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Paso esos nn AGN Gracceam ose en Ucar 7 DA he Ge AWZO nO TEGO VSTNeeCCU Mien OLE Tevaroir le i DO PAISEA CONSTRUCAO DA ie) ea ey Ne) = LS ENei fo) SN a alg ENI PUCCINELLI ORLANDI (ORG.) DISCURSO FUNDADOR A FORMACGAO DO PAISE A CONSTRUCAO DA Pas I Gtmare Beare de vee SP. Bras IDENTIDADE NACIONAL Diseuso fandador / Eni Puccneli Orlane org. = ‘Campinas, SP : Pontes, 2 edigao, 2001 27EDI¢CG¢AO BIBLIOGRAFIA ISBN 85-7113.078-7 1. Amética Latina - Ciiliapgo 2. América Latina Histia 3. Brasil = Civiizago. 4. Brasil -Histria 5. Cultea - Amecca Latina 6, Cultura ~ Brasil (Orland, Hai Puccinell, 1942 -H. Sévie, 93-0436 epp-980 Pontes 2001 Copyright © 1993 Eni Puccinelli Orlandi (org.) Capn: Joo Baptista da Costa Aguiar Coordenagto Editorial: Ernesto Guimaries Revisio: Equipe de revisores da Pontes Editores Preparagio de Originais: Alzira D. Sterque Direitos autorais do texto "Sene, Sujet, Origine” (‘Sentido, Sujeito, Origem”) de Paul “Henry cedidos pola revista Lis para publicago em lingua portuguesa para a PONTES EDITORES. PONTES EDITORES Rua Maria Monteiro, 1635 13025-152 Campinas SP Brasil Fone (19) 3252.6011. Fax (19) 3253.0769 E-mail; ponteseditor@lexxa.com.br 2001 Impresso no Brasil INDICE PREFACIO VAO SURGINDO SENTIDOS Eni Puccinelli Orland... INDEPENDENCIA E MORTE Eduardo Guimar (0S PRIMORDIOS DA IMPRENSA NO BRASIL (QU: DE COMO 0 DISCURSO JORNALISTICO CONSTROI MEMORIA) , = sone Bethania Sampaio Corréa Mariani. MANIFESTOS MODERNISTAS: A IDENTIDADE NACIONAL NO DISCURSO ENA LINGUA José Horta Nunes... ABOA NOVA DA MEMORIA ANUNCIADA: 0 DISCURSO FUNDADOR DA AFIRMAGAO DO NEGRO NO BRASIL Pedro de Souza A ANTIBTICA DA VANTAGEM E DO JEITINHO NA TERRA EM QUE DEUS E BRASILEIRO (O FUNCIONAMENTO DISCURSIVO DO CLICHE NO PROCESO DE CONSTITUIGAO DA BRASILIDADE) Maria Cristina Leandro Ferreira . SER BRASILEIRO HOJE Luiz Francisco Dias... 7 AFUNDAGAO DE UM DESTINO PARA A PATRIA ARGENTINA Marta Teresa Celada 89 RESSONANCIAS FUNDADORAS E IMALTAARIO DELINGUA 7 13 Silvana M. Servant SONHANDO A PATRIA: OS FUNDAMENTOS DE REPETIDAS FUNDACOES ‘Ménica Graciela Zoppi Fontana 27 APENDICE: SENTIDO, SUJEITO, ORIGEM Paul Henry. BIBLIOGRAFIA GERAL PREFACIO © Discurso Fundador, tal como o tratamos nessa reflexio conjunta, no se apresenta como jé definido, mas antes como uma categoria do analis- {a a ser delimitada pelo proprio exercicio da andlise dos fatos que 0 consti tuem, obscrvadi sua relevancia te6rica, Mais especificamente, em relagio & historia de um pats, os discursos fundadores so discursos que farcionam como refertncia basica no imaging- rio constitutivo esse pais, F a nossa tarefa € enti mostrar como é que eles se estabilizam como referéncia na construgao da meméria nacional, ‘Além das caracteristicas tedricas que teremos ocasiio de observar no curso dessas consideragbes que aqui faremos, hd uma determinante hist6ri- co-ideoldgica que gostarfamos de explicitar. "Na perspectivaem que trabalhamos nao hd “idéias fora de lugar” como diz Roberto Schwarz, As idéias néo tém 1m lugar, tém muitos. (© fato de se aceitar que elas tém “um” lugar ja ¢ inserever-se em um feito do discurso. Scus lugares nunca s20 absolutos, Sérelativos. Relaciona- ‘mos essa afirmago de que as iigias no tém lugares absolutos com o prinef- pio discursivo de que os sentidos nao t&m crigem, nfo pertencendo, de direi to, alugar nenhum, E essa questo do “lugar” fica assim re-significada a par- tirdo fato de que ha uma historia de constituigao dos sentidos, ou seja, eles no sto considerados em sua “esséncia”. Nao se trata, pois dasidéiasestarem fora de lugar. O fato & que na constituigo dos sentidos ele podem softer um deslizamento, um processo de transferéncia que faz com que aparegam como deslocados. A isto é que chamamos transfiguragdo, Sem ponto original, mas Jogando jogo dadiferenca, da cdpia da simlago, Depend daha de cconstrucdo dos sentido a configuracdo de lugares para as “idéias”, nt ds rolago lingoagem/pensamentofmundo isto 6, no efeito de realidae do pensamento, da ilusio referencial, que eles produzem. A organizaciio dos