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fee eee Menga Liidke e Marli E. D. A. André PESQUISA EM EDUCACAO: ABORDAGENS QUALITATIVAS - a Temas Basicos de Educacdo e Ensino ‘As auroras e a editora empeuharam-se para citar adequadamente e dar 0 devido erédito ‘todos os detentores dos dizeitas autorais de qualquer material utilizado neste live, dispondo-se a possiveis acextos caso, inadvertidamente, a idemtticagde de algum deles {enh sido omsitida, Nao & responsabilidade da editora nem das qutoras a ocowéneia de cventuais perdas ov ddanos a pessous ou hens que tentuam origem no uso desta publicagio, Agesar dos melfores esforgos dis avtoras, do editor e dos revisores, ¢ inevitivel que surjam errs no ‘exto, Assim, sao bern-vindas as comunieagdes de usudtios sobre conregdes ou sugestes referentes a0 ‘eonteiido ou uo nivel pedag6gico que auxiliem o aprimoramento de edigoes futuras. Os eomentirios dios leitores podem ser encaminhiades & LTC ~ Lieros Téenicos ¢ Clentificos Editora pelo e-mail Ite@ grupogen.com br. 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Andie. - (Reimpe,}, - Sao Paulo EPU, 2012, (Temas bsicos de educacao © ensino) Bibliograia ISBN 978-85. 2.303703 1, Pesquisa edueacional 1. André, Mali E.D.A. I. Titolo, ML. Sexe. 36-0030 cbD-310.78 indice para catélogo sistenvatico 1. Pesquisa edueacional 37078 Capitulo 3 Métodos de coleta de dados: observagao, entrevista e andlise documental 3.1. Observagio E fato bastante conhecido que a mente humana é altamente seletiva. £ muito provavel que, ao olhar para um mesmo objeto ou situagao, duas pessoas enxerguem diferentes coisas. O que cada pessoa selecio- na para “ver” depende muito de sua histéria pessoal e principalmente de sua bagagem cultural. Assim, o tipo de formagao de cada pessoa, 0 grupo social a que pertence, suas aptidées e predilegdes fazem com que sua ateng&o se concentre em determinados aspectos da realidade, desviando-se de outros. Do mesmo modo, as observagdes que cada um de nds faz na nossa vivéncia diaria sio muito influenciadas pela nossa histéria pessoal, o que nos leva a privilegiar certos aspectos da realidade e negligenciar outros. Como entio confiar na observagdo como um método cienti- fico? Para que se torne um instrumento valido e fidedigno de investigacio cientifica, a observacao precisa ser antes de tudo controlada e sistema- tica. Isso implica a existéncia de um planejamento cuidadoso do trabalho e uma preparacdo rigorosa do observador. Planejar a observacao significa determinar com antecedéncia ‘‘o qué” e “o como observar. A primeira tarefa, pois, no preparo das observagées é a delimitago do objeto de estudo. Definindo-se clara- mente 0 foco da investigagao e sua configuracao espaco-temporal,ficam mais ou menos evidentes quais aspectos do problema serio cobertos pela observagio e qual a melhor forma de capté-los. Cabem ainda 25 nessa etapa as decisées mais especificas sobre o grau de participagdo do observador, a duracio das observagées etc. Na fase de planejamento deve estar previsto também o treinamento do observador. Segundo Patton (1980), para realizar as observagdes é preciso preparo material, fisico, intelectual e psicolégico. O observa- dor, diz ele, precisa aprender a fazer registros descritivos, saber separar os detalhes relevantes dos triviais, aprender a fazer anotagdes organizadas e utilizar métodos rigorosos para validar suas observa- des. Além disso, precisa preparar-se mentalmente para o trabalho, aprendendo a se concentrar durante a observagdo, o que exige um treinamento dos sentidos para se centrar nos aspectos relevantes. Esse treinamento pode ocorrer em situagées simuladas ou no préprio local em que ocorrerd a coleta definitiva de dados, bastando para isso que seja reservada uma quantidade especifica de tempo para essa ativi- dade. 3.1.1. A observagdo nas abordagens qualitativas Tanto quanto a entrevista, a observacdo ocupa um lugar privilegiado nas novas abordagens de pesquisa educacional. Usada como 0 princi- pal método de investigagdo ou associada a outras técnicas de coleta, a observagao possibilita um contato pessoal e estreito do pesquisador com o fenémeno pesquisado, o que apresenta uma série de vantagens. Em primeiro lugar, a experiéncia direta é sem divida o melhor teste de verificagao da ocorréncia de um determinado fendmeno. ‘Ver para crer’’, diz 0 ditado popular. Sendo o principal instrumento da investigacio, o observador pode recorrer aos conhecimentos e experiéncias pessoais como auxiliares no processo de compreensao e interpretagao do fendmeno estudado. A introspeccao e a reflexdo pessoal tém papel importante na pesquisa naturalistica. A observagio direta permite também que o observador chegue mais perto da ‘‘perspectiva dos sujeitos’’, um importante alvo nas aborda- gens qualitativas. Na medida em que o observador acompanha in loco as experiéncias didrias dos sujeitos, pode tentar apreender a sua visio de mundo, isto é, o significado que eles atribuem a realidade que os cerca ¢ as suas préprias ages. Além disso, as técnicas de observagao sao extremamente titeis para “‘descobrir’’ aspectos novos de um problema. Isto se torna crucial nas situagdes em que nao existe uma base tedrica sdlida que oriente a coleta de dados. Finalmente, a observagao permite a coleta de dados em situagées em que é imposs{vel outras formas de comunicagéo. Por exemplo, 26 quando o informante no pode falar — é 0 caso dos bebés — ou ‘quando a pessoa deliberadamente néo quer fornecer certo tipo de informacao, por motivos diversos. ‘Ao mesmo tempo que o contato direto ¢ prolongado do pesquisador com a situacio pesquisada apresenta as vantagens mencionadas, en- volve também uma série de problemas. Algumas criticas sao feitas ao método de observagio, primeiramente por provocar alteragées no ambiente ou no comportamento das pessoas observadas. Outra critica éa de que este método se baseia muito na interpretagao pessoal. Além