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entendo porque eu não impedi que eles


fizessem isso (abuso sexual) comigo” – e
inassertividade – “Eu não sei dizer não
para as pessoas... Meus irmãos e cunha-
dos sempre pedem dinheiro para mim e
não pagam. Quando digo que não tenho
ou não posso, as pessoas parecem que sa-
bem que estou mentindo, aí eu acabo em-
prestando mesmo”.
Objetivos da Cliente: Entender as “causas”
do choro e “ficar boa da depressão”.
Demandas: A partir das queixas apre-
sentadas pela cliente, identificou-se a ne-
cessidade de desenvolver repertórios de
Diagnóstico comportamental autoconhecimento. O interesse pelo de-
Apresenta-se a seguir o processo diagnós- senvolvimento da assertividade ocorreu,
tico do caso atendido, de acordo com a também, por notar-se, logo nas primeiras
estrutura comumente utilizada pela abor- sessões, que a cliente era passiva, inasser-
dagem analítico-comportamental (apre- tiva e emitia mandos disfarçados, e não
sentação dos dados e formulação/diagnós- diretos, com bastante frequência.
tico propriamente dito), com o objetivo de
delinear todo o processo diagnóstico com
base nesse referencial. Assim, inicialmente,
Variáveis históricas
são apresentados, de maneira ordenada e Histórico Familiar: Família extensa, com
sintética, dados coletados ao longo das pai falecido, mãe e seis irmãos, dentre eles
sessões e, posteriormente, análises funcio- quatro homens e duas mulheres. Ficou
nais micro e macro, as quais constituem, responsável por administrar o dinheiro de
efetivamente, a formulação/diagnóstico sua mãe após o falecimento do pai, o que
comportamental. gerava pedidos corriqueiros de emprésti-
mo de dinheiro por parte dos parentes,
que não pagavam e, às vezes, Florinda
Dados da cliente
contraía dívidas em decorrência disso. Ela
Identificação: Florinda (nome fictício), 30 se recusava a emprestar, inicialmente, mas
anos, sexo feminino, negra, ensino médio terminava cedendo à insistência. Como
completo, nível socioeconômico baixo, exemplo dessa situação, relatou uma dívi-
noiva e católica praticante. da contraída com compra de material de
Queixa: No processo de triagem, a clien- construção para levantar o barraco em que
te relatou as seguintes queixas: choro fre- a mãe morava. Enquanto todos os outros
quente, tristeza, crises depressivas recor- irmãos contribuíam com o pagamento do
rentes, dificuldades financeiras e histórico material, a cliente cobria o rombo mensal
de abuso sexual. deixado pelo irmão (que cometeu o abuso
No decorrer dos atendimentos iniciais, sexual) que, além de não arcar com a par-
explicitou mais algumas queixas, como a te que lhe cabia, ainda retirava produtos
falta de autoconhecimento – “Quero en- da loja de materiais de construção para si
tender por que eu choro tanto”, “Por que sem avisar aos demais irmãos e acrescen-
as pessoas têm pena de mim?”, “Eu não tava à conta.
184 Ana Karina C. R. de-Farias e Cols.

