido algum sangue.
— Como posso saber?
Soaram mais tiros, em rápida sucessão, desconcertantes. Demos
uma olhada e vimos o homem, dos ombros para cima, atirando. Wiley
focalizou e começou a tirar fotos, com a teleobjetiva.
Baggy e os amigos estavam no Bar Room, no terceiro andar. Não
era diretamente embaixo da cúpula, mas não estava longe. Na
verdade, deviam ser as pessoas mais próximas do atirador de tocaia
quando ele iniciara seu exercício de tiro ao alvo. Depois que os tiros
recomeçaram, pela nona ou décima vez, eles ficaram ainda mais
assustados, como não podia deixar de ser. Convencidos de que
estavam prestes a ser mortos, decidiram tomar a iniciativa. De alguma
forma, conseguiram abrir a janela emperrada de seu pequeno
esconderijo. Vimos um fio elétrico grosso ser jogado para fora e cair
quase até o chão, doze metros abaixo. A perna direita de Baggy
apareceu em seguida, quando ele estendeu-a por cima do peitoril,
fazendo um esforço para passar toda a sua corpulência pela abertura.
Como era de se esperar, Baggy insistira em sair primeiro.
— Essa não! - exclamou Wiley, com alguma exultação, erguendo a
câmera. - Eles estão bêbados que nem gambás!
Baggy saltou da janela, segurando o fio com toda a determinação
de que era capaz, e iniciou a descida para a segurança. Sua estratégia
não era nada evidente. As mãos pareciam congeladas, segurando o
fio, um pouco acima da cabeça. Ao que tudo indicava, havia uma boa
extensão do fio no Bar Room e os companheiros deveriam descê-lo
devagar.
Enquanto as mãos se estendiam ainda mais por cima da cabeça, a
calça começou a escorregar. Logo estava abaixo dos joelhos, deixando
à mostra um longo trecho de pele muito branca, por cima das meias
pretas pendendo nos tornozelos. Baggy nunca se preocupara muito
com a aparência... antes, durante ou depois do incidente do atirador
de tocaia.
Os tiros cessaram. Por um longo momento, Baggy ficou pendurado
ali, girando lentamente, batendo no prédio, um metro abaixo da
janela. Dava para ver Major dentro da sala, segurando o lio. Mas,
como ele só tinha uma perna, fiquei aflito com a possibilidade de não
aguentar por muito tempo. Por trás dele, avistei dois outros vultos,
provavelmente Wobble Tackett e Chick Elliot, a turma do pôquer
habitual.
Wiley começou a rir, uma risada baixa e contida, que sacudia todo
o seu corpo.
A cada intervalo nos tiros, a cidade soltava um suspiro aliviado,
torcendo para que finalmente tivesse acabado. E cada nova série de
tiros nos deixava ainda mais apavorados do que a anterior.
Dois tiros ressoaram. Baggy teve um sobressalto, como se tivesse
sido atingido, embora não houvesse a menor possibilidade de que o
atirador de tocaia pudesse sequer vê-lo. O súbito movimento brusco
aplicou pressão demais na perna de Major. A perna cedeu, o fio se
soltou. Baggy deu um grito, enquanto caía como uma pedra para uma
fileira densa de buxos plantados pelas Filhas da Confederação. Os
buxos absorveram a carga; curvaram-se, como um trampolim, para
depois lançar Baggy na calçada, onde ele se esparramou como um
melão, a única baixa de todo o episódio.
Ouvi os risos à distância.
Sem o menor vestígio de misericórdia, Wiley registrou todo o
espetáculo. As fotos circulariam furtivamente por Clanton durante os
anos subsequentes.
Baggy permaneceu imóvel durante um longo tempo. Um guarda
lá embaixo gritou:
— Deixem o filho da puta onde está!
— Não se pode machucar um bêbado - murmurou Wiley,
enquanto recuperava o fôlego.
Baggy acabou ficando de quatro. Devagar, dando a impressão de
que sentia muita dor, saiu engatinhando, como um cachorro
atropelado por um caminhão, até os buxos, que haviam salvado sua
vida, e ali abrigou-se da tempestade.
Havia um carro da polícia estacionado a três portas da Tea
Shoppe. O atirador de tocaia disparou alguns tiros em sua direção.
Quando o tanque de gasolina explodiu, esquecemos Baggy. A crise
aumentou para o nível seguinte, quando uma fumaça densa saiu de
baixo do carro, logo acompanhada por chamas. O atirador de tocaia
deve ter gostado do resultado, porque durante alguns minutos só
atirou em carros. Eu tinha certeza de que meu Spitfire seria um alvo
irresistível, mas talvez fosse pequeno demais.
O homem perdeu a coragem, no entanto, quando começaram a
responder a seus tiros. Dois homens do xerife Coley foram se postar
em telhados, crivando a cúpula de balas. O atirador de tocaia abaixou-
se e encerrou suas atividades.
— Acertei-o! — gritou um dos guardas para o xerife Coley.
Esperamos por vinte minutos; o silêncio persistiu. As pontas
perfuradas e as solas pretas dos sapatos de Baggy projetavam-se
de baixo dos buxos, mas o resto estava oculto. De vez em quando,
Major, com um copo na mão, olhava para baixo e gritava alguma coisa
para Baggy, que podia estar morrendo, por tudo o que sabíamos.
Mais policiais entraram correndo no prédio. Relaxamos e sentamos
nas cadeiras de balanço, mas sem desviar os olhos da cúpula.
Bigmouth, Margaret e Hardy vieram se juntar a nós na varanda.
Haviam assistido à descida de Baggy da janela lá de baixo. Só
Margaret estava preocupada com os ferimentos que ele podia ter
sofrido.
O carro da polícia ardeu por um longo tempo, até que os
bombeiros apareceram e apagaram as chamas. As portas do prédio se
abriram e vários funcionários saíram, começando a fumar, com
evidente ansiedade. Dois guardas conseguiram retirar Baggy dos
buxos. Ele mal conseguia andar e obviamente sentia muita dor.
Meteram-no numa radio patrulha e levaram-no embora.
Um momento depois, avistamos um homem do xerife na cúpula.
A cidade voltou a ficar segura. Nós cinco nos encaminhamos
apressados para o prédio do tribunal, acompanhados por todas as
pessoas que se encontravam no centro de Clanton.
O terceiro andar estava isolado do resto. Como o tribunal não se
encontrava em sessão, o xerife Coley nos mandou esperar ali, com a
promessa de que muito em breve informaria o que acontecera. Ao
entrarmos na sala do tribunal, avistei Major, Chick Elliot e Wobble
Tackett caminhando pelo corredor, escoltados por um guarda.
Estavam obviamente embriagados, rindo tanto que tinham
dificuldade para ficar de pé.
Wiley desceu para farejar o que pudesse. Um corpo estava prestes
a ser retirado do prédio e ele queria tirar uma foto do atirador de
tocaia. Cabelos brancos, rosto preto, listras pintadas... havia muitas
perguntas a serem respondidas.

Os homens do xerife erraram o alvo. O atirador de tocaia foi


identificado como Hank Hooten, o advogado local que ajudara Ernie
Gladdis na acusação de Danny Padgitt. Ele estava preso e ileso.
Ficamos chocados e aturdidos quando o xerife Coley anunciou isso
na sala do tribunal. Estávamos com os nervos à flor da pele, mas
aquilo era demais.
— O sr. Hooten foi encontrado no poço da pequena escada que
leva à cúpula - informou Coley. — Não resistiu à prisão e agora está
sob custódia.
Eu me sentia aturdido demais para fazer anotações.
— O que ele usava? - perguntou alguém.
— Nada.
— Nada?
— Absolutamente nada. Tinha o que parecia ser graxa de sapato
no rosto e no peito. Afora isso, porém, estava tão nu quanto um
recém-nascido.
— Quais eram suas armas? — indaguei.
— Encontramos dois rifles de alta potência. Isso é tudo o que posso
dizer por enquanto.
— Ele disse alguma coisa?
— Nem uma só palavra.
Wiley disse que haviam enrolado um lençol em Hank e
empurraram-no para o banco traseiro de uma radio patrulha. Ele
havia tirado algumas fotos, mas não se sentia otimista.
— Havia uma dúzia de guardas em torno dele.
Fomos ao hospital para verificar o estado de Baggy. Sua esposa
trabalhava no turno da noite, na emergência. Alguém lhe telefonara, a
acordara e pedira que fosse para o hospital. Ela estava muito irritada
quando a encontramos.
— Apenas um braço quebrado - disse ela, obviamente
desapontada por não ter sido nada mais grave. - O que o idiota fez
desta vez?
Olhei para Wiley, que olhou para mim.
— Ele estava de porre? - perguntou ela.
Baggy estava sempre de porre.
— Não sei — respondi. - Ele caiu de uma janela no prédio do
tribunal.
— Já entendi. Ele estava de porre.
Apresentei uma rápida versão da fuga de Baggy. Tentei dar a
impressão de que ele fizera algo heroico, no meio de todo aquele
tiroteio.
— Terceiro andar? - perguntou ela.
— Isso mesmo.
— Ou seja, ele estava jogando pôquer e tomando uísque, antes de
saltar de uma janela do terceiro andar.
— Basicamente, foi isso mesmo - confirmou Wiley, incapaz de se
controlar.
Baggy roncava quando entramos em seu quarto. Os medicamentos
misturados com o uísque faziam com que ele parecesse comatoso.
— Ele vai desejar poder dormir para sempre — sussurrou Wiley.
E ele tinha razão. A lenda de Baggy Saltador foi relatada por vezes
incontáveis nos anos que se seguiram. Wobble Tackett juraria que
Chick Elliot largou o fio primeiro. Chick alegaria que a perna boa de
Major vergara, causando uma reação em cadeia. A cidade logo passou
a acreditar que, independentemente de quem largara primeiro, os três
idiotas que Baggy deixara na Bar Room haviam-no largado
intencionalmente em cima dos buxos.

Dois dias depois, Hank Hooten foi enviado para o hospital


psiquiátrico estadual, em Whitfield, onde permaneceria por vários
anos. Foi inicialmente indiciado por tentar matar metade de Clanton,
mas as acusações acabaram sendo arquivadas, com o passar do tempo.
Ele teria dito a Ernie Gaddis que não estava atirando em ninguém em
particular, não queria ferir ninguém, mas apenas manifestar sua
revolta porque a cidade não condenara Danny Padgitt à morte.
Acabou chegando a Clanton a notícia de que o diagnóstico fora de
esquizofrenia aguda.
“Maluco de pedra”, foi o comentário nas ruas.
Nunca, em toda a história do condado de Ford, uma pessoa
perdera o juízo de uma maneira tão espetacular.
CAPÍTULO 26
UM ANO DEPOIS DE COMPRAR O JORNAL, mandei para BeeBee um cheque
de 55 mil dólares, o valor do empréstimo mais juros de dez por cento.
Ela não discutira a questão dos juros quando me fizera o empréstimo
e também não me pedira para assinar uma nota promissória. Dez por
cento era um tanto alto, e eu esperava que isso a impelisse a devolver
o cheque. Despachei-o, prendi a respiração e fiquei atento à
correspondência. Uma semana depois recebi uma carta de Memphis.
Querido William:
Segue anexo seu cheque, que eu não esperava e que
não preciso neste momento. Se, por alguma razão
improvável, eu precisar do dinheiro no futuro, então
falaremos a respeito na ocasião. A oferta de
pagamento me deixa muito orgulhosa de você e de
sua integridade. O que realizou em um ano de
trabalho aí é uma fonte de enorme orgulho para
mim. Sinto o maior prazer de contar às minhas
amigas sobre o seu sucesso como proprietário e
editor de jornal.
Devo confessar que fiquei preocupada com você
quando voltou de Syracuse. Parecia carecer de rumo
e motivação, e tinha os cabelos compridos demais.
Provou que eu estava enganada. Cortou-os de
acordo (talvez até demais). Também se tornou um
cavalheiro nos trajes e nas maneiras.
Você é tudo o que eu tenho, William, e o amo
profundamente. Por favor, escreva-me com mais
frequência.
Com todo o amor, BeeBee
P. S. Aquele pobre coitado tirou mesmo todas as
roupas e deu tiros por toda a cidade? Que pessoas
esquisitas existem por aí!

O primeiro marido de BeeBee morrera de alguma doença exótica


em 1924. Ela tornara a casar, com um rico negociante de algodão
divorciado, com quem tivera uma única filha, minha pobre mãe. O
segundo marido, meu avô, morreu em 1938, deixando BeeBee com
uma boa fortuna. Ela parou de casar e passou os trinta e tantos anos
seguintes contando seu dinheiro, jogando bridge e viajando. Como
único neto, eu deveria herdar tudo o que ela possuía, embora não
tivesse a menor ideia da extensão de sua fortuna.
Se BeeBee queria mais cartas minhas, então podia contar que as
receberia.
Rasguei o cheque, na maior felicidade, fui até o banco e tomei
outros cinquenta mil dólares emprestados de Stan Atcavage. Hardy
descobrira uma máquina de off-set pouco usada em Atlanta, e
comprei-a por 108 mil dólares. Tratamos de nos descartar de nossa
velha rotativa e entramos no século XX. O Times adquiriu uma nova
aparência, a impressão mais limpa, as fotos mais nítidas, a paginação
mais elegante. Nossa circulação estava em seis mil exemplares, e eu
podia contar com um crescimento firme e lucrativo. As eleições de
1971, sem a menor sombra de dúvida, ajudaram muito.

Sentia-me espantado com a quantidade de pessoas que concorrem


a cargos públicos no estado do Mississippi. Cada condado era
dividido em cinco distritos, e cada distrito tinha um oficial de justiça
eleito. Ele usava uma insígnia e uma arma. Também costumava usar
um uniforme, por ele mesmo criado, se tinha condições para isso, o
que sempre era possível. E punha a luz de polícia no teto de seu carro.
Tinha autoridade para deter qualquer pessoa, a qualquer momento,
por qualquer crime concebível. Não havia necessidade de
treinamento. Nem de instrução. Não havia supervisão do xerife do
condado ou do chefe de polícia da cidade.
A única fiscalização cabia aos eleitores, de quatro em quatro anos.
Em tese, era encarregado apenas de entregar intimações. Depois de
eleito, no entanto, nenhum oficial de justiça resistia ao poderoso
impulso de andar armado e procurar pessoas para prender.
Quanto mais multas de trânsito um oficial de justiça aplicava, mais
dinheiro ganhava. Era um emprego em tempo parcial, com um salário
nominal, mas pelo menos um, dos cinco em cada condado, vivia do
que arrecadava com o cargo. Era em geral o cara que causava mais
problemas.
Cada distrito tinha um juiz de paz eleito, um servidor do judiciário
sem qualquer treinamento legal, pelo menos em 1971. Não havia
necessidade de instrução superior para o cargo. Nem experiência. Só
era preciso ter votos. O juiz de paz julgava todas as pessoas que o
oficial de justiça detinha. O relacionamento entre os dois era em geral
estreito e suspeito. Motoristas de outros estados detidos por um oficial
de justiça no condado de Ford quase sempre sofriam abusos nas mãos
do juiz de paz.
Cada condado tinha cinco supervisores, cinco pequenos reis que
exerciam o poder, de fato. Para seus partidários, eles pavimentavam
estradas, abriam galerias de águas pluviais, distribuíam cascalho.
Faziam muito pouco pelos inimigos. Todos os regulamentos do
condado eram promulgados pelo Conselho de Supervisores.
Cada condado também elegia um xerife, um coletor de impostos,
um assessor fiscal, escrivão de tribunal comercial e um coroner, que
presidia os inquéritos sobre suspeitas de crimes, antes da intervenção
do judiciário. Os condados rurais partilhavam um senador estadual e
um representante na assembleia legislativa. Outros cargos
disponíveis, em 1971, eram os de comissário rodoviário, comissário de
serviços públicos, comissário de agricultura, tesoureiro estadual,
procurador geral, vice-governador e governador.
Eu achava que o sistema era absurdo e inepto, até que os
candidatos aos cargos começaram a pagar anúncios no Times. Um
oficial de justiça dos piores no Quarto Distrito, chamado de Beat Four,
tinha onze adversários ao final de janeiro. A maioria desses pobres
coitados entrou no jornal com um “anúncio”, escrito a mão pela
esposa, numa folha de caderno. Eu lia cada texto, paciente, editava,
decodificava, traduzia. Depois, recebia o dinheiro e publicava o
anúncio, quase todos começando com “Depois de meses de orações...
”, ou “Muitas pessoas pediram que eu me candidatasse... ”.
Ao final de fevereiro, o condado já estava absorvido pelas eleições
de agosto. O xerife Coley tinha dois concorrentes, com mais dois
ameaçando se candidatarem. O prazo para inscrição terminava em
junho e ele ainda não registrara sua candidatura. Isso provocou
especulações de que podia não concorrer.
Era preciso muito pouco para provocar especulações sobre
qualquer coisa quando se tratava das eleições locais.

Miss Callie continuava a se apegar à convicção antiquada de que


comer em restaurante era um desperdício de dinheiro e por isso um
ato pecaminoso. Sua lista de pecados em potencial era mais longa que
a da maioria das pessoas, inclusive a minha. Levei quase seis meses
para convencê-la a ir ao Claude's para um almoço na quinta-feira.
Argumentei que, se eu pagasse, não estaríamos desperdiçando o
dinheiro dela. Não seria culpada de qualquer transgressão; e se eu
fosse culpado de mais uma, realmente não me importava. Comer fora
era com certeza a mais benigna em meu inventário.
Não me preocupava em ser visto no centro de Clanton na
companhia de uma negra. Não me importava com o que as pessoas
pudessem dizer. Não me preocupava em ser o único rosto branco no
Claude's. O que realmente me preocupava, o que quase me impediu
de sugerir a ideia em primeiro lugar, foi o desafio de fazer Miss Callie
entrar e sair de meu Triumph Spitfire. Não fora fabricado para
pessoas corpulentas como ela.
Miss Callie e Esau tinham um velho Buick, em que outrora cabiam
oito crianças. Mesmo acrescentando mais quarenta quilos, Miss Callie
ainda podia entrar e sair do banco da frente com relativa facilidade.
E ela não emagrecia nem um pouco. A pressão alta e a elevada
taxa de colesterol eram uma grande preocupação para os filhos.
Apesar de ter sessenta anos e ser saudável, os problemas assomavam.
Saímos para a rua, e ela avaliou meu carro. Estávamos em março e
ventava, com uma forte possibilidade de chuva. Por isso, a capota
estava fechada. E, dessa forma, o carro de dois lugares parecia ainda
menor.
— Não tenho certeza se vou conseguir - avisou ela.
Levara seis meses para que ela chegasse àquele ponto; não dava
para recuar agora. Abri a porta de passageiro, e ela se adiantou com a
maior cautela.
— Alguma sugestão? - indagou Miss Callie.
— Podemos tentar o método do traseiro primeiro.
Acabou dando certo. Quando liguei o carro, nossos ombros
encostavam um no outro.
— Os brancos guiam carros engraçados - comentou ela, tão
assustada quanto se estivesse voando num pequeno avião pela
primeira vez.
Partimos, rindo, os pneus cantando no cascalho. Parei na frente do
jornal. Ajudei-a a sair. Lá dentro, apresentei-a a Margaret Wright e
Davey Bigmouth Bass. Fizemos uma excursão. Ela estava curiosa com
a nova máquina de off-set, porque o jornal parecia muito melhor
agora.
— Quem faz a leitura de provas aqui? - sussurrou ela.
— É você.
Estávamos com uma média de três erros por semana, segundo ela.
Eu ainda recebia a lista toda quinta-feira, no almoço.
Demos uma volta pela praça, e depois fomos para o Claude's, o
café negro que ficava ao lado da City Cleaners. Claude estava em
atividade havia muitos anos, e servia a melhor comida da cidade. Não
precisava de cardápio, porque as pessoas comiam o que ele decidisse
cozinhar naquele dia. Quarta-feira era dia de peixe e sexta de
churrasco. Nos outros quatro dias da semana, no entanto, você não
sabia o que ia comer até que Claude informasse. Ele nos
cumprimentou, vestindo um avental sujo, e apontou para uma mesa
junto da janela da frente. O café tinha bastante gente, e recebemos
alguns olhares curiosos.
Por mais estranho que pudesse parecer, Miss Callie jamais tivera
um contato pessoal com Claude. Eu presumira que todos os negros
em Clanton acabassem se conhecendo, mais cedo ou mais tarde. Mas
Miss Callie explicou que não era o caso. Claude morava no campo, e
havia o rumor terrível em Lowtown de que não frequentava a igreja.
Ela nunca se sentira ansiosa em conhecê-lo. Compareceram juntos a
um funeral, anos antes, mas não haviam sido apresentados.
Apresentei-os agora. Quando juntou o nome ao rosto, Claude
comentou:
— A família Ruffin. Todos doutores.
— Ph.D. - corrigiu Miss Callie.
Claude falava alto, era rude, cobrava por sua comida e não
frequentava a igreja. Por tudo isso, Miss Callie detestou-o. Ele
percebeu, não se importou e foi gritar com alguém lá no fundo. Uma
garçonete trouxe chá gelado e pão de milho. Miss Callie não gostou de
nenhuma das duas coisas. O chá era fraco e quase sem açúcar,
segundo ela, e o pão de milho carecia de sal. Além disso, fora servido
na temperatura ambiente, o que era uma ofensa imperdoável.
— É um restaurante, Miss Callie - comentei, em voz baixa. -Pode
relaxar?
— Estou tentando.
— Não, não está. Como podemos apreciar uma refeição se reprova
tudo?
— Sua gravata-borboleta é muito bonita.
— Obrigado.
Meu guarda-roupa aprimorado não agradara tanto a ninguém
quanto a Miss Callie. Os negros gostavam de se vestir bem e viviam
sempre preocupados com a moda, explicou ela. Ainda se referia a si
mesma como uma negra.
Na esteira do movimento dos direitos civis e das questões
complicadas que acarretara, era difícil saber exatamente como se
referir aos negros. Os mais velhos e mais distintos, como Miss Callie,
preferiam ser chamados de “negros”. Um ponto abaixo deles, na
escala social, estavam os “coloreds”.
Embora nunca tenha ouvido Miss Callie usar a palavra, creio que
não era incomum que negros das classes superiores se referissem aos
mais baixos de sua espécie como “pretos”, o mesmo termo pejorativo
que os brancos usavam.
Eu não podia sequer começar a compreender os rótulos e classes, e
por isso aderia com firmeza à segurança de “negros”. As pessoas no
meu lado dos trilhos tinham um dicionário inteiro para descrever
negros, e poucos eram termos amáveis.
Naquele momento, eu era o único não-negro no Claude’s, mas isso
não incomodava ninguém.
— O que vão comer? - gritou Claude, do balcão.
Um quadro-negro informava que naquele dia havia chili do Texas,
galinha frita e costeleta de porco. Miss Callie sabia que a galinha e a
costeleta estariam abaixo de seus padrões. Por isso, ambos pedimos
chili.
Ouvi um relatório sobre a horta. As verduras de inverno estavam
enormes. Ela e Esau preparavam-se para o plantio da colheita do
verão. O Almanaque do Agricultor previa um verão ameno, com uma
quantidade média de chuva — a mesma previsão a cada ano -, e ela
sentia-se animada com o tempo mais quente, o retorno do almoço à
varanda, que era o lugar a que pertencia. Comecei com Alberto, o
mais velho, e meia hora depois ela terminou com Sam, o caçula. Ele
voltara a Milwaukee, com Roberto, trabalhava e estudava à noite.
Todos os filhos e netos estavam muito bem.
Ela queria falar sobre o “pobre sr. Hank Hooten”. Lembrava-se
bem dele no julgamento, embora ele nunca tivesse falado para o júri.
Dei as últimas notícias. Ele vivia agora num quarto com as paredes
acolchoadas, onde permaneceria por algum tempo.
O restaurante logo ficou lotado. Claude passou por nossa mesa,
carregando vários pratos, e disse:
— Vocês já acabaram. É melhor irem embora.
Miss Callie fingiu que se sentia insultada por isso. Claude era
famoso por pedir às pessoas que se retirassem quando acabavam de
comer. Na sexta-feira, quando uns poucos rostos brancos
aventuravam-se para o churrasco, ele punha um relógio para os
clientes e dizia alto:
— Você tem vinte minutos.
Ela simulou detestar a experiência... a própria ideia de comer fora,
o restaurante, a toalha de mesa ordinária, a comida, Claude, os preços,
a multidão, tudo. Mas era uma encenação. Sentia-se secretamente
exultante por ser levada para almoçar fora por um jovem branco bem
vestido. Jamais acontecera com qualquer de suas amigas.
Enquanto eu a ajudava gentilmente a sair do carro, de volta a
Lowtown, ela abriu a bolsa e tirou um papel. Só havia dois erros
naquela semana; ambos eram na seção de classificados, uma área aos
cuidados de Margaret. Acompanhei-a até em casa.
— Não foi tão ruim assim, não é mesmo? — indaguei.
— Eu gostei. Obrigada. Virá na próxima quinta-feira?
Ela sempre fazia a mesma pergunta, todas as semanas. E a resposta
também era sempre a mesma.
CAPÍTULO 27
AO MEIO-DIA, no Quatro de Julho, a temperatura era de 38°C. A
umidade fazia com que parecesse ainda mais alta. O desfile foi
liderado pelo prefeito, embora ele não estivesse concorrendo a coisa
alguma. As eleições estaduais e locais eram em 1971; a eleição
presidencial, em 1972; as eleições judiciárias, em 1973; e as eleições
municipais, em 1974. Os mississippianos adoravam votar, quase tanto
quanto gostavam do futebol americano.
O prefeito sentou no banco traseiro de um Corvette 1962, jogando
balas para as crianças nas calçadas, em torno da praça. Por trás dele,
vinham duas bandas da escola de ensino médio, a de Clanton e a de
Karaway, os escoteiros, os Shriners em bicicletas, um novo caminhão
dos bombeiros, uma dúzia de carros alegóricos, um bando a cavalo,
veteranos de todas as guerras do século, uma coleção de carros novos
da revendedora Ford e três tratores John Deeres restaurados. O jurado
número oito, sr. Mo Teale, guiava um dos tratores. A retaguarda era
protegida por vários carros da polícia da cidade e da polícia do
condado, todos polidos com perfeição.
Acompanhei o desfile da varanda no terceiro andar do Security
Bank. Stan Atcavage oferecia uma recepção anual lá em cima. Como
agora eu devia ao banco uma quantia considerável, fui convidado
para tomar limonada e assistir às festividades.
Por algum motivo de que ninguém podia se lembrar, os rotarianos
tinham o comando dos discursos. Estacionaram o reboque aberto de
um caminhão ao lado do sentinela confederado, ornamentando-o com
fardos de feno e faixas vermelhas, brancas e azuis. Quando o desfile
acabou, a multidão cercou o reboque, aguardando com evidente
ansiedade. Um enforcamento antigo não poderia ter atraído uma
multidão mais expectante.
O sr. Mervin Beets, presidente do Rotary, foi ao microfone e deu as
boas-vindas a todos. Uma oração era indispensável em qualquer
evento público em Clanton. No novo espírito de dessegregação, ele
convidara o reverendo Thurston Small, o pastor de Miss Callie, para
fazer a oração. Segundo Stan, dava para perceber que havia muito
mais negros no centro naquele ano.
Com uma multidão como aquela, o reverendo Small não podia ser
breve. Pediu ao Senhor que abençoasse a todos e a tudo pelo menos
duas vezes. Havia alto-falantes pendurados em vários postes, e sua
voz ressoava pelo centro.
O primeiro candidato a falar ali foi Timmy Joe Bullock, um jovem
apavorado do Beat Four, que queria ser eleito para oficial de justiça.
Atravessou o reboque como se fosse uma prancha de navio. Quase
desmaiou quando alcançou o microfone e olhou para a multidão.
Conseguiu dizer seu nome, antes de meter a mão no bolso e tirar o
discurso. Não era grande coisa como leitor, mas em dez minutos
muito longos conseguiu comentar o aumento da criminalidade, o
recente julgamento por homicídio, o atirador de tocaia. Não gostava
de assassinos, muito menos de atiradores de tocaia. Trabalharia para
nos proteger de ambos.
Os aplausos foram mínimos quando o discurso acabou, mas pelo
menos ele apareceu. Havia 22 candidatos ao cargo de oficial de justiça
nos cinco distritos, mas apenas sete tiveram a coragem de encarar a
multidão. Quando acabamos com os candidatos a oficial de justiça e
juiz de paz, Woody Gates e os Country Boys apresentaram algumas
músicas de bluegrass. A multidão adorou o intervalo.
Em vários pontos do gramado na frente do tribunal estavam
servindo comida e refrescos. O Lions Club distribuía fatias de
melancia gelada. As mulheres do clube de jardinagem vendiam
«sorvete de produção doméstica. Os Jaycees, como eram chamados os
membros da Câmara de Comércio Júnior, faziam churrasco de costela.
A multidão concentrava-se à sombra dos carvalhos antigos
escondendo-se do sol.
Mackey Don Coley entrara na disputa do cargo de xerife ao final
de maio. Tinha três adversários, sendo que o mais popular era um
policial de Clanton, chamado T. R. Meredith. Quando o sr. Beets
anunciou que era a vez dos candidatos a xerife, os eleitores deixaram
as sombras e tornaram a se agrupar em torno do reboque.
Freck Oswald estava concorrendo pela quarta vez. Fora o último
nas três anteriores; tudo indicava que ficaria de novo lá embaixo, mas
parecia gostar da diversão de ser candidato. Ele não gostava do
presidente Nixon e disse coisas duras sobre sua política externa,
especialmente as relações com a China. A multidão acompanhou o
discurso, mas parecia um pouco confusa.
Tryce McNatt concorria pela segunda vez. Começou seus
comentários com a seguinte declaração:
- Eu quero mais que a droga da China se dane.
Era engraçado, mas também estúpido. Praguejar em público, na
presença de mulheres, haveria de lhe custar muitos votos. Tryce
revoltava-se pela maneira como o sistema acobertava os criminosos.
Opunha-se a qualquer esforço para construir uma nova cadeia no
condado de Ford... um desperdício de dinheiro do contribuinte!
Queria sentenças mais rigorosas e mais prisões, até mesmo presos
acorrentados juntos e trabalhos forçados.
Eu não ouvira nenhum comentário sobre uma nova cadeia.
Por causa do assassinato de Rhoda Kassellaw e dos tiros
disparados por Hank Hooten, o crime violento estava agora fora de
controle no condado de Ford, segundo Tryce. Precisávamos de um
xerife novo, que perseguisse os criminosos, em vez de se tornar amigo
deles. “Vamos limpar o condado! ”, foi o seu refrão. A multidão
aplaudiu com entusiasmo.
T. R. Meredith era um veterano de trinta anos na polícia. Era um
péssimo orador, mas se relacionava com metade do condado, segundo
Stan. E Stan sabia dessas coisas, porque se relacionava com a outra
metade.
- Meredith ganhará por mil votos no segundo turno - previu ele.
Isso causou a maior discussão entre os outros convidados. Mackey
Don foi o último a falar. Era xerife desde 1943, e queria apenas mais
um mandato.
- Ele vem dizendo isso há vinte anos — comentou Stan.
Coley falou de sua experiência, o conhecimento do condado e seus
habitantes. Quando acabou, os aplausos foram polidos, mas nem um
pouco animadores.
Dois cavalheiros concorriam ao cargo de coletor fiscal, sem dúvida
o menos popular no condado. Enquanto falavam, a multidão se
dispersou de novo, em busca de melancia e sorvete. Fui até o
escritório de Harry Rex, onde havia outra festa, as pessoas na calçada.
Os discursos continuaram durante toda a tarde. Era o verão de
1971, e àquela altura pelo menos cinquenta mil jovens americanos
haviam morrido no Vietnã. Uma reunião similar, em qualquer outra
parte do país, teria se transformado numa virulenta manifestação
contra a guerra. Os políticos teriam sido expulsos do palanque.
Bandeiras e cartões de recrutamento seriam queimados.
Mas o Vietnã nunca foi mencionado naquele Quatro de Julho.
Quando estava em Syracuse, eu me divertia nas manifestações no
campus e nas marchas pelas ruas, mas atividades assim não ocorriam
no Deep South. Era uma guerra; portanto, os verdadeiros patriotas
deviam apoiá-la. Estávamos contendo o comunismo; os hippies,
radicais e peaceniks, no Norte e na Califórnia, simplesmente tinham
medo de lutar.
Comprei um pote de sorvete de morango das mulheres do clube
de jardinagem. Ouvi uma comoção no prédio do tribunal. Pela janela
do Bar Room, no terceiro andar, um gozador pendurara uma efígie de
Baggy. O boneco estufado tinha as mãos por cima da cabeça, como o
verdadeiro Baggy. Havia no peito um cartaz com a palavra “SUGGS”.
E para que todos fossem capazes de reconhecer o alvo da brincadeira,
uma garrafa vazia de Jack Daniels projetava-se de cada bolso da calça.
Eu ainda não vira Baggy naquele dia. Nem veria. Mais tarde, ele
alegou que nada sabia sobre o incidente. Não foi nenhuma surpresa
que Wiley conseguisse tirar várias fotos da efígie de Baggy.
Theo está aqui! - gritou alguém.
Todo o mundo ficou excitado no mesmo instante. Theo Morton era
o nosso mais antigo senador estadual. Seu distrito eleitoral cobria
partes de quatro condados. Ele vivia em Baldwin, mas sua esposa era
de Clanton. Era dono de duas casas de repouso e um cemitério, e
tinha a distinção de ter sobrevivido a três desastres de avião. Não era
mais um piloto. Theo era pitoresco, rude, sarcástico, hilariante,
completamente imprevisivel num discurso político. Seu adversário era
um jovem que acabara de sair da faculdade de direito, e, segundo os
rumores, já se preparava para ser governador. Warren era seu nome.
Cometeu o erro de atacar Theo por causa de uma legislação suspeita
que fora “introduzida sorrateiramente” na última sessão, aumentando
o apoio do Estado aos pacientes de casas de repouso.
Era uma acusação veemente. Eu estava no meio da multidão,
observando Warren falar. Pouco acima de seu ombro esquerdo, podia
ver “SUGGS” pendurado da janela.
Theo começou por apresentar a esposa, Rex Ella, uma Mabry de
Clanton. Falou dos pais e avós da mulher, tias e tios. Não demorou
muito para que Theo mencionasse metade da multidão reunida na
praça. Clanton era seu segundo lar, seu distrito, seu povo, os eleitores
que tanto se empenhava em servir em Jackson.
Era um discurso de improviso fluente. Eu escutava um mestre da
oratória política.
Ele era presidente do Comitê Rodoviário no Senado estadual. Por
alguns minutos, gabou-se de todas as estradas novas que abrira no
norte do Mississippi. Seu comitê cuidava de quatrocentos segmentos
diferentes de legislação em cada sessão. Quatrocentos! Quatrocentos
projetos ou leis. Como presidente, ele era responsável por escrever as
leis. Era isso que os senadores estaduais faziam. Escreviam as leis boas
e rejeitavam as leis ruins.
Seu jovem adversário acabara de sair da faculdade de direito, um
feito notável. Ele, Theo, não tivera a oportunidade de fazer faculdade
porque estava lutando contra os japoneses, na II Guerra Mundial.
Mas, de qualquer maneira, seu jovem adversário obviamente
negligenciara o estudo do direito. Se não fosse por isso, teria passado
no exame da Ordem dos Advogados logo na primeira tentativa.
Em vez disso, “ele foi reprovado no exame da Ordem, senhoras e
senhores! ”
No momento mais perfeito possível, alguém um pouco atrás do
jovem Warren decidiu gritar:
- Isso é mentira!
A multidão olhou para Warren como se ele tivesse perdido o juízo.
Theo virou-se na direção da voz e repetiu, incrédulo:
- Mentira?
Ele enfiou a mão no bolso e tirou um papel dobrado.
- Tenho a prova aqui mesmo!
Ele pegou um canto do papel com as pontas dos dedos, sacudindo-
o a sua frente. Apressou-se em acrescentar, sem ler uma só palavra:
- Como podemos confiar num homem para escrever nossas leis
quando ele nem é capaz de passar no exame para advogar? O sr.
Warren e eu estamos na mesma situação... nenhum dos dois passou
no exame para se tornar advogado. O problema é que ele contou com
três anos da faculdade de direito para ajudá-lo a ser reprovado.
Os partidários de Theo caíram na gargalhada. O jovem Warren
continuou onde estava, mas era evidente que tinha vontade de sair
correndo. Theo continuou, implacável:
- Se ele tivesse cursado a faculdade de direito no Mississippi, cm
vez de estudar em Tennessee, talvez compreendesse melhor as nossas
leis!
Ele era famoso por esses massacres públicos. Uma ocasião
humilhara um adversário que deixara o púlpito sob uma nuvem de
suspeita. Tirara do bolso um “depoimento juramentado” e alegara que
era a prova de que o “ex-reverendo” tivera um romance ilícito com a
esposa de um diácono. Só que o documento nunca fora lido.
O limite de dez minutos nada significava para Theo. Ele continou,
com uma série de promessas de reduzir os impostos e o desperdício,
de tomar providências para que os assassinos recebessem a pena de
morte com mais frequência. Ao final, ele agradeceu à multidão por
vinte anos de apoio fiel. Lembrou-nos que, nas duas últimas eleições,
o bom povo do condado de Ford concedera e ele e a Rex Ella quase
oitenta por cento dos votos.
Os aplausos foram estrondosos e prolongados. Em algum
momento, Warren desapareceu. Eu também. Estava cansado de
discursos e políticos.

