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Wetnao — revista on-line Espago de interlocugao em ciéncias humanas de filosofia e ciéncias humanas a. 15, Ano VU, abr./2013 — Publicagito semestral ~ ISSN 1981-06LX SOBRE O CONCEITO DE TOTALITARISMO* J. Chasin ‘Da rusticidade a sofisticacio, sob qualquer de suas formas, o conceito de totalitasismo, em esséncia, traduz aldeia de monopélio de poder’ Simplesmente para seguir um autor de inegivel prestigio, emmmeremos o que F, Neumann considera os “cinco fatores essenciais da ditadnsa totalitivia” “1) transigio de um estado de direito para um estado policial; 2) teansi¢ao do poder difuso nos estados liberais para a sua concentiasao no regime totalititio; 3) a existéncia de um partido estatal monopolista; 4) transicio dos controles sociais que passam de pluralistas para totaliticios; 5) a presenca decisiva do terror como ameaca constante contsa o individuo”® “Sto essas”, diz Neumann, “as caracteristicas do mais repressivo sistema politico” Que nos dizem elas? Fundamentalmente que 0 totalitatismo é uma oposicio radical a0 estado liberal ‘A contiaposicio pode ser facilmente percebida para os cinco fatores enuinciados. Assim, temos, respectivamente: para 0 primeizo, a oposigio entre lei ¢ Forca; para o segundo, a oposicio entre difusio © concentracio do poder; para o tetceiso, a oposicio entre pluralismo partidétio e seu contritio; para o quarto, a ‘oposiglo entre estado ¢ libesdade; por fim, a oposicéo entre violéncia sazio (consnbstanciada no individuo) para © quinto fator. Desse modo, o estado liberal vem a ser o sistema no qual predominam a fi, a nga © a fiber, garantidas pela dffue do poder e pela estrutura plurpartiddria. E.o estado totalititio,o sistema no qual prevalecem a violéncia extremada — ¢ terrar—e a dominacio hipertrofiada pela concentracio do poder e nutrida pelo monopélio politico do partic tice. ‘Um, portanto, é 0 regime da liberdade, regido pela lei, pela razi0; 0 outto, o da opressio comandada pela violéncia, Quem o beneficiatio da liberdade, nim caso, ¢ quem a vitima da opressio, no outro? A resposta, sinda nas palaveas de Neumann, é que 0 qne distingue 0 estado totalititio “é a destmicio da linha entre o estado ¢ a socicdade, ¢ a total politizacio dessa sociedade por meio do partido tinico”’. Em outros termos, onde prevalece a sociedad civil, temos o reino da libercade; onde domina o estado, reina o totalitatismo. Além do registro obrigatério da marca de genesalidade extrema que caractetiza todas estas fornmulacées, cabe sinda indagar: como é concebida, em iitima andlise, a sociedade civil? O mesmo autor nos esclarece: “O govemno pelo dircito € uma presuncio cm favor do direito do cidacio © contra © poder de coacio do estado. No estado totalitirio essa presuncio ¢ invertida™. Note-se, entio, que os polos co dilema sio, portanto, o individu e ocstado’ ‘Tudo gisa, como procusamos evidenciar, dentro do universo do liberalismo. E as determinagdes selativas 20 totalitarismo nacla mais sio do que definigées pela negacio, relativamente aos caracteres liberais. Em tltima instincia, « nage dertalitarisme mada mais ref do que o liberalism com sina iecado Isto, todavia, nio é simples coincidéncia, nem mero produto de debilidade tedrica. Se no, vejamos, A anilise dos casacteres da ditadura totalititia arrolados por Neumann revela-nos tais implicacdes. ‘Acima de tudo, os cinco fatores do referido autor tratam das relacées entre o dircito ¢ a violencia, em que a linha de saciocinio é conduzida por uma disjuntiva nao justificada. ‘A oposicio global entre o diseito e a forca, da primeira caractetistica,justapde-se a contiaposicio entre razi0 ¢ violéneis (quinta caracteristica), espressio distinta da mesma afirmacio. Delas, pedsa angular de todo 0 esquema, sio destiladas as demais “oposicées”: 0 partido nico, que informa o instrumento de superacio do império legal, © a concentracio do poder e os controles sociais monopolizados, que sio seus desivados necessitios, Configusa-se, postanto, uma concepeio cujos pressupostos necessisios sio: uma abstrata relacio excludente entre poder material e poder juridico; e a attibuigio também em abstrato de valor positive a0 campo juuidico, ¢ de negativo ao poder material. Pressupostos que implicam considerar o estado liberal uma sorte de fim da histéria, portanto, cacionalmente insuperavel, eterno como valor pritico e teético, © Publieade odiiaalmeate aa Rete Tinta de Cains Hamat: J. Edtosial Gaslbo, Sio Palo, 1977 1 *O que distingue potcamente 0 cotlitarismo ¢/../ esistencia de un partido estatal monopokita” Franz NEUMANN, Eetads Denocitvn« Estado Antoine. Zabar Editores, Rio de Jancico, 1969, p. 269; Hannah Arendt, por sua ver, refere-se 2 “mon analyse des léments de a domination totale”. H_ ARENDT, Le SyzimeTetatar, Seu, Pans, 1972, 8.8 2 F NEUMANN, Estado Dect « Estado Auoritri,o. i, pp. 268.70, 53 Ia p20. 