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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS APLICADAS E EDUCAÇÃO


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

ANA PAULA MARCELINO DA SILVA

OS RISCOS DO CUIDADO: EXPERIÊNCIAS DO TRABALHO DAS


PROFISSIONAIS DE ENFERMAGEM NA PANDEMIA DE COVID 19

JOÃO PESSOA, FEVEREIRO DE 2022


ANA PAULA MARCELINO DA SILVA

OS RISCOS DO CUIDADO: EXPERIÊNCIAS DO TRABALHO DAS


PROFISSIONAIS DE ENFERMAGEM NA PANDEMIA DE COVID 19

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Antropologia
da Universidade Federal da Paraíba,
como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestra em Antropologia.

Orientadora: Profa. Dra. Mónica Lourdes Franch Gutiérrez


Co-orientadora: Profa. Dra. Ednalva Maciel Neves

JOÃO PESSOA, FEVEREIRO DE 2022.

2
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
Centro de Ciências Aplicadas e Educação (CCAE)
Centro de Ciências Humanas Letras E Artes (CCHLA)
Programa de Pós-Graduação em Antropologia

ANA PAULA MARCELINO DA SILVA

Os riscos do cuidado: experiências das profissionais de enfermagem na pandemia de COVID-


19

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal


da Paraíba.

Resultado: APROVADO

Em: 07 de março de 2022.

Banca examinadora

___________________________________________
Profa. Dra. Mónica Lourdes Franch Gutierrez
(Orientadora)
PPGA/UFPB

___________________________________________
Profa. Dra. Ednalva Maciel Neves
(Coorientadora)
PPGA/UFPB

___________________________________________
Profa. Dra. Marcia Reis Longhi
(Examinadora Externa)
PPGA/UFPB

________________________________________
Profa. Dra. Rosamaria Giatti Carneiro
(Examinadora Externa)
UnB
Catalogação na publicação
Seção de Catalogação e Classificação

S586or Silva, Ana Paula Marcelino da.


Os riscos do cuidado : experiências do trabalho das
profissionais de enfermagem na pandemia de Covid-19 /
Ana Paula Marcelino da Silva. - João Pessoa, 2022.
111 f. : il.

Orientação: Mónica Lourdes Franch Gutiérrez.


Coorientação: Ednalva Maciel Neves.
Dissertação (Mestrado) - UFPB/CCHLA.

1. Enfermagem. 2. Pandemia - Covid-19. 3. Cuidado ao


paciente. 4. Antropologia. I. Gutiérrez, Mónica Lourdes
Franch. II. Neves, Ednalva Maciel. III. Título.

UFPB/BC CDU 616-083(043)

Elaborado por Larissa Silva Oliveira de Mesquita - CRB-15/746


AGRADECIMENTOS
Um longo caminho até aqui (mas chegamos!). Caminho que começa quando os olhos
de um menino preto e pobre viram pela primeira vez a luz do dia, já sombreada pela imensidão
dos canaviais pernambucanos. Alguns anos depois, numa cidade próxima, nascia uma menina
também pobre e parda, a mais velha entre os irmãos e irmãs, e que cuidou de todos eles. Ambos
passaram pela fome, pelo medo, pela incerteza, o que nunca os resumiu nem nunca os limitou.
Nasci do encontro desses dois, de Manoel e Maria. Por isso, mesmo ciente de que algumas
palavras são insuficientes para tanto, agradeço ao meu pai e à minha mãe por teimarem e
insistirem em mim.
Agradeço imensamente à minha orientadora, Profa. Dra. Mónica Franch, pela paciência,
cuidado, incentivo e respeito dispensados a mim desde que comecei esta jornada antropológica.
À minha co-orientadora, Profa. Dra. Ednalva Neves, pelas contribuições
imprescindíveis para a realização desta pesquisa, além do cuidado e atenção de sempre.
À Profa. Dra. Márcia Longhi pela atenção e cuidado com que conduziu suas aulas desde
os primeiros momentos de isolamento e pelas contribuições para este trabalho.
À Profa. Dra. Rosamaria Giatti pelas observações pontuais no texto desde a
qualificação.
Aos professores e professoras com quem compartilhei o desafio das aulas remotas:
Silvia Nogueira, João Mendonça, Lara Amorim, Luciana Ribeiro, Sônia Maluf, Pedro
Nascimento e Patrícia Pinheiro.
Aos colegas do GRUPESSC, grupo que me recebeu sempre com muito carinho e onde
presenciei debates instigantes, e a todos e todas que fazem parte do Projeto Antropocovid.
Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPB.
Às pessoas que tornaram possível escrever esta dissertação: minhas interlocutoras (e
meu interlocutor).
Finalmente, sem titubear quanto à importância disso, agradeço aos seres vivos que me
ensinam diariamente como a vida deve ser vivida e que foram essenciais para enfrentar esses
tempos com menos solidão, permanecendo, literalmente, ao meu lado nesses dois anos de
mestrado. Kiko e Preta, meus amigos cães, Luna, Chico e Amarela, meus amigos gatos, e
também ao Freud, que ficou comigo por um longo tempo, mas que precisou sair no final.

Este trabalho foi financiado pela CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


do Ensino Superior.

5
Dedico este trabalho aos meus pais, Manoel (in memoriam) e Maria.

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RESUMO

Desde março de 2020 o Brasil atravessa um de seus períodos históricos mais difíceis. Com o
passar dos meses, a pandemia de covid-19 deixou de ser apenas um problema grave do ponto
de vista sanitário, mas expôs questões estruturais bem mais complexas, inclusive algumas que
permaneciam praticamente marginais até então. Nesse contexto, as profissionais de
enfermagem, que já vinham trabalhando em condições bastante complicadas devido à falta de
reconhecimento salarial e de condições de trabalho adequadas, foram diretamente impactadas
pelo problema. As experiências de trabalho dessas profissionais durante a pandemia na cidade
de João Pessoa são o tema deste trabalho. Responsáveis pelo cuidado direto com os pacientes
infectados, as narrativas das vivências das enfermeiras são o ponto a partir do qual a pandemia
está aqui sendo contada. Ao longo de oito entrevistas realizadas de maneira remota essas
profissionais do cuidado relataram os acontecimentos ocorridos durante o primeiro ano da
pandemia de covid-19 nos serviços hospitalares em que trabalham em João Pessoa, no estado
da Paraíba. Questões como risco, adoecimento, falta de condições de trabalho adequadas e a
intensificação das dimensões do processo de cuidar em um momento de completa
vulnerabilidade social foram apontadas como agravantes nesse período.

Palavras-chave: Enfermagem. Pandemia. Cuidado. Antropologia.

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ABSTRACT

Since March 2020, Brazil has been going through one of its most difficult historical periods.
As the months went by, the covid-19 pandemic was no longer just a serious problem from a
health point of view, but exposed much more complex structural issues, including some that
had remained practically marginal until then. In this context, the nursing professionals, who had
already been working in very complicated conditions due to the lack of salary recognition and
adequate working conditions, were directly impacted by the problem. The work experiences of
these professionals during the pandemic in the city of João Pessoa are the theme of this work.
Responsible for the direct care of infected patients, the narratives of the nurses' experiences are
the point from which the story of the pandemic is being told here. Over eight interviews carried
out remotely, these care professionals reported the events that occurred during the first year of
the covid-19 pandemic in the hospital services where they work in João Pessoa, in the state of
Paraíba. Issues such as risk, illness, lack of adequate working conditions and the intensification
of the dimensions of the care process at a time of complete social vulnerability were identified
as aggravating factors in this period.

Key-words: Nursing. Pandemic. Care. Risk. Anthropology.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABA - Associação Brasileira de Antropologia


ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária
APIB - Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
CEP/CCS/UFPB - Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências Médicas da
Universidade Federal da Paraíba
CF - Constituição Federal
COFEN - Conselho Federal de Enfermagem
CONITEP- Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS
DCS - Departamento de Ciências Sociais
EPI - Equipamento de Proteção Individual
MS - Ministério da Saúde
PNH - Política Nacional de Humanização
PPGA - Programa de Pós-Graduação em Antropologia
PPGS - Programa de Pós-Graduação em Sociologia
SCIH - Serviço de Controle de Infecções Hospitalar
SUS - Sistema Único de Saúde
UBS - Unidade Básica de Saúde
UNILA - Universidade Federal da Integração Latinoamericana
UPA - Unidade de Pronto- Atendimento
UTI - Unidade de Terapia Intensiva

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SUMÁRIO

Prólogo… ………………………………………………………..…............................11
Introdução……………………………………………………………………………...14

Capítulo 1 - De longe, de fora: em direção à menoridade etnográfica………………….21


1.1. Desafios metodológicos e éticos da etnografia pandêmica.......................................21
1.2.Experiências de “contaminação”................................................................................30
1.3. As entrevistas………………………………………………………........................34
1.4. “Afasta, covid!” - A pandemia de perto e de de dentro............................................40

Capítulo 2 - O cuidado e a enfermagem……………......................................................45


2.1. Considerações sobre as teorias do cuidado……………………………….. ..........45
2.2. Enfermagem, raça, gênero e subordinação…………………………….. ..............52
2.3. Entre o saber científico e o cuidado humanizado……………………...................59

Capítulo 3 - “ A enfermagem estava lá”: sobre a etnografia pandêmica em


três serviços de saúde………………............................................................................63

3.1. “Eu cuido de anjos”: experiências da enfermagem em uma UTI neonatal……...63


3.2. “ Seria uma desresponsabilização do cuidado e isso não tem espaço dentro da minha
profissão”: experiências da enfermagem numa Unidade de Pronto - Atendimento…….69
3.3. “A pandemia veio para tornar visível o que era invisível”: experiências da enfermagem
num hospital privado……………………………………………………………………79

Capítulo 4 - “Quando eu tirei a máscara, eu me senti vulnerável”: experiênciasde adoecimento,


afetos e gestão de risco...............................................................................................87
4.1. “Eu tive menos medo de morrer do que de contaminar alguém”:experiências de
adoecimento por covid-19……………………………...............................................88
4.2. “Eu sinto muita falta de abraçar meus pais”: sofrimento, emoções e saúde mental…..95
Ainda é preciso falar da pandemia no presente… …………………………………..........99

Referências………………………………………………………………………………....102
Apêndices…………………………………………………………………………………..106

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11
Prólogo

A emergência de novas pesquisas, sendo uma constante, deve


nos levar a uma igualmente constante recomposição da
antropologia, de quem somos, e do mundo como o entendemos.
Se essa lição da antropologia for mais partilhada, teremos
menos certezas, mais dúvidas e, com sorte, mais liberdade.
(Peirano, 2014, p. 389)

Esta etnografia é sobre a contaminação. Sobre o medo e a necessidade de proteção.


Sobre o (re)fazer antropológico em tempos pandêmicos, presente em tantos debates, lives,
cursos, eventos etc., mas que só acontece no limiar da alteridade inicial, ali onde justamente
começa o percurso em direção à volta, aos questionamentos iniciais que nos levaram a fundar
uma ciência cujo interesse seria o outro e, por consequência, nós mesmos. De que forma
fizemos e ainda estamos fazendo isso?
Este também é um trabalho de (e sobre) mulheres. É também sobre a luta diária no
cotidiano de uma profissão construída sobre as bases da noção de cuidado, mas com o risco
sempre à espreita: a enfermagem. Pois enquanto muitos de nós tivemos nossos campos de visão
e de trabalho etnográfico delimitados pelas janelas, portas e portões de nossas casas, lá fora a
vida de algumas pessoas era impactada pela ameaça de um ser cuja existência biológica,
condicionada à atividade metabólica, não é afirmada nem pela mais avançada entre as
pesquisas. Ser que ainda assim é real e que ao se espalhar pelo mundo todo revelou o quanto
somos vulneráveis.
Também é sobre um país cujas vulnerabilidades históricas por muito tempo
permaneceram sendo varridas para debaixo do tapete, aquele mesmo lugar para o qual
empurramos a sujeira quando estamos com preguiça de resolver o problema. Este é o mesmo
país que possui o maior e mais democrático sistema de saúde pública do mundo, é preciso
lembrar. No entanto, nada disso foi suficiente para impedir que o vírus alcançasse os lugares
mais recônditos, os povos mais isolados e ali deixasse claro o quanto somos dependentes dos
cuidados uns dos outros e de um Estado que garanta as condições mínimas para nossa
sobrevivência. Aliás, de 2016 em diante o Brasil passou a tentar sobreviver, pois fomos
perdendo todas as garantias que nos possibilitaram momentos de vivência plena de nossa
cidadania.
O tempo, que passou a dividir o protagonismo com o vírus, também é central para
entender como a pesquisa foi sendo construída e em qual período as narrativas que serão aqui

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apresentadas se encaixam. Um tempo passado que permanece presente em nossas vidas, que
continuam a vislumbrar a volta ao tempo em que não tinha um vírus no meio dos nossos
caminhos pelos quais já era difícil de passar. "What 's past is prologue” (SHAKESPEARE, A
tempestade, Ato II, Cena 1, 2014, p. 100), mas o passado ainda dita os rumos do presente.

13
INTRODUÇÃO

Esta dissertação é resultado da análise, a partir de uma perspectiva antropológica, das


experiências de trabalho das profissionais de enfermagem na pandemia da covid-19 no Brasil.
Compreendendo a covid-19 como um evento crítico (DAS, 2020), a problemática central busca
entender como as experiências cotidianas daquelas pessoas que se situam na chamada “linha de
frente” no enfrentamento da crise sanitária, sendo responsáveis pelo cuidado direto com os
paciente infectados pelo vírus, foram atravessadas pela pandemia e pela forma como o problema
foi gerido no Brasil. De acordo com Das (2020), a pandemia se caracteriza como um evento
crítico pois, apesar de seu viés generalista, as experiências com o evento variam muito de acordo
com aspectos como a governança local ou a disponibilidade de recursos suficientes. Nesse
sentido, enquanto antropóloga, a autora se questiona sobre qual seria um possível
desdobramento, no que diz respeito à produção do conhecimento, para a disciplina em períodos
críticos como é o da pandemia de covid-19.

De acordo com dados do Internacional Council of Nurses (ICN)1, até janeiro de 2021,
500 profissionais de enfermagem - enfermeiras, técnicas e auxiliares - morreram em
decorrência da infecção por covid-19 no Brasil. Esse número diz muito sobre a situação em que
se encontram essas profissionais desde março de 2020 e faz com que o país com o maior sistema
público de saúde do mundo2 seja também o responsável por um terço das mortes mundiais de
profissionais de enfermagem pela doença.

Partindo da discussão proposta por Joan Tronto3 (2020) sobre a oposição entre uma
“sociedade de risco” (BECK, [1986] 2017; TRONTO, 2020) e uma possível “sociedade do

1
Disponível em:< http://www.cofen.gov.br/brasil-responde-por-um-terco-das-mortes-de-profissionais-de-
enfermagem-por-covid-
19_84357.html#:~:text=O%20dado%20global%20mais%20recente,j%C3%A1%20deve%20ter%20sido%20sup
erada.>. Acesso em 02 de fevereiro de 2022.
2
De acordo com dados do UNASUS. Disponível em: <https://www.unasus.gov.br/noticia/maior-sistema-
publico-de-saude-do-mundo-sus-completa-31-
anos#:~:text=Neste%20domingo%20(19)%2C%20o,outras%20emerg%C3%AAncias%20em%20sa%C3%BAde
%20p%C3%BAblica.>. Acesso em 07 de fevereiro de 2022.
3
Tronto (2020) analisa diversas propostas teóricas acerca de “risco” e “cuidado”. Se por um lado parte das
teorias sociológicas que apontam características de uma sociedade marcada pela exposição constante a riscos e
sua consequente necessidade de proteção; por outro lado, outras teorias, das quais a de Tronto é parte, tomam a
ampla significação de “cuidado” para explicar que o cuidado é condição para sociedades mais democráticas que,
mesmo na presença do risco, conseguem administrar melhor a situação. Isso acontece porque os aspecto
relacional é a base para a manutenção do cuidado. Inspirada por essa dicotomia entre “sociedade de risco” e
“sociedade de cuidado”, e, analisando o contexto sociopolítico do Brasil no momento em que a pandemia se
instala, foi possível apontar aspectos representativos desses dois modelos societários.
14
cuidado”, forma de articulação para um modelo de sociedade mais democrática, discutiremos
sobre as principais categorias que emergem a partir das experiências as principais categorias
trazidas pelas experiências de profissionais das equipes de enfermagem que atuam tanto no
setor privado quanto no setor público das três esferas federativas. No escopo dessa análise
abordaremos questões mais gerais, como as referentes ao impacto da pandemia nas práticas de
saúde, a influência dos cenários político e social na rotina de trabalho dessas profissionais, e
mais específicas do contexto da experiência das profissionais entrevistadas na cidade de João
Pessoa/PB, além de considerações acerca dos dois principais marcadores da profissão, raça e
gênero.

Entretanto, por causa dos desdobramentos que a pandemia de covid-19 ocasionou


também no âmbito das pesquisas acadêmicas, faz-se necessária uma breve digressão que
apontará algumas características do contexto em que a pesquisa aqui apresentada ocorreu.Em
2020, quando do meu ingresso no mestrado em Antropologia da UFPB, eu acabara de sair da
graduação em filosofia na UFPB muito animada com as possibilidades que a realização de um
trabalho de campo - até então imaginado estritamente como presencial - poderia me trazer para
resolver a angústia deixada pela filosofia, que, na minha percepção, sempre construía barreiras
entre mim e o mundo no qual eu vivia, ainda que a satisfação em aprender sobre como foi sendo
construído o processo de reflexão sobre o conhecimento do mundo fosse bastante satisfatória e
desencadeasse epifanias das quais jamais esquecerei. Toda a minha formação foi ancorada em
escolas filosóficas mais clássicas, e entre essas, escolhi a filosofia moderna para desenvolver
minha monografia de conclusão de curso. Ao mesmo tempo em que mergulhava nas páginas
densas da crítica kantiana, comecei a frequentar aulas no curso de ciências sociais, primeiro em
disciplinas sobre gênero e, posteriormente, sobre o método etnográfico; primeiro com Mónica
Franch4, e depois com Ednalva Neves5, orientadora e co-orientadora dessa pesquisa,
respectivamente.

Passado o processo seletivo do mestrado e finalizado o ciclo acadêmico na filosofia, daí


em diante era tudo novo e cheio de possibilidades. Mas todo esse cenário de possibilidades foi
modificado pela chegada da pandemia, inicialmente com a suspensão das aulas presenciais e,
posteriormente, com a suspensão das aulas remotas pelo PPGA/UFPB durante o primeiro
semestre de 2020. Posteriormente, tudo foi se complicando ainda mais, pois o cronômetro do

4
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (DCS-UFPB) e dos
programas de pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFPB (PPGS-UFPB/PPGA-UFPB).
5
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (DCS-UFPB) e dos
programas de pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFPB (PPGS-UFPB/PPGA-UFPB).
15
mestrado continuava marcando o tempo em que eu passava angustiada pela impossibilidade de
fazer as coisas como elas haviam sido planejadas e, principalmente, de maneira presencial.
Presencial no sentido de estar face-a-face com minhas possíveis interlocutoras, e de que, ao
observar a rotina do local onde faria pesquisa, trazer elementos dessa vivência para o trabalho
final. E foi no cruzamento das aflições, e a partir da estruturação da rede de pesquisas
Antropocovid, que surgiu a ideia de mudar de projeto para um objeto que me permitisse
produzir conhecimento antropológico não apenas durante a pandemia, mas sobre a pandemia.

O Antropocovid 6- ou “Estado, populações e políticas locais no enfrentamento à


pandemia de covid-19: análise social e diretrizes de ação e intervenção não farmacológica em
populações em situação de vulnerabilidade e precariedade social” - é um projeto que pretende
mapear experiências diversas de enfrentamento à pandemia. A partir de minha inserção na rede
Antropocovid, a construção de um novo projeto7 de pesquisa, voltado especificamente à
antropologia da saúde, colocava desafios pessoais bastante significativos para “uma
antropóloga em construção”. Primeiramente, havia pensado em pesquisar os profissionais de
saúde de maneira mais genérica, mas logo concordamos, eu e minha orientadora, em optar pela
enfermagem, categoria que tomava a cada dia o protagonismo das notícias sobre como estava
sendo o trabalho na “linha de frente”, e que me permitiria também dar continuidade a
indagações prévias a respeito da dimensão de gênero presente nas práticas sociais. Além dessas
problematizações, informações do COFEN apontam que, até abril de 2021, 776 profissionais
de enfermagem morreram por causa de complicações decorrentes da covid-19, estando esse
número em queda desde que iniciada a vacinação contra a doença. Iniciei então o processo de
escrita de um novo projeto para traçar os objetivos que nortearam a pesquisa aqui apresentada.

Mas a situação do país aumentava a cada dia a raiva e o medo por causa da forma que a
pandemia estava sendo gerida. Desde o começo ficou claro que o SUS, de quem eu dependo

6
O projeto é coordenado pelas professoras Sônia Maluf (UFSC/UFPB), Soraya Fleischer (UnB) e Mónica Franch
(UFPB) e conta com a participação de pesquisadores e pesquisadoras de seis universidades brasileiras, entre
professores, alunos de graduação e de pós-graduação, configurando-se em uma rede que denominamos
ANTROPOCOVID.
7
O projeto apresentado durante o processo seletivo de mestrado do PPGA/UFPB no ano de 2019 tinha como tema
as experiências de mulheres integrantes do Grupo MADA - Mulheres que Amam Demais Anônimas - da cidade
de João Pessoa. A dinâmica do grupo busca ajudar mulheres para quem o amor - por maridos, filhos etc- passou a
ser uma patologia. A pesquisa seria realizada presencialmente, ainda que dependesse de anuência das
coordenadoras do grupo. O levantamento feito para elaboração do projeto, colocava gênero como principal
marcador a ser observado, mas também como essas mulheres se apropriaram do discurso médico para justificar os
problemas pelos quais estavam passando. Ainda que a pesquisa tenha sido abandonada pelas circunstâncias
trazidas pela pandemia, mantive a observação de um grupo de MADA no Facebook e desenvolvi um trabalho que
foi apresentado no GT 69 - Práticas, políticas e discursos no campo da saúde mental - da 32a Reunião Brasileira
de Antropologia, que ocorreu de maneira remota em 2020. O artigo completo pode ser acessado em:
http://evento.abant.org.br/rba/32RBA/files/4_2020-12-06_3969_23992.pdf>. Acesso em 02 de agosto de 2021.
16
integralmente para os cuidados em saúde, estava sendo cada vez mais dilapidado, enquanto
sustentava o maior problema sanitário enfrentado desde a sua implantação. Essa raiva era
reforçada pelas declarações esdrúxulas de Jair Messias Bolsonaro, presidente da república e
chefe do Executivo, que desde sempre minimizou o problema e interviu para que ações de
cuidado não fossem tomadas. E enquanto o presidente imitava em tom zombeteiro uma pessoa
morrendo por falta de ar8, a “gripezinha”9 ia matando o povo Brasil afora. E num dos momentos
em que a ciência brasileira foi mais desacreditada, pesquisar se tornou um ato de resistência.
Era esse o cenário: um mestrado em antropologia no meio de uma pandemia desgovernada. E
se eu não podia estar lá, precisava encontrar um jeito de encontrar com quem estava.

Nesse percurso, também é importante destacar que, a partir de junho de 2020, passei a
integrar o Observatório Antropológico10 da UFPB, organizado pelas professoras Rita Santos
(UFPB) e Patrícia Pinheiro (UNILA). No Observatório, realizei algumas entrevistas com
profissionais de saúde e contribuí com a escrita dos Informes Epidemiológicos. A
experimentação etnográfica, de fato, começou em junho de 2020, quando, juntamente com a
professora Ednalva Neves e com Bruna Carvalho, minha colega de turma, entrevistamos Maria
José Pedro, agente comunitária de saúde que trabalha no município do Conde/PB, por meio do
Google Meet.
A busca por interlocutores e pela experiência etnográfica foi atravessada pela notícia de
que a primeira brasileira havia sido vacinada. Era o dia 17 de janeiro de 2021, havia acabado
de encerrar o semestre letivo - as aulas voltaram em agosto de 2020 no PPGA/UFPB - e
trabalhava incessantemente nos trabalhos finais das cinco disciplinas que decidi cursar, numa
tentativa de readequar o cronograma do mestrado ao curso do tempo. Nesse semestre , também
cursei uma disciplina na graduação em enfermagem na UFPB chamada “Bases Fundamentais
do Processo de Cuidar em Enfermagem”, buscando diminuir ainda mais a distância entre mim
e a enfermagem. Mas eu já tinha um roteiro estruturado e o novo projeto pronto, por que não
tentar?

Foi assim que encontrei Vanuza Kaimbé, a primeira indígena vacinada, que também é
técnica de enfermagem. Vanuza me indicou Magna Kaimbé, sua prima, que trabalha como

8
Disponível em:<https://br.noticias.yahoo.com/no-auge-da-pandemia-e-180754733.html>. Acesso em 10 de
agosto de 2021.
9
Disponível em:<https://g1.globo.com/politica/blog/gerson-camarotti/post/2020/03/20/em-meio-a-pandemia-de-
coronavirus-bolsonaro-diz-que-gripezinha-nao-vai-derruba-lo.ghtml>. Acesso em 10 de agosto de 2021.
10
Todo material produzido no Observatório pode ser acessado em: <https://www.observantropologia.com/>.
Acesso em 07 de agosto de 2021.
17
técnica em enfermagem na saúde indígena. E Magna me indicou Geisa, que além de coordenar
as ações em saúde indígena na aldeia dos Kaimbé em Massacará/BA, também é enfermeira.
Essa foi a primeira “bola de neve” (VINUTO, 2014) que consegui formar nessa experiência de
“contaminação” (BRANDÃO, 2007, p. 13). O termo “contaminação” é utilizado por Brandão
(2007) para indicar a estratégia de não entrar em campo de maneira abrupta, seguindo
estritamente aspectos relacionados à metodologias mais usuais de pesquisa de campo. Dado seu
aspecto mais subjetivo em comparação a outras ciências, o trabalho do/a antropólogo/a por
vezes não pode prescindir de seu potencial explorador que o leva a querer conhecer aspectos
relevantes da realidade a ser estudada, antes que se inicie o planejamento previsto no projeto de
trabalho.

Eu costumo chegar na região onde vou pesquisar e, dependendo do tempo que eu


tenha, costumo passar algum tempo de “contaminação” com o local, ou seja,
procuro não entrar diretamente numa relação de pesquisa. Não só não invadir o
mundo das pessoas com uma atitude imediata de pesquisa, como também não me
deixar levar de imediato sem um trabalho de coleta de dados. Eu acho que é muito
enriquecedor viver um tempo, que, dependendo do tempo global que você tenha, pode
ser um dia, dois, uma semana, até quinze dias, quem sabe até um mês de puro contato
pessoal, se possível, até de uma afetiva intimidade com os bares, as ruas, as casas,
as pessoas, os bichos, os rios (em geral só pesquiso onde tem rio bom para tomar
banho) e assim por diante. Conviver, espreitar dentro daquele contexto o que
eu chamaria o primeiro nível do sentir, sentir como é que o lugar é, como é que
as pessoas são, como é que eu me deixo envolver. Isso é muito bom, porque faz
com que a gente entre pela porta da frente e entre devagar. (BRANDÃO, 2007,
p. 13-14).
Foi justamente essa estratégia que trouxe dados importantes, e que me fez reestruturar
ferramentas definitivas para a realização da pesquisa, como a entrevista, por exemplo. Essa
experiência que ainda contou com uma conversa com Alva Almeida, enfermeira que atua há
mais de 30 anos no SUS, em São Paulo e está construindo um movimento para trazer ao debate
a relação entre raça e enfermagem. Conheci Alva por meio de seus artigos na revista Carta
Capital sobre o trabalho da enfermagem, que ganhou destaque com a pandemia, e o recorte de
raça da categoria, que até então não havia surgido no levantamento bibliográfico que estava
fazendo para o projeto. Entretanto, com o isolamento provocado pela pandemia, o “nível do
sentir” também estava restrito aos contatos via mensagens ou chamadas de vídeo. Mais uma
adaptação era necessária. Ao mesmo tempo em que esses impedimentos fomentaram dúvidas
sobre o desenvolvimento do trabalho de campo, aos poucos eu ia sendo “contaminada” pelo
campo sem perceber.
18
No entanto, a aprovação do projeto pelo CEP/CCS/UFPB11 12
mudou os rumos da
pesquisa, sendo necessário entrar em campo o quanto antes para conseguir respeitar o
cronograma de atividades do mestrado. Assim, entre os meses de abril e maio de 2021 realizei
oito entrevistas com profissionais de enfermagem - técnicas e enfermeiras. Todas as entrevistas
foram combinadas via Whatsapp e aconteceram de maneira remota via Google Meet. Ao todo
foram sete mulheres e um homem que me contaram acerca de suas experiências com os
cuidados dos pacientes acometidos pela infecção. Elas e ele trabalham em três unidades
hospitalares diferentes, a saber, uma UTI neonatal de um hospital público, uma Unidade de
Pronto-Atendimento também da rede pública e um hospital privado. As três unidades
hospitalares estão localizadas em João Pessoa, na Paraíba. Diante do fato de o campo ter se
dividido em três “subcampos” ao longo da pesquisa, tomei essa divisão como mote para
organizar a escrita do texto. Nesse escopo, também é necessário considerar que os três espaços
possuem singularidades distintas em virtude não só do fato de se tratarem de espaços públicos
e privados mas, principalmente, por causa das características dos pacientes que utilizam esses
serviços.

O tripé conceitual desta pesquisa é composto por três categorias principais, já indicadas
desde o título: cuidado, risco e experiência. Conforme já explicitado, a dicotomia entre risco e
cuidado (TRONTO, 2020) serviu de mote para pensar como as experiências de uma categoria
profissional ontologicamente definida pela noção de cuidado foram atravessadas pelos riscos
provocados pela crise sanitária e/ou pela forma como a pandemia foi administrada no Brasil.

A dissertação está dividida em quatro capítulos. Inicialmente, o capítulo metodológico


aborda os desafios de ordem individual e coletiva sobre o que foi fazer trabalho de campo
etnográfico durante a pandemia. Desde as primeiras tentativas feitas em conversas informais
durante o período de “contaminação” até os limites metodológicos da pesquisa, passando ainda
pelas estratégias práticas e teóricas de análise dos dados. Esse capítulo compreende ainda
pequeno “excurso” acerca de uma vivência pessoal, diretamente relacionada às questões caras

11
A aprovação do projeto referente a esta pesquisa não saiu na primeira avaliação feita pelo CEP-CCM/UFPB.
O primeiro parecer (nº 4.563.682) apresentava duas exigências que deveriam ser sanadas em menos de 30 dias,
caso eu quisesse que o projeto passasse novamente pela análise do comitê: um termo de anuência do
PPGA/UFPB, e anuência do local onde seria realizada a pesquisa. No entanto, conforme estava apontado no
desenho metodológico inicial, não havia um “local”, no sentido de um espaço institucional, onde seriam
realizadas as entrevistas com as enfermeiras. Logo consegui o termo de anuência do PPGA. Posteriormente, o
CEP-CCM/UFPB reviu a exigência sobre a anuência local, aprovando o projeto (parecer nº 4.672.517).
12
O projeto Antropocovid também foi analisado, coletivamente, pelo Comitê de Ética em Ciências Humanas da
Universidade de Brasília (Processo número:44876821.7.1001.5540).
19
à proposta metodológica, que aparece ao final deste capítulo. O segundo capítulo está dividido
em três subtópicos e levanta discussões centrais sobre como a enfermagem foi sendo estruturada
ao longo dos séculos e as lutas por reconhecimento no âmbito das ciências da saúde, que chegam
até os dias atuais, foi reacesa pela chegada da pandemia e a consequente intensificação da
demanda por trabalho qualificado. No terceiro capítulo é apresentada uma parte dos resultados
da pesquisa a partir das experiências das profissionais no âmbito hospitalar ao longo da
pandemia. Finalmente, o quarto e último capítulo aborda experiências mais pessoais sobre a
vivência das profissionais durante a pandemia, trazendo questões como adoecimento, trabalho
fora hospital e outros aspectos que emergiram das entrevistas.