Quatro semanas depois, ao anoitecer da primeira terça-feira de


agosto, boa parte da mesma multidão reuniu-se na frente do prédio
do tribunal para acompanhar a contagem dos votos. Esfriara bastante;
a temperatura caíra, com 98 por cento de umidade.
Os últimos dias da campanha eleitoral haviam sido o sonho de um
repórter. Houve uma briga corporal entre dois candidatos a juiz de
paz, na frente de uma igreja negra. Houve duas ações judiciais, um
candidato acusando o outro de difamação e calúnia, de distribuir
falsas amostras da cédula eleitoral. Um homem foi preso no ato ao
escrever obscenidades com tinta spray num dos cartazes de Theo.
(Como se constatou, depois da eleição, o homem fora contratado por
um dos cabos eleitorais de Theo para profanar os cartazes do senador.
O jovem Warren arcou com a culpa. “Um truque comum”, segundo
Baggy. ) O procurador geral do estado foi exortado a investigar o
elevado número de abstenções. “Uma eleição típica”, foi o sumário de
Baggy. A situação chegou ao auge naquela terça-feira. Todo o
condado parou para votar e desfrutar o esporte de uma eleição rural.
As urnas foram lacradas às seis horas. Uma hora depois, a praça
estava repleta, as pessoas na maior expectativa. Havia gente de todo o
condado. Os eleitores agrupavam-se em torno de seus candidatos, e
até usavam placas da campanha para delimitar seu território. Muitos
levaram comida e bebida. A maioria tinha cadeiras dobráveis, como se
estivesse ali para assistir a uma partida de beisebol. Dois enormes
quadros-negros foram instalados perto da porta de entrada do prédio.
Os resultados eram registrados ali.
— Já temos os resultados de North Karaway!
A funcionária do tribunal deu a informação por um microfone, tão
alto que podia ser ouvida por quilômetros ao redor. O clima festivo se
tornou sério no mesmo instante.
- A apuração em North Karaway sempre termina primeiro -
comentou Baggy.
Eram oito e meia e estava quase escuro. Sentávamos na varanda da
minha sala, aguardando os resultados. Planejávamos adiar a rodagem
do jornal por 24 horas, lançando a “Edição Especial de Eleição” na
quinta-feira. Levou algum tempo para que a funcionária lesse os totais
de votos de cada candidato a todos os cargos. Mais ou menos no meio,
ela disse:
- E na disputa para o cargo de xerife...
Milhares de pessoas prenderam a respiração.
- Mackey Don Coley, 84 votos. Tryce McNatt, 21. T. R. Meredith,
62. Freck Oswald, 11.
Soaram gritos no outro lado da praça, onde os partidários de Coley
estavam acampados.
- Coley sempre foi forte em Karaway - disse Baggy. - Mas ele foi
derrotado.
- Foi derrotado?
Era apenas o resultado do primeiro dos 28 distritos, e Baggy já
previa os vencedores.
- Isso mesmo. O fato de T. R. sair tão forte num lugar em que não
tem base mostra que o povo cansou de Mackey Don. Espere só até ver
as urnas de Clanton.
Os resultados foram chegando, pouco a pouco, de lugares de que
eu nunca ouvira falar: Pleasant Hill, Shady Grove, Klebie, Three
Comers, Clover Hill, Green Alley, Possum Ridge, Massey Mill, Calico
Ridge. Woody Gates e os Country Boys, que pareciam estar sempre
disponíveis, preenchiam os intervalos com música bluegrass.
Os Padgitt votavam num pequeno distrito chamado Dancing
Creek. Quando a funcionária anunciou os votos de lá - Coley
recebendo 31 e os outros juntos apenas oito —, houve um revigorante
coro de vaias por toda a praça. Seguiu-se a apuração em Clanton East,
o maior dos distritos, aquele em que eu votara. Coley teve 283 votos,
Tryce 47. Quando foi anunciado o total de 644 votos para T. R., a
multidão delirou.
Baggy abraçou-me, e comemoramos com o resto da cidade.
Coley seria derrotado sem direito a um segundo turno.
À medida que os perdedores tomavam conhecimento de seu
destino, pouco a pouco, eles e seus partidários recolhiam suas coisas e
iam para casa. Depois de meia-noite, deixei o prédio do jornal e
circulei pela praça, absorvendo os sons e imagens daquela tradição
maravilhosa.
Sentia-me orgulhoso da cidade. Na esteira de um brutal
assassinato e do desconcertante veredicto, havíamos nos mobilizado e
reagido, deixando bem claro que não toleraríamos a corrupção. A
maciça votação contra Coley era nossa maneira de atingir os Padgitt.
Pela segunda vez em um século, eles não mandariam no xerife.
T. R. Meredith obteve 61 por cento dos votos, uma vitória
surpreendentemente esmagadora. Theo obteve 82 por cento, sua
média tradicional. Imprimimos oito mil exemplares da “Edição da
Eleição” e vendemos todos. Tornei-me um leal defensor do sistema de
eleições todos os anos. A democracia no que tinha de melhor.
CAPÍTULO 28
UMA SEMANA ANTES do Dia de Ação de Graças, em 1971, a cidade de
Clanton foi abalada com a notícia de que um dos seus filhos fora
morto no Vietnã. Pete Mooney, um sargento de dezenove anos, fora
capturado numa emboscada perto de Hué, na região central do
Vietnã. Seu corpo fora encontrado poucas horas depois.
Eu não conhecia os Mooney. Margaret conhecia. Ela me ligou para
dar a notícia, e disse que precisava de alguns dias de licença. Sua
família vivia na mesma rua que os Mooney havia muitos anos. Seu
filho e Pete haviam sido grandes amigos desde a infância.
Passei algum tempo nos arquivos e encontrei a reportagem de 1966
sobre Marvin Lee Walker, um garoto negro que fora o primeiro do
condado a morrer no Vietnã. Ocorrera antes do sr. Caudle se
interessar por essas coisas, e a cobertura do Times fora
vergonhosamente mínima. Nada na primeira página. Uma notícia de
cem palavras na terceira página, sem foto. Na ocasião, Clanton nem
sabia onde ficava o Vietnã.
Ou seja, um jovem que não podia frequentar as melhores escolas,
provavelmente não podia votar, e mais do que provavelmente tinha
medo de beber na fonte pública na frente do prédio do tribunal, fora
morto num país que poucas pessoas em sua cidade natal podiam
localizar no mapa. E sua morte fora uma coisa certa e apropriada. Era
preciso lutar contra os comunistas onde quer que pudessem ser
encontrados.
Margaret transmitiu-me os detalhes de que eu precisava para
escrever uma reportagem. Pete formara-se na Clanton High School em
1970. Jogara beisebol e futebol americano, destacando-se nos dois
esportes, a ponto de obter o direito de usar o monograma da escola.
Fora um aluno brilhante. Planejava trabalhar durante dois anos,
guardar dinheiro e ingressar na universidade. Teve o azar de receber
um número alto na lista de possíveis convocados, e o aviso chegou em
dezembro de 1970.
Segundo Margaret — e era uma informação que eu não devia
publicar -, Pete relutara muito em se apresentar para o treinamento
básico. Ele e o pai discutiram por causa da guerra durante muitas
semanas. O filho queria ir para o Canadá e se livrar de toda aquela
confusão. O pai ficara horrorizado com a possibilidade do filho ser
considerado alguém que se esquivara da guerra. O nome da família
ficaria arruinado etc. Chamou o garoto de covarde. O sr. Mooney
servira na Coréia e não tinha a menor paciência com o movimento
contra a guerra. A sra. Mooney tentou assumir o papel de
apaziguadora, mas no fundo do coração também relutava em enviar o
filho para uma guerra impopular. Pete finalmente cedera, e agora
voltava para casa num caixão.
O funeral foi na Primeira Igreja Batista, onde os Mooney eram
ativos havia muitos anos. Pete fora batizado ali, aos onze anos, e isso
era um grande conforto para a família e os amigos. Ele estava agora
com o Senhor, embora ainda fosse muito jovem para ser chamado.
Sentei com Margaret e seu marido. Foi o meu primeiro e último
funeral de um soldado de dezenove anos. Ao me concentrar no
caixão, quase que pude evitar os soluços e, às vezes, gemidos. Seu
treinador no time de futebol americano na escola fez um discurso em
que drenou os olhos de todos os presentes, inclusive os meus.
Mal pude ver as costas do sr. Mooney, na primeira fila. O pobre
coitado devia estar passando por um terrível sofrimento.
Depois de uma hora, deixamos a igreja e fomos para o cemitério de
Clanton, onde Pete foi sepultado, com toda a pompa e cerimônia
militar. Quando o corneteiro solitário tocou o toque de recolher, os
soluços da mãe de Pete me fizeram estremecer. Ela se agarrou ao
caixão, até que começaram a baixá-lo. O pai finalmente desmoronou, e
foi amparado por vários diáconos.
Um lamentável desperdício, repeti muitas vezes, enquanto
caminhava sozinho pelas ruas, seguindo na direção geral do jornal.
Naquela noite, ainda sozinho, critiquei-me por me manter tão tímido,
por ser tão silencioso. Afinal, era o editor do jornal. Quer achasse que
tinha ou não o direito, era o único na cidade. E se tinha uma opinião
muito firme em relação a qualquer problema, tinha o poder e a
posição para escrever um editorial a respeito.

Pete Mooney foi precedido na morte por mais de cinquenta mil


compatriotas, embora os militares fizessem um péssimo trabalho de
relatar a contagem precisa.
Em 1969, o presidente Nixon e seu assessor de Segurança
Nacional, Henry Kissinger, tomaram a decisão de que a guerra no
Vietnã não podia ser vencida; ou melhor, que os Estados Unidos não
mais tentariam vencê-la. Mantiveram essa decisão em segredo. Não
interromperam a convocação. Em vez disso, continuaram a estratégia
cínica de parecerem confiantes num resultado vitorioso.
Desde o momento em que essa decisão foi tomada até o final da
guerra, em 1973, cerca de dezoito mil homens a mais foram mortos,
inclusive Pete Mooney.
Publiquei meu editorial na primeira página, na metade inferior,
sob uma foto grande de Pete no uniforme do exército. Dizia o
seguinte:

A morte de Pete Mooney deve nos levar a fazer a


pergunta clamorosa: Que diabo estamos fazendo no
Vietnã? Um aluno brilhante, um atleta destacado,
um líder estudantil, futuro líder da comunidade,
um dos nossos melhores jovens, metralhado à beira
de um rio de que nunca ouvimos falar, num país
com que pouco nos importamos.
A versão oficial, que já tem mais de vinte anos, é a
de que estamos combatendo o comunismo. Se
achamos que está se espalhando, devemos então, nas
palavras do ex-presidente Lyndon Johnson, “...
tomar as medidas necessárias para evitar mais
agressão ”.
Coréia, Vietnã. Agora temos tropas também no Laos
e Camboja, embora o presidente Nixon negue. Qual
será o próximo país? Devemos mandar nossos filhos
para todos os cantos do mundo, para nos
intrometermos nas guerras civis dos outros?
O Vietnã foi dividido em dois países quando os
franceses foram derrotados, em 1954. O Vietnã do
Norte é um país pobre, dirigido por um comunista
chamado Ho Chi Minh. O Vietnã do Sul é um país
pobre que era dirigido por um ditador brutal,
chamado Ngo Dinh Diem, até que ele foi
assassinado num golpe em 1963. Desde então, o
país tem sido dirigido pelos militares.
O Vietnã se mantém em estado de guerra desde
1946, quando os franceses iniciaram sua fatídica
tentativa de impedir o acesso dos comunistas ao
poder. O fracasso francês foi espetacular, e por isso
decidimos interferir, para mostrar como as guerras
devem ser conduzidas. Nosso fracasso tem sido
maior que o francês, e ainda não chegou ao fim.
Quantos outros Pete Mooney morrerão antes que o
nosso governo decida deixar que o Vietnã siga seu
próprio caminho?
E para quantos outros lugares ao redor do mundo
mandaremos nossas tropas para combater o
comunismo? O que diabo estamos fazendo no
Vietnã? Neste momento, enterramos jovens
soldados, enquanto os políticos que conduzem a
guerra cogitam uma saída.

Usar algumas imprecações acarretaria críticas, mas por que eu


haveria de me importar? Havia necessidade de palavras fortes para
levar a luz aos patriotas cegos do condado de Ford. Antes do fluxo de
telefonemas e cartas, no entanto, acabei fazendo um amigo.
Quando voltei do almoço de quinta-feira com Miss Callie (guisado
de cordeiro, dentro de casa, junto da lareira), encontrei Bubba
Crockett à minha espera no jornal. Usava jeans, botas, camisa de
flanela e cabelos compridos. Depois de se apresentar, ele me
agradeceu pelo editorial. Tinha algumas coisas que queria tirar do
peito. Como eu estava tão recheado quanto um peru de Natal, pus os
pés em cima da mesa e escutei por um longo tempo.
Ele fora criado em Clanton. Terminara a escola ali, em 1966. O pai
era dono da chácara três quilômetros ao sul da cidade; eram
paisagistas. Recebera o aviso de convocação em 1967, e não pensara
em fazer outra coisa que não correr para lutar contra os comunistas.
Sua unidade desembarcara no sul, a tempo de pegar a ofensiva do Tet.
Dois dias em terra e ele já havia perdido três dos seus melhores
amigos.
O horror da guerra não podia ser descrito com precisão, embora
Bubba fosse bastante descritivo. Homens em chamas, gritando por
socorro, tropeçar em pedaços de corpos, arrastar homens para fora do
campo de batalha, horas sem dormir, sem comer, a munição se
esgotando, vendo o inimigo rastejar em sua direção durante a noite.
Seu batalhão perdera cem homens nos cinco primeiros dias.
— Depois de uma semana, eu sabia que também ia morrer -disse
ele, os olhos cheios de lágrimas. - A esta altura, já me tornara um
excelente soldado. É preciso chegar a esse ponto para sobreviver.
Fora ferido duas vezes, mas ferimentos leves, que podiam ser
tratados no hospital de campanha, nada que o levasse de volta para
casa. Ele falou da frustração de lutar uma guerra que o governo não
lhes permitia vencer.
— Éramos soldados melhores - disse Bubba. - E nosso
equipamento era muito superior. Nossos comandantes eram
magníficos, mas os idiotas em Washington não deixavam que
lutassem uma guerra.
Bubba conhecia a família Mooney e suplicara a Pete para não ir.
Acompanhara o serviço fúnebre à distância, amaldiçoara todos os que
podia ver e muitos que não vira.
— Dá para acreditar que ainda há idiotas por aqui que apoiam a
guerra? Mais de cinquenta mil mortos, agora estamos saindo, e as
pessoas ainda argumentam com vocês, nas ruas de Clanton, que foi
uma grande causa.
— Eles não argumentam com você - comentei.
— É verdade. Já esmurrei alguns. Você joga pôquer?
Eu não jogava, mas já ouvira várias histórias pitorescas sobre rodas
de pôquer na cidade. Achei que poderia ser interessante.
— Um pouco.
Calculei que poderia encontrar um livro com as regras, ou pedir a
Baggy para me ensinar.
— Jogamos nas noites de quinta-feira, num barracão na chácara.
Vários caras que lutaram no Vietnã. Você vai gostar.
— Esta noite?
— Isso mesmo. Por volta de oito horas. Apostas baixas, alguma
cerveja, algum fumo, algumas histórias de guerra. Meus
companheiros querem conhecê-lo.
— Estarei lá - prometi, já pensando onde poderia encontrar Baggy.

Quatro cartas foram enfiadas por baixo da porta naquela tarde,


todas veementes em suas críticas a mim e minha crítica da guerra. O
sr. E. L. Green, um veterano de duas guerras, antigo assinante do
Times, embora essa circunstância pudesse mudar a qualquer
momento, escreveu, entre outras coisas:

Se não impedirmos, o comunismo vai se espalhar por


todos os cantos do mundo. Um dia estará em nossa porta,
e nossos filhos e netos perguntarão por que não tivemos a
coragem de contê-lo antes que se espalhasse.

O irmão do sr. Herbert Gillenwater morrera no conflito


coreano. Ele escreveu:

Sua morte foi uma tragédia que ainda me angustia


todos os dias. Mas ele foi um soldado, um herói, um
americano orgulhoso, e sua morte ajudou a conter os
norte-coreanos e seus aliados, os chineses vermelhos e os
russos. Quando tivermos medo de lutar, seremos
conquistados.

O sr. Felix Toliver, de Shady Grove, sugeriu que talvez eu tivesse


passado tempo demais no Norte, onde as pessoas têm medo de armas,
como é notório. Disse que as Forças Armadas americanas sempre
haviam sido dominadas por bravos jovens do Sul; se eu não
acreditava nisso, deveria fazer uma pesquisa a respeito. Havia uma
quantidade desproporcional de baixas sulistas na Coréia e Vietnã. E
ele concluiu, com alguma eloquência:

NOSSA LIBERDADE FOI CONQUISTADA AO PREÇO TERRÍVEL DAS


VIDAS DE INCONTÁVEIS BRAVOS SOLDADOS. MAS O QUE
ACONTECERIA SE TIVÉSSEMOS MEDO DE LUTAR? HITLER E OS
JAPONESES AINDA ESTARIAM NO PODER. E GRANDE PARTE DO
MUNDO CIVILIZADO ESTARIA EM RUÍNAS. FICARÍAMOS ISOLADOS E
ACABARÍAMOS SENDO DESTRUÍDOS.

Eu planejava publicar todas as cartas ao editor, mas esperava que


pudesse haver algumas de apoio ao meu editorial. As críticas não me
incomodavam nem um pouco. Tinha a convicção absoluta de que
estava certo. E começava a desenvolver uma pele um tanto grossa, o
que é sempre uma característica útil para um editor.

Depois de uma aula rápida com Baggy, perdi cem dólares jogando
pôquer com Bubba e seus amigos. Eles me convidaram a voltar.
Éramos cinco em torno da mesa, todos com vinte e poucos anos.
Três haviam lutado no Vietnã: Bubba, Darrell Radke, cuja família era
dona da companhia de gás, e Cedric Young, um negro com um grave
ferimento na perna. O quinto jogador era o irmão mais velho de
Bubba, David, que fora rejeitado pela junta militar por causa da vista,
e que só comparecia, eu acho, por causa da maconha.
Conversamos muito sobre drogas. Nenhum dos três veteranos vira
ou ouvira falar de maconha - ou qualquer outra droga -antes de
ingressar no exército. Riam da ideia de drogas nas ruas de Clanton na
década de 1960. No Vietnã, o consumo de drogas era desenfreado.
Fumavam maconha quando se sentiam entediados e com saudade de
casa; e fumavam também para acalmar os nervos em combate. Os
hospitais de campanha enchiam os feridos com os analgésicos mais
fortes disponíveis. Cedric Ficara viciado em morfina duas semanas
depois de ser ferido.
A pedido deles, contei algumas histórias de drogas na
universidade, mas era um amador entre profissionais. Não creio que
eles estivessem exagerando. E cheguei à conclusão de que não era de
admirar que perdêssemos a guerra: todos estavam drogados.
Manifestaram sua admiração por meu editorial e uma profunda
amargura por terem sido enviados para o Vietnã. Cada um dos três
tinha cicatrizes da guerra. As cicatrizes de Cedric eram óbvias. As de
Bubba e Darrell eram mais uma raiva fumegante, uma fúria que mal
conseguiam controlar, uma vontade de atacar com toda a violência...
mas atacar quem?
Mais tarde, durante o jogo de pôquer, eles começaram a trocar
histórias terríveis de cenas de combate. Eu já ouvira o comentário de
que muitos soldados recusavam-se a falar sobre suas experiências de
guerra. Aqueles três não se importavam nem um pouco. Era
terapêutico.
Eles jogavam pôquer em quase todas as noites de quinta-feira e me
asseguraram de que eu seria sempre bem-vindo. Quando os deixei,
por volta de meia-noite, ainda estavam bebendo, ainda estavam
puxando fumo, ainda falavam sobre o Vietnã. Eu já cansara de ouvir
falar da guerra por um dia.
CAPÍTULO 29
DEDIQUEI UMA PÁGINA INTEIRA a controvérsia sobre a guerra que eu
criara na semana seguinte. Havia muitas cartas ao editor; dezessete,
no total, apenas duas apoiando mais ou menos meus sentimentos
contra a guerra. Fui chamado de comunista, liberal, traidor,
carpetbagger, e o pior de tudo, um covarde, porque não usara o
uniforme. Cada carta era orgulhosamente assinada. Não houve cartas
anônimas naquela semana. Aquelas pessoas eram patriotas
inflamadas que me detestavam e queriam que todo o condado
soubesse disso.
Não me importava. Mexera num ninho de vespas, e a cidade
estava pelo menos debatendo a guerra. A maior parte dos debates era
unilateral, mas eu despertara fortes sentimentos.
A reação às dezessete cartas foi espantosa. Um grupo de
estudantes de ensino médio veio em meu socorro, com suas cartas,
entregues pessoalmente. Eram contra a guerra, não tinham a menor
intenção de lutar no Vietnã e ainda estranhavam que a maioria das
cartas da semana fossem de pessoas velhas demais para as Forças
Armadas. “É o nosso sangue, não o de vocês”, foi minha frase
predileta.
Muitos estudantes focalizaram cartas que eu publicara para
criticarem seus autores com veemência. Becky Jenkins sentiu-se
ofendida pela declaração do sr. Robert Earl Huff de que “... nossa
nação foi construída pelo sangue de nossos soldados. As guerras
sempre nos acompanharão”.
Ela respondeu: As guerras nos acompanharão enquanto homem.
ignorantes e gananciosos tentarem impor sua vontade aos Kirk
Wallace protestou contra a descrição um tanto exaustiva que a sra.
Mattie Louise Ferguson fez de mim. No parágrafo final, ele escreveu:
“É triste, mas a sra. Ferguson não reconheceria um comunista, um
liberal, um traidor, ou um carpetbagger, se encontrasse algum. A vida
em Possum Ridge a protege de gente assim."
Na semana seguinte, dediquei uma página inteira às 31 cartas dos
estudantes. Havia ainda três cartas de pessoas favoráveis à guerra que
haviam chegado com atraso, e que também publiquei. A resposta foi
outro fluxo de cartas, todas publicadas.
Através das páginas do Times, travamos a guerra até o Natal,
quando todos, subitamente, clamaram por uma trégua, e assentaram
para os feriados.

O sr. Max Hocutt morreu no dia de Ano Novo de 1972. Gilma


bateu na janela do meu apartamento no início da manhã, e acabou me
forçando a ir até a porta. Eu dormia havia menos de cinco horas, e
precisava de um dia inteiro de sono profundo, talvez dois.
Acompanhei-a até a velha mansão, minha primeira visita ao
interior em muitos meses. Fiquei chocado pela deterioração. Mas
havia agora problemas mais urgentes. Fomos até a escada principal.
Wilma encontrou-se conosco ali. Apontou um dedo torto e murcho
para o alto, dizendo:
— Ele está lá em cima. Primeira porta à direita. Já subimos uma
vez esta manhã.
Subir a escada uma vez por dia era o limite das duas. Estavam
agora no final da casa dos setenta anos, não muito atrás do sr. Max.
Ele estava deitado numa cama enorme, com um lençol branco sujo
puxado até o pescoço. A pele tinha a cor do lençol. Parei ao seu lado
por um momento, para ter certeza de que não respirava mais. Nunca
fora chamado para determinar se alguém havia morrido, mas aquele
não era um caso recente. O sr. Max dava a impressão de que estava
morto fazia um mês.
Desci a escada, para encontrar Wilma e Gilma no mesmo lugar em
que as deixara.
— Infelizmente, ele está morto.
— Sabemos disso - informou Gilma.
— Diga-nos o que fazer - acrescentou Wilma.
Aquele era o primeiro cadáver que me chamavam para processar.
Mas o próximo passo parecia bastante óbvio.
— Talvez devêssemos chamar o sr. Magargel, da agência funerária.
— Foi o que eu falei - disse Wilma para Gilma.
Elas não se mexeram. Por isso, fui até o telefone e liguei para o sr.
Magargel.
— É o dia de Ano Novo - disse ele.
Era evidente que minha ligação o acordara.
— Mas ele está morto.
— Tem certeza?
— Tenho. Acabo de vê-lo.
— Onde ele está?
— Na cama. Morreu em paz.
— Às vezes esses velhos excêntricos estão apenas num sono
profundo.
Afastei-me das gêmeas, para que não pudessem me ouvir discutir
se o irmão morrera ou não.
— Ele não está dormindo, sr. Magargel. Morreu mesmo.
— Estarei aí dentro de uma hora.
— Há mais alguma coisa que devamos fazer?
— Por exemplo?
— Não sei... Avisar a polícia, ou qualquer coisa parecida?
— Ele foi assassinado?
— Não.
— Então por que quer chamar a polícia?
— Desculpe ter perguntado.
Elas me convidaram para tomar um café solúvel na cozinha. Havia
no balcão uma caixa de Cream of Wheat, tendo ao lado uma tigela
grande do cereal, pronto para ser comido. Era evidente que Wilma ou
Gilma preparara o cereal para o irmão; como ele não descesse,
subiram à sua procura.
O café era insuportável, até que despejei açúcar. As duas sentaram-
se à mesa estreita, fitando-me, curiosas. Tinham os olhos vermelhos,
mas não haviam chorado.
— Não podemos continuar a morar aqui - anunciou Wilma, com a
determinação que vem de anos de discussão.
— Queremos que você compre a casa - acrescentou Gilma.
Uma das irmãs mal completava uma frase antes que a outra
iniciasse uma nova frase.
— Venderemos para você...
— Por cem mil...
— Pegamos o dinheiro...
— E nos mudamos para a Flórida...
— Flórida? - indaguei.
— Temos uma prima ali...
— Ela mora numa comunidade de idosos...
— É um lugar adorável...
— E cuidam bem da gente...
— E Melberta está perto.
Melberta? Eu pensava que ela ainda se encontrava em algum lugar
da casa, esgueirando-se pelas sombras. As gêmeas explicaram que
haviam-na internado num “lar” havia poucos meses. O “lar” ficava
em algum lugar ao norte de Tampa. Era para lá que queriam ir, e
passar o resto de seus dias. A amada mansão era um encargo grande
demais para que continuassem a mantê-la. Tinham problemas de
bacia, joelhos fracos, vista deficiente. Subiam a escada uma vez por
dia - “24 degraus”, informou Gilma - mas tinham pavor de cair e
morrer. Não havia dinheiro suficiente para tornar a casa segura, e não
queriam desperdiçar o dinheiro que tinham em empregadas,
jardineiros e um motorista agora...
— Queremos que compre o Mercedes também...
— Não sabemos guiar...
— Max sempre nos levou...
De vez em quando, apenas pela diversão, eu dava uma olhada no
velocímetro do Mercedes de Max. A média era apenas de 1. 500
quilômetros por ano. Ao contrário da casa, o carro se encontrava em
perfeitas condições.
A casa tinha seis quartos, quatro andares e um porão, quatro ou
cinco banheiros, sala de estar e sala de jantar, biblioteca, cozinha,
varandas largas que ameaçavam cair, e um sótão que eu tinha certeza
de que estava abarrotado com tesouros da família, ali enterrados
durante séculos. Levaria meses só para limpar, antes que os operários
pudessem entrar para iniciar a reforma. Cem mil dólares era um preço
baixo por uma mansão assim, mas não havia jornais vendidos em
todo o estado em quantidade suficiente para pagar a reforma.
E o que fazer com todos aqueles animais? Gatos, aves, coelhos,
esquilos, peixes dourados, a casa era quase um zoológico.
Eu vinha procurando uma casa para comprar. Mas, para ser
franco, sentia-me tão bem pagando cinquenta dólares por mês que
tinha dificuldade para sair. Estava com 24 anos, solteiro e me divertia
muito vendo o dinheiro se acumular no banco. Por que me arriscaria à
ruína financeira ao comprar aquele sorvedouro de dinheiro?
Comprei a casa dois dias depois do funeral.

Numa quinta-feira fria e úmida, em fevereiro, estacionei na frente


da residência dos Ruffin, em Lowtown. Esau esperava na varanda.
— Trocou de carro? - perguntou ele, quando me aproximei.
— Não. Ainda tenho o pequeno. Este era do sr. Hocutt.
— Pensei que era preto.
Havia tão poucos Mercedes no condado de Ford que não era difícil
conhecer cada um.
— Precisava de uma pintura.
O carro era agora marrom-escuro. Eu tinha de cobrir as facas que o
sr. Hocutt pintara nas portas da frente. Por isso, quando o carro estava
na oficina, decidi mudar a cor por completo.
Espalhou-se o rumor que eu dera um golpe nas irmãs Hocutt para
ficar com o Mercedes. Na verdade, eu pagara o valor de mercado, 9.
500 dólares. A aquisição fora aprovada pelo juiz Reuben V. Atlee, que
havia muito tempo presidia o tribunal comercial do condado de Ford.
Ele também aprovara a compra da casa por cem mil dólares. Era uma
cifra que parecia baixa, mas que se tornou alta depois que dois
avaliadores designados pelo tribunal estimaram o valor em 75 mil e 85
mil dólares. Um dos avaliadores ressaltou que qualquer reforma da
casa envolveria gastos consideráveis e imprevisíveis”.
Meu advogado, Harry Rex, fez questão que eu lesse essa
conclusão.
Esau parecia desanimado. A situação não melhorou depois que
entramos. A casa, como sempre, chiava com o molho de alguma besta
deliciosa que era assada no forno. O prato hoje seria coelho.
Abracei Miss Callie e compreendi no mesmo instante que havia
alguma coisa terrivelmente errada. Esau pegou um envelope e
informou:
— Este é um aviso de convocação. Para Sam.
Ele largou em cima da mesa, para que eu visse, e depois saiu da
cozinha.
A conversa foi lenta durante o almoço. Os dois estavam aflitos,
preocupados, muito confusos. Esau às vezes achava que o mais
apropriado era Sam cumprir qualquer dever que seu país exigia. Miss
Callie achava que já perdera Sam uma vez. A perspectiva de perdê-lo
de novo era insuportável.
Liguei para Sam naquela noite e dei a má notícia. Ele estava em
Toledo, passando alguns dias com Max. Conversamos por mais de
uma hora. Fui inflexível na minha convicção de que ele não tinha o
que fazer no Vietnã. Felizmente, Max pensava da mesma maneira.
Durante a semana seguinte, passei horas ao telefone com Sam,
Bobby, Al, Leon, Max e Mario, enquanto partilhávamos nossas
opiniões sobre o que Sam deveria fazer. Nem ele nem qualquer de
seus irmãos achavam que a guerra era justa. Mario e Al, no entanto,
estavam convencidos de que era errado violar a lei. Eu era de longe o
maior pombo de todos, como chamavam os pacifistas naquele tempo,
com Bobby e Leon numa posição intermediária. Sam parecia impelido
pelo vento, mudando de posição todos os dias. Era uma decisão
angustiante. À medida que os dias passavam, ele parecia passar mais
e mais tempo conversando comigo. O fato de estar fugindo há dois
anos ajudava muito.
Depois de duas semanas de avaliação, Sam desapareceu, para
ressurgir em Ontário. Ligou a cobrar uma noite, e pediu-me para dizer
a seus pais que estava bem. No início da manha seguinte, fui a
Lowtown e dei a notícia a Esau e Miss Callie de que o filho caçula
acabara de tomar a decisão mais sensata de sua vida.
Para eles, o Canadá parecia estar a um milhão de quilômetros de
distância. Mas não era tão distante quanto o Vietnã, assegurei.
CAPÍTULO 30
O SEGUNDO EMPREITEIRO que contratei para reformar a casa Hocutt foi
o sr. Lester Klump, de Shady Grove. Ele fora muito bem recomendado
por Baggy, que sabia exatamente, é claro, como reformar uma mansão
antiga. Stan Atcavage, o presidente do banco, também recomendou o
sr. Klump. Acatei sua recomendação, já que Stan tinha a hipoteca de
cem mil dólares da casa.
O primeiro empreiteiro não aparecera. Liguei depois de esperar
por três dias. Seu telefone fora desligado, o que era o pior sinal
possível.
O sr. Klump e seu filho, Lester Junior, passaram dias examinando
a casa. Estavam apavorados com o projeto, e sabiam que se tornaria
um pesadelo se alguém resolvesse ter pressa, eu em particular. Eram
lentos e metódicos. Até falavam mais devagar do que a maioria das
pessoas no condado de Ford. Logo compreendi que pareciam fazer
tudo na segunda marcha. Provavelmente não ajudou a explicação de
que eu já residia em aposentos muito confortáveis na propriedade, e
por isso não ficaria desabrigado se eles não se apressassem.
A reputação deles era a de serem sérios e geralmente concluírem
as obras dentro dos prazos marcados. Isso os punha no alto da lista no
mundo das reformas.
Depois de alguns dias coçando a cabeça e chutando o cascalho,
concordamos num plano pelo qual eles me apresentariam uma conta
todas as semanas por seu trabalho e material, acrescentando dez por
cento de “despesas gerais”, que eu esperava que significasse seu lucro.
Levei uma semana de insistência e briga para fazer Harry Rex
elaborar um contrato. A princípio, ele se recusou, chamando-me dos
epítetos mais exóticos.
Os Klump começariam com a limpeza e demolição, depois
cuidariam do telhado e das varandas. Quando isso acabasse,
sentaríamos para planejar a fase seguinte. O projeto foi iniciado em
abril de 1972.
Pelo menos um dos Klump aparecia todos os dias, com uma turma
de operários. Passaram o primeiro mês expulsando toda a vida
selvagem que durante décadas havia convertido a propriedade em
seu lar.

Um carro cheio de estudantes foi detido por um patrulheiro


rodoviário poucas horas depois da formatura na escola de ensino
médio. Havia muita cerveja no carro. O patrulheiro, ainda
inexperiente, recém-saído da academia, onde fora alertado para essas
coisas, sentiu também um cheiro estranho. As drogas finalmente
chegavam ao condado de Ford.
Havia maconha no carro. Os seis estudantes foram acusados de
posse de droga ilegal e de todos os outros crimes que a polícia pôde
lhes imputar. A cidade ficou chocada. Como fora possível que as
drogas se infiltrassem em nossa pequena e inocente comunidade?
Como podíamos conter a invasão? Não dei o menor destaque à notícia
no jornal; não havia sentido em crucificar seis bons garotos que
haviam cometido um erro. O xerife Meredith foi citado, ao dizer que
agiria decidido para “remover esse flagelo” de nossa comunidade.
“Isto não é a Califórnia”, declarou ele.
Como era de se esperar, todos em Clanton mostraram-se
subitamente atentos a traficantes de drogas, embora ninguém
soubesse direito como pareciam.
Como a polícia estava em alerta, ansiosa por outro fragrante de
drogas, o pôquer da quinta-feira seguinte foi transferido para outro
local, no meio do mato. Bubba Crockett e Darrell Radke viviam numa
velha cabana dilapidada, junto com um veterano que não jogava
pôquer, chamado Ollie Hinds. Chamavam o lugar de Foxhole, a
trincheira para os soldados. Ficava escondida numa ravina cheia de
árvores, ao final de uma estrada de terra que não se podia encontrar
nem em plena luz do dia.
Ollie Hinds sofria de todos os traumas do pós-guerra e
provavelmente de mais alguns surgidos antes da guerra. Era de
Minnesota, servira com Bubba e sobrevivera aos terríveis pesadelos.
Fora baleado, queimado, capturado por breve período, fugira, e
finalmente voltara para casa quando um psiquiatra do exército
concluira que ele precisava de uma ajuda intensa. Aparentemente,
Ollie nunca recebera essa ajuda. Quando o Conheci, ele estava sem
camisa, deixando à mostra as cicatrizes e tatuagens. Tinha os olhos
vidrados, e eu logo aprenderia que era a sua condição habitual.
Senti-me grato por ele não jogar pôquer. Se tivesse duas mãos
ruins seguidas, pensei que ele seria bem capaz de pegar um M-16 para
acertar as contas.
O flagrante de drogas e a reação da cidade foram a fonte de muito
humor e zombarias. As pessoas agiam como se os seus adolescentes
fossem os primeiros usuários de drogas. Desde que haviam sido
apanhados que o condado estava em crise. Com alguma vigilância e
uma conversa mais dura, a praga das drogas ilegais poderia ser
desviada para outra parte do país.
Nixon minara o porto em Haiphong e bombardeava Hanói com
uma fúria intensa. Levantei o assunto, para obter uma reação. Mas
havia pouco interesse pela guerra naquela noite.
Darrell ouvira o rumor de que um garoto negro de Clanton fora
convocado e fugira para o Canadá. Não falei nada.
— Garoto esperto - murmurou Bubba. - Muito esperto.
A conversa logo voltou às drogas. Em determinado momento,
Bubba admirou seu cigarro de maconha e comentou:
— Este baseado é uma beleza. Não veio dos Padgitt.
— É de Memphis - informou Darrell. — Maconha mexicana.
Como eu nada sabia sobre o tráfico de drogas no condado,
mantive-me atento. Depois, quando parecia evidente que eles não
diriam mais nada a respeito, comentei:
— Pensei que o produto dos Padgitt fosse da melhor qualidade.
— Eles deveriam ter ficado com o moonshine — disse Bubba.
Dá para consumir, se você não consegue arrumar mais nada
acrescentou Darrell. - Eles enriqueceram há alguns anos. Começaram
a plantar antes de qualquer outro por aqui. Mas agora há uma forte
concorrência.
— Ouvi dizer que eles estão pensando em suspender o cultivo, e
voltar a se dedicarem ao uísque e roubo de carros - informou Bubba.
— Por quê? — indaguei.
— Há muito mais agentes de repressão aos narcóticos agora.
Estaduais, federais, locais. Contam com helicópteros e equipamentos
de vigilância. Não é como no México, onde ninguém se importa com o
que você planta.
Soaram tiros lá fora, não muito longe. Os outros não se
perturbaram.
— O que será isso? - indaguei.
— É Ollie - explicou Darrell. - Atrás de um gambá. Ele tem óculos
de visão noturna, pega seu M-16 e sai à procura dos bichos. Chama de
caçada de crioulos.
Por sorte, perdi as três mãos seguintes, e encontrei o momento
perfeito para me despedir.