4 Ia, 9.268. 5 “O meato mois, o valor absolute ea dignidade esencial da pessonalidade humans tim constiouido o postulado fundamental do ‘Hberaismo” J Salvyn SCHAPIRO. Litera, Editorial Paid, Buenos Aires, 1965, p. 12. Jest Chasin Deste modo, a definicio de totaltasismo por oposicio a liberalismo nio é casual, mas resultado de uma compara¢io com um modelo paradigmético, Donde termos dito que a defini¢io do conceito é conduzida por uma disjungio nao justificada, Fica, agora, esclarecido que a acusagio di-se, por imperative do concreto teal, ja nos pressupostos de toda a formula, ‘A abstrata oposicio estabelecida entre o plano jusidico eo da forca material seflete a clissica conviceio de que 0 poder legitimo “é o impétio das leis, nio dos homens”, e de que “todos tém direitos iguais perante a lei e que todos tm dleito 4 liberdade civil”, de modo que Yo govemno tem por finalidade principal a defesa da liberdade, da igualdade e da segusanca de todos os cidadaos”. Isso tudo porque “O mérito moral, o valor absoluto e a dignidade essencial da personalidade humana tém constituido 0 postulado fundamental do liberalismo, Portanto, ha de se considerar cada individuo um fim em si mesmo, nfo como um melo para promover os intexesses dos demais”. ‘A oposicio se situa, portanto, como jé fiisamos, entre o estado e o indivico. Nao medizndo, na anilise, entse os dois, qualquer outa dimensio de existéncia social. O indivichno, na intangibilidade de sua personalidade snumana, é que fanda a existéncia, os limites e a finalidade do estaclo legitimo”. A sociedade, 0 povo sio concebidos, como se v8, simplesmente como populacio, uma somatésia de unidades iguais cujas tinieas diferencas sto as diferencas individuais de eapacidade pessoal, e de critésio e forea moxais! De forma que, para a anise liberal, a questio do estado se resume i problemitica da legalidade™, daclo que tudo se gera e resolve no jogo interindividual”, ordenado por regtas definidas acima do social, ficando excluida qualquer considecacio relativa & problemitica das classes e de sua hegemonia. Consequentemente, a critica liberal no toma, nem podetia légiea e histosicamente tomar", 0 liberalismo como uma forma de hegemonia de uma determinada classe, mas como a expressio real da igualdade entre os individuos, E, na medida em que o social é «soma dos individnos, o jutidico nio pode deixar de ser a aparéncia que elide a desigualdade concreta Analiticamente, este ocultamento é da mesma natureza daquele que o conceito de totalitarismo opesa. Isto €, pelo jogo das individualidades oculta-se 0 jogo das classes; pela énfase no jusidico veda-se 0 acesso 20 real* E proptiamente a isto que o conceito de totalitarismo conduz: 4 impossibilidade de compreender 05 fenémenos que precisamente julga determina. que leva a esta alquimia ¢ justamente o procedimento proptio & anilise liberal: 0 emprego de universsis abstratos como tinico recurso do movimento da apreensio cientifiea, Donde,emlugarde reproduzis conceitualmente © concreto, evidenciando em cada caso a particulatidade decisiva, somos conduzidos, por aquela anilise, anos defrontar com a raga em gera, a liberdade em ger, 0 cicada em geal, o estado exw ger, a vielécia em geal etc. ete.” ‘io hi como deixar de observar que tais nocBes se vinculam a um particular espelhamento de sua base geradora: a economia de mercado, concebida como o lugar natural das xelacdes de troca em geval entre os individuos Jgualmente considerados em geral, em ontras palavras, 0 sistema capitalista de produgio e sua ideologia. E precisamente 0 universal abstiato que pesmite & critica liberal, dando extensio mixima ao conceito de totalitarismo, aglutinar uma muliplicidade de fendmenos, distintamente situados, sob 0 mesmo rétulo que os 6p 1h Tap 13 8 Tip 3 918, p 12 10/-../ um governo Hes exh a forma mondaquics ou a eepublcana, se assents no gorerno da Ie, que emana de um easpo legislative lvrementeeleito pelo povo”. Ih, pp. 13-14 117, p 2. 