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Título original: The Road Less Traveled

Autor: M. Scott Peck


Copyright © M. Scott Peck, M.D., 1978
Introdução © M. Scott Peck, M.D., 1985
Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2018
Tradução: Maria Isabel Cardoso
Revisão: Caligrama — Produção Editorial/Editorial Presença
Imagens da capa: Shutterstock
Capa: Vera Espinha/Editorial Presença
Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.
9.a edição, Lisboa, maio, 2018
Depósito legal n.o 440 327/18

Reservados todos os direitos


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Índice

Introdução à edição comemorativa do 25.o aniversário 11


Prefácio 15

Secção I — Disciplina 17
Problemas e dor 19
Adiamento da gratificação 22
Os pecados do pai 24
Resolução dos problemas e tempo 28
Responsabilidade 33
Neuroses e perturbações de personalidade 36
Fuga da liberdade 40
Dedicação à realidade 44
Transferência: o mapa ultrapassado 45
Abertura ao desafio 50
Omissão da verdade 56
Manutenção do equilíbrio 61
O lado salutar da depressão 65
Renúncia e renascimento 68

Secção II — Amor 75
O amor definido 77
Apaixonar-Se 79
O mito do amor romântico 85
Mais sobre as fronteiras do ego 88
Dependência 92
Catexia sem amor 99
«Autossacrifício» 104
O amor não é um sentimento 108
O trabalho de atenção 111
O risco da perda 121
O risco da independência 124
O risco do compromisso 129
O risco da confrontação 138
O amor é disciplinado 142
O amor é separação 147
Amor e psicoterapia 154
O mistério do amor 164

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Secção III — Desenvolvimento e religião 167
Visões do mundo e religião 169
A religião da ciência 175
O caso de Kathy 179
O caso de Marcia 188
O caso de Theodore 190
O bebé e a água do banho 200
Visão científica em túnel 204

Secção IV — Graça 211


O milagre da saúde 213
O milagre do subconsciente 219
O milagre do serendipismo 228
A definição de graça 234
O milagre da evolução 237
O alfa e o ómega 241
A entropia e o pecado original 244
O problema do mal 249
A evolução da consciência 251
A natureza do poder 255
A graça e a doença mental: o mito de Orestes 259
A resistência à graça 266
O acolhimento da graça 274

Posfácio 280
Agradecimentos 284

10 O caminho menos percorrido

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Introdução à edição comemorativa do 25.o aniversário

Amanhã, com um bom senso magistral, um


desconhecido irá dizer exatamente aquilo que nós
pensámos e sentimos durante todo este tempo.

ralph waldo emerson, «A Confiança em Si»

A resposta mais comum nas cartas recebidas pelos leitores quanto


a’O Caminho Menos Percorrido foi de gratidão pela minha coragem;
não por dizer nada de novo, mas por escrever o tipo de coisas que os
leitores pensavam e sentiam já há muito tempo, mas das quais tinham
receio de falar.
Não tenho a certeza no que se referem à coragem. Um certo tipo de
esquecimento natural poderá ser um termo mais correto. Durante os
primeiros dias do livro, um paciente meu estava numa festa quando
ouviu uma conversa entre a minha mãe e outra mulher idosa. Refe‑
rindo-se ao livro, a outra mulher disse, «Deve estar muito orgulhosa
do seu filho, Scott.» Ao qual a minha mãe respondeu, da maneira
por vezes mordaz dos mais velhos, «Orgulhosa? Não, não particular‑
mente. Não teve nada a ver comigo. É a mente dele, sabe. É um dom.»
Acho que a minha mãe estava errada ao dizer que não tivera nada a ver
com aquilo, mas acho que estava correta ao dizer que a minha autoria
d’O Caminho foi o resultado de um dom — a muitos níveis diferentes.
Uma parte desse dom veio de muito antes. Lily, a minha mulher,
e eu tornámo-nos amigos de um homem mais novo chamado Tom,
que cresceu na mesma colónia de férias de verão que eu. Durante
esses verões, eu tinha brincado com os seus irmãos mais velhos, e a
sua mãe tinha-me conhecido quando eu era ainda criança. Uma noite,
alguns anos antes d’O Caminho ter sido publicado, o Tom veio jantar