Depois de muita protelação, o Superior Tribunal do Mississippi


finalmente confirmou a condenação de Danny Padgitt. Quatro meses
antes, já decidira manter a condenação, por seis votos a três. Lucien
Wilbanks entrou com uma petição para uma nova audiência, que fora
deferida. Harry Rex achou que isso podia significar problemas.
Houve uma nova audiência, e, quase dois anos depois do
julgamento, o tribunal finalmente resolveu a questão. A votação pela
confirmação da sentença foi de cinco a quatro.
s dissidentes aceitaram o argumento clamoroso de Lucien de que
Ernie Gaddis tivera liberdade demais para pressionar Danny Padgitt
na reinquirição. Com suas perguntas persistentes sobre a presença dos
filhos de Rhoda no quarto, testemunhando o estupro, Ernie tivera
permissão para apresentar ao júri fatos tendenciosos, sobre os quais
não havia qualquer prova.
Harry Rex lera todos os autos e acompanhara a apelação para
mim. Estava preocupado, achando que Wilbanks tinha um argumento
legítimo. Se os desembargadores considerassem procedente, o
processo seria enviado de volta a Clanton, para um novo julgamento.
Por um lado, um novo julgamento seria bom para o jornal. Por outro
lado, eu não queria que os Padgitt saíssem de sua ilha e circulassem
por Clanton, causando problemas.
Ao final, porém, apenas quatro desembargadores divergiram, e o
recurso foi indeferido. Publiquei a boa notícia na primeira página do
Times, esperando nunca mais ouvir falar no nome de Danny Padgitt.
PARTE TRÊS
CAPÍTULO 31
CINCO ANOS E DOIS MESES DEPOIS de entrarem na casa Hocutt pela
primeira vez, Lester Klump, Sr. e Lester Klump, Jr. terminaram a
reforma. A provação acabara, e os resultados eram esplêndidos.
Depois que aceitei o ritmo lânguido de pai e filho, preparei-me
para uma longa espera e me empenhei ainda mais em vender
anúncios no jornal. Por duas vezes, durante o último ano do projeto,
tentei insensatamente residir na casa, encontrando alguma maneira de
conviver com os detritos. Não tive muita dificuldade para aceitar a
poeira, o cheiro de tinta, os corredores bloqueados, o fornecimento
irregular de energia elétrica, mas nunca poderia me adaptar ao
barulho de martelos e serrotes logo no início da manhã. Eles não eram
pássaros matutinos, o que era comum entre os empreiteiros, como
logo aprendi, mas costumavam começar a trabalhar por volta de oito e
meia. Eu gostava de dormir até dez horas. Seja como for, o arranjo não
deu certo. Depois de cada tentativa de viver na mansão, atravessei o
caminho de cascalho de volta ao meu apartamento em cima da
garagem, onde havia um pouco mais de sossego.
Apenas uma vez, em cinco anos, não consegui pagar os Klump no
prazo. Recusei-me a tomar dinheiro emprestado para o projeto,
embora Stan Atcavage estivesse disposto a me conceder qualquer
empréstimo. Depois do trabalho, toda sexta-feira, eu sentava com
Lester pai, em geral numa mesa improvisada de madeira
compensada, num corredor, calculávamos o total da mão de obra e do
material durante a semana, enquanto tomávamos uma cerveja gelada,
acrescentávamos dez por cento, e eu fazia o cheque. Sempre
arquivava as notas que ele me dava. Durante os dois primeiros anos,
mantive atualizado o custo total da reforma.
Depois desse tempo, no entanto, deixei de acrescentar o valor
semanal ao acumulado. Não queria saber quanto estava custando.
Ao final, descobri-me sem dinheiro, mas não me importava. O
sorvedouro de dinheiro fora fechado. Eu balançara à beira da
insolvência, conseguira evitá-la, e agora podia começar a acumular
dinheiro outra vez.
E tinha algo magnífico para mostrar pelo tempo, esforço e
investimento. A casa fora construída por volta de 1900 pelo dr. Miles
Hocutt. Tinha um nítido estilo vitoriano, com dois telhados inclinados
na frente, uma torre que se erguia por quatro andares, varandas
cobertas que se estendiam pelos lados. anos, os Hocutt haviam
pintado a casa de azul e amarelo. O sr. Klump, até encontrara uma
área vermelha, por baixo de três camadas de tinta mais nova. Preferi
me manter seguro, optando por branco e bege, com remates em
marrom-claro. O telhado era de cobre. Por fora, era uma casa vitoriana
um tanto feia, mas eu teria muitos anos para embelezá-la.
No interior, os assoalhos de cerne de pinheiro, em todos os três
andares, haviam sido restaurados para sua beleza original. Paredes
foram derrubadas, cômodos e corredores ampliados. Os Klump foram
finalmente obrigados a remover toda a cozinha, fazendo outra. A
lareira da sala de estar desabara sob a pressão implacável das
britadeiras. Transformei a biblioteca numa sala íntima e derrubei mais
paredes. Assim, quando você entrava no vestíbulo, podia ver até a
cozinha distante. Acrescentei mais janelas por toda parte; a casa fora
originalmente construída como uma caverna.
O sr. Klump admitiu que nunca tomara champanhe, mas bebeu
com a maior satisfação quando concluímos nossa pequena cerimônia,
numa varanda lateral. Entreguei-lhe o que esperava ser seu último
cheque. Trocamos um aperto de mão, posamos para a loto batida por
Wiley Meek, e depois abrimos a garrafa de champanhe.
Muitos cômodos estavam vazios; levaria anos para decorar direito
a mansão, e exigiria a ajuda de alguém com muito mais conhecimento
e bom gosto do que eu possuía. Embora meio vazia, ainda assim a
casa era espetacular. Precisava de uma festa!
Peguei dois mil dólares emprestados com Stan. Encomendei vinho
e champanhe em Memphis. Encontrei um bom fornecedor de bufê em
Tupelo. O único em Clanton especializava-se em costela e bagres, e eu
queria algo com mais classe.
A lista oficial de convidados, de trezentas pessoas, incluía todos
que eu conhecia na cidade, e alguns que não conhecia. A lista
extraoficial era formada por aqueles que me ouviram dizer: “Teremos
uma grande festa quando a obra acabar. ” Convidei BeeBee e três de
suas amigas de Memphis. Convidei meu pai, mas ele andava muito
preocupado com a inflação e o mercado financeiro. Convidei Miss
Callie e Esau, o reverendo Thurston Small, Claude, três funcionários
do tribunal, duas professoras, um técnico assistente do time de
basquete, um caixa do banco e o mais novo advogado da cidade. Isso
dava um total de doze negros. Eu convidaria mais se conhecesse mais.
Estava determinado a oferecer a primeira festa integrada em Clanton.
Harry Rex levou moonshine e uma travessa grande com chitlins, o
que quase acabou com a festa. Bubba Crockett e a turma de Foxhole
chegaram drogados, ansiosos para comemorar. O sr. Mitlo usava o
único smoking. Piston compareceu. Pouco depois de sua chegada, foi
visto a se esgueirar pela porta dos fundos com uma bolsa cheia de
salgadinhos. Woody Gates e os Country Boys tocaram por horas a fio,
numa varanda lateral. Os Klump também foram, com todos os seus
operários; foi um grande momento para eles, e cuidei para que
recebessem todo o crédito merecido. Lucien Wilbanks chegou tarde.
Foi visto numa acalorada discussão sobre política com o senador Theo
Morton, cuja esposa, Rex Ella, me disse que era a festa mais
espetacular que vira em Clanton nos últimos vinte anos. Nosso novo
xerife, Tryce McNatt, apareceu com vários de seus ajudantes, todos
uniformizados (T. R. Meredith morrera de câncer do intestino no ano
anterior). Um dos meus prediletos, juiz Reuben V. Atlee, foi o centro
das atenções de um grupo grande, contando histórias pitorescas sobre
o dr. Miles Hocutt. O reverendo Millard Stark, da Primeira Igreja
Batista, ficou apenas dez minutos, saindo discretamente ao perceber
que estavam servindo bebidas alcoólicas. O reverendo Cargrove, da
Primeira Igreja Presbiteriana, foi visto a tomar champanhe, e parecia
apreciar. Baggy apagou num quarto no segundo andar, onde
encontrei-o na tarde seguinte. Os gêmeos Stuke, que eram os donos da
loja de ferragens, apareceram em macacões iguais, novos. Já tinham
setenta anos, moravam juntos, nunca haviam casado, e usavam
macacões iguais todos os dias. Não havia exigência de qualquer tipo
de roupa; o convite dizia “Traje Livre”.
Havia dois toldos brancos enormes no gramado da frente, e às
vezes a multidão se derramava para fora. A festa começou a uma hora
da tarde de sábado, e teria se prolongado além de meia-noite se ainda
restasse vinho e comida. Por volta de dez horas, Woody Gates e sua
banda estavam exaustos, nada restava para beber, além de umas
poucas cervejas quentes, nada para comer, exceto algumas tortillas, e
nada mais para ver. A casa fora totalmente vista e apreciada.
Ao final da manhã seguinte, fiz ovos mexidos para BeeBee e suas
amigas. Sentamos na varanda da frente, tomando café e admirando a
sujeira deixada pela festa. Precisei de uma semana para limpar tudo.

Ao longo dos anos em Clanton, eu ouvira histórias de horror sobre


as condições da penitenciária estadual em Parchman. Ficava nas
extensas planícies do delta, a região agrícola mais fértil do estado,
duas horas a oeste de Clanton. As condições eram as piores possíveis:
alojamentos apertados, sufocantes no verão e gelados no inverno,
comida horrível, cuidados médicos insuficientes, um sistema de
escravidão, sexo brutal. Trabalhos forçados, guardas sádicos. A lista
era interminável e patética.
Quando pensava em Danny Padgitt, o que acontecia com
frequência, sempre me sentia confortado pela convicção de que ele
estava recebendo o que merecia em Parchman. Ele tinha sorte de não
ter sido amarrado numa cadeira na câmara de gás.
Minhas suposições eram equivocadas.
Ao final dos anos 60, num esforço para atenuar a superlotação em
Parchman, o estado construíra duas prisões satélites, ou “campos”,
como eram chamados. O plano era o de colocar mil condenados não-
violentos num confinamento mais civilizado. Receberiam treinamento
para conseguir um emprego depois, até mesmo seriam indicados para
trabalhar ao serem soltos. Um desses satélites ficava perto da pequena
cidade de Broomfield, três horas ao sul de Clanton.
O juiz Loopus morreu em 1972. Durante o julgamento de Danny
Padgitt, sua estenógrafa fora uma jovem desgraciosa chamada Daria
Clabo. Ela trabalhou para Loopus por alguns anos. Depois de sua
morte, deixou a área. Quando entrou em minha sala, ao final de uma
tarde no verão de 1977, compreendi logo que já a vira em algum lugar,
no passado distante.
Daria apresentou-se, e me lembrei de onde a conhecia. Por cinco
dias consecutivos, durante o julgamento de Padgitt, ela sentara logo
abaixo da bancada do juiz, ao lado da mesa de provas, anotando cada
palavra. Morava agora no Alabama, e guiara durante cinco horas para
me dizer uma coisa. Primeiro, exigiu que eu jurasse segredo absoluto.
Sua cidade natal era Broomfield. Duas semanas antes, fora visitar a
mãe. Vira um rosto familiar descendo pela calçada, na hora do
almoço. Era Danny Padgitt, passeando com um companheiro. Ela
ficara tão surpresa que tropeçara na beira da calçada e quase caíra.
Os dois entraram num restaurante local e sentaram para almoçar.
Daria vira-os através de uma janela e decidira não entrar. Havia uma
possibilidade de que Padgitt pudesse reconhecê-la, embora ela não
entendesse por que isso a deixava tão assustada.
O homem em sua companhia usava um uniforme que era comum
em Broomfield: calça azul-marinho e camisa branca de mangas curtas,
com as palavras “Centro Correcional de Broomfield” por cima do
bolso, em letras pequenas. Também usava botas pretas de caubói e
não tinha arma. Ela explicou que os guardas que cuidavam dos presos
tinham a opção de andar ou não armados quando estavam de folga.
Era difícil imaginar um homem branco no Mississippi que declinasse
voluntariamente o porte de uma arma, se tivesse a opção, mas ela
desconfiava de que Danny talvez preferisse que seu guarda pessoal
não andasse armado.
Danny vestia um macacão e camisa branca, provavelmente
fornecidos pela prisão. Os dois tiveram um almoço demorado.
Pareciam ser grandes amigos. De seu carro, Daria observara-os
quando saíram do restaurante. Seguira-os à distância, enquanto
passeavam sem pressa por alguns quarteirões, até que Danny entrara
no prédio em que ficava o escritório local do Departamento de
Estradas de Rodagem do Mississippi. O guarda embarcara num
veículo da prisão e fora embora.
Na manhã seguinte, a mãe de Daria estivera no prédio, sob o
pretexto de apresentar uma queixa contra uma estrada que precisava
de reparos. Fora informada, em termos ásperos, que esse
procedimento não era admitido. Na discussão subsequente, ela
vislumbrara o jovem que Daria descrevera com todo o cuidado. Ele
segurava uma prancheta e parecia ser apenas mais um burocrata
inútil.
A mãe de Daria tinha uma amiga cujo filho trabalhava na prisão
em Broomfield. Ele confirmara que Danny Padgitt fora transferido
para lá, no verão de 1974. Ao final do relato, Daria me perguntou:
— Vai denunciar o abuso?
Eu me sentia atordoado, mas já podia imaginar a reportagem.
— Tenho de investigar primeiro. Depende do que descobrirei.
— Por favor, faça isso. Não é certo.
— É uma história inacreditável.
— Aquele canalha deveria estar no corredor da morte.
— Concordo.
— Trabalhei em oito julgamentos de homicídio com o juiz Loopus,
e esse é o único que ainda me aflige.
— A mim também.
Ela exigiu de novo que eu jurasse segredo. Deixou seu endereço.
Queria um exemplar do jornal se eu publicasse a reportagem.
Não tive problemas para sair da cama às seis horas da manhã
seguinte. Wiley e eu seguimos de carro para Broomfield. Como tanto
o Spitfire quanto o Mercedes atrairiam atenção em qualquer pequena
cidade do Mississippi, fomos na picape Ford de Wiley. Encontramos a
prisão com facilidade, a cinco quilômetros da cidade. Localizamos o
prédio do Departamento de Estradas de Rodagem. Ao meio-dia,
assumimos uma posição na Main Street. Como Padgitt com certeza
nos reconheceria, enfrentávamos o desafio de tentar nos esconder
numa rua movimentada, numa cidade estranha, sem levantar
suspeitas. Wiley ficou sentado na picape, o corpo arriado, a câmera
pronta para entrar em ação. Escondi-me por trás de um jornal, sentado
num banco.
Não houve qualquer sinal de Danny no primeiro dia. Voltamos
para Clanton. Na manhã seguinte, partimos de novo para Broomfield.
Às onze e meia, um veículo da prisão parou na frente do prédio de
escritórios. O guarda entrou, pegou seu prisioneiro e foram almoçar.

Nossa primeira página, na edição de 17 de julho de 1977, tinha


quatro fotos grandes: Danny caminhando pela calçada, partilhando
uma risada com o guarda, entrando no restaurante City Grill, a
fachada do prédio de escritórios e o portão da prisão de Broomfield. A
manchete dizia:

NÃO HÁ PRISÃO PARA PADGITT:


ELE DESFILA PELAS RUAS.
A reportagem começava assim:
Quatro anos depois de ser condenado pelo brutal estupro e assassinato de Rhoda Kassellaw,
com a sentença de prisão perpétua na penitenciária estadual de Parchman, Danny Padgitt foi
transferido para a nova prisão satélite, em Broomfield. Depois de três anos ali, ele desfruta de
todos os privilégios de um preso bem relacionado: um cargo burocrático no Departamento de
Estradas de Rodagem, seu guarda pessoal, longos almoços (cheeseburgers e milkshakes em cafés
locais, onde os outros frequentadores nunca ouviram falar dele ou de seus crimes).

A reportagem era venenosa e tão tendenciosa quanto eu podia


fazê-la. Pressionei a garçonete no City Grill a me contar que ele
acabara de comer um cheeseburger com batata frita, que comia ali três
vezes por semana e sempre pagava a conta. Fiz uma dúzia de ligações
para o Departamento de Estradas de Rodagem, até encontrar um
supervisor que soubesse alguma coisa sobre Padgitt. Ele se recusou a
responder às minhas perguntas, e fiz com que parecesse um
criminoso. Penetrar na prisão em Broomfield também foi frustrante.
Relatei meus esforços e distorci um pouco, para dar a impressão de
que todos os burocratas queriam dar cobertura a Danny Padgitt.
Ninguém em Parchman sabia de nada; ou, se alguém sabia, relutava
em falar a respeito. Liguei para o comissário rodoviário (uma
autoridade eleita), o diretor de Parchman (um cargo de nomeação,
ainda bem), o procurador geral do estado, o vice-governador e
finalmente o próprio governador. Todos estavam muito ocupados, é
claro, por isso conversei com seus áulicos, fazendo com que
parecessem idiotas rematados.
O senador Theo Morton deu a impressão de ficar chocado.
Prometeu que iria ao fundo do caso e me ligaria depois. Até a hora de
rodar o jornal, eu ainda estava esperando.
A reação em Clanton foi mista. Muitos dos que me telefonaram ou
me pararam na rua estavam furiosos, e queriam que algo fosse feito.
Acreditavam sinceramente que Padgitt, ao ser condenado à prisão
perpétua e levado em algemas, passaria o resto da vida no inferno em
Parchman. Uns poucos pareciam indiferentes, e queriam esquecer
Padgitt por completo. Ele era uma notícia antiga.
E entre alguns houve uma falta de surpresa, frustrante, quase
cínica. Achavam que os Padgitt haviam usado sua magia mais uma
vez, encontrando os bolsos certos, persuadindo as pessoas
apropriadas. Harry Rex era um desses.
— Por que tanto espanto, garoto? Eles já compraram o governador
antes.
A foto de Danny andando pela rua, livre como passarinho, deixou
Miss Callie bastante assustada.
— Ela não dormiu - murmurou Esau para mim, quando cheguei
para almoçar, na quinta-feira. — Seria melhor se você não o tivesse
descoberto.
Felizmente, os jornais em Memphis e Jackson deram a notícia, que
adquiriu uma vida própria. Pressionaram a tal ponto que os políticos
tiveram de se envolver. O governador e o procurador geral, junto com
o senador Morton, logo tomaram a iniciativa de exigir que o preso
voltasse para Parchman.
Duas semanas depois que publiquei a notícia, Danny Padgitt foi
“retransferido” para a penitenciária estadual.
No dia seguinte, recebi dois telefonemas, um no jornal, outro em
casa, enquanto ainda dormia. Vozes diferentes, com a mesma
mensagem. Eu era um homem morto.
Comuniquei ao FBI, em Oxford, e dois agentes me procuraram, em
Clanton. Vazei a informação para um repórter em Memphis, e logo
toda a cidade sabia que eu fora ameaçado, que o FBI investigava.
Durante um mês, o xerife McNatt manteve uma radio patrulha na
frente do jornal, 24 horas por dia. Outro carro estacionava na entrada
de minha casa durante a noite.
Depois de um hiato de sete anos, voltei a andar armado.
CAPÍTULO 32
NÃO HOUVE UM DERRAMAMENTO de sangue imediato. As ameaças não
foram esquecidas, mas se tornaram menos sinistras à medida que o
tempo passou. Não parei de andar com uma arma - estava sempre ao
alcance da mão mas perdi o interesse. Era difícil acreditar que os
Padgitt se arriscassem à violenta reação que ocorreria se matassem o
editor do jornal local. Mesmo que a cidade não me tivesse em alta
estima, em comparação com alguém tão amado quanto o sr. Caudle, o
clamor criaria mais pressão do que os Padgitt estavam dispostos a
enfrentar.
Eles mantinham-se retraídos como nunca antes. Depois da derrota
de Mackey Don Coley, em 1971, eles provaram, mais uma vez, sua
habilidade na mudança de tática. Danny lhes atraíra uma atenção
indesejada; estavam determinados a evitar mais alguma.
Entrincheiraram-se ainda mais na Ilha Padgitt. Aumentaram a
segurança, na convicção infundada de que o próximo xerife, T. R.
Meredith, ou seu sucessor, Tryce McNatt, podiam ir atrás deles.
Cultivavam sua maconha e a mandavam para fora da ilha em aviões,
barcos, picapes e caminhões que transportavam madeira. Com a típica
astúcia Padgitt, pressentindo que o ramo da maconha poderia se
tornar perigoso demais, começaram a investir seu dinheiro em
empreendimentos legítimos. Compraram uma empresa de construção
de estradas, e logo a converteram numa participante confiável na
licitação de projetos do governo. Compraram uma fábrica de asfalto,
uma fábrica de concreto Redi-Mix e pedreiras de cascalho, na região
norte do estado. A construção de estradas era um negócio
notoriamente corrupto no Mississippi, e os Padgitt sabiam como
entrar no jogo.
Eu acompanhava essas atividades tão de perto quanto era possível.
Isso foi antes da Lei de Liberdade de Informação e das leis que
determinavam que todas as reuniões do governo fossem abertas.
Sabia os nomes de algumas empresas compradas pelos Padgitt, mas
era praticamente impossível me manter a par de tudo. Não havia nada
que eu pudesse publicar, nenhuma notícia, porque na superfície tudo
era legítimo.
Fiquei à espera, não sabia direito de quê. Danny Padgitt voltaria
um dia. Nessa ocasião, poderia simplesmente desaparecer na ilha e
nunca mais ser visto. Ou poderia agir de outra forma.