12 “Quese desde seus primérdios verno-o lutar (o liberaksmno) por opor diques i autonidade pokiica, por confinar atividade sgovernamental dentio do marco dos pincipios consttucionase, em consequendis, por proeuca um sistema adequado de dxccos Suadamentas gue 9 estado nia teaha a facldace de ovadic’ H. ) LASKI, Ei Lilomno Euro, Ponda de Celnaca Beoasonca, ésico, 1969, p. 130 tiberaismo “Tem olhado com desconfiane2/.../ todo intento de impedir, mediante 2 autordade do governo,o livre jogo das ssvidadesindviduaie” JA, p15. 14 “Pooque o que produit 0 Uberalisma foi o apatecinento de uma nova sociedade econdunica ao final da Idade Média. No que ‘enh de doutsns foi modeledo pelas necessidades dessa nova sociedade; e, como todes 2 Mlosofas soci, nfo podis transcender ‘o meio em que nascew.” Ih p16. 150 lberiama “Nianes pede entencee os nanes foi capaz de admit plenamente — que a lbesdadecowtestsl jamais ¢ gee amen Brze até que ts partes contastantes possum igual forea para negociar E esta iguldade, necessasiamente, € ume fungio de ‘condigSes materiis gua. O indivduo a quem o liberalisme trtou de protegee¢ aguele que, dentro dese qvadro socal, ¢ sempre live pars compete oma lbevdae-posémn, tem sco sempie ona manna da umanicade 0 miaieso dagueies que tim eectseos pcs fazer esta compea” Th, pp. 16617, 16 Acescente-se que tl procedimente nio produz, porque os enfitira, melhores resultados no texreno do couhecimento do ind ‘ido e do jusdica.A nosso ver o seu priclegiamento € exatumente a manifestacio de um descaminho que alo aproveita i ciénca ‘em quilqaes nivel 17*].../ 0 libesaiseno /.../ sempre pretendeu insistc em seu cater usiversal” I p16, Verinotio revista on-line ~ 1. 15, Ano VILL, abs,/2013, ISSN 1981-061X Sobre o conceite de totalitarismo confide sob o pretesto de os explica. E nessa linha de procedimento que assistimos 20 “monopélio” do poder se transformar em “monopélio” do poder em geral (tendo se tornado “monopélio”, isto é, totalitixio, exatamente porque nio se apresenta difuso, como € pretendido que ovorra no estado liberal), obviando-se, sem justficativa, 0 fato de que 0 poder sempre implica a questio da hegemonin. Todo o saciocinio funda-se claramente em posicio ideolégica, afirmando, contra toda evidéneia, que no estado liberal todos tém, ou pelo menos tendem a ter, algum poder. Em outros termos, que 0 poder é, ai diftuso, disseminado em getal. Difusio, aliés, que é tomada como 0 {inico antidoto a0 mal que o poder ¢ inttinsecamente, seja ele qual for. O poder, assim, é um mal em geral, 20 qual s6 se pode contrapor sua préptia frspmentacio (diftsio). Apesar de um mal, portanto, a csitica liberal nao se poe a perspectiva de uma superacto do estado e de seu poder, recomendando, por assim dizes, difndi-lo contratualmente, © que revela, i medida que o contrato nio é efetivamente celebrado entre iguais, que a ideologia liberal apoia-se no universal abstiato para defender um privilégio concreto pasticulas"*, ‘De modo que os pressupostos da anilise que o sistema oferece como sua explicate de fato encaminham, pelo secusso fs generalidades®, sua justifearto ¢ perenidade, fazendo 0 mesmo com selacio 20 diseusso cientfico que Ihe corresponde, Donde, ¢ medida que pretendemos ter evidenciado que 0 conceito de totalitarismo € produto dda ética liberal, fica amparada a afirmagio de que a nocio de totalitasismo € tio somente a expressio com que esta perspectiva cunha mdo aquilo que, no plano politico, contraria o axqnétipo que ela forja de seu mundo e de si ‘mesma, Frise-se, aquilo que contratia o arquétipo, nfo necessariamente sua realidade. Com esta generalizacio, que é ao mesmo tempo um reducionismo, pois limita as questdes 4 esfera politica, © uso do conceito de totalitarismo permite mistmsar e confundir Hitler com Stalin e, se no bastasse, também fendmenos do tipo Vargas ou Peron” Confuundino manifestagdes histéricas concretas, € reduzindo-as & sua expressio politica, 0 conceito de