disso, ha criticas no sentido de que o grande envolvimento do pesqui- sador leve a uma visao distorcida do fendmeno ou a uma representacéo parcial da realidade, Essas objegdes sio todas refutadas por Guba e Lincoln (1981). Eles argumentam que as alteragdes provocadas no ambiente pesquisado sao em geral muito menores do que se pensa. Apoiando-se em Reinharz (1979), eles justificam que os ambientes sociais so relativamente estiveis, de modo que a presenga de um observador dificilmente causara as mudancas que os pesquisadores procuram tanto evitar. Guba e Lincoln afirmam também que as criticas feitas 4 observagio, por se basearem fundamentalmente na interpretagéo pessoal, tém origem no ponto de vista “objetivista”’, que condena qualquer uso da experiéncia direta. Os autores afirmam ainda que o pesquisador pode utilizar uma série de meios para verificar se o seu envolvimento intenso esta levando a uma visao parcial e tendenciosa do fenémeno. Ele pode, por exemplo, confrontar 0 que vai captando da realidade com o que esperava encontrar. Se nao houver discrepncia, é possivel que esteja havendo parcialidade. Ele pode também confrontar as primeiras ideias.com as que surgiram mais tarde. Pode ainda comparar as primeiras anotagdes com 0s registros feitos ao longo do estudo. Se no houver diferengas entre esses momentos, é provavel que o pesqui- sador esteja apenas querendo confirmar idéias preconcebidas. 3.1.2. Variagées nos métodos de observagao Tendo determinado que a observacdo é 0 método mais adequado para investigar um determinado problema, o pesquisador depara ainda com uma série de decisées quanto ao seu grau de participacao no trabalho, quanto & explicitagdo do seu papel e dos propésitos da pesquisa junto aos sujeitos e quanto 4 forma da sua insergdo na realidade. ‘AS questées sobre o grau de participacdo do pesquisador aqui enfocadas sao muito similares As que surgem nos trabalhos de observ: cdo participante, que tem sua tradi¢o na antropologia e na sociologi 27 Segundo Denzin (1978), a observagdo participante é “‘uma estratégia de campo que combina simultaneamente a andlise documental, a entrevista de respondentes e informantes, a participagao e a observa- sao direta ¢ a introspecco” (p. 183). E uma estratégia que envolve, pois, nao s6 a observacao direta mas todo um conjunto de técnicas metodolégicas pressupondo um grande envolvimento do pesquisador na situagéo estudada. . Decidir qual o grau de envolvimento no trabalho de pesquisa nao significa decidir simplesmente que a observagao serd ou no partici- pante. A escolha é feita geralmente em termos de um continuum que vai desde uma imerso total na realidade até um complete distancia- mento. As variagdes dentro desse continuum séo muitas e podem inclusive mudar conforme o desenrolar do estudo. Pode acontecer que © pesquisador comece o trabalho como um espectador e va gradual- mente se tornando um participante. Pode também ocorrer o contrario, isto é, pode haver uma imersc total na fase inicial do estudo e um distanciamento gradativo na fases subsequentes. Evidentemente, o pesquisador pode decidir desde 0 inicio do estudo que atuar4 como um participante total do grupo, assumindo inclusive um compromisso politico de ago conjunta nos moldes da pesquisa participante*. Esse tipo especifico de envolvimento, entretanto, deve ser analisado no contexto da pesquisa participante, 0 que fugiria aos objetivos deste livro. Outro tipo de decisfio que o pesquisador deve enfrentar é em que medida tornaré explicito o seu papel e os propésitos de estudo, Aqui também pode haver variagdes dentro de um continuum que vai desde a total explicitagdo até a nao-revelagéo. Buford Junker (197i) situa quatro pontos dentro desse continuum: 1) participante total; 2) partici- pante como observador; 3) observador como patticipante; e 4) obser- vador total. No papel de ‘‘participante total”’, o observador nio revela ao grupo sua verdadeira identidade de pesquisador nem o propésito do estudo. © que ele busca com isso é tornar-se um membro do grupo para se aproximar o mais possivel da “perspectiva dos participantes”’. Nesse papel, o pesquisador fica com acesso limitado as relagées estabeleci- das fora do grupo ou as ligagdes do grupo com o sistema social mais amplo. Por exemplo, se um pequisador quer conhecer o sistema de ensino supletivo “por dentro”, ele pode desenvolver seu trabatho como um participante total, matriculando-se num curso supletivo come se fosse um aluno. Com isso ele pode avaliar 0 curso por dentro, * A propésito da pesquisa participante, ver trabalhos de Carlos R. Brandio, especialmente Pesquisa Participante, Brasiliense, 1981. 28 mas deixaré de ter a visao do sistema como um todo, além, evidente- mente, dos problemas éticos implicitos no papel de “‘fingir”’ algo que niio é. O “participante como observador’’, segundo Junker (1971), nao oculta totalmente suas atividades, mas revela apenas parte do que pretende. Por exemplo, ao explicar os objetivos do seu trabalho para o pessoal de uma escola, o pesquisador pode enfatizar que centrara a ‘observagaio nos comportamentos dos alunos, embora pretenda também focalizar 0 grupo de técnicos ou os préprios professores. A preocupa- g40 é nao deixar totalmente claro o que pretende, para ndo provocar muitas alteragdes no comportamento do grupo observado. Esta posi- gao também envolve questées éticas Sbvias. O “observador como participante”’ é um papel em que a identidade do pesquisador e os objetivos do estudo sio revelados ao grupo pesquisado desde o inicio, Nessa posigio, o pesquisador pode ter acesso a uma gama variada de informagées, até mesmo confidenciais, pedindo cooperagao ao grupo. Contudo, tera em geral que aceitar 0 controle do grupo sobre o que seré ou nao tornado piblico pela pesquisa. O papel de “‘observador total"” é aquele em que o pesquisador nao interage com o grupo observado. Nesse papel ele pode desenvolver a sua atividade de observacao