Eram poucas as pessoas em Clanton que não frequentavam a


igreja. As que iam sempre pareciam saber exatamente quem não ia.
Havia um convite bastante comum: “Venha orar conosco. ” A frase de
despedida: “Vejo você no domingo”, era quase tão popular quanto:
“Volte sempre. ”
Fui assediado por esses convites durante meus primeiros anos na
cidade. Quando se soube que o proprietário e editor do Times não
frequentava a igreja, tornei-me o mais famoso relapso da cidade.
Decidi fazer alguma coisa a respeito.
Margaret organizava todas as semanas nossa página de Religião,
que incluía uma relação de igrejas, bastante ampla, apresentadas de
acordo com a denominação. Havia também uns poucos anúncios das
congregações mais prósperas. E notícias sobre serviços, reuniões,
jantares em que cada participante levava um prato, e incontáveis
outras atividades.
Por essa página e pela lista telefônica, fiz uma relação de todas as
igrejas no condado de Ford. O total era de 88, mas estava sempre
mudando, porque havia congregações que se dividiam, igrejas
abrindo aqui, fechando ali. Meu objetivo era visitar cada uma. Tinha
certeza de que isso nunca fora realizado antes, e o feito me situaria
numa classe especial entre os fiéis.
As denominações eram variadas e desconcertantes. Como os
protestantes, todos os quais alegavam seguir os mesmos postulados
básicos, podiam ser tão divididos? Concordavam basicamente que: (1)
Jesus era o único filho de Deus; (2) ele nasceu de uma virgem; (3)
levou uma vida perfeita; (4) foi perseguido pelos judeus, preso e
crucificado pelas romanos; (5) e alguns acreditavam — embora
houvesse muitas variações — que deviam seguir Jesus no batismo e na
fé para alcançar o paraíso.
A doutrina era bastante direta e objetiva, mas o diabo estava nos
detalhes.
Não havia católicos, episcopais ou mórmons. O condado era quase
todo batista, mas era um grupo muito dividido. Os pentecostais
vinham em segundo lugar, mas era evidente que divergiam entre si
tanto quanto os batistas.
Iniciei em 1974 minha aventura épica de visitar todas as igrejas no
condado de Ford. A primeira chamava-se Evangelho Pleno do
Calvário, uma tumultuada assembleia pentecostal numa estrada de
cascalho, a três quilômetros da cidade. Como anunciado, o serviço
começou às dez e meia. Encontrei um lugar no último banco, tão
distante da ação quanto possível. Recebi cumprimentos efusivos, e
espalhou-se a notícia de que um visitante de boa-fé estava presente.
Não reconheci ninguém ali. O pregador Bob usava um terno branco,
camisa azul-marinho, gravata branca. Os cabelos pretos abundantes
estavam enrolados e presos na base do crânio. As pessoas começaram
a berrar quando ele fez os anúncios. Acenaram com as mãos e
gritaram durante um solo. Quando o sermão finalmente começou,
uma hora mais tarde, eu já me preparava para ir embora. Durou 55
minutos, e me deixou confuso e exausto. Às vezes o prédio vibrava
com as pessoas batendo com os pés no chão. As janelas tremiam
quando as pessoas eram dominadas pelo espírito e erguiam o rosto
para gritar. O pregador Bob “estendeu as mãos” sobre três pessoas
que sofriam de doenças vagas, e que depois alegaram que estavam
curadas. Em determinado momento, um diácono levantou-se e
começou a falar, numa demonstração espantosa, em uma língua que
eu nunca ouvira. Ele cerrou os punhos, fechou os olhos e soltou um
fluxo de palavras, fluente e firme. Não era uma encenação; ele não
estava simulando. Depois de alguns minutos, uma jovem do coro
levantou-se, e passou a traduzir para o inglês. Era uma visão que
Deus enviava por intermédio do diácono. Havia pessoas ali com
pecados que não haviam sido perdoados.
— Arrependam-se! - gritou o pregador Bob, fazendo as pessoas
baixarem a cabeça.
E se o diácono estivesse falando de mim? Olhei ao redor, e notei
que a porta estava trancada, guardada por mais dois diáconos.
As pessoas finalmente perderam a vibração e o serviço chegou ao
fim. Duas horas depois de sentar, consegui deixar o prédio. Precisava
de um drinque.
Escrevi uma reportagem pequena e simpática sobre minha visita
ao Evangelho Pleno do Calvário, e publiquei na página de Religião.
Comentei o clima acolhedor da igreja, o solo extraordinário de Miss
Helen Hatcher, o sermão vigoroso do pregador Bob e assim por
diante.
É desnecessário dizer que essas reportagens se tornaram muito
populares.
Eu ia à igreja pelo menos duas vezes por mês. Sentei junto de Miss
Callie e Esau e escutei o reverendo Thurston Small pregar por duas
horas e doze minutos (eu cronometrava cada sermão). O mais breve
foi o do pastor Phil Bish, da Igreja Metodista Unida de Karaway:
dezessete minutos. Essa igreja também recebeu a distinção de ser a
mais fria. A fornalha estava quebrada, era janeiro, e isso pode ter
contribuído para abreviar o sermão. Sentei com Margaret na Primeira
Igreja Batista de Clanton e escutei o reverendo Millard Stark fazer seu
sermão anual sobre os pecados do álcool. Era o momento mais
inoportuno possível, pois eu estava de ressaca naquela manhã. Stark
olhava para mim a todo instante.
Descobri o Tabernáculo da Colheita na sala dos fundos de um
posto de gasolina abandonado em Beech Hill. Sentei com seis outras
pessoas, enquanto Peter, o Profeta, um arauto do Juízo Final, gritou
para nós durante quase uma hora. Minha coluna naquela semana foi
bastante curta.
A Igreja de Cristo, em Clanton, não tinha instrumentos musicais. A
proibição baseava-se nas Escrituras, como me foi explicado mais
tarde. Houve um lindo canto solo, sobre o qual escrevi um longo
texto. Também não havia qualquer emoção no serviço. Em contraste,
fui à Capela do Monte Pisga, em Lowtown, onde o púlpito era cercado
por tambores, guitarras, instrumentos de sopro e amplificadores.
Como aquecimento para o sermão, houve um concerto completo, com
a congregação cantando e dançando. Miss Callie referiu-se a Monte
Pisga como “uma igreja inferior”.
Na minha lista, a número 64 era a Igreja Independente de Calico
Ridge, localizada no meio das colinas, na parte nordeste do condado.
Segundo os arquivos do Times, nessa igreja, em 1965, um certo sr.
Randy Bovee foi mordido duas vezes por uma cascavel, durante um
serviço de culto, ao final de uma noite de domingo. O sr. Bovee
sobreviveu, e por algum tempo as cobras foram afastadas do culto. A
lenda, no entanto, floresceu. À medida que minha coluna, Notas da
Igreja, adquiria popularidade, perguntaram-me várias vezes se
tencionava visitar Calico Ridge.
— Planejo visitar todas as igrejas - era a minha resposta
padronizada.
— Eles não gostam de visitantes - advertiu-me Baggy.
Eu era recebido tão efusivamente em todas as igrejas - negras ou
brancas, grandes ou pequenas, na cidade ou no campo - que não
podia imaginar que cristãos fossem grosseiros com um visitante.
E não foram grosseiros em Calico Ridge, mas tampouco ficaram
muito satisfeitos com a minha presença. Eu queria ver as cobras, mas
da segurança do último banco. Fui até lá numa noite de domingo,
porque a lenda dizia que não “utilizavam as serpentes” a luz do dia.
Procurei em vão na Bíblia por essa restrição.
Não houve qualquer sinal de serpentes. Ocorreram alguns acessos
e convulsões por baixo do púlpito, enquanto o pregador nos exortava
a nos adiantarmos para “gemer e suspirar em pecado”. O coro cantou
ao ritmo de uma guitarra elétrica e um tambor. A reunião assumiu o
frenesi de uma antiga dança tribal. Eu queria me retirar,
especialmente porque não havia serpentes.
Ao final do serviço, vislumbrei um rosto que já encontrara antes.
Estava diferente... fino, pálido, encovado, os cabelos grisalhos. Não
consegui situá-lo, mas tinha certeza de que já o conhecia. O homem
estava sentado na segunda fila, no outro lado do pequeno templo, e
parecia alienado do caos do culto. Às vezes parecia estar atento, mas
em algumas ocasiões permanecia sentado quando todos os outros
levantavam. As pessoas ao redor davam a impressão de que o
aceitavam, ao mesmo tempo que o ignoravam.
Ele virou-se uma vez e olhou diretamente para mim. Era Hank
Hooten, o ex-advogado que abalara a cidade com seus tiros em 1971!
Ele fora levado numa camisa de força para o hospital psiquiátrico
estadual. Poucos anos depois, circulara o rumor de que recebera alta.
Só que ninguém o vira.
Durante os dois dias seguintes, tentei localizar Hank Hooten. Meus
telefonemas para o hospital psiquiátrico estadual não ofereceram
qualquer resultado. Hank tinha um irmão em Shady Grove, mas ele se
recusou a me dizer qualquer coisa. Andei perguntando por Calico
Ridge, mas ninguém ali, como era de se esperar, diria qualquer coisa
para um estranho como eu.
CAPÍTULO 33
MUITOS DOS QUE FAZIAM o culto diligente nas manhãs de domingo
tornavam-se menos fiéis nas noites de domingo. Durante minha
excursão pelas igrejas, ouvi muitos pregadores exortarem seus
seguidores a voltarem dentro de poucas horas, para completarem de
maneira apropriada a observância do Sabá. Jamais contei os presentes,
mas, como regra geral, apenas a metade voltava à igreja. Compareci a
uns poucos serviços na noite de domingo, quase sempre num esforço
para encontrar algum ritual pitoresco, como pegar em serpentes ou a
cura de doenças. Houve até um “conclave da igreja”, em que um
irmão desgarrado seria levado a julgamento - e, com certeza, acabaria
condenado — por desejar a esposa de outro irmão. Minha presença
inibiu-os naquela noite, e o irmão desgarrado teve uma suspensão da
sentença.
Na maior parte, limitei-me ao estudo de religiões comparativas a
luz do dia.
Outras pessoas tinham rituais diferentes nas noites de domingo.
Harry Rex ajudou um mexicano chamado Pepe a arrendar um prédio
e abrir um restaurante, a um quarteirão da praça. O Pepe's teve um
sucesso relativo durante a década de 1970, com uma boa comida,
sempre bem temperada. Pepe não podia resistir às pimentas,
independentemente da maneira como escaldava a garganta dos
gringos que frequentavam o restaurante.
Aos domingos, todo o álcool era proibido no condado de Ford.
Não podia ser vendido no varejo, nem servido em restaurantes. Pepe
tinha uma sala nos fundos com uma mesa comprida e uma porta que
podia ser trancada. Permitia que Harry Rex e seus convidados
usassem aquela sala, para comerem e beberem o que bem quisessem.
Apreciamos ali muitas refeições fantásticas, os pratos bem
temperados, sempre acompanhados por margaritas bem fortes. Havia
em geral uma dúzia de convidados, todos homens, todos jovens, a
metade deles casados. Harry Rex ameaçava nossas vidas se
revelássemos a alguém o uso da sala dos fundos do Pepe's.
A polícia da cidade de Clanton deu uma batida uma noite, mas
subitamente Pepe não sabia mais falar inglês. A porta da sala dos
fundos estava trancada, além de parcialmente oculta. Pepe apagou as
luzes, e durante vinte minutos esperamos no escuro, ainda bebendo,
enquanto escutávamos os guardas tentando se comunicar com o
mexicano. Mas não sei por que ficamos preocupados. O juiz municipal
era um advogado chamado Harold Finkley, sentado na extremidade
da mesa, já no seu quarto ou quinto margarita.
Aquelas noites de domingo no Pepe's eram muitas vezes longas e
turbulentas. Depois, não tínhamos condições de pegar o carro e voltar
para casa. Eu ia para o jornal e dormia no sofá. Estava ali, desgastando
os efeitos da tequila com muitos roncos, quando o telefone tocou,
depois de meia-noite. Era um repórter que eu conhecia, de um grande
jornal diário de Memphis.
— Vai cobrir a audiência de livramento condicional amanhã? -
perguntou ele.
Amanhã? Em meu nevoeiro alcoólico, não tinha a menor ideia do
dia em que estávamos.
— Amanhã? — murmurei.
— Segunda-feira, dia 18 de setembro - explicou ele, a voz pausada.
Eu tinha uma certeza razoável de que o ano era 1978.
— Que audiência de livramento condicional? - indaguei, tentando
desesperadamente acordar direito e organizar os pensamentos.
— De Danny Padgitt. Não sabia de nada?
— Claro que não!
— Está marcada para dez horas da manhã, em Parchman.
— Você deve estar brincando!
— Não, não estou. Acabei de descobrir. Obviamente, eles não
anunciam essas coisas.
Fiquei sentado no escuro por um longo tempo, maldizendo mais
uma vez o atraso de um estado que tratava de questões tão
importantes de uma maneira tão absurda. Como sequer era possível
considerar o livramento condicional para Danny Padgitt? Oito anos
haviam passado desde o assassinato e sua condenação. Ele recebera
duas sentenças de prisão perpétua, o que deveria acarretar pelo
menos dez anos para cada uma. Havíamos presumido que ele
passaria pelo menos vinte anos na prisão.
Fui para casa por volta das três horas da madrugada, tive um sono
inquieto por duas horas, depois acordei Harry Rex, que não estava em
condições de ouvir qualquer coisa naquele instante. Comi alguns
biscoitos e tomei um café forte. Fomos nos encontrar em seu escritório
por volta das sete horas. Estávamos ambos de mau humor. Enquanto
examinávamos seus livros de direito, não pudemos reprimir a voz
ríspida, os palavrões, não dirigidos um ao outro, mas despejados
contra um sistema de livramento condicional vago e inepto, aprovado
pelo legislativo trinta anos antes. As normas não tinham uma
definição apropriada, deixando ampla margem de manobra para que
os políticos e seus apaniguados fizessem o que bem entendessem.
Como a maioria dos cidadãos respeitadores das leis não tinha
contato com o sistema de livramento condicional, não era uma
prioridade na assembleia legislativa estadual. E como a maioria dos
prisioneiros no estado era constituída por pobres ou negros, incapazes
de usar o sistema em seu benefício, era fácil condená-los com
sentenças rigorosas e mantê-los trancafiados. Mas, para um preso com
algumas ligações e algum dinheiro, o sistema de livramento
condicional era um maravilhoso labirinto de leis contraditórias, que
permitiam que a Junta de Livramento Condicional distribuísse
favores.
Em algum ponto, entre o sistema judiciário, o sistema penitenciário
e o sistema de livramento condicional, as duas sentenças de prisão
perpétua “consecutivas” de Danny Padgitt se tornaram sentenças
“concomitantes”. Transcorriam ao mesmo tempo, lado a lado, Harry
Rex tentou explicar.
— Para que isso serve? — indaguei.
— É usado num caso em que um réu tem várias acusações.
Sentenças consecutivas poderiam acarretar oitenta anos na prisão.
Mas a sentença justa é de dez anos. Por isso, as várias penas
transcorrem ao mesmo tempo.
Sacudi a cabeça em desaprovação, o que o deixou irritado.
Consegui finalmente fazer com que o xerife Tryce McNatt
atendesse ao telefone. Ele parecia tão de ressaca quanto nós, embora
fosse um rigoroso abstêmio. NcNatt não sabia de nada sobre a
audiência de livramento condicional. Perguntei-lhe se planejava
comparecer, mas ele já tinha o dia ocupado com importantes reuniões.
Eu gostaria de ligar para o juiz Loopus, mas ele estava morto havia
seis anos. Ernie Gaddis se aposentara e estava pescando em Sinoky
Mountains. Seu sucessor, Rufus Buckley, vivia no condado de Tyler, e
seu telefone não constava da lista.
Às oito horas, entrei em meu carro, com um biscoito e um café frio.
Uma hora a oeste do condado de Ford, a terra achatava de uma
maneira espetacular e o delta começava. Era uma região rica em
condições agrícolas e pobre em condições de vida, mas eu não sentia a
menor disposição para absorver as paisagens e tecer comentários
sociais. Sentia-me muito nervoso por me infiltrar numa audiência de
livramento condicional clandestina.
Também me sentia nervoso por entrar em Parchman, um inferno
lendário.
Depois de duas horas, avistei cercas ao lado dos campos, depois
arame farpado. Não demorou muito para que aparecesse uma placa.
Virei para o portão principal. Informei ao guarda na cabine que era
um repórter, e viera para uma audiência de livramento condicional.
— Siga reto em frente, e vire à esquerda no segundo prédio —
instruiu ele, prestativo, enquanto anotava meu nome.
Havia um agrupamento de prédios perto da estrada, e uma fileira
de casas brancas de madeira que caberiam em qualquer Maple Street
no Mississippi. Escolhi o prédio Admin A, e entrei apressado, à
procura de alguma secretária. Ela me encaminhou para o prédio
seguinte, segundo andar. Eram quase dez horas.
Havia pessoas na extremidade de um corredor, esperando fora de
uma sala: um guarda penitenciário, um patrulheiro estadual e um
homem de temo amarrotado.
— Estou aqui para uma audiência de livramento condicional -
anunciei.
— Ali.
O guarda apontou. Sem bater, empurrei a porta, como qualquer
repórter intrépido faria, e entrei. A audiência acabara de ser iniciada.
Minha presença, obviamente, não era esperada.
Havia cinco membros da Junta de Livramento Condicional,
sentados por trás de uma mesa um pouco elevada, placas com os
nomes na frente de cada um. Ao longo de uma parede, outra mesa
exibia o bando dos Padgitt: Danny, o pai, a mãe, um tio e Lucien
Wilbanks. No lado oposto, por trás de outra mesa, havia vários
funcionários da junta e da prisão.
Todos me fitaram, aturdidos, quando entrei. Meus olhos se
encontraram com os de Danny Padgitt. Por um segundo, ambos
conseguimos transmitir o desprezo que sentíamos um pelo outro.
— Posso ajudá-lo? — resmungou um velho, mal vestido, do meio
da mesa em que sentava a junta.
Seu nome era Barrett Ray Jeter, o presidente da Junta de
Livramento Condicional. Como os outros quatro, ele fora nomeado
pelo governador como recompensa pelos votos que lhe proporcionara
na eleição.
— Estou aqui para a audiência Padgitt.
— Ele é um repórter!
Lucien berrou enquanto se levantava. Por um segundo, pensei que
poderia ser preso no mesmo instante, e levado para as profundezas da
prisão, onde cumpriria uma sentença de prisão perpétua.
— De onde? - indagou Jeter.
— The Ford County Times — respondi.
— Seu nome?
— Willie Traynor.
Eu olhava irritado para Lucien, que amarrava a cara para mim.
— Esta é uma audiência fechada, sr. Traynor - declarou Jeter.
O estatuto não era claro, deixando indeterminado se a audiência
seria fechada ou aberta. Por isso, pela tradição, costumava ser fechada.
— Quem tem o direito de comparecer?
— Os membros da Junta de Livramento Condicional, o preso, sua
família, suas testemunhas, seu advogado e as testemunhas do outro
lado.
O “outro lado” referia-se à família da vítima, que naquele cenário
parecia fazer parte da facção do mal.
— O que me diz do xerife do nosso condado? - indaguei.
— Ele também foi convidado - respondeu Jeter.
— Nosso xerife não foi avisado. Falei com ele há três horas. Na
verdade, ninguém no condado de Ford sabia desta audiência até
meia-noite de ontem.
Isso causou algum embaraço entre os membros da junta. Os
Padgitt agruparam-se em torno de Lucien.
Pelo processo de eliminação, logo deduzi que deveria me tornar
uma testemunha se quisesse assistir ao espetáculo. Foi por isso que
declarei, em voz tão alta e clara quanto possível:
— Como não há ninguém aqui do condado de Ford em oposição,
sou uma testemunha.
— Não pode ser um repórter e uma testemunha - disse Jeter.
— Onde está escrito isso no Código do Mississippi? - indaguei,
acenando com os exemplares que Harry Rex me emprestara.
Jeter acenou com a cabeça para um jovem de terno escuro.
— Sou o advogado da Junta de Livramento Condicional -disse ele,
polidamente. — Pode testemunhar nesta audiência, sr. Traynor, mas
não pode noticiá-la.
Eu planejava relatar todos os detalhes da audiência e depois me
esconder por trás da Primeira Emenda.
— Está bem. Vocês fazem as regras.
Em menos de um minuto, as linhas foram traçadas; eu estava num
lado, todos os demais no outro.
— Vamos continuar - disse Jeter.
Sentei junto com um punhado de espectadores. O advogado da
Junta de Livramento Condicional distribuiu um relatório. Informou os
elementos básicos da sentença de Padgitt, tomando o cuidado de não
usar as palavras “consecutivas” ou “concomitantes”. Com base no
comportamento “exemplar” do preso, ele se qualificara ao “bom
tempo”, um conceito vago criado pelo sistema de livramento
condicional, não pelo legislativo estadual. Acrescentando-se o tempo
que o preso passara na cadeia do condado, enquanto aguardava o
julgamento, ele tinha direito agora ao livramento condicional.
A assistente social encarregada do caso de Danny apresentou uma
longa narrativa de seu relacionamento com o preso. Concluiu com a
opinião gratuita de que ele estava “totalmente arrependido”,
“plenamente reabilitado”, “não representava qualquer ameaça para a
sociedade”, até se mostrava disposto a ser “um cidadão dos mais
produtivos”.
Quanto tudo aquilo custara? Não pude deixar de ponderar essa
questão. Quanto? E quanto tempo os Padgitt haviam levado para
encontrar os bolsos certos?
Lucien falou em seguida. Sem ninguém - Gaddis, o xerife McNatt,
nem mesmo o pobre Hank Hooten - para contestá-lo ou talvez inibi-lo,
ele lançou-se num relato fictício dos fatos dos crimes, destacando em
particular o depoimento de uma testemunha que oferecera um álibi
“irrefutável”, Lydia Vince. Sua versão reconstituída do julgamento
pôs o júri vacilando à beira do veredicto de inocente. Senti-me tentado
a jogar alguma coisa nele e começar a gritar. Talvez isso contribuísse
para torná-lo um pouco mais honesto.
Tive vontade de gritar: “Como ele pode estar arrependido se é tão
inocente? ”
Lucien continuou a lamentar o julgamento, como fora injusto.
Numa nobre atitude, assumiu a culpa por não ter insistido mais numa
mudança de foro, para outra parte do estado, onde as pessoas teriam
menos preconceitos e seriam mais esclarecidas. Quando ele finalmente
se calou, dois membros da junta pareciam ter adormecido.
A sra. Padgitt testemunhou em seguida. Falou sobre as cartas que
trocara com o filho nos últimos oito anos, muito longos. Através das
cartas, vira-o amadurecer, vira sua fé fortalecer, vira-o ansiar por sua
liberdade, para poder servir a seus semelhantes.
Servir uma maconha mais forte? Ou talvez servir um uísque de
milho mais limpo?
Danny foi o último a falar, fazendo um bom trabalho de andar na
linha indefinida entre negar seus crimes e demonstrar
arrependimento.
— Aprendi com meus erros - disse ele, como se estupro e
homicídio fossem pequenas transgressões em que ninguém saía
machucado. - Cresci com eles.
Na prisão, ele fora um verdadeiro furacão de energia positiva,
voluntário na biblioteca, integrante do grupo coral, ajudando no
rodeio de Parchman, organizando grupos para visitar as escolas e
dissuadir as crianças de cometer qualquer crime.
Os membros da junta escutavam. Um deles ainda dormia. Outros
dois sentavam como se estivessem meditando, em transe,
aparentemente com morte cerebral.
Danny não derramou nenhuma lágrima, mas concluiu com uma
súplica fervorosa por sua libertação.
— Quantas testemunhas na oposição? — indagou Jeter.
Levantei-me, olhei ao redor, não vi mais ninguém do condado de
Ford.
— Acho que apenas eu.
— Pode falar, sr. Traynor.
Eu não tinha ideia do que dizer. Também não sabia o que era
permitido ou o que era passível de protesto naquela audiência.
Baseado, porém, no que acabara de ouvir, calculei que poderia dizer
qualquer coisa que me aprouvesse. O gordo Jeter provavelmente me
chamaria a atenção se eu me aventurasse por território proibido.
Fitei os membros da junta, fazendo o melhor possível para ignorar
as adagas que os Padgitt me lançavam em seus olhares. Fiz uma
descrição emocionada do estupro e assassinato. Descarreguei tudo
que podia lembrar, com ênfase especial no fato de que as duas
crianças haviam testemunhado parte ou todo o ataque.
Esperava que Lucien protestasse a qualquer momento, mas houve
apenas silêncio no lado deles. Os membros antes comatosos da junta
haviam se tornado subitamente alertas, observando-me com a maior
atenção, absorvendo os detalhes macabros do crime. Descrevi os
ferimentos. Relatei a cena comovente de Rhoda morrendo nos braços
do sr. Deece e dizendo: “Foi Danny Padgitt, foi Danny Padgitt. ”
Chamei Lucien de mentiroso e escarneci de sua lembrança do
julgamento. Expliquei que o júri levara menos de uma hora para
decidir que o réu era culpado.
E, com uma recordação que surpreendeu até a mim mesmo, relatei
o patético desempenho de Danny no banco das testemunhas: sua
mentira para encobrir todas as mentiras anteriores; a total falta de
veracidade.
— Ele deveria ter sido indiciado por perjúrio — declarei para a
junta.
Depois de uma pausa, acrescentei:
— E quando ele acabou de depor, em vez de voltar para seu lugar,
foi até o recinto do júri, sacudiu o dedo nos rostos dos jurados e disse:
“Vocês me condenam, e pegarei cada um de vocês. ”
Um membro da junta, o sr. Horace Adler, empertigou-se de
repente, e olhou para os Padgitt.
— Isso é verdade?
— Está nos autos - apressei-me em acrescentar, antes que Lucien, já
se levantando, pudesse mentir de novo.
— Isso é verdade, sr. Wilbanks? - insistiu Adler.
— Ele ameaçou mesmo o júri? - perguntou outro membro.
— Tenho a transcrição - declarei. — Terei o maior prazer em enviá-
la.
— Isso é verdade? - indagou Adler, pela terceira vez.
— Havia trezentas pessoas no tribunal.
Eu fitava Lucien, dizendo com os olhos: Não faça isso. Não minta a
respeito.
— Cale-se, sr. Traynor - disse um membro da junta.
— Está nos autos - reiterei.
— Já chega! — gritou Jeter.
Lucien tentava pensar numa resposta. Todos esperavam.
Finalmente, ele declarou:
— Não me lembro de tudo o que foi dito. - Enquanto eu ria tão alto
quanto podia, ele acrescentou: - Talvez meu cliente tenha dito alguma
coisa a respeito, mas foi um momento emocional. No calor de uma
batalha, é possível dizer alguma coisa nesse sentido. Mas considerado
no contexto...
— No contexto uma ova! - berrei.
Dei um passo na direção de Lucien, como se pensasse em lhe
desferir um soco. Um guarda se adiantou, interpondo-se entre nós
dois. Parei no mesmo instante.
— Consta da transcrição do julgamento, preto no branco! -Virei-me
para a junta, furioso. — Como podem ficar sentados aí e deixar que
eles mintam assim? Não querem ouvir a verdade?
— Mais alguma coisa, sr. Traynor? - perguntou Jeter.
— Claro! Espero que esta junta não faça um escárnio de nosso
sistema, deixando esse homem sair livre depois de oito anos. Ele tem
sorte de estar sentado aqui, em vez do corredor da morte, que é o
lugar a que pertence. E espero que na próxima vez em que realizarem
uma audiência sobre seu livramento condicional, se houver uma
próxima vez, convidem alguns cidadãos do condado de Ford. Talvez
o xerife, talvez o promotor. E poderiam avisar às pessoas da família da
vítima? Elas têm o direito de estar aqui, para que vocês possam ver
seus rostos quando soltarem esse assassino.
Sentei, quase explodindo de raiva. Lancei um olhar furioso para
Lucien Wilbanks, e decidi que me empenharia a fundo para odiá-lo
pelo resto de sua vida ou da minha, qualquer que terminasse
primeiro. Jeter anunciou um breve recesso. Presumi que precisavam
de tempo para reagruparem as forças e contarem o dinheiro, em outra
sala. Talvez o sr. Padgitt fosse convocado para oferecer um reforço de
caixa a um ou dois membros da junta. Para irritar o advogado da
junta, rabisquei anotações para a reportagem que ele me proibira de
escrever.
Esperamos meia hora antes que eles voltassem. Todos pareciam
culpados de alguma coisa. Jeter pediu uma votação. Dois votaram a
favor da liberdade condicional, dois contra e um se absteve.
— O livramento condicional é negado neste momento — anunciou
Jeter.
A sra. Padgitt desatou a chorar. Abraçou Danny antes que o
levassem. Lucien e os Padgitt passaram bem perto de mim ao
deixarem a sala. Ignorei-os, olhando para o chão, exausto, ainda de
ressaca, chocado com a negativa.
— Vamos agora examinar o pedido de Charles D. Bowie -
anunciou Jeter.
Houve um movimento ao redor das mesas. O próximo
esperançoso foi trazido para a sala. Ouvi algum comentário sobre um
crime sexual, mas sentia-me esgotado demais para me interessar.
Depois de um longo momento, deixei a sala. Atravessei o corredor, na
expectativa de que os Padgitt me confrontassem. E seria melhor assim,
porque eu preferia acabar logo com o problema.
Mas eles já tinham partido. Não havia o menor sinal deles quando
deixei o prédio, fui pegar meu carro, passei pelo portão principal e
voltei para Clanton.
CAPÍTULO 34
A AUDIÊNCIA DE LIVRAMENTO CONDICIONAL foi notícia de primeira
página em The Ford County Times. Incluí na reportagem todos os
detalhes de que podia me lembrar. Na página cinco, publiquei um
editorial veemente sobre o processo. Mandei um exemplar para cada
membro da Junta de Livramento Condicional e para seu advogado.
Como me sentia furioso demais, enviei exemplares também para cada
membro da assembleia legislativa, o procurador geral, o vice-
governador e o governador. A maioria ignorou. Não foi o que
aconteceu com o advogado da junta.
Ele escreveu uma longa carta, em que dizia que estava
profundamente preocupado com minha “deliberada violação dos
procedimentos da Junta de Livramento Condicional”. Ele estava
marcando uma reunião com o procurador geral, em que avaliariam “a
gravidade das minhas ações”, e deveriam tomar providências que
levariam a “conseqüências extremas”.
Meu advogado, Harry Rex, havia me assegurado de que a política
de reuniões secretas da Junta de Livramento Condicional era
inconstitucional, em violação evidente à Primeira Emenda. Ele teria o
maior prazer em me defender num tribunal federal. Por honorários
reduzidos, calculados por hora, é claro.
Troquei cartas exaltadas com o advogado da junta durante um
mês, até que ele perdeu o interesse em me assediar.
Rafe, o caçador de ambulâncias de Harry Rex, tinha um amigo
chamado Buster, um caubói enorme, de peito estufado, com uma
arma em cada bolso. Contratei-o por cem dólares por semana para
fingir que era meu segurança pessoal. Durante algumas horas por dia,
ele sentava em frente ao jornal, em seu carro, na frente de minha casa
ou numa das varandas, em qualquer lugar em que as pessoas
pudessem vê-lo. Assim, todos saberiam que Willie Traynor era
bastante importante para ter um guarda-costas. Se os Padgitt se
aproximassem o suficiente para me dar um tiro, pelo menos teriam
alguma reação.

Depois de anos engordando sem parar e ignorando as advertências


dos médicos, Miss Callie finalmente cedeu. Ao final de uma consulta
angustiante com seu clínico geral, ela anunciou para Esau que
passaria a fazer regime: 1. 500 calorias por dia, exceto na quinta-feira...
ainda bem. Um mês passou e não pude perceber qualquer perda de
peso. Mas no dia seguinte à reportagem do Times sobre a audiência de
livramento condicional ela dava a impressão de ter perdido, de um
momento para outro, mais de vinte quilos.
Em vez de fritar uma galinha, ela cozinhou. Em vez de fazer purê
de batata com manteiga e um creme grosso, para depois cobrir com
molho, ela fez batatas cozidas. Ainda era uma comida deliciosa, mas
meu organismo se acostumara à maciça dose semanal de gordura.
Depois da oração, entreguei duas cartas de Sam. Como sempre, ela
leu no mesmo instante, enquanto eu devorava o almoço. E também
como sempre, ela riu, sorriu, enxugou uma lágrima.
— Ele está se saindo muito bem — comentou Miss Callie.
Era verdade. Com a típica tenacidade Ruffin, Sam completara o
College, a primeira parte do curso superior, com especialização em
economia. Agora, estava economizando para fazer a faculdade de
direito. Sentia muita saudade de casa, e estava cansado do mau
tempo. Para resumir, sentia falta da mãe. E de sua comida.
O presidente Carter perdoara todos os que haviam fugido da
convocação, e Sam estava dividido, entre continuar no Canadá e
voltar. Muitos de seus amigos expatriados haviam jurado que ficariam
e pediríam a cidadania canadense. Sam sofria uma forte influência
deles. Mas havia também uma mulher envolvida, embora ele não
informasse isso aos pais.
Às vezes começávamos pelas notícias, mas com frequência pelos
obituários ou até pelos classificados. Como lia cada palavra, Miss
Callie sabia quem estava vendendo uma ninhada de beagles, quem
queria comprar um bom cortador de grama usado. E, como ela lia
todas as palavras todas as semanas, sabia durante quanto tempo uma
pequena fazenda ou um trailer estavam à venda. Conhecia todos os
preços e valores. Um carro passava pela rua durante o almoço. Ela
perguntava:
— Que carro é aquele?
— Um Plymouth Duster 71.
Miss Callie hesitava apenas por um segundo, antes de dizer:
— Se estiver em bom estado, o preço é na faixa de 2.500 dólares.
Houve uma ocasião em que Stan Atcavage precisou vender um
barco de pesca de 24 pés de que tivera reintegração de posse. Ligou
para Miss Callie, que informou:
— Há um homem em Karaway que está procurando por um barco
assim há três semanas.
Verifiquei nos classificados antigos e encontrei o anúncio. Stan
vendeu o barco no dia seguinte.
Ela adorava os editais e avisos legais, uma das sessões mais
lucrativas do jornal. Escrituras, execuções, petições de divórcio,
questões testamentárias, anúncios de falência, audiências
complementares, dezenas de avisos legais tinham de ser publicados,
por lei, no jornal do condado. Publicávamos tudo, cobrando por uma
saudável tabela.
— Li que o testamento do sr. Everett Wainwright está sendo
homologado — comentou ela.
— Lembro-me vagamente de seu obituário - murmurei, com a boca
cheia. - Quando ele morreu?
— Há cinco meses, talvez seis. Não foi um grande obituário.
— Tenho de trabalhar com os dados fornecidos pela família. Você
o conhecia?
— Ele foi dono de uma mercearia perto dos trilhos durante muitos
anos.
Pude perceber, pela inflexão de sua voz, que ela não gostava muito
do sr. Everett Wainwright.
— Ele era do bem ou do mal?
— Tinha sempre dois preços, um para os brancos, outro mais alto
para os negros. Suas mercadorias nunca tinham uma etiqueta de
preço, e ele era o único caixa. Um cliente branco indagava: “Quanto
custa esta lata de leite condensado, sr. Wainwright? ” Ele respondia:
“Trinta e oito centavos. ” Um minuto depois, eu perguntava: “Com
licença, sr. Wainwright, mas quanto custa esta lata de leite
condensado? ” E ele respondia, ríspido: “Cinqüenta e quatro centavos.
” Fazia isso abertamente. Não se importava.
Há quase nove anos que eu ouvia histórias sobre os tempos
antigos. Às vezes pensava que já ouvira todas, mas a coleção de Miss
Callie era interminável.
— Por que fazia suas compras ali?
— Era a única loja em que podíamos comprar. O sr. Monty Griffin
tinha uma loja melhor, por trás do antigo cinema. Mas não podíamos
comprar ali até vinte anos atrás.
— Quem impedia?
— O próprio sr. Monty Griffin. Ele não se importava se você tinha
dinheiro. Não queria negros em sua loja.
— E o sr. Wainwright não se importava?
— Claro que se importava. Não queria nossa presença, mas
arrancava nosso dinheiro.
Ela contou a história de um menino negro que ficou na loja sem
fazer nada até que o sr. Wainwright bateu nele com uma vassoura e
mandou-o embora. Como vingança, o menino passou a arrombar a
loja uma ou duas vezes por ano, durante muito tempo, sem nunca ser
apanhado. Roubava cigarros e balas, além de rachar todos os cabos de
vassoura.
— É verdade que ele deixou todo o seu dinheiro para a igreja
metodista? - perguntou Miss Callie.
— É o rumor.
— Quanto?
— Cerca de cem mil dólares.
— As pessoas dizem que ele estava tentando comprar o acesso ao
paraíso.
Há muito que eu deixara de me espantar com as fofocas do outro
lado dos trilhos que Miss Callie ouvia. Muitas de suas amigas
trabalhavam como criadas ali. E as criadas sabiam de tudo.
Ela levou a conversa para a questão da vida posterior em diversas
ocasiões. Miss Callie sentia uma profunda preocupação com minha
alma. Preocupava-se porque eu não me tornara um cristão como
deveria ser. Porque não “nasci de novo”, não fui “salvo”. Meu
batismo quando bebê, de que não me lembrava, era totalmente
insuficiente, em sua opinião. Depois que uma pessoa alcança uma
determinada idade, a “idade da responsabilidade”, devia então, a fim
de ser “salva” da danação eterna no inferno, percorrer a nave de uma
igreja (a igreja certa era o tema de um debate permanente) e fazer uma
profissão de fé pública em Jesus Cristo.
Miss Callie carregava um pesado fardo porque eu ainda não fizera
isso.
Depois de visitar 77 igrejas diferentes, eu tinha de admitir que a
vasta maioria das pessoas no condado de Ford partilhava suas
convicções. Havia algumas variações. Uma seita poderosa era a Igreja
de Cristo. Apegavam-se à estranha convicção de que eles, apenas eles,
estavam destinados ao paraíso. Todas as outras igrejas pregavam uma
“doutrina sectária”. Também acreditavam, como muitas
congregações, que mesmo depois que uma pessoa obtinha a salvação,
ainda podia perdê-la por mau comportamento. Os batistas, a
denominação mais popular, mantinham-se firmes na convicção de que
“uma vez salvo, sempre salvo”.
O que era aparentemente muito confortador para vários batistas
relapsos que eu conhecia na cidade.
Mas ainda havia esperança para mim. Miss Callie sentia-se
emocionada por eu comparecer à igreja e absorver o evangelho.
Estava convencida — e orava por mim todos os dias — de que um dia
o Senhor se projetaria para tocar meu coração. Eu decidiria segui-lo, e
nós dois, eu e ela, passaríamos a eternidade juntos.
Miss Callie vivia, sinceramente, para o dia em que “subiria para a
glória”.
— O reverendo Small presidirá a ceia do Senhor neste domingo -
avisou ela.
Era o convite semanal para sentar com ela na igreja. Mas o
reverendo Small e seus intermináveis sermões eram mais do que eu
podia suportar.
— Obrigado, mas tenho de fazer uma pesquisa de novo neste
domingo.
— Deus o abençoe. Onde?
— Na Igreja Batista Primitiva Maranatha.
— Nunca ouvi falar.
— Está na lista telefônica.
— Onde fica?
— Em algum lugar de Dumas, eu acho.
— Negra ou branca?
— Não sei.

A número 78 em minha lista, a Igreja Batista Primitiva Maranatha


era uma pequena joia na base de uma colina, perto de um regato, a
sombra de carvalhos que tinham pelo menos duzentos anos. Era um
prédio pequeno de madeira, pintado de branco, com um telhado de
folha-deflandres bastante inclinado e um campanário vermelho tão
alto que se perdia entre as copas dos carvalhos. As portas da frente
ficavam escancaradas, chamando toda e qualquer pessoa que quisesse
entrar para o culto. Uma pedra fundamental indicava que fora
construída em 1813.
Sentei no último banco, meu lugar habitual, ao lado de um
cavalheiro bem vestido, que parecia estar por ali havia tanto tempo
quanto a igreja. Contei 56 outros fiéis na igreja naquela manhã. As
janelas também estavam escancaradas. Lá fora, uma brisa amena
soprava entre as árvores, atenuando um pouco o rigor de uma manhã
muito quente. Fazia um século e meio que as pessoas reuniam-se ali,
sentavam nos mesmos bancos, olhavam pelas mesmas janelas, para as
mesmas árvores e cultuavam o mesmo Deus. O coro - de oito pessoas -
cantou um hino suave, e vagueei para outro século.
O pastor J. B. Cooper era um homem jovial, com quem eu falara
duas vezes, ao longo dos anos, enquanto tentava obter dados para
obituários. Um benefício secundário de minha excursão por todas as
igrejas do condado era a apresentação a todos os ministros. Ajudava
muito a melhorar meus obituários.
O pastor Cooper correu os olhos por seu rebanho. Percebeu que eu
era o único visitante. Disse meu nome, deu-me as boas-vindas e fez
uma piada inofensiva sobre conseguir uma cobertura favorável no
Times. Depois de quatro anos de excursão e de 77 Notas sobre Igreja,
mais para generosas e pitorescas, era impossível para mim esgueirar-
me em qualquer serviço sem ser notado.
Nunca sabia o que esperar naquelas igrejas rurais. Com bastante
frequência, os sermões eram veementes e longos. Muitas vezes me
perguntei como aquelas boas pessoas podiam comparecer semana
após semana para serem repreendidas. Alguns pregadores eram
quase sádicos em sua condenação de qualquer coisa que seus
seguidores pudessem ter feito naquela semana. Tudo era pecado no
Mississippi rural, não apenas os elementos básicos, fixados pelos Dez
Mandamentos. Ouvi vigorosas reprovações à televisão, ao cinema, a
jogo de cartas, revistas populares, eventos esportivos, uniformes de
animadoras de torcida, à dessegregação, a igrejas com raças
misturadas, Disney - porque era exibido nas noites de domingo —, a
dança, a bebida social, ao sexo pós-conjugal ... a tudo, enfim.
Mas o pastor Cooper estava em paz. Seu sermão — 28 minutos —
foi sobre tolerância e amor. O amor era a principal mensagem de
Cristo. A única coisa que Cristo queria que fizéssemos era amarmos
uns aos outros. Para a chamada ao altar, cantamos três versos de “Just
As I Am”, mas ninguém se mexeu. Aquelas pessoas já haviam
percorrido a nave muitas vezes.
Como sempre, fiquei por alguns minutos depois do serviço, para
falar com o pastor Cooper. Declarei que apreciara muito o serviço, o
que sempre fazia, quer tivesse gostado ou não. Anotei os nomes dos
integrantes do coro para a minha coluna. As pessoas da igreja
mostravam-se naturalmente efusivas e cordiais. Naquele estágio da
minha excursão, no entanto, pareciam querer conversar sem parar,
transmitindo pequenas informações, que podiam sair no jornal.
— Meu avô pôs o telhado no prédio em 1902.
— O tornado de 1938 passou ao nosso lado durante um culto em
pleno verão.
Quando deixava o prédio, vi um homem numa cadeira de rodas
sendo acompanhado na descida pela rampa dos deficientes.
Era um rosto que eu já vira antes, e me adiantei para
cumprimentá-lo. Lenny Fargarson, o garoto aleijado, o jurado número
sete ou oito, sofrera evidentemente uma piora em seu estado. Durante
o julgamento, em 1970, ele era capaz de andar, embora os movimentos
fossem desajeitados, uma cena não muito agradável. Agora, estava
numa cadeira de rodas. Seu pai apresentou-se. A mãe estava num
grupo de mulheres que concluíam a última rodada de despedidas.
— Tem um minuto? - perguntou Fargarson.
No Mississippi, essa indagação realmente significava: “Precisamos
conversar e pode demorar um pouco. ” Sentei num banco sob um dos
carvalhos. O pai levou-o até lá, e depois afastou-se, deixando-nos para
conversar a sós.
— Leio seu jornal todas as semanas - disse ele. - Acha que Padgitt
vai sair da prisão?
— Com toda a certeza. É apenas uma questão de quando. Ele pode
solicitar o livramento condicional uma vez por ano, todos os anos.
— E voltará para o condado de Ford?
Dei de ombros, porque não tinha a menor ideia.
— Provavelmente. Os Padgitt são muito apegados à sua terra.
Ele pensou a respeito por algum tempo. Estava esquelético e
vergado, como um velho. Se minha memória estivesse correta, ele
devia ter 25 anos na ocasião do julgamento. Tínhamos mais ou menos
a mesma idade, embora ele parecesse duas vezes mais velho. Eu já
ouvira a história de sua aflição... algum ferimento numa serraria.
— Isso o assusta? - perguntei.
Fargarson sorriu.
— Nada me assusta, sr. Traynor. O Senhor é meu pastor.
— É mesmo - murmurei, ainda imbuído do sermão.
Por causa de sua condição física e da cadeira de rodas, Lenny era
uma pessoa difícil de entender. Suportara muita coisa. Sua fé era forte,
mas tive a impressão de perceber por um segundo uma insinuação de
apreensão.
A sra. Fargarson aproximava-se de nós.
— Estará presente quando ele for solto? - perguntou Lenny.
— Eu bem que gostaria, mas não sei como isso acontece.
— Pode me avisar quando ele sair?
— Claro.
A sra. Fargarson tinha uma carne assada no forno para o almoço
de domingo, e não admitiu um não como resposta. Senti subitamente
muita fome, e não havia na Casa Hocutt, como sempre, nada que fosse
nem de longe tão apetitoso. Meu almoço de domingo costumava ser
um sanduíche frio e um copo de vinho numa varanda lateral, seguido
por uma longa siesta.
Lenny morava com os pais numa estrada de cascalho a três
quilômetros da igreja. O pai era um carteiro rural, a mãe uma
professora. Uma irmã mais velha vivia em Tupelo. Durante o almoço,
de carne assada e batatas, com um chá quase tão doce quanto o de
Miss Callie, recordamos o julgamento Kassellaw e a primeira
audiência de livramento condicional de Padgitt. Lenny podia estar
despreocupado com a possível libertação de Danny, mas os pais
estavam profundamente preocupados.
CAPÍTULO 35

GRANDES NOTÍCIAS SURGIRAM em Clanton na primavera de 1978.


Bargain City estava chegando! Junto com McDonald's e outras redes
de fast-food, que a acompanhavam por todo o país, a Bargain City era
uma rede nacional, em rápida expansão pelas pequenas cidades do
Sul. A maior parte da cidade exultou com a notícia. Alguns, no
entanto, acharam que era o princípio do fim.
A empresa estava conquistando o mundo com seu esquema de
lojas enormes que vendiam de tudo a preços baixos. As lojas eram
espaçosas e limpas, incluíam cafés, farmácias, bancos, até mesmo
óticas e agências de viagens. Uma pequena cidade sem uma loja da
Bargain City era irrelevante e insignificante.
Eles fizeram uma opção de compra de vinte hectares na Market
Street, a um quilômetro e meio da praça de Clanton. Alguns vizinhos
protestaram, e o conselho municipal realizou uma audiência pública
para decidir se dava ou não permissão para a construção da loja.
Bargain City já enfrentara oposição antes, e tinha uma estratégia bem
planejada e eficiente.
A sala do conselho ficou lotada com pessoas segurando placas em
vermelho e branco da empresa:
BARGAIN CITY, UM BOM VIZINHO e QUEREMOS
EMPREGOS.
Engenheiros, arquitetos, advogados e empreiteiros compareceram,
com suas secretárias, esposas e filhos. O porta-voz descreveu um
quadro róseo de crescimento econômico, aumento da receita fiscal,
150 empregos para os moradores locais e os melhores produtos a
preços mais baixos.
A sra. Dorothy Hockett falou em oposição. Sua propriedade ficava
ao lado do local escolhido, e ela não queria a invasão de barulho e
luzes. O conselho municipal parecia simpático, mas a votação havia
muito que fora decidida. Como ninguém mais se manifestasse contra
a Bargain City, levantei-me e fui para o pódio.
Era impulsionado pela convicção de que precisávamos, para
preservar a área do centro de Clanton, proteger as lojas, cafés e
escritórios em torno da praça. A partir do momento em que
começássemos a nos esparramar, não haveria mais fim. A cidade se
expandiria em uma dúzia de direções, cada uma sugando uma parcela
da antiga Clanton.
A maioria dos empregos prometidos seria de salário mínimo. O
aumento da receita fiscal da cidade seria à custa dos comerciantes que
a Bargain City logo expulsaria de suas atividades. Os habitantes do
condado de Ford não iam acordar um dia e subitamente começar a
comprar mais bicicletas e geladeiras apenas porque a Bargain City
tinha vitrines espetaculares.
Mencionei a cidade de Titus, cerca de uma hora ao sul de Clanton.
Dois anos antes, a Bargain City se instalara ali. Desde então, catorze
lojas e um café haviam fechado. A Main Street estava quase deserta.
Mencionei a cidade de Marshall, no delta. Nos três anos
transcorridos desde a inauguração da Bargain City ali, o pequeno
comércio familiar vinha sendo destruído, com o fechamento de duas
farmácias, duas pequenas lojas de departamentos, a loja de rações, a
loja de ferragens, uma butique, a loja de presentes, uma pequena
livraria e dois cafés. Eu almoçara no café que restara, e a garçonete,
que trabalhava ali havia trinta anos, me dissera que o movimento
caíra para menos da metade. A praça em Marshall era parecida com a
de Clanton, só que a maioria das vagas de estacionamento estava
vazia. E havia bem poucas pessoas caminhando pelas calçadas.
Mencionei a cidade de Tackerville, com a mesma população de
Clanton. Um ano depois do surgimento da Bargain City ali, a cidade
fora obrigada a gastar um milhão e duzentos mil dólares em
melhorias de ruas e estradas, por causa do aumento do fluxo de
veículos.
Entreguei ao prefeito e aos conselheiros municipais cópias de um
estudo realizado por um professor de economia da Universidade da
Geórgia. Ele estudara a expansão da Bargain City pelo Sul durante os
últimos seis anos, avaliando o impacto financeiro e social da empresa
sobre cidades com menos de dez mil habitantes. As receitas fiscais de
vendas permaneciam mais ou menos as mesmas; as vendas eram
apenas transferidas dos antigos comerciantes para a Bargain City. O
emprego era mais ou menos o mesmo; os funcionários das antigas
lojas no centro eram substituídos pelos novos na Bargain City. A
empresa não fazia investimentos substanciais na comunidade, além
do terreno e do prédio. Na verdade, nem sequer permitia que o
dinheiro ficasse nos bancos locais. À meia-noite, todas as noites, as
receitas do dia eram enviadas para a matriz, em Gainesville, Flórida.
O estudo concluía que a expansão era obviamente benéfica para os
acionistas da Bargain City, mas tinha consequências econômicas
devastadoras para a maioria das pequenas cidades. E os maiores
danos eram culturais. Com lojas fechadas e calçadas vazias, a vida rica
da cidade, de rua principal e praça central, morria rapidamente.
Uma petição em favor da Bargain City tinha 480 assinaturas. Nossa
petição, em oposição, tinha doze. O conselho votou por unanimidade,
cinco a zero, pela aprovação do projeto.
Escrevi um editorial veemente, e durante um mês recebi cartas
agressivas. Pela primeira vez, fui chamado de “abraçador de árvore”.
Um mês depois, os tratores nivelaram toda a área, os canos foram
instalados. Uma grande inauguração foi anunciada para 1° de
dezembro, a tempo para as compras de Natal. Com o dinheiro
disponível, a Bargain City não perdeu tempo na construção de seu
vasto prédio. A empresa tinha uma reputação de administração astuta
e decidida.
A loja e seu estacionamento cobriram cerca de oito hectares. Os
terrenos externos foram logo vendidos a outras redes. Não demorou
muito para que a cidade aprovasse a instalação de um posto de
gasolina de auto-serviço com dezesseis bombas, uma loja de
conveniências, três restaurantes de fast-food, uma sapataria de preços
reduzidos, uma loja de móveis de preços reduzidos e um
supermercado.
Eu não podia negar anúncios para a Bargain City. Não preciso do
dinheiro deles, mas como o Times era o único jornal com circulação em
todo o condado, eles tinham de anunciar em suas páginas. (Em
resposta a uma campanha pelo zoneamento da cidade que eu fizera
em 1977, fora aberto um pequeno jornal de direita, o Clanton Chronicle,
mas tinha dificuldades para sobreviver.)
Em meados de novembro, tive uma reunião com um representante
da empresa, em que acertamos uma série de anúncios relativamente
caros para a inauguração. Cobrei o máximo possível. Eles nunca
reclamaram.
No dia 1º de dezembro, o prefeito, o senador Morton e outras
autoridades cortaram a fita. Uma multidão ansiosa irrompeu pelas
portas e começou a fazer compras, como se os famintos tivessem
encontrado comida. Houve engarrafamento nas estradas que levavam
à cidade.
Recusei-me a dar uma cobertura na primeira página. Em vez disso,
limitei-me a uma notícia pequena na página sete, o que irritou o
prefeito, o senador Morton e outras autoridades. Esperavam que o
corte da fita na inauguração fosse a principal notícia na primeira
página, com direito a foto.
A temporada de Natal foi brutal para os comerciantes do centro da
cidade. Três dias depois do Natal foi anunciada a primeira baixa,
quando a antiga loja Western Auto decidiu fechar. Ocupara o mesmo
prédio durante quarenta anos, vendendo bicicletas, aparelhos de
televisão e outros eletrodomésticos. O sr. Hollis Barr, o proprietário,
disse-me que um determinado aparelho de TV em cores Zenith
custava para ele 438 dólares. Com vários descontos, ele tentava
vender por 510 dólares. Um modelo idêntico estava à venda na
Bargain City por 399 dólares.
O fechamento da Western Auto, como não podia deixar de ser, foi
notícia de primeira página.
Foi seguido em janeiro pelo fechamento da farmácia Swain's, ao
lado da Tea Shoppe, depois a Maggie's Gifts, ao lado da loja de roupas
do sr. Mitlo. Tratei cada fechamento como se fosse uma morte, e
minhas reportagens pareciam obituários.
Passei uma tarde com os gêmeos Stuke, na loja de ferragens. Era
um prédio antigo maravilhoso, com assoalhos de madeira
empoeirados, prateleiras vergadas que continham um milhão de itens,
uma estufa de lenha nos fundos, em torno da qual se discutiam os
problemas mais importantes, quando o movimento era fraco. Não se
podia encontrar qualquer coisa na loja, e era assim mesmo que tinha
de ser. A rotina era perguntar a um dos gêmeos sobre “aquele
dispositivo achatado que fica na ponta daquela haste que faz a válvula
do vaso dar a descarga”. Um dos Stuke desaparecia entre as pilhas
ligeiramente organizadas de material, e voltava um instante depois
com a peça que fazia a válvula funcionar. Era o tipo de pergunta que
não se podia fazer na Bargain City.
Sentamos junto da estufa, num dia frio de inverno, e ouvimos o
discurso de Cecil Clyde Poole, um major reformado do exército, que
não hesitaria, se assumisse o comando da política nacional, em lançar
bombas atômicas em todos os outros povos, com exceção dos
canadenses. Também jogaria uma bomba na Bargain City. Na
linguagem mais rude e pitoresca que eu já ouvira, esculhambou a
empresa com o maior entusiasmo. Tivemos bastante tempo para
conversar, porque quase não havia clientes. Um dos Stuke informou-
me que a queda no movimento fora de setenta por cento.
No mês seguinte eles fecharam a loja, inaugurada pelo pai em
1922. Na primeira página, publiquei uma foto do fundador, sentado
atrás de um balcão, em 1938. Também escrevi um editorial inflamado,
na base do “eu-não-disse”, um lembrete para quem ainda lia minhas
pequenas tiradas.

