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O Último Jurado - John Grisham
O Último Jurado - John Grisham
O ÚLTIMO JURADO
Tradução de
A. B. PINHEIRO DE LEMOS
PARTE UM
CAPÍTULO 1
Prezado Editor:
Lamento que tenha ficado tão furioso por causa
das sequóias, que não temos no Mississippi. Se o
Congresso começar a se intrometer com as
árvores usadas para a fabricação de papel,
poderia fazer o favor de nos avisar?
Não tinha assinatura, mas Spot publicou assim mesmo. Sentia-se
aliviado por descobrir que alguém lhe prestava atenção. Baggy me
contou mais tarde que o bilhete fora escrito por um de seus
companheiros de copo no tribunal.
Meu editorial começava assim: “Uma imprensa livre e sem
restrições é essencial para um sólido governo democrático. ” Sem ser
pomposo ou chato, continuei por quatro parágrafos, enaltecendo a
importância de um jornal dinâmico e inquisitivo, não apenas para o
país, mas também para cada pequena comunidade. Garanti que o
Times não seria dissuadido pela intimidação de noticiar os crimes
locais, quer fossem estupro e assassinato, ou atos corruptos de
autoridades públicas.
Era ousado, corajoso e brilhante. Os habitantes da cidade estavam
do meu lado. Era o Times contra os Padgitt e seu xerife. Assumíamos
uma posição vigorosa contra os bandidos. Embora eles fossem
perigosos, era evidente que não estavam me intimidando. Continuei a
dizer a mim mesmo para agir com coragem. Na verdade, não havia
opção. O que meu jornal deveria fazer?
Ignorar o assassinato de Kassellaw? Ser indulgente com Danny
Padgitt?
Minha equipe ficou exultante com o editorial. Margaret comentou
que a fazia se sentir orgulhosa por trabalhar no Times. Wiley, ainda se
recuperando dos ferimentos, andava armado agora, ansioso por uma
briga.
— Vamos dar uma lição nessa gente, meu foca.
Só Baggy se mostrava cético.
— Você vai sair machucado - comentava.
E Miss Callie outra vez me descreveu como corajoso. O almoço na
quinta-feira seguinte durou apenas duas horas e incluiu Esau.
Comecei a tomar anotações sobre sua família. E ainda mais
importante, ela descobriu apenas três erros na edição daquela semana.
O clã Ruffin começou a chegar três dias antes do Natal. Miss Callie
começara a cozinhar uma semana antes. Pediu-me para ir ao armazém
duas vezes, a fim de buscar suprimentos de emergência. Fui logo
adotado pela família e recebi privilégios integrais, o mais alto dos
quais era comer quando e qualquer coisa que quisesse.
Crescendo naquela casa, a vida das crianças se concentrara em
tomo dos pais, uns dos outros, da Bíblia e da mesa da cozinha. E, nos
feriados, havia sempre um prato fresco de alguma coisa na mesa, com
mais dois ou três em final de preparo no fogão ou no forno. O anúncio
de que: “As tortas de nozes estão prontas! ”, irradiava ondas de
choque pela pequena casa, através da varanda, alcançando até mesmo
a rua. A família reunia-se à mesa. Esau agradecia ao Senhor, mais uma
vez, por sua família e pela saúde de todos, pela comida que estavam
prestes a “compartilhar”; depois, as tortas eram cortadas em fatias
grossas, postas em pratos e levadas em todas as direções.
O mesmo ritual ocorria com as tortas de abóbora, tortas de coco,
tortas de morango, a lista se prolongando, interminável. E as tortas
eram apenas para os lanches feitos entre as refeições principais.
Ao contrário da mãe, os filhos e filhas não eram nem um pouco
corpulentos. E logo descobri o motivo. Queixaram-se de que não
conseguiam mais comer assim. Nos lugares em que viviam, a comida
era insípida, quase sempre congelada, de produção em massa. Havia
muitas comidas étnicas que eles não conseguiam digerir. E as pessoas
sempre comiam às pressas. A lista de reclamações aumentava sem
parar.