sem ser visto, ficando por detras de uma parede espelhada, ou pode estar na presenga do grupo sem estabelecer relagées interpessoais. Mais uma vez ha questdes éticas envolvidas na obtengio de informagdes sem a concordancia do grupo. Outra dimensfo em que a observacio pode variar é quanto a durag&o do periodo de permanéncia do observador em campo. Contra- riamente aos estudes antropolégicos e sociolégicos, em que o investi- gador permanece no minimo seis meses e frequentemente varios anos convivendo com um grupo, os estudos da drea de educagiio tém sido muito mais curtos. Ao rever 51 estudos qualitativos da area de educacio desenvolvidos nos Estados Unidos de 1977 a 1980, Rosse Kyle (1982) concluiram que © periodo de observacdo nesses estudos variava entre seis semanas e trés anos, com ampla variedade dentro desse intervalo. Em algumas pesquisas pode ser interessante haver diversos perio- dos curtos de observagées intensivas para verificar, por exemplo, mudangas havidas num determinado programa ao longo do tempo. Em outros estudos pode ser mais adequado concentrar as observacdes em determinados momentos, digamos no final de cada bimestre escolar. A decisao sobre a extensao do periodo de observacio deve depen- der, acima de tudo, do tipo de problema que esta sendo estudado e do Propésito do estudo. Um aspecto que deve ser levado em conta nessa 29 decisio é que, quanto mais curto o periodo de observacio, maior a probabilidade de conclusdes apressadas, o que compromete a validade do estudo. Por outro lado, um longo periodo de permanéncia em campo por si sé nao garante validade. E preciso levar em conta outros fatores, como a habilidade ¢ experiéncia do observador, a possibilida- de de acesso aos dados, a receptividade do trabalho pelo grupo, a finalidade dos resultados etc. Os problemas relacionados & validade e confiabilidade dos dados e as questoes éticas relacionadas & observagao sero mais explorados no proximo capitulo. 3.1.3. O conteiido das observacgoes Os focos de observagao nas abordagens qualitativas de pesquisa sio determinados basicamente pelos propésitos especificos do estudo, que por sua vez derivam de um quadro te6rico geral, tragado pelo pesquisa- dor. Com esses propésitos em mente, o observador inicia a coleta de dados buscando sempre manter uma perspectiva de totalidade, sem se desviar demasiado de seus focos de interesse. Para isso, é particular- mente Util que ele oriente a sua observagao em torno de alguns aspectos, de modo que ele nem termine com um amontoado de informagées irrelevantes nem deixe de obter certos dados que vao possibilitar uma andlise mais completa do problema. Baseados em sua experiéncia de trabalho de campo, alguns autores, como Patton (1980) e Bogdan e Biklen (1982) apresentam varias sugestées sobre o que deve ser incluido nas anotagdes de campo. Segundo Bogdan e Biklen, 0 contetido das observagées deve envolver uma parte descritiva ¢ uma parte mais reflexiva. A parte descritiva compreende um registro detalhado do que ocorre ‘no campo", ou seja: 1. Descrigdo dos sujeitos, Sua aparéncia fisica, seus maneirismos, seu modo de vestir, de falar ¢ de agir. Os aspectos que os distinguem dos outros devem ser também enfatizados. 2. Reconstrugdo de didlogos. As palavras, os gestos, os depoimen- tos, as observagées feitas entre os sujeitos ou entre estes e 0 pesquisa- dor devem ser registrados. Na medida do possivel devem-se utilizar as suas préprias palavras. As citagdes sao extremamente titeis para analisar, interpretar ¢ apresentar os dados. 3. Descri¢do de locais. 0 ambiente onde é feita a observagao deve ser descrito. O uso de desenhos ilustrando a disposicao dos méveis, 0 espaco fisico, a apresentaco visual do quadro de giz, dos cartazes, 30 dos materiais de classe podem também ser elementos importantes a ser registrados. 4. Descrigdo de eventos especiais. As anotagdes devem incluir o que ocorreu, quem estava enyolvido e como se deu esse envolvimento. 5. Descrig@o das atividades. Devem ser descritas as atividades gerais e os comportamentos das pessoas observadas, sem deixar de registrar a sequéncia em que ambos ocorrem. 6. Os comportamentos do observador. Sendo o principal instrumen- to da pesquisa, é importante que o observador inclua nas suas anota- des as suas atitudes, agGes e conversas com os participantes durante 0 estudo. A parte reflexiva das anotagées inclui as observagdes pessoais do pesquisador, feitas durante a fase de coleta: suas especulacées, senti- mentos, problemas, ideias, impressdes, pré-concepgées, dividas, in- certezas, surpresas e decepgdes. As reflexdes podem ser de varios tipos: 1. Reflexdes analiticas. Referem-se ao que est sendo “‘aprendido” no estudo, isto é, temas que esto emergindo, associagdes e relagoes entre partes, novas ideias surgidas. 2. Reflexdes metodolégicas. Nestas estao envolvidos os procedi- mentos e estratégias metodoldgicas utilizados, as decisées sobre o delineamento (design) do estudo, os problemas encontrados na obten- gio dos dados e a forma de resolvé-los. 3. Dilemas éticos e conflitos. Aqui entram as questdes surgidas no relacionamento com os informantes, quando podem surgir conflitos entre a responsabilidade profissional do pesquisador e o compromisso com 08 sujeitos. 4. Mudangas na perspectiva do observador. E importante que sejam anotadas as expectativas, opinides, preconceitos e conjeturas do ob- servador € sua evolugao durante o estudo. 5. Esclarecimentos necessdrios, As anotagdes devem também con- ter pontos a serem esclarecidos, aspectos que parecem confusos, relagdes a serem explicitadas, elementos que necessitam de maior exploracio. Evidentemente, essas sugestées nio podem ser tomadas como normas ou listas de checagem para o desenvolvimento do estudo. S40 apenas diretrizes gerais que podem orientar a selegio do que observar e ajudar a organizacao dos dados. 