— Anda fazendo muita pregação - advertiu-me Harry Rex, várias


vezes. - E ninguém está prestando atenção.
A sala da frente do Times quase nunca era usada. Em cima de
algumas mesas, havia exemplares da última edição. Havia um balcão
que Margaret às vezes usava para pôr os anúncios. A sineta na porta
da frente soava durante o dia inteiro, à medida que as pessoas
entravam e saíam. Cerca de uma vez por semana, um estranho se
arriscava a subir, e quase sempre encontrava aberta a porta da minha
sala. Na maioria das vezes, era um parente desconsolado, que vinha
tratar dos detalhes de um obituário iminente.
Levantei os olhos uma tarde, em março de 1979, e deparei com um
cavalheiro num terno impecável, parado na porta da sala. Ao
contrário de Harry Rex, cuja entrada já era anunciada quando ele
ainda se encontrava na calçada, sendo ouvida por todos no prédio,
aquele homem subira a escada sem fazer o menor barulho.
Seu nome era Gary McGrew, um consultor de Nashville, cuja área
de competência era a de jornais de pequenas cidades. Enquanto eu
fazia um café, ele explicou que um cliente planejava comprar vários
jornais no Mississippi, ao longo de 1979. Porque eu tinha sete mil
assinantes, nenhuma dívida, uma rotativa de off-set, porque agora
imprimia seis semanários menores, além de nossos próprios guias de
compras, seu cliente estava muito interessado em comprar The Ford
County Times.
— Interessado até que ponto? - indaguei.
— Muito interessado. Se pudéssemos examinar seus livros,
poderíamos determinar um valor.
Ele saiu. Dei alguns telefonemas para confirmar sua credibilidade.
Era a melhor possível. Fiz um levantamento de minha situação
financeira. Tornamos a nos encontrar três dias depois, desta vez à
noite. Não me interessava a presença de Baggy, Wiley ou qualquer
outra pessoa. A notícia de que o Times poderia ser vendido seria tão
quente que os cafés abririam às três horas da madrugada, em vez de
cinco da manhã.
McGrew absorveu os números como um analista experiente.
Esperei, com um estranho nervosismo, como se o veredicto pudesse
mudar minha vida.
— Você tem um lucro de cem mil, depois dos impostos, e tira um
salário de cinquenta mil. A depreciação dá mais vinte mil, sem juros,
porque não tem dívidas. Dá 170 mil em fluxo de caixa, vezes o padrão
múltiplo de seis. Ou seja, um milhão e vinte mil.
— E o prédio?
Ele olhou ao redor, como se o teto pudesse desabar a qualquer
momento.
— Prédios assim não são caros.
— Vale cem mil.
— Está bem. E mais cem mil pela rotativa de off-set e os outros
equipamentos. O valor total situa-se na faixa de um milhão e duzentos
mil.
— Isso é uma oferta? - perguntei, ainda mais ansioso.
— Pode ser. Terei de conversar com meu cliente.
Eu não tinha intenção de vender o Times. Entrara por acaso no
negócio, tivera alguns golpes de sorte, trabalhara duro, escrevendo
reportagens e obituários, vendendo anúncios. Agora, nove anos
depois, minha pequena empresa valia mais de um milhão de dólares.
Era jovem, ainda solteiro, embora estivesse cansado de ser
solitário, de viver sozinho numa mansão, com três remanescentes dos
gatos dos Hocutt, que se recusavam a morrer. Aceitara a realidade de
que não encontraria uma noiva no condado de Ford. As melhores já
estavam comprometidas aos vinte anos e eu era muito velho para
competir nesse nível. Saía com jovens divorciadas, quase todas
ansiosas em me levarem para a cama e acordarem em minha linda
casa, sonhando em gastar todo o dinheiro que os rumores diziam que
eu ganhava. A única de quem realmente gostei - e que namorei, de
forma intermitente, durante um ano -estava sobrecarregada com três
crianças pequenas.
Mas é engraçado o que um milhão de dólares faz com uma pessoa.
Depois que o valor foi aventado, nunca mais saiu de meus
pensamentos. O trabalho tornou-se mais chato. Passei a me ressentir
dos obituários ridículos, a pressão interminável dos prazos de
fechamento do jornal. Dizia a mim mesmo, pelo menos uma vez por
dia, que não precisaria mais circular pelas ruas para vender anúncios.
Poderia largar os editoriais. E esquecer as insuportáveis cartas ao
editor.
Uma semana depois, eu disse a Gary McGrew que o Times não
estava à venda. Ele respondeu que seu cliente decidira comprar três
jornais até o final do ano. Portanto, eu tinha tempo para pensar a
respeito.
Por mais extraordinário que possa parecer, a notícia de nossas
conversas nunca vazou.
CAPÍTULO 36
NUMA TARDE DE QUINTA-FEIRA, no início de maio, recebi um
telefonema do advogado da Junta de Livramento Condicional. A
próxima audiência de Danny Padgitt seria na segunda-feira seguinte.
— Um dia bastante conveniente - comentei.
— Por que diz isso?
— Nosso jornal sai na quarta-feira. Portanto, não tenho tempo de
publicar uma notícia antes da audiência.
— Não monitoramos seu jornal.
— Não acredito nisso.
— Em que acredita ou deixa de acreditar é irrelevante. A junta
decidiu que não terá permissão de participar da audiência. Violou
nossas regras na última vez, ao noticiar o que aconteceu.
— Estou proibido de entrar?
— Isso mesmo.
— Estarei lá de qualquer maneira.
Liguei em seguida para o xerife McNatt. Ele também fora avisado
sobre a audiência, mas não sabia se poderia comparecer. Estava na
pista de uma criança desaparecida (do Wisconsin), e era evidente que
não tinha o menor interesse em se envolver com os Padgitt.
Nosso promotor distrital, Rufus Buckley, tinha um julgamento de
assalto à mão armada na segunda-feira, no condado de Van Buren.
Prometeu enviar uma carta se opondo ao livramento condicional, mas
a carta nunca foi recebida. Omar Noose, o juiz do circuito, presidiria o
mesmo julgamento. Portanto, não havia a menor possibilidade de sua
presença. Comecei a pensar que não haveria ninguém presente para se
manifestar contra a libertação de Padgitt.
Por diversão, pedi a Baggy para ir. Ele ficou atordoado, mas
depois se desmanchou numa impressionante lista de desculpas para
não comparecer.
Fui procurar Harry Rex e dei a notícia. Ele tinha um difícil
julgamento de divórcio, começando na segunda-feira, em Tupelo. Se
não fosse por isso, poderia ir comigo a Parchman.
— O garoto será solto, Willie.
— Impedimos no ano passado.
— Depois que as audiências de livramento condicional começam, é
apenas uma questão de tempo.
— Mas alguém tem de lutar contra isso.
— Por que se incomodar? Por que irritar os Padgitt? Não vai
encontrar nenhum voluntário.
Foi mesmo difícil encontrar voluntários, com toda a cidade
tentando se esquivar. Eu imaginara uma multidão enfurecida, lotando
a audiência e impedindo a libertação de Danny.
No final, a multidão enfurecida consistiu em três pessoas.
Wiley Meek concordou em me acompanhar, embora não tivesse o
menor interesse em falar. Se pretendiam mesmo impedir minha
presença, Willie acompanharia toda a audiência e me contaria os
detalhes. O xerife McNatt surpreendeu-me com a sua presença.
A segurança era reforçada no corredor que levava à sala de
audiência. O advogado da junta ficou furioso quando me viu, e
trocamos palavras ásperas. Guardas uniformizados me cercaram. Eu
estava em inferioridade numérica e desarmado. Fui levado para fora
do prédio e colocado em meu carro, onde fiquei, vigiado por dois
marginais de pescoço grosso e baixo QI.
Segundo Wiley, a audiência transcorreu como se podia prever.
Lucien estava presente, com vários Padgitt. O advogado da junta leu
um relatório que fazia Danny parecer um escoteiro exemplar. A
assistente social apoiou a recomendação. Lucien falou por dez
minutos, as mentiras habituais de um advogado. O pai de Danny
falou por último, e fez um apelo emocionado pela libertação do filho.
Sua presença era desesperadamente necessária em casa, onde a família
tinha negócios de madeira, cascalho, asfalto, transporte rodoviário e
empreitada de obras públicas. Danny teria tantos empregos e
trabalharia tantas horas por semana que não sobraria tempo para se
meter em encrencas.
O xerife McNatt, corajosamente, levantou-se para falar pelo
condado de Ford. Estava nervoso e não era um bom orador, mas fez
um trabalho aceitável de recordação do crime. Por mais extraordinário
que pudesse parecer, no entanto, esqueceu de mencionar que um júri
formado pelo mesmo grupo de pessoas que o elegera para o cargo
fora ameaçado por Danny Padgitt.
Por quatro votos contra um, a junta concedeu liberdade
condicional a Danny Padgitt.

Clanton ficou apenas ligeiramente desapontada. Durante o


julgamento, a cidade demonstrara uma genuína sede de sangue e
sentira amargura porque o júri não aprovara a pena de morte. Mas
nove anos haviam passado, e desde a primeira audiência de
livramento condicional que se aceitava que Danny Padgitt acabaria
sendo solto, mais cedo ou mais tarde. Ninguém esperava que fosse tão
cedo, mas o choque inicial já fora superado.
Sua libertação foi influenciada por dois fatores singulares. O
primeiro foi o fato de Rhoda Kassellaw não ter família na região. Não
havia pais consternados para despertar compaixão e clamar por
justiça. Não havia irmãos furiosos para manter o caso vivo. Os filhos
haviam ido embora e sido esquecidos. Ela levava uma vida solitária e
não tinha amigos dispostos a manifestarem seu ressentimento contra o
assassino.
O segundo fator foi o fato de que os Padgitt viviam em outro
mundo. Eram vistos em público tão raramente que não era difícil nos
convencer de que Danny iria para a ilha e nunca mais seria visto. Que
diferença isso fazia para as pessoas no condado de Ford? Prisão ou
Ilha Padgitt? Se nunca mais o víssemos, não seríamos lembrados de
seus crimes. Nos nove anos desde o julgamento, eu não vira nem um
único Padgitt em Clanton. Em meu editorial um tanto severo sobre a
sua libertação, eu disse que “um assassino a sangue-frio está mais
uma vez entre nós”. Mas isso não era verdade.
A reportagem na primeira página e o editorial não provocaram
nenhuma carta do público. As pessoas falaram a respeito, mas não por
muito tempo nem com muito fervor.
Baggy entrou em minha sala ao final de uma manhã, uma semana
depois da libertação de Padgitt. Fechou a porta, o que era sempre um
bom sinal. Ouvira alguma fofoca tão sensacional que só podia ser
relatada com a porta fechada.
Num dia típico, eu chegava no jornal por volta de onze horas da
manhã. E num dia típico, ele começava a entornar por volta de meio-
dia. Assim, dispúnhamos em geral de uma hora para discutir
reportagens e conferir rumores. Ele olhou ao redor, como se houvesse
microfones escondidos nas paredes, antes de anunciar:
— Os Padgitt desembolsaram cem mil dólares para soltar o garoto.
A quantia não me chocou, nem o suborno em si, mas fiquei
surpreso por Baggy ter desencavado a informação.
— Não acredito.
Isso sempre o estimulava a falar mais.
— É o que estou lhe dizendo.
O tom era presunçoso, na reação habitual quando tinha um furo.
— Quem ficou com o dinheiro?
— Essa é a melhor parte. Você não vai acreditar.
— Quem?
— Ficará chocado.
— Quem?
Lentamente, ele iniciou o ritual prolongado de acender um cigarro.
Nos primeiros anos, eu ficava suspenso no ar, enquanto ele retardava
o anúncio da notícia sensacional que descobrira. Mas, com a minha
experiência, aprendera que isso só contribuía para que ele me fizesse
esperar ainda mais. Recomecei a escrever.
— Acho que não deveria ser uma surpresa - comentou ele, dando
uma tragada, pensativo. — Não me surpreendeu nem um pouco.
— Vai me contar ou não?
— Theo.
— O senador Morton?
— É o que estou lhe dizendo.
Eu estava bastante chocado, e tinha de dar essa impressão, ou a
história perderia o vigor.
— Theo?
— Ele é vice-presidente do Comitê Penitenciário do Senado. Ocupa
o cargo há uma eternidade, e sabe como manipular tudo. Queria cem
mil dólares. Os Padgitt estavam dispostos a pagar. Fizeram um
acordo. E o garoto saiu da prisão. Tudo muito fácil.
— Pensei que Theo estivesse acima de subornos.
Eu falava sério. O comentário provocou um grunhido desdenhoso
exagerado.
— Não seja tão ingênuo.
Mais uma vez, ele sabia de tudo.
— Onde descobriu?
— Não posso dizer.
Havia uma possibilidade de que a turma do pôquer tivesse
inventado o rumor para verificar a rapidez com que circulava pela
praça antes de voltar a seus ouvidos. Mas havia uma possibilidade
igualmente boa de que Baggy tivesse mesmo recebido uma
informação válida. Só que não importava. Não se podia traçar a
origem do dinheiro.

No momento em que eu parara de sonhar com uma aposentadoria


prematura, viajar pela Europa, excursionar de mochila nas costas pela
Austrália, no momento em que me acomodava de novo na rotina de
fazer reportagens, escrever obituários e oferecer anúncios para todos
os comerciantes da cidade, o sr. Gary McGrew voltou a minha vida. E
trouxe seu cliente.
Ray Noble era um dos três diretores de uma empresa que já
possuía trinta jornais semanais no Deep South, e queria acrescentar
mais alguns. Como Nick Diener, meu amigo na universidade, ele fora
criado no meio do jornal da família e entendia do negócio. Pediu-me
segredo e depois expôs seu plano. A empresa queria comprar o Times,
junto com os jornais dos condados de Tyler e Van Buren. Venderiam
os equipamentos dos outros dois jornais, e todos passariam a ser
impressos em Clanton, porque nossas máquinas eram as melhores.
Consolidariam a contabilidade e grande parte da venda de anúncios.
A oferta de um milhão e duzentos mil dólares fora pela avaliação.
Agora, ofereciam um milhão e trezentos mil. À vista.
— Depois do imposto de ganhos de capital, você sairá com um
milhão de dólares limpos - disse Noble.
— Posso fazer as contas.
Falei como se fechasse um negócio assim todas as semanas. Mas a
verdade é que as palavras “um milhão de dólares limpos” vibravam
por todo o meu corpo.
Eles insistiram um pouco. Já haviam sido feitas ofertas pelos
outros dois jornais, e tive a impressão de que o negócio não estava
saindo exatamente como desejavam. O elemento fundamental era o
Times. Tínhamos equipamentos melhores e uma circulação um pouco
maior.

Recusei de novo, e eles foram embora; mas todos os três sabiam


que não fora a última conversa.
Onze anos depois de ter fugido do condado de Ford, Sam Ruffin
voltou da mesma maneira como partira: de ônibus, no meio da noite.
Já estava em casa havia dois dias antes que eu soubesse. Cheguei para
o almoço da quinta-feira e deparei com Sam, numa cadeira de balanço
na varanda, um sorriso tão largo quanto o da mãe. Miss Callie parecia
e se comportava como se fosse dez anos mais moça, agora que o filho
caçula voltara para casa, são e salvo. Ela fritou uma galinha e
cozinhou tudo o que tinha na horta. Esau almoçou conosco. O
banquete durou três horas.
Sam tinha agora um diploma de curso superior e planejava cursar
a faculdade de direito. Quase casara com uma canadense, mas o
romance terminara quando a família dela se opusera com veemência a
união. Miss Callie mostrou-se bastante aliviada ao saber do
rompimento. Sam não mencionara o romance em suas cartas para a
mãe.
Planejava ficar em Clanton por alguns dias, sempre perto de casa,
só se aventurando para fora de Lowtown à noite. Prometi que
conversaria com Harry Rex, para descobrir o que pudesse sobre o
patrulheiro Durant e seus filhos. Pelos editais que publicávamos, eu
sabia que Durant tornara a casar e depois se divorciara pela segunda
vez.
Sam queria ver a cidade. Ao final de uma tarde, peguei-o em meu
Spitfire. O rosto meio encoberto por um boné do time de beisebol
Detroit Tigers, ele contemplou a cidade que ainda chamava de lar.
Mostrei-lhe meu escritório, minha casa, Bargain City, a expansão da
cidade para oeste. Demos a volta pelo prédio do tribunal. Contei a
história do atirador de tocaia e da fuga dramática de Baggy.
Quando o deixei na frente da casa dos Ruffin, ele perguntou:
— É verdade que Padgitt saiu da prisão?
— Ninguém o viu. Mas tenho certeza de que voltou para casa.
— Espera algum problema?
— Não.
— Nem eu. Mas não consigo convencer mamãe.
— Não vai acontecer nada, Sam.
CAPÍTULO 37
O TIRO ÚNICO QUE MATOU Lenny Fargarson foi disparado de um rifle
de caça 30.06. O assassino poderia estar até a duzentos metros de
distância da varanda da frente, onde Lenny morreu. Um bosque
começava logo depois do gramado extenso em torno da casa. Era bem
possível que a pessoa que puxara o gatilho tivesse subido numa
árvore. Assim, sem que ninguém o visse, teria uma visão perfeita do
pobre Lenny.
Ninguém ouviu o tiro. Lenny estava sentado na varanda, em sua
cadeira de rodas, lendo um dos muitos livros que tomava emprestado
todas as semanas da biblioteca de Clanton. O pai entregava
correspondência. A mãe fazia compras em Bargain City. Tudo indica
que Lenny não sentiu qualquer dor e teve morte instantânea. A bala
entrou pelo lado direito da cabeça, pouco acima do maxilar, e deixou
um buraco enorme ao sair, por cima do ouvido esquerdo.
Lenny já havia morrido havia algum tempo quando a mãe o
encontrou. Ela conseguiu se controlar de algum modo, e absteve-se de
tocar no corpo ou em qualquer lugar da cena. Havia sangue por toda a
varanda, até mesmo pingando dos degraus da frente.
Wiley ouviu a notícia por seu rádio, que monitorava a faixa da
polícia. Ligou-me para dar o aviso assustador:
— Já começou. Fargarson, o garoto aleijado, foi assassinado.
Wiley passou pelo jornal. Embarquei em sua picape, e fomos para
o local do crime. Nenhum dos dois fez qualquer comentário, mas
pensávamos a mesma coisa.
Lenny continuava na varanda. O tiro o derrubara da cadeira de
rodas. Caíra de lado, com o rosto virado para a casa. O xerife McNatt
pediu-nos para tirar fotos, e atendemos de bom grado. O jornal não ia
usá-las.
Amigos e parentes chegavam de toda parte, e eram orientados
pelos guardas para uma porta lateral. McNatt usava seus homens para
resguardar o corpo na varanda. Recuei e tentei absorver a cena
horrível: os guardas pairando em torno de Lenny, enquanto as
pessoas que o haviam amado tentavam vê-lo, ao entrarem na casa
para confortar os pais.
Depois que o corpo foi finalmente posto numa maca e embarcado
na ambulância, o xerife McNatt aproximou-se e encostou-se na picape,
ao meu lado.
— Está pensando a mesma coisa que eu? - indagou ele.
— Estou.
— Pode me arrumar uma lista dos jurados?
Nunca havíamos publicado os nomes dos jurados, mas eu tinha a
informação no arquivo.
— Claro.
— Quanto tempo vai demorar?
— Dê-me uma hora. Qual é o seu plano?
— Temos de alertar essas pessoas.
Ao sairmos, os guardas começavam a vasculhar o bosque denso
em torno da casa dos Fargarson.

Levei a lista para o xerife, e a examinamos juntos. Em 1977, eu


escrevera o obituário do jurado cinco, o sr. Fred Bilroy, um guarda-
florestal aposentado que morrera de pneumonia. Até onde eu sabia, os
outros dez continuavam vivos.
McNatt entregou cópias da lista a três de seus homens, que saíram
para dar a notícia que ninguém queria ouvir. Ofereci-me para dar a
notícia a Callie Ruffin.
Encontrei-a na varanda, observando Esau e Sam travarem uma
guerra numa partida de damas. Ficaram na maior satisfação ao me
verem, mas o ânimo logo mudou.
— Tenho uma notícia terrível - anunciei, com uma expressão
sombria.
Eles esperaram.
— Lenny Fargarson, aquele garoto aleijado do júri, foi assassinado
esta tarde.
Ela levou a mão à boca e arriou na cadeira de balanço. Sam
amparou-a, afagou seu ombro. Fiz um breve relato do que acontecera.
— Ele era um bom garoto cristão - murmurou Miss Callie. -
Oramos juntos antes de começarmos as deliberações.
Ela não chorava, mas parecia na iminência de fazê-lo. Esau foi
buscar-lhe uma pílula para a pressão. Esau e Sam sentaram nos lados
de sua cadeira, enquanto eu ia para o balanço. Ficamos assim por um
longo tempo. Pouco se falou. Miss Callie estava absorvida em seus
pensamentos.
Era uma noite quente de primavera, com uma meia-lua. Lowtown
estava movimentada, crianças passeando em bicicletas, vizinhos
conversando por cima de cercas, uma partida de basquete barulhenta
ali perto. Um bando de garotos de dez anos apaixonou-se por meu
Spitfire, até que Sam os afugentou. Era apenas a segunda vez que eu
fazia uma visita depois do escurecer.
— É assim todas as noites? - perguntei.
— É, sim, quando o tempo está bom - respondeu Sam, ansioso em
conversar. - Era um lugar maravilhoso para se crescer. Todo o mundo
conhece todo o mundo. Quando eu tinha nove anos, quebrei o para-
brisa de um carro com uma bola de beisebol. Virei-me e fugi. Vim
direto para casa. Quando cheguei aqui, mamãe me esperava na
varanda. Já sabia de tudo. Tive de voltar ao local do crime, confessar e
prometer que pagaria o prejuízo.
— E pagou - disse Esau.
— Levei seis meses trabalhando, até poupar 120 dólares.
Miss Callie quase sorriu à lembrança, mas estava preocupada
demais com Lenny Fargarson. Embora não o visse havia nove
anos, tinha ternas lembranças de Lenny. Sua morte deixava-a muito
triste, mas era também assustadora.
Esau fez um chá bem doce, com limão. Quando tornou a sair da
casa, pôs uma espingarda de cano duplo por trás da cadeira de
balanço, ao alcance de sua mão, mas fora da vista de Miss Callie.
À medida que as horas passaram, o movimento de pedestres
diminuiu. Os vizinhos entraram em suas casas. Refleti que, se Miss
Callie permanecesse em casa, seria um alvo muito difícil. Havia casas
nos lados e na frente. Não havia morros, torres ou terrenos baldios à
vista.
Não mencionei isso, mas tenho certeza de que Sam e Esau
pensavam a mesma coisa. Quando ela se recolheu para dormir,
desejei-lhe boa noite, e fui para o escritório do xerife. Estava cheio de
policiais, com o clima de um parque de diversões, como só um bom
crime pode produzir. Não pude deixar de recordar a noite em que
Danny Padgitt fora preso, nove anos antes, com a camisa toda
ensanguentada.
Apenas dois jurados não haviam sido encontrados. Ambos tinham
se mudado, e o xerife McNatt tentava localizá-los pelo telefone.
Perguntou sobre Miss Callie, e respondi que ela estava segura. Não
informei que Sam voltara para casa. Ele fechou a porta de sua sala, e
disse que tinha um favor a me pedir.
— Pode conversar com Lucien Wilbanks amanhã?
— Por que eu?
— Eu poderia fazê-lo, mas não suporto o filho da puta, e ele sente
a mesma coisa em relação a mim.
— Todo o mundo detesta Lucien.
— Exceto...
— Exceto... Harry Rex?
— Isso mesmo, Harry Rex. Que tal se você e Harry Rex
conversassem com Lucien? Para saber se ele poderá ser um
intermediário com os Padgitt. Em algum momento, tenho de falar com
Danny, não é mesmo?
— Acho que sim. Você é o xerife.
— Apenas converse com Lucien. Só isso. Sonde a situação. Se tudo
correr bem, talvez eu fale com ele. É diferente se o xerife entra em cena
logo de saída.
— Prefiro ser açoitado - declarei, falando sério.
— Mas fará o que estou pedindo?
— Pensarei a respeito.
Harry Rex também não ficou muito encantado com a perspectiva.
Por que deveríamos nos envolver? Conversamos num desjejum, bem
cedo no café, uma refeição que nenhum dos dois costumava fazer.
Comparecemos, contudo, porque não queríamos perder o primeiro
maremoto de comentários no centro da cidade. Não foi surpresa que o
café ficasse lotado de peritos ansiosos, repetindo todos os tipos de
detalhes e teorias sobre o assassinato de Lenny Fargarson. Escutamos
mais do que falamos, e saímos por volta de oito e meia.
O Prédio Wilbanks ficava a duas portas do café. Ao passarmos,
falei de repente, num súbito impulso:
— Vamos entrar.
Antes de Lucien, a família Wilbanks fora um dos pilares da
sociedade, comércio e justiça de Clanton. Nos anos áureos do século
passado, a família possuía terras e bancos. Todos os homens da
família haviam estudado direito, em alguma faculdade da Ivy League.
O declínio, porém, começara havia muitos anos. Lucien era o último
homem da família com alguma importância, e existia agora uma
grande possibilidade de que ele fosse proibido de exercer a profissão.
Ethel Twitty, a secretária antiga, cumprimentou-nos com a maior
grosseria, quase desdenhosa com Harry Rex, que murmurou para
mim:
— A vaca mais nojenta da cidade.
Acho que ela ouviu. Era óbvio que os dois brigavam havia muitos
anos. Seu patrão estava. O que nós queríamos?
— Falar com Lucien - respondeu Harry Rex. - Por que outro
motivo estaríamos aqui?
Ela ligou para a sala de Lucien, que ficava no outro andar. Ficamos
esperando.
— Não tenho o dia inteiro! - resmungou Harry Rex, irritado,
depois de algum tempo.
— Podem subir - disse ela, mais para se livrar de nós do que por
qualquer outro motivo.
Subimos a escada. A sala de Lucien era enorme, com pelo menos
dez metros de comprimento e de largura, o teto com três metros de
altura, e uma fileira de portas de vidro dando para a praça. Ficava no
lado norte, bem em frente ao Times, com o prédio do tribunal nos
separando. Ainda bem que eu não podia ver a varanda de Lucien da
minha sala.
Ele nos recebeu com indiferença, como se tivéssemos interrompido
uma longa meditação. Embora ainda fosse cedo, a mesa atravancada
dava a impressão de que ele trabalhara durante a noite inteira. Tinha
cabelos grisalhos compridos, descendo pelo pescoço, um cavanhaque
antiquado e os olhos cansados de um bebedor dedicado.
— Qual é a ocasião? - indagou ele, a voz pausada.
Sua expressão era irritada. Os olhos transmitiam o máximo de
desprezo possível quando nos fitaram.
— Tivemos um assassinato ontem, Lucien - disse Harry Rex. -
Lenny Fargarson, o garoto aleijado do júri.
— Estou presumindo que seja esta uma conversa reservada -disse
ele, olhando para mim.
— É, sim - confirmei. - Absolutamente. O xerife McNatt pediu-me
para passar por aqui e dar um alô. Chamei Harry Rex para me
acompanhar.
— Ou seja, apenas uma confraternização social?
— Pode ser — murmurei. - Apenas uma pequena conversa sobre o
assassinato.
— Já sei dos detalhes — informou ele.
— Tem falado com Danny Padgitt ultimamente? - indagou Harry
Rex.
— Não desde que ele recebeu o livramento condicional.
— Ele está no condado?
— Continua no estado. Não sei exatamente onde. Se atravessasse a
fronteira do estado sem permissão violaria as condições do livramento
condicional.
Por que não o haviam libertado para ficar no Wyoming, por
exemplo? Parecia estranho que ele fosse obrigado a permanecer perto
do lugar em que cometera seus crimes. Seria melhor se nos
livrássemos dele!
— O xerife McNatt gostaria de conversar com ele - informei.
— É mesmo? E por que isso deveria ser da sua conta e da minha?
Diga ao xerife para ir procurá-lo.
— Não é tão fácil assim, e você sabe disso, Lucien - interveio Harry
Rex.
— O xerife tem alguma prova contra meu cliente? Algum indício?
Já ouviu falar de causa provável, Harry Rex? Sabia que não se pode
simplesmente prender os suspeitos usuais? É preciso um pouco mais
do que isso.
— Houve uma ameaça direta contra os jurados - lembrei.
— Há nove anos.
— Ainda assim, foi uma ameaça, e todo o mundo lembra. Agora,
duas semanas depois que ele deixa a prisão, um dos jurados é
assassinado.
— Não é suficiente. Apresentem mais alguma coisa, e posso
consultar meu cliente. Neste momento, não há nada além de
especulação. Muita especulação, diga-se de passagem, mas também
esta cidade sempre gostou de fofocas.
— Não sabe onde ele está, não é mesmo, Lucien? — disse Harry
Rex.
— Presumo que esteja na ilha, junto com os outros.
Ele usou a palavra “outros” como se fossem um bando de gatos.
— O que acontece se outro jurado for assassinado? — insistiu
Harry Rex.
Lucien largou o bloco que tinha na mão. Apoiou os cotovelos na
mesa.
— O que devo fazer, Harry Rex? Ligar para o garoto e dizer: “Ei
Danny, tenho certeza de que você não quer matar os jurados. Mas se
por acaso tiver a ideia seja um bom menino e pare com isso. ” Acha
que ele vai me escutar? Isso não teria acontecido se o idiota seguisse
meu conselho. Insisti para que ele não prestasse depoimento em sua
defesa. O garoto é um completo idiota, Harry Rex! Você é advogado, e
Deus sabe que já teve clientes idiotas. Não se pode fazer nada para
controlá-los.
— O que acontece se outro jurado for assassinado? — repetiu
Harry Rex.
— Saberemos que outro jurado morreu.
Levantei-me de um pulo e me encaminhei para a porta.
— Você é um filho da puta asqueroso!
— Nada disso pode ser publicado! - rosnou Lucien, por trás de
mim.
— Vá para o inferno! - berrei, antes de bater a porta.