Meu pressentimento foi o de que haviam sido tão mimados pela
cozinha de Miss Callie que nada mais poderia ficar à altura.
Carlota, solteira e professora de estudos urbanos na UCLA, era
bastante engraçada quando contava histórias sobre as últimas e
exóticas tendências alimentares na Califórnia. Os alimentos crus eram
a moda atual. O almoço era um prato de cenoura e aipo crus, engolido
com a ajuda de um chá de ervas bem quente.
Gloria, professora de italiano em Duke, era considerada a mais
afortunada entre os sete irmãos, porque ainda permanecia no Sul. Ela
e Miss Callie comparavam receitas para iguarias diferentes, como pão
de milho, o ensopado Brunswick (no início com carne de esquilo,
agora de coelho ou galinha, com feijão de lima, milho, tomate, cebola e
outros ingredientes), até mesmo couve picada. As conversas muitas
vezes se tornavam sérias, com os homens oferecendo opiniões e
observações, uma discussão irrompendo em algumas ocasiões.
Depois de um almoço de três horas, Leon (Leonardo), professor de
biologia em Purdue, chamou-me para dar uma volta. Era o segundo
mais velho, e tinha um ligeiro ar acadêmico, que os outros haviam
conseguido evitar. Usava barba, fumava cachimbo, vestia um blazer
de tweed com proteção nos cotovelos e seu vocabulário devia exigir
horas de prática.
Circulamos pelas ruas de Clanton em seu carro. Ele queria saber
sobre Sam, e contei tudo. Em minha opinião, o que quer que valesse,
seu retorno ao condado de Ford seria muito perigoso.
Leon queria saber também sobre o julgamento de Danny Padgitt.
Eu enviara exemplares do Times para todos os Ruffin. Uma das
matérias de Baggy enfatizara a ameaça de Danny aos jurados. A
citação exata fora destacada: “Vocês me condenam, e pegarei cada um
de vocês. ”
— Algum dia ele sairá da prisão? — perguntou Leon.
— Acho que sim - respondi, relutante.
— Quando?
— Ninguém sabe. Recebeu perpétua pelo homicídio, perpétua pelo
estupro. Dez anos no mínimo para cada pena. Fui informado, porém,
de que coisas estranhas acontecem no sistema de livramento
condicional do Mississippi.
— Quer dizer que será um mínimo de vinte anos?
Tenho certeza de que ele estava pensando na idade da mãe. Miss
Callie tinha 59 anos.
— Ninguém tem certeza. Há a possibilidade de bom
comportamento, o que reduz o mínimo.
Ele parecia tão confuso com isso quanto eu ficara. A verdade era
que ninguém relacionado com o sistema judiciário ou o sistema penal
fora capaz de responder às minhas perguntas sobre a sentença de
Danny. O livramento condicional no Mississippi era um vasto abismo
escuro e eu tinha medo de chegar muito perto.
Leon me disse que interrogara a mãe com alguma insistência sobre
o veredicto. Para ser mais específico, ela votara pela prisão perpétua
ou a favor da pena de morte? A resposta de Miss Callie fora a de que
os jurados haviam prometido que manteriam as deliberações em
sigilo.
— O que você sabe? - perguntou ele.
Eu não sabia muita coisa. Miss Callie insinuara para mim que não
concordara com o veredicto, mas não havia nada definido.
Houve uma avalanche de especulações nas semanas seguintes ao
veredicto. A maioria dos frequentadores regulares do tribunal ficou
com a teoria de que três - ou talvez quatro - dos jurados haviam se
recusado a votar pela pena de morte. De um modo geral, considerava-
se que Miss Callie não fazia parte desse grupo.
— Os Padgitt conseguiram convencê-los? — perguntou Leon.
Entrávamos nesse momento no caminho longo e arborizado
da Clanton High School.