totalitarismo opera simplesmente uma sorte de tautologia ao “determinar” o fascismo, o nacional- socialismo ¢ tantos outros eventos que ele se permite englobar ¢ que de algum modo contratiam © perfil liberal. Nao mais do que isto afismar que tais fendmenos traduzem monopolizacio do poder, utiizacio da violencia e tepressio do indivicuo, Cabe mesmo dizer que, se é tautolégico 0 raciocinio em relacio aos fenémenos apontados, ele o € também, ao limite, em relacio ao poder em geisl. Com isto no estamos querendo confundic on dissolver as distintas formas de hegemonis; pelo conteisio, queremos ressalti- las, afismando que ela, 2 hegemonia, sempre esti presente a0 fendmeno do podles, 20 contsisio do que a andlise liberal pressupée. Donde, e é 0 que nos intesessa particulacmente, afismar que o fascismo é um totalitarismo na melhor das hipéteses, um ato de classificacio formal, jamais uma explicacio do fendmeno. De fato, é um maseatamento. Diziamos, poueo atvis, que a ideologia liberal apoia-se no universal abstrato pata defender um privilégio concreto particular. Cabe perguntat, agora, qual 0 privilégio que ela defende ao empregar 0 universal abstrato do totaitaris. ‘Ao transformar o conceito de totaltarismo na noclo-chave para a explicacio do fascismo, a primeira decorténcia € situar todo o problema na estera do politico, isto é, € descaracterizar 0 todo histérico que ele representa em beneficio de uma descticio que o encerra na esfern do poder, tomada esta de forma isolada ¢ autossuficiente. E encaminhar a explicaczo do politico pelo politico, do politico por ele proprio. E pressupé-lo, portanto, independente, anténomo da sociedade civil. Conseqnentemente, a explicacio se faz sem sefeséneia 20 “Pode-s dizes, em sume, que a idea de Uberalsmo esti historcamente tavds,¢ isto de modo inehudivel, com a posse da propsiedade. Os Sine aos quus sezve slo sempze o fins dos homens que se encontuam nesta porsio. Fora deste czculo exteto, 0 individvo por cujor diceitos velow to zelosamente no pasta de uira abstaclo, a quem os preteadidos bereficios devta dovtana ‘nonca puderam, de fto, ser plenimente confers. E porque seus propOsitos foram modelados pelos possuidores de propsiedade, ‘a mazgem entze seus ambicionos fins e sua vexdadeixaeFcica prisca tem sido muito grande". 18, p. 17 194). / éporsivel eoaftadicos haga todas ae dfereneas hatéacs®foonmslanga le hunnasanioae” Kael MARN, Snneodue ‘io Géataale # la Catque de !Eeanomie Politique” Ine Ostorir Plead, Pais, 1972, pp. 259 ¢ 40 20 Evidentemente filamos aqui do sentido e do uso predominantes do conceito de totaitaismo, Nio desejamos dilvir mances, nem deixar de seconliecer queso, em certo cass, introduridas detecminadas diferenga de aceprlo, de tl modo que se acaba por falar de um tottarsme aazifascstae de um totatessmo comunista ou bolchevique Todava, estas dstingGes fo proftndamen te sparentadas, tumbém nestes casos a eonstrusio do conceito obedece besicamente go esquera que estamos apresentindo. Gi (Gregorio R de YURRE, Tesaitarioo Eola, Aguiar, Madsi, 1962, p. XJ L. TALMON, Lec Oren ela Demecraca Tears, Aguilas Mésico, 1986, pp. 648 271;L. 5 SCHAPIRO, on st, p. 7; mencionemos ainds Kad A WITTFOGEL (Depetime One, Ed. Guadarrama, Madi, 1956) que, ocupando-se da scedai hirdute, tata tmbém do comunismo, mas nto inluio nezifescismo 49 empregar o conceit de totalitarismo. Nio dei, todavia, de velar ass fontesinspiradoras ao idenifcar 2 nocio com a idea de “esesamicio geral cesta” (9 28, 9 pastateseé do ongina), emasneeando tambérn 20 longo da abes (especialmente Capitalos 4¢ 5) as caractexsticas do tratanamo 20 esta daquelas que encontamos em Neumana, Pura indicus o que estamos sefeaindo quat ‘do mencionamos Vargas « Peson, bastam as seguintes palavtas: “Exise, porim, ovtea focma de extemismo da exquerda que, ta ‘como o extzemsmo da dis, €ferquentementecatsicado 2ob a epigrfe de fascismo. Esra form, o peroninma que se encontza samplamente representado nos mais pobres pues subdesenvolvidos /../” Seymoue Mastin LIPSET. O Honan Poltv, Zabat, RO de Jato, 196°, pp 138.9 Jest Chasin modo de producio em que se manifesta; com despuez0 pela histosicidade do fendmeno; sem preocupacio de investigar as relacdes infia-supra-estruturais concretas em que emerge. Em