Ao final da tarde, o sr. Magargel me telefonou, da agência


funerária, perguntando se eu podia ir até lá. O sr. e a sra. Fargarson
estavam ali, escolhendo o caixão e decidindo as providências finais.
Como eu já fizera muitas vezes, encontrei-os no Salão C, o menor de
todos, quase nunca usado.
O pastor J. B. Cooper, da Igreja Batista Primitiva Maranatha, estava
com eles. Era um santo. O casal apoiava-se nele para todas as decisões.
Pelo menos duas vezes por ano, eu me encontrava com uma
família, depois da trágica morte de uma pessoa amada. Era quase
sempre um acidente de carro ou algum ferimento horrível sofrido
numa fazenda, algo inesperado. Os parentes sobreviventes sentiam-se
chocados demais para pensar com lucidez, feridos demais para tomar
decisões. Os fortes enfrentavam a provação como se fossem
sonâmbulos. Os fracos se encontravam muitas vezes muito
atordoados para fazer outra coisa que não chorar. A sra. Fargarson era
a mais forte no casal, mas o horror de encontrar o filho com a cabeça
esfacelada reduzira-a a um fantasma que não parava de soluçar. O sr.
Fargarson limitava-se a olhar para o chão.
O pastor Cooper, gentilmente, extraiu os dados básicos, muitos
dos quais ele já conhecia. Desde a lesão na coluna, quinze anos antes,
que Lenny sonhava em ir para o céu, ter o corpo restaurado, caminhar
todos os dias de mãos dadas com seu Salvador. Procuramos encontrar
a melhor linguagem para dizer isso. A sra. Fargarson ficou
profundamente grata. Entregou-me uma foto de Lenny junto de um
lago, com uma vara de pesca nas mãos. Prometi que a publicaria na
primeira página.
Como sempre acontecia com pais transtornados, eles me
agradeceram profusamente e insistiram em me dar um abraço
apertado, quando tentei me retirar. Os enlutados aderem às pessoas
desse jeito, ainda mais na agência funerária.
Passei pelo Pepe's e comprei comida mexicana em embalagens
para viagem. Fui para Lowtown. Encontrei Sam jogando basquete,
Miss Callie dormindo e Esau vigiando a casa com a espingarda. Mais
tarde, comemos na varanda, embora ela se limitasse a mordiscar a
comida estranha. Não estava com fome. Esau comentou que ela pouco
comera durante o dia.
Eu levei meu tabuleiro de gamão, e ensinei o jogo a Sam. Esau
preferia damas. Miss Callie tinha certeza de que qualquer atividade
que envolvesse o uso de dados era um pecado, mas não estava
disposta a fazer um sermão. Sentamos ali por horas, pela noite afora,
observando os rituais de Lowtown. A escola acabara de fechar para o
verão, os dias eram mais longos e mais quentes.
Buster, meu pitbull de meio expediente, passava por ali de carro a
cada trinta minutos. Diminuía a velocidade na frente da casa dos
Ruffin, eu acenava que estava tudo bem, e ele voltava para a casa
Hocutt. Uma radio patrulha estacionou a duas portas da casa dos
Ruffin, e ali permaneceu por um longo tempo. O xerife McNatt
contratara três guardas negros, e dois deles haviam sido destacados
para vigiar a casa.
Havia outros também vigiando. Depois que Miss Callie foi deitar,
Esau apontou através da rua, para uma varanda com tela, as luzes
apagadas, na casa dos Braxton.
— Tully está ali - murmurou ele. - Atento a tudo.
— Ele me disse que passaria a noite acordado — acrescentou Sam.
Lowtown seria um lugar perigoso para iniciar um tiroteio.
Fui embora depois de onze horas. Cruzei os trilhos e atravessei as
ruas vazias de Clanton. A cidade vibrava com a tensão, em
expectativa, porque aquilo que começara, o que quer que fosse, estava
longe de ter acabado.
CAPÍTULO 38
MISS CALLIE INSISTIU em comparecer ao funeral de Lenny Fargarson.
Sam e Esau protestaram vigorosamente, mas depois que ela tomava
uma decisão não adiantava mais qualquer argumentação, como
sempre. Conversei com o xerife McNatt, que resumiu a situação:
— Ela é uma mulher adulta.
Ele sabia que nenhum outro jurado planejava comparecer, mas
também era difícil monitorar essas coisas. Também liguei para o
pastor Cooper, a fim de avisá-lo. Sua resposta foi a seguinte:
— Ela será bem recebida em nossa pequena igreja. Mas devem
chegar cedo.
Com raras exceções, negros e brancos não participavam juntos do
culto no condado de Ford. Acreditavam fervorosamente no mesmo
Senhor, mas escolhiam estilos muito diferentes de cultuá-lo. A maioria
dos brancos esperava estar fora da igreja cinco minutos depois do
meio-dia de domingo, sentando para o almoço até meio-dia e meia. Os
negros não se importavam com a hora em que o serviço terminava...
nem com a hora em que começava, diga-se de passagem. Em minha
excursão pelas igrejas, visitei 27 congregações negras, e nunca vi uma
bênção antes de uma e meia da tarde. O normal era três horas. Vários
serviços prolongavam-se durante o dia inteiro, com um curto
intervalo para o almoço no salão paroquial. Depois, todos voltavam ao
santuário, para mais uma rodada.
Tamanho fervor teria matado um cristão branco.
Mas os funerais eram muito diferentes. Quando Miss Callie, junto
com Sam e Esau, entrou na Igreja Batista Primitiva Maranatha, houve
alguns olhares surpresos, mas nada mais. Se entrassem numa manhã
de domingo, para o culto regular, haveria ressentimento.
Chegamos 45 minutos antes da hora marcada. O pequeno e
adorável santuário estava quase lotado. Um alto-falante fora
pendurado num dos carvalhos antigos, e uma enorme multidão se
reuniu ao redor, depois que não cabia mais ninguém na igreja. O coro
começou com “The Old Rugged Cross”, e as lágrimas logo rolaram. A
mensagem tranquilizador do pastor Cooper foi uma gentil
advertência para que não questionássemos por que coisas ruins
aconteciam com pessoas boas. Deus sempre mantém o controle.
Somos pequenos demais para compreender sua infinita sabedoria e
majestade, mas um dia ele vai se revelar para nós. Lenny estava com
Deus agora. Era o lugar em que Lenny ansiava estar.
Sepultaram-no atrás da igreja, num cemitério pequeno e
impecável, com uma cerca de ferro batido ao redor. Miss Callie
apertou minha mão e orou com fervor quando o caixão foi baixado
para a sepultura. Uma solista cantou “Amazing Grace”. Depois, o
pastor Cooper agradeceu nossa presença. Havia refrescos e biscoitos
no salão paroquial, por trás do santuário. A maior parte da multidão
passou alguns minutos ali, para conversar, ou para dizer uma última
palavra ao sr. e à sra. Fargarson.
O xerife McNatt atraiu minha atenção e acenou com a cabeça,
como se quisesse conversar comigo. Fomos para a frente da igreja,
onde ninguém poderia nos ouvir. Ele estava de uniforme, com o palito
habitual na boca.
— Alguma sorte com Wilbanks?
— Não - respondi. - Tive apenas um encontro. Harry Rex voltou
ontem, mas também não conseguiu nada.
— Acho que terei de falar com ele.
— Pode tentar, mas tenho a impressão de que também não vai
conseguir nada.
O palito foi transferido de um lado para outro da boca, da mesma
maneira como Harry Rex mudava a posição do charuto, sem hesitar
em uma única palavra.
— Não descobrimos nada. Vasculhamos o bosque em torno da
casa, mas não encontramos qualquer pegada, nenhuma pista. Não vai
publicar essa informação, não é?
— Não, não vou.
— Há uma porção de trilhas de lenhadores perto da casa.
Examinamos todas, mas nada descobrimos.
— Portanto, a única pista é a bala.
— E um cadáver.
— Alguém viu Danny Padgitt?
— Ainda não. Mantenho dois carros na 401, no ponto em que a
estrada vira para entrar na ilha. Os guardas não podem ver tudo, mas
pelo menos os Padgitt sabem que estamos vigiando. Há uma centena
de caminhos para entrar e sair da ilha, mas apenas os Padgitt
conhecem todos.
Os Ruffin aproximavam-se, lentamente, conversando com um dos
guardas negros.
— Ela é provavelmente a mais segura - comentou McNatt.
— Alguém está mesmo seguro?
— Logo descobriremos. Porque ele vai tentar de novo, Willie.
Tenho certeza.
— Também tenho.

Ned Ray Zook possuía mil e seiscentos hectares na parte leste do


condado. Cultivava algodão e soja, e suas operações eram muito
grandes para proporcionar lucros consideráveis. Corria o rumor de
que era um dos poucos fazendeiros restantes que ainda ganhava um
bom dinheiro com a terra. Foi em sua propriedade, no meio de uma
área de bosque, num velho estábulo adaptado, que eu assistira à
minha primeira e última rinha de galos, levado por Harry Rex, nove
anos antes.
Em algum momento na madrugada de 14 de junho, um vândalo
entrou no enorme galpão de equipamentos da fazenda e esvaziou os
tanques de combustível de dois dos enormes tratores. O combustível
foi recolhido em latas, escondidas entre os suprimentos. Assim,
quando os operadores chegaram, por volta de seis horas, não havia
qualquer sinal de sabotagem. Um operador verificou o combustível,
como deveria sempre fazer, constatou que o tanque estava vazio,
achou estranho, mas não disse nada, e acrescentou quatro litros. O
outro operador verificara o tanque na tarde anterior, como era seu
hábito. O segundo trator parou de repente, uma hora depois, quando
o motor pifou. O tratorista voltou ao galpão, a quase um quilômetro
de distância, e comunicou o problema ao administrador da fazenda.
Duas horas depois, uma picape da assistência técnica, pintada de
verde e amarelo, avançou aos solavancos pela estrada de terra e foi
parar ao lado do trator enguiçado. Dois mecânicos saltaram, sem
pressa, inspecionaram o sol quente e o céu sem nuvens, depois deram
uma volta em torno do trator, para uma avaliação inicial. Com
evidente relutância, foram pegar as ferramentas na picape. O sol
assava os dois, e não demorou muito para que estivessem suando.
Para tornar o dia um pouco mais agradável, eles ligaram o rádio
da picape, aumentando o volume. Podia-se ouvir a voz de Merle
Haggard ressoando através da plantação de soja.
A música abafou o estampido distante de um tiro de rifle. Atingiu
Mo Teale na parte superior das costas, atravessou-lhe os pulmões, e
abriu-lhe um buraco no peito ao sair. O companheiro de Teale, Red,
disse várias vezes que ouviu apenas um grunhido alto, um ou dois
segundos antes de Mo cair embaixo do eixo dianteiro. Ele pensou a
princípio que alguma coisa do trator soltara de repente, de uma
maneira violenta, e ferira Mo. Red arrastou-o até a picape e partiu em
disparada, muito mais preocupado com o companheiro do que com a
causa do ferimento. Quando chegou ao galpão, o administrador da
fazenda chamou imediatamente a ambulância. Mas já era tarde
demais. Mo Teale morreu ali, no chão de concreto de um escritório
pequeno e empoeirado. “O sr. John Deere”, como o chamáramos
durante o julgamento. No meio da primeira fila, uma péssima
linguagem do corpo.
Na ocasião de sua morte, usava o mesmo tipo de camisa amarela
brilhante com que comparecera ao tribunal em todos os dias do
julgamento. O que o convertia num alvo fácil.
Vi o corpo à distância, através da porta aberta. O xerife McNatt
permitiu-nos entrar no galpão, com a proibição agora comum de tirar
fotos. Wiley deixara as câmeras em sua picape.
Mais uma vez, Wiley monitorava o rádio da polícia quando ouvira
a informação: “Tiroteio na fazenda de Ned Ray Zook! ” Wiley estava
sempre perto de seu monitor, e naqueles dias não era o único. Pelo
estado de ansiedade intensa no condado, cada monitor estava em uso,
e qualquer tiro era razão para entrar na picape e ir verificar.
McNatt logo pediu-nos para sair. Seus homens encontraram as
latas em que fora recolhido o combustível dos tanques esvaziados
pelo vândalo, assim com a janela arrombada para a entrada no galpão.
Passariam o pó à procura de impressões digitais, mas nada
encontrariam. Procurariam pegadas no chão de cascalho lá fora, mas
não encontrariam nenhuma. Revistariam o bosque ao lado da
plantação de soja, mas não encontrariam qualquer pista do assassino.
Na terra ao lado do trator encontraram a bala 30. 06, que foi logo
reconhecida como idêntica à bala que matara Lenny Fargarson.

Permaneci por perto do escritório do xerife até depois do


escurecer. Como se podia esperar, o lugar estava movimentado, com
policiais andando de um lado para outro, comparando histórias,
criando novos detalhes. Os telefones tocavam sem parar. E havia um
novo aspecto. Moradores da cidade, incapazes de conter sua
curiosidade, começaram a aparecer ali, perguntando a qualquer
pessoa disposta a escutar se havia alguma novidade.
Não havia. McNatt trancara-se em sua sala, com os principais
auxiliares, tentando decidir o que fazer em seguida. Sua prioridade
era a proteção dos oito jurados sobreviventes. Três já haviam morrido:
o dr. Fred Bilroy (de pneumonia), agora Lenny Fargarson e Mo Teale.
Um jurado mudara-se para a Flórida dois anos depois do julgamento.
Naquele momento, cada um dos oito tinha uma radio patrulha
estacionada na frente de sua casa.
Fui para o jornal, a fim de começar a escrever a reportagem sobre o
assassinato de Mo Teale, mas fui desviado pelas luzes acesas no
escritório de Flarry Rex. Encontrei-o na sala de reunião, afundado até
os joelhos em depoimentos, pastas de arquivo e o resto da parafernália
jurídica, cuja visão sempre me proporcionava uma dor de cabeça
instantânea. Pegamos duas cervejas na pequena geladeira que ele
tinha no escritório, e saímos para dar uma volta.
Num bairro operário, conhecido como Coventry, pegamos uma
rua estreita e passamos por uma casa com carros estacionados na
frente, como peças de dominó caídas no jardim.
— É aqui que Maxine Root mora - informou Harry Rex. - Ela
integrava o júri.
Eu me lembrava vagamente da sra. Root. Sua casa pequena, de
tijolos vermelhos, não tinha uma varanda na frente, por assim dizer.
Por isso, os vizinhos sentavam junto dos carros estacionados, em
cadeiras dobráveis. Os rifles eram visíveis. Todas as luzes na casa
estavam acesas. Havia uma radio patrulha parada junto da caixa de
correspondência. Dois guardas encostavam-se no capô, e nos
observaram atentamente quando passamos. Harry Rex parou o carro e
disse para um dos guardas:
— Boa-noite, Troy.
— Oi, Harry Rex.
Troy deu um passo em nossa direção.
— Uma festa e tanto, hein?
— Só um idiota tentaria começar alguma coisa por aqui.
— Estamos apenas de passagem.
— É melhor seguir em frente, Harry Rex. Esses caras têm dedos
nervosos.
— Tome cuidado.
Fomos embora. Ao norte da cidade, passamos por trás de um
estábulo, para entrar numa rua longa e escura, que terminava perto da
caixa d’água. Mais ou menos na metade, a rua se encontrava cheia de
carros, estacionados nos dois lados.
— Quem mora aqui? - perguntei.
— O sr. Earl Youry. Ele se sentava na fila de trás, o mais distante
dos espectadores.
Havia uma multidão na varanda da frente. Algumas pessoas
sentavam-se nos degraus. Outras haviam se acomodado em cadeiras
de jardim, no gramado. Em algum lugar, no meio de tanta gente, o sr.
Earl Youry estava escondido e bem protegido, por seus amigos e
vizinhos.
Miss Callie também era bem defendida. A rua na frente de sua
casa estava repleta de carros, e mal dava para passar. Grupos de
homens sentavam nos carros, alguns fumando, alguns segurando
rifles. Metade de Lowtown se reunira ali para ter certeza de que ela se
sentiria segura. Havia um clima de festival, o sentimento de um
evento singular.
Com rostos brancos, Harry Rex e eu recebemos a maior atenção.
Não paramos até que ele pôde falar com os guardas. Depois que eles
aprovaram nossa presença, a multidão relaxou. Estacionamos e me
encaminhei para a casa, onde Sam me cumprimentou, nos degraus da
varanda. Harry Rex ficou para trás, conversando com os guardas.
Miss Callie estava em seu quarto, lendo a Bíblia com uma amiga
da igreja. Vários diáconos faziam companhia a Sam e Esau na
varanda. Todos sentiam-se ansiosos em conhecer os detalhes do
assassinato de Teale. Informei o que sabia, e não era muita coisa.
Por volta de meia-noite, a multidão começou a se dispersar,
lentamente. Sam e os guardas organizaram um rodízio de sentinelas
durante a noite inteira. Haveria sempre homens armados nas
varandas da frente e dos fundos. Não havia escassez de voluntários.
Miss Callie nunca imaginara que seu pequeno lar, aconchegante,
temente a Deus, poderia se tornar uma fortaleza armada. Nas
circunstâncias, porém, ela não podia ficar desapontada.
Seguimos pelas ruas ansiosas até a casa Hocutt, onde encontramos
Buster dormindo em seu carro. Pegamos uma garrafa de bourbon e
sentamos na varanda da frente, matando um mosquito ocasional,
enquanto tentávamos avaliar a situação.
— Ele é muito paciente - comentou Harry Rex. - Deixará passar
alguns dias, até os vizinhos cansarem de esperar na varanda, até todo
mundo relaxar um pouco. Os jurados não podem passar o resto da
vida trancados dentro de casa. Ele vai aguardar.
Um fato pequeno e assustador, não divulgado, fora o pedido de
conserto que a revendedora de tratores recebera uma semana antes.
Na fazenda de Anderson, ao sul da cidade, um trator fora consertado
em circunstâncias similares. Mo Teale, um dos quatro mecânicos
principais, não fora enviado, A camisa amarela de outro homem fora
vigiada através da luneta de um rifle de caça.
— Ele é mesmo paciente e meticuloso - concordei.
Onze dias haviam se passado entre os dois assassinatos. Nenhuma
pista fora encontrada. Se o culpado era mesmo Danny Padgitt, havia
um total contraste entre seu primeiro assassinato — o de Rhoda
Kassellaw - e aqueles dois. Ele passara de um brutal crime de paixão
para execuções a sangue-frio. Talvez fosse isso o que aprendera em
nove anos na prisão. Tivera tempo suficiente para se lembrar das doze
pessoas que o haviam condenado, e planejar sua vingança.
— Ele não acabou — murmurou Harry Rex.
Um assassinato podia ser considerado um ato fortuito. Dois
significava que havia um padrão. O terceiro enviaria um pequeno
exército de policiais e vigilantes à Ilha Padgitt para uma guerra total.
— Vai esperar - reiterou Harry Rex. — Provavelmente por um
longo período.
— Estou pensando em vender o jornal, Harry Rex.
Ele tomou um gole grande do bourbon.
— Por que faria isso?
— Dinheiro. Uma empresa da Geórgia fez uma boa oferta.
— Quanto?
— Muito dinheiro. Mais do que jamais sonhei. Eu passaria muito
tempo sem trabalhar. Talvez nunca mais precise.
A ideia de não trabalhar atingiu-o com um tremendo impacto. Sua
rotina diária era de dez horas de caos incessante, com alguns clientes
de divórcio muito emocionais e tensos. Às vezes ele trabalhava
durante a noite, quando o escritório estava sossegado e podia pensar
melhor. Tinha uma vida confortável, mas precisava se preocupar com
cada centavo.
— Há quanto tempo é dono do jornal, Willie?
— Nove anos.
— Será difícil imaginar o jornal sem você.
— Talvez seja um motivo para vender. Não quero me tornar outro
Wilson Caudle.
— O que pretende fazer?
— Tirar uma folga, conhecer o mundo, encontrar uma boa mulher,
casar, ter filhos. Esta é uma casa grande.
— Quer dizer que não iria embora?
— Para onde? Este é o meu lar.
Outro gole prolongado.
— Não sei. Deixe-me dormir com a questão. Com isso, ele deixou a
varanda e foi para casa.
CAPÍTULO 39
COM OS CORPOS SE ACUMULANDO, era inevitável que a história atraísse
mais atenção do que o Times podia dispensar. Na manhã seguinte, um
repórter de um jornal de Memphis, que eu conhecia, entrou na minha
sala. Cerca de vinte minutos depois, outro repórter, de um jornal de
Jackson, também apareceu. Ambos faziam a cobertura do norte do
Mississippi, onde a notícia mais sensacional costumava ser uma
explosão em fábrica ou uma autoridade do condado indiciada por
algum crime.
Relatei os antecedentes dos dois crimes, o livramento condicional
de Padgitt, o medo que dominava o condado. Não éramos
concorrentes, pois eles escreviam para grandes jornais, que circulavam
em faixas diferentes. A maioria dos meus assinantes também lia um
jornal de Memphis ou Jackson. E o jornal de Tupelo também era
popular.
E, com toda a franqueza, eu começava a perder o interesse; não
pela crise atual, mas pelo jornalismo como vocação. O mundo me
chamava. Sentado ali, tomando café com aqueles dois veteranos,
ambos mais velhos do que eu, cada um ganhando em torno de
quarenta mil dólares por ano, era difícil acreditar que eu podia
encerrar a carreira agora com um milhão de dólares no bolso. Por isso,
tinha alguma dificuldade para me concentrar.
Eles acabaram saindo, em busca de outros ângulos para suas
reportagens. Poucos minutos depois, Sam telefonou, com um tom de
urgência na voz:
— Você precisa vir até aqui.
Uma pequena unidade confusa ainda guardava a varanda dos
Ruffin. Todos os quatro tinham olhos turvos de falta de sono. Sam me
conduziu pelo bivaque. Fomos para a cozinha, onde Miss Callie tirava
da casca o feijão-manteiga, uma tarefa que costumava fazer na
varanda dos fundos. Ela me ofereceu um sorriso afetuoso e me deu o
abraço apertado habitual, mas era uma mulher perturbada.
— Venha comigo — murmurou ela.
Sam acenou com a cabeça e a seguimos para seu pequeno quarto.
Ela fechou a porta, como se houvesse intrusos à espreita, depois
desapareceu num pequeno closet. Esperamos, contrafeitos, enquanto
ela pegava alguma coisa lá dentro. Miss Callie finalmente voltou, com
um velho caderno de espiral, que obviamente fora bem escondido.
— Alguma coisa não faz sentido - disse ela, sentando na beira da
cama.
Sam sentou ao seu lado, e eu recuei para a velha cadeira de
balanço. Ela folheou o caderno, em que escrevera muitas anotações.
— Aqui está.
Miss Callie respirou fundo.
— Fizemos uma promessa solene de nunca falar sobre o que
aconteceu na sala do júri, mas isto é importante demais para não
contar. Quando consideramos o sr. Padgitt culpado, a votação foi
rápida e unânime. Mas, quando tivemos de decidir a questão da pena
de morte, houve alguma oposição. Eu não queria mandar ninguém
para a morte, mas tinha de seguir a lei. Houve uma discussão muito
acalorada, com palavras ásperas, até mesmo algumas acusações e
ameaças. Não foi uma cena agradável. Quando as linhas da batalha se
tornaram definidas, havia três pessoas que se opunham à pena de
morte, e não tinham a menor intenção de mudar de ideia.
Ela me mostrou uma página no caderno. Em sua letra precisa e
característica, havia duas colunas, uma com nove nomes, a outra com
três, L. Fargarson, Mo Teale e Maxine Root. Olhei aturdido para os
nomes, pensando que talvez estivesse vendo a lista do assassino.
— Quando escreveu isso? — perguntei.
— Fiz anotações durante o julgamento.
Por que Danny Padgitt mataria os jurados que se recusaram a
aplicar a pena de morte? Os jurados que efetivamente salvaram sua
vida?
— Ele não está matando as pessoas erradas? — indagou Sam. —
Tudo é errado, eu sei, mas se você quer vingança, por que matar as
pessoas que tentaram salvá-lo?
— Como eu disse, não faz sentido - acrescentou Miss Callie.
— Está presumindo demais - ressaltei. - Por exemplo, presume que
ele sabe como cada jurado votou. Até onde eu sei, e bisbilhotei por
muito tempo, os jurados nunca contaram a ninguém como foi a
votação. E o julgamento foi ofuscado pouco depois pela ordem de
dessegregação. Padgitt foi enviado para Parchman no mesmo dia do
veredicto final. Há uma boa possibilidade de que ele tenha
assassinado primeiro os mais fáceis. Por acaso, o sr. Fargarson e o sr.
Teale eram os mais acessíveis.
— É muita coincidência - insistiu Sam.
Refletimos a respeito por um longo tempo. Eu não tinha certeza se
era plausível; não tinha certeza de coisa alguma. Depois, outro
pensamento me ocorreu.
— Não esqueçam que todos os doze jurados votaram culpado, e
foi nesse momento que ele fez a ameaça.
— É verdade - murmurou Miss Callie, sem estar convencida.
Estávamos tentando encontrar um sentido em algo que era
totalmente incompreensível.
— Seja como for, precisamos dar essa informação ao xerife.
— Prometemos que nunca contaríamos.
— Isso foi há nove anos, mamãe - protestou Sam. - E ninguém
podia prever o que está acontecendo agora.
— É muito importante para Maxine Root - acrescentei.
— Não acha que alguns outros jurados vão se adiantar com a
mesma informação? — indagou Sam.
É possível, mas já se passou muito tempo. E duvido que eles
tenham feito anotações.
Houve alguma agitação na porta da frente. Bobby, Leon e Al
haviam chegado. Tinham se encontrado em St. Louis e seguiram de
carro para Clanton, viajando durante toda a noite. Tomamos café à
mesa da cozinha. Dei as notícias mais recentes. Miss Callie
demonstrava uma súbita animação, enquanto planejava as refeições e
fazia uma lista das coisas que Esau deveria colher.

O xerife McNatt havia saído para uma ronda, visitando cada


jurado. Eu precisava descarregar em alguém. Por isso, fui até o
escritório de Harry Rex. Esperei impaciente, enquanto ele terminava
de tomar um depoimento. Quando ficamos a sós, falei sobre a lista de
Miss Callie e a divisão dos jurados. Ele estivera negociando numa sala
cheia de advogados durante as últimas duas horas, e seu ânimo era o
pior possível.
Como sempre, tinha uma teoria diferente, mais cínica.
— Aqueles três deveriam impedir que o júri votasse por
unanimidade pelo veredicto de culpado - disse ele, depois de uma
rápida análise. — Cederam por alguma razão. Provavelmente
pensavam que faziam a coisa certa ao mantê-lo fora da câmara de gás.
Mas Padgitt, é claro, não pensa assim. Sua raiva aumentou durante
nove anos porque seus três asseclas não causaram um júri inconcluso
logo de saída. Por isso, acha que deve liquidá-los primeiro, para
depois ir atrás dos outros.
— Não havia a menor possibilidade de Lenny Fargarson ter sido
comprado por Danny Padgitt.
— Só porque ele era aleijado?
— Só porque ele era um cristão devoto.
— Ele estava desempregado, Willie. Fora capaz de trabalhar antes,
mas não era mais, e sabia que seu estado haveria de se deteriorar com
a passagem dos anos. Talvez precisasse de dinheiro. Afinal, todo o
mundo precisa de dinheiro. E os Padgitt têm caminhões de dinheiro.
— Não posso aceitar isso.
— Faz mais sentido do que suas teorias sobre um doido. Não é isso
o que está querendo dizer... que outra pessoa decidiu liquidar os
jurados?
— Não disse isso.
— Ainda bem, porque eu estava prestes a chamá-lo de idiota
rematado.
— Já me chamou de coisas piores.
— Não esta manhã.
— E pela sua teoria, Mo Teale e Maxine Root também aceitaram
dinheiro dos Padgitt. Depois, traíram Danny na questão do veredicto
de culpado, mudando em seguida no veredicto da sentença. Agora,
devem pagar o preço supremo, porque não promoveram um júri
inconcluso logo de saída. É isso o que está querendo dizer, Harry Rex?
— Absolutamente certo.
— Sabia que você é um idiota rematado? Por que um homem
honesto, trabalhador, que odiava o crime, frequentava a igreja, como
Mo Teale, concordaria em aceitar dinheiro dos Padgitt?
— Talvez o tenham ameaçado.
— Talvez sim, talvez não!
— E qual é a sua melhor teoria?
— É mesmo Padgitt, e foi apenas por acaso que as duas primeiras
vítimas eram dois dos três que votaram contra a pena de morte. Ele
não sabe como foi a votação. Estava em Parchman doze horas depois
do veredicto. Fez sua lista. Fargarson foi o primeiro porque era um
alvo muito fácil. Teale foi o segundo porque Padgitt podia escolher o
cenário.
— Quem será o terceiro?
— Não sei. Mas essas pessoas não podem permanecer trancadas
dentro de casa para sempre. Ele vai deixar o tempo passar, esperar
que as coisas voltem à normalidade, para depois retomar seus planos,
secretamente.
— Ele pode contar com alguma ajuda.
— Tem razão.
O telefone de Harry Rex não parara de tocar. Ele lançou um olhar
irritado para o aparelho, durante uma pausa, antes de dizer:
— Preciso trabalhar.
— Vou falar com o xerife. Até mais tarde.
Eu já passara pela porta da sala quando ele gritou:
— Aquele outro assunto, Willie...
Virei-me para fitá-lo.
— Venda o jornal, pegue o dinheiro e passe algum tempo se
divertindo. Você fez por merecer.
— Obrigado.
— Mas não deixe Clanton, está bem? -Não deixarei.

O sr. Earl Youry dirigia uma motoniveladora para o condado.


Usava-a em estradas rurais que iam para lugares remotos, saindo de
Possum Ridge e seguindo muito além de Shady Grove. Como
trabalhava sozinho, ficou decidido que passaria alguns dias na
garagem do condado, onde tinha muitos amigos, todos com rifles em
seus veículos e em estado de alerta total. O xerife McNatt reuniu-se
com o sr. Youry e seu supervisor, formulando um plano para mantê-lo
são e salvo.
O sr. Youry ligou para o xerife e disse que tinha uma informação
importante. Admitiu que sua memória não era perfeita, mas tinha
certeza de que o garoto aleijado e Mo Teale haviam sido
intransigentes em sua recusa em votar pela pena de morte. Lembrou
que houvera um terceiro voto igual, talvez uma das mulheres... talvez
a colored. Ele não podia recordar com precisão. Afinal, já se haviam
passado nove anos. Fez a mesma pergunta para McNatt:
— Por que Danny Padgitt mataria primeiro os jurados que se
recusaram a aplicar a pena de morte?
Quando entrei na sala do xerife, ele acabara de conversar com o sr.
Youry. Estava tão aturdido quanto deveria. Fechei a porta e relatei
minha conversa com Miss Callie.
— Vi as anotações dela, xerife. O terceiro voto foi de Maxine Root.
Durante uma hora, repetimos a mesma discussão que eu já tivera
com Sam e Flarry Rex. Não fazia sentido. Ele não acreditava que os
Padgitt tivessem comprado ou intimidado Lenny e Mo Teale; não
tinha a mesma certeza sobre Maxine Root, já que ela vinha de uma
família mais rude. Mais ou menos concordava comigo que as duas
primeiras mortes haviam sido coincidência, e que era mais do que
provável que Padgitt não soubesse como os jurados haviam votado.
Um fato interessante: ele revelou que descobrira, cerca de um ano
depois, que o veredicto fora de nove a três na questão da pena de
morte, e que Mo Teale se opusera com veemência a essa sentença.
Ambos reconhecemos, no entanto, que era bem possível que, com
a participação de Lucien Wilbanks, Padgitt soubesse mais do que nós
sobre as deliberações. Qualquer coisa era possível.
E nada fazia sentido.
Enquanto eu ainda continuava na sala, ele ligou para Maxine Root.
Ela trabalhava como escriturária na fábrica de sapatos ao norte da
cidade. Insistira em continuar a trabalhar. McNatt fora até lá naquela
manhã, inspecionando o lugar, falando com seu patrão, colegas de
trabalho, para que todos tivessem certeza de que estavam seguros.
Dois guardas ficaram de vigia fora do prédio, atentos a qualquer
problema. Levariam Maxine de volta para casa ao final do expediente.
O xerife e Maxine conversaram pelo telefone por alguns minutos,
como velhos amigos, até que McNatt disse:
— Maxine, sei que você, Mo Teale e o garoto Fargarson foram os
únicos três que votaram contra a pena de morte para Danny Padgitt...
Ele fez uma pausa, interrompido por Maxine.
— Como eu descobri não é importante. O que vale mesmo é que
isso me deixa ainda mais nervoso por causa de sua segurança. Super
nervoso.
Ele ouviu-a por alguns minutos. Interrompia de vez em quando,
com comentários como:
— Ora, Maxine, não posso ir até lá e prender o garoto sem
qualquer prova.
E mais:
— Diga a seus irmãos para manterem as armas em seus veículos.
E mais:
— Estou trabalhando no caso, Maxine. Assim que tiver provas
suficientes, providenciarei um mandado de prisão.
E mais:
— É tarde demais para votar pela pena de morte, Maxine. Você fez
o que achava certo na ocasião.
Ela chorava quando a conversa terminou.
— Pobre coitada... - murmurou McNatt. - Está quase sofrendo um
colapso nervoso.
— Não posso culpá-la por isso. Eu mesmo sempre me abaixo
quando passo por uma janela.
CAPÍTULO 40
O FUNERAL DE MO TEALE foi realizado na Igreja Metodista da Willow
Road, a de número 36 na minha lista e uma das minhas prediletas.
Ficava no limite de Clanton, ao sul da praça. Como eu nunca fora
apresentado ao sr. Teale, não fui ao seu funeral. Mas muitas pessoas
que também não o conheciam pessoalmente compareceram.
Se ele tivesse morrido de infarto, aos 51 anos, teria sido súbito e
trágico, com o serviço final atraindo uma multidão considerável. Mas
o fato de ter sido assassinado, por vingança de um assassino que
acabara de deixar a prisão sob livramento condicional, era demais
para que os curiosos resistissem. A enorme multidão incluía colegas
de escola há muito esquecidos dos quatro filhos adultos do sr. Teale,
viúvas idosas intrometidas que quase nunca perdiam um bom
funeral, repórteres de outras cidades e vários homens cujo único
contato com Mo fora devido ao fato de possuírem um trator John
Deere.
Não compareci, mas trabalhei no obituário. O filho mais velho teve
a gentileza de passar pelo jornal e me fornecer os detalhes. Tinha 33
anos - Mo e a esposa começaram a família cedo -e vendia Fords novos
em Tupelo. Permaneceu duas horas, e queria desesperadamente que
eu lhe assegurasse que Danny Padgitt estava prestes a ser preso e
apedrejado.
O enterro foi no cemitério de Clanton. A procissão fúnebre
estendeu-se por quarteirões. Passou pela praça e desceu pela Jackson
Avenue, perto do Times. Não prejudicou o tráfego nem um pouco,
pois todos estavam no funeral.

Usando Harry Rex como intermediário, Lucien Wilbanks marcou


uma reunião com o xerife McNatt. Fui expressamente mencionado por
Lucien como alguém que não deveria ser convidado a participar do
encontro. Não fez diferença; Harry Rex tomou anotações e me contou
tudo, com a condição de que nada seria publicado.
Rufus Buckley, o promotor distrital, que sucedera Ernie Gaddis em
1975, também participou da reunião, no escritório de Lucien. Buckley
era um homem ávido por publicidade. Embora relutasse antes em se
intrometer no livramento condicional de Padgitt, mostrava-se, agora,
ansioso em liderar a multidão para linchá-lo. Harry Rex desprezava
Buckley, e os sentimentos eram mútuos. Lucien também o desprezava,
mas Lucien detestava praticamente todo o mundo, porque era certo
que todos o detestavam. O xerife McNatt odiava Lucien, tolerava
Harry Rex, e era obrigado a trabalhar no mesmo lado da rua com
Buckley, embora o detestasse em particular.
Diante desses sentimentos conflitantes, fiquei bastante satisfeito
por não ser convidado para a reunião.
Lucien começou com a informação de que conversara com Danny
Padgitt e seu pai, Gill. Haviam se encontrado em algum lugar fora de
Clanton e longe da ilha. Danny estava muito bem, trabalhando todos
os dias no escritório da empreiteira de obras rodoviárias da família,
convenientemente localizado dentro do refúgio seguro que era a Ilha
Padgitt.
Não era de surpreender que Danny negasse qualquer
envolvimento nos assassinatos de Lenny Fargarson e Mo Teale. Ficara
chocado ao saber e furioso por ser considerado o principal suspeito.
Lucien enfatizou que interrogara Danny meticulosamente, até o ponto
de irritá-lo, e ele não demonstrara a menor insinuação de culpa.
Lenny Fargarson fora assassinado na tarde de 23 de maio. Nessa
ocasião, Danny estava em seu escritório, e havia quatro pessoas que
podiam atestar sua presença ali. A casa dos Fargarson ficava pelo
menos a meia hora de carro da Ilha Padgitt, e quatro testemunhas
tinham certeza de que Danny estivera no escritório, ou por perto,
durante a tarde inteira.
— Quantas dessas testemunhas se chamam Padgitt? — indagou
McNatt.
— Ainda não estamos dando nomes — respondeu Lucien,
preferindo guardar segredo, como qualquer bom advogado faria.
Onze dias depois, a 3 de junho, Mo Teale foi assassinado por volta
de nove e quinze da manhã. Nesse exato momento, Danny se
encontrava ao lado de uma estrada que acabara de ser pavimentada,
no condado de Tippah, entregando documentos para serem assinados
por um dos capatazes das equipes de operários dos Padgitt. O capataz
e dois operários estavam dispostos a testemunhar sobre o local exato
em que Danny se encontrava naquele momento. O canteiro de obras
ficava pelo menos a duas horas de carro da fazenda de Ned Ray Zook,
na parte leste do condado de Ford.
Lucien apresentou álibis incontestáveis para os dois assassinatos,
mas sua pequena audiência manteve-se cética. É claro que os Padgitt
negariam tudo. E, diante de sua capacidade de mentir, intimidar e
subornar com dinheiro vivo, podiam encontrar testemunhas para
qualquer coisa.
O xerife McNatt manifestou seu ceticismo. Explicou a Lucien que
sua investigação continuaria; e se e quando tivesse a causa provável,
obteria um mandado de prisão e invadiria a ilha. Já conversara várias
vezes com a polícia estadual, e se houvesse necessidade de cem
homens para capturar Danny, então cem homens participariam da
missão.
Lucien disse que isso não seria necessário. Se fosse concedido um
mandado de prisão válido, ele faria o melhor possível para entregar o
garoto.
— E se houver outra morte, a cidade vai explodir - declarou
McNatt. - Você terá mil homens atravessando a ponte e atirando em
qualquer Padgitt que encontrar.
Buckley disse que conversara duas vezes com o juiz Omar Noose
sobre os assassinatos. Sentia-se relativamente confiante de que Noose
estava “quase disposto” a assinar um mandado para a prisão de
Danny. Lucien atacou-o com uma barragem de perguntas sobre causa
provável e evidências suficientes. Buckley argumentou que a ameaça
de Padgitt durante o julgamento era motivo suficiente para desconfiar
que ele era culpado dos assassinatos.
A reunião deteriorou-se quando os dois começaram a discutir, com
a maior veemência, sobre detalhes jurídicos. O xerife finalmente
interrompeu a conversa, dizendo que já ouvira o suficiente, e deixou o
escritório de Lucien. Buckley também se retirou. Harry Rex ficou e
conversou com Lucien num clima muito mais relaxado.