— Essa é a teoria predominante. Mas ninguém sabe com certeza. A
última pena de morte para um réu branco neste condado foi aplicada
há quarenta anos.
Ele parou o carro. Olhamos para as imponentes portas de carvalho
da escola.
— Finalmente a escola foi integrada - murmurou Leon.
— É verdade.
— Nunca pensei que veria esse dia. - Ele sorriu, com uma
profunda satisfação. - Eu costumava sonhar em estudar nesta escola.
Meu pai trabalhava como zelador aqui quando eu era pequeno. Eu
vinha com ele nas manhãs de sábado. Andava pelos longos
corredores, fascinado, porque tudo era perfeito. Compreendia por que
não era bem-vindo aqui, mas nunca aceitei.
Não havia muita coisa que eu pudesse acrescentar ao comentário.
Por isso, limitei-me a escutar. Ele parecia mais triste do que
amargurado.
Finalmente saímos de lá. Tornamos a atravessar os trilhos. De
volta a Lowtown, Fiquei impressionado com a quantidade de carros
com placas de outros estados estacionados nas ruas. Enormes famílias
sentavam nas varandas, apesar do frio, crianças brincavam nos
quintais e nas ruas. Outros carros chegaram, todos com pacotes de
presentes, visíveis pelas janelas traseiras.
— O lar é o lugar em que a mãe está - comentou Leon. - E todo o
mundo volta para o lar no Natal.
Ao pararmos, perto da casa de Miss Callie, Leon agradeceu-me por
ter feito amizade com sua mãe.
— Ela fala de você o tempo todo.
— E tudo por causa do almoço.
Ambos rimos. Sentimos no portão da frente o novo aroma que a
casa exalava. Leon ficou imóvel, aspirou fundo e disse:
— Torta de abóbora.
A voz da experiência.
Em ocasiões diversas, cada um dos sete professores agradeceu-me
pela amizade com Miss Callie. Ela partilhara sua vida com muitas
pessoas, tivera grandes amigos, mas durante mais de oito meses
apreciava em particular o tempo que passava comigo.
Deixei-os ao final da tarde, na véspera do Natal, quando a família
se preparava para a ida a igreja. Depois, haveria a distribuição de
presentes e cantos. Havia mais de vinte Ruffin hospedados na casa; eu
não podia imaginar onde todos eles dormiam, mas tinha a impressão
de que ninguém se importava com isso.
Por mais aceito que eu fosse, senti a necessidade de deixá-los em
algum momento. Mais tarde, haveria abraços e lágrimas, canções e
histórias. Tinha certeza de que eles não se importavam que eu
experimentasse tudo, mas sabia que havia ocasiões em que as famílias
precisavam ficar a sós.
O que eu sabia de famílias?
Fui para Memphis, onde a casa de minha infância não via uma
decoração de Natal havia dez anos. Meu pai e eu jantamos num
restaurante chinês, não muito longe da casa. Enquanto tomava a sopa
wonton, não pude deixar de pensar no caos que reinava na cozinha de
Miss Callie, com todos aqueles pratos maravilhosos que saíam do
forno.
Meu pai esforçou-se para parecer interessado em meu jornal. Eu
lhe enviava um exemplar todas as semanas. Depois de uns poucos
minutos de conversa, contudo, descobri que ele nunca lera uma só
palavra. Estava preocupado com alguma relação sinistra entre a
guerra no Sudeste Asiático e o mercado de ações.
Comemos depressa e seguimos por caminhos diferentes. Nenhum
dos dois se lembrara de fazer uma troca de presentes, o que foi muito
triste.
O almoço no dia do Natal foi com BeeBee, que ficou exultante ao
me ver, ao contrário do que acontecera com meu pai. Ela convidara
três de suas amigas viúvas de cabelos azuis para o presunto com jerez.
Ficamos um pouco altos. Encantei-as com histórias do condado de
Ford, algumas acuradas, outras bastante aumentadas. Na convivência
com Baggy e Harry Rex, eu estava aprendendo a arte de contar
histórias.