20
Capítulo 1 - De longe, de fora: em direção à menoridade etnográfica

Não estou fazendo uma pesquisa sobre a pandemia na internet, nem sobre a internet
durante a pandemia. Mas é necessário reconhecer que a internet é neste momento
um processo cultural da pandemia, ou um dos desdobramentos da pandemia como
processo social e cultural, assim como a pandemia se produz também como um
fenômeno na internet.(Maluf, 2021, p. 283).

Neste capítulo, apresentaremos os principais pontos que nortearam o percurso


metodológico que foi sendo estruturado ao longo da pesquisa. Desde o desenho inicial, contido
no projeto, até os acontecimentos que viabilizaram a execução do trabalho de campo, a pesquisa
mostrou-se bastante desafiadora, pois não havia nenhum contato prévio entre mim e qualquer
profissional de enfermagem ou instituição hospitalar, visto que nunca havia feito trabalho de
campo.
Como a utilização da internet como meio de comunicação foi acentuada pela
necessidade de distanciamento social, as ferramentas metodológicas foram elaboradas no
sentido de utilizar também a internet como meio de acesso às potenciais interlocutoras. O
sucesso das experiências “contágio” realizadas também motivaram a manutenção das redes
sociais como ferramentas de pesquisa etnográfica. No entanto, por causa do tempo e do fato
dos contatos com as profissionais de enfermagem não estarem avançando, foi preciso
reestruturar novamente a metodologia. Esse processo se deu mediante um cenário bastante
desafiador por causa do cenário pandêmico.

1.1. Desafios metodológicos e éticos da etnografia pandêmica

A antropologia está pronta para assumir integralmente sua verdadeira missão, a de


ser teoria-prática da descolonização permanente do pensamento. (Metafísicas
Canibais, Viveiros de Castro, 2020, p. 19).

Desde o final de 2019, o planejamento em torno de minha pesquisa de mestrado era


conhecido e, nem na mais ilusória das possibilidades de que alguma coisa desse errado e
comprometesse completamente o processo, eu imaginava o cenário atual. Enquanto toda essa
confusão ia me confundindo ainda mais, a suposta interação entre o vírus, o animal e o ser
humano estava acontecendo na longínqua Wuhan, na China13. Dessa interação inicial nasceu o

13
De acordo com Ventura (2016), a OMS - Organização Mundial da Saúde - havia declarado até 2016 quatro
Emergências de Saúde Pública da Importância Internacional (ESPII), a saber:em 2009, referente à gripe A
(H1N1); em 2014, referente ao poliovírus; em 2014, durante a epidemia do Ebola e; em 2016, durante a
21
contexto atual, o pandêmico. Esse também era o marco inicial que trouxe o cuidado para o
centro de um debate que há muito vem tentando sair das zonas marginais da sociedade e das
ciências sociais. Se o risco estava lá fora, o cuidado tinha que começar dentro de casa, lógico,
pra quem tinha casa. Não é que no mundo pré-pandêmico o cuidado não estivesse
eventualmente sendo pautado nos debates acadêmicos, nem que não fizesse parte do cotidiano,
em ações mínimas. O caso é que o esquecimento dessas ações mínimas dissolvia o trabalho do
cuidado - de si e dos outros - no caldeirão da humanidade, em que nunca falta lenha para
queimar.
Mas antes da pandemia, a palavra cuidado muito raramente aparecia para mim, porque
cuidado era uma coisa dada, eram ações mínimas e cotidianas - na maioria das vezes - que
diziam por si sós. E foi exatamente a temporalidade que parou a “fuga semântica do cuidado”,
pois foi só a partir do contorno e reafirmação da manutenção dessas ações mínimas, que eram
feitos incessantemente - lavar as mãos por vinte segundos, usar álcool em gel, tomar banho
quando chegasse da rua etc. -, que se tornou possível identificar que os tempos do cuidado
sempre estiveram ali, mesmo que novas práticas, como o uso do álcool 70%, estivessem sendo
mais destacadas. Aliás, cabe um pequeno excurso, pois nem isso eu posso afirmar com relação
ao álcool em gel.
Por morar em outro estado, Pernambuco, precisava sair de casa às cinco horas da
madrugada para ir à João Pessoa, mesmo que as atividades que teria para realizar lá fossem no
período da tarde. Isso porque o ônibus que eu tomava, financiado pela prefeitura, saía apenas
em dois horários: cinco da manhã e cinco da tarde. O caso é que precisava carregar comigo
muitas coisas como remédios, comida, produtos de higiene pessoal etc., além dos livros e
computador. Mas nem sempre tinha um banheiro por perto e nem sempre tinha água para lavar
as mãos. Já em 2020, em uma conversa no meu grupo de amigas, compartilhávamos algumas
fotos que tinham sido tiradas na UFPB antes da pandemia. Numa dessas fotos, uma de minhas
amigas aparece sentada numa cadeira e em cima da mesa um frasco de álcool 70% em gel, que
tanto ela como eu carregávamos em nossas pesadas “mochilas de passar o dia na UFPB”. A
foto é de outubro de 2019. Nessa conversa, muito abaladas por estarmos completando mais de
seis meses sem nos vermos pessoalmente - apesar de morarmos na mesma cidade - ela disse:
“Tá vendo, Paula, a gente já usava antes de ser tendência!”. O cuidado “virou tendência” com
a pandemia, mas qual cuidado? Cuidado de quem e para quem?

epidemia do vírus Zika no Brasil. No dia 30 de janeiro de 2020, foi oficialmente declarada pela organização a
quinta ESPII. O coronavírus já estava presente em 19 países até então.

22
Do outro lado do portão de casa, os olhos nunca foram tanto as janelas da alma humana.
Com a máscara cobrindo o nariz e a boca, os olhos falavam. (Ou)víamos o medo em cada rosto
pelo qual cruzávamos ao sair à rua para executar qualquer ação mínima como colocar o lixo
para fora. Era como se um alvo estivesse sendo apontado para cada uma e cada um, mas que
não soubéssemos de onde o tiro, potencialmente letal, viria. A rua é o lugar do vírus. Sair à rua
para resolver qualquer coisa era colocar-se em risco. Logo, ao chegar em casa, deve-se tratar
para que a rua fique lá fora, ou no máximo no primeiro metro quadrado que separa a casa da
rua. Ficar em casa era/é, então, questão de vida ou morte.
O medo era uma demonstração de que pouco nos questionamos sobre as coisas do
mundo. A vida prática, quando não nos toma o único momento em que podemos descansar de
tudo, deixa pouco tempo para a reflexão, momento que, fundamentalmente talvez seja
filosófico, mas que, sobretudo, encontra suas bases nas nossas vivências e práticas, essas fontes
inesgotáveis de questões.
E quanto à pesquisa? Das barreiras que a pandemia derrubou a que talvez tenha mais
me afetado diz respeito ao meu entendimento sobre o que seria a Antropologia. Não é algo
necessariamente da ordem do ser, nem do fazer, mas de como ambas as coisas estão
relacionadas. Uma forma confusa de tentar explicar como eu estou tentando entender os ruídos
que me trouxeram até aqui. Ficar em casa também implicava em não poder/dever vestir a
carapuça malinowskiana, que ainda é uma das bases de uma antropologia colonial. Naquela
época, meu conhecimento da teoria antropológica e das monografias exemplares (CARDOSO,
1995) era muito pouco, por isso caí numa espécie de culpa-existencial-epistemológica por não
conseguir ter “coragem” e audácia de me arriscar o suficiente para ainda assim almejar uma
etnografia in loco. Havia mudado de tema e, completamente fora da tal zona de conforto, o fato
de estar definitiva e comprometidamente pesquisando na área da antropologia da saúde
intensificava ainda mais a sensação de estar fazendo uma “antropologia menor”.

Logo imagino a situação toda que me levaria ao corredor de um hospital em plena


pandemia de uma doença ainda desconhecida. O eu se parte em dois (ou mais),
porque, ao mesmo tempo em que existe certo valor moral em estar lá, de perto e de
dentro, aqui, de longe e de “fora” existem também outras tantas responsabilidades,
principalmente com relação aos outros também. E esse “com relação aos outros” é
o que perpassa ambos os eus, pois, lá eu poderia de alguma forma me tornar o vetor
de transmissão e aqui, certamente o seria. Mas, tempo ao tempo…(Trecho do diário
de campo do dia 05.07.2020).

23
Diante dessa angústia inicial, optei por tomar o diário de campo como o último fio da
corda que uniria a antropologia a mim. O diário, que começou a ser escrito mesmo antes de o
campo passar a existir de fato, acabou sendo uma ferramenta muito importante para refletir
sobre como eu procederia posteriormente. Contudo este não era um diário escrito à mão, mas
se concentrava principalmente em um documento de word que eu buscava atualizar
diariamente, tarefa que ficava cada dia mais difícil ao longo da evolução da pesquisa por causa
da velocidade com que as informações iam surgindo. Ao perceber essa dificuldade, passei a
utilizar um grupo de Whatsapp composto apenas por mim para gravar áudios, numa espécie de
tentativa de agilizar a organização das informações para que estas estivessem sempre à mão
quando preciso. Ainda assim, o diário eletrônico foi fundamental para o desenvolvimento de
questões da pesquisa que, só após algum tempo de reflexão e escrita, consegui entender melhor.

Nesse sentido, os trechos, certamente mais reflexivos, que trago, compuseram a parte
que antecedeu inclusive o momento do “contágio”, o que reitera a centralidade desta ferramenta
para o desenvolvimento da produção antropológica (FLEISCHER, 2018), englobando suas
fases “mais teóricas”, inclusive. Senão uma inversão, mas um deslocamento do instrumento
diário de campo na pesquisa foi provocado pelos prazos e outras demandas da pós-graduação.
Isso porque, quando de fato passei a fazer campo, o diário deixou de ser um espaço reflexivo e
descritivo e passou a conter apenas tópicos e poucas observações. Neste ponto, as anotações
que eu fazia no momento das entrevistas foram centrais para organizar melhor os dados. Além
disso, conforme já explicitado, criei um grupo no Whatsapp comigo mesma e lá gravava áudios
falando sobre pontos específicos das entrevistas para que eu não esquecesse esses detalhes
depois.

Optei então por esperar que o tempo e os desdobramentos da situação revelassem se iria
realmente ter condições de realizar a passagem para o que designei de maioridade etnográfica,
um estado liminar entre ser e não ser antropóloga que, ao mesmo tempo limitante e diverso
(TURNER, 2005). Limitante no sentido de que impede que os próximos passos sejam dados de
forma segura e confiante, o que de certo modo garante mais maturidade. E diverso no sentido
de que abre espaço para que toda a tensão dos paradigmas (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1995)
se apresente. Mas atenção, esta não é uma mera contraposição entre abstração e empiria, apesar
desses serem pontos limítrofes a partir dos quais penso. Atingir a maioridade etnográfica é fazer
uso de meu próprio entendimento acerca do que faz da antropologia “uma ciência menor”, como
disse Viveiros de Castro (2020). Mas esse entendimento não partiria apenas de um campo

24
puramente abstrato, pois toda a literatura antropológica está impregnada de conhecimento
empírico, o que faz de cada trabalho único, mas pertencente a uma mesma matriz científica.

A própria ideia de começar a escrever um diário de campo era bastante assustadora,


afinal, quanto mais o eu desaparecesse nas entrelinhas do texto, mais acadêmica, intelectual e
objetiva eu estaria sendo, e a possibilidade de tomar um instrumento com o qual poderia
escrever (quase) tudo o que estivesse observando, poderia ser comparada à abertura da caixa de
Pandora, ao desarranjo intelectual. Mal sabia eu que seria justamente o diário de campo o
responsável por ter deixado migalhas de pão pelo caminho para que eu não me perdesse na
volta, em direção à menoridade.

A expressão “menoridade etnográfica” é aqui tomada como parte de uma discussão


“imaginária” em torno d’ O Anti-Narciso (VIVEIROS DE CASTRO, 2020). Para o autor, o
livro que nunca fora escrito (mas sobre o qual um livro foi escrito) deveria “caracterizar as
tensões conceituais que atravessam e dinamizam a antropologia contemporânea”(VIVEIROS
DE CASTRO, 2020, p. 19), o que implicaria, principalmente, numa abstenção do conforto
trazido por uma linguagem rebuscada que sustenta a retórica de uma vertente pós-moderna das
ciências humanas e sobre a qual Latour ([1991]2009) não foi “capaz de encontrar uma palavra
suficientemente vil para designar este movimento, ou antes, esta imobilidade intelectual através
da qual os humanos e os não humanos são abandonados à deriva” (LATOUR, [1991] 2009, p.
77).

Logo, imaginar um exercício de menoridade etnográfica que conseguisse levantar


questões caóticas para o meu próprio pensamento colonizado que estava flertando com as
tensões presentes numa matriz disciplinar também bastante colonizada, é apresentar
argumentos para viabilizar o projeto de uma endoantropologia. Para Viveiros de Castro (2020),

A viabilidade de uma autêntica endoantropologia, “uma antropologia de nós


mesmos”, aspiração que está hoje na ordem do dia da agenda disciplinar por múltiplas
razões, algumas até razoáveis, depende assim crucialmente da ventilação teórica
favorecida desde sempre pela exoantropologia, uma “ciência de campo” no sentido
que realmente interessa”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2020, p. 23 -24).

Isso porque esse exercício de descolonização não se reduz ao âmbito da linguagem, mas
também aos próprios aspectos práticos, responsáveis pelo ineditismo, caracteristicamente
antropológico, possível apenas por causa de seu viés empírico. A questão não é, portanto, sobre
se o grupo estudado é uma sociedade ameríndia, os povos da Melanésia, um grupo de skatistas
25
ou, como no caso, uma categoria profissional. Também não se restringe a um mero
interpretativismo hermenêutico (GEERTZ, 1978; CARDOSO DE OLIVEIRA, 1995) de bases
metafísicas. Ainda não é também sobre a qual lugar me refiro quando digo “campo”, se uma
aldeia, uma praça ou uma comunidade de Facebook. Não é sobre nada disso, mas contém
elementos de tudo isso.

Sabemos, desde os gregos, sobre a primazia da visão em relação aos outros sentidos e
como isso se reflete na percepção que temos dos outros. Mas, se até pouco tempo atrás só nos
víamos quando nos olhávamos no espelho, quanto perdemos em relação à percepção de nós
mesmos? O que muda quando um dispositivo eletrônico permite que eu me veja vendo os
outros? E mesmo sem esse advento, como é possível uma etnografia de nós mesmos? Só mesmo
um cenário apocalíptico, com escatologias para todos os lados, proporcionaria esse tipo de
reflexão. Logo, a Antropologia não é uma ciência a partir da qual seria possível explicar os
determinantes que fazem da pandemia de covid-19 um fato social total (MAUSS, 2017), mas
está ela mesma implicada e atravessada por esse fato. Nesse sentido, o trabalho de campo
antropológico não está preso às suas matrizes de ação, pelo contrário, os laços que o unem a
essas matrizes foram afrouxados pela situação. Arrisco até a dizer que isso aconteceu de
maneira universal, em todas as subáreas da disciplina, pois como explicar aquela relação de
união com o mundo, proposta por Lévi-Strauss, se o mundo que está lá não é mais o de 2019,
quando o álcool em gel não era tendência?

Na pandemia, e, principalmente, nas “etnografias pandêmicas”, a antropologia se viu


diante da possibilidade de realização mesmo de uma endoantropologia, pois a última trincheira
moderna que mantinha a excepcionalidade da disciplina foi ultrapassada, não mais pelo fato
de estarmos diante de uma sociedade, um bairro, um grupo diferentes que precisam ter suas
dinâmicas explicadas, mas sobretudo porque “estar lá” passou depender ainda mais do querer
do outro do que do/a etnógrafo/a. O trabalho de campo presencial passou então a ser um cálculo
de risco, quando o cuidado passou a dominar o debate no centro da disciplina. Mas o cálculo
do risco não é uma equação de primeiro grau que facilmente pode-se resolver, mas um cálculo
diferencial cujo limite, determinado em função de comportamentos cotidianos, tenderia ao risco
de se aproximar demais das incertezas sobre a contaminação pelo SARS-Cov-2.

A questão em torno da qual esta pesquisa se desenvolveu era, então, como seria possível
etnografar as experiências das profissionais de enfermagem na pandemia de covid-19 partindo
do zero empírico e relacional, pois eu não tinha nenhum tipo de contato com qualquer pessoa

26
da área. Mesmo com as garantias do Código de Ética da ABA ou, no caso mais específico, com
as resoluções e normas sobre pesquisas em saúde com seres humanos, prevalecia subjacente a
“obrigação” de nossos interlocutores, principalmente no caso de pesquisas em instituições, de
que era preciso colaborar com a pesquisa. Com isso não quero dizer que as etnografias possuem
elementos de coação ou coisas nesse sentido - apesar de reconhecer as relações de poder que se
estabelecem a partir da dualidade sujeito- objeto - mas mesmo diante da negação, a/o
antropólogo/a ainda teria muito o que dizer por estar lá observando os fatos. Aliás, o próprio
fato de receber um “não” em campo é um dado de pesquisa que diz muito, principalmente sobre
o método. Ainda que não houvesse uma entrevista sequer, muitas e fundamentais informações
a respeito poderiam ser ditas.

O deslocamento dessa posição, a ruptura da dualidade sujeito-objeto, só poderia mesmo


ter sido provocada pelos “objetos”. A zona de conforto é mesmo um lugar do qual ninguém,
nem os que mais se arriscam, num sentido mais prático da noção de risco, queriam sair. Porque
a questão não se restringe ao risco de contaminação pelo vírus, mas ao fato de que etnografias
“não- pandêmicas”, sejam presenciais ou remotas, só contenham basicamente ferramentas que
não servem para esse momento. Se fizéssemos uma arrumação na tal caixa de ferramentas
etnográficas, mais que tensões, encontraríamos coisas de pouca utilidade. Mas existe um
coringa, que não é nada novo.

A entrevista é talvez o coelho que deve ser tirado da cartola nesse momento. Afinal, se
um dos objetivos do trabalho era compreender como a enfermagem estava vivendo a
excepcionalidade desse momento, e se o trabalho de campo de maneira presencial traz riscos
tanto à pesquisadora quanto à próprias profissionais, como ligar os pontos, reduzir as distâncias
- que eram físicas apenas até então - senão perguntando? Certamente, a entrevista já era uma
das ferramentas que seriam utilizadas, mesmo no projeto inicial que deu origem à pesquisa e
que será melhor detalhado mais a frente, mas com a pandemia acabou se tornando a principal
forma de acesso às informações necessárias para alcançar os objetivos previamente
estabelecidos. A entrevista também acabou se tornando uma forma de pontuar uma
temporalidade, visto que a pandemia, como processo ainda em curso e cujos eventos variam
muito rapidamente, acaba desafiando as estruturas do pensamento científico, principalmente no
que diz respeito à pretensão explicativa linear deste. Nesse sentido, a proposta de Kaufmann
(2013), de resgatar a entrevista como mecanismo de elaboração e discussão teórica no âmbito
das ciências sociais, foi crucial para entender como seria possível analisar os dados. Levando
em consideração ainda a multiplicidades dos métodos (KAUFMANN, 2013, p. 37) disponíveis,
27
também foi possível deslocar a entrevista de seu “lugar-comum”, ou seja, enquanto dispositivo
complementar, e trazê-la para uma posição mais funcional dentro da pesquisa.

Mas ao me apropriar dessa ferramenta, é preciso reconhecer que existem diferenças


significantes entre a entrevista, como principal fonte de dados, e uma pesquisa desenvolvida
em moldes etnográficos mais clássicos (GIUMBELLI, 2002, p. 102). Mas ainda que isso não
cause uma valoração significativa, isso seria contrário à própria ideia de uma antropologia
descolonizada, isto é, uma antropologia que esteja sempre num movimento de devir
epistemológico.

O roteiro de entrevistas (Apêndice 1) foi elaborado em escala ascendente de


especificidade, partindo de questões mais básicas como nome (ainda que os nomes não fossem
aparecer realmente), idade, tempo e local de trabalho (KAUFMANN, 2013). Esse roteiro foi
sendo aperfeiçoado durante a fase exploratória, e logo depois da primeira entrevista, decidimos
fazer uma alteração muito pontual e importante, perguntando o motivo pelo qual havia sido
feita a escolha pela carreira na enfermagem. Essa passou a ser a segunda questão do roteiro.
Isso porque limitar a escolha a marcadores sociais da diferença seria restringir essa escolha a
uma leitura muito particular da situação, e aos poucos fui percebendo que direcionar o roteiro
para responder as constatações relacionadas a esses marcadores, poderia direcionar os
resultados às respostas que eu esperava, mas que não refletiam a percepção delas sobre a escolha
da profissão.

Posteriormente, procuramos delimitar a situação temporalmente, perguntando como era


a rotina de trabalho antes da pandemia e o que mudou com a chegada da crise sanitária. As
demais questões giravam em torno dos principais temas relacionados à atuação de profissionais
de saúde na pandemia, como o tratamento precoce, a gestão pública do problema e o estado de
ânimo das enfermeiras diante de toda essa situação.

A pesquisa passou então a depender quase que completamente da entrevista para se


concretizar. Franch & Perrusi (2012), ao analisar a gestão do risco de infecção pelo HIV entre
casais sorodiscordantes na Paraíba situam a entrevista como principal técnica etnográfica,
deixando a observação em segundo plano, fato que reitera o fato de que o desenvolvimento da
pesquisa está diretamente relacionado à interconexão entre objeto, objetivo e contexto. Mas
ainda que a entrevista surgisse como ferramenta-coringa diante da atual conjuntura, a questão
mais básica permanecia intocada: como acessar os sujeitos de pesquisa? E, em consequência

28
direta desta, quais seriam as diferenças entre entrevistas realizadas face-a-face e aquelas
mediadas por uma plataforma digital?

Essa é uma problemática que, inclusive, diz respeito às próprias exigências éticas da
pesquisa e que foi questionada quando da primeira avaliação do CEP-CCM/UFPB, pois a
anuência do local onde a pesquisa seria realizada era uma condição para a aprovação do projeto.
Esse evento só aumentou ainda mais a sensação de não-pertencimento ao quadro da disciplina
e colocou mais elementos para “flutuar” sobre a pesquisa e retardar o início desta. Resolvido o
problema, chegava a hora de colocar em prática o planejamento metodológico do projeto.

Chego então ao ponto nevrálgico da pesquisa, aquele que existia antes mesmo da
delimitação do tema do trabalho, pois o cenário pandêmico já estava posto quando o segundo
projeto foi finalizado. O desconforto inicial em manter o trabalho centrado na exploração
bibliográfica em torno do tema e além dele tinha total relação com o desconforto que ainda
deixa ruídos de fazer uma pesquisa etnográfica por meios digitais, a partir da antropologia da
saúde. Era preciso, assim como fez Giumbelli (2002), (quando se viu diante do mesmo dilema
posto pela quase sinonímia entre etnografia dos documentos e trabalho de campo aos moldes
malinowskianos) saber se aquilo que eu estava desenvolvendo era sim um pesquisa etnográfica,
pois o ‘objetivo fundamental da pesquisa etnográfica’ deve ser buscado a partir de uma
variedade de fontes, cuja pertinência é avaliada pelo acesso que propiciam aos ‘mecanismos
sociais’ e aos ‘pontos de vista’ em suas “manifestações concretas.” (GIUMBELLI, 2002, p.
102). E a principal dessas fontes, o campo presencial, eu não tinha.
Mas foi partindo dessa incômoda reflexão que, ao invés de tomar a disputa metodológica
sobre a necessidade de estar lá ou não em plena pandemia, disputa essa sempre presente e
subjacente aos debates nas muitas reuniões, lives, eventos acadêmicos e outras formas de
encontro que participei ao longo do mestrado - que aliás só têm sido possíveis por causa da
possibilidade das tecnologias remotas, ainda que nem todo mundo disponha desses
instrumentos -, que optei pelas possibilidades que o próprio desenrolar da pesquisa foi
mostrando. O que não significa uma isenção ao debate, mas um investimento a partir do capital
que eu tinha. Esse movimento - de fluir ao invés de petrificar metodologias - acabou se
mostrando uma “escolha” em direção aos hibridismos e perspectivismos, fontes dos debates
dos “pós-modernos”.

29
O problema é que eu não era pós-moderna, ao menos de formação14. E mesmo depois
de algumas leituras, a de Latour (2009) principalmente, percebi que esse crachá histórico e
epistemológico, o de ser pós-moderno, deve ser e é negado dentro das próprias estruturas de
sua feitura mais contemporânea. Pois jamais fomos modernos justamente pelo fato de que não
é a partir exclusivamente da caixa de ferramentas da modernidade (que até então ditava os
rumos da própria antropologia) que as diversas viradas no cerne da sempre tensionada matriz
disciplinar da antropologia será feita, mas apesar dela e, sobretudo aquém e além dela. Esse era,
então, o primeiro ponto de inflexão com potencialidades para uma virada nos rumos da
pesquisa, no sentido deixar que meus próprios (às vezes bem próprios mesmos) problemas
metodológicos fossem contaminados pelas possibilidades não só da pesquisa remota, mas das
próprias questões - até então desconhecidas por mim - que a própria teoria antropológica já tem
debatido há décadas.
Nesse sentido, o meu problema não era nem com a observação participante
(MALINOWSKI, 2018) nem com qualquer outro leviatã ávido por monografias antropológicas,
ou qualquer outra parte do cânone de uma disciplina cujo objeto não é nada canônico. Meu
problema era com a própria dualidade sujeito-objeto, que fora exclusivamente revelada pelo
fazer antropológico, pelo trabalho de campo. Mas isso nunca esteve às claras. E, para não me
abster novamente da metáfora, concluí que estava contaminada e/ou carregando ferramentas
que eu não precisava, ainda que só soubesse disso porque sabia sua utilidade.

1.2. Experiências de “contaminação”

Mas a pesquisa ainda me reservava uma grata surpresa. Como expliquei brevemente na
introdução, na tentativa de captar potenciais interlocutores ou sujeitos-chave de pesquisa, decidi
entrar em contato com Vanuza Kaimbé, primeira indígena vacina no Brasil, que também é
técnica em enfermagem. Muito motivada pelas emoções despertadas naquele 17 de janeiro de
2021 e com as esperanças de um possível trabalho de campo presencial, que seria viabilizado
pela vacinação em massa da população brasileira, coloquei de lado minhas dúvidas sobre a
realização desse contato mais direto e, em certo sentido, uma invasão de privacidade que viria

14
Referência ao fato de minha monografia de conclusão do curso de filosofia ter tido como tema a filosofia
moderna, ou mais especificamente, as relações possíveis entre a Antropologia de um ponto de vista pragmático
(1798) e a Crítica da Razão Pura (1781), obras do filósofo alemão Immanuel Kant(1724 - 1804). A crítica pós-
moderna da antropologia é bastante incisiva com relação aos desdobramentos das categorias do entendimento
kantianas e da própria dualidade sujeito-objeto, de bases cartesianas.
30
acompanhada de uma exposição de meu perfil pessoal no Facebook. Ainda assim, resolvi
arriscar.

Enviei uma mensagem pelo Messenger explicando basicamente do que se tratava a


pesquisa e repassei meu contato de Whatsapp, pois acredito que esta seria uma forma mais
“próxima” de contato, visto que nem todo mundo usa o Messenger. Para minha surpresa,
minutos depois ela falou comigo no Whastapp, dizendo que aceitava participar da pesquisa.
Esclareci mais algumas questões e marcamos uma conversa via Google Meet. Mas o curioso é
que Vanuza não havia sido vacinada por ser técnica em enfermagem, mas pela baixa adesão e
desconfiança dos povos indígenas em relação à vacina. Por ser uma liderança não só entre o
povo Kaimbé mas também em relação aos povos que compõem a Aldeia Multiétnica Filhos
dessa Terra - Kaimbé, Pankararé, Pankararu, Tupi e Wassu Cocal -, localizada em Guarulhos,
São Paulo.

Por ser uma aldeia em contexto urbano, a Filhos dessa Terra enfrenta diversos problemas
com relação à sua legitimidade, inclusive do ponto de vista legal, e por isso tem dificuldades de
receber suporte por parte dos sistemas de proteção do governo aos povos indígenas. Foi por
isso que, conforme explicou Vanuza, a aldeia teve que suspender suas atividades, que eram
principalmente voltadas para o turismo, logo que os primeiros casos foram confirmados na
cidade que, por sediar um dos maiores aeroportos do país, apresentava grande potencial para
ser uma das portas de entrada do vírus. Essa foi a percepção de Vanuza e de algumas outras
lideranças da aldeia. Entretanto, ao procurar as autoridades locais para discutir a situação de
vulnerabilidade da aldeia, tiveram seus apelos e reivindicações ignorados.

Eu, na secretaria municipal de Guarulhos, no dia 18 de fevereiro já tava discutindo


a pandemia, já tava falando que ela ia chegar aqui. E lá as pessoas diziam que eu
tinha que me preocupar com a dengue, com a Chikungunya, que aqui era um país
tropical e não ia chegar dessa forma. E eu falando “Guarulhos é uma porta de
entrada, vai chegar. Essa doença vai chegar por Guarulhos, nós vamos ser atingidos.
Guarulhos não está se preparando, a gente tem que fazer um trabalho diferenciado,
não ficar esperando. Aí me mandavam as portarias do Ministério da Saúde. Eu falei,
“isso é ineficiente, nós temos que fazer um trabalho de prevenção aqui porque eu não
quero morrer, a minha população indígena daqui não quer morrer!”. Então foi uma
luta, eu lutei muito pra tá viva e garantir a vida dos meus iguais. Fiz um combate,
corri atrás pra que fosse testado. Em Guarulhos não há aldeia demarcada ainda, mas
foi a primeira aldeia a ser testado covid no Brasil porque o Instituto Butantã foi lá
testar. E foi tudo da gente que partiu, porque se a gente ficar esperando pelas

31
autoridades, pelo governo, pra que eles façam a parte deles, eles não fazem. Eles só
fazem quando a gente pressiona, quando a gente cobra, vai à luta e não aceita o
descaso, não fica só reclamando nas redes sociais como muitos da população
brasileira ficam. (Trecho da entrevista ocorrida no dia 04.02.2021).

Além desses fatores, a situação de completo descaso e perseguição aos povos indígenas
no Brasil também precisava ser considerada. Conforme explicou Vanuza, “desde o começo, a
gente sabia que esse não ia ser um governo fácil para os indígenas”. E a pandemia só veio
agravar esse cenário. Ao final da entrevista, Vanuza, que foi a primeira vacinada e que já estava
há mais de um ano lutando para que seu povo não sucumbisse diante do descaso governamental,
me surpreende com a resposta: “Eu já estive mais otimista”.
A primeira entrevista e o roteiro teve que ser adaptado ali, na hora, com a coisa
acontecendo. A sorte de principiante talvez tenha favorecido a neófita que havia imaginado as
formas mais variáveis de problemas que poderiam surgir na hora da entrevista. A prova disso é
que Vanuza logo viabilizou o contato com Magna Kaimbé, sua prima, que também é técnica
em enfermagem na saúde indígena há vários anos, e que atualmente trabalha na aldeia do povo
Kaimbé que fica em Massacará, no município de Euclides da Cunha, estado da Bahia.