— Você tem mentirosos protegendo mentirosos — resmungou


Harry Rex, andando de um lado para outro de minha sala, uma hora
depois. - Lucien só diz a verdade quando parece favorável, o que não
acontece com frequência para ele e seus clientes. Os Padgitt não têm o
menor conceito do que a verdade realmente é.
— Lembra de Lydia Vince?
— Quem?
— A vagabunda no julgamento, a mulher que Wilbanks chamou
para depor, sob juramento. Ela disse ao júri que Danny estava em sua
cama no momento em que Rhoda foi assassinada. Os Padgitt
descobriram-na, compraram seu depoimento e entregaram-na a
Lucien. Não passam de ladrões mentirosos.
— Depois, seu ex-marido foi assassinado, não é mesmo?
— Logo depois do julgamento. Provavelmente por um dos
capangas dos Padgitt. Também não havia pistas além das balas.
Nenhum suspeito. Nada. Parece familiar.
— McNatt não engoliu nada do que Lucien disse. Nem Buckley.
— E você?
— Também não. Já vi Lucien chorar diante de júris. Ele pode às
vezes ser muito persuasivo, embora não com frequência. Tive a
impressão de que ele estava se esforçando ao máximo para nos
convencer. É Danny, e teve alguma ajuda.
— McNatt acredita nisso?
— Acredita, mas não tem provas. Uma prisão agora seria um
desperdício de tempo.
— Poderia mantê-lo fora das ruas.
— Mas seria temporário. Sem provas, não se pode mantê-lo na
cadeia para sempre. Ele é paciente. Já esperou por nove anos.

Embora eles nunca fossem identificados e tivessem o bom senso de


levar o segredo para a sepultura, houve consideráveis especulações
nos meses subsequentes de que foram os dois filhos adolescentes do
prefeito. Dois jovens foram vistos quando se afastavam correndo do
local, muito rápido para serem apanhados. Os meninos do prefeito
tinham uma ficha longa e pitoresca de brincadeiras assim, criativas e
ousadas.
Sob a proteção da escuridão, eles se esgueiraram por uma sebe
densa, parando a menos de quinze metros da varanda da frente da
casa do sr. Earl Youry. Ali, vigiaram e escutaram o bando de amigos e
vizinhos acampados no gramado, protegendo o sr. Youry. Esperaram
pelo momento certo para desfechar o ataque.
Poucos minutos depois de onze horas, uma longa fieira de
bombinhas Black Cats foi jogada na direção da varanda. Quando
começaram a estourar, Clanton quase irrompeu numa guerra total.
Homens berraram, mulheres gritaram, o sr. Youry jogou-se no chão e
entrou em sua casa de quatro. Os sentinelas saltaram de suas cadeiras
de jardim, pegaram as armas, procurando se abrigar na relva,
enquanto as bombinhas explodiam e pulavam, num frenesi
enfumaçado. Demorou trinta segundos para que todas as 84 Black
Cats explodissem. Durante esse tempo, uma dúzia de homens
fortemente armados corriam por trás de árvores, as armas apontadas
em todas as direções, preparadas para atirar em qualquer coisa que se
mexesse.
Um guarda temporário chamado Travis foi arrancado de seu sono
no capô da radio patrulha. Sacou a Magnum. 44 e saiu em disparada
na direção geral das Black Cats. Vizinhos armados dispersavam-se
para todos os lados, no gramado na frente da casa do sr. Youry. Por
algum motivo - nem Travis nem seu supervisor jamais revelaram a
explicação oficial, se é que houve alguma - ele disparou um tiro para o
ar. Um estampido alto. Um barulho ouvido muito acima das
bombinhas. Fez com que outro dedo nervoso, alguém que nunca
admitiu ter puxado o gatilho, descarregasse um cartucho de calibre 12
de sua espingarda na direção das árvores. Não resta a menor dúvida
de que muitos outros teriam começado a atirar, talvez causando
algumas mortes, se outro guarda temporário não gritasse:
— Suspendam o fogo, seus idiotas!
A esta altura, os tiros cessaram por completo. Mas ainda restavam
algumas Black Cats para explodir. Quando o barulho da última
definhou, os vigilantes foram até o trecho enfumaçado do gramado
para verificar o que acontecera. Espalhou-se a notícia de que eram
apenas bombinhas. O sr. Earl Youry espiou pela porta da frente, e
acabou saindo para a varanda.
Mais adiante, na mesma rua, a sra. Alice Wood ouviu o tumulto, e
correu para os fundos de sua casa, a fim de trancar a porta. Foi nesse
instante que dois jovens passaram correndo por seu quintal, às
gargalhadas. Ela diria mais tarde que deviam ter em torno de quinze
anos e eram brancos.
A um quilômetro e meio de distância, em Lowtown, eu acabara de
descer os degraus da varanda da frente de Miss Callie quando ouvi as
explosões distantes. Os homens naquele turno - Sam, Leon e dois
diáconos - levantaram-se de um pulo e olharam para a distância. O
tiro de 44 soou como um morteiro. Esperamos e esperamos. Quando o
silêncio voltou a reinar, Leon comentou:
— Pareciam bombinhas de artifício.
Sam entrara na casa para ver a mãe. Voltou e informou:
— Ela continua dormindo.
— Vou verificar o que aconteceu - avisei. - Se for alguma coisa
importante, ligarei para vocês.
A rua do sr. Youry estava agitada, com luzes vermelhas e azuis de
uma dúzia de carros da polícia. O tráfego era intenso, já que vários
curiosos tentavam se aproximar do local. Avistei o carro de Buster
estacionado numa vala rasa. Quando o encontrei, poucos minutos
depois, ele me contou a história.
— Foram dois garotos.
Achei engraçado, mas creio que fui minoria absoluta.
CAPÍTULO 41
NOS NOVE ANOS DESDE que eu comprara o Times, nunca deixara de
aparecer no escritório por mais do que quatro dias consecutivos.
Rodava o jornal na terça-feira, distribuía na quarta, e na quinta
tornava a enfrentar um terrível prazo para a entrega das matérias.
Uma razão para o seu sucesso era o fato de que eu escrevia muitas
reportagens numa cidade em que bem pouco acontecia. Cada edição
tinha 36 páginas. Subtraindo cinco páginas de classificados, três de
editais e cerca de seis para outros anúncios, eu enfrentava toda
semana a tarefa de preencher cerca de 22 páginas com notícias locais.
Os óbitos consumiam pelo menos uma página, todos escritos por
mim. Davey Bigmouth Bass ocupava duas páginas com notícias de
esporte, embora eu ajudasse muitas vezes com o resumo de uma
partida de futebol americano da junior high ou com uma reportagem
urgente sobre um troféu de caça a aves com espingarda conquistado
por algum garoto de doze anos. Margaret fazia uma página de
Religião, outra de Casamentos e uma terceira de notícias sociais
diversas. Baggy, cuja produção já era fraca nove anos antes, na melhor
das hipóteses, sucumbira quase que por completo ao álcool, e agora só
conseguia fazer uma reportagem por semana, sempre insistindo para
que saísse na primeira página. Os repórteres estagiários entravam e
saíam com uma regularidade frustrante. Em geral, tínhamos um na
equipe, às vezes dois. Com bastante frequência, davam mais trabalho
do que valia a pena. Eu tinha de copidescar o que escreviam, a um
ponto que desejava ter escrito tudo pessoalmente.
E, assim, eu escrevia. Embora tivesse estudado jornalismo, nunca
notara antes a propensão para escrever vastas quantidades de textos
em curtos períodos. Mas depois que me tornei dono do jornal, quando
tinha de nadar ou afundar, descobri uma espantosa capacidade para a
produção em massa de reportagens pitorescas e vazias sobre quase
tudo. Um desastre de carro um pouco mais grave, mas sem
fatalidades, era notícia de primeira página, com citações emocionadas
de testemunhas e pessoal da ambulância. Uma pequena expansão de
uma fábrica parecia uma bênção para o Produto Interno Bruto da
nação. Uma venda de bolos da Associação Feminina Batista podia
render uma reportagem de oitocentas palavras. Uma prisão por posse
de droga dava a impressão de que os colombianos desfechavam uma
ofensiva incontrolável sobre as crianças de Clanton. Uma campanha
de doação de sangue tinha o clima de urgência de uma escassez em
tempo de guerra. Três picapes roubadas em uma semana
representavam a ação terrível do crime organizado no condado.
Eu escrevia também sobre as pessoas no condado de Ford. Miss
Callie foi o assunto de minha primeira reportagem de interesse
humano. Ao longo dos anos, tentei publicar pelo menos uma por mês.
Havia um sobrevivente da marcha de morte de Bataan, o último
veterano local da I Guerra Mundial, um marujo que estivera em Pearl
Harbor, um pastor aposentado que servira numa congregação em um
pequeno país durante 45 anos, um idoso missionário que vivera no
Congo por 31 anos, uma recém-graduada da escola local que estava
dançando num musical na Broadway, uma mulher que vivera em 22
estados, um homem que casara sete vezes e estava ansioso em
partilhar seus conselhos com futuros recém casados, o sr. Mitlo, um
imigrante símbolo, um técnico de basquete aposentado, a cozinheira
da Tea Shoppe que fritava ovos havia uma eternidade. E assim por
diante. Essas reportagens eram extremamente populares.
Só que, depois de nove anos, a lista que ainda restava de pessoas
interessantes tinha apenas uns poucos nomes.
Estava cansado de escrever. Vinte páginas por semana, 52 semanas
por ano.
Eu acordava todas as manhãs pensando em uma nova reportagem
ou num ângulo novo para uma reportagem antiga. Qualquer notícia,
por menor que fosse, qualquer evento fora do cotidiano, era
inspiração para fazer uma matéria e publicá-la em algum lugar do
jornal. Escrevi sobre cachorros, caminhões antigos, um tornado
lendário, uma casa mal-assombrada, um pônei desaparecido, um
tesouro da Guerra Civil, a lenda de um escravo sem cabeça, um
cangambá hidrófobo. E todos os acontecimentos usuais, como ações
judiciais, eleições, crimes, novas empresas, fechamento de empresas,
novos personagens na cidade. Estava cansado de escrever.
E, também, cansado de Clanton. Com alguma relutância, a cidade
passara a me aceitar, especialmente quando se tornara óbvio que eu
não tinha a menor intenção de ir embora. Mas era um lugar muito
pequeno, e às vezes eu me sentia sufocado. Passava tantos fins de
semana em casa, sem nada para fazer além de ler e escrever, que
acabei me acostumando. E isso me deixava na maior frustração.
Tentava me distrair nas noites de pôquer com Bubba Crocket e a
turma de Foxhole, ou com as festas de Harry Rex e companhia. Mas
nunca me senti em casa.
Clanton começava a mudar, e eu não me sentia satisfeito com os
rumos que tomava. Como a maioria das pequenas cidades do Sul,
esparramava-se em todas as direções, sem um plano definido para seu
crescimento. Bargain City desabrochava, e a área ao redor atraía todas
as franquias de fast-food possíveis e imaginárias. O centro da cidade
declinava, embora o tribunal e o governo do condado sempre
atraíssem pessoas. Havia necessidade de líderes fortes e com visão,
mas havia uma deficiência de oferta.
Por outro lado, eu desconfiava de que a cidade estivesse cansada
de mim. Por causa da minha oposição sistemática à guerra do Vietnã,
seria sempre considerado um liberal radical. E pouco fazia para
mudar essa reputação. À medida que o jornal crescia e os lucros
aumentavam - e, como consequência direta, minha pele se tornava
mais e mais grossa —, escrevia mais e mais editoriais. Critiquei as
reuniões fechadas do conselho municipal e do conselho do condado.
Também critiquei o Conselho de Supervisores. Entrei com uma ação
judicial para ter acesso aos registros públicos. Passei um ano
condenando a quase total falta de zoneamento e a administração do
uso da terra no condado. Quando Bargain City chegou à cidade, deitei
e rolei. Escarneci das leis de financiamento das campanhas eleitorais
no estado, que permitiam que os ricos elegessem seus candidatos
prediletos. E quando Danny Padgitt foi libertado, descarreguei toda a
minha fúria em cima do sistema de livramento condicional.
Ao longo dos anos 70, fui sempre um tribuno bradando por
qualquer coisa. E, embora isso tornasse a leitura interessante e
vendesse jornal, também me transformava num elemento insólito. Era
encarado como um descontente, com acesso a uma tribuna. Não creio
que tenha me tornado arrogante; fazia um esforço para não ser. Mas,
recordando agora, houve brigas que comecei não apenas por
convicção, mas também por tédio.
À medida que me tornava mais velho, queria ser um cidadão
comum. Sempre seria um forasteiro, mas isso não me incomodava
mais. Queria ir e vir, resistir em Clanton como me conviesse, depois
viajar por longos períodos, quando me sentisse chateado. É espantoso
como a perspectiva de dinheiro pode mudar seu futuro.
Fui dominado pelo sonho de ir embora, de passar uma longa
temporada num lugar que eu nunca tivesse visto antes, de conhecer o
mundo.
A reunião seguinte com Gary McGrew foi num restaurante em
Tupelo. Ele já estivera no jornal várias vezes. Mais uma visita, e o
pessoal começaria a sussurrar. Durante o almoço, tornamos a
examinar minhas contas, conversamos sobre os planos de seu cliente,
discutimos um ponto e outro. Se eu vendesse, queria que o novo dono
respeitasse os novos contratos de cinco anos que eu acabara de
conceder a Davey Bigmouth Bass, Hardy e Margaret. Baggy se
aposentaria em breve, ou morreria de cirrose. Wiley sempre
trabalhara em meio expediente, e seu interesse por correr atrás de
fotos começava a definhar. Foi o único empregado a quem falei sobre
as negociações. Ele me exortou a pegar o dinheiro e me mandar.
O cliente de McGrew queria que eu continuasse pelo menos por
mais um ano, com um salário muito alto, para treinar o novo editor.
Não concordei. Se tinha de sair, seria logo de uma vez.
Não queria ter alguém mandando em mim, e não queria a pressão
local por ter vendido o jornal do condado a uma grande empresa de
outro estado.
A oferta era de 1, 3 milhão de dólares. Contratei um consultor de
Knoxville que avaliou o Times em 1, 35 milhão.
— Em termos confidenciais, já compramos os jornais dos condados
de Tyler e Van Buren - informou McGrew, ao final de um longo
almoço. - As coisas estão se ajustando em seus lugares.
Ele estava sendo quase que totalmente franco. O dono do jornal do
condado de Tyler concordara em princípio, mas os documentos ainda
não haviam sido assinados.
— Mas há um fator novo na operação - disse ele. - O jornal do
condado de Polk pode estar a venda. Para ser franco, vamos dar uma
olhada na possibilidade, se você não quiser negociar conosco. O preço
é bem menor.
— Ah, mais pressão...
O Polk County Herald tinha quatro mil leitores e uma péssima
administração. Eu o via todas as semanas.
— Não estou tentando pressioná-lo, mas apenas pondo todas as
cartas na mesa.
— Quero um milhão e meio de dólares.
— Está acima do máximo, Willie.
— O preço é alto, mas vocês vão recuperar tudo. Pode demorar um
pouco, mas pense na situação daqui a dez anos.
— Não tenho certeza se podemos ir tão alto.
— Terão de ir, se quiserem o jornal.
Um senso de urgência surgira. McGrew insinuou um prazo limite,
antes de finalmente dizer:
— Estamos conversando há meses, e meu cliente está ansioso em
chegar a uma conclusão. Quer fechar o negócio até o primeiro dia do
próximo mês, ou vai procurar outra oportunidade.
A tática não me incomodou. Também já me cansara de conversar.
Ou eu vendia o jornal agora, ou não vendia. Era tempo de tomar uma
decisão.
— Faltam 23 dias - murmurei.
— Isso mesmo.
— É justo.
Os longos dias de verão chegaram, o calor e a umidade
insuportáveis se acomodando para a permanência anual de três
meses. Fiz minhas rondas habituais, pelas igrejas da minha lista, nos
campos de beisebol, no torneio de golfe local, nos festivais de
melancia. Mas Clanton esperava, e não se falava de outra coisa além
da espera.
Como era inevitável, o laço no pescoço de cada jurado restante
afrouxou um pouco. Cansaram-se de ser prisioneiros em suas casas, o
que era natural. Não aguentaram mais as mudanças na rotina diária, a
presença de vizinhos vigiando sua casa durante a noite inteira.
Começaram a arriscar saídas, a tentar a retomada de uma vida
normal.
A paciência do assassino era enervante. Ele tinha a vantagem do
tempo, e sabia que suas vítimas acabariam se cansando de tanta
proteção. Sabia que baixariam a guarda, cometeriam um erro. E nós
também sabíamos.
Depois de faltar por três domingos consecutivos, pela primeira vez
em sua vida, Miss Callie insistiu em ir à igreja. Escoltada por Sam,
Esau e Leon, ela foi ao santuário na manhã de domingo e cultuou
Deus como se tivesse se ausentado por um ano. Os irmãos e irmãs
abraçaram-na e oraram fervorosamente por ela. O reverendo Small
revisou seu sermão, de improviso, e pediu a proteção de Deus para
seus fiéis. Sam disse que ele falou por quase três horas.
Dois dias depois, Miss Callie entrou no banco traseiro de meu
Mercedes. Com Esau ao lado e Sam no banco de passageiro, na frente,
deixamos Clanton, com um guarda em nossa esteira. Ele parou no
limite do condado. Uma hora depois, estávamos em Memphis. Havia
um novo centro comercial a leste da cidade que vinha fazendo o maior
sucesso, e Miss Callie sonhava em conhecê-lo. Mais de cem lojas sob o
mesmo teto! Pela primeira vez em sua vida, ela comeu uma pizza, viu
um rinque de patinação no gelo, dois homens de mãos dadas e uma
família de raça mista. Aprovou apenas o rinque.
Depois de uma hora seguindo a atroz orientação de Sam na
navegação, finalmente encontramos o cemitério na zona sul de
Memphis. Com um mapa que consultamos no escritório, conseguimos
localizar a sepultura de Nicola Rossetti DeJarnette. Miss Callie pôs um
buquê de flores que trouxera de casa na sepultura. Quando ficou
evidente que ela planejava passar algum tempo ali, tratamos de nos
afastar, para deixá-la em paz.
Em memória de Nicola, Miss Callie queria uma comida italiana. Eu
reservara uma mesa no Grisanti's, um ponto de referência em
Memphis. Tivemos um longo e delicioso jantar, com lasanha e ravióli
com queijo de cabra. Ela conseguiu superar seu preconceito contra a
comida paga: e para protegê-la do pecado, insisti em pagar a conta.
Não queríamos deixar Memphis. Por algumas horas, escapáramos
do medo do desconhecido e da ansiedade da espera. Clanton parecia
se situar a mil quilômetros de distância, e mesmo assim era perto
demais. Ao voltar, tarde da noite, descobri-me a guiar mais e mais
devagar.
Embora não falássemos a respeito e a conversa se tornasse mais
contida à medida que nos aproximávamos de casa, a verdade é que
havia um assassino à solta no condado de Ford. O nome de Miss
Callie estava em sua lista. Se não fosse pelas duas mortes já ocorridas,
teria sido impossível acreditar.
Segundo Baggy - e foi confirmado por uma pesquisa nos arquivos
do Times - não houvera homicídios não resolvidos naquele século.
Quase todos os assassinatos haviam sido decorrência de um ato
impulsivo, com a arma fumegante vista por testemunhas. Prisão,
julgamento e condenação haviam ocorrido em pouco tempo. Agora,
havia um assassino muito inteligente e determinado à solta, e todos
sabiam quem eram as vítimas marcadas para morrer. Para uma
comunidade que respeitava a lei e temente a Deus, era inconcebível.
Bobby, Al, Max e Leon argumentaram com veemência, em
ocasiões diversas, para que Miss Callie fosse passar um mês com
qualquer um deles. Sam e eu, até mesmo Esau, aderimos a essas
exortações. Mas foi tudo em vão. Ela estava em estreito contato com
Deus, que a protegeria.
Em nove anos, a única vez em que perdi a calma com Miss Callie -
e a única vez em que ela me censurou - foi durante um pedido para
que ela passasse um mês em Milwaukee com Bobby.
— Essas cidades grandes são perigosas - comentou ela.
— Nenhum lugar é tão perigoso quanto Clanton neste momento —
argumentei.
Mais tarde, quando elevei a voz, ela disse que não gostava da
minha falta de respeito. Calei-me no mesmo instante.
Ao atravessarmos o condado de Ford naquela noite, comecei a me
manter atento ao espelho retrovisor. Era um absurdo... mas, por outro
lado, não era tão absurdo assim. Em Lowtown, a casa dos Ruffin era
vigiada por um guarda estacionado na rua e um amigo de Esau na
varanda.
— Foi uma noite tranquila - disse o amigo.
Em outras palavras, ninguém fora baleado, ninguém atirara.
Sam e eu jogamos damas por uma hora na varanda, enquanto ela
ia se deitar.
A espera continuou.
CAPÍTULO 42
O ANO DE 1979 FOI DE ELEIÇÃO no Mississippi, minha terceira como
eleitor registrado. Foi muito mais tranquila do que as duas anteriores.
A disputa para o cargo de xerife teve um único candidato, um fato
sem precedentes. Circulou um rumor de que os Padgitt haviam
comprado um novo candidato, mas recuaram depois dos crimes na
esteira do livramento condicional de Danny. O senador Theo Morton
teve um adversário que me trouxe um anúncio que dizia:
POR QUE O SENADOR MORTON SOLTOU DANNY PADGITT
DA PRISÃO?
POR DINHEIRO! FOI ESSE O MOTIVO!
Por mais vontade que eu tivesse de publicar o anúncio, não tinha
tempo nem energia para um processo de difamação e calúnia.
Mas houve uma disputa acirrada pelo cargo de oficial de justiça no
quarto distrito. Afora isso, porém, as disputas foram bastante apáticas.
O condado estava obcecado pelos assassinatos de Fargarson e Teale; e,
mais importante ainda, quem seria a próxima vítima. O xerife McNatt
e os investigadores da polícia do estado e do laboratório de
criminalística haviam esgotado todas as pistas possíveis. Tudo o que
podíamos fazer agora era esperar.
À medida que o Quatro de Julho se aproximava, dava para
perceber que havia uma evidente falta de entusiasmo pela celebração
anual. Embora quase todos se sentissem seguros, havia uma nuvem
escura pairando sobre o condado. Estranhamente, persistiam os
rumores de que alguma coisa terrível aconteceria quando todos nos
reuníssemos diante do tribunal, no Quatro de Julho.
Os rumores, no entanto, nunca nasceram com tanta criatividade,
nem se espalharam tão depressa quanto naquele mês de junho.
No dia 25 de junho, num luxuoso escritório de advocacia em
Tupelo, assinei uma pilha de documentos, transferindo a propriedade
do Times para uma empresa jornalística que tinha como sócio o sr. Ray
Noble, de Atlanta. O sr. Noble entregou-me um cheque de um milhão
e meio de dólares. Apressado, com alguma ansiedade, atravessei a
rua. Meu mais novo amigo, Stu Holland, esperava-me, em sua sala
bastante espaçosa, no Merchants Bank. A notícia de um depósito
assim em Clanton vazaria da noite para o dia. Por isso, depositei o
dinheiro com Stu, e voltei para casa.
Foi a mais longa viagem de carro de uma hora da minha vida. Foi
inebriante, porque eu vendera no pico do mercado. Espremera o
máximo de dólares que era possível de um comprador rico e honesto,
que planejava efetuar poucas mudanças em meu jornal. A aventura
me chamava, e agora eu tinha condições de responder.
E foi também uma viagem triste, porque eu estava encerrando uma
parte importante e gratificante de minha vida. O jornal e eu
crescêramos e amadurecêramos juntos; eu como um adulto, o jornal
como uma entidade próspera. Tornara-se o que um jornal de cidade
pequena deve ser, um observador vivido dos acontecimentos atuais,
um registro da história, um comentarista ocasional de questões
políticas e sociais. Quanto a mim, era um homem ainda jovem que,
tateando, obstinado, construíra alguma coisa do nada. Suponho que
eu deveria sentir minha idade, mas tudo o que queria naquele
momento era encontrar uma praia. E, depois, uma mulher.
Quando voltei a Clanton, entrei na sala de Margaret, fechei a porta
e contei sobre a venda. Ela desatou a chorar. Não demorou para que
meus olhos também ficassem cheios de lágrimas. A irredutível
lealdade de Margaret sempre me espantara. Embora se preocupasse
demais com minha alma, como Miss Callie, mesmo assim ela passara
a me amar. Expliquei que os novos donos eram pessoas maravilhosas,
não planejavam mudanças drásticas e haviam aprovado seu novo
contrato de cinco anos, com um salário maior. Isso fez com que ela
chorasse ainda mais.
Hardy não chorou. Àquela altura, ele vinha imprimindo o Times
durante quase trinta anos. Era mal-humorado, impertinente, bebia
demais, como a maioria dos gráficos; e se os novos donos não
gostassem dele, podia simplesmente largar tudo e ir pescar. Mas ficou
satisfeito com o novo contrato.
Assim como Davey Bigmouth Bass. Ficou chocado com a notícia,
mas recuperou-se muito bem à perspectiva de ganhar mais.
Baggy estava de férias em algum lugar do Oeste, com o irmão, sem
a esposa. O sr. Ray Noble relutara em concordar com outro contrato
de cinco anos para o trabalho preguiçoso de Baggy. Em sã consciência,
eu não podia insistir que ele fosse parte do negócio. Baggy estava por
conta própria.
Tínhamos cinco outros empregados, e dei a notícia pessoalmente a
cada um deles. Levei a tarde inteira. Quando acabou, sentia-me
esgotado. Fui me encontrar com Harry Rex na sala dos fundos do
Pepe's, e comemoramos com margaritas.
Eu estava ansioso em deixar a cidade e ir para algum lugar, mas
seria impossível enquanto os assassinatos não parassem.

Durante a maior parte do mês de junho, os professores Ruffin


circularam por Clanton. Transferiam serviços e férias, no empenho
para que sempre houvesse dois ou três com Miss Callie. Sam quase
nunca saía de casa. Permanecia em Lowtown para proteger a mãe,
mas também para passar despercebido. O patrulheiro Durant ainda
vivia ali, embora tivesse casado de novo. Já os dois filhos haviam
deixado o condado.
Sam passava horas na varanda, lendo um livro atrás de outro, na
maior voracidade, jogando damas com Esau ou com quem quer que
ajudasse a defender a casa, por algum tempo. Continuava a jogar
gamão comigo. Logo descobriu a estratégia, e insistiu em que
apostássemos um dólar por partida. Não demorou muito para que eu
estivesse lhe devendo cinquenta dólares. Só que as apostas eram um
segredo total na varanda de Miss Callie.
Uma reunião foi combinada às pressas na semana anterior ao
Quatro de Julho. Como minha casa tinha cinco quartos vazios e uma
triste ausência de atividade humana, insisti que os Ruffin se
hospedassem ali. A família crescera bastante desde que eu conhecera
todos, em 1970. Com exceção de Sam, todos haviam casado, e havia 21
netos. O total era 35 Ruffin, sem contar com Sam, Callie e Esau, e 34
foram para Clanton. A esposa de Leon ficou com o pai doente em
Chicago.
Dos 34, 23 foram se instalar na casa Hocutt, por alguns dias.
Vieram de diferentes partes do país, a maioria do Norte, por etapas,
cada nova chegada sendo saudada com a maior cerimônia. Quando
Carlota, o marido e duas crianças pequenas chegaram de Los Angeles,
às três horas da madrugada, todas as luzes na casa acenderam, e a
esposa de Bobby, Bonnie, começou a fazer panquecas.
Bonnie assumiu o comando da minha cozinha. Três vezes por dia,
eu era enviado ao mercado com uma lista das coisas que ela precisava
com urgência. Eu comprava sorvete às toneladas, e as crianças logo
descobriram que podiam contar comigo para ir buscar mais a
qualquer hora do dia.
Como minhas varandas eram compridas e largas, quase nunca
usadas, os Ruffin gravitaram para elas. Sam levava Miss Callie e Esau
ao final das tardes para longas visitas. Ela estava desesperada para
sair de Lowtown. Sua casa pequena e aconchegante se tornara uma
prisão.
Em diversas ocasiões, ouvi os filhos conversarem com profunda
preocupação sobre a mãe. A ameaça óbvia de alguém tentar matá-la
era menos discutida do que sua saúde. Ao longo dos anos, ela
conseguira perder em torno de 35 quilos, dependendo da versão que
se ouvia. Agora, voltara a engordar, e sua pressão preocupava os
médicos. O estresse cobrava seu tributo. Esau dizia que a esposa tinha
um sono irrequieto, o que Miss Callie atribuía aos medicamentos. Não
era mais tão ativa, não sorria com tanta frequência e tinha muito
menos energia.
A culpa de tudo era da “confusão do Padgitt”. Assim que ele fosse
preso e os assassinatos parassem, Miss Callie voltaria a ser como
antes.
Essa era a visão otimista, a que era partilhada, de um modo geral,
por todos os seus filhos.
No dia 2 de julho, uma segunda-feira, Bonnie e companhia
prepararam um almoço leve de saladas e pizzas. Todos os Ruffin
disponíveis estavam presentes, sob ventiladores lentos, quase inúteis.
Ainda assim, soprava uma leve brisa, e, com a temperatura em torno
de 32°C, pudemos desfrutar de uma refeição longa, sem pressa.
Eu ainda tinha de encontrar o momento certo para informar a Miss
Callie que estava deixando o jornal. Sabia que ela ficaria chocada,
muito desapontada. Mas eu não podia pensar em qualquer motivo
para que suspendêssemos nossos almoços na quinta-feira. Podia até
ser mais divertido contar os erros cometidos por outro.
Em nove anos, perdêramos apenas sete almoços, todos por causa
de doença ou problema odontológico.
A conversa descontraída, depois do almoço, foi interrompida
subitamente. À distância, em algum lugar no outro lado da cidade,
ouvimos o som de sirenes.

O pacote tinha oitenta centímetros quadrados, com doze


centímetros de altura, papel branco, com estrelas e listras vermelhas e
azuis. Era uma embalagem de presente da Bolan Pecan Farm, de
Hazelhurst, Mississippi, enviada para a sra. Maxine Root por sua
irmã, que vivia em Concord, Califórnia. Um presente do Dia da
Independência, de autênticas nozes pecãs americanas. Chegou pelo
correio, deixado pelo carteiro, por volta de meio-dia, na caixa de
correspondência de Maxine Root. Foi levado para a casa, passando
pelo sentinela solitário sentado debaixo de uma árvore, no jardim da
frente. Na cozinha, Maxine vira o pacote pela primeira vez.
Já se passara quase um mês desde que o xerife McNatt a
interrogara sobre seu voto no júri. Embora relutante, ela admitira que
não fora a favor da pena de morte para Danny Padgitt. Recordara que
os dois homens que haviam ficado do seu lado foram Lenny
Fargarson e Mo Teale. Como ambos estavam mortos, McNatt dera
a grave notícia de que ela poderia ser a próxima vítima.
Por anos depois do julgamento, Maxine afligira-se com o veredicto.
A cidade se tornara amargurada pelo resultado, e ela pudera sentir a
hostilidade. Ainda bem que os jurados haviam mantido os votos de
silêncio. Com isso, ela, Lenny e Mo puderam evitar abusos adicionais.
Com a passagem tranquilizador do tempo, ela pudera se distanciar
das consequências.
Agora, o mundo sabia como ela votara. Agora, um louco a
espreitava. Estava de licença de seu trabalho como escriturária. Tinha
os nervos abalados; não conseguia dormir direito; estava cansada de
se esconder em sua própria casa; não aguentava mais o jardim cheio
de vizinhos, reunindo-se todas as noites ali, como se fosse um evento
social; não suportava mais se abaixar ao passar por uma janela.
Tomava tantas pílulas diferentes que todas neutralizavam umas às
outras, ao ponto em que nada adiantava.
Ela viu o pacote de pecãs e começou a chorar. Alguém lá fora a
amava. Sua preciosa irmã Jane pensava nela. Ah, como adoraria estar
com Jane na Califórnia naquele momento!
Maxine começou a abrir o pacote, mas de repente teve um
pensamento. Foi até o telefone e discou para Jane. Não se falavam
havia uma semana.
Jane estava no trabalho, e ficou emocionada ao ouvir a irmã.
Conversaram sobre isso e aquilo. Falaram sobre a horrível situação em
Clanton.
— Você foi maravilhosa por ter me mandado as pecãs - disse
Maxine.
— Que pecãs?
Uma pausa.
— A caixa de presente da Bolan Pecan, em Hazelhurst. A
embalagem grande, de um quilo e meio.
Outra pausa.
— Não fui eu, mana. Deve ter sido outra pessoa.
Maxine desligou momentos depois. Examinou o pacote. Uma
etiqueta na frente dizia: Um Presente de Jane Parham. É claro que ela
não conhecia nenhuma outra Jane Parham.
Com todo o cuidado, ela levantou o pacote. Parecia um pouco
pesado para uma lata de um quilo e meio de pecas.
Travis, o guarda temporário, por acaso aproximou-se da casa nesse
momento. Estava acompanhado por Teddy Ray, um garoto com o
rosto cheio de espinhas, com um uniforme grande demais e um
revólver de serviço que nunca disparara. Maxine chamou-os para a
cozinha, onde o pacote vermelho, branco e azul esperava, em cima da
balcão, como se fosse a coisa mais inofensiva do mundo. O sentinela
solitário também entrou na cozinha. Por um longo minuto, ou mais, os
quatro ficaram olhando para o pacote. Maxine relatou sua conversa
com Jane.
Com muita hesitação, Travis pegou o pacote e sacudiu-o de leve,
comentando:
— Parece um pouco pesado para pecãs.
Ele olhou para Teddy Ray, que já empalidecera, e para o vizinho
com um rifle, que parecia preparado para se esquivar de qualquer
coisa.
— Acha que é uma bomba? — perguntou o vizinho.
— Oh, meu Deus! - balbuciou Maxine, dando a impressão de que
estava prestes a desmaiar.
— Pode ser.
Travis baixou os olhos, horrorizado, para o pacote em suas mãos.
— Leve para fora - disse Maxine.
— Não devemos chamar o xerife? - indagou Teddy Ray.
— Acho que sim.
Travis hesitou por um momento, para depois dizer, com a voz da
falta absoluta de experiência:
— Sei o que fazer.
Saíram pela porta da cozinha, para uma varanda estreita, que se
estendia pelos fundos da casa. Com todo o cuidado, Travis pôs o
pacote na beira da varanda, cerca de um metro acima do solo. Quando
ele sacou o. 44 Magnum, Maxine perguntou:
— O que vai fazer?
— Vamos descobrir se é mesmo uma bomba.
Teddy Ray e o vizinho deixaram a varanda apressados, assumindo
uma posição segura no gramado, a cerca de quinze metros de
distância.
— Vai atirar nas minhas pecas? — indagou Maxine.
— Tem uma ideia melhor?
— Acho que não.
Com a maior parte do corpo dentro da cozinha, Travis inclinou-se
para fora, pela porta de tela, estendendo o musculoso braço direito e a
cabeça grande. Mirou com todo o cuidado. Maxine estava atrás dele,
meio agachada, espiando pelo lado de sua cintura.
O primeiro tiro passou longe do alvo, mas deixou Maxine
atordoada. Teddy Ray gritou:
— Bom tiro!
Ele e o vizinho desataram a rir. Travis mirou de novo e puxou o
gatilho.
A explosão afastou a varanda da casa, abriu um enorme buraco na
parede da cozinha e despejou uma chuva de estilhaços por uma
centena de metros. Quebraram vidraças, penetraram em madeira e
feriram os quatro observadores. Teddy Ray e o vizinhos foram
atingidos por fragmentos de metal no peito e nas pernas. O braço
direito e a mão de Travis ficaram mutilados. Maxine foi atingida duas
vezes: um caco de vidro rasgou o lóbulo da orelha direita, enquanto
um prego pequeno penetrava no maxilar direito.
Por um momento, todos ficaram inconscientes, derrubados por
três quilos de explosivo plástico, empacotados junto com pregos,
cacos de vidro e esferas de rolamento.