Já estávamos todos cochilando por volta de três horas da tarde. Na
manha seguinte, bem cedo, voltei correndo para Clanton.
CAPÍTULO 25
NUM DIA MUITO FRIO, no final de janeiro, tiros foram disparados de
algum lugar da praça. Eu sentava à minha mesa, datilografando em
paz uma reportagem sobre o sr. Lamar Farlowe e sua recente reunião
em Chicago com seu batalhão de paraquedistas do exército, quando
uma bala espatifou uma vidraça, a menos de seis metros de minha
cabeça. Foi o fim abrupto de uma semana de poucas notícias.
Minha bala foi a segunda ou terceira numa sequência bastante
rápida. Joguei-me no chão, com todos os tipos de pensamentos. Onde
estava minha arma? Os Padgitt estavam atacando a cidade? O
patrulheiro Durant e seus amigos estavam atrás de mim?
Engatinhando, fui até minha pasta, enquanto os estampidos
continuavam a ressoar. Parecia que vinham do outro lado da rua, mas
no horror do momento, eu não podia determinar com certeza. E
pareciam muito mais altos depois do tiro que acertara uma vidraça do
jornal.
Esvaziei a pasta antes de me lembrar de que a arma devia estar no
carro ou no apartamento. Desarmado, sentia-me como alguém fraco,
incapaz de se defender. Harry Rex e Rafe haviam me treinado melhor.
Sentia-me apavorado, a ponto de não conseguir me mexer. E
depois lembrei que Bigmouth Bass estava em sua sala lá embaixo.
Como a maioria dos homens em Clanton, ele tinha um arsenal à mão.
Havia pistolas em sua mesa, além de dois rifles de caça na parede,
para o caso de ter o súbito impulso de sair correndo e
matar um veado durante o almoço. Qualquer um que tentasse me
liquidar encontraria uma feroz resistência de minha equipe. Ou pelo
menos era o que eu esperava.
Houve uma pausa no ataque, povoada por gritos de pânico e o
caos nas ruas. Eram quase duas horas da tarde, o que costumava ser
uma ocasião bastante movimentada no centro da cidade. Rastejei para
baixo da mesa, como fora ensinado a fazer nos exercícios de alerta de
tornado. Ouvi Bigmouth gritar em algum lugar lá embaixo:
— Fiquem em suas salas!
Quase que podia vê-lo, pegando um 30. 06 e uma caixa de balas,
esgueirando-se para a porta, na maior expectativa. Não podia
conceber um lugar pior para alguém começar a atirar. Havia milhares
de armas ao alcance da mão em torno da praça central de Clanton.
Cada picape tinha dois rifles em suportes por cima das janelas, mais
uma espingarda por baixo do banco. E aquelas pessoas estariam
ansiosas para usar suas armas!
Não passaria muito tempo antes que os locais respondessem ao
fogo. E nesse momento a situação poderia se tornar trágica.
Os tiros recomeçaram. Não estavam mais tão próximos, concluí,
enquanto tentava respirar normalmente, por baixo da mesa, e analisar
a situação. Compreendi que não era o alvo expresso do ataque.
Apenas possuía, por acaso, uma janela próxima. Sirenes se
aproximaram. Soaram mais tiros, mais gritos.
Um telefone tocou lá embaixo e alguém atendeu no mesmo
instante.
— Você está bem, Willie? - gritou Bigmouth, do fundo da escada.
— Estou!
— Há um atirador de tocaia no alto do tribunal!
— Essa não!
— Fique abaixado!
— Não se preocupe!
Relaxei um pouco. Saí de baixo da mesa, apenas o suficiente para
pegar o telefone. Liguei para a casa de Wiley Meek, mas ele já estava a
caminho da praça. Rastejei pelo chão e abri uma das portas de vidro.