31 3.1.4. O registro das observacdes Ha formas muito variadas de registrar as observagées. Alguns farao apenas anotagées escritas, outros combinardo as anotagdes com 0 material transcrito de gravagdes. Outros ainda registrarao os eventos através de filmes, fotografias, slides ou outros equipamentos. Embora pudéssemos discutir as vantagens ¢ desvantagens desses diferentes procedimentos, preferimos falar apenas do registro escrito, que é a forma mais frequentemente utilizada nos estudos de obser- vagio. Nao ha, evidentemente, regras para fazer as anotagGes, mas apenas sugestdes praticas, que podem ser titeis pelo menos ao pesquisador iniciante. As considerag6es principais nesse sentido referem-se a quan- do, como e onde fazer as anotagées. ‘Uma regra geral sobre quando devem ser feitas as anotagdes é que, quanto mais préximo do momento da observagao, maior sua acuidade. Isso, no entanto, vai depender do papel do observador e das suas relagées com o grupo observado, O “‘participante total’’ evidentemen- te nao poderé fazer o registro na presenga dos informantes, jé que seu papel de pesquisador nao é revelado ao grupo. O ‘“‘observador total”, em geral, nao vai encontrar muitos problemas, j4 que ele ou nao esta & vista do grupo ou esta exercendo declaradamente um papel de observa- dor. Os dois papéis que envolvem uma combinagio de observador ¢ participante é que podem encontrar mais dificuldades. Pode ser, por exemplo, invidvel fazer anotagdes no momento da observacdo porque isso compromete a interagio com o grupo. Nesse caso 0 observador procurara encontrar o mais breve possivel uma ocasiao em que possa completar suas notas, para que no precise confiar muito na memoria, sabidamente falivel. Nao sera nada facil para o pesquisador encontrar um momento propicio para fazer as suas anotagées, que nao seja muito distante dos eventos observados, para nao haver esquecimento, nem provoque dtividas nos participantes sobre seu verdadeiro papel. ‘A forma de registrar os dados também pode variar muito, dependen- do da situagao especifica de observagao. Do ponto de vista essencial- mente pratico, é interessante que, ao iniciar cada registro, o observa- dor indique o dia, a hora, 0 local da observagao e 0 seu periodo de Guragdo. Ao fazer as anotagdes, é igualmente util deixar uma margem para a codificagao do material ou para observagées gerais. Sempre que possivel, é interessante deixar bem distinto, em termos visuais, as informagées essencialmente descritivas, as falas, as cita- ges e as observagées pessoais do pesquisador. Outro procedimento pratico é mudar de pardgrafo a cada nova situago observada ou a cada 32 nova personagem apresentada. Essas medidas tém um cardter mera- mente pratico, no sentido de ajudar a organizacao ¢ a anélise dos dados, tarefa extremamente trabalhosa e estafante. Finalmente, a decisio sobre o tipo de material onde serao feitas as anotagdes também vai depender muito do estilo pessoal de cada observador. Alguns podem preferir um papel de tamanho pequeno, para néo chamar muito a atengio; outros se sentirio muito mais & vontade usando fich4rios ou folhas avulsas para facilitar 0 arquiva- mento € a posterior classificaco. Outros poderao adotar um tipo de material que mantenha junto todo o conjunto de observagées, para fazer consultas as informagoes ja obtidas sempre que necessério. 3.2, A entrevista Ao lado da observagao, a entrevista representa um dos instrumentos basicos para a coleta de dados, dentro da perspectiva de pesquisa que estamos desenvolvendo neste livro. Esta é, alids, uma das principais técnicas de trabalho em quase todos 0s tipos de pesquisa utilizados nas ciéncias sociais. Ela desempenha importante papel nao apenas nas atividades cientificas como em muitas outras atividades humanas. Estamos habituados e muitas vezes ficamos irritados com 0 seu uso € abuso pelos meios de comunicagao de massa, especialmente pela televisao, que nes atinge de forma tdo direta e onde podemos flagrar frequentemente a inabilidade de um entrevistador que antecipa e forca a resposta do informante, através da propria pergunta, quase nao deixando margem de liberdade de resposta, a nao ser a propria confir- magao. F que dizer do reporter ansioso, que nao hesita em formular as questdes mais cruas as vitimas da tragédia recém-acontecida? Pois essa poderosa arma de comunicagao, 4s vezes tao canhestramente empregada, pode ser de enorme utilidade para a pesquisa em educa- cdo. E preciso, para tanto, conhecer os seus limites e respeitar as suas exigéncias, De inicio, é importante atentar para o carter de interagao que permeia a entrevista. Mais do que outros instrumentos de pesquisa, que em geral estabelecem uma relagao hierarquica entre o pesquisador eo pesquisado, como na observagao unidirecional, por exemplo, ou na aplicagio de questionarios ou de técnicas projetivas, na entrevista a relagdo que se cria é de interacao, havendo uma atmosfera de influén- cia recfproca entre quem pergunta e quem responde. Especialmente nas entrevistas nao totalmente estruturadas, onde nao ha a imposigao de uma ordem rigida de questdes, o entrevistado discorre sobre o tema proposto com base nas informagdes que ele detém e que no fundo sao a 33 verdadeira razo da entrevista. Na medida em que houver um clima de estimulo ¢ de aceitacéo miitua, as informagées fluirfo de maneira notavel e auténtica. A grande vantagem da entrevista sobre outras técnicas é que ela permite a captagéo imediata e corrente da informagao desejada, prati- camente com qualquer tipo de informante e sobre os mais variados topicos. Uma entrevista bem-feita pode permitir o tratamento de assuntos de natureza estritamente pessoal e intima, assim como temas de natureza complexa e de escolhas nitidamente individuais. Pode permitir o aprofundamento de pontos levantados por outras técnicas de coleta de alcance mais superficial, como o questionario. E pode também, o que a torna particularmente atil, atingir informantes que nao poderiam ser atingidos por outros meios de