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O dia amanhecia assim como havia se posto.

Quando se vive no campo, e sua visão alcança


apenas milharais e pastagens que parecem não ter fim, sua perspectiva de vida se limita as
estradas tortuosas de barro e lamacentas durante as chuvas, este era o caso daquela segunda
feira de setembro, na noite anterior os céus trouxeram tempestades carregadas de água e
trovões e o ambiente estava úmido e desolador.

Sebastião olhava-se no espelho de moldura laranja antes de sair para a escolinha rural,
observava o vidro empoeirado refletindo seu rosto murcho e enrugado que denunciava seus
sessenta e três anos, e a amargura dos quarenta e cinco em que passou acorrentado a estas
terras esquecidas pelo tempo. Entretanto a de uma coisa que a idade não lhe tirara, algo que o
salvava todos os dias de ceder sua carne e sanidade aos solos inférteis e secos do sertão, sua
escrita. Todos os dias observava crianças que entravam na escola em que trabalha como vigia,
as observa, dá o bom dia matinal e analisa seus movimentos e conversas banais, mas então
transforma os diálogos triviais e as brigas de refeitório em contos fantásticos com vampiros e
lobos, sangue e desgraça. Nas páginas amareladas do caderninho de capa de couro marrom
que ganhara de seu pai antes de sua morte, Sebastião derramava sua frustação e infelicidade
mascaradas por personagens que sussurravam todas as noites em seu ouvido.

Após seu turno terminar e trancar o portão de entrada, o vigia sentado na varanda de sua
casa, lia alguns contos escritos pelo pai no caderno e rascunhava o papel com letras
carrancudas, parando às vezes para mordiscar a caneta e mover os olhos pela paisagem
tomada pela escuridão e o som das cigarras. ‘’Velho, solitário, uivando pela eternidade,
derramando sangue enquanto busca pela liberdade.’’ Sebastião lia o trecho encontrando a
caligrafia do pai e se perguntava o que significava. A semana transcorria lentamente, e aquela
frase insistia em martelar seus pensamentos, seu cansaço aumentara e então numa tarde de
domingo enquanto cochilava em sua rede, suas mãos tremiam e o trecho ecoava em sussurros
gritantes em sua mente, seu rosto suava e sua respiração acelerava, até que visualizou a si
mesmo, como vendo um filme, pelos grossos ao invés de pele, unhas compridas e afiadas e a
cada segundo que se passava menos humano o vigia se tornava, foi então que agachou-se no
chão urrando como uma fera e após a transformação completa nenhum traço meramente
humano poderia ser visto, apenas uma faceta demoníaca que então, em flashes impetuosos,
via-se uma criatura cortando com os dentes, afiados como navalha, a carne morna e crua de
um dos estudantes da escola, que logo encontrava-se banhado por sangue quente e a luz
prateada da lua, devorado como um dos pratos mais saborosos de restaurantes de prestigio, e
não algo nojento e inescrupuloso.

E foi ao abrir os olhos e acordar da insânia, que Sebastião riu, abriu os braços e ajoelhou na
grama, ele havia entendido. Entendeu que o trecho de seu pai significava o trajeto para se
libertar das correntes e as medidas que ele deveria tomar, as pessoas que deveria matar e o
corpo que deveria renunciar, para partir das terras de ninguém. Na terça-feira trancando as
portas do Colégio, após as aulas do período noturno, o vigia Sebastião olhou para as próprias
mãos. As unhas, que ele cortara no dia anterior, pareciam compridas de novo. E havia pelos
escuros nas costas das mãos e em todas as falanges dos dedos. “Já não chegam os pelinhos
duros que nascem nas orelhas e nas narinas dos velhos, agora me aparecem mais essas
novidades”, reclamou mentalmente, de olhos postos na Lua cheia. Sebastião havia então
finalmente cedido sua carne e sanidade ao solo, assim sua existência caíra no esquecimento.

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