Introdução à edição comemorativa do 25. o aniversário 11

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connosco. Na altura, estava em casa da sua mãe, e na noite anterior
ele dissera-lhe, «Mãe, amanhã à noite vou jantar com o Scott Peck.
Lembras-te dele?»
«Oh, sim», respondeu ela, «era aquele miúdo que estava sempre
a falar do tipo de coisas, de que as pessoas nunca devem falar».
Por isso, podem ver que parte desse dom é muito antigo. E também
podem compreender que eu era uma espécie de «desconhecido» den‑
tro da cultura prevalecente da minha juventude.

Como eu era um autor desconhecido, O Caminho foi publicado sem


grandes euforias. O seu espantoso sucesso comercial foi um fenó‑
meno muito gradual. Não apareceu nas listas dos bestsellers nacionais.
Isso só viria a acontecer em 1978, cinco anos após a sua publicação —
algo pelo qual estou extremamente grato. Se tivesse sido um sucesso
súbito, duvido muito que eu tivesse sido suficientemente maduro
para aguentar uma fama repetina. De qualquer maneira, foi um êxito
inesperado e, aquilo que no ramo se chama um livro «boca a boca.»
De início, e lentamente, o seu conhecimento espalhou-se «boca a
boca» através de diferentes maneiras. Uma delas foram os Alcoólicos
Anónimos. Na verdade, a primeira carta de um fã que recebi começava,
«Caro Dr. Peck, o senhor deve ser alcoólico!» O seu autor achou difícil
imaginar que eu pudesse ter escrito tal livro, sem ter sido um membro
de longa duração dos AA, tornado humilde pelo alcolismo.
Se O Caminho tivesse sido publicado vinte anos antes, duvido que
até tivesse tido algum sucesso. Na realidade, os Alcoólicos Anónimos
só começaram realmente a meio da década de 1950 (não que a maior
parte dos leitores do livro fossem alcoólicos). Ainda mais importante,
o mesmo se pode dizer da prática da psicoterapia. O resultado foi que,
por volta de 1978, quando O Caminho foi originalmente publicado,
um grande número de homens e mulheres nos Estados Unidos eram
tanto psicológica como espiritualmente sofisticados, e tinham come‑
çado a contemplar profundamente «todo o tipo de coisas de que as
pessoas não devem falar.» Quase estavam literalmente à espera que
alguém dissesse essas coisas em público.
Assim, a popularidade d’O Caminho cresceu rapidamente, e tam‑
bém foi assim que a sua popularidade continuou. Muito perto do
fim da minha carreira como conferencista, eu dizia ao meu público,

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«Vocês não são uma amostra representativa da América. No entanto,
há coisas incríveis que vocês têm em comum. Uma é o espantoso
número de vós que durante o curso das vossas vidas se sujeitou — ou
ainda se sujeita — à psicoterapia significativa em programas de “Doze
Passos” ou às mãos de terapeutas tradicional e academicamente trei‑
nados. Duvido que sintam que estou a violar a vossa confidencialidade
quando peço que todos vós aqui presentes que receberam ou estão a
receber tal terapia levantem a mão».
Noventa e cinco por cento do meu público levantava as mãos.
«Agora, olhem à vossa volta», dizia-lhes.
«Isto tem implicações maiores», continuava eu. «Uma delas é que
vocês são um grupo de pessoas que começaram a transcender a cul‑
tura tradicional.» Ao transcender a cultura tradicional eu quis dizer,
entre outras coisas, que eles eram pessoas que há muito tinham
começado a pensar no tipo de coisas de que as pessoas não devem
falar. E concordavam quando eu elaborava aquilo que queria dizer
com «transcender a cultura tradicional», e o significado extraordinário
deste fenómeno.
Alguns chamaram-me um profeta. Posso aceitar um título aparente‑
mente grandioso só porque porque muitos apontaram que um profeta
não é alguém que consegue ver o futuro, apenas alguém que conse‑
gue ler os sinais dos tempos. O Caminho foi um sucesso, sobretudo,
porque foi um livro do seu tempo; o seu público fez dele um sucesso.