Enviei a Magna uma mensagem semelhante à que havia enviado para Vanuza e ela logo
aceitou participar de um meet comigo também. Com Magna, aprendi mais sobre como a
pandemia foi administrada entre os indígenas e como ela, na condição de profissional de
enfermagem da UBS da aldeia lidou com o problema tendo que se desdobrar entre os cuidados
em casa, com seu companheiro e filha, e no trabalho, com as demandas de seus parentes.
Segunda entrevista, novas adaptações. Além da questão étnica sobre cuidar dos seus parentes,
Magna revela que a distância dos seus pacientes foi a mudança que mais a afetou,
principalmente nos meses iniciais da pandemia, momento em que as incertezas e o medo de
contrair uma doença ainda pouco conhecida eram constantes e reais. Além disso, a
complexidade da situação dos povos indígenas no Brasil, principalmente no que diz respeito às
questões relacionadas a políticas públicas de saúde também foram apontadas por Magna, que
durante toda sua carreira profissional trabalhou na saúde indígena.

A gente já passou por várias fases também na questão da saúde indígena em todo
Brasil. Eu venho da época da Funasa15, eu trabalhei na Funasa. Quando eu trabalhei
em São Paulo era na época da Funasa. Então, assim, era uma luta, era diferente, mas
a gente tinha um reconhecimento que a gente falava “não, é trabalhador indígena,

15
Fundação Nacional de Saúde.
32
trabalha na saúde indígena, vamos fazer isso pelos indígenas”. E a gente ainda via
coisas sobre dar algum benefício, a questão das terras, de fazer a homologação,
demarcação e tudo. A gente ainda tinha esperança, a gente ainda via isso. Com esse
governo agora, no momento que ele entrou a gente já sabia que isso não ia acontecer.
E que isso podia sim se agravar a cada dia. A imunidade da população indígena já é
muito mais grave do que a imunidade do outro que não é indígena. Com essa
pandemia, se agravou muito mais essa situação. A gente teve territórios, a gente teve
populações onde teve muitas perdas, por conta do descaso do ministério, por conta
do descaso do governo que não deu a devida atenção. (Trecho da entrevista ocorrida
em 15.02.2021).

Era então fevereiro de 2021 quando conversamos. Depois disso, a situação só se tornaria
pior com a chegada da chamada “segunda onda” da covid-19. Dados atuais (janeiro de 2022)
da APIB - Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros - mostram que, no Brasil, 162 povos
foram afetados, 62.903 indígenas foram contaminados e 1248 morreram devido à infecção pelo
novo coronavírus.

Voltando às entrevistas, percebi que o roteiro precisava mesmo de alguns ajustes para
“quando a pesquisa começasse de fato”. Magna me enviou o contato de Geisa, a enfermeira
responsável pela coordenação da saúde indígena em Massacará. Geisa interrompeu suas férias
para me presentear com uma leitura técnica de como foram operacionalizadas as ações de
proteção aos Kaimbé contra o vírus e de sua felicidade e satisfação em poder levar a vacina à
aldeia, que até aquele momento só havia confirmado um caso de infecção por covid-19 e
nenhum óbito pela doença. Essas três entrevistas aconteceram entre os dias 04 de fevereiro e
02 de março de 2021 e acabaram servindo para fazer os ajustes necessários não só no roteiro
das entrevistas, mas na visão que eu tinha do projeto como um todo. E quanto mais eu avançava
nas transcrições, mais coisa eu descobria, deslumbrada pela potencialidade criativa despertada
pela etnografia. No entanto, ainda me sentia um pouco desconfortável por estar fazendo tudo
isso de maneira remota.

Esse período exploratório também me trouxe outra grata surpresa. Tive a oportunidade
de conversar com a Dra. Alva Almeida (2020a,2020b), uma das principais autoras que eu li
desde a elaboração do projeto. Alva trabalha com uma temática muito específica e muito cara
à enfermagem brasileira: o recorte racial que a profissão tem no Brasil. Esse recorte, que está
diretamente implicado na própria estratificação da enfermagem entre técnicas, enfermeiras e
auxiliares, fica em segundo plano muitas vezes, visto que o gênero é o marcador mais óbvio.
No entanto, do alto de suas décadas de experiência no SUS e de sua vivência na universidade,
33
Almeida (2020) trouxe categorias riquíssimas que me fizeram pensar sobre meu próprio lugar
como mulher negra no âmbito acadêmico, pois quem estava na tela diante dos meus olhos era
uma preta doutora.

Essas experiências iniciais já moldadas pelo projeto novo de pesquisa me trouxeram


grandes contribuições, principalmente com relação ao roteiro e à forma como eu conduziria
uma entrevista sozinha. Além disso, todo o trabalho de transcrição e de análise dos dados
trazidos pelas minhas interlocutoras também foi fundamental para que eu entendesse toda a
dinâmica em torno dessas questões mais práticas, mas também a complexidade dos contextos
históricos, étnicos e políticos a partir dos quais elas me relataram suas experiências. Mas mesmo
depois dessa experiência, passei a me questionar como seria possível agradecer a
disponibilidade e a atenção dessas quatro mulheres para comigo, que era uma completa
desconhecida e apenas mais um avatar no meio de tantos e tantos.

Demorei um pouco - por causa das outras demandas da vida acadêmica - para conseguir
dar esse retorno, mas consegui, novamente com as contribuições de Vanuza, Geisa e Magna,
escrever um artigo, que foi submetido a um periódico na área de antropologia, e está aguardando
avaliação. Se será publicado ou não, ainda não sei, mas pude perceber a empolgação com que
elas receberam a proposta e foram sugerindo modificações quando necessário. Todas fizeram
questão de que seus nomes verdadeiros aparecessem no artigo. Esse último ponto me fez pensar
também na questão do reconhecimento que nossos trabalhos podem proporcionar aos nossos
interlocutores.

1.3. As entrevistas
A “fome de campo”, como passei a nomear a angústia e confusão causada pela
impossibilidade de não realizar trabalho de campo presencial, só cessou depois da primeira
entrevista após aquela que passou a ser a primeira etapa do trabalho de campo, marcada por um
enfoque centrado na etnicidade. Roteiro estruturado, combinação prévia e um quase completo
desconhecimento de quem era minha interlocutora. Não sabia onde trabalhava nem há quanto
tempo, apenas que era da área de enfermagem, visto que os acordos prévios e a própria
indicação da interlocutora colocavam essa condição. O estranhamento inicial em conversar com
alguém desconhecido por chamada de vídeo, justamente num momento em que esse tipo de
comunicação passou a compor a intimidade das pessoas. Iniciada a gravação, conforme já

34
havíamos acordado via Whatsapp, e explicados os termos éticos de condução da entrevista,
começamos por questões óbvias em torno da vida de minha interlocutora.
Antes de discorrer sobre a realização das entrevistas, apresento de maneira breve o perfil
de minhas interlocutoras, que, conforme informações posteriores, trabalham em três serviços
de atendimento hospitalar diferentes, a saber, uma UTI neonatal de um hospital da rede pública,
uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) também da rede pública e um hospital privado.
Todas elas, e ele, moram em João Pessoa, no estado da Paraíba. A primeira delas, Fernanda16,
formou-se como técnica em enfermagem em 1999 e trabalha há 21 anos em setores de terapia
intensiva. Depois de ingressar no serviço público federal e de adquirir a estabilidade
profissional, Fernanda pode cursar o superior em enfermagem, e posteriormente especialização
e mestrado também em terapia intensiva. Atualmente ela trabalha na UTI neonatal de um
hospital público federal. Fernanda vive com os filhos, um menino com seis anos e uma menina
com doze, e também participa ativamente do cuidado com seus pais, já idosos. Paloma, que
fora indicada por Fernanda, também trabalha no mesmo setor desde 2004 e, atualmente, divide
seus horários também com o setor de obstetrícia do mesmo hospital. Hoje, aos 49 anos de idade,
ela mora com o marido, pois os filhos já são maiores e não moram mais na casa dos pais.

Marcelo, um jovem de 27 e atualmente aluno de doutorado em enfermagem, mora com


seu companheiro e trabalha há cerca de 5 anos no setor de pediatria de uma Unidade de Pronto-
Atendimento. A inspiração para seguir carreira na área de enfermagem veio de sua irmã mais
velha, Cíntia, 32 anos, parda, que começou sua carreira como técnica de enfermagem e trabalha
há 12 anos nessa função, e hoje, já com nível superior completo na área, atua ao lado de seu
irmão na UPA. Atualmente, ela permanece morando na casa de seus pais.

Luciana tem 30 anos, se identifica como parda, é graduada em enfermagem desde 2015
e conta que a pandemia e sua experiência pessoal de adoecimento pela Covid-19 foram
decisivas para dar um passo importante em seu relacionamento. Hoje ela mora com sua
companheira, que é médica, e não poupou cuidados nesse momento de incertezas. Trabalhando
no setor pediátrico da UPA há pouco mais de dois anos, ela também iniciou seus estudos como
técnica, vindo a cursar o superior posteriormente.

Bárbara tem 25 anos e é a mais jovem das entrevistadas. Mulher negra, trabalha como
técnica em enfermagem no setor de pediatria da UPA. Ela também possui nível superior
completo em enfermagem e atualmente mora com seus pais. Da mais nova à mais experiente

16
Todos os nomes utilizados são fictícios.
35
de todas, Zélia, 35 anos, se identifica como parda e é graduada em enfermagem há 10 anos. Ela
se divide entre a atuação como técnica em enfermagem no setor pediátrico da UPA e seu
emprego na mesma função numa UBS. Com nível superior completo em enfermagem e 15 anos
de experiência, ela mora atualmente com seu marido, que é policial militar.

Finalmente, Alice, 28 anos, enfermeira. Depois de algumas experiências nos setores de


trauma e infectologia em hospitais da rede pública, atualmente ela trabalha como enfermeira
em um hospital privado, pois abdicou de um emprego público por causa das demandas do
mestrado em enfermagem que hoje está cursando. Ela mora com seu esposo, que é guarda
municipal.

Voltando, então, à primeira entrevista, Fernanda trabalha numa UTI neonatal de um


hospital universitário federal. Em que momento, com pandemia ou sem pandemia, seria seguro,
principalmente para os recém-nascidos, fazer pesquisa presencialmente em setores de alto risco
como esse? Mesmo sabendo dessas possibilidades e em quais condições isso se deu, o
ineditismo da situação prevalecia como principal determinante do desenho metodológico de
pesquisa. Ainda bastante centrada no “eu-pesquisadora que precisava analisar um objeto de
estudo”, esquecia que as narrativas de quem estava ouvindo eram potencialmente mais ricas do
que as barreiras, físicas e temporais, de qualquer observação participante. E que essas histórias
precisavam ser contadas, mas não por mim, apenas. Além disso, dada a centralidade da
enfermagem na pandemia, a análise dessas entrevistas deixaria mais clara a dinâmica que nos
levou a quase 570.000 mil mortos notificados17, dentre eles, 771 profissionais de
enfermagem18.
Na segunda entrevista, o segundo ponto de inflexão. Eu não estava lidando apenas com
uma categoria profissional com determinantes sociais específicos, eu estava lidando com uma
ciência de viés empírico bastante explícito, mas teoricamente densa. Nesse sentido e conforme
já expliquei acima, a relação entre cuidado e enfermagem era mais que uma questão de gênero,
raça, classe etc., o que estava em questão era uma relação de poder, logicamente determinada
por esses marcadores, mas que acontecia no âmbito das práticas e dos saberes científicos.
Marcelo, meu segundo interlocutor, por ser enfermeiro e professor universitário, deixou isso

17
Dados do Consórcio Nacional de Veículos de Imprensa até 14 de agosto de 2021. Disponível em:
<https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/08/13/brasil-registra-menor-media-movel-de-mortes-
por-covid-desde-janeiro-media-de-casos-fica-abaixo-de-30-mil-apos-mais-de-8-meses.ghtml>. Acesso em 14 de
agosto de 2021.
18
Dados do COFEN de maio de 2021. Até o momento, não houve nenhuma outra divulgação sobre o número, que
vinha apresentando tendência de queda até então. Disponível em:<http://www.cofen.gov.br/mortes-entre-
profissionais-de-enfermagem-por-covid-19-cai-71-em-abril_86775.html>. Acesso em 14 de agosto de 2021.
36
muito claro na entrevista, ainda que seja preciso pontuar também que seu lugar no meio dessas
relações de poder - homem, jovem e pardo - também tenha sido determinante para isso.
A terceira entrevista, o terceiro ponto de inflexão. Minha interlocutora, Carolina, uma
jovem enfermeira, trabalha num hospital da rede privada. Essa condição iluminou um problema
sobre o qual eu ainda não tinha certeza se traria na dissertação, a saber, a questão da gestão da
pandemia. Inicialmente, a observação dos fatos noticiados sobre a forma como estava sendo
gerida a pandemia no Brasil despertaram bastante interesse. No entanto, sabia que eram
questões muito densas e que demandavam um tempo e espaço que talvez eu não tivesse. Mas
estou cada dia mais convencida de que o grande desafio da prática etnográfica é mesmo o que
fazer com os dados, pois a retirada de qualquer peça pode dar margem a muitas interpretações
do quebra-cabeças que estamos montando quando fazemos antropologia. Era, portanto, algo
que precisava ser explicado e detalhado da melhor maneira possível, ainda mais em tempos de
ataques diretos e significativos à saúde pública no Brasil.
A partir dessas três entrevistas iniciais, indicadas por uma “semente” (ECKERT,
ROCHA, 2008; VINUTO, 2014) começaria então a aplicação da metodologia da “bola de neve”
(VINUTO, 2014).

A execução da amostragem em bola de neve se constrói da seguinte maneira: para o


pontapé inicial, lança-se mão de documentos e/ou informantes-chaves, nomeados
como sementes, a fim de localizar algumas pessoas com o perfil necessário para a
pesquisa, dentro da população geral. Isso acontece porque uma amostra probabilística
inicial é impossível ou impraticável, e assim as sementes ajudam o pesquisador a
iniciar seus contatos e a tatear o grupo a ser pesquisado. Em seguida, solicita-se que
as pessoas indicadas pelas sementes indiquem novos contatos com as características
desejadas, a partir de sua própria rede pessoal, e assim sucessivamente e, dessa forma,
o quadro de amostragem pode crescer a cada entrevista, caso seja do interesse do
pesquisador. Eventualmente o quadro de amostragem torna-se saturado, ou seja, não
há novos nomes oferecidos ou os nomes encontrados não trazem informações novas
ao quadro de análise. (VINUTO, 2014, p. 203).

Ao final de cada entrevista, perguntei a cada uma delas se não teria algum outro
profissional para indicar. Em caso positivo, deixei a possibilidade para repassar o meu contato
pessoal ou que elas me passassem o contato do/a indicado/a. Percebi que a bola de neve era útil
sobretudo para preencher “o espaço”, além da necessidade óbvia da continuidade das
entrevistas. Mas para conhecer melhor uma UTI neonatal, uma UPA e um hospital privado,
eram necessários mais detalhes sobre o espaço, estes só poderiam vir de outras pessoas, outras
percepções, outras leituras.
A primeira entrevistada indicou uma de suas colegas de setor, Paloma. A colega, que se
manteve afastada do serviço durante boa parte do ano de 2020 em virtude de um mestrado,

37
trouxe detalhes muito importantes para pensar a temporalidade da pandemia. De Marcelo,
vieram dezesseis indicações de contato. Lembro que, ao me encaminhar os nomes e números
de seus colegas, ele escreveu: “É gente, viu! KKKKK”. Respondi com um “riso” recíproco e
iniciei a busca por mais contatos. Das indicadas, quatro logo aceitaram participar. A terceira
das primeiras entrevistas, Carolina, pediu que eu escrevesse um pequeno texto (Ap 2),
explicando do que se tratava a pesquisa, que seria compartilhado no grupo de Whatsapp de suas
colegas de trabalho, mas não fui procurada nem recebi o contato de nenhuma delas.
Esses contatos secundários me levaram a questionar meu comportamento enquanto
usuária do Whatsapp. A busca “cega” por mais entrevistas, busca esta feita em razão do tempo
que eu tinha para concluir o trabalho de campo dentro do cronograma previsto em tempos pré-
pandêmicos, acabou despertando em mim um lado que eu não conhecia. De uma hora para outra
eu, que sempre usei o Whatsapp apenas com pessoas próximas e procurava ao máximo não
repassar meu contato, comecei a enviar mensagens para pessoas desconhecidas perguntando se
elas poderiam participar de uma entrevista para minha pesquisa. E se fosse o contrário, eu
aceitaria? Provavelmente, não.
As três primeiras pessoas entrevistadas foram intermediadas e já sabiam do que se
tratava quando fiz o contato com elas, visto que a intervenção de minha orientadora trazia certa
“autoridade” e respaldo de que o contato era verídico e dizia respeito a uma pesquisa séria.
Esses contatos foram intermediados por uma professora do departamento de Enfermagem da
UFPB. Desde o início da pandemia, a restrição do contato às plataformas virtuais certamente
“naturalizou” determinados comportamentos como este. De uma hora para outra, meu contato
passou a circular pelo whatsapp do pessoal do supermercado, da padaria, da farmácia e de
outros lugares que antes eu frequentava presencialmente e quase sem me identificar pelo nome.
Mas voltando aos contatos, das dezesseis indicações apenas quatro aceitaram. Outras
me pediram para falar outra hora, outras simplesmente visualizaram e não responderam e outras
eu nunca vou saber se viram minha mensagem porque a notificação característica estava
desativada. Mas dentre tantos “nãos”, um veio justificado. Agradecendo pelo contato e
parabenizando pelo tema escolhido, a potencial interlocutora me revelou que não poderia
contribuir no momento pois dois dias atrás havia perdido um parente, morto por covid-19.
Bastante sem graça, desejei meus sentimentos pela perda e pedi desculpas pelo contato. Esse
fato desencadeou duas coisas. A primeira é que eu passei quase uma semana para voltar a
contactar as pessoas que haviam sido indicadas, pois havia feito uma lista para tentar
administrar o pouco tempo que eu tinha à disponibilidade das pessoas que aceitassem participar
da entrevista. A segunda questão dizia respeito ao roteiro da entrevista, pois havia o dilema
38
ético sobre a possibilidade de despertar memórias específicas. Voltei a fazer os contatos ainda
com bastante receio. Mas os prazos, de novo eles, me pressionavam cada vez mais.
Ao todo foram oito entrevistas, realizadas através da plataforma Google Meet entre abril
e maio de 2021 e gravadas com o consentimento das entrevistadas. As entrevistas me levaram
a três lugares: uma UTI neonatal, uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) e o setor covid
de um hospital da rede privada. A organização dos subtítulos subsequentes está baseada nesses
três lugares, já que as entrevistas não foram feitas em sequência cronológica, mas quando havia
disponibilidade das minhas interlocutoras.

Ocorrendo praticamente em paralelo às entrevistas, a metodologia que havia planejado


desde o projeto acabou não funcionando.O primeiro passo seria a observação das postagens e
dinâmica de um grupo sobre a profissão de enfermagem no Facebook. Apesar das diversas
discussões sobre os acontecimentos em torno da pandemia que eram levantadas pelos
integrantes do grupo, a pretensão de elaborar uma linha do tempo foi ficando cada vez mais
distante, pois em certo momento as postagens passaram a debater mais questões sobre a
profissão, as condições de trabalho etc. Além disso, também pude observar que uma parte
significativa das pessoas que faziam postagens tinha mais interesse em conhecer a profissão
para posteriormente procurar os cursos de qualificação. Mas esse é um dado que diz muito sobre
o protagonismo da profissão de enfermagem que veio com a pandemia. Se de um lado crescia
o desemprego no país, de outro este foi um dos setores em que a falta de profissionais
qualificados predominou principalmente nos momentos de maior demanda por internações e
cuidados. Um evento de dimensões catastróficas para a saúde pública do Brasil e que, como
fato social total (MAUSS, 2017) estava relacionado com outras questões centrais, como era o
desemprego, trouxe a necessidade de um cuidado especializado para o centro do debate
profissional. Além disso, as altas taxas de mortalidade e contaminação de profissionais de
enfermagem também podem ser apontadas como fatores decisivos para o déficit de mão-de-
obra qualificada para atender à emergência sanitária.

O segundo passo metodológico da pesquisa seria o compartilhamento de um formulário


(Apêndice 2) com questões básicas que permitiria traçar um perfil do grupo que estava sendo
observado. Esta era a única forma que eu tinha em mente para acessar as interlocutoras que
tivessem interesse em contribuir com a etapa das entrevistas. Não deu certo. A administradora
do grupo autorizou o compartilhamento do formulário que ficou aberto para respostas durante
cerca de uma semana, não tendo obtido nenhuma resposta. Paralelamente, minha orientadora
articulava os primeiros contatos com enfermeiras através da referida colega também professora
39
universitária. Foi nesse momento que conseguimos os três primeiros contatos. Recebi os
contatos, que já estavam sabendo previamente do que a pesquisa se tratava basicamente, e
agendamos, via Whatsapp, as três primeiras entrevistas, como já relatei.

Mas voltando ao que deu certo, finalmente, depois de oito entrevistas, não recebi mais
nenhuma indicação nem resposta dos contatos que fiz e percebi que essa etapa da pesquisa já
estava saturada. A análise inicial dos dados mostrou que a “bola de neve” aplicada na
metodologia tinha limitações, pois as entrevistas ficaram restritas aos ambientes de trabalho das
três pessoas inicialmente entrevistadas. No entanto, percebo que essa limitação diz respeito à
própria temática sobre a atuação das enfermeiras na linha de frente da pandemia, pois, mesmo
que muitas possuíssem outro emprego, nestes, elas não cuidavam de pacientes com covid-19,
seja por opção própria ou determinação superior.

Ainda é necessário salientar que as entrevistas acabaram ficando restritas a uma rede de
colegas de trabalho dos espaços, fato que reordenou algumas pretensões iniciais contidas no
projeto de pesquisa, como a questão da raça, diante do grande percentual de mulheres negras
na enfermagem brasileira (ALMEIDA, 2020), nesse sentido, o perfil étnico-racial das
entrevistadas não é representativo da categoria profissional. Outra limitação da “bola de neve”
diz respeito ao fato de que o primeiro grupo de entrevistadas, que acabou direcionando a
pesquisa para os três espaços já apresentados, é composto por estudantes de pós-graduação na
área da enfermagem. Apesar dessas limitações e da necessidade de reorganizar alguns pontos
do projeto de pesquisa, as entrevistas são bastante representativas quando analisada a partir dos
dados estatísticos do COFEN (2017) que mostram a predominância de mulheres na profissão
de enfermagem (mais de 80% da categoria), visto que das oito entrevistas, sete foram com
mulheres e seis com profissionais de que atuam como técnicas em enfermagem (apesar da
formação superior), estrato que corresponde à maioria da profissão.

1.4. “Afasta, covid!” - A pandemia de perto e de dentro

Um evento de ordem pessoal me colocou exatamente dentro de um hospital referência


no tratamento de covid. Minha avó materna sofreu um AVC no dia 05 de dezembro de 2020 e
foi levada a um hospital público do Recife. Magnani (2002) ao apontar a necessidade do resgate
de um olhar “de perto e de dentro” (MAGNANI, 2002, p. 17) na etnografia, também entende
que

40
(...)o método etnográfico não se confunde nem se reduz a uma técnica; pode usar ou
servir-se de várias, conforme as circunstâncias de cada pesquisa; ele é antes um modo
de acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos. Ademais, não é a
obsessão pelos detalhes que caracteriza a etnografia, mas a atenção que se lhes dá: em
algum momento, os fragmentos podem arranjar-se num todo que oferece a pista para
um novo entendimento. (MAGNANI, 2002. p. 17).

Para descrever como esse acontecimento repercutiu na pesquisa, inclusive do ponto de


vista metodológico, origem de minhas principais angústias e questionamentos, o diário de
campo foi a ferramenta mais adequada, dada a sua natureza mais subjetiva e temporal, que
permitiu rearranjar as informações que eu já tinha e que fundamentavam o desenho
metodológico inicial, com eventos de ordem mais local, além de encerrar de uma vez por toda
a necessidade de provar19 que aquilo que eu planejava fazer era de fato um etnografia, pois,
aquelas profissionais que encontrei durante a passagem desse acontecimento, tinham muito a
dizer sobre o que estava acontecendo com o Brasil e que isso, de alguma forma, precisava ficar
registrado.

Noite de domingo em Goiana. Ontem eu vi a pandemia sem máscara. Acordei no sábado de manhã
com minha mãe chamando. Estava acontecendo alguma coisa com minha avó. Fomos pra lá. Minha
avó falou que estava ficando com um lado do corpo todo dormente, perdendo a sensibilidade. Não
conseguia mais levantar, então eu e um dos meus primos a levamos para a UPA, ainda em Goiana.
Chegando lá, minha tia entrou com ela na emergência. Eu não tinha pisado num hospital desde que
a pandemia começou, mas todo mundo que chegava na UPA estava com suspeita de covid. Os olhos
denunciavam, as máscaras escondem pouco. Tava todo mundo com medo e eu mais ainda pelo
contexto. Logo, minha tia saiu avisando que minha avó estava em uma das enfermarias e que ela
seria transferida para Recife, pois a UPA não tinha um equipamento de ressonância magnética.
Avisamos que conseguiríamos providenciar o exame na rede privada, mas a médica alegou que o
caso era de avc e precisava de um neurologista, que também não tinha na UPA. Sem saber o quanto
toda aquela pressão podia me afetar, acabei aceitando ir com minha avó na ambulância até Recife.
Voltei para casa pra pegar umas coisas. Chegando na UPA, o motorista já estava aprontando a
ambulância para nos levar e avisou que uma enfermeira ia conosco. Conversei brevemente com

19
Agora vejo que essa necessidade foi muito provocada por “fantasmas malinowskianos” e pela inexperiência
teórica com a disciplina. Acerca disso, Allebrandt et al (2020) nos lembra que é preciso considerar especificidades
que caracterizam a própria pessoa do “antropólogo”, pois esse não é apenas um instrumento de fazer ciência, mas
uma pessoa que, como todas as demais, é perpassado por marcadores mais subjetivos, como classe, raça e gênero.
Em diálogo com Boneti e Fleischer (2007), Allebrandt et al (2020) destaca que “(...)alguns aspectos derivados da
romantização de narrativas de trabalho de campo “malinowskiano” chamam atenção para a criação de um
estereótipo do ‘antropólogo herói’. “O antropólogo” seria aquela pesquisadora que corre riscos em campo. O
extremo dessa romantização leva neófitas e também pesquisadoras experientes a acreditarem que a receita de uma
experiência etnográfica válida esteja alocada nos riscos, conflitos e dificuldades vividas em campo”
(ALLEBRANDT et al, 2020, p. 106).

41
outras enfermeiras enquanto aguardava o processo. Perguntei como estava a questão da covid por
lá e ela disse que os jovens eram os que mais procuravam a unidade que, segundo ela, era o “centro
pra covid” na cidade. Finalmente chegou a hora. Primeira vez andando de ambulância.
Desconfortante para mim por ver minha avó naquele estado e ainda mais desconfortante pra ela,
que foi o caminho inteiro acordada.

Chegamos no Hospital Pelópidas da Silveira por volta das 14h. Na ambulância, ouvi o motorista
comentar com a enfermeira que “a entrada do covid era do outro lado”. Eu e a enfermeira
aguardamos junto à maca em que estava a minha avó na recepção do hospital, para a triagem.
Cerca de 30 minutos depois que chegamos, minha avó fez um eletrocardiograma na triagem e foi
encaminhada para sala ao lado, onde um neurologista viria atendê-la. O médico chegou, fez
algumas perguntas, pediu que ela levantasse as pernas (uma de cada vez), fez algumas anotações e
disse: “Ela vai ter que ficar internada, viu!”. Entrei em pânico. Até aquele momento, a presença da
enfermeira e a possibilidade de que seria apenas uma ressonância tinha feito o choro passar, mas
aquilo mudava tudo.

A enfermeira pegou na minha mão e disse que só iria embora quando minha avó estivesse na
enfermaria. Quando entramos no primeiro corredor após a triagem, algumas macas já se
acumulavam pelo caminho e foi difícil passar, eu e ela empurrando a maca. Não veio maqueiro.
Chegando na sala, a enfermeira pediu que eu tirasse os brincos da minha avó para o exame.
Terminado o exame, veio a pior parte.

Enfermaria 3. Só pessoas com problemas neurológicos semelhantes. Até onde sabia, o hospital era
referência em cardiologia e neurologia, apenas. Mas por causa da pandemia, o andar de cima
estava restrito a pacientes com covid. Deixei minha avó e a enfermeira na porta da enfermaria
porque não tinha mais leito nem lugar para maca. A enfermeira do hospital me disse que, como eu
era a acompanhante, teria que pegar uma pulseira e fazer a identificação na recepção. Ela me
indicou o caminho e quando eu virei no corredor à esquerda, em direção à recepção, os elevadores
estavam com fitas amarelas indicando restrições e o aviso “INTERDITADO! APENAS COVID!”.
Peguei a pulseira na recepção e voltei pra enfermaria pelo corredor contrário, não sei se pra evitar
passar pelos elevadores. Depois, peguei as coisas que tinha trazido e fui para o setor onde ficam
guardados os pertences dos pacientes e acompanhantes. Saindo pela emergência e virando a
esquerda, voce dá de cara com uma passarela que passa pelo estacionamento. Subi as escadas e fui
deixar as coisas lá. A funcionária me informou o que podia levar pro quarto e me entregou uma
sacola plástica transparente. Não podia levar quase nada, nem álcool em gel. Escondi algo por
baixo da blusa, peguei algumas máscaras de tecido e voltei pro quarto. Chegando lá, haviam
baixado a maca onde estava a minha avó, pois, como me explicou o motorista, a maca estava
quebrada e não aguentaria o peso dela. A informação logo foi completada na minha mente. Havia
a possibilidade dela cair.

42
A enfermeira que veio conosco pegou novamente na minha mão - agora, escrevendo, lembro que
ela estava com luvas descartáveis, máscara e touca - e disse: “Vai ficar tudo bem com a sua avó!,
mas agora eu tenho que voltar pra Goiana”.

Minha avó é diabética e não comia desde a manhã. Falou que se sentia mal e pensei que podia ser
hipoglicemia, então fui falar com a enfermeira. Na verdade, era uma das técnicas de enfermagem
que ficavam de um lado pro outro na enfermaria. Ela me mandou falar com a enfermeira-chefe,
uma senhora de uns 40 anos, negra. Como eu podia pensar em pesquisa naquela hora! Sem tirar os
olhos do computador, a enfermeira me disse que o jantar só sairia às 18h e nem 16h tinha dado
ainda. Falei da diabetes e ela disse que estava na ficha, mas que ia tentar falar com a nutricionista.
Não deu em nada. O jantar só ia chegar mesmo às 18h.