investigagéio, como é 0 caso de pessoas com pouca instrugdo formal, para as quais a aplicagao de um questiondrio escrito seria invidvel. Como se realiza cada vez de maneira exclusiva, seja com individuos ou com grupos, a entrevista permite correcées, esclarecimentos e adaptagdes que a tornam sobremaneira eficaz na obtengio das infor- magées desejadas. Enquanto outros instrumentos tém seu destino selado no momento em que saem das mos do pesquisador que os elaborou, a entrevista ganha vida ao se iniciar o didlogo entre o entrevistador ¢ o entrevistado. A liberdade de percurso esta, como jé foi assinalado, associada especialmente 4 entrevista nao-estruturada ou nao-padronizada. Quan- do o entrevistador tem que seguir muito de perto um roteiro de perguntas feitas a todos os entrevistados de maneira idéntica e na mesma ordem, tem-se uma situacdo muito proxima da aplicagao de um questiondrio, com a vantagem Obvia de se ter o entrevistador presente para algum eventual esclarecimento. Essa é a chamada entrevista padronizada ou estruturada, que é usada quando se visa 4 obtengdo de resultados uniformes entre os entrevistados, permitindo assim uma comparagaio imediata, em geral mediante tratamentos estatisticos. Entre esses dois tipos extremos se situa a entrevista semi-estruturada, que se desenrola a partir de um esquema basico, porém néo aplicado rigidamente, permitindo que o entrevistador faga as necessdrias adap- tagdes. Parece-nos claro que o tipo de entrevista mais adequado para o trabalho de pesquisa que se faz atualmente em educacdo aproxima-se mais dos esquemas mais livres, menos estruturados. As informagdes que se quer obter, e os informantes que se quer contatar, em geral professores, diretores, orientadores, alunos e pais, sio mais conve- nientemente abordaveis através de um instrumento mais flexivel. Quando se pretende levantar répida e superficialmente as tendéncias 34 eleitorais ou as preferéncias por determinados produtos do mercado, entio é o caso de se aplicar uma entrevista padronizada, que permita teunir em curto espago de tempo a opinido de um grupo numeroso de pessoas. Mas, quando se quer conhecer, por exemplo, a visio de uma professora sobre o processo de alfabetizagio em uma escola de perife- ria ou a opiniio de uma mae sobre um problema de indisciplina ocorrido com seu filho, entéo é melhor nos prepararmos para uma entrevista mais longa, mais cuidada, feita provavelmente com base em um roteiro, mas com grande flexibilidade. Ha uma série de exigéncias e de cuidados requeridos por qualquer tipo de entrevista. Em primeiro lugar, um respeito muito grande pelo entrevistado. Esse respeito envolve desde um local ¢ horario marcados cumpridos de acordo com sua conveniéncia até a perfeita garantia do sigilo ¢ anonimato em relagao ao informante, se for 0 caso. Igualmente respeitado deve ser o universo préprio de quem fornece as informa- gdes, as opinides, as impressdes, enfim, 0 material em que a pesquisa esté interessada, Uma das principais distorgdes que invalidam frequen- temente as informagées recolhidas por uma entrevista é justamente o que se pode chamar de imposigao de uma problemitica. M. Thiollent trata muito bem desse assunto em seu livro jé citado (Thiollent, 1980). Muitas vezes, apesar de se utilizar de vocabulario cuidadosamente adequado ao nivel de instrugdo do informante, o entrevistador introduz um questionamento que nada tem a ver com seu universo de valores e preocupagées. E a tendéncia do entrevistado, em ocasides como essas, a de apresentar respostas que confirmem as expectativas do questio- nador, resolvendo assim da maneira mais facil uma problematica que no é a sua. Ao lado do respeito pela cultura ¢ pelos valores do entrevistado, 0 entrevistador tem que desenvolver uma grande capacidade de ouvir atentamente e de estimular o fluxo natural de informagées por parte do entrevistado. Essa estimulag&o nao deve, entretanto, forgar o rumo das respostas para determinada diregio. Deve apenas garantir um clima de confianga, para que o informante se sinta a vontade para se expressar livremente. Ha na literatura especifica de metodologia da pesquisa, disponivel em portugués, varias obras muito boas tratando da entrevista, Algumas delas, indicadas no final deste livro, devem ser consultadas pelo pesquisador iniciante ao se propor o emprego dessa importante técni- ca. Dentro do 4mbito deste livro podemos apenas tratar de maneira geral de suas principais aplicagdes e exigéncias no campo da pesquisa em educagio. Tratando-se de pesquisa sobre 0 ensino, a escola e seus problemas, © curriculo, a legislagao educacional, a administragao escolar, a super- 35 visio, a avaliagéo, a formagdo de professores, o planejamento do ensino, as relagdes entre a escola e a comunidade, enfim, toda essa vasta rede de assuntos que entram no dia-a-dia do sistema escolar, podemos estar seguros de que, ao entrevistarmos professores, direto- res, orientadores, supervisores e mesmo pais de alunos nio lhes estaremos certamente impondo uma problematica estranha, mas, ao contrario, tratando com eles de assuntos que Ihes so muito familiares sobre os quais discorrerao com facilidade. Sera preferivel e mesmo aconselhavel 0 uso de um roteiro que guie a entrevista através dos tépicos principais a serem cobertos. Esse roteiro seguira naturalmente uma certa ordem Idgica ¢ também psicoldgica, isto é, cuidara para que haja uma sequéncia légica entre os assuntos, dos mais simples aos mais complexos, respeitando o sentido do seu encadeamento. Mas atentaré também para as exigéncias psicolégicas do processo, evitando saltos bruscos entre as questdes, permitindo que elas se aprofundem no assunto gradativamente ¢ impedindo que ques- toes complexas e de maior envolvimento pessoal, colocadas prematu- ramente, acabem por bloquear as respostas as questées seguintes. Quase todos os autores, ao tratar da entrevista, acabam por reco- nhecer que ela uitrapassa os