sintese, usar 0 conceito de totalitarismo, a gualidace de instrumento expliative, & “explicax” manifestagdes pasticulaes determinadas por tracos superesteutursis genéricos. E “explicar” o pasticular concseto pelo univessal abstrato. E pérse na perspectiva epistemolégica liberal. Nao podemos aqui, reconhecendo o claro caviter condenatério com que a critica liberal envolve toda sua anilise do nazifascismo, falar também, parafraseando G. Luics, em “epistemologia de dissita e ética de esquesda”®? ‘A outa consequéncia do emprego da nocio de totalitasismo, como jé fiisamos, é identificar fenémenos distintos por aparéncias similares. Se atticulamos, portanto, as duas consequéncias do emprego do conceito de totalitarismo, obtemos que a andlise que o utiliza, decisivamente, limita-se, em tihima instincia, a ser um discusso em geral sobre o politico em abstrato, De modo que o privilégio confetido 20 politico acaba por se mostrar de fato sua dissolucio, e a universalidade pretendida, o instrumento dessa opesacio. Decorrentemente, € facil perceber as vantagens ideolégicas que a nogio de totaitarismo proporciona paca o sistema que 0 engendra. Desvinculando os fenémenos nazifascistas, isto 4, os “fendmenos politicos” das estrnturas econdmicas, enseja-se a separacio ente capitalismo e nazifascismo, a0 mesmo tempo em que se busca reforcar a pretendida identicade entre capitalismo e liberalismo, além de estabelecer que 0s ‘regimes de terror” sio exatamente os que negam o liberalism, isto é o capitalismo™, Todavia, a questio nio se esgota nas swmragens ideologicas. Julgamos que 2 nogio de totalitarismo nao é somente um instrumento ideolégico, mas também o limite texico da perspectiva liberal pasa a andlise de eventos do tipo nazifascista, Com tal conceito € possivel omitir 0 vinculo causal entre capitalismo e fascismo, e isto para o sistema € vital que seja ceconhecido, Do contaitio, fica rompido exatamente o seu findamento raciona/, e decoscentemente seu caxiter de fim da histésia:capital-liberalismo, forma suprema a que chega a evolucio da sociedade e do poder de estado®, Forma que dai para frente s6 admite mudancas no sentido de aperfeicoamentos das componentes que a consubstanciam, isto é,alteragdes que nfo firam sua esséncin, que se trata tho somente de ir progvessivamente sacionalizando todas as 4ueas ¢ setores do sistema, de ic incorporando, 4 escala mundial, tudo que ainda se encontsa em gran inferios. Entendendo, entio, que 2 partir dela toda mudanea positiva s6 possa sex aorimoramento (e qualquer outta, por negar o sistema, é necessariamente negativa), tudo se resume, pois, a graus de racionalizagio, a semodelacoes inteassistémicas, em uma palavsa, a vitduias técnicas. Eis, entio, que progresso se reduz a proguesso técnico, ¢ a 1a2%o liberal se mostra exatamente como razi0 limitada, como 12230 téenica, donde é proprio que 0 positivismo seja sna epistemologia natural Se nfo se encontra um método que rompa com o vinculo causal entre o modo de producio capitalista e 05 fenémenos nazifascistas, como entio manter a «gpa libera Se o universal abstrato possibilita tal maptura, 0 coneeito de totalitatismo reforca-a, pois é na condicyo de sua contritia que aquela se reafirma contemporaneamente, niio importando que, como razio técnica, a mzio liberal se mostre como uma razio limitada; debilidade talvez menor e mais suti,jé que o progresso técnico se mostra como modo de ser do conservadouismo busgués. Ir além do conceito de totalitarismo 6, em tiltima anilise, reconhecer a falsidade dos conceitos que fundamentam a teoria propria ao sistema. Se, como quer a propria anilise liberal, o fenémeno totalititio é a negacio da igualdade dos homens, negar o conceito de totalitasismo nfo é refutar esta desigualdade factual, mas € seconhecé-la como prdpsia também ao sistema que geta aquela perspectiva, o que obviamente aniquila a peopsia perspectiva, o que vale dizer que ilegitima o sistema ele mesmo. ‘Aceitar os fenémenos nazifascistas como produtos capitalistas é aceitar que este sistema nega a si mesmo, portanto que nio ¢ a forma acebada da histésia, que esta prossegue, e que aquele esti posto em xeque. Donde, 20 contriio, © fenémeno fascista tem de sec concebido como uma negacio das bases mesmas daquele modo de producto. E 0 que opera a anilise liberal pelo conceito de totalitarismo. E, na medida em que 0 comunismo também é uma negagio do capitalismo, engloba-os sob um mesmo conceito; ao fazé-lo, identifica uma negacio seal com uma negacio apasente, 21 G LUKACS, Teri de Romans, Ed Presenea, Lisboa, p. 20 220 liberalism teve de tar por sua sobrevivéncia 20 longo de toda sua histbrs, coika que hoje no é menos verdadeira A ditads 1a totaling, cists e communists, tem sido, onde quer que sea, sua inimiga declradae intransigente” JS SCHAPIRO, eit, p.7. 