As discussões da cliente com o irmão ela, acolhiam-na e perguntavam o que ela


abusador frequentemente eram acompa- estava sentindo. Ela respondia: “Não sei”.
nhadas de gritos da parte dele que, por
Histórico Afetivo-sexual: Foi abusada se-
sua vez, eram seguidos de choro da parte
xualmente na infância pelo cunhado e
de Florinda. Relatou, e voltar rapidamente
pelo irmão. Com o cunhado, houve dois
para o lar.
episódios: o primeiro aconteceu enquanto
Histórico Social: Na adolescência, as cole- ela brincava de pular na cama em que o
gas zombavam dela pelo fato de ter medo cunhado estava; ele tocou em sua vagina,
de homens. Marcavam encontros com havendo ardor e ela então saiu correndo.
rapazes que a cumprimentassem apenas No segundo episódio, não consumado, ele
para vê-la fugindo deles. Numa dessas tentou retirar o cobertor e as roupas dela
“brincadeiras”, ela conheceu o noivo e, de- durante a noite, mas ela empurrou suas
pois, começaram a namorar. Relatou que mãos, impedindo que o fizesse. A diferen-
“tento ser amiga, mas não tenho amigos; ça de idade entre o cunhado abusador e a
as pessoas brincaram muito comigo, já so- cliente era de 18 anos, sendo que, na épo-
fri muito com amizades”; “meu único ami- ca dessas duas tentativas, ela tinha aproxi-
go é meu noivo”. madamente 4 anos e ele 22.
Florinda comentou em uma sessão Os episódios de abuso cometidos pelo
que certa vez, uma colega de sua igreja, ao irmão (cinco anos mais velho) foram mais
conhecer o seu noivo comentou: “Nossa, frequentes e diversos: em “brincadeiras”,
esse que é o seu namorado”, “todos na mi- nas quais ele a tocava; com penetração
nha casa veem e não fazem nada!”. dos dedos na vagina da cliente; em situa-
A cliente afirmou que o dia do seu ções nas quais os pais saíam e ele a levava
noivado foi o dia mais feliz de sua vida até o banheiro, ordenava que ela abaixasse
e que almejava casar-se para sair de casa as roupas e encurvasse o corpo de costas
o quanto antes. Revelou que, quando ti- para ele – nessas ocasiões, manipulava o
nha que resolver algum compromisso fora pênis em contato com sua vagina, chegan-
de casa, demorava propositalmente para do a haver introdução vaginal algumas ve-
adiar seu retorno. Entretanto, logo o ir- zes. Ao falar dos abusos do irmão, sensibi-
mão abusador ligava para saber em que lizava-se e afirmava: “Ele é meu dono”; “O
local estava; ela costumava dizer “ele é bo- meu pai era um homem bom, mas ele era
nito, né?... Pensei que ele fosse igual àque- dominado pelo meu irmão”; “Ele só queria
les neguinhos da rua”. A cliente se sentiu me usar, ele só queria a minha vagina”.
diminuída e magoada, pois compreendeu A cliente dizia não se lembrar quantos
que a colega a julgava incapaz de namorar anos tinha quando ocorreram os abusos,
um homem branco por ser negra (situação nem da idade da primeira menstruação,
de discriminação racial), porém a cliente ocasião na qual os episódios de abuso se
nada fez. encerraram, pois ela poderia engravidar.
Frequentava a igreja habitualmente e Dizia também não se lembrar de nada fa-
disse gostar muito do que fazia. Além dis- lado nas sessões terapêuticas nas quais o
so, participava de um grupo religioso que abuso fora tratado. Lembrava-se, contudo,
rezava terços na casa de pessoas assidua- de outras datas relevantes.
mente. Relatou que, apenas quando foi escla-
Muitas vezes, chorava na frente de ou- recendo-se sobre o ocorrido, começou a
tras pessoas, dizendo que sentia uma enor- sofrer bastante e culpabilizar-se, e isso afe-
me tristeza. As pessoas costumavam ir até tava diretamente sua vida até o momento
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presente. Poucas pessoas tinham conheci- financeiro do noivo para o pagamento