A minha fantasia ingénua quando O Caminho foi originalmente


publicado há vinte e cinco anos, foi que o livro seria alvo de recen‑
sões críticas nos jornais por todo o país. A realidade é que, por pura
sorte, recebeu apenas uma recensão... mas que recensão! No que se
refere a uma significativa parte do seu sucesso tenho de dar o devido
crédito a Phyllis Theroux. Na altura, Phyllie, uma excelente autora por
mérito próprio, também era crítica literária e descobriu por acaso
um exemplar de lançamento entre a pilha de livros no gabinete do
editor literário do The Washington Post. Depois de ler o índice, levou
o livro com ela, regressando dois dias depois exigindo que lhe fosse
permitido revê-lo. Quase relutante o editor concordou, e a partir daí,
Phyllie dedicou-se, nas suas próprias palavras, «a escrever deliberada‑
mente uma crítica que tornasse o livro num bestseller.» E assim o fez.

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­Passada uma semana da sua recensão crítica, O Caminho encontrava‑
-se na lista de bestsellers de Washington, D.C., anos antes de chegar a
qualquer lista nacional. Contudo, foi o suficiente para impulsio‑
nar o livro.
Estou grato à Phyllis por outro motivo. Enquanto o livro crescia
em popularidade, querendo garantir que eu teria a humildade de
manter os meus pés firmemente em terra, ela disse-me, «Não é o teu
livro, sabes».
Compreendi de imediato o que é que ela queria dizer. Nenhum de
nós quis de maneira alguma dizer que O Caminho era a palavra literal
de Deus, ou material «canalizado» de qualquer outro modo. Eu escrevi‑
-o, e há um certo número de pontos no livro onde gostaria de ter
escolhido palavras ou frases melhores. Não é perfeito, e sou totalmente
responsável pelas suas falhas. Apesar disso, talvez porque fosse neces‑
sário, apesar das suas falhas, não tenho qualquer dúvida que enquanto
eu escrevia o livro na solidão do meu pequeno escritório amontoado
eu tive ajuda. Não posso explicar essa ajuda, mas essa experiência
é intensamente única. Na verdade, tal ajuda é o tema derradeiro do
próprio livro.

14 O caminho menos percorrido

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Prefácio

As ideias aqui apresentadas emergem, na sua maior parte, do meu


contacto profissional diário com os doentes que lutam por evitar
ou alcançar níveis de maturidade cada vez mais elevados. Em conse‑
quência, este livro contém partes de muitos casos verdadeiros. A confi­
dencialidade é essencial na prática da Psiquiatria, pelo que, em todos
os casos, foram alterados os nomes e outros pormenores para preser‑
var o anonimato dos meus doentes, sem distorção da realidade essen‑
cial da nossa experiência comum.
Pode, no entanto, ocorrer alguma distorção em virtude da forma
resumida como os casos são apresentados. A psicoterapia raramente é
um processo breve, mas como tive necessariamente de focar os pontos
mais relevantes de cada caso, o leitor pode ficar com a impressão de
que o processo é de drama e esclarecimento. O drama é real e o escla‑
recimento pode eventualmente ser alcançado, mas deve considerar-se
que, para facilitar a leitura, os relatos dos longos períodos de confu‑
são e de frustração, inerentes à maior parte da terapia, foram omitidos
nestas descrições.
Gostaria também de pedir desculpa pelas constantes referências
a Deus na imagem masculina tradicional, mas fi-lo a bem da simpli­
cidade e não devido a qualquer conceito rígido de género.
Como psiquiatra, penso ser importante referir logo de início dois
pressupostos em que este livro assenta. Um é que não faço distinção
entre a mente e o espírito nem, portanto, entre o processo de conse‑
cução de desenvolvimento espiritual e o de consecução de desenvol‑
vimento mental. É o mesmo e um só.
O outro pressuposto é que este processo constitui uma tarefa com‑
plexa, árdua e para toda a vida. A psicoterapia, para contribuir subs‑
tancialmente para o processo de desenvolvimento mental e ­espiritual,