O movimento atraiu a atenção do atirador de tocaia. Ele estilhaçou
uma vidraça a pouco mais de um metro acima de mim. Os cacos
caíram como uma chuva forte. Estendi-me de barriga no chão e parei
de respirar pelo que pareceu uma hora. Os tiros eram incessantes. A
pessoa que atirava, quem quer que fosse, estava perturbada com
alguma coisa.
Oito tiros, cada um parecendo muito mais forte, agora que eu
estava na varanda. Uma pausa de quinze segundos, enquanto ele
recarregava, depois mais oito tiros. Eu ouvia o barulho de vidro
estilhaçado, o ricochete das balas em tijolos, as balas acertando em
postes de madeira. Em algum momento, no meio da barragem de
fogo, as vozes silenciaram.
Quando pude me mexer de novo, puxei de lado uma das cadeiras
de balanço, bem devagar, e me postei atrás. A varanda era cercada por
uma grade de ferro batido. Com isso e mais a cadeira à minha frente,
eu me imaginei oculto e protegido. Não sei por quê, senti-me
compelido a chegar o mais perto possível do atirador de tocaia. Mas
tinha 24 anos, era o dono do jornal e sabia que escreveria uma longa
reportagem sobre aquele episódio dramático. Precisava dos detalhes.
Quando finalmente espiei, através da cadeira e da grade, avistei o
atirador de tocaia. O prédio do tribunal tinha um domo
estranhamente achatado, em cima do qual havia uma pequena cúpula,
com quatro janelas abertas. Ele fizera seu ninho ali. Quando o vi pela
primeira vez, ele espiava por cima do peitoril de uma das janelas.
Parecia ter o rosto preto e cabelos brancos, o que me provocou um
calafrio. Estávamos lidando com um psicopata de primeiro grau.
Ele estava recarregando. Assim que terminou, ergueu-se um pouco
e recomeçou a atirar, a esmo. Dava a impressão de estar sem camisa.
Nas circunstâncias, isso parecia ainda mais estranho, já que a
temperatura beirava zero grau e havia uma possibilidade de nevar ao
final da tarde. Eu estava congelando, apesar do lindo terno de lã do
Mitlo's que usava.
O peito dele era branco, com listras pretas, como uma zebra. Era
um branco que se pintara parcialmente de preto.
Todo o tráfego cessara. A polícia da cidade bloqueara as ruas. Os
guardas corriam de um lado para outro, agachados, escondendo-se
por trás de seus carros. Um ou outro rosto aparecia de vez em quando
nas vitrines das lojas, para uma rápida verificação da situação, e
sumia no instante seguinte. Os tiros cessaram. O atirador de tocaia
abaixou-se e desapareceu por algum tempo. Três guardas do condado
correram pela calçada e entraram no prédio. Longos minutos
passaram.
Wiley Meek subiu a escada para a minha sala. Foi se abaixar ao
meu lado. A respiração era tão forte que pensei que ele viera correndo
de sua casa, distante, na zona rural.
— Ele nos acertou! - sussurrou Wiley, como se o homem pudesse
nos ouvir.
Ele olhava para os cacos de vidro espalhados pelo chão.
— Duas vezes - informei, acenando com a cabeça para as vidraças
estilhaçadas.
— Onde ele está? — perguntou Wiley, ajeitando uma câmera com
teleobjetiva.
— Na cúpula - respondi, apontando. - Tome cuidado. Ele acertou
na porta quando a abri.
— Chegou a vê-lo?
— Homem, branco, com manchas pretas.
— Um desses...
— Mantenha a cabeça baixa.
Continuamos ali, encolhidos e abaixados, por vários minutos. Mais
policiais correram de um lado para outro, sem qualquer destino
específico. Davam a nítida impressão de que se sentiam emocionados
por estarem ali, embora não tivessem a menor ideia do que fazer.
— Alguém ferido? — perguntou Wiley, subitamente ansioso com a
possibilidade de ter perdido algum sangue.
— Como posso saber?
