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[Faz-me o favor…]

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!


Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvi-lo já.

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor — muito melhor! —


Do que tu.
Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny em O Virgem Negra


(também incluído na antologia Poesia, de Mário Cesariny)

Lembra-te

Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
Mário Cesariny em "Pena Capital"

you are welcome to elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente


entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos


há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,


as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do
ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados


e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
Mário Cesariny em "Pena Capital"

Radiograma

Alegre triste meigo feroz bêbedo


lúcido
no meio do mar

Claro obscuro novo velhíssimo obsceno


puro
no meio do mar

Nado-morto às quatro morto a nada às cinco


encontrado perdido
no meio do mar
no meio do mar

Mário Cesariny em "Pena Capital"

homenagem a cesário verde

Aos pés do burro que olhava para o mar


depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou


com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário
Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!

Mário Cesariny em "Pena Capital"

Um Grande Utensílio de Amor

um grande utensílio de amor


meia laranja de alegria
dez toneladas de suor
um minuto de geometria

quatro rimas sem coração


dois desastres sem novidade
um preto que vai para o sertão
um branco que vem à cidade

uma meia-tinta no sol


cinco dias de angústia no foro
o cigarro a descer o paiol
a trepanação do touro

mil bocas a ver e a contar


uma altura de fazer turismo
um arranha-céus a ripar
meia-quarta de cristianismo

uma prancha sem porta sem escada


um grifo nas linhas da mão
uma Ibéria muito desgraçada
um Rossio de solidão

Mário Cesariny, in 'Discurso Sobre a Reabilitação do Real


Quotidiano'

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