sentidos é trabalho ideol6gico. B o lugar das idéias é fungi desse trabalho, Por outro lado, nao ha controle “pessoal” ou “coletivo” dos provessin dahist6ria de que sujeitos ¢ sentidos participam, O que ha é a aparénia de controle ¢ de certeza dos sentidos porque as priticas s6cio-histricais vw te zidas pelo imaginério, que é politico, Assim, refletir sobre as forgas também desorganizadoras que so parte do proceso de instituigdo dos sentidos € urn mode de tornar visfvel a relati- vidade dos scus “lugares”, Desmontar sua certeza e sua terrtorializaco, que do sempre fungao de uma relagio de Forgas, no entanto silenciadas, &esse 0 trabalho que procuramos trazer para a reflexdo sobre o discurso fundador. ‘Sem defini-lo categoricamente, procuramos pensé-lo como a fala que trans- figura o sem-sentido em sentido. (E, Orlandi, 1990). esse modo, nos pareceu interessante colocar, cm apéndice aos traba- Ihos que apresentam as consideracdes sobre o discurso fundador, um texto de P. Henry (Sentido, Sujeito, Origem), que fala justamente da impossibilidade {dese fechar a questao do sentido — pois ela é uma questo filosética —as- sim como também nfo se pode afirmar o ponto de origem dos sentidos (¢ dos sujeitos). Fica, dessa forma, esse texto como uma contribuigio teérica de principio da anélise de discurso, quadro ern que incluimos « perspective das TeflexGes apresentadas nesse volume. ‘No primeiro texto procuramos entender o discurso fundador em rela- ‘lo adiferentes dimensées dos materiais de linguagem —enunciados (em se plantando tudo dé), lendas (as Amazonas), obras literétias (0 Didlogo da conversdo do gentio)— em seus diferentes aspectos, Passamos depois pare & anilise de um enunciado bésico na fundago da nagao brasileira (Indepen- déncia ou morte!) e sua caracterizagao seméntico-historica (texto de E. Gui- ‘maries). Em seguida, temos a aferigdo da especificidade que nos dé. fatode {qué nosso primero jornal foram, na realidade, dois (texto de B. S. Mari 48 Gazeta do Rio de Janeiro ¢.0 Correio Braziliense (este, publicado em Lon- des). Segue-se a esse estudo, a reflexao sobre os manifestos modemisias (de J.H. Nunes) incluindo, desta feita, na relagio com 0 Manifesto antropdfago de. de Andrade, aquele de Gilberto Freyre, o Manifesto. Continuando aras- {rear os dizeres fundadores da brasilidade, temos endo uma andlise (de P. de Souza), que procuraestabelecer as bases para una reflexio sobre afirmagao do negro no Brasil e que se apoia —em relagio ao epis6dio de Palmates, vi- ‘daemorte de Zumbi —em materiais discursivos de historiadores edo Movi- ‘mento Negro Unificado, Procurando compreender os sentidos da cidadania ‘em ser brasileiro, L. F. Dias tematiza as nogées de lugar e espago de memé- , analisando no entinciados altissonantes mas aqueles quase invisiveis no dia a dia, Finalizando a parte que trata da questo da fundagio em relagao a0 Brasil, temos ento um estudo (de M. C. L. Ferreira) sobre alguns esteresti- pos (“Deus € brasilciro”, “ojeitinho brasileiro”, “todo brasileiro gosta de le- ‘var vantagem em tndo"). Em uma segunda parte, 0 discurso fundador € pen- sudo, ainda na América Latina, mas em relagao a outro pa's: a Argentina, Te- ‘mos entéo um trabalho (de M. T. Celada), que pesquiss os fendamentos para a organizacio politica da Repablica Argentina no discurso de Juan B, Alber- «dim sua tematizagio sobre o “éesierto”, nome que ele considera justo para ‘nomear a constituigao daquele pais. Segue-se entdo a eflexdio sobre as ress0- nineias interdiscursivas (pardfrases) como marcas para estudar discurso fundador (texto de S. M. Serrani), tomando para issoas polémicas sobrea in- ‘gua na Argentina do comeco do século XX. Um outro trabalho, peasando a 8 ‘questiio da fundagdo, desta vex.em discursos mais recentes (de M. G, Z, Pon {ara}, dedica-se a distnguit 0 que é fandador eo que s6 parece sé-1o, oman docomo objeto de andlisea fala de Alfonsin, _ Oconjunto desses textos fica disposico do leitor para que cle teu su estes para refletir sobre aquest de Formac dos sentides, sobre alguns ppectosrelevantes da histria de América Latingem