Soaram mais tiros, em rápida sucessão, desconcertantes. Demos
uma olhada e vimos o homem, dos ombros para cima, atirando. Wiley
focalizou e começou a tirar fotos, com a teleobjetiva.
Baggy e os amigos estavam no Bar Room, no terceiro andar. Não
era diretamente embaixo da cúpula, mas não estava longe. Na
verdade, deviam ser as pessoas mais próximas do atirador de tocaia
quando ele iniciara seu exercício de tiro ao alvo. Depois que os tiros
recomeçaram, pela nona ou décima vez, eles ficaram ainda mais
assustados, como não podia deixar de ser. Convencidos de que
estavam prestes a ser mortos, decidiram tomar a iniciativa. De alguma
forma, conseguiram abrir a janela emperrada de seu pequeno
esconderijo. Vimos um fio elétrico grosso ser jogado para fora e cair
quase até o chão, doze metros abaixo. A perna direita de Baggy
apareceu em seguida, quando ele estendeu-a por cima do peitoril,
fazendo um esforço para passar toda a sua corpulência pela abertura.
Como era de se esperar, Baggy insistira em sair primeiro.
— Essa não! - exclamou Wiley, com alguma exultação, erguendo a
câmera. - Eles estão bêbados que nem gambás!
Baggy saltou da janela, segurando o fio com toda a determinação
de que era capaz, e iniciou a descida para a segurança. Sua estratégia
não era nada evidente. As mãos pareciam congeladas, segurando o
fio, um pouco acima da cabeça. Ao que tudo indicava, havia uma boa
extensão do fio no Bar Room e os companheiros deveriam descê-lo
devagar.
Enquanto as mãos se estendiam ainda mais por cima da cabeça, a
calça começou a escorregar. Logo estava abaixo dos joelhos, deixando
à mostra um longo trecho de pele muito branca, por cima das meias
pretas pendendo nos tornozelos. Baggy nunca se preocupara muito
com a aparência... antes, durante ou depois do incidente do atirador
de tocaia.
Os tiros cessaram. Por um longo momento, Baggy ficou pendurado
ali, girando lentamente, batendo no prédio, um metro abaixo da
janela. Dava para ver Major dentro da sala, segurando o lio. Mas,
como ele só tinha uma perna, fiquei aflito com a possibilidade de não
aguentar por muito tempo. Por trás dele, avistei dois outros vultos,
provavelmente Wobble Tackett e Chick Elliot, a turma do pôquer
habitual.
Wiley começou a rir, uma risada baixa e contida, que sacudia todo
o seu corpo.
A cada intervalo nos tiros, a cidade soltava um suspiro aliviado,
torcendo para que finalmente tivesse acabado. E cada nova série de
tiros nos deixava ainda mais apavorados do que a anterior.
Dois tiros ressoaram. Baggy teve um sobressalto, como se tivesse
sido atingido, embora não houvesse a menor possibilidade de que o
atirador de tocaia pudesse sequer vê-lo. O súbito movimento brusco
aplicou pressão demais na perna de Major. A perna cedeu, o fio se
soltou. Baggy deu um grito, enquanto caía como uma pedra para uma
fileira densa de buxos plantados pelas Filhas da Confederação. Os
buxos absorveram a carga; curvaram-se, como um trampolim, para
depois lançar Baggy na calçada, onde ele se esparramou como um
melão, a única baixa de todo o episódio.
Ouvi os risos à distância.
Sem o menor vestígio de misericórdia, Wiley registrou todo o
espetáculo. As fotos circulariam furtivamente por Clanton durante os
anos subsequentes.
Baggy permaneceu imóvel durante um longo tempo. Um guarda
lá embaixo gritou:
— Deixem o filho da puta onde está!
— Não se pode machucar um bêbado - murmurou Wiley,
enquanto recuperava o fôlego.
Baggy acabou ficando de quatro. Devagar, dando a impressão de
que sentia muita dor, saiu engatinhando, como um cachorro
atropelado por um caminhão, até os buxos, que haviam salvado sua
vida, e ali abrigou-se da tempestade.