Fui até a porta da enfermaria. De repente, as pessoas que estavam em macas pelos corredores
começaram a se afastar - como se houvesse espaço pra isso - e foi aí que eu ouvi: “Afasta! covid!”.
No lado do corredor que dava acesso ao elevador pelo qual eu tinha passado mais cedo uma caixa
retangular de metal vinha apoiada num carrinho e sendo empurrada por um maqueiro. Era ele que
gritava para as pessoas se afastarem. É como se o momento quando ele passou por mim tivesse
ficado fixado na memória. Era um corpo, comprovadamente, com o vírus pela primeira vez na
minha frente. E as pessoas precisavam se afastar, mas como?(Trecho do diário do dia 06.12.2020)

Relendo hoje o diário percebo que diversos elementos já estavam dados nesse episódio:
a superlotação e o completo despreparo dos hospitais diante da avalanche pandêmica; o risco
de contaminação e o estigma relacionado ao corpo morto contaminado do qual teríamos que
nos afastar; a relação de cuidado diretamente relacionada ao gênero e o peso dessa condição; o
trabalho da enfermagem que, mesmo diante do cansaço encontram instantes de acolhimento,
pois entendem que situações como esta deslocam completamente os sujeitos de seus lugares.

No dia seguinte, uma segunda-feira, o estado de saúde da minha avó era estável, mas
ela precisava permanecer no hospital para fazer alguns exames. Voltei a Recife para comprar
uma cadeira de rodas e uma cadeira de banho, pois os médicos já tinham dito que ela precisaria,
visto que provavelmente não voltaria a andar. Aproveitamos para levar objetos pessoais do meu
tio que permanecia lá com ela. Mas a situação mudou. Enquanto estávamos na loja fazendo a
compra das cadeiras, ligaram de Goiana informando que minha avó seria transferida naquele
momento para um hospital com fama de “morredouro” também em Recife. O hospital em que
ela estava não apresentou nenhuma explicação que justificasse a transferência e informou que
os exames solicitados pelo médico do turno anterior não seriam feitos mais. Sabendo da “fama”
desse outro hospital e suspeitando que a transferência seria uma forma de desocupar um leito
da enfermaria, que ficava cada dia mais lotada, decidimos assumir a responsabilidade pela alta

43
e trazê-la de volta pra casa, em Goiana, para que no dia seguinte ela passasse pela avaliação de
um neurologista num hospital privado da cidade.

Nas 4 longas horas que passamos esperando médicos, assistentes sociais e enfermeiras
providenciarem a papelada para assinarmos a alta dela, percebi que o corredor estava ainda mais
abarrotado de macas. E o “afasta, covid” passou algumas vezes enquanto eu estava lá. No tempo
em que esperava, ao lado da cama da minha avó, uma assistente social veio conversar comigo pra
saber se tínhamos certeza de que queríamos realmente a saída dela. Conversamos durante um
tempo, ela me explicou a gravidade do problema, falou que não haveria mais transferência, que
teria sido um erro de alguém da equipe, mas acabou entendendo nossos motivos. Aproveitei para
perguntar porque os caixões passavam por lá. Ela explicou que era o único roteiro possível para o
necrotério. (Trecho do diário de campo de 07.12.2020).

Esse episódio de ordem pessoal acabou sendo bastante significativo para a pesquisa que
à época, dezembro de 2020, estava tentando iniciar, pois o principal problema metodológico, o
fato de não poder “estar lá”, acabou sendo viabilizado de outra forma. Durante o tempo que
permaneci no hospital pude perceber diversos aspectos relacionado à triagem dos doentes,
limitação espacial - os andares superiores do hospital restritos a pacientes com covid-19 -,
manejo dos pacientes que não estavam com covid-19 a fim de “desafogar” as enfermarias e
corredores lotados etc.
Acabei estando lá por tempo suficiente para entender que de fato não era possível
permanecer atada a ferramentas metodológicas clássicas, visto que a questão não era
excepcional e limitante apenas para mim enquanto pesquisadora, mas a exaustão das
profissionais certamente limitaria bastante o escopo da pesquisa, caso estivesse realizando as
entrevistas presencialmente, no hospital. Se para mim, que permaneci em casa desde o início
da pandemia, os primeiros sinais do cansaço oriundo da utilização constante das telas para me
comunicar já apareciam, para elas, as entrevistas acabaram sendo um momento de “intervalo”,
de interrupção para refletir sobre como haviam enfrentado esse primeiro ano pandêmico.

44
Capítulo 2 - O cuidado e a enfermagem

(...)como injusta a invisibilidade das mulheres negras na identidade profissional da


área, assim como a coexistência de salários aviltantes, condições precárias de
trabalho, extensa e intensamente negligenciadas, implicando no número absurdo de
adoecimento e mortes, que não foram sequer nomeadas nem homenageadas.
Lamentavelmente esse é o cenário em que a enfermagem brasileira atua
profissionalmente no ano em que a Organização Mundial de Saúde em conjunto com
o Conselho Internacional de Enfermeiros decreta 2020 como o ano da enfermeira e
da parteira, a fim de destacar os impactos do trabalho. (ALMEIDA, 2020).

Durante séculos, enfermagem e cuidado foram articulados de tal forma que muitas vezes
um passou a significar o outro. Entretanto, esta não é uma relação de sinonímia, apesar da
existência de uma relação muito forte entre os termos. Isso porque “cuidado” abrange uma
miríade de sentidos e práticas, a história da enfermagem é marcada por uma constante
necessidade de estabelecimento como um saber científico e de reconhecimento profissional.
Entretanto, ao analisar a relação entre cuidado e enfermagem é necessário considerar as
variáveis que permanecem intrínsecas ou imperceptíveis diante de uma leitura apressada o que
de fato significa. É o que faremos neste capítulo.

2.1 - Considerações sobre as teorias do cuidado


Enquanto a economia não parava (porque não podia parar20), pessoas lotavam as filas
de espera para o recebimento do auxílio emergencial. Enquanto recebiam R$ 600,00 para
sobreviver, a cesta básica aumentava 30% em algumas capitais 21 e atingia seu maior índice
desde 1994 em dezembro de 2020, e o auxílio chegava ao fim22. Enquanto o auxílio cessava,
não tínhamos nenhum plano efetivo para a vacinação em massa, mesmo que as campanhas já
tenham sido iniciadas em diversos países. Esses “enquantos”, sempre emaranhados numa rede
de desigualdades sociais explícitas, nos levaram ao segundo lugar no número de mortes por
covid-19 no mundo.23 Mas insistíamos na busca por enxergar (e eliminar) o vírus invisível e

20
Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2020/03/economia-nao-
pode-parar-diz-bolsonaro-ao-setor-produtivo-brasileiro>. Acesso em 06 de julho de 2021.
21
Disponível em <https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2020/12/07/com-aumento-de-30percent-
em-12-meses-preco-medio-da-cesta-basica-chega-a-r-45543-em-novembro-em-natal.ghtml>. Acesso em 04 de
julho de 2021.
22
O auxílio emergencial foi prorrogado posteriormente, mas com valor reduzido.
23
Os desdobramentos da crise sanitária causada pela pandemia de covid-19 vão além das mortes e infecções
pela doença. Com hospitais lotados por todo o país e o SUS sofrendo cortes recorrentes, os pacientes de doenças
como câncer e doenças renais, que fazem tratamento nos grandes centros hospitalares do país, também foram
prejudicados pelo medo da contaminação. Outro exemplo são os pacientes diabéticos e hipertensos
45
ignorávamos o que estava diante de nós. “O essencial é invisível para os olhos” (SAINT-
EXUPÉRY, 2015, p. 56), nunca foi tanto quanto no Brasil desde 2020. Dentre os invisíveis,
estavam as profissionais de enfermagem24. E 2020, conforme havia decidido a OMS em 2019,
seria o ano da enfermagem no mundo. Mas é preciso ainda considerar alguns determinantes
históricos sobre a profissão. Neste ponto, é importante atentar para as determinações do Código
de Ética dos profissionais de enfermagem no Brasil, resolução nº 311/2017, aprovada pelo
COFEN, que rege a conduta dessas profissionais e traz princípios fundamentais a serem
observados no exercício da profissão:
A enfermagem é uma profissão comprometida com a saúde e a qualidade de vida da
pessoa, família e coletividade.
O profissional de enfermagem atua na promoção, prevenção, recuperação e
reabilitação da saúde, com autonomia e em consonância com os preceitos éticos e
legais.
O profissional de enfermagem participa, como integrante da equipe de saúde, das
ações que visem satisfazer as necessidades de saúde da população e da defesa dos
princípios das políticas públicas de saúde e ambientais, que garantam a universalidade
de acesso aos serviços de saúde, integralidade da assistência, resolutividade,
preservação da autonomia das pessoas, participação da comunidade, hierarquização e
descentralização político-administrativa dos serviços
de saúde.
O profissional de enfermagem respeita a vida, a dignidade e os direitos humanos, em
todas as suas dimensões.
O profissional de enfermagem exerce suas atividades com competência para a
promoção do ser humano na sua integralidade, de acordo com os princípios da ética e
da bioética.

A partir da leitura dessa parte inicial do código de ética da enfermagem é possível


identificar o alinhamento de diversas dessas premissas com aspectos fundamentais para a
construção de uma sociedade democrática e tem na enfermeira uma profissional-chave para
atingir esse objetivo. Conforme já apontamos inicialmente, para Tronto (2020), a ideia de uma
“sociedade do cuidado”, cujo cerne está nas relações interpessoais e no reconhecimento de uma
vulnerabilidade que é compartilhada por todos e todas (ainda que existam pessoas mais
vulneráveis que outras), está atrelada a consequências políticas de uma sociedade democrática.
Entretanto, as particularidades da gestão da pandemia no Brasil acentuaram as
desigualdades e a crise sanitária causada pela Covid-19 pode ser contada de diversas formas.
Uma delas (a escolha desta dissertação) é a partir da perspectiva de quem cuida dos doentes,
como é o caso das profissionais de enfermagem. Mas é impossível buscar esse “conhecimento

acompanhados pela atenção básica - ferramenta subutilizada na maior parte do país num momento tão crucial
como esse - que teve o funcionamento suspenso ou reduzido.
24
Nesta dissertação, toda referência às profissionais de enfermagem aparecerá com desinência no gênero
feminino, pois, conforme informações do próprio COFEN, 84% da enfermagem brasileira é formada por
mulheres.
46
venenoso”25 (DAS, 2011, p. 35) sem passarmos por algumas discussões acerca dos marcadores
de raça e gênero e sua relação no exercício da profissão, pois, o gênero sempre foi determinante
na constituição do perfil profissional neste caso. No entanto, a relação entre raça e enfermagem
até hoje é pouco discutida no país, como pode ser observado pela escassez de trabalhos sobre
o tema.
O exército que protegeria e cuidaria da sociedade brasileira tinha o rosto de mulheres
negras. A dimensão sociológica do cuidado (CONTATORE, MALFITANO, BARROS, 2018),
que é bastante restrita ao campo da saúde, inscreve nos corpos dessas mulheres a marca de uma
responsabilidade que deveria ser compartilhada por todos os indivíduos, afinal, o cuidado é
relacional (TRONTO, 2007, p. 5) e depende de todos e todas.
Nesse sentido, é importante analisar algumas especificações da vasta literatura
socioantropológica acerca do conceito de cuidado. Conforme apontam Longhi e Mon (2020),
O cuidado tem sido objeto de estudos empíricos e teóricos em várias áreas de
conhecimento, como a saúde coletiva, a psicologia, a enfermagem, a filosofia e
também as ciências sociais. Nos diferentes campos de saber, revela-se uma
ferramenta eficiente, que nos ajuda a problematizar as fronteiras entre público e
privado e a incrementar discussões sobre a divisão sexual do trabalho na sociedade
ocidental contemporânea. A antropologia, em especial, tem se mostrado um
campo fértil e potencialmente rico para o aprofundamento destas discussões. A
etnografia possibilita adentrarmos nas relações cotidianas e nos microespaços,
permitindo que conheçamos as estratégias, os recursos e o gerenciamento do tempo,
nas práticas do cuidado. É por meio do olhar minucioso da antropologia que podemos
perceber como operam as relações de poder, as lógicas morais e as hierarquizações
construídas nas negociações que definem quem cuida de quem, quem deve cuidar,
quem merece ser cuidado;enfim, qual é a dinâmica social que predomina. (LONGHI
& MON, 2020, p. 12-13).
Hirata e Guimarães (2012) atentam para as várias facetas que adquire o trabalho do care,
características inerentes à própria condição polissêmica do conceito. Ainda de acordo com as
autoras, é possível apontar algumas variáveis na análise desse tipo de trabalho, como aspectos
econômicos, sociais ou de parentesco, com espaço para a ocorrência concomitante ou
prevalente de algum deles a depender do caso concreto. Finalmente, acerca dos aspectos de
gênero nitidamente reconhecidos no caso do trabalho do care, as autoras apontam para a
indissociabilidade entre aspectos desse tipo de trabalho.

25
A expressão “conhecimento venenoso” é utilizada por Das (2011) para se referir a forma como as mulheres
indianas vítimas de violência durante o período da Partição lidavam com os traumas sofridos. Grosso modo,
trata-se do artifício de utilizar metáforas e outras figuras de linguagem ao narrar essas experiências para
silenciar, principalmente para si próprias, a narração detalhada da violência.
47
A relação entre o care remunerado e o care não remunerado (o dos membros da
família) também deve ser melhor apreendida; ela desafia as nossas análises, haja vista
que a fronteira entre ambas é por vezes bastante tênue. O amor, o afeto, as emoções
não parecem ser do domínio exclusivo das famílias, do mesmo modo que o cuidado,
o fazer, a técnica não parecem ser do domínio exclusivo das "cuidadoras", das
"acompanhantes", das "auxiliares" remuneradas. O trabalho de care (...) é ao mesmo
tempo trabalho emocional e trabalho material, técnico. Nele são indissociáveis postura
ética, ação e interação. (HIRATA & GUIMARÃES, 2012, p. 3).
Essas caraterísticas são semelhantes ao que Scott (2020) entende como domínios de
cuidado. Partindo da análise do trabalho do care executado por mães de crianças com a
Síndrome Congênita do Vírus Zika (SCVZ), o antropólogo aponta que o contexto relacional
em que essas relações se desenvolvem é perpassado por situações de subordinação e
dependência que ultrapassam a relação inicial entre as mães e os filhos que vivem com essa
condição. Isso porque o trabalho do care por vezes é dependente da intervenção estatal em seu
sentido mais amplo, envolvendo questões como infraestrutura urbana, apoio adequado ou meios
que resguardem a garantia ao acesso de seguridade social, dentre outros (FLEISCHER &
LIMA, 2020). Entretanto, se analisarmos a partir da opção semântica adotada por Hirata &
Guimarães (2012) em comparação com a proposta de Scott (2020) chegamos a um impasse de
difícil resolução, pois ao mesmo tempo que os domínios asseguram um entendimento mais
concreto acerca das relações envolvidas no âmbito do trabalho do care, o vocábulo “cuidado”,
restringe essa delimitação a aspectos técnicos, científicos e afetivos. Já quando analisamos a
amplitude do conceito de care não posicionamos nosso olhar para a análise de quais os tipos de
relação envolvidos no processo, como faz Scott. Para o desenvolvimento de questões relativas
ao trabalho do cuidado nesta dissertação, optaremos pelo uso de “cuidado” em vez de “care”,
pois entendo que a já constatada impossibilidade de tradução não compromete a amplitude do
conceito em discussão na língua vernácula.
Na seara dessa discussão é possível ainda apontar para a necessidade do estabelecimento
de “linhas de cuidado” (FILICE & HALLAIS, 2015) para viabilizar as ações práticas de
cuidado, pois, “a observação das características particulares de cada campo de atuação é
primordial para criar linhas de cuidado que deem conta das situações demandadas (...)e
garantam autonomia por intermédio do potencial descolonizador do cuidado” (FILICE E
HALLAIS, 2015, p. 1503).
Essa necessidade - completamente dependente da situação em análise no caso concreto,
que aqui é o trabalho das profissionais de enfermagem na pandemia - deriva da presença dos
fatores técnicos, científicos, afetivos e políticos envolvidos na situação que, diante da

48
impossibilidade de delimitação de sua ocorrência, precisam ser considerados no
desenvolvimento das linhas de promoção do cuidado aos pacientes com a doença, seus
familiares e com relação ao próprio autocuidado necessário para com as profissionais.
Especificamente no campo da saúde, Ayres (2009), aponta que o cuidado pode ser
analisado a partir de três perspectivas principais, a saber: a) como categoria ontológica, no
sentido de uma compreensão ontológica e existencial das práticas de cuidado; b) como categoria
genealógica, no sentido foucaultiano da genealogia do cuidado de si e; c) como categoria crítica,
isto é, considerando o cuidado como principal modo de interação prática na saúde. Da junção
dessas três perspectivas surge “o Cuidado 26 como categoria reconstrutiva” (AYRES, 2009, p.
62), apontando para a potencialidade do Cuidado para agregar as práticas técnicas e
assistenciais à vida.
Por tudo o que foi dito, torna-se evidente, no que se refere às tecnologias disponíveis,
a necessidade de superar a restrição àquelas que trabalhem restritamente com uma
racionalidade instruída pelos objetos das ciências biomédicas. Embora estas ciências
ocupem lugar fundamental e insubstituível, pelo tanto que já avançaram na tradução
de demandas de saúde no plano da corporeidade, ao atentarmos à presença do outro
(sujeito) na formulação e execução das intervenções em saúde, precisamos de
conhecimentos que nos instruam também desde outras perspectivas. É assim que a
tradução objetiva das identidades e aspirações dos indivíduos e populações de quem
cuidamos, para além da dimensão corporal realizada pelas ciências biomédicas,
guarda enorme interesse para o Cuidar. (AYRES, 2009, p. 66).

Cabe ainda salientar que o cuidado de pacientes com a covid-19 por parte das
profissionais de enfermagem se encaixa no que Pimenta (2019) entende como “cuidado
perigoso”. Diante da presença de um agente patológico altamente contagioso como o Sars-Cov-
2, cuidar passou a significar também a necessidade de distanciamento e proteção que a todo
momento se sobrepunham não só nas relações entre as profissionais e os pacientes, mas também
nas relações entre elas e as pessoas componentes de seus respectivos núcleos familiares. Mas
ainda assim, “o mesmo cuidado perigoso que matava, contudo, podia trazer a sobrevivência”
(PIMENTA, 2019, p. 181).
A expressão “cuidado perigoso” traz ao debate das teorias do cuidado a dimensão do
perigo e, consequentemente, a do risco, nesse sentido, ao falar dessa dimensão do cuidado nas
práticas profissionais da enfermagem, passamos a considerar essas variáveis em nossa matriz

26
Conforme explica Ayres (2009), “Cuidado” grafado com maiúsculo, no sentido habermasiano de “um ideal
regulador” e unificador das perspectivas anteriores.
49
de análise. Entretanto, diferentemente do que se pode imaginar a priori, os termos não são
sinônimos.
Spink (2020) ao resgatar o significado histórico dessas expressões aponta que no período
pré-moderno os eventos imprevistos oriundos de fenômenos naturais ou conflitos bélicos eram
denominados perigosos, visto que a palavra risco ainda não fazia parte do arcabouço vocabular
das sociedades indo-européias. Posteriormente, o surgimento da era moderna inaugurou a
possibilidade de previsão de eventos futuros a partir do controle de informações por parte dos
Estados- nação. É justamente nessa época que surge a Estatística (Foucault, 2014), ciência que
pretende delimitar com maior precisão a temporalidade dos eventos e, com isso, fomentar ações
para a prevenção de consequências graves de possíveis catástrofes.
De outro lado, o conceito de risco envolve a sofisticação da estatística e seu uso como
ciência do estado. Nunca é demais apontar que a raiz de estatística é status, que em
latim quer dizer estado ou condição. Em seu sentido inicial, a estatística era o ramo
da ciência política que dizia respeito à coleção e classificação de fatos relevantes para
a tarefa administrativa, e é nesse sentido que ela encontra uma primeira função no
governo das populações na Ciência da Polícia dos estados alemães dos séculos XVIII
e XIX (Pasquino, 1991). (SPINK, 2001, p. 1280).

Risco, portanto, passa a estar relacionado com o conhecimento científico, estática,


precisão e, consequentemente, controle; e perigo com a identificação das circunstâncias com
potencialidade para causar eventos futuros indesejáveis. Logo, ao falarmos de “cuidado
perigoso”, estamos em um campo de análise do cuidado que engloba o perigo, mas é preciso
considerar que perigo está inserido no campo de análise do risco, conforme demonstrado na
figura 1:

50
Se tomarmos principalmente a dimensão afetiva do cuidado, a depender da prevalência
desse tipo de cuidado “menos especializado” durante a prática profissional e fora dela,
percebemos que essa característica fez bastante diferença para as minhas interlocutoras, pois
mesmo diante de uma situação muito clara de perigo, havia a necessidade de “permanecer
cuidando” por uma questão de responsabilidade profissional, isto é, de não se eximir de suas
obrigações mesmo cientes dos fatores de risco e dos perigos em questão.
Nas profissões de saúde, o peso do juramento é um fator que precisa ser melhor
analisado. O Juramento de Hipócrates, que já tem mais de 2000 anos, ainda encontra
ressonância no atual código de ética médica brasileiro. Analisando mais especificamente a
questão da enfermagem, o marco documental é o Juramento da Profissão de Fé das Enfermeiras
Brasileiras, de 1925:
Comprometo-me solenemente a servir de todo o coração àqueles cujos cuidados me
forem confiados. (. . .) Trabalharei sempre com fidelidade e obediência para com meus
superiores e peço a Deus que me conceda paciência, benevolência e compreensão, no
santo mistério de cuidar dos que sofrem. (GERMANO et al, 1998 apud PIRES, 1989).
Se compararmos com o atual um trecho do atual juramento da profissão, percebemos
que há poucas mudanças:
Solenemente, na presença de Deus e desta assembleia, juro:
Dedicar minha vida profissional a serviço da humanidade, respeitando a dignidade e
os direitos da pessoa humana, exercendo a enfermagem com consciência e fidelidade;
Guardar os segredos que forem confiados;

51
Respeitar o ser humano desde a concepção até depois da morte;
Não praticar atos que coloquem em risco a integridade física ou psíquica do ser
humano;
Atuar junto à equipe de saúde para o alcance da melhoria do nível de vida da
população;
Manter elevados os ideais de minha profissão, obedecendo os preceitos da ética, da
legalidade e da moral, honrando seu prestígio e suas tradições. (Resolução 99/1998,
COFEN).

Dado o exposto, discutiremos como a profissão de enfermagem foi sendo modificada


ao longo da história e como as principais características advindas dessa formação têm relação
com o trabalho executado por essas profissionais.

2.2. Enfermagem: raça, gênero e subordinação

Foucault (2014), em sua análise acerca do surgimento do hospital e da medicina social


no século XVIII, destaca que a institucionalização da saúde, através da disciplinarização dos
saberes e espaços, marca os lugares da cura e do cuidado no âmbito das estruturas de poder.

A partir do momento em que o hospital é concebido como um instrumento de cura a


distribuição do espaço torna-se um instrumento terapêutico, o médico passa a ser o
principal responsável pela organização hospitalar. [...] A partir de então, a forma do
claustro,. da comunidade religiosa, que tinha servido para organizar o hospital, é
banida em proveito de um espaço que deve ser organizado medicamente.
(FOUCAULT, 2014, p. 186).

A partir dessa perspectiva histórica é possível apontar para o fato de que a enfermagem
reivindicou seu lugar como ciência, buscando na institucionalização, o reconhecimento formal
de suas práticas. A virada empírica, ocorrida no século XIX, operada pela enfermeira inglesa
Florence Nightingale, considerada a fundadora da enfermagem moderna, é certamente o grande
marco histórico dessa busca por reconhecimento. Também é necessário apontar que esta disputa
é, sobretudo, uma questão de gênero.

A história da enfermagem moderna é um marco da luta contra a influência da


dominação masculina na vida social da mulher. Na construção histórica da arte e
ciência do cuidado, as enfermeiras abriram uma possibilidade singular de
emancipação da mulher da tutela masculina, ainda que exaltadas também pela

52
docilidade, e o hospital extensão do lar, que fortalecia a ideia de submissão inerente à
condição feminina. Identificada a partir das qualidades da feminilidade (nem sempre
compatíveis e aceitáveis pelas mulheres, sobretudo, as que negavam a natureza) a
profissionalização via modelo nursing, proposto originalmente por Florence
Nightingale (1820-1910), implicava reconhecer construções discursivas que
esquadrinhavam seus papéis sociais estigmatizando-as. (CAMPOS, 2012, p. 173).

Segundo Araújo (2003), o processo de formação das nurses, como eram chamadas as
enfermeiras formadas a partir do modelo nightingaleano, também fazia parte da própria
reestruturação pela qual passava o sistema de saúde no mundo ocidental no início do século
XX, que conjugava o modelo de assistência caritativa, herdado do cristianismo, com a medicina
científica, de viés positivista. Ainda assim, a profissão de enfermagem até hoje enfrenta
dificuldades em se estabelecer tanto com relação às outras profissões, como até mesmo
enquanto profissão, visto que a falta de reconhecimento, principalmente salarial, é uma das
principais reivindicações da classe27. Abandonado o modelo eclesiástico, que tinha massiva
participação feminina, surge o modelo baseado na disciplina. Mas esse modelo também é
perpassado por pelo menos dois marcadores sociais muito significativos na enfermagem
brasileira, gênero e raça, marcadores sociais que, como veremos, até hoje são determinantes na
profissão.
Conforme resolução nº 609/2019 do Conselho Federal de Enfermagem - COFEN - , a
enfermagem se divide entre enfermeiras, técnicas e auxiliares. E desde sua formação, essas
posições são bem marcadas. As enfermeiras, que possuem nível superior, normalmente ocupam
posições de chefia e liderança das equipes. Já as técnicas e auxiliares, profissionais de nível
médio e profissionalizante, respondem efetivamente pelo cuidado com os doentes.
De acordo com Lima (2011), a reformulação para o modelo de saúde coletiva só surge
no Brasil no final do século XIX. Antes disso, o modelo que prevalecia ainda era protagonizado
por instituições religiosas, que controlavam as chamadas “doenças pestilenciais”. Nesse
escopo, a raça foi definitiva. Segundo Almeida (2020).

27
No Brasil, em meio ao avanço das políticas neoliberais e o sucateamento do sistema público de saúde, as
enfermeiras lutam pela aprovação do PL 2564/2020, que pretende instituir a jornada de 30 horas e o piso salarial
para enfermeiras, técnicas, auxiliares e parteiras. No entanto, com a intervenção do chamado “lobby médico” por
parte de representantes empresariais da área da saúde, o PL 2564/2020 ainda permanece na primeira fase de
tramitação, no Senado Federal, e ainda deve passar pela análise da Câmara dos Deputados, para revisão e,
posteriormente, fica dependendo de sanção presidencial.

53
A população negra permaneceu apartada da prestação de cuidados até meados de
1930, quando a expansão dos serviços de saúde pelo governo desenvolvimentista de
Getúlio Vargas decidiu absorver o contingente de trabalhadores e possibilitou a
ascensão de grupos sociais subalternizados. No Estado de São Paulo, à época da
Revolução Constitucionalista de 1932, foi permitida a inclusão de negros no Exército.
Entre civis e militares anônimos destacam-se as “enfermeiras da Legião Negra”,
mulheres negras, voluntárias, retratadas em cerimônias públicas como “enfermeiras”,
usando símbolos universais do cuidado, dentre as quais se destaca Maria José Barroso,
conhecida como “Maria Soldado”. (ALMEIDA, 2020, p. 2).

Aliás, o caso da formação da enfermeira brasileira é dotado de diversas especificidades,


conforme pudemos observar no trecho acima. Durante a virada epistemológica da formação da
enfermagem brasileira - que fora bastante influenciada pelo modelo norte americano - ainda
que significasse uma possibilidade de emancipação do poder masculino, o perfil da enfermeira
era baseado na eugenia. Para ser uma enfermeira no Brasil do início do século XX, além de ser
mulher, precisava ter um perfil “estética e moralmente aceitável”, ou seja, precisava ser branca,
de classe privilegiada e ter bons modos.

Desse modo, a ideologia que perpassa a enfermagem, o poder estabelecido em seu


seio, as normas que regem a profissão, traçam um perfil da enfermeira que ultrapassa
ao de um ser humano. Somente um ser acima dos mortais seria capaz de tanta
abnegação, humildade, calma, vigilância, previdência e aceitação. Como essas são
qualidades atribuídas ao sexo feminino, o exercício da enfermagem a que ela se
destinava ao mesmo tempo servia para reforçar as desigualdades entre os sexos e
reproduzir as relações de poder na sociedade(...). (PASSOS, 2012, p. 75).

E ainda que algumas coisas tenham mudado com o passar dos tempos, existe um longo
caminho até que essas posições de poder sejam mais igualitárias. A cura é uma responsabilidade
dos homens, e o cuidado, das mulheres. No âmbito dessa discussão ainda cabe ressaltar uma
característica muito importante sobre a diferença entre saúde pública e privada no Brasil.
Segundo Araújo (2003),
Estudos sobre a política de saúde no Brasil demonstraram que foi somente na década
de 60 que se intensificou a privatização da saúde, com ênfase na assistência hospitalar
e curativa, desestimulando portanto as ações de saúde pública ou de caráter
preventivo. A hospitalização fez com que a medicina assumisse a coordenação e o
direcionamento da assistência à saúde, tornando-se definidora de modelos a serem
seguidos pelos demais profissionais da área. (ARAÚJO, 2003, p. 70).

54
Um marco histórico fundamental foi o fim dos governos militares e a reestruturação da
democracia no Brasil, movimento que culminou com a instalação do Sistema Único de Saúde
- o SUS - na década de 1990. De acordo com Scorel (2005), após a conclusão e aprovação da
Constituição de 1988, a chamada “constituição cidadã”, diversos setores organizados da
sociedade reivindicaram a concretização do artigo 196 da magna carta, que garante a saúde
como “direito de todos e dever do Estado”. Entretanto, o artigo traz uma norma muito vasta em
que há clara necessidade de regulamentação, esta feita através de lei específica.

Ao longo de 1989, as negociações se concentravam em torno da lei complementar que


daria bases operacionais à reforma. Tanto o II Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva
quanto o III Congresso Paulista de Saúde Pública, contribuíram com a discussão sobre
metodologia e ações operacionais para o SUS. Em 1989 é realizada a primeira eleição
direta para presidente da República em quase trinta anos. Fernando Collor de Mello,
candidato que reúne as forças conservadoras toma posse em janeiro de 1990. Nesse
período os reformistas puderam contribuir efetivamente no projeto de formulação da
Lei Orgânica da Saúde. Entretanto, o LOS 8.080, promulgada pelo governo Collor,
sofreria uma grande quantidade de vetos. Foi nessa conjuntura que teria início a
construção do SUS. (SCOREL, NASCIMENTO & EDLER, 2005 p. 80-81).