sus formagaoe sobre o mo- do pelo qual idéias que the parecem “naturais” so formadas em um process ‘com um percurso as vezes mais, as vezes menos longo, mas sempre repleto de particularidades que desaparecem freqilentemente no cfeito de evidencia pro- dduzido na relagzo dos sujeitos com “seus” discursos. E essa naturalidade, ees. ta sensagdo de evidéncia que procuramos deslocar em nossa reflexio. Eni Puccinelli Orlandi ‘Campinas, abril de 1992. ® VAO SURGINDO SENTIDOS Eni Puccinelli Orlandi ‘A questio que deixei no ar em um trabalho anterior (1990) era: como 4o sem-sentido se faz sentido e irompe o sentido novo? Como, diante de um ‘mundo novo, com coisas, seres paisagens ainda no nomeados vai surgin- ddo.um sentido, vo surgindo nomes? De ccrta maneira essa perguntajé estava me‘o respondida no trabalho que havie realizado, onde me detinha sobre os processos de apagamento dos sentidos diferentes e que, ns realidade, tinha tornado possivel a formulagao dessa questio. No entanto, havia uma outra quest&o naquela, E foi essa outra {questo que deu origem apresente reflexao: como, de umn lado, apartir dacer- {c7a do jédito, ¢, de outro, do nunca experimentado, seatidos chegam se iransformam em outros, abrindo uin lugar para a especificidade de uma his- {ria particular, na sua forma plural as histérias do Brasil ‘O sem-semtido, como diz Pecheux, “considerado perigoso e irrespon- save" essa é amatéria de nosso presente estudo, Como significar 0 sens-sen- ‘ido? Como sigaificam 0s novos sentidos tanto para 0 europeu como para os habitantes do Novo Mundo? "Nesse livro estaremos assim explorando a dimensio do discurso que é fa mais diftil de apreender: a de seu acontecimento. E nessa dimensiio que inelhor se pode observar a relagao com 0 sem-seatido jé que, embora no dis- ‘ourso, estrutura e acontecimento se entrelacem inextricavelmente, nadimen- sivoestruturante © som-sentido se deixa construr com a apar@acia do sentido stivel, coerente e homogéneo. Eficazmente. nto, pela nossa reflexio, estamos acompanhando, nesse movimento ‘dn construgdo do significar: a seu apagamento por uma memdria éestabele- tila dos sentidos (0 dito), b. a resisténcta ao apagamento © a conseqtente _prodiugio de outros sentidos: cc. 6 retomo do “recalque” (ou seja, do que Foi ‘oxcluido pelo apagamento) sobre 0 mesmo, deslocanda-0. Esse & para nds {un movimento regular que se produz no percurso que vai do sem-sentido em Uitegio ao sentido. ‘Como diz P. Nora, o desaparecimento répido de nossa mem6tia nacional {e ole Fala dos franceses) pede um “inventario dos tugares em que clase encar~ ino eletivamente e que, pela voatade dos homens ou o trabalno das séculos, ficaram como seus mais claros simbolos:festas, emblemas, monumentos ¢ co- memoragSes, mas também louwagdes, arguivos, diciondrios e museus". [Nos aeresventarfamos: cnunciados, como 0s dos discursos fundadores, agueles que vo nos inventendo um pasado inequsvoco e empurrando um fu- turo pela frente e que nos doa sensagao de estarmos dentro de uma historia de tum mundo conhecido: diga zo povo que eu fico, quem for brasileiro siga-me, libertas quae sera tamen, independéncia ou morte,em se plantando tudo dete. ‘So enunciados que ecoam (cf. S. Serrani, 1991, a distingdo entre ecoar c ressoar) e reverberam efeitos de nossa histéria em nosso dia-#-dia, tem nossa reconstruglo cotidiana de nossos lages socials, em nossa identida- de histérica, Aida que nem sejam exatamente os que repetimos ema nosso discurso social, diferentes ja do que encontramos nos documentos historicos, No sio 0s enuinciados empirieos, so suas imagens enunciativas que funciona. O que vale é a versao que “ficou”. Eo caso, por excmplo, do “nessa terra em se plantando tudo da”, que do corresponde exatamente A sua formulagao primeira na Carta de Pero Vaz de Caminha ¢ que, pela beleza, transcrevemos tal como esti no documento, primeira fotografia do Bras “Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra 0 sill vimos, até 8 Outra ponta que contra o norte vem, de que nés deste pérto houvemos vista, sera tamanha que haverd nela bem vinte ou vin- tee cinco léguas de costa, Traz. ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, ¢ outras branes; a terra de cima toda chi e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito cha e muito formosa, Pelo sertio nos pareceu, vista do ‘mar, muito grande; porque a estender olhos, no podtamos ver sendo terrae arvoredos — terra que nos parecia muito extensa. ‘At6 agora no pudemos saber se hé ouro ou prata nela, ou outrt ‘coisa de metal, ou ferro: nem Iha vimos, Contudo a terra em i é de mui- tos bons ates frescos ¢ temperados como os do Entre-Doure ¢ Minho, porque nesse tempo dagora assim os achévamos como os de li. (AS) diguas so muitas; infinitas. Fm tal maneia € graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-4 nela tudo; por causa das dua que tem! Contudo,o melhor fruto que dela se pode trar parece-me que se- 1 salvar essa gente”. Ouseja,o fruto que se propée nela plantar éacatequese.’ Mas oque nos interessa aqui nao é a diregiio da argumentaco,¢ a formulagiio do enunciado 1 Acie eapelto interesante notat que cristiano ¢o primeira e grade instrumento “Ge poder elagiodecontaco com acura migens. Noenanto, seus frtos no serto to tec: de cole quanto podem er imaginado nicialmente os curopeus Fs alg A dizer sobre os indi braiteiros€ que els 0, até hoje, astanteavessos 2 cristias- to, Devo ag muito do que apren, sobre esa reise, &convivéniacom doa Ju= Thana (xrente) Mas jo feconasia Nobrega (1358), que coloca ass pavrasna boca dde Mateus Nugeias:"(.)vinham euidando de converter aod brasl em uma hora, € ‘mse que nd podem converterum, em um ano, por sua mez bestslidade’ ““querendo-a aproveitar, dar-se-é nela tudo”, Ainda que ele tenlinno curso a _mem6ria, perdido o sotaque portuguas¢ se abrasileirado, mantendlo set 16th de discurso formal, como convém a uma frase da histra: “em se phontarado tudo da”. Nossa questio é: o que eles constroem? ‘So espacos da identidade histérica: ¢ mem6ria temporalizada, que presenta como institucional, legtima ‘Nessa reflexfio, procuraremos ver, na histéria do Brasil, ou de outros paises da América Latina (sobretudo a Argentina), com que marcas se cons, troem esses espagos, esses lugares de meméria, Noe ntanto, nessa pessagem do sem-sentido pera sentido, produzidanes- ses gares, io estamos pensando a historia dos fatas,e sim o processo simb ‘eo, n0 qual, em grande medida, nem sempre é a razdo que conta: inconsciente © ideologia ai significam. Nao é a cultura ou historia factags, mas das lendas, dos mitos, da relago coma linguagem ¢ com os sentidos. Ea meméria histérica {que nao se faz pelo recurso & reflexdoe Bs intengdes, mas pela “filiago” (nao ‘aprendizagem). Aquela na qual, a0 significar, nos significamos. Assim, nessa perspectiva, so outros 0s sentidos do histérico, do cultura, do social. Mas que assim mesmo nos Conttoem um imaginstio social que nos permite fazer parte de uum pais, de um Estado, de uma histériae de uma formagdo social determinada. ‘Mas também se fundam sentidos onde outros sentidos jase instataram, [Nao ha ritual sem falhas, segundo Pécheux (1991), por isso ¢ possfvel ‘rupture. Instauragao de uma nova ordem de sentidos. © que 0 catacteriza ‘como fundador —em qualquer caso mas precipuamente neste —é que ele ria uma nova tradigao, ele re-significa o que veio antes ¢ institui af uma me- Inéria outra. E um momento de significagao importante, diferenciado. ( sentido anterior é desautorizado. Instala-se outra “tradicdo” de sen- {idos que produz.os ontros sentidos nesse lugar. Instala-se uma nova “flia- {Gio Esse dizer irrompe no processo significativo de tal modo que pelo seu ntprio surgir produz sua “meméria”? Esse processo de instalacdo do diseurso fundador, como dissemos, i snpe pelo fato de que nao ha ritual sem falhas, € ele aproveita fragmentos do val ja instalndo — da ideologia j significante — apoiando-se em “retalhos’ Ie para instalar o novo. Um exemplo disto, éno texto de Eldorado que anali- yemos mais detidamente adiante, o momento em que Aguirre institu afigu- \dorei,co entroniza: como nao ha um trono, cleo faz-sentar-se sobre umn tron le rvore coberto com um casaco de veludo; &réplica de um de seus coman- xlos que diz nfo ser aquilo um trono, ele responders "Mas o que & um tron no madeira e veluco?”