mento do ocorrido; dentre elas, um padre, da inscrição. Resistiu em aceitar a ajuda
o noivo e duas psicólogas. Temia que esse financeira do noivo, pois acreditava que
assunto, algum dia, viesse a ser revelado à não deveria aceitar dinheiro de homem
família, pois ninguém acreditaria nela e a (regra da mãe), principalmente: “se ele
acusariam de tê-los provocado. ainda não é seu marido, não deve decidir
Nunca havia tido envolvimento sexual nada por você”. Todavia o noivo insistiu,
com o noivo, seu primeiro namorado, disse que não cobraria dela depois e a
com quem estava há cinco anos. Defendia cliente acabou aceitando. Animou-se em
o sexo só depois do casamento, devido a fazer o concurso, pois teria prova prática
preceitos religiosos. Vale ressaltar que ela de corrida e ela lembrou-se de ter corrido
costumava usar camisas com imagens de e caminhado no passado e que ainda gos-
santo e um terço envolto entre os dedos. tava muito dessas atividades. No entanto,
Disse que sexo era algo importante para não estudou regularmente para o concur-
o casal quando vivido no casamento, que so e hesitou várias vezes em fazer as cami-
desejava casar-se e ter filhos com esse noi- nhadas, conforme havia se comprometido.
vo e que não o via apenas para a repro- Além disso, foi chamada para entrevistas
dução. Costumava namorar na praça; no de emprego e as recusou, afirmando estar
entanto, quando estavam na casa dela, atribulada com os preparativos para o ca-
evitava aproximar-se dele, para evitar co- samento e que não sobraria tempo para
mentários moralistas da mãe. fazer as duas coisas.
Histórico Acadêmico e/ou Profissional: Histórico Médico-psicológico: A cliente
Concluiu o ensino médio. Não trabalha- realizava consultas semestrais com um
va durante o período que durou o atendi- psiquiatra da rede pública, o qual recei-
mento, porém gostaria de ter um empre- tava antidepressivo, ansiolítico e estabi-
go para ajudar o noivo com o casamento lizador de humor, de forma conjugada.
e esperava que algum colega a indicasse Foi diagnosticada pelo psiquiatra como
para um trabalho. Não queria emprego 1
tendo Transtorno Bipolar . Já havia pas-
relacionado à limpeza, pois havia avança- sado por duas terapias anteriormente, de
do nos estudos e acreditava merecer algo abordagens diversas. A última foi em uma
melhor. Tinha experiências de trabalho em instituição de Ensino Superior do Distri-
uma padaria e na cozinha de um grande to Federal, na qual fez três triagens e 18
supermercado. Em relação ao serviço no sessões, sendo que o atendimento foi in-
supermercado, atribuiu sua demissão ao
fato de ter sido verdadeira com uma das 1
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
chefes. A chefe fazia comentários malicio- Mentais/(DSM-IV-TR) faz duas classificações elemen-
sos a respeito de Florinda com outros co- tares para o Transtono Bipolar: O Transtorno Bipolar
legas pelo fato de ela ser virgem. Frente a do Tipo I, marcado pela presença de um episódio
maníaco único, levando em consideração o episódio
essas provocações, a cliente, inicialmente, mais recente (maníaco, depressivo, misto ou especi-
relatou partes da Bíblia para a chefe e, pos- ficado); e o Transtorno Bipolar do Tipo II, caracteri-
teriormente, disse à mesma que ela não se zado pelo episódio de hipomania associado a pelo
valorizava, que não valia nada, apesar de menos uma crise de depressão (mostra-se necessário
ser bonita. identificar o tipo mais frequente, o hipomaníaco ou
o depressivo) (APA, 2002). Na perspectiva da Análise
Após ter iniciado a terapia, deixou do Comportamento, a mania é caracterizada por uma
currículos em uma empresa e fez inscrição fase de maior euforia, enquanto que na depressão
em um concurso público, com o auxílio ocorre uma “menor densidade comportamental”.
186 Ana Karina C. R. de-Farias e Cols.

terrompido, pois o local entrou em férias todavia, reforçava novos abusos por parte
e a terapeuta se formou, não podendo dar deles. Esse padrão comportamental inas-
continuidade à psicoterapia. sertivo apresenta-se de forma generalizada
e extrapola o contexto familiar, sendo ob-
Formulação Comportamental: Ao longo
servado no grupo religioso e no trabalho,
das sessões, a partir das informações ini-
nos quais se comportava fazendo o que
cialmente trazidas pela cliente a respeito
lhe era solicitado e preocupando-se com a
do próprio comportamento e/ou de seu
opinião dos outros, evitando, assim, críti-
ambiente (físico, familiar, social, etc.),
cas, reclamações e confrontos. Do mesmo
formulavam-se hipóteses funcionalmente
modo, nesses contextos, o comportamento
estruturadas, a partir das quais informa-
inassertivo servia também como estímulo
ções adicionais eram requisitadas pelo reforçador para o comportamento de fa-
terapeuta a fim de validar ou refutar tais miliares e colegas, favorecendo o aumento
hipóteses. Hipóteses confirmadas consti- da frequência de novos pedidos ou solici-
tuíram o conjunto de análises funcionais tações. A exposição frequente a contingên-
de comportamentos isolados da cliente cias coercitivas de reforçamento negativo e
(análise micro). A partir desse conjunto de de punição gerava a eliciação de respoden-
análises funcionais, chegou-se a uma sínte- tes: lágrimas, enrijecimento dos músculos,
se comportamental, na qual inter-relações sudorese, taquicardia e queda de pressão.
comportamento-ambiente e comporta- Além dos respondentes, o operante – cho-
mento-comportamento foram exploradas, ro – acompanhava o comportamento inas-
constituindo a formulação comportamen- sertivo.
tal (análise macro). Diante desse histórico, em que houve
Apresenta-se, no Quadro 10.1, as aná- construção de um repertório comporta-
lises funcionais (micro) de comportamen- mental passivo, consequenciado pela es-
tos isolados. Ao final do quadro, tais aná- quiva de contingências aversivas no pas-
lises são apresentadas de forma integrada, sado e, no presente, pela impossibilidade
constituindo-se na formulação comporta- de contracontrolá-las de modo efetivo,
mental do caso estudado. Foram necessá- desenvolveu-se um quadro de depressão
rias 12 sessões para se chegar a uma versão caracterizado por um repertório compor-
final da formulação, a qual foi formalmente tamental “disfuncional” mantido por con-
devolvida e discutida com a cliente. tingências coercitivas (Ferster, Culbertson,
A cliente vinha de uma família conser- Boren e Perrot, 1977/1982). Questiona-
vadora, muito religiosa e repleta de regras -se, portanto, o diagnóstico psiquiátrico
que contribuíram para a formação de au- de Transtorno Bipolar, pois, independen-
torregras, tais como: “se sou uma boa fi- temente da terapia medicamentosa, não se
lha, não contrario meus pais”; “se me man- tem, a partir do relato da cliente, histórico
tenho casta, preservo o nome da família”. de episódios de mania/euforia intercala-
Sua história de vida foi marcada por um dos com depressão.
controle rígido, em que pessoas ordena- No seu contexto familiar, teve mode-
vam e/ou indicavam o que fazer. No pas- los de passividade (pai e, algumas vezes, a
sado, houve abusos sexuais pelo irmão e mãe – com comportamentos permissivos
pelo cunhado, aos quais ela se submetia, ao filho abusador) e de agressividade (ir-
evitando assim outros tipos de violência mão abusador e mãe) que contribuíram
física/verbal e esquivando-se da descober- para o seu comportamento passivo, haven-
ta do ocorrido por familiares. Esse com- do algumas situações nas quais oscilava
portamento inassertivo, de submissão, da passividade para a agressividade. Vale
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lembrar o exemplo, em um dos empregos tinha como consequência o atendimento