Havia um carro da polícia estacionado a três portas da Tea
Shoppe. O atirador de tocaia disparou alguns tiros em sua direção.
Quando o tanque de gasolina explodiu, esquecemos Baggy. A crise
aumentou para o nível seguinte, quando uma fumaça densa saiu de
baixo do carro, logo acompanhada por chamas. O atirador de tocaia
deve ter gostado do resultado, porque durante alguns minutos só
atirou em carros. Eu tinha certeza de que meu Spitfire seria um alvo
irresistível, mas talvez fosse pequeno demais.
O homem perdeu a coragem, no entanto, quando começaram a
responder a seus tiros. Dois homens do xerife Coley foram se postar
em telhados, crivando a cúpula de balas. O atirador de tocaia abaixou-
se e encerrou suas atividades.
— Acertei-o! — gritou um dos guardas para o xerife Coley.
Esperamos por vinte minutos; o silêncio persistiu. As pontas
perfuradas e as solas pretas dos sapatos de Baggy projetavam-se
de baixo dos buxos, mas o resto estava oculto. De vez em quando,
Major, com um copo na mão, olhava para baixo e gritava alguma coisa
para Baggy, que podia estar morrendo, por tudo o que sabíamos.
Mais policiais entraram correndo no prédio. Relaxamos e sentamos
nas cadeiras de balanço, mas sem desviar os olhos da cúpula.
Bigmouth, Margaret e Hardy vieram se juntar a nós na varanda.
Haviam assistido à descida de Baggy da janela lá de baixo. Só
Margaret estava preocupada com os ferimentos que ele podia ter
sofrido.
O carro da polícia ardeu por um longo tempo, até que os
bombeiros apareceram e apagaram as chamas. As portas do prédio se
abriram e vários funcionários saíram, começando a fumar, com
evidente ansiedade. Dois guardas conseguiram retirar Baggy dos
buxos. Ele mal conseguia andar e obviamente sentia muita dor.
Meteram-no numa radio patrulha e levaram-no embora.
Um momento depois, avistamos um homem do xerife na cúpula.
A cidade voltou a ficar segura. Nós cinco nos encaminhamos
apressados para o prédio do tribunal, acompanhados por todas as
pessoas que se encontravam no centro de Clanton.
O terceiro andar estava isolado do resto. Como o tribunal não se
encontrava em sessão, o xerife Coley nos mandou esperar ali, com a
promessa de que muito em breve informaria o que acontecera. Ao
entrarmos na sala do tribunal, avistei Major, Chick Elliot e Wobble
Tackett caminhando pelo corredor, escoltados por um guarda.
Estavam obviamente embriagados, rindo tanto que tinham
dificuldade para ficar de pé.
Wiley desceu para farejar o que pudesse. Um corpo estava prestes
a ser retirado do prédio e ele queria tirar uma foto do atirador de
tocaia. Cabelos brancos, rosto preto, listras pintadas... havia muitas
perguntas a serem respondidas.
Depois de uma aula rápida com Baggy, perdi cem dólares jogando
pôquer com Bubba e seus amigos. Eles me convidaram a voltar.
Éramos cinco em torno da mesa, todos com vinte e poucos anos.
Três haviam lutado no Vietnã: Bubba, Darrell Radke, cuja família era
dona da companhia de gás, e Cedric Young, um negro com um grave
ferimento na perna. O quinto jogador era o irmão mais velho de
Bubba, David, que fora rejeitado pela junta militar por causa da vista,
e que só comparecia, eu acho, por causa da maconha.
Conversamos muito sobre drogas. Nenhum dos três veteranos vira
ou ouvira falar de maconha - ou qualquer outra droga -antes de
ingressar no exército. Riam da ideia de drogas nas ruas de Clanton na
década de 1960. No Vietnã, o consumo de drogas era desenfreado.