. Ble se serve do sentido jé-lé para, através de rud- 10s dele, instalara uplura, O efeito 60 reconhecimento. o diferente, Assim, ele sustenta o sentido que surge ese sustenta nele. Intervéim n0 hilo, no jé-dito. ssa é também uma das earacteristicas do discurso fundador: a sua re- jlo particular com a “filiago”. Cria tradigzo de sentidos projetando-se pa~ ‘No “fundacional” ha necosidade de“ ‘eivindicarafanéagio, are a uma meméris police, legtimarse 1B raafrente e para irs, razendo onovo para o efeito do permanente. Instala-se inrevogavelmente. E talvez esse efeito que o identifica como fundador: a eft- céeia em produziroefeito do novo que se araiga no entanto na meméria per- ‘manente (sem limite). Produz. desse modo 0 efeito do familiar, do evidente, do que s6 pode ser ass ‘Bye plantando tudo dé. Esse enunciado ressoa (ef. 8. Serrani, op. cit) «em muitos outros, repereutindo sentidos variacos no sentimento de brasilida~ de. Terra prédiga. Gigante pela propria natureza. Mas mal administrad, pi Tada ba séculos e que emborasejaexplorada continuamente nfo se esgots. Ai Jide produziu um discurso sobre o Brasil, « partir de um enunciado fundador. 'Neses percursos c ressonfneias, isso vai dar no trago ideol6gico da fa- la sobre a preguiga inerente 2 raga, do despendicio, da corrupeo natural a0 brasileiro no poder. E vai servi como argumento que justifiea a pobreza: es- se pais ndo tem jeito. Ou, no outro lado da mesma moeda, vai dar no pafs da esperana; tem que dar certo. ‘Sao essas ramificagSes — intrincadas, contraditérias, com jeito de te- rem sido formuladas de uma vez por todas — que desenharn & complicada {deologia do ‘ser brasileiro”. ‘Um enunciado camo este: im ral maneira é graciosa que. querendo-a proveitar,dar-se-d nela tudo por causa das déguas que tem, deixade ser uma tdescrigdo, um relatsrio do escriba da frota, e perde seus contornos preciso. Para isso funciona em sua imagem enunciativa: suprime a determinago ‘por causa das 4guas que tem”) e se expande, Ganha corpo e presenga nos ‘caminhosda colonizagdo, mas timbém habita outros sitios. salta para oided- rio brasileiro adentrando vias reverberando sentidlos que Ihe dio um caréter ‘enormemente produtivo seja social, politica ou idcologicamente. ‘Ao ganliar esse corpo, tal enunciado ficou formulad para sempre na nossa’ historia, O que constitui sua especificidade, ea de seu processo, €0 giro pelo qual um enunciado: em se plantando tudo da, ganba foros de um discurso, 0 discurso fundador. ste “giro” talvez nos mostre um pouco do modo como esses enunciados esto na historia. E, certamente, através desses process0s, podemos melhor laprecier a relagdo desses mecanismos e a definigfo do histérico— ou melhor, ahistoricidade —-na anslise de discurso, tal como éformulada porP. Henry pa- ‘aa andlise de discurso: sio os fatos que reclamam sentidos; dui ahistoricidade. ‘Mash outros objetos simbslicos que constituem igualmente discursos fundadores. Continuemos pois nossa reflexio, 1, OS SENTTDOS QUE NAO PARAM NO LUGAR [As lendas — como 0 Eldorado, as Amazonas — sio matéria, ou me- Ihor, materialidade simbélica que serve exemplarmente na constragdo de ‘uma origem “otra”. 4 1.1. O Eldorado ___ Esse processo significante pode ser observado enfatic: (nterpretagao) de Herzog: Aguirre, a célera dos deuses. __ Osespanhéis que ali aparecem comecam a eonstruir um “nd” que ni 0 indio, mas jé no & o lugar do espanhol. Fundam um estado outro, Mus ‘mesmo a rupttira néo € deslocamento sem limites. Diré Aguirre: eu sou 0 ‘grande traidor; nio deve haver outro. Bis ¢ ruptara: eles encenam a histéria em “outro” teatro, Produzem um deslocamento de sentides (os mesmos) nu ‘ma epopéia (a busea do Eldorado) que & a busce do outro poder: “a riqueza nijo ¢ ouro; ¢ poder e fama”, E se na prética utilitéria nao conseguem encon- {rar o que procuram — o Eldorado ¢ inatingivel —na prética simbélica rea- lizam essa passagem: instituem um outro Iugar de sentidos