que teve, de ter expressado sua opinião de seu pedido (reforço positivo). Nesse
de modo agressivo e pessoal a uma das sentido, em curto prazo, emitir mandos
chefes, o que culminou em sua demissão. disfarçados era reforçado. Em médio e em
Em outra situação, ao ouvir um comen- longo prazo, todavia, esse padrão com-
tário desagradável da mãe, chamou-a de portamental da cliente implicava a perda
cínica e teve como consequência o cho- de reforçadores sociais e a manutenção de
ro da mãe e vários dias de silêncio desta um repertório comportamental empobre-
com a cliente. Em outra ocasião, o irmão cido. Tendo em vista a baixa densidade de
abusador perguntou-lhe grosseiramente, reforçadores positivos, sua variabilidade
enquanto ela fazia a comida, o que havia comportamental mantinha-se reduzida.
para comer, e ela respondeu: “Se quiser sa- Diversos autores têm apontado que a
ber, abra as panelas!”. Ele respondeu: “Vou aprendizagem por regras diminui a sensi-
abrir mesmo!”, pegando a carne e o arroz bilidade às contingências (Albuquerque,
com as mãos. É relevante pontuar que, 2001; Castanheira, 2001; Nico, 1999).
na maior parte das vezes em que a cliente No contexto familiar, o uso extensivo de
comportou-se agressivamente, seu com- regras parece ter favorecido o estabeleci-
portamento foi punido positiva e negati- mento de um repertório comportamental
vamente, o que reduziu a frequência dessa restrito e pouco sensível às contingências.
classe de respostas. O reforço, mesmo que Essa baixa sensibilidade se evidenciava na
negativamente, era liberado quando ela generalização do mesmo padrão de com-
emitia comportamentos passivos, e isso portamento – depressivo, inassertivo – em
favoreceu o estabelecimento e a manuten- contextos diversos (igreja, trabalho), ca-
ção desse padrão comportamental. Uma racterizados por contingências distintas
das poucas pessoas que ainda reforçavam daquelas disponíveis no contexto familiar.
seus comportamentos agressivos era o noi- Em suma, Florinda apresentava pa-
vo, pois fornecia carinho e atenção nesses drão comportamental inassertivo, com
momentos. baixa variabilidade, com alta frequência de
Em geral, ao longo de sua história de comportamentos de esquiva e fuga e baixa
vida, seus familiares reforçaram também densidade de reforçadores positivos.
outros padrões passivos, ou seja, quando Objetivos Terapêuticos: Florinda rela-
ela solicitava algo de forma indireta, ob- tou dois objetivos para a terapia: “enten-

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