25 “Nao se testa de simples questio de ait os mieno# totea oles. A etesencs & de quale e nio de quantidade Once 0 poser é exercido principalmente pelos tadicionais instrumentas de coacio, como na monsequiaabsoluta,a sua opesacio & govesnada por ‘estas zeges abetzatas ccalcuves, emborasciam ds vezcs executadse com atbittaidade. Q absolutisma jf comtém, postanto, oF ‘andes prncipios nsttucionais do Hberalismo moderno. A dtaduua tualiisi, por ouxo lado, éa negacio absolut desses princ- ios porque os prneipss Orgiossepressivos do io os txbunas Ou sepastigdes adminstatves,e sim a polica secrets e pastido” F NEUMANN, at p. 270 Verinotio revista on-line ~ 2. 15, Ano VILL, abs./2013, ISSN 1981-061X Sobre o conceite de totalitarismo Ficil, entio, pereeber que a nocio de totalitasismo é 0 limite tedxico da andlise liberal. Em outros termos, 4 perspectiva liberal nada mais pode dizer dos fenémenos nazifascistas além de que sejam governos de poder ‘monopolizado em geral, sob pena de romper com seus préptios ptessupostos, consubstancindos na nocio de totalitassmo, que é pensada sob a vigéncia de uma selacio excludente entre forca e sazio, Portanto, o limite da cxitia liberal a0s fendmenos fascistas é o proprio sistema que os ger" A insuficéncia total da andlise liberal do fascismo tem certamente neste limite sua explicagio, ¢ se ela pode se dar por satisieita com sua “explicagio” no plano ideolSgico, em contrapartida, no plano cientifico ela sé reforca a tese do vinculo causal entre o sistema que a produz e que também é o sesponsivel genético pelos fenémenos fascistas Decorre certamente daf a tendéncia ao formalismo no tratamento de tais problemas, ¢ no apenas deles, no terreno da teoria politica, De qualquer modo, por outzo lado, pazece legitimo suspeitar que sesida também ai a azo pela qual os fendmenos fascistas tenham sido, durante longo tempo, deixados de lado como objeto de andlise cientifiea, e que a volumosa bibliografia a eles dedicada tenha predominantemente se restringido a fornecer dados ¢ depoimentos, em Ingar de explicagdes, e que s6 mais recentemente, quando foram “igualizados” a outras formas info liberais de poder, é que passaram a metecer maior atencio. Referimos acima uma tendéncia 20 formalismo, Sem nos determos ai por mais de um momento, cabe registrar que 0 esquema sintetizado pela nogio de totalitarismo tende para, mas nao efetiva, um modelo formal, isto é “vazio na medida em que se refere a um objeto qualquer”. Como obviamente nfo se refere a objetos quaisquer, mas a cestos objetos politicos, configura uma nocio abstrata, isto é, um “esquema de significaces /. que no considera todas as condicdes conesetas de sua realizacio™*. Portanto, como toda nocio absteata, opera sum esvaziamento. Que esvaziamento é este, no caso particular que nos prende, e qual seu sentido epistemologico, cis a questio. Estamos significando, claro esti, sua orientagio para o cancelamento de certas significagdes. Estamos sefecindo exatamente sua maneica de privilegiar ou desconhecer dimens6es do real. Nao sendo conceito formal de tipo matematico, importa saber, pasa que se compreenda sua particular capacidade de esvaziamento, que tipo de abstragio ele & “Hoje, corentemente se considera um dado cientifico a concepcio positivista de lei natural, entendida como expressio de certas uniformidades empisicas fenoménicas, que ada dix a resteite da realidade coneretasotgposta a estas sparéwias”™ Nesta concepeto, 0 ponto de pastida da andlise é “um conceito tipico qualquer ou a descricio ‘mimaciosa da aparéncia para se chegar a uma invariancia”™. O te1teno metodologico do conceito de totalitarismo ¢ exatamente este E compete percebes, no caso especifico do conceito de que tatamos, que