estabelecendo uma outra regio para orepetivel (a meméria do dizer), aguela que a partir de ‘entio vai organizar outros ¢ outros sentidos, a dos latino-americanos. E a is- toque chamamos discurso fundador filme de Herzog é am belissimo exemplo do encontro do europeu com o Novo Mundo, com 0 desconhecido ¢ com a necessidade de exercer 0 poder de limiter, domesticar. Das bordas do rio —oimenso rio Amazonas em que navegam —os se- res invisiveis, na mata fechada, intransponivel esilenciosa que habitam, ati- ravam flechas que matavam os aventureiros. O que néo era vis(vel era mor- tal. Era entdo preciso dar nomes, tornar visivel, esclarecer (clarear) e domes- ticar 0 acontecimento que era esse encontro com 0 desconhecido, © Novo Mundo. Tornar familiar paisagem hostl, onde era impossfvel mesmo reco- nhecer as espécies naturais.’ Todo o percurso em busca do Eldorado é ume relagéo com a loucura, com a conquista, com os sentidos do sem-sentido, Romper com o Velho Mundo ¢ instalar 0 Novo a partir “daquilo” que encontravam. Nomes eram dacdos arbitrariamente, assim com eram arbitrérios os limites que impunham, ‘ho acaso para ter umn “pats” configurado: as terras da margem esquerdia per- encem ao pats, as da margem direita, nd, Arbitrério, mas necessério, Porque dar sentido & construir limites, 6 desenvoiver dominios, & descobrir sitios de significdncia, é tomar posstveis gestos de interpretagéo. F aqui também a hnogio de historicidade mostra sua especificidade, seu aspecto paradoxal: ela constt5io gesto de interpretago e, a0 mesmo tempo, écla propria interpreta tiva, porque sua matéria é simbélica, Constroem-se 0s dominios e s instituem, ao mesmo ternpo, os lugares Jepitimos para que os dominios sejam respeitados. De tempos.em tempos. es- ‘iramugas diretas, conirontos répidos e sangrentos com o entomo acendem ante no filme |. Chaise respeito a questo da nomaagao de favores,sobretudo na tse de JH, Nunes (1992: Contragio het6rica do ler brasileiro nos relatos de missiondrio vig ‘es, IEL) Pisagens As vezes completamente ireconhesveis e aerorzantes (a cast ‘8, por exemple, vista por um eupeu) sto domesicudus per names que a fer a9 mundo jé desert europea. Mas permanecemincomprocndidas",paizagens ees Is (cxplicitam) o limite do conquistador e a estranheza do mundo em que est20 rmergulhados. Nesses conirontos, 0s habitantes do lugar, os desconbecidos, aparentam a erueza da incompreensao dos descobridores e so tingidos de violéncia. Movimento de interpretagdo historicamente necessério: do espan- tosimbélico resultante do encontro daquele mundo com este 86 poderia nas- cer violencia, "Nesse censiio procuramos compreender apenas um instante fituo ede mportincia crucial: 0s gestos fundadores, aqueles que assentam a turbulén- cia do desconhecidoe do sem-sentido no provisorio descanso do que faz.sen- tido, daquilo que acalma a relago do homem com o simbolo, ‘Como diz. N. Gonzalez (1983):""A medida que se adentraban los con- quistadores en las incégnitas terras que se extendiam en st contorno, si no- cidn de las cosas suftia constantes rectificaciénes por imperio de ume reali- dad que se empenaba en objectivar lo inverosimil”. Como fazer? Nomear, li mitar, governar os sentidos. (0 pior nao é nfo encontrar o Eldorado; € niio se reconhecer no cami- rho. Rupturas, irupeao do real, sem-sentido, Dafa necessidade constante de dar sentidos a0 novo, num movimento de identficagao, que retorna sobre si. Em outro trabalho (1990), diafamos que num mundo, onde tudo era no- vo, era dificil separar ficgdo € realidade, Também a verdade e @ mentira se ‘misturam, Mas 0 que nos interessa mais de perto aqui é a construgio imagi- nétia da linha que separa realidade c imaginagao. Que realidade hist6rica os ‘mitos vio construindo? Em uma situago de linguagem —a do discurso fun- dador — veremos que j4 ndo conta nem mesmo a nogao de verossfmil. Sem deixar de acentuar que a inadaptaco éessencial para fundar o novo, para as- sim se reconhecer como dominante, O fundador busca a notoriedade ea pos- sibilidade de criar um lugar na histéria, um Iagar particular. Lugar que rom- peno fio da histéria para reorganizar 0s gestos de interpretagto. 