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O problema da justificação epistêmica

Adriano Hidalgo Borba

Junho de 2006

I. O personagem nega a possibilidade de algum ou alguns tipos


especı́ficos de conhecimento3 .
A história da filosofia é rica em personagens
conceituais: De Sócrates de Platão ao Idiota de I.I. O trilema de Agripa
Cusa, do Gênio maligno de Descartes à plêiade
de personagens nietzscheanas. Os personagens Os céticos, especialmente Enesidemo e Agripa,
conceituais não são meras alegorias, mas verda- estabeleceram uma listas de tropos ou modos
deiros agentes de enunciação do pensamento1 . pelos quais chegaria-se à suspensão do juı́zo4 .
Em outros casos, temos personagens concei- Assumindo que conhecimento é crença ver-
tuais não mais como agentes ativos do enunci- dadeira justificada:
ado filosófico mas como verdadeiros portadores 3
“No geral, os filósofos distinguem dois tipos de ce-
dos desafios à construção do pensamento. Para ticismo: o ceticismo quanto ao conhecimento e o ce-
a teodicéia, o ateu, o agnóstico; para a filosofia ticismo quanto à justificação. O ceticismo irrestrito
moral, o amoralista, o niilista; para a episte- quanto ao conhecimento afirma que ninguém sabe nada.
O ceticismo irrestrito quanto à justificação assevera que
mologia, o sofista2 e o cético. ninguém pode justificar [ou seja, ter a garantia de] suas
O ceticismo não se caracteriza por um crenças [p.16][Moser, Mulder e Trout 2004]”.
4
sistema filosófico, mas justamente por sua Os tropos, ou modos “[. . . ] eram destinados a mos-
oposição. Em sua versão mais geral, o trar a impotência do empreendimento dialético, funda-
mentado no raciocı́nio”. 1) Modo de discordância: os
ceticismo se caracteriza pela exigência de filósofos e os homens em geral têm opiniões divergen-
condições extremamente rigorosas a qualquer tes sobre a maior parte das questões a resolver. Como
conhecimento. Em sua versão mais estrita, solucionar seus desacordos?; 2) Modo de regressão ao
infinito: se quisermos garantir uma afirmação por meio
1
“O personagem conceitual não é o represen- de uma prova, o cético exigirá que o argumento invo-
tante do filósofo, é mesmo o contrário: o filósofo cado seja por sua vez demonstrado, e assim por diante,
é somente o invólucro de seu principal persona- ao infinito, o que é impossı́vel; 3)Modo de relação: o co-
gem conceitual e de todos os outros, que são os nhecimento que temos de um objeto é relativo [à natu-
intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filoso- reza do sujeito e às condições nas quais se encontra o ob-
fia [p.86][Deleuze e Guattari 2004]”. jeto]; 4) Modo do postulado: adotar, como base de uma
2
É de Górgias que temos o clássico argumento argumentação, uma proposição que não tenha sido de-
sofı́stico: Nada existe; se algo existe, é inapreensı́vel; monstrada de nada adianta, pois o cético poderá muito
se é apreensı́vel, é incomunicável. Segundo Hankinson, bem se recusar a aceitar este princı́pio, ou propor um
“The arguments involved are for the most part unim- outro; 5) Modo do dialelo ou do cı́rculo vicioso: na falta
pressive; but some features merit consideration. Firstly, de encontrar um ponto de partida sobre o qual se possa
their concessive form [not-A; but even if A, not-B, but fundamentar sua demonstração, o dogmático tentará,
even if B, not-C] is characteristic of later scepticism. talvez, justificar sua afirmação pelas conseqüências que
Secondly within each part of the argument, Gorgias obtém dela. Porém, as próprias conseqüências devem
employs disjunctive modus tollens, a pattern much be- ser justificadas pela coisa em questão; ele cairá, assim,
loved of the Sceptics [p.51][Hankinson 1995]”. num cı́rculo vicioso [p.39][Verdan 1998]”.