Os desdobramentos da crise no governo Collor que acabaram levando o presidente ao


impeachment em 1992 também impactaram na implantação do SUS. Somente em agosto de
1992, um mês antes do início do processo de afastamento de Collor, é realizada a 9º Conferência
Nacional de Saúde, prevista inicialmente para 1990 (SCOREL & BLOCH, 2005). A partir de
então, as políticas públicas no âmbito da saúde adquiriram um viés municipalista, isto é,
baseado na descentralização dessas políticas que anteriormente estavam concentradas no
INAMPS - Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social. Nesse sentido, a
descentralização das políticas de saúde se insere no modelo de gestão gerencial, cuja principal
finalidade era dar mais fluidez e eficácia ao atendimento estatal, combatendo os constantes
empecilhos do modelo burocrático de gestão. Apesar de o modelo gerencial não superar
completamente o modelo burocrático, abre caminho para uma participação mais efetiva dos
principais interessados na implantação de um sistema de saúde eficaz, isto é, a população. Essa
participação é garantida por meio de conselhos deliberativos e instrumentos como o orçamento
participativo, adotado principalmente nos municípios brasileiros.
Entretanto, a volta de um governo de claro viés conservador, faz com que o SUS chegue
a 2020, o ano em que começa a pandemia, com um teto de gastos que impede sua expansão e

55
aperfeiçoamento. Ao mesmo tempo em que crescia a demanda pelo sistema, o orçamento da
saúde continuava impedido por esse teto de gastos que supostamente garantiria uma
estabilidade maior às contas públicas e, consequentemente, impediria crimes de
responsabilidade e corrupção28.
No âmbito prático das ações de contenção do problema, a desigualdade gerada por
relações de gênero vêm sendo acentuadas por causa da pandemia. Em março de 2020, a ONU
Mulheres já alertava para o fato de que a pandemia não teria as mesmas consequências para
homens e mulheres, principalmente nos países do sul global.

As mulheres são essenciais na luta contra a pandemia – como socorristas, profissionais


de saúde, voluntárias da comunidade e prestadoras de cuidados, além de serem
desproporcionalmente afetadas pela crise. As mulheres estão na linha de frente da
resposta e assumem custos físicos e emocionais, além de um maior risco de infecção
na resposta à crise. É essencial atender às necessidades imediatas das mulheres na
primeira fila da resposta. (ONU MULHERES, 2020, p.1).

Joan Scott (1995), ao tomar gênero como categoria de análise histórica, entende que
além de ser um fator de diferenciação social entre os sexos, o gênero também é “a forma
primeira de significar relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 88). Como fundamento das
desigualdades de gênero, essas relações de poder acentuaram as diferenças não só de gênero,
mas de raça no Brasil desde o início da pandemia. Aliás, a própria Scott (1995) nos alerta para
a especificidade de lidar com esses dois marcadores, visto que, diferentemente da classe, que
possui um determinante econômico e histórico, raça e gênero não possuem causalidades
específicas.
Mas esse seria mais um fato ignorado pelo governo central e sua política de promoção
do risco, sobre a qual falaremos mais adiante. No meio da dialética entre risco e cuidado, metade
das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém29. A pandemia inscrevia mais uma marca

28
O teto de gastos acabou sendo uma espécie de “cortina de fumaça” para esconder as verdadeiras ações do
governo federal durante a pandemia, o que justifica a própria demora na instalação de um plano de ação contra as
crises sanitária, econômica e social. Com a publicação da lei complementar nº 178 em 13/01/2021. diversas
garantias da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei complementar nº 100/2000 - LRF - foram flexibilizados para
supostamente atender à situação provocada pela pandemia.
29
Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-08/metade-das-mulheres-passou-cuidar-
de-alguem-na-
pandemia#:~:text=Dados%20s%C3%A3o%20das%20organiza%C3%A7%C3%B5es%20G%C3%AAnero%20e
%20N%C3%BAmero%20e%20Sempreviva&text=Metade%20das%20mulheres%20brasileiras%20passou%20a
56
nos corpos dessas mulheres. Mas muitos desses corpos já nascem marcados por outros fatores
históricos, como a raça que, aliás, de acordo com Mbembe (2016), é o que “ torna possível as
funções assassinas do Estado” (MBEMBE, 2016, p. 128) ao regular a distribuição da morte
dentro da lógica do fazer morrer.
Ao analisar as noções de racismo e sexismo na história brasileira, Gonzales (1980)
observa que o mito da democracia racial é aprofundado em momentos importantes para a
cultura do país, como no carnaval, por exemplo. Durante os dias de festa, o corpo da mulher
negra passa a ser intensamente sexualizado e idolatrado. Mas “o outro lado do endeusamento
carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na
empregada doméstica” (GONZALES, 1980, p. 228).
Na empregada doméstica, na cozinheira, na prostituta, na enfermeira, reconhecida ou
não pelo Cadastro Brasileiro de Ocupações (CBO), a servidão é a primeira coisa que vem à
mente quando falamos nas mulheres negras brasileiras. O corpo da mulher negra era novamente
surpreendido pela violência da falta de gestão da pandemia. Carneiro (1995), ao analisar a
diferença presente entre o corpo de uma mulher negra e de uma branca na sociedade brasileira,
constata que o enlace matrimonial entre um negro e uma branca, é um instrumento de ascenção
social, pois, “é verdadeiro que as mulheres negras são socialmente desvalorizadas em todos os
níveis, inclusive esteticamente, como é verdadeiro também que as mulheres brancas constituem
o ideal estético feminino em nossa sociedade” (CARNEIRO, 1995, p. 547). Essa herança
colonial logicamente passa por questões estratégicas dentro da sociedade, como são as relações
de trabalho, que, conforme já discutimos, também marca a formação da enfermeira brasileira.
Em pesquisa realizada no ano de 201830, o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - constatou que 64% dos desempregados naquele momento eram pretos e pardos.
Além disso, a mesma pesquisa constatou que, mesmo com nível de formação superior, os pretos
e pardos têm um salário menor em relação aos brancos e que a maior distância31 na desigualdade
salarial se dá entre homens brancos e mulheres pretas ou pardas, que recebem menos da metade

%20cuidar%20de%20algu%C3%A9m%20na%20pandemia.&text=Entre%20as%20mulheres%20do%20campo,
as%20brancas%20ficou%20em%2046%25.>. Acesso em 05 de julho de 2021.
30
Disponível em: < https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-
noticias/releases/25989-pretos-ou-pardos-estao-mais-escolarizados-mas-desigualdade-em-relacao-aos-brancos-
permanece>. Acesso em 18 de julho de 2021.
31
Essa relação é o exemplo maior do que Mbembe (2014) entende como parte da “razão negra” no mundo, pois,
“produzir o Negro é produzir um vínculo social de submissão e um corpo de exploração, isto é, um corpo
inteiramente exposto à vontade de um senhor, e do qual nos esforçamos para obter o máximo de
rendimento”(MBEMBE, 2014, p. 40). A razão negra, portanto, diz respeito às práticas e saberes em torno do corpo
negro, operadas pela razão branca (pura), ou à “consciência ocidental do Negro” (op. cit, p. 58).
57
do salário desses homens. Especificamente com relação às profissionais de enfermagem, uma
pesquisa do COFEN revelou que 85% dessas profissionais são mulheres e 53% são negras.
A discriminação por gênero e por raça no mercado de trabalho nacional ajuda a
explicar os diferenciais de rendimento médio, mesmo quando há o mesmo nível de
escolaridade (Cacciamali; Hirata, 2005). Por exemplo, as funções de chefia e
supervisão continuam sendo ocupadas predominantemente por homens, sendo mais
difícil para as mulheres alcançar postos de comando (Comin, 2015). Mas, convém
frisar que as mulheres se distribuem por todos os extratos sociais, enquanto uma
minoria de pessoas com pele preta ou parda está presente nos estratos de maior renda,
o que torna a discriminação racial ainda mais grave (Garcia, 2005). (PRONI &
GOMES, 2015, p. 139).

Ora, a ascensão da necropolítica e a intensificação das desigualdades pelo


neoliberalismo do governo central certamente pioraram esse cenário. Com a perda dos postos
de trabalho por causa da interrupção ou diminuição de alguns serviços, a situação se agravou
mais ainda. A análise das questões de gênero e raça e sua relação com o mercado de trabalho
brasileiro, demonstra como a promoção de políticas públicas que visem minimizar os efeitos
sociais dessas desigualdades é importante. Nesse sentido, é o Estado o responsável pela
promoção da equidade de gênero e de raça no mercado de trabalho.
No que diz respeito especificamente ao trabalho das profissionais de enfermagem,
durante a pandemia, foi apresentado o projeto de lei nº 2997/2020, que propõe uma atualização
do piso salarial dessas profissionais, além da redução da jornada de trabalho para 30 horas. Essa
reivindicação já dura 57 anos, de acordo com o COFEN, e segue dependendo de aprovação nas
casas legislativas. Além disso, após a aprovação pelo Legislativo, o presidente da república
vetou a indenização de 50 mil reais aos profissionais de saúde que ficarem incapacitados ou
morrerem em decorrência de sua atuação durante a pandemia, confirmando a inércia intencional
do Estado brasileiro na tomada de medidas que minimizem os efeitos da crise sanitárias,
principalmente entre os grupos diretamente afetados, como é o caso das profissionais de
enfermagem.
A disputa pela aprovação pelo piso nacional da enfermagem, além de apontar para
questões de gênero e raça bastante latentes, faz parte de um arcabouço histórico sobre o
reconhecimento da mulher brasileira a partir da profissionalização no âmbito das ciências da
saúde. Conforme apontam Santos e Faria (2008), a suposta subalternidade na relação entre
médicos e enfermeiras não passa realmente de uma suposição de uma análise macroestrutural,

58
principalmente quando se observa o caso brasileiro, pois a superação dessa suposta posição
subalterna,
Por certo, refere-se a um elenco de conquistas palpáveis: a autoridade crescente diante
das demais profissões, o poder social na esfera pública, a influência e o respeito junto
ao conjunto de sujeitos – tidos como “usuários” — da atenção à saúde. Quando
empregamos, no título do presente trabalho, o termo supostamente para qualificar a
subalternidade, nos propúnhamos a enfatizar que, desde os primeiros tempos da
Primeira República, apesar de a medicina hospitalar ditar as regras e os rituais de
consagração dos cursos pioneiros de Enfermagem – fosse no Hospital Samaritano, em
São Paulo, fosse na Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras, na capital do
País –,14 a década de 1920 foi um período instaurador de espaços importantes de auto-
organização, como a criação da Associação Brasileira de Enfermagem, a formação
acadêmica em centros de excelência no exterior, o contato das lideranças nacionais
com o movimento internacional, cujo eixo gravitava em torno do International
Council of Nurses. (SANTOS & FARIA, 2008, p. 41).

Entretanto, é necessário salientar que, conforme já discutimos, no decorrer desse


processo de profissionalização e reconhecimento o marcador de raça é preponderante para
diferenciar as mulheres de acordo com a possibilidade de acesso à uma formação mais
especializada, fato que permanece nos dias atuais.

2.3. Entre o saber científico e o cuidado humanizado

No que diz respeito especificamente à enfermagem, entendida enquanto mais alto grau
de profissionalização do care (SANTOS, 2020), ocupar ao mesmo tempo, não apenas enquanto
prática, dois extremos de constituição epistemológica completamente distintos - cuidado e
ciência - significa ter que lidar constantemente com a necessidade de reafirmação enquanto um
saber científico. O entendimento acerca da concepção de ciência cujas origens remontam ao
modelo analítico das ciências naturais determina as relações de poder que, por sua vez, também
dizem respeito a aspectos sociais mais diretos, como as questões de gênero que perpassam a
constituição do lugar da enfermagem e da medicina, conforme já analisamos. Neste ponto,
também é possível recorrer à discussão trazida por Kuhn (1998), que divide as ciências em hard
sciences e soft sciences, a partir da capacidade que elas têm de superar eventos paradigmáticos
e revolucionar sua matriz epistemológica.
No caso da enfermagem, uma interpretação mais imediata e encerrada no senso comum
certamente levaria a um entendimento de que a prática seria determinante para que as teorias

59
fossem estabelecidas. Essa questão é respaldada pela própria estruturação teórica desta ciência
como no caso específico das “teorias do cuidar em enfermagem” (GEORGE, 2000), parte
importante para o estabelecimento dos pontos norteadores e gerais da prática profissional.
Entretanto, o fato de o caráter empírico ser a base do arcabouço teórico no caso da enfermagem
não faz dela “uma ciência menor” em relação às demais ciências da saúde.
Mas se a enfermagem é de fato uma ciência, de qual “ciência” estamos falando quando
analisamos as singularidades que a constituem enquanto tal? As discussões de Stengers (2002)
no âmbito da filosofia das ciências estão situadas justamente no intermédio entre a perspectiva
de Kuhn (1998) e sua consequente crítica sociológica.
A partir das críticas antropológicas sobre o conceito de ciência (LATOUR; CALLON,
1991), Stengers (2002) busca colocar a ciência numa perspectiva “impura”, no sentido de “um
projeto social como outro qualquer, nem mais descolado das preocupações do mundo, nem mais
universal ou racional do que qualquer outro” (STENGERS, 2002. p. 11). Tomando a
enfermagem como “objeto de análise” a partir da perspectiva simétrica defendida por Stengers,
a racionalidade reivindicada como condição de possibilidade para caracterizar um saber como
científico é logo transpassada pelas questões sociais determinantes, fazendo com que não faça
mais sentido encerrar a diferenciação entre o que seria ou não científico apenas em critérios
metodológicos.
O princípio da simetria exige que não nos fiemos na hipótese desta racionalidade, que
conduz o historiador a tomar emprestado o vocabulário do vencedor para contar a
história de uma controvérsia. É necessário, ao contrário, tornar explícita a situação de
profunda indecisão, ou seja, também o conjunto dos fatores eventualmente "não-
científicos" que participaram da criação da relação de força que herdamos quando
imaginamos que a crise fez, efetivamente, a diferença entre vencedores e
vencidos.(STENGERS, 2002, p. 17 ).

Na enfermagem, o cuidado é o fator "não-científico" que é sempre posto em questão.


Mas a polissemia do conceito de cuidado e as diversas formas concretas da práxis estão
diretamente implicadas na perspectiva simétrica que a toma como uma ciência “como outra
qualquer”(STENGERS, 2002), não fazendo sentido algum, no âmbito da filosofia das ciências,
questionar sobre sua validade enquanto ciência. Nesse sentido, é possível inclusive reconhecer
semelhanças entre o reconhecimento do locus epistemológico ocupado pela enfermagem e pela
antropologia, resguardadas as devidas especificidades e campos de atuação de ambas as
ciências.

60
Outro ponto de destaque para o debate em questão é o reconhecimento legal que o
cuidado possui dentro do sistema público de saúde brasileiro. Com o advento da implementação
da Política Nacional de Humanização (PNH) no ano de 2003, o Brasil inaugura um novo
empreendimento no sentido de reconhecer a saúde enquanto um direito que deve ser garantido,
primordialmente pelo Estado, conforme consta na CF/1988. Conjugando os princípios
norteadores do SUS, o principal objetivo da PNH é “contagiar, por atitudes e ações
humanizadoras, a rede do SUS, incluindo gestores, trabalhadores da saúde e usuários” (PNH,
2010, p. 17). Gallo, Reis & Marazina (2004) entendem que as políticas de humanização da
saúde têm potencialidade libertadora, pois revertem a lógica utilitária que interdita a agência
dos atores envolvidos, abrindo espaço para dimensões mais subjetivas dentro das instituições e
espaços de promoção à saúde.
A política de Humanização em Saúde deve ser um instrumento de transferência de um
poder centralizado, que envolve naturalmente risco e responsabilidade, para um poder
compartilhado, no qual diferentes instâncias – profissionais, pacientes e gestores —
possam sustentar o delicado processo de prevenção e assistência. (GALLO, REIS &
MARAZINA, 2004, p. 43).

Conforme já discutimos mais acima, o cuidado é instrumento de promoção de uma


sociedade mais democrática, de acordo com Tronto (2020), pois fundamenta suas ações nas
relações de necessidade mútua entre os sujeitos. Nesse sentido, o compartilhamento de
responsabilidades minimiza o risco que, assim como o cuidado, possui sentidos variados no
âmbito das práticas em saúde.
No que diz respeito especificamente à função da enfermeira enquanto parte da PNH,
Chernicharo, Freitas & Ferreira (2013) identificam o cuidado como “elemento inerente à
assistência de enfermagem” (CHERNICHARO, FREITAS & FERREIRA, 2013, p. 566), pois

O conceito de humanização agrega-se ao próprio conceito de cuidado, pois humanizar


responde pela "convivialidade, solidariedade, irmandade, amor e respeito ao
outro"(20:8). Como humanizar corresponde a cuidar/cuidado e a enfermagem tem no
eixo de sua ação o cuidar, e esse traz no seu próprio conceito a perspectiva da
humanização, logo se pode inferir que o cuidado humanizado está fortemente ligado
a esta profissão. Portanto, integra o universo representacional de profissionais e de
usuários. (CHERNICHARO, FREITAS & FERREIRA, 2013, p. 569).

Logo, a apropriação semântica do conceito de cuidado para o desenho de políticas


públicas em saúde revela mais um dos sentidos desse conceito, reconhecendo sua importância

61
e potencialidade. Com relação especificamente ao SUS, a PNH destrincha diversas de suas
diretrizes, como a transversalidade dos saberes e a autonomia dos sujeitos. Como “detentora”
do precedente epistemológico sobre a noção de cuidado, a enfermagem é sim uma ciência de
fundamental importância para tornar a sociedade, ou ao menos os sistemas de saúde, espaços
democráticos de troca de conhecimento, reduzindo os efeitos advindos da individualização do
risco. Isso porque a própria constituição dessa “forma de ciência” é simétrica tanto em relação
a quem cuida quanto a quem é cuidado.

62
Capítulo 3 - “ A enfermagem estava lá”: os desafios de estar na “linha de frente”

Neste capítulo apresentaremos alguns resultados das entrevistas realizadas durante a


pesquisa. Inicialmente, é importante destacar que a escolha em mostrar esses resultados é parte
de uma estratégia de análise que pretende, a partir da delimitação dos três espaços de atuação
dessas três entrevistadas, - UTI neonatal, UPA e hospital privado - investigar as principais
categorias apontadas nas entrevistas, de acordo com o setor de trabalho, visto que se trata de
três locais com especificidades significativas e que foram impactados de formas diversas pela
chegada da pandemia.

3.1. “Eu cuido de anjos”: experiências da enfermagem em uma UTI neonatal

Fernanda trabalha há vinte e um anos como técnica em enfermagem num hospital


universitário federal. Apesar de hoje possuir graduação, especialização e mestrado na área de
enfermagem, ela nos conta que a opção pelo curso técnico de enfermagem era a única que cabia
dentro de suas condições quando era jovem, pois desde os doze anos de idade ela já expressava
que essa seria a carreira que escolheria quando crescesse. Em todos esses anos trabalhando na
mesma instituição ela já passou por vários setores, como a UTI trauma, a UTI cardiológica e a
UTI geral, setores em que ela dava plantões ao mesmo tempo. Mas o cansaço provocado pelo
tempo passou a ser inversamente proporcional à intensidade com que o cuidado estabelecia
cada vez mais o seu perfil profissional, pois esse foi o motivo pelo qual ela solicitou
transferência para a UTI neonatal do mesmo hospital.
Já Paloma, que optou pela enfermagem por causa da necessidade de independência
pessoal, hoje trabalha na UTI neonatal e na UTI obstétrica desse mesmo hospital. Amigas de
longa data, a trajetória profissional de ambas apresenta algumas similaridades. Fernanda
trabalha como técnica, mas é enfermeira e atualmente (fevereiro de 2020) cursa mestrado na
área de enfermagem. Paloma também é enfermeira e mestre em políticas públicas. Entretanto,
há diferenças significativas no que se refere à vida pessoal das amigas.
Divorciada e com dois filhos menores, um menino com seis e uma menina com treze
anos, Fernanda fala de sua rotina comporta os diversos “cuidados” que demandam de sua
participação, pois ela também tem pais idosos muito próximos. Já Paloma, que também tem
dois filhos, hoje mora apenas com o marido, pois seus filhos já saíram da casa dos pais.
Profissionalmente, a alocação num dos setores mais complexos e sensíveis do hospital trazia
para elas desafios constantes no que diz respeito aos procedimentos práticos com seres

63
completamente dependentes dos seus cuidados e do trabalho do tempo. As fragilidades físicas
e emocionais dos pacientes internados no setor já demandam cuidados bastante significativos
para evitar ao máximo o agravamento da situação dos bebês.
A ameaça de um novo agente patológico de efeitos ainda desconhecidos e poucas
informações sobre o tratamento adequado logicamente atingiu com mais intensidade os setores
mais críticos do hospital, do ponto de vista clínico. A UTI neonatal, que lida diariamente com
a complicada tarefa de refazer os laços do tempo com a vida, naqueles que mal tiveram tempo
para viver, certamente é um desses setores. O refazimento desses laços tem relação com o
próprio reconhecimento da pessoa, segundo Machado (2013). O autor esclarece que, para o
Ocidente, a noção de pessoa está diretamente ligada ao conceito de substância, e este, por sua
vez, estabelece uma relação de quase sinonímia com o corpo. Nesse sentido, a condição de
prematuridade estabelece uma interrupção nesse processo de reconhecimento social, pois
A quantidade de substância é índice de pessoa, portanto, a pessoalidade está
dada na naturalidade do processo: o problema é que esse processo “natural” é
acompanhado pela sociedade, que vai tratando de consolidar a pessoa do bebê
ao longo da gestação — com as confirmações médicas de que tudo vai bem no
desenvolvimento natural. Mas havendo nele uma interrupção, estabelece-se a
defasagem entre o processo social de construção e o natural, ao qual o primeiro
estaria atrelado, como um trabalho social sobre o que é biológico, entrando em
cena um lugar liminar de “desconstrução da pessoa” ou de “suspensão” do
processo de construção da pessoa, a UTI neonatal. Mas, em última instância, é
a naturalidade do processo que prevalece como relação na constituição da
pessoa: há uma assimetria entre a noção de substância como índice de
pessoalidade e a constituição social da pessoa, a favor do primeiro. Se a
substância falta, tudo se complica e fica em suspenso. Isto se evidencia no caso
do prematuro, já que ele revela o descompasso entre fato natural e interpretação
social e a assimetria entre um e outro. A criança sofre esse processo: a pessoa
é construída, o indivíduo substantivo é natural. Quando o desenvolvimento
natural falha (como no caso do prematuro), a construção tem que ser
interrompida. Assim, a construção substantiva da pessoa é reconhecida, a
social é construída. Ocorre uma inadequação de substância que se estende por
um longo período após a saída de um bebê bastante “pequeno” da UTI
neonatal, pois a família continua a lidar com o descompasso causado pela
prematuridade. (MACHADO, 2013, p. 116 -117).

Nessa perspectiva, a continuidade característica do trabalho de cuidar dos bebês


prematuros se opõe à interrupção dessa passagem antropofilosófica à condição de pessoa, pois
age justamente no sentido oposto, isto é, no sentido de retomar o “curso normal” das coisas,
conforme a perspectiva inicial idealizada desde a gestação. Nesse sentido, é possível entender
o espaço neonatal como ambiente que carrega elementos simbólicos do ambiente doméstico,
visto que a casa é o lugar para o qual a criança vai ao nascer com condições de saúde adequada
e lá recebe o cuidado de todos os integrantes do grupo, pois eles reconhecem sua condição de
vulnerabilidade.

64
No entanto, Fernanda esclarece que, por mais conhecido e óbvio que fosse, a percepção
sobre o risco dos bebês serem infectados por covid-19 não aconteceu de imediato. O
isolamento32, de fato, do setor só foi acontecer quando o primeiro bebê foi infectado com a
doença. Durante todo o ano de 2020, ano inicial da pandemia de covid-19, Paloma esteve
afastada do trabalho em virtude do mestrado que estava cursando, por isso ela não presenciou
os momentos iniciais do problema.
Já Fernanda, que esteve no enfrentamento desde o início da pandemia, relata algumas
situações ocorridas já em março de 2020 e que contribuíram para que ela passasse por uma das
situações mais desafiantes de sua carreira profissional. Questões como o próprio fornecimento
de EPIs específicos para evitar a infecção dos profissionais e protocolos de atendimento
específicos contribuíram para que, durante a execução de um procedimento respiratório nessa
criança, toda a equipe fosse contaminada.

Porque a nossa UTI, teoricamente, não era pra atender covid. Isso no início da
pandemia, né? Tanto que após uma reanimação eu acabei me contaminando. A
equipe inteira se contaminou. Era um neném que a gente suspeitava que tinha covid,
e a gente tinha pedido pra fazer exame…”vamo fazer, vamo fazer, porque esse neném
não melhora, os sintomas de covid, vamos fazer”...e aí o primeiro teste dele deu
negativo, teste rápido. Nesse meio tempo ele teve uma intercorrência, a gente
precisou fazer procedimentos de reanimação, entre eles um procedimento que não é
recomendado, que é nebulizar o próprio espasmo e ventilar com ambu33. E eu estava
usando máscara n95, face shield, usando luvas, mas não estava de capote. E o
aerosol, exposto no ambiente no momento da reanimação, fez com que toda equipe se
contaminasse. Posterior a esse procedimento de reanimação veio o segundo teste dele
com a confirmação de que ele estava com covid. E aí começaram a testar a equipe. E
antes que testassem a equipe eu já adoeci. (Fernanda, 42 anos, técnica em
enfermagem).

Fernanda nos conta que a visita, que já era restrita, chegou a ser suspensa depois da
reestruturação do setor por conta da primeira infecção. O único contato que o pai da criança

32
O hospital destinou um de seus andares para o atendimento de pacientes infectados pela covid-19. Fernanda
explica que até o momento da confirmação do primeiro caso a UTI neonatal permanecia no mesmo andar na
maternidade, mas toda estrutura física da UTI teve que ser transferida para o “andar da Covid” após esse fato.
33
Na ventilação com ambu, uma bolsa autoinflável (bolsa de reanimação) é conectada a uma válvula não
respiratória e então a uma máscara facial que adapta-se aos tecidos moles da face. A extremidade oposta da bolsa
é conectada a uma fonte de oxigênio (100% de oxigênio) e geralmente a um reservatório. A máscara é mantida
manualmente firme contra a face, e o ato apertar a bolsa ventila o paciente pelo nariz e pela boca. Disponível
em:< https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/medicina-de-cuidados-cr%C3%ADticos/como-fazer-
procedimentos-b%C3%A1sicos-para-as-vias-respirat%C3%B3rias/como-aplicar-ventila%C3%A7%C3%A3o-
com-ambu>. Acesso em 10 de agosto de 2021..
65
tinha com o filho ou a filha era feito pela equipe de enfermagem através de chamada de vídeo,
“para que ele estabeleça algum tipo de vínculo com o filho que acabou de nascer”, ela explica.
Aliás, essa foi uma das questões mais marcantes para Paloma, quando ela retornou ao
trabalho, já em 2021, após o período de afastamento por conta de sua capacitação.

Peguei o barco andando e me deparei com muitas restrições no setor. Eles fizeram
essas mudanças que vão desde o momento em que você entra no hospital até a sua
saída. A gente não pode sair do setor. Você entra para trabalhar e só sai para fazer
aquilo que é estritamente necessário, como ir ao banheiro ou beber água, poucas
vezes, e fazer a alimentação. Aí você precisa se desparamentar com todo cuidado
para não se contaminar. Muito diferente do que era antes. Hoje você pouco vê as
outras pessoas, praticamente você só vê o pessoal do plantão mesmo porque a UTI
neonatal é um setor já bem fechado. Ficou mais tenso também. Eu, particularmente,
me sinto bem mais cansada. (Paloma, 49 anos, técnica em enfermagem).

Das várias tentativas para que o vírus, com potencial devastador, não atingisse os
pacientes da UTI neonatal, Fernanda lembra de uma imagem muito significativa que
permaneceu em sua mente, sobre a experiência nesses primeiros meses de pandemia.

(...)uma das coisas que mais me abalaram nesse processo pandêmico, no setor
específico que eu trabalho, foi ver...eu lembro muito bem dessa cena: um pai, ele
passava dia e noite escorado lá no vidro - e o vidro é fosco e ele não conseguia ver
direito - mas ele ficava lá escorado o tempo todo e não podia entrar pra ver o filho.
Foi uma das coisas que mais me marcou nesse processo de tentativa de proteção, de
estratégia pra vencer o vírus, pra que o vírus não chegasse lá na nossa unidade de
forma tão devastadora. Porque quando o vírus chega no nosso setor e a gente não
tem como se defender dele adequadamente, não é só o bebê, mas a gente como
funcionária que tá exposta, o meu filho pequeno que adoeceu, eu tive que me afastar
dos meus pais. (Fernanda, 42 anos, técnica de enfermagem).

Muito emocionada, ela mal conseguiu terminar a descrição do fato. Perguntamos se


desejaria continuar a entrevista e ela consentiu que seguíssemos em frente. Minha experiência
pessoal com esse momento da entrevista foi bastante desconcertante. Fiquei confusa, me perdi
no roteiro e confesso que entre as tantas elucubrações contidas no diário de campo, quando o
campo ainda nem existia, nunca me ocorreu a possibilidade de despertar memórias afetivas
muito dolorosas nas minhas interlocutoras. Na verdade, nunca achei que iria acontecer comigo,

66
pois já sabia do risco ético de algumas questões contidas no roteiro, por isso talvez a minha
primeira reação tenha sido perguntar se ela queria dar continuidade.

Às vezes as pessoas perguntam assim “Como é que você aguenta trabalhar em UTI
todos esses anos? É tão sofrido…”. Pelo meu relato eles dizem “mas você sofre”. Aí
eu digo: “no dia que meus olhos secarem eu tenho que sair da UTI, né?” No dia que
eu não conseguir mais me sensibilizar com a dor do outro é porque eu não tô no lugar
certo, eu tenho que sair. Podemos continuar, sem problemas. Faz parte do processo.
(Fernanda, 42 anos, técnica de enfermagem).

A restrição da visita dos pais e da interação da própria equipe multidisciplinar de saúde,


em especial da equipe de enfermagem, com os neonatos, foi revista com o passar dos meses,
até pelo próprio conhecimento sobre a doença e as formas de tratamento e transmissão.
Fernanda explica que atualmente (abril de 2020) o pai da criança vê o filho ao nascer e uma vez
por semana, e a mãe, por causa da necessidade de amamentação, tem um horário específico
para fazê-lo, de uma forma que apenas duas mães permaneçam no mesmo ambiente enquanto
amamentam seus filhos. As visitas de tios, tias, avós e outros parentes permanecem suspensas.
Na volta ao trabalho, Fernanda percebeu que permaneciam as restrições de contato
enquanto a equipe de enfermagem insistia em suas tentativas de criar o mínimo de vínculo dos
bebês que, através de suas incubadoras, só viam máscaras, face shields, capotes etc. E ainda
que muitos desses equipamentos de proteção fossem e devessem ser usados pelas próprias
características do setor, alguns momentos de contato direto, principalmente com as técnicas e
enfermeiras, rendiam a troca de calor entre os corpos, que sempre foi fundamental à existência
humana na terra.
Fernanda explica que isso acontecia nos banhos de ofurô, por exemplo, que eram feitos
mesmo nas situações de internação mais complexa, com as crianças intubadas. Nos tempos
mais restritivos, logo no início, ela relembra que o próprio ritual da morte - que mesmo depois
de vinte e um anos de carreira ainda é muito complicado de lidar - sofreu com a necessidade de
readaptar as práticas de manejo do corpo dos anjos, outra forma como ela se refere a seus
pacientes, que ela cuida. Conforme ela nos relatou, muitas vezes o único contato físico que a
mãe tem com seus filhos é no momento em que os pega no colo, já depois de terem morrido
pelas complicações da prematuridade. “ Quando a gente comunica um óbito a gente pega o
neném, tira da incubadora e coloca no colo da mãe, se assim ela desejar, pra que ela tenha aquele
momento”. Mas com as restrições sanitárias impostas pela pandemia, mesmo que a covid-19
não tenha sido a causa da morte do bebê, essa prática está proibida. “E eu acho que a mãe ela

67
tem direito de pegar o filho no colo”, direito que para ela, depois de um dia de plantão exaustivo,
é negado pela necessidade de proteger seus filhos, que só depois de todo ritual de desinfecção,
podem receber o carinho da mãe: “É sofrimento lá e sofrimento aqui, né? Mas tem que manter
a esperança.”
Esperança é o nome de um dos tipos de cuidado que ela tem mantido para com a sua
família, seus amigos e pacientes, ainda que o país do outro lado das janelas - de casa e do
hospital - não esteja gerindo bem o problema, segundo ela, que aponta as discrepâncias entre
os entes e a completa desgovernança por parte do Executivo Federal como as principais
questões responsáveis pela pandemia ter sido tão devastadora no Brasil. Aliás, essa é a palavra
que ela usou na entrevista para justificar a necessidade de isolamento do seu setor, “para que o
vírus não chegue de forma tão devastadora”. Foi exatamente essa leitura, o reconhecimento
dessa vulnerabilidade que faltou ao governo federal na gestão da pandemia no Brasil. Essa
mesma percepção sobre a responsabilidade governamental no que diz respeito à gestão da
pandemia é compartilhada por Paloma.

