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EEMTI.

PREFEITO DÁRIO CAMPOS FEIJÓ - Não se zangue, sei que não iria, você está sendo
APROFUNDAMENTO EM LÍNGUA PORTUGUESA fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um
PROFESSORA: Camila Carvalho instante numa rua afastada…- disse ele, aproximando-se
Saber 12: Elementos da narrativa e conflito gerador. mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos.
Exercícios de fixação Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se
Venha ver o pôr do sol – Lygia Fagundes Telles formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados.
Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão
ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava.
que avançava, as casas iam rareando, modestas casas Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar
espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio
meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um desatento –Você fez bem em vir.
mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil - Quer dizer que o programa… E não podíamos tomar
cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde. alguma coisa num bar?
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, - Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos - Mas eu pago.
e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante. - Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi
- Minha querida Raquel. este passeio porque é de graça e muito decente, não pode
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos. haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até
- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro romântico.
num lugar destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima. - Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo. farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos,
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias
e agora me aparece nessa elegância…Quando você andava vai me consertar a vida.
comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra? - Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero
- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais
– perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um discreto do que um cemitério abandonado, veja,
cigarro. – Hem?! completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o
- Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo braço rindo. portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou
- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
cigarrinhos pilantras, azul e dourado…Juro que eu tinha - É um risco enorme, já disse . Não insista nessas
que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto
Então fiz mal? enterros.
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a - Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes
voz – E que é isso aí? Um cemitério? preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que
o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem. bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, medo…
desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter
como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas
lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos
tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do mármores, invadira alamedas de pedregulhos
companheiro. Sorriu. – Ricardo e suas ideias. E agora? esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força
Qual é o programa? de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte.
Brandamente ele a tomou pela cintura. Foram andando vagarosamente pela longa alameda
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros
Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais como uma estranha música feita do som das folhas secas
lindo do mundo. trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente,
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes
para trás numa risada. mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com
- Ver o pôr do sol!…Ah, meu Deus…Fabuloso, os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
fabuloso!…Me implora um último encontro, me atormenta - É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério
dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a
mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça
sol num cemitério… decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino - Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente
pilhado em falta. por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem
- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no
que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe
fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que - Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério
vive espiando pelo buraco da fechadura… pobre.
- E você acha que eu iria? Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo. - Ela me amou. Foi a única criatura que…- Fez um gesto.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero – Enfim não tem importância.
me arriscar mais. Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
- Ele é tão rico assim? - Eu gostei de você, Ricardo.
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa - E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela
Oriente, meu caro… estremeceu.
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A - Esfriou, não? Vamos embora.
pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos - Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo
escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso
rugazinhas sumiram. abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra? ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras.
passo. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado,
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã…Mas, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois
apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo
Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera
até hoje como agüentei tanto, imagine um ano. dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como
- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro
toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma
está lendo agora. Hem? portinhola de ferro dando acesso para uma escada de
- Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se pedra, descendo em caracol para a catacumba.
para ler a inscrição de uma laje despedaçada: – A minha Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve
querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa. Fez naqueles restos da capelinha.
um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade. - Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido. Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não melancólico.
se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida - Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores
intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?
sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de - Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é
dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com
cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou
folhas…Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem total. Absoluta.
saudade, nem o nome sequer. Nem isso. Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou. ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que
muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um formavam um estreito retângulo cinzento.
cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe - E lá embaixo?
um rápido beijo na face. – Chega Ricardo, quero ir embora. - Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes.
- Mais alguns passos… Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro
quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, da parede, segurando firme na alça de bronze, como se
Ricardo, vou ficar exausta. fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para
impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o ver melhor.
jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, - Todas estas gavetas estão cheias?
tomando-a pela cintura: – Sabe, Raquel, andei muitas - Cheias?…- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição,
vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou
então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos
trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da
enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela gaveta.
e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na
Agora as duas estão mortas. voz.
- Sua prima também? - Vamos, Ricardo, vamos.
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não - Você está com medo?
era propriamente bonita, mas tinha uns olhos…Eram assim - Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora,
verdes como os seus, parecidos com os seus. estou com frio!
Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na
duas…Penso agora que toda a beleza dela residia apenas parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o
nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus. medalhão frouxamente iluminado:
- Vocês se amaram? - A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que
tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de
morrer… Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os
exibir, estou bonita? Estou bonita?…- Falava agora olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse - Não, não…
bonita, mas os olhos…Venha ver, Raquel, é Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os
impressionante como tinha olhos iguais aos seus. braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em - Boa noite, meu anjo.
nada. Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre
- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa
enxergando… expressão embrutecida.
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira. - Não…
- Pegue, dá para ver muito bem…- Afastou-se para o lado.- Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho
Repare nos olhos. percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se
- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça…- entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o
Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita grito medonho, inumano:
na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, - NÃO!
nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida…- Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se
Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo
não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais
Seu menti… remotos, abafados como se viessem das profundezas da
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou
Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido
a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um
portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe
malicioso. brincavam de roda.
- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso?
Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo
rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu? Atividade
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da
portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, 1 – O fragmento do texto lido “Venha ver o pôr-do-sol”
arrancou-a da fechadura e saltou para trás. refere-se a um conto. Os gêneros narrativos apresentam
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, alguns elementos em comum, como fatos, personagens,
imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tempo, espaço, narrador. Acerca do fragmento do conto
tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que lido, responda às seguintes perguntas:
dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais a) Quais são as personagens envolvidas na história?
estúpida! b) Onde acontecem os fatos narrados?
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem c) Que expressão indica o tempo da narrativa?
uma frincha na porta. Depois, vai se afastando d) Quem conta a história?
devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais 2. Como o conto apresenta a situação inicial?
belo do mundo. 3. Em que modo estão empregados os verbos?
Ela sacudia a portinhola. 4. Faça a descrição física e psicológica das personagens
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, envolvidas no conto.
imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força 5. De que maneira o cenário interfere na criação das
ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as personagens?
grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. 6. Já dava para perceber que algo de errado estava por
Ensaiou um sorriso. – Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, acontecer no conto. Cite elementos que demonstrem isso.
mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra… 7. De que maneira passa o tempo neste conto?
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em 8. Em que momento ocorre o clímax nesta história?
redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque. 9. De que maneira o desfecho acaba surpreendendo o
- Boa noite, Raquel. leitor?
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!… – gritou ela, 10. Por que o nome do conto é: Venha ver o pôr do sol?.
estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá- Justifique sua resposta comum trecho do mesmo.
lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu,
examinando a fechadura nova em folha. Examinou em
seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem.
Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele
balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o,

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