i
ii

(1) Suponha que P3 é uma crença verdadeira. transmitida de outra ou outras crenças jus-
Para termos P3 como conhecimento é ne- tificadas. Os sistemas filosóficos, em grande
cessário que a crença em P3, além de ver- número, são fundacionalistas, partindo de
dadeira, seja justificada; princı́pios indubitáveis básicos, a partir do qual
todas as demais crenças [não-básicas] são jus-
(2) Esta justificação será, por sua vez, outra tificadas. A versão cartesiana do fundaciona-
proposição — chamamo-la de P2; de forma lismo proclama a possibilidade em justificar as
que P2 justifica P3; crenças a cerca do mundo exterior [empı́rico]
a partir das crenças sobre os estados mentais
(3) Mas para P2 ser uma justificação satis-
imediatamente experimentados, ou seja, a par-
fatória para P3, devemos saber que é o
tir da experiência sensória e da introspecção.
caso que P2;

(4) Para ser o caso que P2, P2, por sua vez, II.I. As objeções ao fundacionalismo
deve também estar justificado;
Temos, então, duas importantes objeções5 ao
(5) Esta justificação será uma outra pro- fundacionalismo: A primeira objeção (1) diz
posição — chamamo-la de P1; de forma respeito ao fato de que o conteúdo de nos-
que P1 justifica P2; sas experiências sensoriais não são nem pro-
posicionais, tampouco conceituais6 . Ou seja,
(6) Estamos novamente às voltas com a “não são relações lógicas, visto que sensações
mesma situação em (3), mas neste caso não são crenças ou outras atitudes proposi-
com P1 no lugar de P3. cionais. [. . . ] a relação é causal”, ou seja,
“sensações causam algumas crenças e desta
Isso nos leva à três possibilidades: forma são a base ou o fundamento destas
crenças. Mas uma explicação causal de uma
(a) ou a seqüência de justificações nunca ter-
crença não mostra como ou porque a crença é
mina;
justificada [p.200][BonJour 2002]”.
(b) ou algumas proposições não precisam de A segunda objeção (2) diz respeito à
justificação; consciência e sobre o próprio conteúdo expe-
riencial, ou seja, a crença a cerca dos próprios
(c) ou a cadeia de justificação, de forma cir- estados mentais.
cular, retorna a si mesma.
“Uma possibilidade é que o
Em (a), temos o regresso ao infinito; em caráter especı́fico da experiência sen-
(b), temos uma parada arbitrária, geralmente
5
a partir da proclamação de um conhecimento Em [pp.199-202][BonJour 2002].
6
“Imagine trying to describe such an experienced
auto-evidente; já em (c), temos a simples
sensory content to someone else, perhaps over the
aplicação de um argumento circular, portanto phone. One problem is that our vocabulary in this area
inválido. is obviously very inadequate. But even if you did have
and adequate vocabulary, isn’t clear that it would be
very, very, difficult to actually give anything close to
II. A proposta fundacionalista a complete description, and—the real point—that the
sensory content of which your are conscious and which
A proposta fundacionalista baseia-se em (b), you are attempting to describe does not itself already
ou seja, de que algumas crenças são básicas e involve or consist of such a conceptual or classificatory
que portanto não necessitariam de justificação description [p.200][BonJour 2002]”.
iii