O Brasil tem o pior governo em relação à pandemia. É um desgoverno. É um


desgoverno muito grande. É como se quisesse extinguir o SUS, o serviço público. A
saúde não tem importância para eles. É como eu te falei, a gente que lute para
trabalhar com o que a gente tem. Porque a gente não tem nenhum tipo de apoio. Eu
vejo que os hospitais federais estão lutando bravamente, mas não estão tendo o apoio
que deveriam ter, porque a demanda é muito grande. A demanda já era grande, não
é só por conta desse momento de covid. Mas desde que começou esse governo que as
coisas foram andando pra trás e tudo foi ficando muito mais difícil. Era pra ter muito
mais vacina, era pro hospital receber os equipamentos de proteção individual
adequados, sem restrição. (Paloma, 49 anos, técnica de enfermagem).

O descrédito nas ciências e nos indicadores socioeconômicos que apontavam o quão


grave seria o problema, somado à descaracterização do ministério da saúde e às notícias falsas
sobre a gravidade da doença e a importância da vacinação, também chegaram aos profissionais
que, por motivos desconhecidos, visto que motivações empíricas não faltavam, optaram por
aderir ao famoso tratamento precoce, de ineficácia comprovada contra a covid-19.
Quanto à vacina, Fernanda revela que estava saindo do plantão quando avisaram que
iam começar a vacinar os profissionais do seu setor, e que já ficou por lá mesmo aguardando a
vez de ser vacinada. Mas nem todos os profissionais fizeram essa opção, felizmente uma
minoria segundo ela.

68
Inclusive uma colega que não quis tomar a vacina, teve, foi pra UTI e quase morre,
saiu a semana passada. Ainda bem que ela saiu porque não merecia morrer, tadinha.
Nem ela nem ninguém, por uma doença dessa. Mas ela se recusou a tomar. Porém a
maioria aceitou a vacina, aceitou tomar. Um percentual muito pequeno, que eu
conheço, se recusou a tomar. Ah, você me pergunta “é de classe mais inferior, são
pessoas que não estudam?”. Não, não são não. São pessoas que estudam, são pessoas
que têm conhecimento, mas infelizmente adotam essa postura, né? De não tomar, de
não acreditar nas pesquisas científicas. (Fernanda, 42 anos, técnica de enfermagem).

Por fim, Fernanda conta que não acredita que “sairemos melhores dessa”, como se ouve
falar por aí. “Enquanto tiver o vírus as pessoas, por questão de sobrevivência, estão com um
comportamento diferente, mas depois acho que volta ao que era antes”, ela esclarece. E quanto
às práticas no âmbito da saúde? , perguntamos. Ela responde que uma possível “herança da
pandemia para o futuro profissional” seria a utilização de EPIS que antes não pareciam tão
necessários, inclusive para ela.

3.2. “ Seria uma desresponsabilização do cuidado e isso não tem espaço dentro da minha
profissão”: experiências da enfermagem em uma Unidade de Pronto - Atendimento
(UPA)

Manhã de sábado, dezessete de abril de 2021. Em conversa via whatsapp, Marcelo e eu


combinamos de nos encontrar via Google Meet às 11h. Havíamos acordado inicialmente que a
entrevista seria por volta das 14h do mesmo dia, mas um imprevisto pessoal fez com que ele
me perguntasse se seria possível antecipar a entrevista. Comuniquei a solicitação à minha
orientadora, que também participaria da entrevista. Explicados os termos éticos e as questões
em torno da pesquisa, iniciamos a gravação, conforme havíamos combinado através de troca
de mensagens.
Marcelo tem 27 anos, se identifica como pardo e trabalha como enfermeiro há cinco. A
profissão chegou a ele através de sua irmã mais velha, Cíntia, também enfermeira. Observando
a trajetória de formação de sua irmã como técnica em enfermagem, a carreira o conquistou aos
poucos o levando a optar pelo curso de enfermagem quando entrou na universidade. Escolha
que se mostrou acertada, pois ele seguiu sua trajetória acadêmica na enfermagem, fazendo
mestrado na área e hoje é doutorando. Já sua irmã também concluiu a graduação em
enfermagem no ano de 2019.

69
O mestrado de Marcelo foi em Pediatria e Neonatologia, exatamente na área em que ele
trabalha numa UPA. Aliás, os dois irmãos trabalham juntos nessa mesma unidade, juntamente
com Luciana, Bárbara e Zélia, todas técnicas em enfermagem. Luciana conta que desde criança
dizia que queria ser enfermeira: “segundo a minha mãe era isso que eu falava desde criança,
não sei o porquê…e foi o que eu fui fazer”. Já Bárbara conta que foi fazer o curso técnico por
acaso, por indicação de uma amiga e acabou se apaixonando pela profissão. Zélia, que trabalha
há mais de 12 anos como técnica em enfermagem, escolheu a profissão porque gosta de cuidar
“e a enfermagem me propicia isso”, ela afirma.
Marcelo explica que sua rotina se divide também nos plantões que dá no setor de terapia
intensiva de um hospital localizado a cerca de 127 Km da cidade onde fica a UPA e as aulas
como professor universitário no curso de enfermagem de uma universidade privada. Apesar de
terem sido diretamente impactados pela chegada da pandemia, Marcelo não teve que lidar
diretamente com a pandemia nesses últimos locais onde trabalha. A universidade suspendeu as
aulas presenciais e no outro hospital ele não pôde, nem quis, assumir a ala covid, visto que não
teve essa opção na UPA. Já Zélia de divide entre o trabalho na UPA em João Pessoa/PB e
também na cidade do Recife, onde trabalha na área da imunização desde antes da pandemia. As
demais entrevistadas não relataram nenhum outro emprego além do da UPA, exceto Cíntia, que
trabalhou num hospital privado de João Pessoa durante 4 meses no ano de 2020, mas pediu
desligamento em seguida. Falaremos sobre essa experiência mais adiante.
Por volta de março de 2020 os primeiros casos começaram a chegar na UPA. O setor da
pediatria, onde Marcelo, Cíntia, Bárbara, Zélia e Luciana trabalhavam, logo foi fechado e toda
a unidade foi direcionada ao pronto-atendimento de pacientes infectados pelo Sars-CoV-2.
Marcelo explica que os cuidados que eram prestados pela unidade giravam em torno de
situações mais urgentes - que demandavam intubações, por exemplo - e que a partir dessa
estabilização inicial, os pacientes eram transferidos para os hospitais de referência no
tratamento da doença. Ainda assim, como a unidade é referência para o atendimento de crianças
que não apresentam problemas de saúde tão graves, até hoje continuam a chegar crianças para
atendimento na unidade, que, no momento da entrevista, estava restrita ao atendimento de casos
de covid-19. Essa restrição justifica-se pelo fato de que desde o início da pandemia, os casos de
covid superam em muito os de síndromes gripais, tão comuns em crianças.

A gente chegava a atender três, cinco síndromes gripais ao dia, para, sei lá, 200 de
covid em adultos ao dia. Então isso acabou sendo bem maior. Tinha uma proporção
maior e a gente acabou tendo que dar um suporte realmente, porque os profissionais

70
não iam demandar. Eram poucos profissionais, muita demanda, muita gente em
estado crítico mesmo sendo em uma UPA, e a gente tendo que se desdobrar e
desdobrar e desdobrar pra dar conta de tudo que estava acontecendo.E nós e todo o
resto da rede, com exceção de alguns pontos que ficaram destinados para o
atendimento de outras patologias que não eram covid, nós das UPAs, de alguns
hospitais, fomos direcionados para o tratamento direto ao covid. (Marcelo, 27 anos,
enfermeiro).

Toda essa mudança aconteceu em meio a uma “enxurrada de coisas”, como ele se referiu
à quantidade de protocolos, treinamentos e informações que recebia no momento em que o
mundo tentava aprender a administrar a situação de emergência sanitária. O aprimoramento das
técnicas e protocolos só viria com o passar dos meses. Outro problema bastante significativo
nesses meses iniciais foi a falta de EPIs adequados para proteção tanto de pacientes quanto de
profissionais, pois como ele nos explicou, no início os EPIs eram escassos e muitos dos que
eram usados mostraram-se impróprios com o tempo. Para a equipe de enfermagem da UPA ,
que “lidava com o desconhecido e ao mesmo tempo tinha que estar ali”, a insegurança dos
meses iniciais era reforçada pelo impacto da readequação dos espaços e redirecionamento do
atendimento na unidade.
A gente era acostumado a lidar com crianças, com urgência e emergência. Então a
criança era admitida, a gente fazia as medicações e os cuidados imediatos e depois
ela recebia alta. Era um setor de urgência, não era um setor clínico. Já com os
pacientes com covid é um setor clínico porque tem o primeiro atendimento na sala
verde, o PA. Depois os pacientes são internados e vêm pra gente na sala amarela, o
setor clínico. E é toda uma rotina bem diferente. Uma rotina de cuidados diferente.
Porque mudou o público, porque agora são pacientes adultos e com isso mudou muita
coisa na rotina da gente. Mas nós somos profissionais e estamos habilitadas a
trabalhar com qualquer paciente que necessite de cuidado. (Cíntia, técnica de
enfermagem).

Mais posteriormente, o aparecimento de terapêuticas medicamentosas que vendiam a


ideia de um tratamento precoce contra a infecção desencadeou uma série de inconsistências
quanto ao atendimento dos pacientes, contrariando inclusive os esforços no sentido de priorizar
condutas preventivas precoces, e desencadeando tensões na relação entre médicos e a equipe
de enfermagem, responsável por administrar os medicamentos aos pacientes. Marcelo explica
que isso foi um motivo de grande preocupação “porque fica o enfermeiro de um lado rebatendo
aquela conduta, fica o médico solicitando que faça-se o uso de alguns medicamentos que não

71
possuem comprovação científica para isso”, e o paciente, já bastante angustiado e temeroso
diante de toda essa situação, por vezes se apega a essa possibilidade “milagrosa”.
Entretanto, de acordo com Cíntia na unidade em que elas e ele trabalham não houve
nenhuma situação em que os pacientes exigissem que lhes fosse receitado o tratamento precoce.
Apesar disso, ela conta que alguns médicos indicaram a azitromicina para pacientes internados
na unidade: “cloroquina não, mas azitromicina teve sim, alguns médicos indicaram.” Afirmação
que foi reiterada por Bárbara que explica que “cada médico tem a sua conduta” na hora de
prescrever o tratamento para a covid-19.
A enfermagem, que Marcelo viu desde sempre como responsável direta pelo cuidado
com os pacientes infectados, precisava administrar a multiplicidade de situações envolvidas
nessa noção de cuidado. “E a equipe teve que se sustentar o tempo todo”, seja no manejo da
complexa situação dos pacientes, seja sabendo administrar os conflitos dentro da equipe
multidisciplinar em saúde, seja tendo que sustentar uns aos outros, pois, bem no início do
processo pandêmico, apenas a equipe de enfermagem permanecia dentro das salas em que
estavam os pacientes infectados.
Todo o processo, que envolvia a coleta de material para análise, procedimentos de
fisioterapia respiratória e até a assistência às famílias, era realizado pela equipe: “foi o momento
em que eles dependiam demais da gente”. Os médicos entravam, faziam procedimentos
pontuais e saíam do setor. No entanto, “o cuidado é contínuo” em se tratando de pacientes com
covid-19, como bem nos explicou Marcelo. E “a enfermagem estava lá”, permanentemente
cuidando.
A gente é que de fato dava sequência nesse cuidado. Então, quando eu digo que a
enfermagem estava lá, é porque eu estava lá de fato executando aquele cuidado junto
com os técnicos de enfermagem. Cuidado que eu digo de administração de
medicamentos, cuidado que eu digo de detecção de intercorrências, manejo de
horários de medicamentos para que eles não choquem e façam interações, porque o
paciente covid ele demandava muita coisa. Cuidado, que eu digo, é uma
monitorização contínua de olho naquela saturação, porque a medida que ela vai
caindo, eu tenho que pronar, eu tenho que elevar a decúbito, eu tenho que elevar a
oferta de O2 porque eu não tenho fisioterapeuta comigo dentro de uma UPA; na UTI
eu tenho, mas nesses setores covid eles vieram posteriormente. Na UPA, hoje, eu
ainda não lido com fisioterapeutas presentes, então eu que tenho que manejar a
ventilador mecânico, eu é que tenho que tá observando parâmetros, verificando
pressão, diminuindo, aumentando de acordo com a resposta do paciente. Então, esses
cuidados que eu digo, que levam, que manejam aquele paciente durante a estada dele
junto da instituição. E aí, quando eu digo que a enfermagem estava lá é porque ela

72
estava de fato observando tudo isso, intervindo quando necessário. (Marcelo, 27
anos, enfermeiro).

Por se tratar de uma trabalho que demanda ações contínuas, o trabalho de cuidar de
pacientes tão complexos dissolve atribuições de campos que Scott (2020) entende como
“domínios de cuidado”. Para o antropólogo, apesar de ser composto por ações de subordinação
e dominação entre os saberes técnicos, científicos e afetivos, o cuidado também depende das
situações que ocorrem em torno da relacionalidade entre os agentes. No caso da enfermagem,
se de início havia uma relação estritamente técnica na qual uma prática cientificamente
embasada seria executada diante da demanda (o paciente infectado), ao longo do tempo essa
relação vai adquirindo outros domínios - como o afetivo - que acabam criando uma relação de
complementaridade no ambiente hospitalar. O autor também reitera que os cuidados domésticos
também fazem parte desse escopo dos “domínios de cuidado”.

O ambiente de cuidados, então, pode ser caracterizado, grosseiramente, por


uma mistura entre o popular, o técnico e o científico, cada um perfilado de
acordo com o habitus do seu domínio (relacionais, atendimento,
conhecimento), mas cada um intersectado com os outros no campo maior de
saúde. Nesta intersecção ocorre um fortalecimento mútuo, porém diferente e
desigual, dos três domínios pelo seu convívio mútuo. (SCOTT, 2020, p. 26b).

Entretanto, o caso da covid-19 é diverso em alguns pontos do caso da SCZV - Síndrome


Congênita do Zika Vírus - analisado pelo autor. No caso da SCZV, um dos domínios de cuidado
é o doméstico e diz respeito às práticas de cuidado desenvolvidas fora do ambiente hospitalar
ou clínico. Já no caso da covid-19, em que o ambiente doméstico, principalmente nos casos
mais graves, é excluído como um domínio de cuidado, - pois o paciente demanda uma
hospitalização contínua - é aberta uma espécie de “brecha” na organização desses domínios.
Entretanto, pelo ambiente doméstico se caracterizar pela presença de um cuidado mais afetivo,
ainda que determinadas ações possam estar relacionadas a esse domínio de cuidado, a presença
física das pessoas que compõem o núcleo familiar permanece sendo demandada pelo paciente
e, por outro lado, esse próprio núcleo é surpreendido pela impossibilidade de cuidar daquele
membro afetado, tal como aconteceu com os pais dos bebês na UTI neonatal.
É neste ponto que a enfermagem entra para preencher essa brecha e fazer a ponte entre
a família e o doente. Reitero que essa perspectiva é baseada principalmente nos momentos

73
iniciais da pandemia em que, conforme relatado pelas próprias interlocutoras, apenas a equipe
de enfermagem permanecia cuidando dos pacientes. Aqui o verbo faz toda diferença porque o
tempo é uma variável que sempre precisa ser considerada. Ao “permanecer cuidando”, como
permanecem até hoje, ainda que algumas restrições tenham mudado, principalmente as técnicas
de enfermagem têm uma visão mais ampla sobre a situação dos pacientes em comparação a um
médico ou assistente social que atua de maneira pontual. Nesse sentido, elas acabam adentrando
a patamares intermediários entre esses “domínios de cuidado”, impossíveis de delimitar de
forma analítica.
Isso decorre do fato de que, ao mesmo tempo em que executam atividades técnicas,
também lidam com outros domínios de cuidado, incluindo aí o cuidado doméstico, pois muitas
vezes são a única ponte entre o paciente e a família. Ao relatar sobre a situação do paciente
quando, por exemplo, vão até a família receber pertences pessoais dos pacientes ou a
alimentação destes, como acontece na UPA, a forma como repassam a informação é importante
pois ocorre uma “repersonalização”, isto é, o paciente deixa de ser mais um número nas
estatísticas pandêmicas ou uma ficha com informações e, em certo sentido, retorna ao âmbito
doméstico pois notícias suas voltam a aparecer nesse ambiente. E ainda que muitos pacientes
disponham de equipamentos de comunicação individual (que inicialmente também tinham seu
uso proibido), são as profissionais que detêm conhecimento necessário para ler a situação com
mais propriedade, englobando logicamente aspectos de todos esses domínios de cuidado.
Mas Marcelo vê uma contradição acerca do reconhecimento sobre todo esse trabalho de
cuidado, pois segundo ele não havia um reconhecimento da porta do hospital para fora, ainda
que a enfermagem estivesse sendo tão solicitada desde que a pandemia começou. Esse
reconhecimento só veio mesmo por parte da própria equipe, que precisou fortalecer ainda mais
os laços internos.
Da própria equipe, dos pacientes e familiares, conforme relata Zélia que, ao ser
perguntada se havia passado por alguma situação hostil devido ao fato de trabalhar em um
hospital em plena pandemia, relata que é como se as profissionais de enfermagem “fossem o
vírus andando na rua, principalmente no início da pandemia”. Ela reitera sua afirmação
narrando sobre a importância do reconhecimento de seus esforços diários para permanecer na
linha de frente.
A solidariedade vem dos pacientes e dos familiares deles. Seja em forma de palavras,
cartas, flores ou alguma lembrança. Isso é o que motiva a gente a levantar e vencer
mais um dia de batalha. O reconhecimento não vem do governo nem da direção da
unidade mesmo. E tem gente que diz “eita, tu trabalha na UPA com os covid?”. É

74
como eu te disse, é como se a gente fosse o vírus andando. Aí depois diz que “não é
por nada não”. Mas realmente a gente tem esse estigma mesmo. Por trabalhar na
linha de frente é como se a gente carregasse o vírus direto. (Zélia, 35 anos, técnica
de enfermagem).
Podemos entender essa referência à solidariedade a partir das contribuições teoria da
dádiva34(MAUSS, 2017) nas profissões da área da saúde. De acordo com Almeida & Germano
(2009), a perspectiva de um agir antiutilitarista que caracteriza a profissão de enfermagem desde
seu surgimento, coloca o dom como cerne da prática profissional.
No âmbito da enfermagem, o paradigma da dádiva encontra lugar de destaque, pois
podemos perceber com clareza a circulação de “bens” simbólicos existentes entre a
equipe de enfermagem e o paciente que vivencia um período de hospitalização. O
medo do desconhecido, a mudança de ambiente e de papéis, além das incertezas que
gravitam em torno do diagnóstico médico, suscitam, à equipe de enfermagem, doação,
atenção, respeito, solidariedade, confiança, compromisso, tolerância, acolhimento,
entre outros. Ressaltamos que a retribuição desses atributos, por parte do paciente à
equipe de enfermagem, constitui-se em uma postura desejável, o que favorece o
interrelacionamento, conduzindo à consolidação das trocas dos bens imateriais.
(ALMEIDA & GERMANO, 2009, p. 340).

Com a intensificação de aspectos como o medo, por exemplo, por causa do contexto de
incertezas desencadeado pela pandemia houve a intensificação dessa circulação de bens
simbólicos entre os sujeitos da relação, pois ao mesmo tempo que a dependência dos pacientes
aumentou, a necessidade dos profissionais de permanecer cuidando, apesar da complexidade
da situação, também estava presente.
Já a percepção das pessoas que estavam fora do hospital acerca das profissionais que
lidavam diretamente com àquele que era lido como um “ambiente de contaminação” é
característica de uma percepção permeada por dicotomias como pureza/impureza,
sujeira/limpeza, contágio/descontaminação. Para Douglas (2014) essas dicotomias são aspectos
funcionais para a análise da própria ordem (ou desordem) de uma sociedade e abrange o
aparecimento de epidemias.
A reflexão sobre a impureza implica uma relação sobre a relação entre a ordem e a
desordem, o ser e o não-ser, a forma e a ausência dela, a vida e a morte. Onde quer
que as idéias de impureza estejam fortemente estruturadas, a sua análise revela que
põem em jogo estes profundos temas. (DOUGLAS, 2014, p. 9).

34
De acordo com Mauss (2017), as trocas primitivas são compostas pelo encadeamento de três obrigações, a
saber, dar, receber e retribuir. Nesse sentido, não seriam apenas trocas, mas estariam revestidas por uma força
existente dentro das coisas e que vincula os sujeitos envolvidos (mana), o que justifica a adoção do termo
“dádiva” para qualificar essas trocas.
75
Com o aumento da dependência dos pacientes com relação aos cuidados por parte da
equipe de enfermagem, tendo sido intensificado pela pandemia, Marcelo relatou táticas de
aproximação nos períodos mais críticos do isolamento. Essas situações dizem respeito tanto à
relação dos pacientes com a equipe de enfermagem, quanto da equipe de enfermagem enquanto
portadora de notícias direcionadas às famílias que permaneciam do lado de fora sem saber como
estavam os seus pais, amigos e familiares.
No início da pandemia, além das visitas, o uso de aparelhos eletrônicos de comunicação
também não era permitido na UPA, assim como a entrada de assistentes sociais nos setores em
que os pacientes com covid estavam internados. E tudo recaiu novamente sobre quem estava
lá, a equipe de enfermagem. Em 2021, o uso de celulares já é permitido e a assistência social já
tem contato com os pacientes e repassa informações para as famílias, pois a visita permanece
suspensa.

Os familiares escreviam em papéis, colocavam nos pertences desses pacientes e a


gente...a enfermagem recebia porque o serviço social não entrava no setor. Então ela
deixava com a gente, eu pegava esses papéis, alimento ou alguma coisa que a família
mandava, porque a unidade não provinha de nutrição, e eu levava para o leito do
paciente. A gente higienizava, fazia todo um controle de desinfecção e deixava com
ele lá. E quando ele não estava em condição de ler eu lia o bilhete pra ele. E lia o
bilhete do acompanhante pra ele e deixava ao lado dele. Tinha deles que pediam para
deixar ao lado, tinha deles que pediam pra guardar, enfim, quando não estava
viabilizando a entrada dos celulares. Posteriormente, com o passar do tempo e com
o andar das coisas, a assistente social passou a conversar com a gente e com a
direção para que a gente pudesse permitir, para aqueles que tinham a possibilidade
de ter um celular, entrar o celular para que eles ficassem. Eu gostava sempre de
colocar no macacão, porque aquilo tira toda a sua fisionomia, mas quando eu usava
eu colocava meu nome e a minha função embaixo. E como eu sempre fui da pediatria,
até zombavam de mim, mas eu sempre desenhava no papel que ficava no meu
macacão. Escrevia meu nome de alguma outra cor, não sei, mas sempre fazia algo
para que a gente pudesse amenizar mais, diminuir essa distância - necessária porque
a gente precisava se proteger - do paciente. (Marcelo, 27 anos, enfermeiro).

E o movimento no sentido de diminuir uma distância ainda tão necessária diante das
condições colocadas pela doença tinha ressonância no quadro de saúde dos pacientes. Marcelo
explica que muitos apresentavam melhoras significativas quando recebiam um bilhete ou
conseguiam se comunicar com seus parentes e amigos. Para Marcelo, abster-se de prestar essa
assistência justamente no momento em que as incertezas ditavam a passagem do tempo, tanto
para os pacientes quanto para os familiares, seria uma “desresponsabilização do cuidado, e isso
não tem espaço na minha profissão”.
Por diversas vezes, a enfermagem também se viu diante de situações em que precisava
decidir como administrar esse cuidado na prática. Muitas vezes, ele precisou decidir qual

76
paciente “demandava mais de oxigênio ou outro tratamento”, visto que as condições de trabalho
para a equipe continuavam perpassadas pelos problemas estruturais que a saúde pública
enfrenta no Brasil, que foram agravados nem pela chegada de uma crise sanitária nunca antes
enfrentada.
Pelo contrário, conforme aponta Bousquat et al (2021), o atual governo federal
empreendeu uma estratégia oposta àquela adotada desde a promulgação da constituição e
posterior lei orgânica da saúde. Mas apesar disso, os autores também destacam a capacidade de
“invenção” (BOUSQUAT et al, 2021, p. 20) do SUS em situações de crise como esta,
principalmente no sentido de estabelecer redes de cuidado no âmbito da atenção básica.
Entretanto, isso se mostrou insuficiente diante da dimensão da pandemia e das crises
sobrepostas à crise sanitária.
Na pandemia, a hegemonia do atendimento de urgência ficou evidenciada com
a centralidade dos prontos atendimentos e a priorização da garantia de leitos.
A consequente redução dos atendimentos eletivos inviabiliza as filas de espera
para as especialidades, uma situação que pode se agravar cada vez mais e que
será mais um grande desafio para o sistema de saúde brasileiro. O princípio
da integralidade no SUS é constantemente desafiado no sentido da produção
das linhas de cuidado em redes e, de alguma forma, o SUS tem acúmulos que
possibilitaram a rápida organização de fluxos e protocolos de atendimento nos
vários pontos de atenção da rede. O adoecimento dos trabalhadores e a
sobrecarga exercida no sistema de saúde são uma realidade que só tem se
agravado. (BOUSQUAT et al, 2021, p. 20-21).

Mais uma vez, toda a carga de responsabilidade pelo problema estava sendo colocada
nas costas da enfermagem, que permanecia lá, enfrentando “a caixinha de surpresas”, como
Marcelo definiu os pacientes infectados pela covid-19.

A gente tem uma doença que se comporta de acordo com a variação de cada paciente.
Pacientes que apresentam condições de risco são pacientes que apresentam mais
chances de padecer. Beleza, a gente sabe disso. Mas e o paciente jovem que não tem
nenhuma comorbidade, que não tem nenhuma apresentação de risco e chega comigo
no setor às 18 horas e quando eu vou passar a visita às 22h, o paciente tá
intercorrendo e vai à óbito? Então, essas instabilidades, essas questões de não termos
um padrão definido, mesmo que em saúde a gente saiba que o ser humano não
responde mediante respostas concretas, como nas exatas, mas a gente sabe o padrão
disso, a gente sabe a gnose daquela doença. A covid não tem isso por enquanto. O
que me aflige ainda é isso: é eu não ter como prever, a palavra é prever mesmo.
(Marcelo, 27 anos, enfermeiro).

Como professor universitário, ele explica como sua vivência enquanto enfermeiro é
definitiva para a forma como ministra suas aulas, pois aponta para uma questão central com a
77
qual a enfermagem tem lidado: seu lugar enquanto ciência no âmbito das ciências da saúde.
Para Marcelo, a pandemia revelou o protagonismo da enfermagem com relação aos cuidados
em saúde, mas esse cuidado não se restringe a uma questão de complexidade com relação aos
procedimentos executados para viabilizar a melhora dos pacientes e a própria complexidade
dos pacientes com covid-19 mostrou isso. Foi justamente a existência de uma ciência cujo locus
epistêmico é o cuidado e suas várias formas de apresentação, que contribuiu para viabilizar o
progresso nos protocolos de tratamento ao longo de mais de um ano de pandemia, o que trouxe
mais segurança à própria equipe multidisciplinar de saúde, segundo ele.
No Brasil, todos esses progressos foram sendo engendrados muitas vezes a partir de
condições mínimas de segurança e pouco suporte técnico para essas profissionais. A falta de
reconhecimento de que a enfermagem foi central para esses avanços no âmbito das profissões
de saúde, é, ao que me parece, o que mais incomoda meu interlocutor.

É a enfermagem que tá lá. É a enfermagem que tá junto. É essa equipe multi que a
gente sabe trabalhar, mas muitas vezes não sabem nos incluir nela, porque pra eles
o enfermeiro não tem esse papel de agente decisor de condutas, de tomada de
decisões. Muito pelo contrário. Mas quando o círculo fecha eles se remetem a mim,
porque tudo que demanda para que as decisões sejam tomadas tá lá junto comigo,
sou eu que tenho esse conhecimento, sou eu que tenho a ciência porque eu estou ao
lado daquele paciente a todo instante.(Marcelo, 27 anos, enfermeiro).

Estando lá a todo instante e munido de sua inquestionável carga de conhecimento,


Marcelo também faz uma leitura sobre o que o futuro nos reserva depois dessa experiência
pandêmica. Para ele, algumas coisas vieram para ficar, como o uso do álcool em gel a 70%, que
viabiliza condutas de higiene fundamentais nos momentos em que água e sabão não estão à
disposição, interrompendo uma possível via de transmissão. Ele também reconhece que coisas
incômodas, como o uso da máscara, deverão sair dos protocolos. Mas tudo isso não será feito
de maneira imediata nem tampouco agora, visto que “o entendimento do que é a própria doença
ainda está acontecendo”, e levará ainda bastante tempo para que a covid entre no “hall de outras
patologias comumente enfrentadas”.
Essa projeção acerca das práticas futuras com relação aos protocolos de prevenção e
cuidado devidos ao aparecimento de agentes patogênicos com alta possibilidade de
disseminação em massa também é compartilhada por Cíntia, sua irmã. “Eu acho que vai
demorar um pouquinho a voltar ao normal, mas as práticas de higiene vão continuar”, ela

78
destaca. Já Zélia, analisa a questão de maneira mais geral e tece comentários acerca do
funcionamento do SUS.
Todo mundo que tá vivendo esse momento vai sair outra pessoa, não é possível que
saia todo mundo igual. A gente como ser humano tem que ter mais empatia com o
próximo, sermos pessoas melhores. Tem que dizer que ama, porque às vezes na
correria a gente esquece de fazer uma ligação ou deixa de dar importância a
pequenas coisas como acordar, ver o pôr-do-sol, enfim, essas pequenas coisas que a
gente deixa de valorizar. As pessoas têm que ter mais empatia, mais cuidado uns com
os outros, Na questão do meu trabalho, a pandemia veio pra mostrar o quanto o nosso
sistema de saúde tá despreparado, o nosso SUS. Um SUS tão lindo que a gente tem
no papel, né?! Quando a gente estuda o SUS a gente acaba se apaixonando porque
ele é perfeito no papel, mas na prática nada funciona. (Zélia, 35 anos, técnica de
enfermagem).

Essa percepção é compartilhada por Bárbara que reconhece que a experiência vivida
durante a pandemia contribuiu em muito para seu amadurecimento enquanto profissional de
enfermagem, entretanto os desafios provocados pela súbita instalação da pandemia e a quase
completa incapacidade do SUS de conter o problema acabaram jogando nas mãos dessas
profissionais a responsabilidade pela ação prática de contenção do problema, mesmo que, como
reconhece Bárbara, “a gente que tá ali dentro sabe que é um colapso”.