1.2.As Amazonas [Nao menos importante no imagindrio brasileiro éalenda das Amazonas. Dizer que todo pafs, para ter sua configuraedo, precisa de suas lends € ‘uma afirmago corriqueira. Lend hist6ria se conjugam em suas contradi- .g6es. No entanto, ha uma distingdo jé mais interessante pois existem lendas {que Constituem a identidad mas nao sto discursos fundadores. A do Sac, & do Lobishomem nao sto. A das Amazonas 6. Eo que faz-dela uma lenda que um diseurso fundador? Em termos de contetidos interpretativos nao € dificil responder a esta {questio: cla faz parte da origem do pais, ou melhor, ela é constitutiva da de- limitago do pats. O Brasil é pais das Amazonas. (© imaginatio europeu, aficcionado a0 maravilhoso, “viu" nas Amazo- ‘as um ago que marcava ao mesmo tempo uma distancia ¢ uma famifierida- de. A partir da noticia dessas indias guerreiras em algum lugar do “Maragnen” — sempre havia uma particula de verdade como componente da imaginacio fantistica — eles aproximaram essa presenga do mito grego das mulheres 16 _guerreiras que se batiam com a mesma bravura que os homens, Seres exe ionais, belissimas, ricas em metais, poderosas. E foi Orellana quem levol «em primeito, esta notfca:tinham um 36 seio (daf o nome Amazonas) ¢ eran cdonas de muito ouro, Alguns negam sua existéncia (como Mitre e Prescot) outros a afirmam (como Humboldte La Comdarnine). Ferdinand Denis tl ue elas eram do grupo Tupinamba. Barbosa Rodriguez. as situa entre 0s Uaupés, de familia Caribe. Um fato real — a provivel existéneia de mutheres que ajudavam os ho- ‘mens mesmo na guerra — era re-criado até tornar-s¢ fantistice. Mas, como diz. Gonzalez. (1983), através de uma lenda, como a das Amazonas: “éfi- cil reconstruir o processo de integracao dos mitos americanas”, (O mundo misterioso que tinha sido descoberto era povoado de fanta- sias pelos descobridores que nio tinham muito claro para si o que haviam descoberto, Imaginemos que impacto para a intempretagio nto devia sero apanect ‘mento de um Novo Mundo nos fonginguos confins de um “mar tenebroso € inexplorado” ‘Que terreno fértl esse que confunde a realidade, a imaginacio (a fic- (40, literatura) ¢ 0 imagindrio (a ideotogia, oefeito de evidencia construido pela memoria do velho mundo). esse modo, ¢ interessante observar a porgao de realidade que cada uma dessas lendas prope e 0 consequente movimento entre essa realidade, 0 fantéstico e a ideologi 'Nasce de um fato real, passa para o maravilhoso, se enriquece de detalhes ‘concretos de origens diversas da experiéncia dos conguistadores e se tece uma trama coerente que dé verossimilhanga a lend, produindo evidéncias sobre a historia do pas, que no pode se confundircom as lendas que se contam sobreele Movimento de afastamentoe deretorno a realidade. Afse processaomecanismo ‘deol6gico de construgo imaginsria da realidade com seus efeitos de evidéncia ‘O mito das Amazonas acabou por dat nome ao rio ¢ a toda a regio vizinha. ‘um mito que exerceu sua influéneia nos conquistadores ¢ até hoje continua a set “um precioso instramento de interpretagao histérica, um dco que nos leva a reconstmuir um estado da consciéncia coletiva, Nos ensina co- ‘mo reagiram os homens dos séculos XVI e XVI frente aos dados darealida dee nos dé uma pauta para a interpreregao racional dos testemunhos daque: Jes tempos”, Em nossa perspectiva, trata-se de outra coisa: nos dé pistas part conhecermos a relago com o imagindrio na construgio do pais. E ai est « marca — discursiva, nfo conteudistica-—-do discurso fundador: a construgioy do imaginéio necessério pata dar uma “cara” a um pafs em formacio; pat ‘constitui-lo em sta especificidade como um objeto simbstico. ‘As Amazonas aparecem num discurso fundador que diz terem sito elas ‘mulheres guerreiras que competiam em desireza no manejo do arco ¢ flee com os homens. No Chile ha uma versdo que diz. que elas nao permitiain presenga dos homens, a ndo ser em certas épocas do ano. Diz ainda que 30 criavam as filhas, devolvendo os filhos aos maridos. Um dominio s6 de ni heres, No Brasil, do Amazonas. n 4 Sensualidade, forya, determinacao, independéncia, coragem, beleza, ‘mas sobretudo ferocidade. Verdade e mentira se misturam ¢ se refundem. ‘Mas sempre fica que o idedtio brasileiro tem essas mulheres na su origem. B {que dé nome a um imenso rio e também a uma regido misteriosa edisputada, Mulheres definidas com qualidades que as diferenciam, mas que também as ccoloca, como 0 estranho mundo que acabava de ser descoberto, no lugar do perigoso e do selvagem. Do que seduz, mas que deve ser domesticado para produzir uma socéedade. Ou mantido como fiegao. Como o Novo Mundo” (..) 