sorial é apreendido por via de uma Na primeira, representando um nı́vel ideal


consciência conceitual reflexiva, ou de coerência, temos um sistema em que há tão
seja, outra crença: a crença de que somente inferências dedutivas logicamente de-
eu tenho tal e tal tipo especı́fico de monstráveis.
experiência [p.201][BonJour 2002]”. Na segunda, temos um sistema em que não
se tem nenhuma relação inferencial entre as
Mas agora temos dois problemas: Primeiro,
crenças, então, neste caso, temos um sistema
o que tinha-se como crenças básicas agora de-
não-coerente de crenças.
pendem da justificação de outras crenças, e se-
Cabe aqui a distinção entre consistência e
gundo, ficamos com a questão em como esta
coerência, sendo a consistência a possibilidade
crença reflexiva sobre minhas experiências sen-
de verdade de todas as proposições que estão
soriais pode ser, ela mesma, justificada.
no sistema de crenças, ou seja, não há con-
Se em (1) evitamos o regresso ao infinito,
traditórios ou contrários, mantendo-se, então,
mas não temos uma relação proposicional,
suas possibilidades lógicas. Decorre, então,
em (2) temos uma relação proposicional mas
que um sistema inconsistente não se qualifica
recaı́mos sobre o regresso ao infinito.
ao status de [idealmente] coerente. Em um
dado sistema de crenças, a existência de incon-
III. A alternativa coerentista sistências torna-o menos coerente. Podemos,
então, adicionar novas crenças de forma a re-
Segundo Feldman7 , os coerentistas endossam tomar a coerência do sistema.
duas idéias centrais:
1. Tão somente crenças podem justificar ou- III.I. As objeções ao coerentismo
tras crenças;
2. Cada crença justificada depende em parte A partir da seguinte formulação do coeren-
de outras crenças para a sua justificação. tismo verificamos que, seja o que for que se
Não existem crenças justificadas básicas. acredite, se estará justificado:
“S está justificada em crer que P, SSE P se
Apesar do forte apelo intuitivo, a palavra segue logicamente da conjunção de tudo que S
coerência não possui um significado unı́voco. crê [Feldman 2003]”.
Compreendemos melhor seu significado através Obviamente isso não é desejável. Qualquer
das relações que a palavra nos sugere. Por crença que respondesse a exigência em seguir-
exemplo, podemos dizer que enquanto em um se logicamente da conjunção de tudo que S crê
sistema fundacionalista cada parte constitu- estaria justificada. Pode-se imaginar situações
tiva de seu sistema de justificação suporta a em que essa exigência seria insuficiente para a
seguinte, no sistema coerentista cada parte justificação.
apóia-se sobre as outras e, finalmente, em si
mesma. Outra idéia importante ao coeren- “Pode bem ser que um nove-
tismo é a de uma unidade sistêmica, de onde lista, com dose suficiente de fan-
deriva-se sua justificação. tasia, pudesse inventar um passado
Outro dado importante é de que podemos para o mundo que se ajustasse a
pensar em nı́veis de coerência, tendo-se em primor com o que nós sabemos, e
mente duas situações limites: que diferisse inteiramente do passado
7
Em [Feldman 2003]. real [p.163][Russell 1939]”.
REFERÊNCIAS iv

Outra objeção importante feita ao coeren- Referências


tismo é o fato de que este sistema não levaria
em conta os dados da experiência do sujeito [Audi 1998]AUDI, R. Epistemology : a con-
cognoscente. Pode-se imaginar um sistema de temporary introduction to the theory of kno-
crenças perfeitamente coerente sendo, por ou- wledge / Robert Audi. London: Routledge,
tro lado, totalmente incompatı́vel com os fatos. 1998. (Routledge contemporary introductions
Dado o seguinte exemplo: to philosophy). ISBN 0415130433.
Tendo-se sistemas de crenças eqüanima-
mente coerentes: O de um esquizofrênico que [BonJour 2002]BONJOUR, L. Epistemology :
pensa ser Napoleão e o de psiquiatras. “Como classic problems and contemporary responses
podemos justificar nossa aparentemente mui / Laurence BonJour. Lanham, Md. ; Oxford:
razoável tendência em considerar os sistemas Rowman and Littlefield, 2002. (Elements of
de crenças dos psiquiatras como o de maior philosophy). ISBN 0742513726.
probabilidade em representar verdades e, por
conseguinte, mais provavelmente portar conhe-
[Deleuze e Guattari 2004]DELEUZE, G.;
cimento [p.195][Audi 1998]?”
GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de
Janeiro: Editora 34, 2004.

IV. Proposta [Feldman 2003]FELDMAN, R. Epistemology.


[S.l.]: Pearson US Imports and PHIPEs,
Como proposta de estudo, o Naturalismo Epis- 2003. ISBN 0133416453.
temológico de Hume e Quine e a perspectiva de
uma epistemologia derivada das ciências natu- [Hankinson 1995]HANKINSON, R. J. The
rais e da psicologia: Sceptics / R.J. Hankinson. London: Rou-
tledge, 1995. (The Arguments of the philo-
sophers). ISBN 0415184460.
Hume, D. (1739-40) A Treatise of Hu-
man Nature.
[Moser, Mulder e Trout 2004]MOSER, P. K.;
MULDER, D. H.; TROUT, J. D. A teoria
Quine, W.V. (1969) Ontological Re- do conhecimento: uma introdução temática.
lativity and Other Essays. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

[Russell 1939]RUSSELL, B. Os problemas da


Wittgenstein e os “estados privados e a lin- filosofia. São Paulo: Saraiva e Cia. Editores,
guagem”: 1939.

[Verdan 1998]VERDAN, A. O ceticismo fi-


Wittgenstein, L. (1953) Philosophical losófico. Florianópolis: Editora da UFSC,
Investigations. 1998.

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