Fumavam maconha quando se sentiam entediados e com saudade de
casa; e fumavam também para acalmar os nervos em combate. Os
hospitais de campanha enchiam os feridos com os analgésicos mais
fortes disponíveis. Cedric Ficara viciado em morfina duas semanas
depois de ser ferido.
A pedido deles, contei algumas histórias de drogas na
universidade, mas era um amador entre profissionais. Não creio que
eles estivessem exagerando. E cheguei à conclusão de que não era de
admirar que perdêssemos a guerra: todos estavam drogados.
Manifestaram sua admiração por meu editorial e uma profunda
amargura por terem sido enviados para o Vietnã. Cada um dos três
tinha cicatrizes da guerra. As cicatrizes de Cedric eram óbvias. As de
Bubba e Darrell eram mais uma raiva fumegante, uma fúria que mal
conseguiam controlar, uma vontade de atacar com toda a violência...
mas atacar quem?
Mais tarde, durante o jogo de pôquer, eles começaram a trocar
histórias terríveis de cenas de combate. Eu já ouvira o comentário de
que muitos soldados recusavam-se a falar sobre suas experiências de
guerra. Aqueles três não se importavam nem um pouco. Era
terapêutico.
Eles jogavam pôquer em quase todas as noites de quinta-feira e me
asseguraram de que eu seria sempre bem-vindo. Quando os deixei,
por volta de meia-noite, ainda estavam bebendo, ainda estavam
puxando fumo, ainda falavam sobre o Vietnã. Eu já cansara de ouvir
falar da guerra por um dia.
CAPÍTULO 29
DEDIQUEI UMA PÁGINA INTEIRA a controvérsia sobre a guerra que eu
criara na semana seguinte. Havia muitas cartas ao editor; dezessete,
no total, apenas duas apoiando mais ou menos meus sentimentos
contra a guerra. Fui chamado de comunista, liberal, traidor,
carpetbagger, e o pior de tudo, um covarde, porque não usara o
uniforme. Cada carta era orgulhosamente assinada. Não houve cartas
anônimas naquela semana. Aquelas pessoas eram patriotas
inflamadas que me detestavam e queriam que todo o condado
soubesse disso.
Não me importava. Mexera num ninho de vespas, e a cidade
estava pelo menos debatendo a guerra. A maior parte dos debates era
unilateral, mas eu despertara fortes sentimentos.
A reação às dezessete cartas foi espantosa. Um grupo de
estudantes de ensino médio veio em meu socorro, com suas cartas,
entregues pessoalmente. Eram contra a guerra, não tinham a menor
intenção de lutar no Vietnã e ainda estranhavam que a maioria das
cartas da semana fossem de pessoas velhas demais para as Forças
Armadas. “É o nosso sangue, não o de vocês”, foi minha frase
predileta.
Muitos estudantes focalizaram cartas que eu publicara para
criticarem seus autores com veemência. Becky Jenkins sentiu-se
ofendida pela declaração do sr. Robert Earl Huff de que “... nossa
nação foi construída pelo sangue de nossos soldados. As guerras
sempre nos acompanharão”.
Ela respondeu: As guerras nos acompanharão enquanto homem.
ignorantes e gananciosos tentarem impor sua vontade aos Kirk
Wallace protestou contra a descrição um tanto exaustiva que a sra.
Mattie Louise Ferguson fez de mim. No parágrafo final, ele escreveu:
“É triste, mas a sra. Ferguson não reconheceria um comunista, um
liberal, um traidor, ou um carpetbagger, se encontrasse algum. A vida
em Possum Ridge a protege de gente assim."
Na semana seguinte, dediquei uma página inteira às 31 cartas dos
estudantes. Havia ainda três cartas de pessoas favoráveis à guerra que
haviam chegado com atraso, e que também publiquei. A resposta foi
outro fluxo de cartas, todas publicadas.
Através das páginas do Times, travamos a guerra até o Natal,
quando todos, subitamente, clamaram por uma trégua, e assentaram
para os feriados.