ele é 20 mesmo tempo ‘once tips € nocko obrida por saturaste enpirica. Em onteas palavras, é uma generalizacio de apaténcias que “coincide” com um cofgulo significativo no getado pelo campo fenoménico posto pua a anilise Esta “coincidéncia” € que nos pasece altamente significativa, HA de notar que, enquanto conceito tipico, enquanto cofgulo significative, ele resume aquilo que antesiormente j4 nos esfoscamos por mostua, isto é um conceito determinado por definigdes negativas dos valores que compdem a concep¢io libetal de poder; e enquanto descticio empitica € um esquema de invariincia resultante esatamente da aglutinacio dos tragos fenoménicos que ilustsam © primeizo, © que evidentemente ao é uma coincidéncia, mas uma telagio de suboudinagao. Dada 2 infinitude de dados empiricos, de apaséneias que os fendmenos fascistas oferecem 20 observador, vesta claro que a captagio efetnada pelo conceito de totalitatismo € desde o inicio otientada, © conceito de totalitatismo, portanto, € uma genemlizacio de aparéncias selativas a concretos distintos, dos quais, por fouca nio empisica, foram abstvaidas, sem justificativa, determinadas caractesisticas, dentre as quais exatamente aquelas que tornasiam itcelevante a similitade fenoménica, e impossivel a confusio dos concretos, reduzindo portanto radicalmente 0 alcance da generalizacio. descobrimos nenluma novidade ao mostrar que a captagio de dados empiticos nfo é uma operacio inocente, nem esta falta ce “‘puseza” é privilépio do conceito de totalitarismo. Ao indicar a subordinacio que existe entse as duuas fontes genétieas do conceito, nio estamos simplesmente desmascarando uma operacio viciada, mas apontando a ambivaléncia do conceito. De um lado, ele é “explicacio”, doutro, molde para a captagio de dados empiticos; bifiontismo que é prépuio da ideia de modelo. 25 “Passa eoacepgio dos fendonenns, na fom de ei nara’ da sociedad, carcteina, segundo Mace tanto 9 ponto caleninante _qointa a imstacio ineuperivel do peasameata bucgués” G LUKACS, Hasna y Centinia de Claw, Gallo, Mézico, 1969, p. 193, 25].A GIANNOTTI, "Nota pasa uma Andlse Metodologica de ‘© Capita”. Ratata Brain, Sto Paul, n° 29, 1960, p. 66 26h. 27 Tsp. 61 (0 gato é nosso) 28 Ti, 66. Jest Chasin E, pois, modelo 0 conceito de totalitarismo, e nlo nocio formal, pois nlo & esquema vazio, mas areabouco de contetidos privilegiados: uma parte da aparéncia do concreto, & qual é conferida a qualidade de esséncia. ‘Suposto esquema essencial, uma invatiancia regida por leis gerais abstratas, dé a impressio de que oferece uma forma neutra de investigacio vélida para utilizagao em qualquer caso, De fato, no se trata de uma forma que se abse para a diversidade do seal, mas uma abstracio que se fecha cexatamente para esta diversidade, impondo ao concreto uma homogeneizacio que o dissolve, E uma “forma” que s6 possui elasticidade pasa conter matetiais do mesmo tipo de que ela prépuia é formada, ‘Donde, a tendéncia formalista de sua andlise ¢ expressa por um esvaziamento de contetidos, sim, mas de contetidos determinados, esatamente aqueles que negatiam, que impugnariam por completo suas pretenses analticas. Constitui realmente uma arbitratiedade de procedimento que, nfo respeitando os niveis de abstracio, imputa a uma compreensio minima um poder de determinacio méximo. Em uma palavra, é uma “forma” que se fecha 20 coneseto, impée-se a ele e, submetendo-o 4 validade da nogio de secorténcia que Ihe é intrinseca, condiciona explieacdes analégicas, ¢ ale os poros de sua trama teética para as solugdes explicativas que enfatizam fenémenos miméticos. ‘Uma linha de saciocinio dessa ordem é pressuposto para trinquilamente identificas, como “todo sigor”, integralismo com fascismo. O recurso classificatério que busca sutilizar 0 conceito pela constitni¢io de uma tipologia do totalitarismo, reconhecendo ramos principais e postetiormente subdividindo-os, de modo que, na parte que efetivamente nos interessa, se passa a falar em fascismo de diseita, de esquerda, de terveito mmndo, conservados, zevolucionscio, cusal ou de tantos ontios cunhados com expresses equivalentes ou afins™, este recurso classificatério, vepetimos, no s6 iio refuta qualquer das objecGes que apresentamos como, pelo contririo, evidencia ainda mais