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Mário Cesariny - Poeta e artista plástico

Militante e defensor leal do movimento Surrealista, Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006) escreveu, pintou e
desenhou, exatamente por esta ordem, desde os 19 anos. A sua obra tanto poética, como plástica contribui na construção da
história contemporânea. O pintor destacou-se no panorama artístico ao rejeitar qualquer preocupação técnica e formal, tendo
sido o primeiro a criar uma colagem surrealista no pós-guerra português. A sua carreira foi intensa, tendo as duas áreas,
artes plásticas e escrita, se interligando continuamente, pois dos seus poemas surgiam as pinturas e vice-versa.

Em Todas as Ruas te Encontro

Em todas as ruas te encontro

em todas as ruas te perco

conheço tão bem o teu corpo

sonhei tanto a tua figura

que é de olhos fechados que eu ando

a limitar a tua altura

e bebo a água e sorvo o ar

que te atravessou a cintura

Tanto tão perto tão real

que o meu corpo se transfigura

e toca o seu próprio elemento

num corpo que já não é seu

num rio que desapareceu

onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro

em todas as ruas te perco

Mário Cesariny em Pena Capital


Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura

nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio

nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante

- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola

antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome

porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo

de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:

Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo

à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta

ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny em Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano


Um Grande Utensílio de Amor

um grande utensílio de amor

meia laranja de alegria

dez toneladas de suor

um minuto de geometria

quatro rimas sem coração

dois desastres sem novidade

um preto que vai para o sertão

um branco que vem à cidade

uma meia-tinta no sol

cinco dias de angústia no foro

o cigarro a descer o paiol

a trepanação do touro

mil bocas a ver e a contar

uma altura de fazer turismo

um arranha-céus a ripar

meia-quarta de cristianismo

uma prancha sem porta sem escada

um grifo nas linhas da mão

uma Ibéria muito desgraçada

um Rossio de solidão

Mário Cesariny em Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano

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