Enquanto as sirenes continuavam a gemer através da cidade, fui


para o telefone e liguei para Wiley Meek. Ele já ia me telefonar.
— Tentaram explodir Maxine Root, Willie.
Comuniquei aos Ruffin que ocorrera um acidente e deixei-os na
varanda. Ao me aproximar do lugar em que os Root moravam,
descobri que as principais ruas de acesso estavam bloqueadas, com o
tráfego sendo desviado. Fui até o hospital, onde encontrei um jovem
médico que conhecia. Ele informou que havia quatro feridos, nenhum
dos quais parecia correr risco de morte.
O juiz Omar Noose estava presidindo o tribunal em Clanton
naquela tarde. Depois, ele comentou que também ouvira a explosão.
Rufus Buckley e o xerife McNatt reuniram-se com ele por mais de
uma hora, em seu gabinete. Nunca foi revelado o teor da conversa.
Enquanto esperávamos, Harry Rex e a maioria dos outros advogados
disseram que tinham certeza de que eles avaliavam a melhor maneira
de emitir um mandado de prisão contra Danny Padgitt, quando quase
não havia provas de que ele fizera qualquer coisa errada.
Alguma providência, contudo, precisava ser tomada. O xerife
tinha uma população para proteger; precisava entrar em ação, mesmo
que não fosse totalmente apropriada.
Recebemos a informação de que Travis e Teddy Ray haviam sido
transportados para um hospital em Memphis, onde seriam
submetidos a uma cirurgia. Maxine e o vizinho estavam sendo
operados naquele momento. Mais uma vez, a opinião dos médicos era
a de que ninguém corria perigo de morte. Travis, no entanto, podia
perder o braço direito.
Quantas pessoas no condado de Ford sabiam como preparar um
pacote com uma bomba? Quem tinha acesso a explosivos? Quem
tinha motivo? Enquanto discutíamos essas questões na sala de
audiências, era óbvio que também falavam a respeito no gabinete do
juiz. Noose, Buckley e McNatt eram todos eleitos. O bom povo do
condado de Ford precisava da proteção deles. Como Danny Padgitt
era o único suspeito concebível, o juiz Noose finalmente assinou um
mandado de prisão.
Lucien foi avisado, e aceitou a notícia sem objeções. Naquele
momento, nem mesmo o advogado dos Padgitt podia contestar a
estratégia de trazê-lo para interrogatório. Afinal, sempre se poderia
soltá-lo mais tarde.
Poucos minutos depois de cinco horas da tarde, um comboio de
carros da polícia deixou Clanton, a caminho da Ilha Padgitt. Harry
Rex possuía agora um monitor do rádio da polícia (havia mais alguns
na cidade, novos). Por isso, sentamos em seu escritório, tomando
cerveja e ouvindo os guinchos de fúria incontrolada. Devia ser a
prisão mais emocionante da história do condado, e muitos gostariam
de estar presentes. Os Padgitt bloqueariam a estrada e tentariam
impedir a prisão? Haveria tiroteio? Uma pequena guerra?
Pelas conversas através do rádio da polícia, podíamos acompanhar
a maior parte do que acontecia. Na rodovia 42, McNatt e seus homens
encontraram-se com dez “unidades” da patrulha rodoviária estadual.
Presumimos que uma “unidade” não significava mais do que um
carro, mas a palavra fazia com que parecesse muito mais sério.
Seguiram pela rodovia 401 e entraram na estrada do condado que
levava à ilha. Na ponte, onde todos esperavam uma confrontação
dramática, encontraram Danny Padgitt sentado no carro, em
companhia de seu advogado.
As vozes soaram rápidas e ansiosas pelo monitor.
— Ele está com o advogado!
— Wilbanks?
— O próprio.
— Vamos atirar nos dois.
— Estão saindo do carro. Wilbanks levantou as mãos. Espertinho!
— É mesmo Danny Padgitt. E também levantou as mãos.
— Eu gostaria de acabar com o sorriso na sua cara.
— Ele já foi algemado.
— Droga! - berrou Harry Rex, do outro lado da mesa. - Eu queria
um tiroteio, como nos velhos tempos.

Esperávamos na cadeia, uma hora depois, quando a procissão de


luzes vermelhas e azuis voltou. O xerife McNatt, numa atitude
sensata, pusera Padgitt num carro da patrulha rodoviária; se não fosse
assim, seus guardas poderiam agredi-lo durante a viagem. Dois de
seus companheiros estavam sendo operados em Memphis, e os
ânimos estavam exaltados.
Uma turba reuniu-se na frente da cadeia. Padgitt foi xingado de
tudo que foi jeito, ao entrar. Depois, o xerife, irritado, disse à multidão
enfurecida que era melhor ir para casa.
Vê-lo algemado proporcionou um profundo sentimento de alívio.
E a notícia de que ele estava preso foi como um bálsamo em todo o
condado. A nuvem fechada se dissipara. Clanton voltou à vida
naquela noite.
Quando fui para a casa Hocutt, depois do escurecer, o clã Ruffin
estava num clima festivo. Miss Callie relaxara, como eu não a via fazia
muito tempo. Sentamos na varanda por um longo tempo, contando
histórias, rindo, escutando Aretha Franklin e os Temptations, até
mesmo escutando explosões ocasionais de fogos de artifício.
CAPÍTULO 43
SEM QUE NINGUÉM SOUBESSE, Lucien Wilbanks e o juiz Noose haviam
feito um acordo nas horas frenéticas que antecederam a prisão. O juiz
estava preocupado com o que poderia acontecer se Danny Padgitt
optasse por recuar para a segurança da ilha; ou, pior ainda, se
resistisse à prisão com a força das armas. O condado era um barril de
pólvora à espera de um fósforo. Os policiais estavam sedentos de
sangue por causa de Teddy Ray e Travis. A estupidez dos dois era
temporariamente esquecida, enquanto se recuperavam de seus
ferimentos. E Maxine Root vinha de uma família de lenhadores de
uma rudeza notória, um clã enorme e irado, conhecido por caçar o ano
inteiro, viver de sua terra e não deixar ressentimento sem vingança.
Lucien soube avaliar a situação. Ele concordou em entregar seu
cliente com uma condição: queria uma imediata audiência de fiança.
Dispunha pelo menos de uma dúzia de testemunhas, dispostas a
fornecer álibis “incontestáveis” para Danny. Lucien queria que os
cidadãos de Clanton ouvissem os depoimentos. Acreditava
sinceramente que havia outra pessoa por trás das mortes, e era
importante convencer a cidade.
Lucien também se encontrava a um mês de ser proibido de
advogar por causa de uma confusão que não tinha qualquer relação
com aquele caso. Sabia que seu fim se aproximava, e a audiência de
fiança seria seu último desempenho.
Noose concordou com a audiência e marcou-a para as dez horas da
manhã seguinte, 3 de julho. Numa cena reminiscente, a um ponto
fantástico, com a que ocorrera nove anos antes, Danny
Padgitt tornou a lotar o tribunal do condado de Ford. Era uma
multidão hostil, ansiosa em vê-lo, com a esperança de que ele pudesse
ser enforcado ali mesmo. A família de Maxine Root chegou cedo e
sentou bem na frente. Os homens eram barbudos, belicosos, peito
estufado, vestindo macacão. Deixaram-me assustado, embora na
superfície estivéssemos do mesmo lado. Havia a informação de que
Maxine passava bem e voltaria para casa em poucos dias.
Os Ruffin tinham pouco a fazer naquela manhã, e por isso não
podiam perder a agitação no tribunal. Miss Callie insistiu em chegar
cedo e conseguir um bom lugar. Sentia-se feliz por estar outra vez no
centro da cidade. Usava um vestido dominical e exultou em sentar
numa reunião pública cercada pela família.
As notícias do hospital em Memphis eram mistas. Teddy Ray fora
devidamente costurado e estava se recuperando. Travis passara uma
noite agitada, e havia muita preocupação com a possibilidade de não
se conseguir salvar seu braço. Seus companheiros compareceram em
massa ao tribunal, à espera de outra oportunidade de lançar olhares
ameaçadores para o fabricante da bomba.
Vi o sr. e a sra. Fargarson sentados lá atrás, a duas fileiras do
fundo. Não podia nem sequer começar a compreender o que eles
estavam pensando.
Os Padgitt não estavam presentes; tiveram o bom senso de
permanecer longe do tribunal. A visão de um deles teria
desencadeado uma revolta. Harry Rex sussurrou que estavam
reunidos lá em cima, na sala do júri, com a porta trancada. Nunca os
vimos.
Rufus Buckley chegou com sua comitiva, para representar o
Estado do Mississippi. Uma vantagem de vender o Times era a de que
nunca mais seria obrigado a passar algum tempo com ele. Era um
homem arrogante e pomposo, e tudo o que fazia sempre tinha como
objetivo ajudá-lo a alcançar o cargo de governador.
Enquanto esperava e observava o tribunal lotar, refleti que era a
última vez que fazia a cobertura de uma audiência para o Times. Não
senti tristeza por isso. Despedi-me mentalmente e gastei uma parte do
dinheiro, em minha imaginação. E agora que Danny estava sob
custódia, sentia-me ainda mais ansioso em escapar de Clanton e
conhecer o mundo.
Haveria um julgamento dentro de poucos meses. Outro circo de
Danny Padgitt. Mas eu duvidava de que fosse realizado no condado
de Ford. Mas não me importava. Seria um acontecimento que outra
pessoa cobriria.
Às dez horas da manhã, todos os lugares sentados já estavam
ocupados, e havia inúmeros espectadores de pé, ao longo das paredes.
Quinze minutos depois, houve um barulho por trás da bancada do
juiz. A porta foi aberta e Lucien Wilbanks apareceu. A impressão era
de um evento esportivo; Lucien era um jogador; todos nós queríamos
vaiar. Dois guardas apareceram em seguida e um deles gritou:
— Todos de pé! O tribunal entra em sessão!
O juiz Noose adiantou-se em sua toga preta e instalou-se em seu
trono, dizendo pelo microfone:
— Sentem-se, por favor.
Ele correu os olhos pela multidão. Parecia atônito com a
quantidade de espectadores.
Acenou com a cabeça. Uma porta lateral foi aberta. Danny Padgitt,
algemado, com uma corrente nos tornozelos, com o macacão laranja
da prisão que já usara antes, foi trazido por três guardas. Demorou
alguns minutos para soltar todos os grilhões. Quando finalmente ficou
livre, ele inclinou-se e sussurrou alguma coisa para Lucien.
— Esta é uma audiência de fiança - anunciou Noose, fazendo todos
no tribunal se calarem. - Não há razão para que não possa ser
realizada de maneira judiciosa e breve.
Seria muito mais breve do que qualquer um pudesse antecipar.

Um canhão explodiu em algum lugar por cima de nós. Durante


uma fração de segundo, pensei que fora baleado. Alguma coisa
estalou muito alto através do ar abafado do tribunal. Para uma cidade
já tão nervosa, todo o mundo ficou paralisado, num terrível
instantâneo de incredulidade. Depois, Danny Padgitt soltou um
grunhido, numa reação retardada, e um inferno foi desencadeado.
Mulheres gritavam. Homens gritavam. Alguém berrou:
— Abaixem-se!
Metade dos espectadores abaixou-se no mesmo instante, alguns se
jogando no chão. Outra pessoa gritou:
— Ele levou um tiro!
Baixei a cabeça alguns centímetros, mas não queria perder nada.
Cada guarda sacara sua arma, e olhava em diferentes direções, à
procura de alguém para acertar. Apontavam para cima e para baixo,
para a frente e para trás, aqui e ali.
Embora discutíssemos a respeito por anos, o segundo tiro não foi
disparado mais que três segundos depois do primeiro. Acertou Danny
nas costelas, mas não seria necessário. A primeira bala atravessara sua
cabeça. O segundo tiro atraiu a atenção de um guarda na frente do
tribunal. Eu me abaixara ainda mais, mas ainda assim vi quando ele
apontou sua arma para o balcão.
A porta dupla da sala foi aberta, e a debandada começou. Na
histeria subsequente, permaneci em meu lugar, tentando absorver
tudo o que acontecia. Lembro-me de ter visto Lucien Wilbanks
pairando sobre seu cliente. E Rufus Buckley de quatro, engatinhando
na frente do recinto do júri, num esforço para escapar. E nunca
esquecerei o juiz Noose, sentado calmamente, os óculos de leitura
equilibrados na ponta do nariz, observando o caos como se
testemunhasse aquilo todas as semanas.
Cada segundo parecia durar um minuto.
Os tiros que atingiram Danny foram disparados do teto, por cima
do balcão. E ninguém viu, embora o balcão estivesse lotado, o rifle
baixar alguns centímetros, três metros acima de suas cabeças. Como
todo o mundo, as pessoas lá em cima estavam mais preocupadas em
observar Danny Padgitt.
O condado emendara e reformara o tribunal várias vezes, ao longo
das décadas, sempre que era possível espremer alguns dólares extras
dos cofres. Ao final dos anos 60, num esforço para melhorar a
iluminação, fora instalado um teto rebaixado. O atirador de tocaia
encontrara a posição perfeita num duto de aquecimento, por cima de
um painel do teto rebaixado. Ali, no espaço escuro em que só podia
rastejar, ele esperara paciente, observando a sala lá embaixo através
de uma fenda de doze centímetros, criada quando levantara um dos
painéis, manchado por uma infiltração.
Quando pensei que os tiros haviam cessado, aproximei-me da
grade. Os guardas gritavam para que todos saíssem. Empurravam as
pessoas e davam as instruções mais contraditórias. Danny estava
debaixo da mesa, cercado por Lucien e vários guardas. Eu podia ver
seus pés, que não estavam se mexendo. Um ou dois minutos
passaram. O tumulto começou a se desvanecer. Subitamente, soaram
mais tiros; por sorte, os disparos foram lá fora. Olhei por uma janela, e
vi várias pessoas correndo em busca de abrigo nas lojas da praça. Vi
um velho apontar para o alto, mais ou menos por cima de minha
cabeça, para alguma coisa no topo do prédio.
O xerife McNatt acabara de encontrar o espaço em que o atirador
se escondera quando ouviu os tiros por cima. Ele e dois guardas
subiram a escada para o terceiro andar. Devagar, subiram também a
estreita escada em caracol para o domo. A porta para a cúpula estava
emperrada, mas eles podiam ouvir os passos ansiosos do atirador. E
ouviram também as cápsulas das balas caindo no chão.
O único alvo agora era o escritório de advocacia de Lucien
Wilbanks; em termos mais específicos, as janelas do segundo andar.
Com extrema determinação, ele estava destruindo todas, uma a uma.
Lá embaixo, Ethel Twitty abrigava-se debaixo de uma mesa, chorando
e gritando ao mesmo tempo.
Finalmente deixei a sala de audiências e desci para o andar
principal, onde a multidão esperava, sem saber o que fazer. O chefe de
polícia estava dizendo a todos para permanecerem dentro do prédio.
Entre as rajadas de fogo, as conversas eram rápidas e nervosas.
Quando os tiros recomeçavam, olhávamos uns para os outros,
atordoados. Todos pensavam a mesma coisa: “Quanto tempo mais
isso vai demorar? ”
Fiquei com a família Ruffin. Miss Callie desmaiara quando o
primeiro tiro ressoara no tribunal. Max e Bobby amparavam-na,
ansiosos em voltarem para casa.

Depois de manter a cidade como refém durante uma hora, o


atirador de tocaia esgotou sua munição. Guardou a última bala para si
mesmo. Quando puxou o gatilho, caiu em cima da pequena porta de
alçapão no chão da cúpula. O xerife McNatt esperou alguns minutos,
depois conseguiu empurrar e abrir a porta. O corpo de Hank Hooten
estava nu outra vez. E morto como um bicho esmigalhado na estrada.
Um guarda desceu a escada correndo e anunciou:
— Acabou! Ele morreu! Era Hank Hooten!
As expressões aturdidas eram quase engraçadas. Hank Hooten?
Todos disseram o nome, mas não houve mais palavras. Hank Hooten?
— O advogado que enlouqueceu.
— Pensei que ele havia sido internado.
— Não estava em Whitfield?
— Pensei que havia morrido.
— Quem é Hank Hooten? - perguntou Carlota.
Mas eu me sentia confuso demais para dar uma resposta. Saímos
para a sombra das árvores, e ficamos por ali durante algum tempo,
sem saber se deveríamos esperar por mais algum evento incrível ou
voltar para casa e tentar compreender o que acabáramos de
testemunhar. O clã Ruffin logo se retirou; Miss Callie não estava
passando bem.
Depois de algum tempo, uma ambulância deixou o prédio do
tribunal, sem a menor pressa. A remoção de Hank Hooten foi um
pouco mais difícil. Mas conseguiram descer o cadáver e o levaram do
tribunal numa maca, coberto da cabeça aos pés por um lençol branco.
Fui até o jornal, onde Margaret e Wiley tomavam um café fresco e
esperavam por mim. Estávamos atordoados demais para manter uma
conversa inteligente. A cidade inteira estava atordoada.
Dei alguns telefonemas, descobri o que queria e deixei o jornal por
volta de meio-dia. Ao passar pela praça em meu carro, avistei o sr.
Dex Pratt, proprietário da vidraçaria local que publicava um anúncio
no Times todas as semanas, na varanda de Lucien, removendo e
substituindo as vidraças das portas de vidro. Eu tinha a certeza de que
Lucien já se encontrava em sua casa agora, bebendo em sua varanda,
de onde podia ver o domo e a cúpula do tribunal.
Whitfield ficava três horas ao sul. Não tinha certeza se conseguiria
chegar lá, pois podia a qualquer momento virar à direita, seguir para
oeste, atravessar o rio em Greenville ou Vicksburg, e estar
embrenhado no Texas ao crepúsculo. Ou virar à esquerda, seguir para
leste, e jantar tarde em algum lugar nas proximidades de Atlanta.
Que loucura! Como uma cidadezinha tão aprazível podia ter
tamanho pesadelo? Eu só queria sair de lá.
Já estava perto de Jackson quando saí do meu transe.

O hospital psiquiátrico estadual ficava trinta quilômetros a leste de


Jackson, numa rodovia interestadual. Blefei para passar pelo portão,
usando o nome de um médico que localizara em minhas sondagens
pelo telefone.
O dr. Vero era muito ocupado, e passei uma hora lendo revistas na
recepção. Quando comuniquei à recepcionista que não iria embora e o
seguiria até em casa, se fosse necessário, ele encontrou tempo para me
receber.
Vero tinha cabelos compridos e barba grisalha. O sotaque era
típico do Meio Oeste. Dois diplomas na parede informavam que ela
passara pelas universidades Northwestern e Johns Hopkins. À luz
fraca da sala atulhada, no entanto, não deu para ler os detalhes.
Contei o que acontecera naquela manhã em Clanton. Depois de
minha narrativa, ele declarou:
— Não posso falar sobre o sr. Hooten. Como expliquei pelo
telefone, tenho o privilégio da confidencialidade médico-paciente.
— Tinha. Não tem mais.
— Sobrevive, sr. Traynor. Ainda persiste. Lamento, mas não posso
falar sobre esse paciente.
Eu convivera com Harry Rex por tempo suficiente para saber que
nunca se deve aceitar um não como resposta. Lancei-me num longo e
detalhado relato do caso Padgitt, do julgamento ao livramento
condicional no mês anterior e a tensão na cidade. Contei que vira
Hank Hooten, ao final de uma noite de domingo, na Igreja
Independente de Calico Ridge. Comentei que ninguém parecia saber
qualquer coisa sobre ele em seus últimos anos de vida.
Meu ângulo era o de que a cidade precisava saber o que o fizera
estourar. Até que ponto ele era doente? Por que tivera alta? Havia
muitas indagações e, antes que “nós” pudéssemos deixar o episódio
para trás, “nós” precisávamos conhecer a verdade. Surpreendi-me a
suplicar por informações.
— O quanto pretende publicar? — perguntou o médico,
quebrando o gelo.
— Publicarei o que me disser para publicar. E se não quiser que
alguma coisa seja publicada, basta me avisar.
— Vamos dar uma volta.
Sentados num banco de concreto, num pequeno pátio
ensombreado, tomamos café em copos de papel.
— Aqui está o que pode publicar - começou o dr. Vero. — O sr.
Hooten foi internado aqui em janeiro de 1971. Foi diagnosticado como
esquizofrênico, recebeu tratamento e teve alta em outubro de 1976.
— Quem fez o diagnóstico?
— Passamos agora para o que não deve ser publicado. Concorda?
— Concordo.
— Isso deve permanecer confidencial, sr. Traynor. Deve dar sua
palavra.
Guardei a caneta e o bloco de anotações.
— Juro pela Bíblia que nada mais será publicado.
Ele hesitou por um longo tempo. Tomou vários goles de café. Por
um momento, cheguei a pensar que decidira ficar calado e me pediria
para ir embora. Depois, no entanto, o dr. Vero relaxou e se pôs a falar.
— Tratei o sr. Hooten no início. Sua família tinha um histórico de
esquizofrenia. A mãe e possivelmente a avó eram esquizofrênicas.
Com bastante frequência, a genética desempenha um papel na
doença. Ele foi internado quando estava na universidade. Conseguiu
fazer a faculdade de direito, o que foi extraordinário. Depois do
segundo divórcio, mudou-se para Clanton, a procura de um lugar
para começar vida nova. Mas veio outro divórcio. Ele adorava as
mulheres, mas não podia sobreviver num relacionamento.
Apaixonou-se por Rhoda Kassellaw. Alegou que a pediu em
casamento várias vezes. Tenho certeza de que ela sentia-se cautelosa
em relação a Hooten. Seu assassinato foi muito traumático. E quando
o júri recusou-se a condenar a morte o assassino, ele... escorregou do
precipício, digamos assim.
— Obrigado por usar termos de leigo.
Lembrei-me do diagnóstico na cidade: “doido de pedra”.
— Ele ouvia vozes. A principal era de Miss Kassellaw. As duas
crianças pequenas também falavam com ele. Suplicavam que a
protegesse, que a salvasse. Descreviam o horror de ver a mãe
estuprada e assassinada em sua própria cama, e culpavam o sr.
Hooten por não salvá-la. O assassino, sr. Padgitt, também o
atormentava, com zombarias da prisão. Em várias ocasiões, observei
em circuito fechado enquanto o sr. Hooten gritava com Danny
Padgitt, de seu quarto aqui.
— Ele mencionava os jurados?
— Durante todo o tempo. Sabia que três deles... o sr. Fargarson, o
sr. Teale e a sra. Root... haviam se recusado a aplicar a pena de morte.
Gritava seus nomes durante a noite.
— É espantoso. Os jurados decidiram que nunca falariam sobre as
suas deliberações. Não sabíamos como haviam votado até um mês
atrás.
— Ele era assistente do promotor.
— É verdade.
Recordei nitidamente Hank Hooten sentado ao lado de Ernie
Gaddis no julgamento, sem dizer nada, parecendo entediado e
desligado de tudo o que acontecia.
— Alguma vez ele manifestou o desejo de vingança?
Um gole de café, outra pausa, enquanto ele debatia se respondia
ou não.
— Manifestou. Ele os odiava. Queria que morressem, junto com o
sr. Padgitt.
— Então por que ele teve alta?
— Não posso falar sobre a alta, sr. Traynor. Eu não estava aqui na
ocasião, e pode haver alguma ação judicial contra o hospital.
— Não estava aqui?
— Afastei-me por dois anos, para ser professor em Chicago.
Quando voltei, há um ano e meio, o sr. Hooten já havia saído.
— Mas revisou sua ficha.
— É verdade. E sua condição tivera uma melhora drástica durante
a minha ausência. Os médicos encontraram a combinação certa de
drogas antipsicóticas e os sintomas diminuíram num nível
substancial. Ele teve alta para continuar com um tratamento
comunitário em Tupelo. Desse momento em diante, ele saiu de nosso
radar. É desnecessário dizer, sr. Traynor, que o tratamento de pessoas
com transtornos mentais não é uma prioridade neste estado, nem em
muitos outros. Temos menos pessoal do que precisamos e uma
escassez de recursos.
— Teria lhe dado alta?
— É uma pergunta que não posso responder. Acho que já falei
demais, sr. Traynor.
Agradeci por seu tempo, pela franqueza, e prometi mais uma vez
que respeitaria o que fora confidencial. Ele pediu uma cópia de
qualquer coisa que eu publicasse.
Parei numa lanchonete em Jackson para comer um cheese-burger.
Liguei para o jornal de um telefone público, meio especulando se
perdera mais algum tiroteio. Margaret ficou aliviada ao ouvir minha
voz.
— Deve voltar, Willie, o mais depressa possível.
— Por quê?
— Callie Ruffin sofreu um derrame. Está no hospital.
— É grave?
— Infelizmente, é, sim.
CAPÍTULO 44
UMA EMISSÃO DE TÍTULOS DO CONDADO, em 1977, pagara uma boa
reforma em nosso hospital. No final do andar principal havia uma
capela moderna, embora bastante escura, onde eu sentara com
Margaret e sua família, quando a mãe dela morrera. Foi ali que
encontrei os Ruffin, todos os oito filhos, todos os 21 netos, e todos os
cônjuges, com exceção da esposa de Leon. O reverendo Thurston
Small estava presente, junto com um contingente considerável da
igreja. Esau ficara lá em cima, na unidade de tratamento intensivo,
esperando fora do quarto de Miss Callie.
Sam me contou que ela despertara de um cochilo com uma dor
forte no braço esquerdo, depois sentira dormência na perna, e logo
balbuciava incoerente. Uma ambulância a trouxera para o hospital. O
médico tinha certeza de que fora inicialmente um derrame, que
precipitara um infarto brando. Ela estava sendo medicada e
monitorada. A última informação do médico fora por volta de oito
horas da noite: sua condição fora descrita como “grave, mas estável”.
Os visitantes não tinham permissão para vê-la. Por isso, havia
pouco para fazer, a não ser esperar e orar, cumprimentar os amigos
que apareciam. Depois de uma hora na capela, eu estava pronto para
dormir. Max, o terceiro na ordem de nascimento, mas o líder inegável,
organizou uma programação para a noite. Pelo menos dois dos filhos
de Miss Callie ficariam de plantão em algum lugar do hospital.
Tornamos a falar com o médico por volta de onze horas. Ele
parecia relativamente otimista de que sua condição continuava
estável. Miss Callie estava “adormecida”, como ele disse. Mas acabou
admitindo que ela se encontrava em coma induzido, para prevenir
outro derrame.
— Vão para casa e descansem - recomendou ele. - Amanhã pode
ser um longo dia.
Deixamos Mario e Gloria na capela, e fomos para a casa Hocutt,
onde tomamos sorvete numa varanda lateral. Sam levara Esau para
casa, em Lowtown. Fiquei agradecido porque o resto da família
preferiu permanecer em minha casa.
Dos treze adultos, apenas Leon e o marido de Carlota, Sterling,
tocariam em álcool. Abri uma garrafa de vinho, e nós três
dispensamos o sorvete.
Todos estavam exaustos, especialmente as crianças. O dia
começara com uma aventura no tribunal, para ver o homem que vinha
aterrorizando nossa comunidade. Parecia ter sido há uma semana
inteira. Por volta de meia-noite, Al reuniu a família na sala íntima,
para uma última oração. Uma “oração em cadeia”, como ele chamou,
em que cada adulto e criança agradecia por alguma coisa e pedia a
proteção de Deus para Miss Callie. Sentado no sofá, de mãos dadas
com Bonnie e a esposa de Mario, senti a presença do Senhor. Tive
certeza de que minha querida amiga, mãe e avó daquelas pessoas,
ficaria bem.
Duas horas mais tarde eu continuava acordado, estendido na
cama, ainda ouvindo o estampido do rifle no tribunal, o impacto da
bala ao atingir Danny, o pânico que se seguira. Reconstituí tudo,
recordei cada palavra do dr. Vero, especulei como o pobre Hank
Hooten vivera durante os últimos anos. Por que ele tivera alta para
voltar ao convívio da sociedade?
E me preocupava com Miss Callie, embora sua condição parecesse
sob controle, e ela estivesse em boas mãos.
Ao final, dormi apenas por duas horas. Quando desci, encontrei
Mario e Leon tomando café, à mesa da cozinha. Mario deixara o
hospital uma hora antes; não houvera qualquer alteração. Já estavam
planejando o rigoroso programa de dieta que a família ia impor a Miss
Callie quando ela voltasse para casa. Além disso, ela iniciaria um
programa de exercícios, que incluiria longas caminhadas todos os dias
em Lowtown. Checkups regulares, vitaminas, alimentos mais
saudáveis.
Falavam sério sobre o novo regime de saúde, embora todos
soubessem que Miss Callie faria exatamente o que quisesse.

Poucas horas depois, iniciei o processo de embalar em caixas as


coisas pessoais que acumulara ao longo de nove anos, limpando a
sala. A nova editora era uma simpática jornalista de Meridian,
Mississippi, e queria começar no fim de semana. Margaret ofereceu-se
para me ajudar, mas eu queria ir devagar e recordar, enquanto
esvaziava as gavetas. Era um momento pessoal, e eu preferia ficar
sozinho.
Os livros do sr. Caudle foram finalmente removidos das
prateleiras empoeiradas em que haviam sido colocados muito antes
da minha chegada. Eu planejava guardá-los em algum lugar de minha
casa, para o caso de algum ancestral aparecer e fazer perguntas.
Minhas emoções eram mistas. Tudo que eu pegava ali tinha uma
história, um prazo improrrogável, uma viagem pelo condado em
busca de uma reportagem, uma entrevista com uma testemunha, o
encontro com alguém que poderia se tornar uma matéria de interesse
humano. E quanto mais cedo eu terminasse de arrumar tudo, mais
perto estaria de deixar o prédio e pegar um avião.
Bobby Ruffin ligou às nove e meia. Miss Callie acordara, estava
sentada na cama, tomando chá. Podia receber visitas por alguns
minutos. Corri para o hospital. Sam recebeu-me na entrada e
conduziu-me por um labirinto de quartos e cubículos na UTI.
— Não fale sobre nada do que aconteceu ontem, está bem? —
pediu ele, enquanto andávamos.
— Claro.
— Nada que possa emocioná-la. Não permitem sequer a presença
dos netos. Não querem nada que possa fazer seu coração bater mais
forte. Tudo tem de ser muito suave.
Ela estava acordada, mas só um pouco. Eu esperava deparar com
os olhos brilhantes e o sorriso radiante, mas Miss Callie mal parecia
consciente. Reconheceu-me, demos um abraço, apertei-lhe a mão
direita. A esquerda tinha uma agulha de soro. Sam, Esau e Gloria
estavam no quarto.
Eu queria alguns minutos a sós, para finalmente lhe contar que
vendera o jornal. Mas ela não se encontrava em condição de receber
essa notícia. Mantinha-se acordada havia quase duas horas, e
obviamente precisava dormir mais. Talvez pudéssemos ter uma
animada conversa a respeito dentro de um ou dois dias.
Depois de quinze minutos, o médico apareceu e pediu que nos
retirássemos. Saímos, voltamos, e a vigília continuou pelo Quatro de
Julho, embora não tivéssemos permissão de novo para entrar na UTI.

O prefeito decidiu que não haveria fogos de artifício no Quatro de


Julho. Já ouvíramos explosões suficientes, sofrêramos demais com o
cheiro de pólvora. No clima de nervosismo na cidade, não houve
objeção organizada. As bandas marcharam, o desfile aconteceu, os
discursos políticos foram os mesmos que antes, embora com menos
candidatos. O senador Theo Morton chamou a atenção por não
comparecer. Houve sorvete, limonada, churrasco, algodão-doce... as
comidas de sempre no gramado da praça.
Mas a cidade manteve-se quieta. Ou talvez fosse apenas eu. Talvez
eu me sentisse tão cansado de Clanton que nada mais parecia certo.
Mas eu tinha um remédio para isso.
Depois dos discursos, deixei a praça e voltei para o hospital, um
pequeno desvio que estava se tornando monótono. Falei com Fuzzy,
que varria o estacionamento do hospital. Falei com Ralph, que lavava
as janelas do saguão. Parei na cantina e comprei outra limonada de
Hazel. Depois, falei com a sra. Esther Ellen Trussel, que estava no
balcão de informações, representando as Pink Ladies, um serviço
auxiliar do hospital. Na sala de espera do segundo andar, encontrei
Bobby com a esposa de Al; olhavam para a televisão como dois
zumbis. Eu acabara de abrir uma revista quando Sam entrou correndo
na sala.
— Ela sofreu outro infarto!
Nós três levantamos de um pulo, como se tivéssemos algum lugar
para onde ir.
— Acaba de acontecer! Toda a equipe de emergência está lá!
— Avisarei os outros.
Fui para o telefone público no corredor. Max atendeu. Quinze
minutos depois, os Ruffin entraram na capela.
Os médicos demoraram uma eternidade para nos dar informações.
Eram quase oito horas da noite quando seu médico entrou na capela.
Os médicos são notoriamente difíceis de decifrar, mas aquele tinha os
olhos contraídos e a testa franzida, transmitindo uma mensagem
inequívoca. Enquanto ele descrevia “uma significativa parada
cardíaca”, os oito filhos de Miss Callie murcharam como um grupo.
Ela fora posta num aparelho respiratório; não era mais capaz de
respirar por si mesma.
Dentro de uma hora, a capela estava lotada com seus amigos. O
reverendo Thurston Small liderou um grupo de orações incessantes,
perto do altar. As pessoas aderiam e se retiravam quando queriam. O
pobre Esau sentava no último banco, arriado, completamente
esgotado. Era cercado pelos netos, todos muito quietos e respeitosos.
Esperamos por horas. E por mais que tentássemos sorrir e ser
otimistas, havia um sentimento de tragédia. Era como se o funeral já
tivesse começado.
Margaret apareceu e conversamos no corredor. Mais tarde, o sr. e a
sra. Fargarson me encontraram e pediram para falar com Esau. Levei-
os para a capela, onde foram recebidos cordialmente pelos Ruffin,
todos expressando suas condolências pela perda do filho deles.
Por volta de meia-noite, estávamos atordoados e perdendo a noção
do tempo. Os minutos se arrastavam, até que eu olhava para o relógio
na parede e me perguntava o que acontecera com a última hora.
Queria sair dali, quanto menos não fosse para dar uma volta lá fora,
respirar um pouco de ar fresco. Mas o médico advertira-nos que
deveríamos ficar por perto.
O horror da provação nos atingiu quando ele reuniu todos e disse,
solene, que era tempo para um “momento final com a família”. Houve
murmúrios aflitos, seguidos por lágrimas. Jamais esquecerei a voz de
Sam, dizendo alto:
— O momento final?
— É isso? - indagou Gloria, em absoluto terror.
Assustados e desnorteados, deixamos a capela atrás do médico.
Descemos pelo corredor, subimos um lance de escada, todos andando
com os pés pesados de quem caminha para a própria execução. As
enfermeiras ajudaram a nos conduzir pelo labirinto da UTI, os rostos
nos dizendo o que mais temíamos.
Enquanto a família se espremia no quarto pequeno, o médico
tocou em meu braço e murmurou:
— O momento deve ser apenas para a família.
— Tem razão - respondi, parando no mesmo instante.
— Não tem problema - interveio Sam. - Ele está conosco.
Todos nos agrupamos em torno de Miss Callie e seus aparelhos, a
maioria dos quais já fora desligada. Os dois netos menores foram
postos ao pé da cama. Esau ficou mais próximo, acariciando-lhe o
rosto, gentilmente. Miss Callie mantinha os olhos fechados; parecia
não estar respirando.
Estava em paz. O marido e os filhos tocaram em alguma parte
dela. O choro era angustiante. Fiquei num canto, espremido entre o
marido de Gloria e a esposa de Al. Não podia acreditar onde estava e
o que eu fazia. Quando Max conseguiu controlar suas emoções, tocou
no braço de Miss Callie e disse:
— Vamos orar.
Inclinamos a cabeça e a maior parte do choro cessou, pelo menos
por um momento.
— Senhor, seja feita a Sua vontade, não a nossa. Entregamos em
Suas mãos o espírito dessa fiel filha de Deus. Prepare um lugar para
ela agora em Seu reino celestial. Amém.

Ao amanhecer, eu estava sentado na varanda de minha sala no


jornal. Queria ficar sozinho, para poder chorar bastante em particular.
O choro em minha casa era mais do que eu podia suportar.
Enquanto sonhava em viajar pelo mundo, sempre tinha a visão do
retorno a Clanton com presentes para Miss Callie. Traria um vaso de
prata da Inglaterra, roupas de linho da Itália que ela nunca veria,
perfumes de Paris, chocolates da Bélgica, uma urna do Egito, um
pequeno diamante das minas da África do Sul.
Entregaria tudo na varanda, antes de almoçarmos, depois
conversaríamos sobre os lugares de onde tinham vindo. Eu lhe
mandaria cartões-postais de cada lugar em que parasse. E
conversaríamos em detalhes sobre minhas fotos. Por meu intermédio,
de forma indireta, ela conheceria o mundo. Miss Callie sempre estaria
ali, aguardando ansiosa por meu retorno, querendo saber o que eu lhe
traria. Encheria sua casa com presentes do mundo inteiro, teria coisas
que ninguém em Clanton, negro ou branco, jamais possuira.
Eu sofria com a perda de minha amiga querida. A subitaneidade
fora cruel. A profundeza era tão imensa que eu não podia, naquele
momento, imaginar uma recuperação.
Enquanto a cidade, pouco a pouco, readquiria sua vida, fui até
minha mesa, empurrei algumas caixas para o lado e sentei. Peguei a
caneta e, por um longo tempo, fiquei olhando para um bloco em
branco. Depois, devagar, com extrema agonia, comecei o último
obituário.
FIM
NOTA DO AUTOR
Bem poucas leis permanecem as mesmas. Depois de promulgadas,
é provável que sejam estudadas, modificadas, emendadas, muitas
vezes rejeitadas por completo. Essa constante interferência de juízes e
legisladores é, em geral, uma coisa boa. As leis ruins são eliminadas.
As leis fracas são melhoradas. As boas leis são aperfeiçoadas.
Tomei uma grande liberdade com umas poucas das leis que
existiam no Mississippi na década de 1970. As leis que critiquei neste
livro já foram emendadas e melhoradas. Fiz um uso errado para que
se ajustassem à minha história. Faço isso sempre e nunca me sinto
culpado, já que sempre posso repudiar tudo nesta página.
Se você percebeu os erros, não precisa me escrever uma carta, por
favor. Reconheço meus erros. Foram intencionais.
Meus agradecimentos a Grady Tollison e Ed Perry, de Oxford,
Mississippi, por suas recordações de antigas leis e procedimentos. E a
Don Whitten e sr. Jessie Phillips, de The Oxford Eagle. E a Gary Greene,
pela assessoria técnica.
Table of Contents
Contra Capa
ORELHA 1
ORELHA 2
Entrada
Ficha
O ÚLTIMO JURADO
PARTE UM
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPITULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
PARTE DOIS
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
PARTE TRÊS
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
CAPÍTULO 43
CAPÍTULO 44
NOTA DO AUTOR

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