limites da técnica, dependendo em grande parte das qualidades e habilidades do entrevistador. E inegavel que ha qualidades especificas que denotam o entrevistador competente, tais como uma boa capacidade de comunicagio verbal, aliada a uma boa dose de paciéncia para ouvir atentamente. Mas é inegavel também que essas e outras qualificagdes do bom entrevistador podem ser desenvol- vidas através do estudo e da pratica, principalmente se esta partir da observacao de outro entrevistador mais experiente, que possa inclusi- ve funcionar como supervisor da pratica do iniciante. Nao ha receitas infaliveis a serem seguidas, mas sim cuidados a serem observados e que, aliados a inventiva honesta e atenta do condutor, levarao a uma boa entrevista. Um desses cuidados é o que alguns autores chamam de “‘atengao flutuante’’ (Thiollent, 1980). O entrevistador precisa estar atento nao apenas (e nao rigidamente, sobretudo) ao roteiro preestabelecido e as respostas verbais que vai obtendo ao longo da interacio. Ha toda uma gama de gestos, expressdes, entonagdes, sinais nao-verbais, hesita- des, alteragdes de ritmo, enfim, toda uma comunicagio nao verbal cuja captacdo é muito importante para a compreensao e a validagao do que foi efetivamente dito. Nao é possivel aceitar plena e simplesmente 0 discurso verbalizado como expresso da verdade ou mesmo do que pensa ou sente o entrevistado. E preciso analisar e interpretar esse discurso a luz de toda aquela linguagem mais geral e depois confronta- lo com outras informagées da pesquisa ¢‘dados sobre o informante. 36 ‘Um outro aspecto importante da entrevista merece ser abordado aqui, nesta visio geral desse instrumento. Como registrar os dados obtidos? As duas grandes formas de registros suscitam grandes discus- sdes entre os especialistas e carregam consigo seus defeitos e virtudes. Sao elas a gravacio direta e a anotagdo durante a entrevista. A gravagio tem a vantagem de registrar todas as expressdes orais, imediatamente, deixando o entrevistador livre para prestar toda a sua atengdo ao entrevistado. Por outro lado, ela 6 registra as expressdes orais, deixando de lado-as expressdes faciais, os gestos, as mudancas de postura e pode representar para alguns entrevistados um fator constrangedor. Nem todos se mantém inteiramente & vontade e natu- rais ao ter sua fala gravada. Outra dificuldade grande em relacdo a entrevista gravada é a sua transcric&o para o papel. Essa operacao é bem mais trabalhosa do que geralmente se imagina, consumindo mui- tas horas e produzindo um resultado ainda bastante cru, isto é, onde as informagGes aparecem num todo mais ou menos indiferenciado, sendo jificil distinguir as menos importantes daquelas realmente centrais. Ser necessdria uma comparaciio desse material com a gravagao para se estabelecerem as prioridades, com o auxilio, é claro, da meméria do 2ntrevistador. O registro feito através de notas durante a entrevista certamente deixaré de cobrir muitas das coisas ditas e vai solicitar a atengio e 0 2sforgo do entrevistador, além do tempo necessério para escrever. Mas, em compensacdo, as notas j4 representam um trabalho inicial de selegdo e interpretagdo das informagoes emitidas. O entrevistador ja vai percebendo o que é suficientemente importante para ser tomado yota e vai assinalando de alguma forma o que vem acompanhado com infases, seja do lado positivo ou do negativo. Aqui se percebe bem a mportancia da pratica, da habilidade desenvolvida pelo entrevistador vara conseguir ao mesmo tempo manter um clima de atengdo e nteresse pela fala do entrevistado, enquanto arranja uma maneira de ir motando o que é importante. Essa maneira é especifica de cada um, nas nao representa nada de magico ou misterioso, podendo perfeita- nente ser encontrada a partir de um acordo com o préprio entrevista- jo, E muito importante que o entrevistado esteja bem informado sobre 3s objetivos da entrevista e de que as informagoes fornecidas sero itilizadas exclusivamente para fins de pesquisa, respeitando-se sempre > sigilo em relacao aos informantes. E preciso que ele concorde, a sartir dessa confianga, em responder as questdes, sabendo, portanto, jue algumas notas tém que ser tomadas ¢ até aceitando um ritmo com yausas destinadas a isso. E indispensdvel que o entrevistador disponha de tempo, logo depois je finda a entrevista, para preencher os claros deixados nas anotacées, 37 enquanto a memoria ainda esta quente. Se deixar passar muito tempo, certamente sera traido por ela, perdendo aspectos importantes da entrevista que lhe custou tanto esforco. Aescolha de uma ou outra forma de registro sera feita em fungao de varios fatores, como vimos, ¢ também da preferéncia, do estilo de cada entrevistador, Em alguns casos é possivel até utilizar as duas formas concomitantemente. De qualquer maneira, ¢ importante lembrar que, ao nos decidirmos pela entrevista, estamos assumindo uma das técni- cas de coleta de dados mais dispendiosas, especialmente pelo tempo e qualificagao exigidos do entrevistador. Quanto mais preparado estiver ele, quanto mais informado sobre o tema em estudo e o tipo de informante que iré abordar, maior sera, certamente, 0 proveito ol com a entrevista. Como em qualquer outra técnica, é necessdrio verificar cuidadosamente se as informagées pretendidas exigem mes- mo essa técnica ou se poderiam ser conseguidas por outros meios de aplicacaéo mais facil e menos cara. 3.3. A andlise documental * Embora pouco explorada nao sé na drea de educagéo como em outras areas de agio social, a andlise documental pode se constituir numa técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, seja comple- mentando as informagées obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problema. S&o considerados documentos “‘quaisquer materiais escritos que possam ser usados como fonte de informagao sobre o comportamento humano” (Phillips, 1974, p. 187). Estes incluem desde leis e regula- mentos, normas, pareceres, cartas, memorandos, didrios pessoais, autobiografias, jornais, revistas, discursos, roteiros de programas de radio ¢ televisio até livros, estatisticas e arquivos escolares. Mas que € andalise documental? Quais as vantagens do uso de documentos na pesquisa? Quando é apropriado 0 uso desta técnica? Como utilizé-la? Segundo Caulley (1981), a andlise documental busca identificar informagées factuais nos documentos a partir de questdes ou hipdteses de interesse. Por exempo, uma circular distribuida aos professores de uma escola convidando-os para uma reunido pedagégica poderia ser examinada no sentido de buscar evidéncias para um estudo das rela- g6es de autoridade dentro da escola. “Uma versio preliminar desta segao foi publicada na revista Tecnologia Educacional, ABT, nv 46, maifjun. 