3.3. “A pandemia veio para tornar visível o que era invisível”: experiências da
enfermagem em um hospital privado

Noite de terça, 27 de maio de 2021. Havíamos combinado a entrevista para o dia


anterior, mas Alice, que se identifica como parda e tem 28 anos, teve um imprevisto. Formada
há cinco anos, ela conta que logo depois de finalizar seu curso superior mudou de estado, indo
trabalhar num hospital de referência em doenças infectocontagiosas, retornando ao seu estado
de origem em 2019, para trabalhar na área de traumatologia. Nesse tempo ela também
conseguiu outro emprego num hospital privado da mesma cidade e ingressou no mestrado em
enfermagem. Como não conseguia conciliar os horários, optou por ficar trabalhando apenas
nesse hospital privado35, pois lá os horários são mais flexíveis, fazendo com que ela conseguisse

35
Essa decisão de Alice de largar o emprego no hospital público tem realização com o processo de terceirização
do trabalho no âmbito estatal. De acordo com Druck (2016), após a decisão do Supremo Tribunal Federal de
garantir às organizações sociais a possibilidade de prestação de atendimento de saúde com financiamento público,
79
administrar seu tempo entre o trabalho e a pesquisa. Por causa de sua experiência com doenças
infectocontagiosas, ela também fazia parte do SCIH - Serviço de Controle de Infecções
Hospitalar.
Ela nos conta que a opção pela carreira na enfermagem veio por causa de sua avó, que
sofria com problemas venosos, e precisava dos cuidados de uma vizinha, que era enfermeira. A
observação de todo esse processo despertou em Alice a vontade de aprender para também poder
cuidar, mas a entrada no curso não aconteceu de imediato. Por morar no interior, iniciou seus
estudos no curso de geografia no campus que ficava mais próximo de sua casa. Mas depois de
passado o primeiro ano, veio morar na capital, pois era onde havia a disponibilidade do curso
de enfermagem.
A vida seguia seu curso dentro do planejado, mas a chegada da pandemia teve grande
impacto na vida de Alice. De uma hora para outra, ela foi transferida para dois setores do
hospital diretamente relacionados à covid-19: o setor de classificação de risco e, por causa do
agravamento da situação, a sala vermelha.

Na sala vermelha, a gente fazia tudo. Nós auxiliávamos nas intubações, passávamos
dispositivos invasivos, sonda vertical; passávamos a sonda naso-enteral, que é de
alimentação; desprezava diurese; fazia curativos; monitorava pacientes; recebia
pacientes, a parte burocrática também de evolução, admissão reconciliação
medicamentosa. Às vezes a gente dava uma faladinha também com os familiares, que
ficavam super desesperados lá fora. Porque a sala vermelha é a primeira porta. O
paciente passava primeiro pela classificação de risco e de acordo com a gravidade...o
quanto ele tava saturando, tinha intercorrências… ele era classificado por cores. Se
fosse menor gravidade, era classificado como azul, se fosse intermediário, laranja, e
muito grave, vermelho. Então, todos os pacientes que iam pra sala vermelha já era
pra ser intubados de imediato. A gente fazia também a gasometria, pra ver como
estava a circulação, o oxigênio, a questão do dióxido de carbono no retorno
sanguíneo, para poder avaliar se ia para intubação ou não. Mas geralmente, 100%
dos que entravam lá eram intubados. E esse era o pior momento, porque a gente não
podia ficar em contato direto com a família, que ficava desesperada na parte externa.
E o paciente com muito medo. Um medo muito nítido dos pacientes: medo de ser
sedado, de ser intubado e não voltar mais. Foi horrível esse momento. (Alice, 28 anos,
enfermeira ).

consagrou o movimento de terceirizações que há mais de uma década ditava a tendência de não realização de
concurso público sob regime estatutário em diversos serviços ofertados pelo Estado, como é o caso da saúde.
80
Essa espécie de “anulação de si” em detrimento do cuidado com o outro se repetiu várias
vezes ao longo da entrevista e conforme os relatos sobre questões pontuais eram feitos. Ela
destacou que um dos momentos mais complicados, além dos aspectos práticos de adequação
dos protocolos e execução dos procedimentos, era o que antecede a intubação. Com as visitas
suspensas, a família dos pacientes internados esperava por notícias na recepção do hospital e
abordava alguma enfermeira ou outro profissional que passava por ali para pegar material ou
nas trocas entre os turnos. Alguns médicos abriam uma exceção, e “às vezes o médico deixava
dar uma entradinha” antes do processo de intubação. Logo ela lembrou de um relato muito
marcante que aconteceu durante um de seus turnos.
E era nessa entradinha que a gente não aguentava. Eu chorava, todo mundo chorava.
Porque o familiar começava a cantar uma música, começava a mostrar foto de
família, começava a falar que tudo ia ficar bem...a gente sentia que era uma
despedida. Era horrível, horrível mesmo. Ficavam pedindo pra ficar, mas não podia.
E a gente precisava auxiliar para tirar o acompanhante da sala, e o paciente ficava
chorando, e ficava todo mundo chorando. Era desse jeito. (Alice, 28 anos,
enfermeira).

Isso aconteceu por diversas vezes, mas ela conta que era como se fosse sempre inédito,
pois não havia forma de se acostumar com essa situação toda. Quando os médicos não
liberavam a “entradinha” dos familiares antes da intubação, era com a equipe de enfermagem,
sempre presente no setor, que os pacientes procuravam consolo. Alguns viam inclusive a
intubação como única forma de amenizar o sofrimento causado pela falta de ar, mas Alice
explica que havia critérios que determinavam se o paciente precisaria ser intubado ou não, de
acordo com a evolução e resposta à terapêutica medicamentosa, pois este é um procedimento
muito arriscado e que pode deixar sequelas irreparáveis.

O contato maior da gente de conversar era antes da intubação. Eles ficavam


perguntando como ia ser, alguns pediam para ser intubados, alguns que não tinham
nem critérios para intubação. Porque o paciente chegava, a gente colhia a gasometria
para verificar como estavam as trocas gasosas, e primeiro a fisioterapia fazia a
inserção de uma máscara, que eu acho que vocês já viram, é uma máscara que oclui
essa parte aqui [sinaliza para a região do nariz e da boca]. Primeiro fazia a inserção
dessa máscara, mas essa máscara é muito, muito desconfortável. Então, muitos não
aguentavam muito, muitos não suportavam. Aí eles pediam pra ser intubados, “me
intube”, chamavam os médicos, chamavam a gente. “Me intube, eu não aguento
mais”, “Eu tô cansado, me intube, por favor”. Às vezes não tinha nem um critério,
era porque não aguentavam mesmo porque estava muito cansado, com muita falta de

81
ar. Lembro de um pediu muito, muito, muito. Ele chorava pra ser intubado, mas o
médico ainda conseguiu segurar porque ele era um paciente jovem, não tinha
critérios para intubação. Aí ele segurou, segurou, segurou, conversou muito com ele,
segurando a mão dele e graças a Deus ele foi pra enfermaria e teve alta. Não sei se
caso ele tivesse sido intubado se teria retornado, né. (Alice, 28 anos, enfermeira).

Apesar da complexidade que envolve a decisão sobre esse tipo de procedimento, a


relação entre médicos e a equipe de enfermagem é vista por Alice como um dos pontos positivos
trazidos pela pandemia, pois ela relata que havia colaboração mútua entre todos os integrantes
da equipe multiprofissional responsável pelo cuidado com os pacientes infectados, apesar de
reconhecer uma sobrecarga de trabalho com relação à equipe de enfermagem. No início do
segundo semestre de 2021, época da chamada “segunda onda”, “até os diretores do hospital
desciam pra intubar”, ela relata.
Desde que começou a pandemia e a medida que o número de casos foi aumentando, o
hospital onde Alice trabalha expandiu sua capacidade, construindo setores específicos para o
atendimento a pacientes com covid-19, e aumentando a quantidade de equipamentos - como
respiradores, por exemplo - específicos para o tratamento da covid. “A gente chegava, era uma
UTI nova. A gente chegava, era uma enfermaria nova, eram coisas muito rápidas”. Essa rapidez
com que o setor de manutenção expandia a capacidade do hospital, também era característica
do setor de compras. Alice reitera diversas vezes que “nunca faltou material” nem EPIs para os
funcionários, mas no início do processo pandêmico havia uma dificuldade de compra, por causa
da alta demanda no mercado mundial desse tipo específico de material. Com o passar dos meses
o estoque foi sendo estabilizado e, não houve problemas nesse sentido nem durante a segunda
onda, período em que a demanda foi bem maior por causa do aumento intensivo de casos da
doença.
A falta era mesmo de profissionais capacitados para lidar com o desafiante trabalho que
teria que ser realizado. Muito exaustos por causa de suas rotinas intensas de trabalho, muitos
profissionais - não apenas da área de enfermagem - precisaram se afastar pelos mais variados
motivos e, entre eles, por terem sido infectados pelo vírus, principalmente no ano de 2020,
quando não havia vacina. Apesar de o hospital em que ela trabalhava disponibilizar aos seus
colaboradores serviços de acompanhamento psicológico e psiquiátrico, ela conta que “às vezes
o pessoal dos recursos humanos chegava lá pra fazer alguma ação, mas a gente não tinha tempo,
ninguém tinha tempo pra escutar, não tinha como parar”. Os momentos de pausa eram as folgas,
mas poucos profissionais reservaram esse tempo para fazer algum tipo de acompanhamento

82
com o serviço de psicologia, pois tinham outro emprego. Não era o caso dela, mas ainda assim
ela conta que nunca procurou o serviço.
Além da falta de tempo, muitos profissionais tiveram que lidar com uma situação muito
complicada, principalmente os que estavam no setor de classificação como era o caso de Alice,
na época em que a suposta necessidade de um “tratamento precoce” veio à tona, sendo
promovida por alguns profissionais de saúde e pelo presidente da república. Como a situação
era ainda de muita incerteza com relação aos protocolos de atendimento aos pacientes com
Covid-19, o aparecimento da possibilidade desse tratamento repercutiu diretamente na relação
entre os profissionais de saúde e os pacientes.
No caso de Alice, um fator agravante era o fato de se tratar de um serviço de saúde
privado, em que muitos pacientes exigiam que os médicos receitassem esse tratamento, que não
tinham comprovação de eficácia científica alguma, sem se dar conta do risco advindo do fato
de pisar em um hospital naquele momento.
Por se tratar de um hospital privado, essa intermediação onerosa da assistência fez com
que os pacientes acionassem nesse momento o que Mol (2008) entende como “lógica da
escolha” na modalidade “vertente de mercado”, ou seja, os pacientes eram tratados como
clientes. Neste ponto, é interessante atentar para o fato de que Mol (2008) se refere a uma lógica
originada no lado empresarial da relação de cuidado, ou seja, a empresa, no caso, o hospital,
tomando a pessoa que demanda por seus serviços como “cliente”.
Quando a linguagem do mercado é mobilizada, os pacientes são chamados de
“clientes”. Eles compram seus cuidados em troca de dinheiro. Isso implica que os
pacientes não precisam sentir gratidão pelo cuidado que recebem, ao qual poderiam
se sentir obrigados se o cuidado fosse um presente. Em vez disso, a linguagem do
mercado torna possível dizer que os pacientes têm direito ao valor pelo dinheiro e que
os cuidados de saúde devem seguir a demanda do paciente em vez de serem orientados
pela oferta. A lógica da escolha sugere que, se a oferta realmente seguisse a demanda,
o cuidado seria – finalmente – guiado pelos pacientes. Mas os pacientes realmente
ficarão em melhor situação quando forem transformados em clientes? (MOL, 2008,
p. 14, tradução minha).36

36
When the language of the market is mobilised, patients are referred to as ‘customers’. They buy their care in
exchange for money. This implies that patients do not need to feel gratitude for the care they receive, which they
might feel obliged to if care were a gift. Instead, the language of the market makes it possible to say that patients
are entitled to value for money, and that health care should follow patient demand instead of being supply-driven.
The logic of choice suggests that, if supply were indeed to follow demand, care would – at long last – be guided
by patients. But will patients really be better off when they are transformed into customers? (MOL, 2008, p. 14).

83
Entretanto, a própria Mol entende que, dada a polissemia do cuidado e a presença de
atores diversos no contexto das relações, essas lógicas podem ser acionadas por qualquer um
dos envolvidos, como fizeram os pacientes que exigiram a prescrição do tratamento precoce do
hospital devido à posição de poder que ocupam por pagarem pelo serviço.
Posteriormente, a vacina também motivou algumas tensões entre profissionais de saúde
e os clientes do hospital. Esses fatos colocaram as enfermeiras que estavam no setor de
classificação num situação muito complicada, pois, apesar da autoridade do médico em receitar
ou não essa terapia medicamentosa, elas eram responsáveis por intermediar a relação entre
médicos e pacientes, de acordo com os protocolos de classificação de risco nos quais pautavam
suas decisões sobre a necessidade ou não de internação ou outro procedimento.

Aí como tinha muito paciente bem na classificação, eu ficava espantada porque tinha
paciente que chegava sem sentir nada, mas porque estava no sétimo dia de doença
queria que o médico prescrevesse azitromicina, ivermectina, aquelas bobagens
todinhas. E eles iam se expor, passar por aquele tempo todinho pra pegar essas
medicações. E assim, infelizmente alguns médicos cediam, infelizmente. E tinha
outros também que chegavam muito bem lá...porque a gente sabe que o isolamento,
pela última atualização, é de 10 dias...aí tinha muitas brigas também nessa questão
de atestado, as pessoas iam atrás de atestado também, alguns chegavam lá
esculhambando a vacina. Eu acho que falta muito da parte central, do ministério, de
passar para população que, a vacina é 100% para casos graves, mas você não tá
isento de casos leves. Tinha pessoas que chegavam lá com o esquema completo de
doses, com casos leves e esculhambando a vacina, dizendo que não prestava, que não
iam mais tomar. Ou alguns chegavam com a primeira dose só, com um caso leve e já
dizia que não ia tomar, que não prestava. A maioria lá ia atrás de tratamento precoce
naquele combo lá sem fundamento nenhum. Era isso, atestado e esculhambando a
vacina. A gente tentava. Quando eu classificava eu tentava orientar que 100% era só
para casos graves, mas que ninguém tava isento de casos leves. Mas a resistência era
grande, era muito grande, aliás. Porque a cloroquina não se prescrevia lá, só no
início quando teve aquele tempo que passava o termo de consentimento. Mas alguns
que chegavam lá era atrás de receita de hidroxicloroquina. Eu só faltava cair dura!
(Alice, 28 anos, enfermeira).

Alice aponta as responsabilidades dos órgãos governamentais, principalmente do


ministério da saúde, nessas situações. Ela relata que desde o início as medidas de contenção da
pandemia que partiram do ministério da saúde do Brasil eram ineficazes. As orientações que

84
vinham deste órgão governamental também foram insuficientes segundo ela, e hoje “de covid
eu não olho mais nada do ministério”. As atualizações sobre os protocolos de orientações sobre
a doença ela busca na ANVISA, entidade vinculada ao ministério da saúde, mas que “ tem o
CONITEP (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) , que é o comitê
técnico, que analisa direitinho, são pessoas que avaliam trabalhos científicos, artigos etc”.
Acerca das notas técnicas da ANVISA, Alice destaca a nota 04/2020, pois é “uma nota perfeita,
que desde o início da pandemia ela vem sendo atualizada” e tem ditado as ações da SCIH.
Ainda assim ela reconhece que os posicionamentos do governo, principalmente a nível
federal, fizeram com que os profissionais de saúde passassem pelo pior momento de suas vidas
e, mais especificamente, “para qualquer profissional de enfermagem foi o pior momento da
vida”, pois para ela não havia a necessidade de o Brasil passar pela catástrofe que foi a segunda
onda da pandemia, ocorrida no início do primeiro semestre de 2021. Ela também analisa os
impactos das medidas de gestão local, mas reconhece que, por trabalhar no setor privado, não
passou pelos mesmos problemas relatados por colegas suas que também trabalhavam no setor
público.

E assim, eu não convivi muito, não tive muito impacto porque eu tava em ambiente
privado, né, em hospital privado. Mas as colegas que trabalhavam lá e trabalhavam
no SUS me contavam histórias surreais, surreais mesmo, da prefeitura. Que faltava
sedativo, que os pacientes ficavam acordando durante a noite por falta de sedativo,
EPI faltando também. E eram coisas que a gente não via na divulgação, a gente sabia
porque as colegas que viviam lá contavam. Então tiveram muitas colegas que
entraram na rede estadual ou municipal daqui do estado e acabaram saindo porque
não aguentaram ver aquilo tudo de coisa errada. (Alice, 28 anos, enfermeira).

Já nos aproximando do final da entrevista, ela conta que há muito tempo não visita a
casa de seus pais no interior, nem recebe a visita deles em sua casa. Nos momentos mais difíceis,
seu maior medo era contaminar seu marido, por isso passaram muito tempo dormindo em
quartos separados. Esse cuidado com os seus tinha repercussão em sua atuação no trabalho e,
principalmente, no relacionamento entre as integrantes da equipe de enfermagem, pois se é
possível apontar algo de positivo trazido pela pandemia, a união do grupo sedimentou algumas
incongruências da classe e reafirmou a necessidade da presença de uma ciência que tem no
cuidado sua maior fonte de ação.

85
Porque a classe da gente, em especial a gente da enfermagem, nós já temos um
estigma relacionado a não ser uma área unida. Mas eu acho que a pandemia veio pra
isso também, para reforçar essa questão da cooperação e que ninguém faz nada
sozinho, tudo tem que ser realmente em equipe. E outra coisa também: eu acho que a
pandemia deu muita visibilidade à enfermagem que a gente não tinha antes. Porque
realmente sem um equipe completa, equipada e cooperada você não maneja um
paciente covid de jeito nenhum. É um paciente muito complexo, é um paciente muito
diferente, requer muitos cuidados; é um paciente que uma hora tá bem, outra hora tá
decaindo, outra hora tá em parada. Então, é um paciente que os cuidados têm que
ser 100% a todo momento. A pandemia veio pra dar uma visibilidade da importância
da nossa profissão também. Veio pra tornar visível o que era invisível. (Alice, 28
anos, enfermeira).

Encerramos a entrevista com ela assumindo o compromisso de encaminhar às suas


colegas a proposta de participar também da pesquisa. Mas, conforme já relatei anteriormente,
em um áudio enviado minutos depois de encerrada a conversa pelo meet, ela falou mais
especificamente sobre como estava seu estado de ânimo depois de ter estado todos esses meses
na linha de frente.

86
Capítulo 4 - “Quando eu tirei a máscara, eu me senti vulnerável!”: experiências de
adoecimento, afetos e gestão de risco
Neste capítulo, partiremos de algumas categorias para uma melhor compreensão de
como o processo pandêmico afetou tanto a prática profissional como as relações fora do
hospital, com familiares e amigos. Também serão discutidas as principais formas de
autocuidado apontadas no sentido de obter uma melhor gestão do risco de exposição ao vírus.
Finalmente, analisaremos como a pandemia afetou a saúde mental das profissionais de
enfermagem.
Dentre as diversas questões apontadas nas entrevistas, as drásticas mudanças trazidas
pela pandemia para a prática profissional da enfermagem foram várias vezes destacadas. Essas
práticas variam de acordo com o amplo espectro das formas de cuidar, que são uma
característica da profissão. Seja com relação a questões mais práticas como o manejo de
determinados equipamentos ou procedimentos até a readequação dos espaços e necessidade de
permanecer por até seis horas sem se desparamentar ou mesmo a própria relação com os
pacientes, a enfermagem certamente foi uma das profissões na área da saúde mais afetadas pela
pandemia.
Assim como o cuidar, adoecer durante a pandemia adquiriu os mais diversos
significados. No caso das profissionais de enfermagem, o cenário de constante exposição ao
risco de contrair a infecção desencadeou adoecimentos que não ficaram restritos ao causado
pelo novo coronavírus. O desgaste diário também trouxe consequências para a saúde mental.
De acordo com Rodrigues e Silva (2020), além do medo e da apreensão diante de uma possível
contaminação, essas profissionais tiveram que lidar com o colapso iminente do sistema de saúde
nacional, principalmente no ano de 2020.
Aliado a isso temos a insegurança vivenciada pelas constantes mudanças de fluxos de
atendimento e protocolos institucionais, o que dificulta a rotina de trabalho. Travamos
uma batalha contra um agente invisível que nos ameaça e nos mantém refém. Essa
situação extrema trazida pelo Coronavírus causa muita pressão psicológica, o que
acaba ocasionando ou agravando problemas mentais para os profissionais que estão
na linha de frente deste hospital. (RODRIGUES & SILVA, 2020, p. 6).
Impactadas por esse contexto, as experiências de adoecimento dessas profissionais,
diretamente encerradas nos corpos, se inserem no que Czordas (2008) entende por “paradigma
da corporeidade. Para o autor, o corpo “é a base existencial da cultura” (CZORDAS, 2008, p.
102), isto é, ele é a condição de possibilidade para a observação dos fenômenos, e não um mero
objeto sobre o qual se produzir conhecimento.

87
Do ponto de vista epistemológico, o paradigma da corporeidade rompe com o dualismo
moderno “corpo e mente”, o que “exige que o corpo enquanto figura metodológica seja ele
mesmo não-dualista, isto é, não distinto de – ou em interação com – um princípio antagônico
da mente” (CZORDAS, 2008, p.105). Nesse sentido, as experiências de adoecimento das
profissionais de enfermagem participantes desta pesquisa serão entendidas como a
corporificação do próprio fenômeno “pandemia”. Dentre as oito entrevistadas nesta pesquisa,
quatro haviam sido infectadas pelo vírus até maio de 2021. Entretanto, os aspectos relacionados
à saúde mental e às emoções também foram percebidos como experiências de adoecimento
causadas pela rotina exaustiva e complexa com a qual tinham que lidar diariamente, seja no
hospital ou fora dele.

4.1. “Eu tive menos medo de morrer do que de contaminar alguém”: experiências de
adoecimento por covid-19

Desde o início da pandemia, Fernanda (cujo relato norteou a descrição da UTI neonatal)
foi infectada pelo Sars-CoV-2 duas vezes. Ela elenca dentre os motivos que levaram ao primeiro
adoecimento a sobrecarga de trabalho ocorrida pelos diversos afastamentos de seus colegas que
também adoeciam, e a consequente falta de repouso adequado. Sobre essa primeira experiência
de adoecimento por Covid-19, ocorrida em junho de 2020, ela explica que as incertezas e o
medo com relação à transmissão ditaram a forma como ela, enquanto profissional de saúde,
geriu a doença. Com os filhos sendo cuidados por uma sobrinha e sem querer falar com ninguém
nem por telefonema, ela procurou afastar o cuidado que tantas vezes ela dispensou com relação
aos seus filhos, pacientes, pais etc. Ou ainda, se analisarmos de uma perspectiva inversa, esta
foi talvez uma grande demonstração de cuidado.

A primeira vez foi horrível porque a negação estava muito presente; A negação e um
isolamento muito radical. Eu não queria ver ninguém da minha família. Eu acho que
eu tive menos medo de morrer do que de contaminar alguém. Então a minha maior
preocupação era transmitir a minha doença pra alguém. Foi horrível. Eu neguei a
doença. Neguei, neguei, neguei, até ser levada pro hospital num estado já de
fraqueza...eu fui hospitalizada nas complicações da doença. E eu fiquei no hospital
só. Foi muito angustiante. (Fernanda, 42 anos, técnica em enfermagem).

Mas a linha entre o cuidado de si e o cuidado para com os outros é tênue e invisível.
Depois de passar por essa experiência de isolamento, ela voltou ao trabalho “com os nenéns”,

88
como ela gosta de se referir aos seus pacientes, encontrando o setor com bastantes restrições
físicas.
Em meio a todo esse distanciamento no setor de trabalho, Fernanda acredita ter sido
infectada pelo coronavírus novamente pelo pai de seus filhos, que veio visitá-los em novembro
de 2020, fase em que as taxas de contaminação e morte arrefeceram no Brasil. Entretanto, a
composição da própria narrativa sobre a experiência de adoecimento é uma tentativa de dar
sentido ao acontecido e comporta aspectos morais relevantes. Isso porque, no caso de Fernanda,
apesar de indicar a pessoa que transmitiu o vírus para ela, e com isso conseguir ordenar os
acontecimentos no tempo e no espaço, ela deixou claro para nós que não houve culpa ou
intenção por parte de seu ex-marido, visto que ele não sabia que estava infectado.
Na segunda das experiências de Fernanda com a doença ela teve mais complicações,
pois apresentou problemas pulmonares, nódulos e derrame pleural. “Eu saturei 90”37, ela
explica, mesmo sem histórico de doenças crônicas. O cansaço de nove meses de pandemia
escondeu de Fernanda os sintomas da doença que ela impedia que entrasse na UTI neonatal.
Mas no dia em que foi levar seus pais para votarem nas eleições municipais, ela conta que sua
mãe logo percebeu que era mais que cansaço. E foi o fato de não sentir um dos cheiros que o
cuidado tem nos lares brasileiros, o do óleo de cânfora que sua mãe usou para massagear suas
costas, que ela soube que havia sido infectada por covid-19 novamente. Num ato repentino ela
conta que pediu imediatamente à sua mãe para que se afastasse, mas dessa vez seria diferente.
Porque a minha mãe falou pra todo mundo, ela disse: “Eu não permito que a minha
filha passe o que passou a primeira vez; eu não aceito que a minha filha e os meus
netos fiquem sem os meus cuidados; e eu não quero ninguém interferindo nessa
relação de cuidado; a minha filha vem para minha casa e eu vou cuidar da minha
filha. os meus netos vêm pra minha casa e eu vou cuidar dos meus netos; e se eu
adoecer e morrer, eu adoeci e morri consciente e exercendo meu papel de mãe.”
(Fernanda, 42 anos, técnica em enfermagem).

Cuidado de mãe que se estendia entre as gerações, pois seu filho, diante de sua recusa
em ser hospitalizada, aprendeu a administrar os medicamentos anticoagulantes que ela tomou
durante dezesseis dias. “O afeto fez um efeito muito mais positivo na minha recuperação do
que o isolamento”, foi o que ela, com bastante autoridade, concluiu depois de passar um mês
na casa de seus pais.

37
Ao longo da pesquisa termos técnicos e expressões específicas do ambiente de trabalho das profissionais de
enfermagem surgiram diversas vezes. Além disso, desde que a pandemia começou diversos outros termos
oriundos dessas áreas também passaram a fazer parte do cotidiano, inaugurando um novo vocabulário ao qual foi
preciso se familiarizar aos poucos.
89
As duas experiências de Fernanda com a covid-19 revelam lógicas distintas de gestão
dos riscos envolvidos: uma lógica epidemiológica e uma lógica familiar. Essas lógicas são
delimitadas espacial e temporalmente. Na primeira vez que foi infectada, Fernanda se deteve
sobre o conhecimento que tinha acerca da doença, e logo procurou o serviço de saúde, onde
ficou internada por alguns dias. Mas naquele momento, a maioria dos protocolos advinha do
que já se aplicava a outras infecções respiratórias. Como o vírus era ainda bastante
desconhecido, a melhor maneira de evitar a transmissão era se isolar o máximo possível, visto
que o mínimo contato poderia ser suficiente para contaminar outra pessoa, no caso dela, seus
pais idosos e seus filhos.
Já da segunda vez que foi infectada, no final do ano de 2020, os meses já haviam se
passado e tanto dentro do meio científico quanto fora dele, as pessoas aprenderam a negociar
os riscos envolvidos em situações de exposição e, no caso dela, de cuidado. Aquele também foi
um momento de baixa nos índices de infecções e mortes pela doença. Por isso, vendo a
iniciativa de sua mãe de cuidar dela durante o período em que ficou doente, Fernanda não tomou
a atitude de se isolar, pelo contrário, ficou na casa de seus pais até melhorar. O “cuidado
perigoso” (PIMENTA, 2019) assumido por sua mãe, também tem relação com uma gestão de
risco baseada na escolha. Não se trata de uma escolha compulsória, visto que não era feito por
obrigação, mas, em certo sentido, uma suposta obrigação de cuidar também estava em jogo e
por isso a mãe assumiu o risco de cuidar da filha doente.
Esse afeto também fez a diferença durante os meses em que Cíntia precisou ficar na casa
de seu irmão, Marcelo, por causa do medo de contaminar seus pais. Cíntia também foi infectada
pela covid-19. Entre julho e outubro de 2020 ela foi tirar a licença-maternidade de uma colega
num hospital privado de João Pessoa. Nesse local, ela não lidava diretamente com a assistência
presencial aos pacientes, mas ficava em um setor que recebia ligações de usuários com dúvidas
sobre a doença. Apesar de trabalhar diretamente com pacientes infectados na UPA, foi
trabalhando longe deles que ela foi infectada.
Eu trabalhei lá de junho a outubro de 2020. Mas não era na assistência aos pacientes,
era na Central de Busca Ativa, que é tipo uma regulação. E eu peguei o covid lá, não
foi na UPA, mesmo trabalhando na linha de frente lá na UPA. Mas nesse outro
serviço, como eu trabalhava na regulação, eram seis horas corridas e a gente fazia
as refeições lá mesmo no setor. Era tipo uma cabine onde a gente ficava, tipo um call
center, e a gente tinha que ficar lá direto. Enquanto o telefone não tocava, a gente
comia. Eu trabalhava das sete até às treze horas, era diarista. Então nesse momento
de tirar a máscara pra poder fazer a minha refeição, que era o lanche da manhã, foi
quando eu contraí. Uma das nossas colegas de setor tava infectada e não sabia.

90
Quando ela positivou pra covid ela foi afastada, mas eu já tinha me contaminado. Foi
nesse momento. Porque lá na UPA, mesmo nesse momento que era o pico da
pandemia, a gente trabalhava toda paramentada e eu fazia tudo bem certinho pra não
me contaminar. a paramentação e a desparamentação, como foi feito no treinamento.
E a gente não tirava a máscara de jeito nenhum. Então foi nesse momento, nesse outro
serviço. Quando eu tirei a máscara eu me senti vulnerável. (Cíntia, técnica em
enfermagem, 05.05.2021).

Durante esse tempo, o cuidado dispensado por seu irmão também foi o diferencial para
que ela se recuperasse e retornasse ao trabalho em 10 dias. Entretanto, esse evento foi decisivo
para que ela resolvesse interromper esse contrato com o hospital privado e continuasse
trabalhando apenas na UPA com os pacientes infectados pela covid-19.A atitude de Cíntia, que
se descontextualizada poderia soar como das mais corretas - sair da casa de seus pais em um
momento tão crítico como a pandemia - invoca a mesma lógica que levou Fernanda a se isolar
quando foi contaminada pela primeira vez. Apesar de ter ficado em casa, - a casa de seu irmão,
habitada por ele e seu companheiro, os dois enfermeiros e atuando na linha de frente assim
como ela - ela enxergava aquele como um ambiente de risco em relação à casa de seus pais, por
isso a melhor forma de cuidar deles nesse momento foi se mudar.
A experiência pontual de exposição ao vírus narrada por Cíntia durante o tempo em que
atuou nesse hospital privado, reitera o caráter polifônico do risco, que, dado o seu caráter
também político, representa uma difusão de ideias e narrativas sobre experiências (NEVES &
JEOLÁS, 2012, p. 14).
Além de propagado no senso comum, o termo é utilizado em várias áreas do
conhecimento, acumulando, portanto, muitos significados e dificultando o que
se busca analisar, tornando-o, muitas vezes, polêmico. O desenvolvimento da ciência
e da tecnologia produziu incertezas, em grande parte de caráter global, ressaltando
os riscos industriais e ambientais que colocam em perigo toda a humanidade
(efeito estufa, energia nuclear), os riscos econômicos e políticos (guerras,
violência e vulnerabilidade social), os riscos financeiros (lucros fantásticos e
prejuízos monumentais). Por essa razão, o risco ganhou centralidade como
questão social, política, econômica, jurídica e ética na atualidade, tornando-se
importante conceito para referir problemas coletivos, em áreas como a
epidemiologia, a tecnologia, o meio ambiente e o direito, dentre outras. (NEVES &
JEOLÁS, 2012, p. 14).