a pestinéncia delas. © perfilar dessa tipologia reafirma a caractetizagio das entidades histérico-sociais pela sua reducio as apacéncias politicas, tomando estas como 0 nédtulo significative essencial 20 qual é confetida a condicio de noste de um rastreamento que é realizado 4 sevelia dos modos de produicio e dos gras concretos de desenvolvimento histéxico destes. Em outras palavras, as manifestagdes concretas do que é tomado como fascismo séo captadas simplesmente como fendmenos politicos, o que confére acuiticamente a esta esfeua de sealidade autonomia de existéncia e de fancionamento, consequentemeate de explicacio. “This classficacdes subentendem que fascismo pode existix em modos de prodncio distintos, em formacbes histoticas diferentes, tendo, portanto, um carter universal absoluto, e nfo que seja produto particular a um modo de producio sob ciscunstincias especificas. O expediente classifieatéxio confunde ainda os modos de ser do fascismo (manifestagées conctetas de fascismo em distintos Ingares e tempos) com modos particulares de configuracdes de poder e de ideologia nio conformes em geral com o arquétipo da democtacia liberal. Partem, portanto, de uma “classficagio antetior” em que as manifestagdes politicas sio divididas entue liberais e antilbesais. Em suma, a utilizacio de simples on complexos esquemas de classifieacio dos fascismos confirma as catacteristicas da anilise liberal, pois as modalidades destiladas em tais classificagées no constituem mais do que a evidéncia empitica da ideia de totalitarismo, que na melhor das hipdteses seria uma determinacio abstrata das relagdes entse 0 diseito e 0 poder, mas que ¢ tomada como inteleccio plena. Essas classificacdes, por serem exatamente entendidas como classificacdes de um dado fendmeno, sio o rol de vatiacBes desse mesmo fendmeno, e nio a distincio de concretos diferentes que possuem tragos fenoménicos comuns pelos quais nio sio, todavia, passivels de determinacio, Donde, classificar ums ideologia nio é explicé-ta, pois identificar sua natuseza consesponde necessatiamente a zeferica 4 totalidade conereta em que emerge ‘Na medida em que um pais de economia subordinada nfo ¢ distinto dos paises subordinantes simplesmente fem pian, A medida que sua estentusa € seu processo histérico sio de natuseza apropsiada e decoxsente A sua condicio de suboudinado, seus fendmenos pasticulares no podem ser simplesmente igualizados aos fenémenos de aspecto semelhante que se verificam nos paises dominantes. [gualizé-los pasa efeito de anilise é supsimir a distancia ontolégica que os deve separar na investigacio para que se possa entendé-los efetivamente nos concretos 29 “Nis lngagenncoecenteo tenn fscisns? ao 26 desiona a doutsina da Isla faeces, mas taashéon a de Alesana bitlenana © 4 de todos 0s regimes de inspiagio mais ou menos comperivel Espana de Franco, Portagl de Salazar, Argentina de Peron ee 1-1 Posém, hi que far que este uso é muito disctiel /./. De algons anos para ci se emprega muito o termo ‘totaltrismo, ‘especialmente poe Casi | Fedach aos Estados Unidos © tesme € comada, ass decocte tamer de ma dieeutivel asimacao) ‘entre as “itaduaas Fascist’ eo zegiene sovidtica /../ Ainda que ss instticées dos dferentes pases ‘otatisios’sjam, em muitos aspectos, companives, no que diz respeito as idcolopias as semelhancas distam muito de scr tio manifextas. O empeego da palavza ‘totatunsme’ condur ao resultado — que tive pata alguns sea o objetivo — de ocular as hferencus que dexvam da essénca mesma do segime ¢ de suger paleos nem sempre convincentes” Jean TOUCHARD, His dla Leas Pola, Tecnos, Mads, 1970, 608. Cf também nots 20 deste testo Verinotio revista on-line ~ 2. 15, Ano VILL, abs./2013, ISSN 1981-061X Sobre o conceito de totaltarismo que Ihes correspondem. Praticar a igualizagio é quedas-se numa abordagem que sempre se esgota nalguma ‘ariante positivista;é inserir o objeto, em lugar de explicé-lo, numa mera e pseudoclassificagio, fazendo com que perea seu contetido especifico; é permitir que a anilise se estiole numa meciinica da equiparagio, cujo resultado final nao ultrapassa o nivel das vagas genecalidades, tornando-se, assim, teoricamente ineficiente e praticamente desorientadora

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