1982, p. 40-45. 38 Guba e Lincoln (1981) apresentam uma série de vantagens para 0 uso de documentos na pesquisa ou na avaliagéo educacional. Em primeiro lugar destacam o fato de que os documentos constituem uma fonte estavel e rica. Persistindo ao longo do tempo, os documentos podem ser consultados varias vezes e inclusive servir de base a diferentes estudos, 0 que da mais estabilidade aos resultados obtidos. Os documentos constituem também uma fonte poderosa de onde podem ser retiradas evidéncias que fundamentem afirmagdes e decla- rages do pesquisador. Representam ainda uma fonte ‘“natural”’ de informagaéo, Nao sao apenas uma fonte de informagao contextualiza- da, mas surgem num determinado contexto e fornecem informagies sobre esse mesmo contexto. Uma vantagem adicional dos documentos é 0 seu custo, em geral baixo, Seu uso requer apenas investimento de tempo e atengao por parte do pesquisador para selecionar e analisar os mais relevantes. Outra vantagem dos documentos é que eles sio uma fonte ndo- reativa, permitindo a obtengdo de dados quando o acesso ao sujeito é impraticavel (pela sua morte, por exemplo) on quando a interagao com os sujeitos pode alterar seu comportamento ou seus pontos de vista. Finalmente, como uma técnica exploratéria, a analise documental indica problemas que devem ser mais bem explorados através de outros métodos. Além disso ela pode complementar as informages obtidas por outras técnicas de coleta. Guba e Lincoln (1981) resumem as vantagens do uso de documentos dizendo que uma fonte tao repleta de informacées sobre a natureza do contexto nunca deve ser ignorada, quaisquer que sejam os outros métodos de investigagao escolhidos. HA pelo menos trés situagdes basicas em que é apropriado o uso da analise documental, segundo Holsti (1969): 1. Quando 0 acesso aos dados é probiematico, seja porque 0 pesquisador tem limitages de tempo ou de deslocamento, seja porque o sujeito da investigacio niko est4 mais vivo, seja porque é conveniente utilizar uma técnica nio-obstrusiva, isto é, que no cause alteragées no ambiente ou nos sujeitos estudados. 2. Quando se pretende ratificar e validar informagSes obtidas por outras técnicas de coleta, como, por exemplo, a entrevista, 0 questionario ou a observagao, Segundo Holsti (1969), “‘quando duas ou mais abordagens do mesmo problema produzem resultados similares, nossa confianga em que os resultados reflitam mais o fenmeno em que estamos interessados do que os métodos que usamos aumenta"” (p. 17). 3. Quando o interesse do pesquisador é estudar o problema a partir da propria expressao dos individuos, ou seja, quando a linguagem dos sujeitos é crucial para a investigagao. Nesta situagio incluem-se todas as formas de produgio do sujeito em forma escrita, como redagées, dissertagGes, testes projetivos, didrios pessoais, cartas etc: 39 As criticas mais frequentemente feitas ao uso de documentos sao também resumidas por Guba e Lincoln (1981). A primeira delas é que os documentos sio amostras ndo-representativas dos fenémenos estu- dados. Isso é particularmente verdadeiro quando se pretende, por exemplo, estudar 0 que ocorre no dia-a-dia das escolas. Em geral as escolas nfo mantém registro das suas atividades, das experiéncias feitas e dos resultados obtidos. Quando existe algum material escrito, ele é esparso e consequentemente pouco representativo do que se passa no seu cotidiano. E evidente que esse fato também é um dado do contexto escolar e deve ser levado em conta quando se procura estuda- lo. Outra critica ao uso de documentos é sua falta de objetividade e sua validade questiondvel, Essas objegdes sao geralmente levantadas por todos aqueles que defendem uma perspectiva “‘objetivista’’ e que nio admitem a influéncia da subjetividade no conhecimento cientifico. Quanto ao problema da validade, ele no se restringe apenas aos documentos, mas aos dados qualitativos em geral, e sera um porto especificamente tratado no proximo capitulo deste livro. Finalmente, a utilizagio de documentos ¢ também criticada por representar escolhas arbitrarias, por parte de seus autores, de aspectos a serem enfatizados e tematicas a serem focalizadas. Esse ponto, porém, pode ser contestado lembrando-se do préprio propésito da andlise documental de fazer inferéncia sobre os valores, os sentimen- tos, as intengdes e a ideologia das fontes ou dos autores dos documen- tos. Essas escolhas arbitrarias dos autores devem ser consideradas, pois, como um dado a mais na anilise. A préxima questo se refere ao modo de utilizar a andlise documen- tal, isto é, aos procedimentos metodoldgicos a serem seguidos na anélise de documentos. A primeira decisao nesse processo é a caracterizagio do tipo de documento que sera usado ou selecionado. Serd do tipo oficial (por exemplo, um decreto, um parecer), do tipo técnico (como um relatério, um planejamento, um livro-texto) ou do tipo pessoal (uma carta, um diario, uma autobiografia)? Envolveré informagGes de arquivos ofi- ciais ou arquivos escolares? Ou ambos? Seré um material instrucional (filme, livro, roteiro de programa) ou um trabalho escolar (caderno, prova, redago)? Incluiré um Gnico tipo desses materiais ou uma combinagéio deles? A escolha dos documentos nao é aleatéria. Ha geralmente alguns propésitos, ideias ou hipéteses guiando a sua selegao. Por exemplo, para uma andlise do processo de avaliagio nas escolas o exame das grovas pode ser muito util. J4 para o estudo da interacdo grupal dos alunos a anélise das provas pode nao ser necessaria. 