0 melhor frato que dele se pode tirar parece-me que ser4 salvar essa gen- 1e", Bis a resposta cristf, no encontro com o pais das Amazonas. ‘Oqgue nos importa 6 observaresse movimento entre oreal dadescober- ta (sem-sentido), a fantasia (imaginacdo} ¢ ideologia (imaginésio), produ- indo a realidade dessa historia que sc esté fezendo. E quc produc 0 efeito de ‘quea ideologia sempre esti fora da hist6ria (oficial). Por seu lado, essa hist6- ria aproveita, do discurso fundador, o fato de quc nel hé ainda uma indistin- ‘io entre imaginagdo, imagindtio realidade. 2, TRABALHO DOS SENTIDOS 2.1.0 Didlogo da conversdo do gentio ‘A nogii de discurso fundador, como podemos observar,écapaz,emsi, ‘de muitos sentidos. Um deles, que ainda niio mencionamos aqui, ¢ o que lige a formagio do pais & formagio de uma ordem de discurso que The dé uma jdentidade, No caso presente, tematizaremos o discus literério. Q exemplar {que tomamos € 0 Didlogo da conversdo do gentio, do padre Manoel da N6- ‘roga, escrito em 1558 (ou 1557) ¢ que é considerada a primeira obra liter ria brasileira (Serafim Leite S.L., 1954). Essa obra, como todo texto missionsrio da époce, alia religigo, etnolo- gia, eno caso, literatura, ‘A tarefa missionaria—proteger, ot seja, assujeitaro indio—€ jé bem visivel nesse texto. ‘Para bem avaliarmos a fungfo “fundadora” desse texto € interessante observar uma das suas caracteristicas: 0s discursos sobre ele 0 apontam co- ‘mo tal. So textos que o definem nesse lugar: como primeira obra literéria brasileira, como exemplar da caracterizagio dos indios e sua necesséria con- versio, Desse modo, passaremos a expor inicialmente as caracteristicas des- ses discursos sobre 0 Didlogo como parte da sua instituigo como discurso Tundador da brasilidade, pois 0 discurso sobre estabelece um lugar interpre- tativoda fundagao, Biearemos na falade Serafim Leite. L.que €é oautordos Preliminares e das Anotagies histéricas ¢ criticas a ediglio do Didlogo Em Lisboa, como parte das homenagens ao TV Centensrio da Fundagio de Sto Paulo, em 1954, Segundo este autor, na descoberta do Brasil néo houve conquista (e, 1c, mio houve invaso). Os indios nao viviam organizados «em Estado politico auténomo. Por isso, o“Brasil, como Estado aque iia ser, fio foi conguista mas formagdo” (8. Leite, Idem). ‘4 nos comentarios — como no Didlogo — sobressai, nia caracteriza ‘¢20 do dio, a antropofagia como impedimento de civilizagio: "mas pri ‘meira lei que se impunha era impodir-Ihes que matassem por sua conta ¢ ris coe comessem scu semelhante assim quando o Estado se fortaleceu, a mor- te de homens no terreiro passou a considerar-se crime como qualquer outro ¢ ‘os matadores passiveis de penas como assassinos” (S. Leite, ibidem). ‘Assim como se institu’ alingua supra-étnica (otupi-jestitico),se estabe- lecev a lei supra-tribal, que vigorava até onde chegasse a atoridade do Estado ‘@aque todos os fncios deviam se submeter¢..) doutrina politica formulada por [Nobrega, na alternativa de ser “senhoreado ou despejado”, e que, afin, foi a condigao hist6rica deconstrucao. alargannentodo Brasil: estabalecer um sbse- nhorio, com forga bastante para fechar a porta & intromissio de estrangeitos, € prepararc garantir sua propria unidade interna”. (S. Leite, idem) is o sentido da fundago do pais — vinculada a0 juridico—~trabalha- a por Nobreza iguelmente presente no Didilogo. Se‘alei yarantia a unidade proibindo a antropofagia, oaldeamento cui

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