Retornando à interlocutoras, Luciana conta que também foi infectada pelo vírus, já em
2021 e mesmo após as duas doses da vacina contra a doença.

91
Com certeza foi em um plantão em que eu tive que fazer muitas coletas e não usei a
N95 em todas as vezes. Eu passei 2020 inteiro entre “é covid” e “é rinite”, então eu
achava que era rinite. Só que por uma dor de cabeça que tava persistindo muito, eu
desconfiei. Aí eu fiz o exame de antígeno e deu positivo pra covid. E eu fiquei naquela,
pensando: caramba, agora é que eu vim pegar?! Mesmo depois de vacinada e de
passar um ano na linha de frente! Aí veio a dor de cabeça, a tosse, a ausência de
olfato e paladar de um dia pro outro, que pra mim realmente era a pior coisa…depois
da tosse, porque a tosse é realmente muito incômoda. (Luciana, 30 anos, técnica em
enfermagem).

Durante esse período em que ela reconhece que tinha muito medo de contaminar alguém
que ama, ela conta que a presença de sua companheira, que é médica, também foi fundamental
para sua recuperação.
Minha companheira é médica no mesmo serviço onde eu trabalho, na UPA. Ela disse
logo: “você não vai ficar em casa sozinha, você vai ficar aqui em casa comigo!”. E
eu passei todo o meu período de isolamento sendo acompanhada por ela. Teve um
dia em que eu tive uma crise de tosse muito forte, que faltou um pouquinho o ar, mas
foi muito rápido mesmo. Mas aí deu uma afliçãozinha. Só que eu tava medicada. Eu
tava medicada pra dor de cabeça, febre, bombinha, se faltasse ar…E aí uns oito dias
depois do diagnóstico eu já tava com olfato e paladar de volta, a tosse muito
esporádica e a dor de cabeça eu já não tinha mais. Realmente foi bem tranquilo.
(Luciana, técnica em enfermagem).

Zélia também foi infectada pelo vírus por volta de maio de 2020, mas não atribuiu a um
evento ou espaço específico apesar de que, como ela mesma disse, “naquela época, a gente
andava agarrada com a COVID porque era muita gente infectada; você entrava no local e dizia:
pronto, já fui contaminada!”.
Eu peguei em maio do ano passado (2020). Fui uma das primeiras do meu setor a
pegar. Mas graças a Deus eu tive sintomas leves. O que me incomodou mais foi a dor
de cabeça porque não tem remédio que passe! Você tem que esperar os dias da doença
mesmo pra se recuperar disso. Além disso, fiquei um pouco indisposta. A tosse durou
pouco tempo, mas eu perdi o olfato e o paladar. E isso até me preocupou porque eu
passei mais de um mês sem olfato e paladar, achava que nem ia voltar mais, mas
graças a Deus que voltou. Mas não tive nada grave não, nem fiquei saturando nem
nada. Só foram sintomas leves mesmo. (Zélia, técnica em enfermagem).
As narrativas acerca dessas experiências, que são diretamente atravessadas pelas
alterações abruptas no cotidiano dessas profissionais, são exemplos do que Mattingly (1998)
entende como “emplotment”,

92
Ao atender ao planejamento terapêutico, atendo à ação e à experiência tanto como
pessoal quanto como algo socialmente construído. Enfatizo o lado metafórico e
fenomenológico do cuidado em saúde, examinando intervenções clínicas como
transações entre o(s) mundo(s) da biomedicina e os mundos de vida dos pacientes. A
noção de enredo terapêutico oferece uma maneira de examinar a construção social (e
reconstrução) da doença e da cura como um processo fluido e mutável influenciado
não apenas por grandes condições estruturais e significados culturais, mas também
pelas exigências da situação concreta. Igualmente importante, é a análise narrativa da
interação clínica que ajuda a desvendar as dimensões morais da prática clínica.
(MATTINGLY, 1998, p. 20, tradução minha)38.

Nesse sentido, a narração das experiências vividas e a tomada de decisões práticas, como
o afastamento da casa dos pais ou o isolamento dentro de casa, se encaixam na definição de
Mattingly (1998). Entretanto, essa mesma construção da narrativa sobre uma doença ainda
permeada por muitas incógnitas precisa ser considerada. Langdon (2001) ao analisar a
perspectiva do “emplotment” reconhece que sua aplicabilidade analítica que une a experiência
à ação não está limitada ao ambiente clínicos, mas que serve sobretudo para “entender melhor
o processo terapêutico tomado pelo doente ou sua família” (LANGDON, 2001, p. 257).
No decorrer da doença e de sua terapia, as pessoas estruturam suas
ações e decisões de uma maneira que homologa as estruturas das narrativas
contadas e que lhes permite obter uma sensação de controle da situação difícil.
Apesar da análise de Mattingly tratar de situações clínicas, penso que este
processo de construção de enredo faz parte de experiências e nos ajuda a
entender melhor o processo terapêutico tomado pelo doente ou sua família.
(LANGDON, 2001, p. 257).

Considerando a “posição” das profissionais de enfermagem no contexto pandêmico e,


principalmente, o fato de estarem presenciando a construção de um conhecimento acerca de
uma nova patologia na prática, é preciso considerar que a narrativa sobre a experiência vivida,
ao mesmo tempo em que as coloca no polo passivo (o de paciente) da situação, também as

38
In attending to therapeutic planning, I attend to action and experience both as a personal and as something
socially constructed. I emphasize the metaphorical and phenomenological side of health care, examining clinical
interventions as transactions between the world(s) of biomedicine and the life worlds of patients. The notion of
the therapeutic plot offers a way to examine the social construction (and reconstruction) of illness and healing as
a fluid and changing process influenced not only by broad structural conditions and cultural meanings, but also by
the demands of the concrete situation. Equally important is the narrative analysis of clinical interaction that helps
to unravel the moral dimensions of clinical practice. (MATTINGLY, 1998, p. 20).

93
posiciona como agentes, principalmente se considerarmos que o afastamento do núcleo familiar
foi a principal atitude tomada por elas desde o momento em que souberam que estavam
portando o vírus.
Nesse sentido, cabe ainda considerar que sua própria condição profissional lhes deu,
naquele momento (primeiros meses da pandemia) o discernimento para engendrar itinerários
de cuidado (BONET, 2014) bastante específicos.
De forma complementar a esta característica metaforizada da categoria de cuidado, a
perspectiva proposta aqui requer uma visão ampliada do cuidado. Já não estamos
aludindo meramente a uma dimensão biológica ou terapêutica no sentido biomédico,
associada à saúde, mas a ações realizadas pelos usuários e que não são consideradas
como ações de saúde, mas de cuidado. Nessas ações, mobilizam-se não somente os
serviços de saúde, mas também a vizinhança. Com essa plasticidade ampliada o
cuidado abrange, também, a dimensão política das ações cotidianas do cuidar, sejam
dos profissionais ou dos usuários. (BONET, 2014, p. 337).

Com isso, e considerando a construção das narrativas acerca da experiência de


adoecimento por covid-19, pode-se dizer que, o principal itinerário de cuidado adotado pelas
interlocutoras passa pelo o isolamento familiar (ao menos inicialmente a intenção foi essa), pois
elas, por estarem lidando diariamente com pacientes infectados por uma doença sobre a qual
pouco se sabia até então, terem medo de contaminar seus pais, filhos ou parentes próximos,
seguindo, portanto, a principal orientação das autoridades sanitárias.
Entretanto, cabe ressaltar que, mesmo diante de um fator bastante significativo com
relação ao risco de infecção, a saber, a necessidade de distanciamento físico, inclusive, nos
termos possíveis, dentro do próprio ambiente doméstico, “o afeto fez diferença”, como bem
disse Fernanda. Esse afeto implica além de cuidados técnico-científicos, como o suporte
medicamentoso necessário para a experiência “tranquila”, nos termos de Luciana, mas também
a proximidade física. Ao mesmo tempo em que estavam isoladas em relação ao seu ambiente
de trabalho, família ou casa dos pais, Cíntia e Marcelo, Fernanda e sua mãe e Luciana e sua
companheira estabeleceram relações de cuidado baseadas em aspectos “tangíveis” exatamente
no momento em que a recomendação biomédica era fazer justamente o contrário, isto é, se
afastar.
Constantemente expostas ao risco de contaminação por um vírus com altas taxas de
letalidade e muitas vezes sem dispor dos EPIs adequados, as enfermeiras precisaram readequar
algumas de suas práticas de cuidado para que pudessem proporcionar mais segurança também
aos próprios pacientes acometidos pela infecção por Covid-19. Ainda assim, aconteceram

94
situações em que elas se sentiram mais expostas à contaminação e muitas adoeceram com
sintomas graves da doença. Nesta parte discutiremos como era feita essa gestão do risco pessoal
e como a gestão da própria pandemia em seus diversos níveis de governo era um fator agravante
para exposição ao vírus.

4.2. “Eu sinto muita falta de abraçar meus pais”: sofrimento, emoções e saúde mental

Com a prática profissional afetada pelas normas de biossegurança trazidas pela


pandemia, a relação das enfermeiras em casa também mudou. Conforme já foi discutido, o
medo de contaminar seus pais, filhos, companheiros, companheiras e amigos foi o sentimento
mais destacado pelas enfermeiras durante as entrevistas. Desde o isolamento físico dentro de
suas próprias casas até a suspensão dos contatos mais diretos como abraços, por exemplo,
deixaram essas mulheres ainda mais isoladas, justamente num momento em que precisavam de
apoio e cuidado.
Diante de todas essas situações, profissionais e pessoais, trazidas pelo contexto
pandêmico, a saúde mental de quem trabalhava na linha de frente certamente foi bastante
afetada, seja pela necessidade de afastamento de seus familiares e amigos, seja pelo fato de
estarem presente quase que diariamente num ambiente de trabalho bastante complexo e afetado,
que tensiona continuamente ao ameaçar a vida do profissional, o desenvolvimento de problemas
relacionados à saúde mental foi destacado nas entrevistas como um dos principais problemas
trazidos pela pandemia. Quadros depressivos e crises constantes de ansiedade que antes não
existiam, passaram ser mais um agravante para a categoria que não pôde ficar em casa em
nenhum momento da pandemia.
Entretanto, ao adentrar ao ambiente doméstico as narrativas das interlocutoras sobre a
pandemia tomam dimensões preponderantemente afetivas, visto que os laços sociais nesses
locais são mais fortes. Esse fato tem ressonância tanto nas categorias apontadas por elas -
sofrimento, saúde mental, cansaço, ansiedade, medo etc. - quanto no significado que esses
termos adquirem no contexto de cada uma, já que mesmo mesmo quando passam a integrar a
casa elas permanecem sendo profissionais de saúde com conhecimentos específicos da área.
Koury (2020) destaca que o isolamento social provocado pela pandemia atrelado ao
contexto sociopolítico brasileiro repercutem diretamente na percepção da população brasileira
acerca de seus sentimentos. Nesse sentido, é necessário entender a lógica de significação dessas
emoções que foram acirradas pelo contexto pandêmico, e que também apareceram nas falas
das minhas interlocutoras.

95
A emoção medo é sentida e se refere a situações claras e definidas em relação a algo
imediato e determinado. O sentimento de ansiedade, por sua vez, é experimentado em
situações de apreensão e tensão como uma sensação desagradável, mas ainda não
completamente definida. A ansiedade e o medo, assim, são emoções e sensações que
andam juntas, de mãos dadas e em relacionamento intensivo na vida de cada um e do
conjunto dos moradores de cada unidade de isolamento. (KOURY, 2020, p. 17).

Essas emoções estão presentes a todo momento tanto no ambiente de trabalho quanto
em casa, no caso das profissionais de enfermagem. Fernanda, ao ser perguntada sobre como
estão suas emoções, seu estado de ânimo depois desse primeiro ano pandêmico, ela diz que
sempre foi muito otimista e segurava as pontas de seus familiares e colegas de trabalho, sempre
que precisavam. Mas a pandemia revelou um lado seu muito vulnerável: “hoje eu me sinto na
condição de precisar de apoio emocional”, ela explica.
Também nos diz que o hospital onde trabalha enviou e-mails informando sobre a oferta
de apoio psicológico aos servidores, mas que ela não procurou o serviços pois prefere conversar
com amigos próximos e familiares quando sente “uma tristeza que antes não sentia”. Tristeza
bastante situada devido ao cansaço provocado pelo tempo e a forma como está sendo conduzida
a pandemia no Brasil: “em janeiro eu tinha uma esperança muito grande de que a gente ia estar
vivendo uma situação muito diferente nesse momento'', ela explica.
De fato, janeiro foi o mês em que parecia que as coisas iriam mudar em direção a uma
estabilidade do problema, pelo menos era o que as baixas taxas de mortalidade e internações
causadas pela infecção revelavam. Em janeiro de 2021, mais especificamente no dia dezessete,
começava a vacinação contra covid-19, evento de grande repercussão e que renovava nossas
esperanças, pois o Brasil, por causa do SUS, é referência mundial em termos de imunização.
Mas a vacinação seguiu a passos lentos e no primeiro semestre de 2021 foi instalada
uma Comissão Parlamentar de Inquérito(CPI) no Senado Federal para apurar os motivos de o
Brasil figurar no segundo lugar em número de mortes, mesmo com todas as garantias de
efetividade e cobertura dos programas de imunização anteriores. A CPI foi encerrada em
outubro de 202139. Era abril, quase maio de 2021 e a chamada “segunda onda” da pandemia
batia mais de quatro mil mortes diárias notificadas por Covid-19.

39
Os encaminhamentos da CPI ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério Público (MP) indicaram a
suspeita de fraudes na compra de medicamentos, equipamentos e vacinas, rede de propagação de fake news, além
de fraudes na construção de hospitais. O presidente da República, Jair Bolsonaro, também é citado por crime de
prevaricação na compra de vacinas.

96
Foi a essa constatação que Fernanda atribuiu o que ela chamou de “tristeza que antes eu
não sentia”.
Até então eu tinha mais esperança, hoje eu fico lutando pra manter a esperança. Eu
acho que eu não tinha falado isso pra ninguém ainda, viu. Sempre tentando ser forte.
Porque quando um profissional de saúde, e que estuda e admite isso pra sociedade,
isso é muito grave, isso é muito delicado. A gente não sabe a repercussão disso na
vida de cada um. Então, como profissional de saúde, pra minha família
principalmente, eu tenho que manter...manter a esperança. Porque se eu, como
profissional de saúde que sou, disser pra minha mãe ou pro meu pai que tá muito
difícil, a repercussão emocional pra eles vai ser muito pior. (Fernanda, 42 anos,
técnica em enfermagem).

Todas as demandas provocadas pela pandemia desencadearam em Marcelo um processo


depressivo por volta de meados de 2020, que ainda permanece trazendo consequências, como
crises de ansiedade, por exemplo. Mesmo morando com seu companheiro, que também é
enfermeiro, frequentava bastante a casa de seus pais. Sua irmã mais velha, Cíntia, que lhe serviu
de inspiração e também trabalha no mesmo setor na UPA, veio morar com ele e permaneceu
nos primeiros quatro meses de pandemia, deixando seus pais isolados em casa.
Enquanto os irmãos permaneciam no cuidado de desconhecidos, o cuidado dos pais
estava ausente na vida dos dois, que, nos primeiros meses optaram por não visitá-los. Marcelo,
que foi infectado, mas não apresentou sintomas graves, precisou se isolar dentro da própria casa
para não infectar seu companheiro. Até o dia em que conversamos, os pais de Marcelo, que
estavam na faixa acima dos 50 anos, ainda não haviam sido vacinados, já era abril de 2021,
momento em que o Brasil passava por um dos pontos mais críticos da pandemia.
Então, afetou sim nas nossas relações, ela [a mãe] ficou bem triste no início, ela ligou
pra mim várias vezes chorando e dizendo que tava com muita saudade. Aí vai eu ter
que explicar...mesmo destruído por dentro, né...mas ter que explicar a ela que era
uma condição necessária, que ela ficasse em segurança, que ela tinha risco maior
mesmo, que eu que estava me expondo neste momento, não tinha muita escolha. E é
um ponto bem sensível pra mim porque eu sou muito apegado à ela e sou muito
apegado ao meu pai também, e enfrentar isso eu acho que foi uma das coisas mais
difíceis. Porque esse distanciamento não favorece a gente nem psicologicamente, nem
emocionalmente, porque a gente também precisa do contato físico. Faz muito tempo
que a gente não se abraça. (Marcelo,27 anos, enfermeiro).

E mesmo com sua irmã tendo voltado a morar com seus pais, as restrições de contato
permanecem, fato que, segundo ele, afeta ainda mais sua saúde mental. Já Cíntia, mesmo tendo

97
voltado a conviver diariamente com seus pais, explica que muitas restrições foram mantidas
por causa do medo de contaminá-los, mesmo que eles já houvessem iniciado o esquema vacinal.
Eu não chego perto dos meus pais. Sempre fico mais no meu quarto e quando a gente
tá na sala junto, sempre fica distante um do outro. Quando eu chego do trabalho já
tem um baldinho perto da porta. Ali mesmo eu tiro a roupa, me enrolo na toalha e já
passo direto pro banho. Aí depois do banho é que eu vou ter “contato” com eles: eles
em um sofá e eu no outro pra assistir o Jornal Nacional. Ou eu sento pra assistir
alguma novela com ela. Porque meu pai trabalha e ela passa o dia todo sozinha. Aí
eu sento pra ver a novela, converso um pouco com ela, mas afastada. Porque eu sei
que ela sente muito a situação. Só fica eu e ela em casa quando meu pai tá
trabalhando. Mas eu sinto muita falta de abraçar meus pais. Muita mesmo. Eu não
sei quando foi que eu abracei minha mãe e meu pai. Já faz muito tempo mesmo.
(Cíntia, técnica em enfermagem).

Quando perguntada sobre como estavam suas emoções depois de pouco mais de um ano
de pandemia, Alice se esquivou um pouco e respondeu de maneira mais geral, falando sobre a
importância de valorizar a vida e manter relações saudáveis entre as pessoas. Para minha
surpresa, uma resposta mais incisiva só viria posteriormente, através de um áudio de cerca de
dois minutos, que ela me enviou cerca de quarenta minutos depois de encerrada a entrevista.
Falando muito baixo, quase sussurrando, ela conta que atravessou um processo depressivo
provocado por sua atuação na linha de frente e que até hoje permanecem as crises de ansiedade
e certo cansaço que antes não sentia.

Esqueci de te falar. Foi uma coisa que me atrapalhou muito. No início agora da
segunda onda eu não conseguia dormir. Essas crises vinham no meio da noite e eu
não dormia não. Ficava rolando e não conseguia dormir de jeito nenhum. A sensação
que eu tinha é que ia morrer mesmo. (Alice, 27 anos, enfermeira).

Fiquei me perguntando o motivo de ela só ter respondido a questão depois e de seu tom
de voz ser tão baixo. Nunca vou saber se foi porque na hora da entrevista seu marido estava em
casa e certamente ouvia nossa conversa, e ela não se sentiu à vontade em falar sobre algo tão
pessoal, ou se, na pressa em mostrar detalhadamente sobre o que ela e suas colegas tinham
passado naquele ano, ela acabou esquecendo de falar de seus próprios sentimentos.

98
Ainda é preciso escrever sobre a pandemia no presente…

Os desdobramentos da crise sanitária causada pelo novo coronavírus que surgiu ao final
do ano de 2019 foram os mais diversos, atingindo com isso uma variedade de populações em
graus diferentes. Se no início da pandemia, quando ainda não havia protocolos suficientes que
garantissem algum nível mais elevado de biossegurança, a principal recomendação das
autoridades nos levava a acreditar em um evento de amplitude homogênea, que atingiria a todas
e todos sem distinção, isso logo deu lugar à intensificação das mazelas sociais que nos
distanciam. Além de estarmos em barcos diferentes 40, os ventos sopram as velas em sentidos
diferentes.
A condição de vulnerabilidade que nos unia enquanto humanos diante de uma ameaça
biológica com potencial letalidade apresentava intensidades distintas, não só da perspectiva do
organismo - ser ou não dos grupos de risco, ter ou não uma doença crônica ou idade mais
avançada etc -, mas sobretudo do ponto de vista social. O isolamento acabou, portanto, indo
além de sua condição normativa, passando a significar uma forma de segregação social. Mas
esse era apenas um dos “protocolos para sobrevivência” que passaram a fazer parte do
cotidiano, que também fora tomado por máscaras e frascos de álcool a 70%. Nas ruas, apenas
com os olhos à mostra, os rostos expressavam o medo. E mesmo com todas essas variáveis
envolvidas, isolar-se e com isso impedir a cadeia de disseminação do vírus ainda é a principal
medida para evitar que mais mortes aconteçam, visto que o tempo da pandemia ainda é o
presente e muitas pessoas sequer puderam em algum momento permanecer em casa.
O recorte temporal desta dissertação - entre 2020 e o primeiro semestre de 2021 - nos
levou para dentro dos hospitais, lugares em que o cuidado esteve a todo momento tentando
conter as consequências de um país em colapso, já que a crise nunca foi só sanitária, mas esta
apenas acentuou as outras crises com que o Brasil vem lidando há muitos anos. Uma crise
econômica, que produz mais bilionários e mais miseráveis 41. Uma crise política, que

40
Referência à expressão “estamos todos no mesmo barco”, bastante repetida nas semanas iniciais da pandemia
para se referir ao fato de que supostamente a possibilidade de sermos infectados pelo novo coronavírus existia de
maneira igualitária, independentemente de questões como renda, moradia, estabilidade financeira etc. Com o
passar dos meses, o cenário pandêmico se apresentou de maneira contrária. No caso do Brasil, as consequências
da pandemia variam bastante se considerarmos fatores como raça, gênero ou condição socioeconômica.
41
De acordo com dados da revista Forbes, mesmo com a pandemia, o Brasil ganhou novos bilionários em 2021,
mesmo período em que aumentaram os índices de desemprego e insegurança alimentar. Disponível em:
<https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/04/06/brasil-ganha-11-novos-bilionarios-na-lista-da-
forbes.ghtml>.<https://noticias.r7.com/economia/fome-e-situacoes-de-extrema-pobreza-se-tornam-rotina-no-
pais-20102021>. Acesso em 13 de fevereiro de 2022.
99
enfraquece a unidade federativa42. Uma crise social, que priva a maioria dos brasileiros e
brasileiras da garantia às condições mínimas de viver com dignidade em um momento tão
crítico e incerto. Uma crise na ciência43, que fomenta inverdades, desmente estudiosos e impede
que o conhecimento supere a ignorância.
Lidando direta e diariamente com as consequências desses problemas, muitos
profissionais de saúde são infectados, adoecem, morrem. Ainda assim, em nenhum momento
abstiveram-se de permanecer executando suas atribuições, e cuidando dos que mais precisam
de ajuda neste momento, atuando não só no cuidado direto, mas lutando para proteger seus
parentes em suas aldeias ou buscando reconhecimento profissional. Mas assim como a
pandemia de covid-19 significa um agravamento do contexto sociopolítico brasileiro, ela
também traz o cuidado para o centro das práticas cotidianas. E quem, senão as representantes
de uma profissão historicamente relacionada às práticas de cuidado para falar sobre como isso
acontece na prática?
Mulheres que, mesmo no começo, quando pouco se sabia sobre o vírus e as
consequências da infecção, quando o contato entre alguns profissionais de saúde e os pacientes
infectados era bastante restrito, desdobravam-se em turnos exaustivos, chegando a passar mais
de seis horas paramentadas sem poder sair do setor para nada. Técnicas, enfermeiras e auxiliares
que, ao mesmo tempo, aprendiam a executar procedimentos que antes não lhes cabiam e a
monitorar as incertezas decorrentes do desenvolvimento da infecção. Além de darem suporte
emocional aos pacientes. E, muitas vezes, depois desse longo tempo de trabalho, eram
hostilizadas nas ruas.
Ao chegar em casa, o carinho tão necessário de seus filhos, filhas, pais, maridos,
esposas, companheiros, companheiras etc., também estava interditado porque o medo de trazer
o vírus para casa é que ditava as regras de convivência. Um cuidado doloroso, mas ainda
necessário. Entretanto, a necessidade não impede o corpo de expressar o quanto todo esse

42
As disputas entre o governo federal, estados e municípios acerca de medidas de contenção da pandemia
agravaram o cenário de instabilidade política entre os entes federativos, trazendo consequências sociais graves e
deixando muitas vezes a população à deriva.Disponível em:<https://jornal.usp.br/radio-usp/pandemia-agrava-
crise-federativa// Acesso em 13 de fevereiro de 2022.
43
O planejamento orçamentário do governo federal tem siso programado com diversos cortes nas verbas
destinadas à pesquisa científica, que, no Brasil, é preponderantemente financiada com recursos públicos. Mesmo
com a chegada da pandemia e as diversas crises que se sobrepuseram à crise sanitária, os cortes permaneceram, ao
mesmo tempo em que a disseminação de notícias falsas sobre a covid-19, a vacina, o uso de máscaras e outras
medidas de prevenção da infecção cresceu. Disponível em: http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/o-apagao-da-
pesquisa-no-brasil-e-seus-efeitos-praticos/>. Acesso em 13 de fevereiro de 2022.
100
contexto causava sofrimento. E elas adoeceram. Mas voltaram para o front para enfrentar os
mesmos riscos que o cuidado oferecia.
Do lado de cá da tela, busquei na antropologia as ferramentas para melhor compreender
como isso aconteceu. A grande questão é que a antropologia também não era a mesma e também
precisou se adaptar às impossibilidades, e, ao mesmo tempo, abrir novos caminhos, novas vias
de descoberta, voltar à varanda, mas apenas o necessário para saber o que fazer e como fazer
etnografia no contexto pandêmico. De volta ao campo, o trabalho foi aos poucos tomando forma
e dando resultados. Esse processo, que também foi de autodescoberta, desvelou o lado mais
empolgante de se fazer antropologia: a possibilidade do devir. Possibilidade que exige a
necessidade de continuarmos falando sobre a pandemia no presente.

101
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Sites

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107
Apêndices

Apêndice 1 - Roteiro de Entrevistas

PROJETO: Os riscos do cuidado: experiências do trabalho das profissionais de enfermagem e


a gestão da pandemia de covid-19 no brasil
1. Nome, formação, ano de nascimento e há quanto tempo trabalha como profissional de
enfermagem.
2. Por que escolheu a enfermagem? Como vê o imaginário em torno da profissão? ( cuidado?)
3. Onde trabalha, função no hospital e suas atribuições.
4. Como era sua rotina no hospital antes da pandemia? Quantas horas trabalhava? Em que setor,
fazendo o que, exatamente?
5. Quando ouvi falar pela primeira vez do novo coronavírus e o que ouviu falar? Você recebeu
algum tipo de treinamento, informação etc.?
6. Você se lembra quando apareceram os primeiros casos no hospital?
7. O que mudou na sua rotina desde o início da pandemia? Que mudanças houve em relação a
suas atribuições especificamente, horas de trabalho, responsabilidades?
8. Em termos de protocolos para lidar com doentes com Covid– o que vocês receberam do
Ministério e das Secretarias? O que mudou nesse tempo de pandemia, em termos de orientações
quanto a tratamento, internação etc.?
9. Quem é responsável por que, em termos da equipe no hospital, para lidar com os casos de
Covid-19? Como é essa organização do trabalho? Quais foram as mudanças nesse tempo, em
termos de relações da equipe? Estão existindo muitos conflitos? Relações de cooperação?
10. Os EPI’s estão sendo disponibilizados corretamente?
11. A relação com os doentes se modificou? E com as famílias dos doentes? De que modo está
sendo feito o contato com as famílias neste momento em que não podem ser feitas visitas?
12. Como você vê as medidas que foram adotadas pelo governo para conter a pandemia
(inclusive no hospital, especificamente)? Se estão sendo efetivas, etc.

108
13. Quais as principais dificuldades e desafios que você encontra com relação ao tratamento de
pessoas infectadas com a covid-19 no hospital?
14. Você recebeu alguma orientação sobre tratamento precoce (kit covid, cloroquina,
azitromicina etc)? Percebeu se as pessoas optam por esse ou outros tratamentos?
15. Como profissional de saúde, como você está acompanhando as informações sobre
pesquisas, desenvolvimento de vacinas, etc? Por onde você se informa?
16. Em relação às medidas de prevenção ao contágio, quais as medidas que você,
individualmente, está tomando?
17. Houve algum momento em que você se sentiu em risco de contaminação por exposta de
alguma forma?
18. Como você descreveria sua situação em termos de segurança no trabalho? Se sente mais ou
menos protegida, em risco...? Já teve alguma situação em que se sentiu particularmente
exposta? Tem/teve covid ou pensou ter tido? E seus colegas? Como você lida com essa situação
no cotidiano do trabalho? Tem mudado a sua percepção de risco?
19. Em relação a sua situação em casa, qual é sua situação familiar? Quem mora com você neste
momento? De que modo a pandemia afetou sua vida doméstica? Quem está em isolamento e
quem não está? Como está sendo a entrada e saída de casa, que medidas você está tomando em
relação à segurança da família? Em relação às tarefas domésticas, houve alguma modificação
nesse tempo? Como está sendo conciliar trabalho e casa em tempos de pandemia?
20. Recebeu mostras de solidariedade ou, pelo contrário, já foi alvo de hostilidade?
21. Como você descreveria suas emoções, seu estado de ânimo diante da situação provocada
pela pandemia?
22. Como você espera que seja o cenário, no âmbito das práticas hospitalares, pós-pandemia?
E em termos de vida cotidiana?
23. Por fim, tem alguma outra questão que você gostaria de acrescentar? O que você achou
dessa entrevista?
24. Teria alguém para indicar?

Apêndice 2 - Roteiro do Formulário no Google Forms

109
QUESTÕES DO FORMULÁRIO

1. Nome
1. Idade
2. Gênero
2.1.Masculino
2.2. Feminino
2.3. Outro
3. Raça
3.1.Preto
3.2. Pardo
3.3. Branco
3.4.Amarelo
3.5. Indígena
4. Formação
4.1.Auxiliar de enfermagem
4.2. Técnico(a) de enfermagem
4.3. Enfermeiro(a)
5. Estado (UF)
6. Você gostaria de ser entrevistado(a) sobre sua experiência profissional na linha de frente
de combate à Covid-19?
( ) Sim ( ) Não
7. Caso sua resposta anterior tenha sido "sim", por favor, deixe seu email ou whatsapp que
entraremos em contato.

Apêndice 3 - Captura de tela da mensagem solicitada por Carolina para enviar às suas colegas
de trabalho. Mensagem enviada em 23 de abril de 2021. Esse foi o mesmo texto enviado à
todas as pessoas que foram indicadas pelos outros dois interlocutores iniciais.

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