40 'Selecionados os documentos, 0 pesquisador procedera & analise ‘propriamente dita dos dados. Para isso ele recorre geralmente & metodologia de andlise de conteddo, que é definida por Krippendorff (1980) como ‘uma técnica de pesquisa para fazer inferéncias validas replicdveis dos dados para o seu contexto”’ (p. 21). Explicitando melhor sua definigao o autor afirma que a analise de contetido* pode caracterizar-se como um método de investigacao do contetido simbdli- co:das mensagens. Essas mensagens, diz ele, podem ser abordadas de diferentes formas ¢ sob intimeros angulos. Pode, por exemplo, haver variagdes na unidade de andlise, que pode ser a palavra, a sentenga, 0 patagrafo ou o texto como um todo. Pode também haver variagdes na forma de tratar essas unidades. Alguns podem preferir a contagem de palavras ov expressées, outros podem fazer analise da estrutura ldgica de expressdes e elocugdes e outros, ainda, podem fazer andlises temdticas. O enfoque da interpretacio também pode variar. Alguns poderao trabalhar os aspectos politicos da comunicagao, outros os aspectos psicolégicos, outros, ainda, 9s literdrios, os filoséficos, os éticos e assim por diante. Outro ponto discutido por Krippendorff diz respeito & necessidade de consenso sobre o contetido do material analisado. A concordancia 86 corre para os aspectos mais dbvios da comunica¢ao ou quando ha pontos de vista cultural e sociopoliticos similares entre os pesquisado- res-analistas, diz ele. Ora, a diversidade de pontos de vista e de enfoques parece contribuir mais para aumentar 0 conhecimento sobre algo do que para limité-lo. A exigéncia de consenso parece, pois, muito mais uma exigéncia do formalismo analitico caracteristico dos esque- mas classicos de pesquisa do que uma necessidade do ato de conhecer. Daf sua inadequagio nas abordagens qualitativas de pesquisa que visam sobretudo 4 compreensao. Krippendorff enfatiza ainda que as mensagens transmitem experién- cia vicdria, o que leva o receptor a fazer inferéncia dos dados para 0 seu contexto. Isso significa que no processo de decodificagao das mensagens o receptor utiliza nio sé o conhecimento formal, légico, mas também um conhecimento experiencial onde estéo envolvidas sensagdes, percepgdes, impressées e intuigdes. O reconhecimento desse carater subjetivo da andlise é fundamental para que possam ser tomadas medidas especificas e utilizados procedimentos adequados ao seu controle. Tomando a definigdo proposta por Krippendorff com as devidas ponderagées por ele feitas, 0 processo de anilise de contetido tem infcio com a decisdo sobre a unidade de andlise. Holsti (1969) apresenta “Para um estudo mais aprofundado do tema, consultar a bibliografia anexa a este capitulo. 41 dois tipos de unidade: unidade de registro e unidade de contexto. No primeiro caso, diz ele, o pesquisador pode selecionar segmentos espe- cificos do contetide para fazer a andlise, determinando, por exemplo, a frequéncia com que aparece no texto uma palavra, um tépico, um tema, uma expresso, uma personagem ou um determinado item. Outras vezes pode ser mais importante explorar o contexto em que uma determinada unidade ocorre, e nao apenas a sua frequéncia. Mais uma vez 0 método de codificagao escolhido vai depender da natureza do problema, do arcabougo teérico e das questées especificas da pesquisa. O que precisa ser considerado é que o tipo de unidade selecionada pode afetar os resultados finais do estudo. Se as unidades menores, como palavras e expressées, podem aumentar a confiabilida- de da andlise, elas podem, por outro lado, comprometer a relevancia das interpretagées. E possivel também que a fixagdo em unidades nao seja desejavel em certos tipos de estudo. Segundo Patton (1980), a andlise de dados qualitativos ¢ um proces- so criativo que exige grande rigor intelectual e muita dedicagio. Nao existe uma forma melhor ou mais correta. O que se exige é sistematiza- go e coeréncia do esquema escolhido com o que pretende o estudo. Decidido o tipo de codificagiio, o préximo passo da anélise é a forma de registro. Aqui também pode haver muitas variagdes. Alguns preferi- réo ir fazendo anotagées & margem do préprio material analisado, outros utilizarao esquemas, diagramas e outras formas de sintese da comunicacao. Essas anotagdes, como um primeiro momento de classi- ficagéo dos dados, podem incluir o tipo de fonte de informagao, os tépicos ou temas tratados, o momento e o local das ocorréncias, a natureza do material coletado etc. Quando o volume de dados é muito grande, ou quando for adequada @ quantificagao, talvez seja vantajoso recorrer ao auxilio do computa- dor. A analise por computagao requer muito tempo de programagio, por isso deve ser reservada para situagdes em que os dados sejam realmente volumosos ou venham a ser utilizados por diferentes pes- soas num longo espaco de tempo. Depois de organizar os dados, num processo de inimeras leituras e releituras, o pesquisador pode voltar a examiné-los para tentar detectar temas e tematicas mais frequentes. Esse procedimento, essencialmen- te indutivo, vai culminar na construg4o de categorias ou tipologias. A construg&o de categorias no é tarefa facil. Elas brotam, num primeiro momento, do arcabouco tedrico em que se apoia a pesquisa. Esse conjunto inicial de categorias, no entanto, vai ser modificado ao longo do estudo, num processo dindmico de confronto constante entre teoria e empiria, o que origina novas concepges e, consequentemente, novos focos de interesse. 42

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