Prefácio 15

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não é um procedimento rápido nem simples. Não pertenço a nenhuma
escola de psiquiatria ou de psicoterapia em particular; não sou sim‑
plesmente um freudiano, um junguiano, um adleriano, um behavio‑
rista ou um gestaltista. Não acredito que existam respostas únicas
e fáceis. Penso que há formas curtas de psicoterapia que podem ser
úteis e não devem ser menosprezadas, mas a ajuda que proporcionam
é inevitavelmente superficial.
A jornada do desenvolvimento espiritual é longa. Quero agradecer
aos meus doentes, que me deram o privilégio de os acompanhar na
maior parte da sua jornada. Porque a sua jornada tem sido também
a minha e muito do que é aqui apresentado foi aprendido em conjunto.
Quero também agradecer a muitos dos meus professores e colegas.
Entre eles, principalmente, à minha mulher, Lily. Tem-me dado tanto
que quase não é possível distinguir da minha a sua inteligência como
cônjuge, mãe, psicoterapeuta e pessoa.

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Problemas e dor

A vida é difícil. Esta é uma grande verdade, uma das maiores verdades1.
É uma grande verdade porque, uma vez aceite realmente esta ver‑
dade, transcendemo-la. Quando sabemos verdadeiramente que a vida
é difícil — quando o compreendemos e aceitamos verdadeiramente —
a vida deixa de ser difícil. Porque assim que é aceite, o facto de a vida
ser difícil deixa de ter importância.
A maior parte das pessoas não vê inteiramente esta verdade de que
a vida é difícil. Em vez disso, lamenta-se mais ou menos incessan­
temente, ruidosa ou subtilmente, da enormidade dos seus problemas,
encargos e dificuldades, como se a vida fosse fácil de um modo geral,
como se a vida devesse ser fácil. Proclamam a sua crença, ruidosa ou
subtilmente, de que as suas dificuldades representam uma espécie
única de atribulação que não deveria mas de algum modo lhes foi espe‑
cialmente dirigida, ou às suas famílias, à sua tribo, à sua classe, à sua
nação, à sua raça ou até à sua espécie, e não a outros. Eu conheço esta
lamentação porque já fiz a minha parte.
A vida é uma série de problemas. Queremos lamentar-nos ou
resolvê-los? Queremos ensinar os nossos filhos a resolvê-los?
A disciplina é o jogo de ferramenta essencial para resolver os pro‑
blemas da vida. Sem disciplina nada podemos resolver. Com apenas
alguma disciplina, resolvemos só alguns problemas. Com disciplina
total, podemos resolver todos os problemas.
O que torna a vida difícil é que o processo de confrontação e resolu‑
ção de problemas é doloroso. Os problemas, consoante a sua natureza,
evocam em nós frustração, ou desgosto, ou tristeza, ou solidão, ou culpa,
ou remorso, ou ira, ou medo, ou ansiedade, ou angústia, ou desespero.
Estes sentimentos são desconfortáveis, frequentemente muito descon‑
fortáveis, muitas vezes tão dolorosos como qualquer tipo de dor física,
por vezes igualando o tipo mais extremo de dor física. Na verdade,
é devido à dor que os acontecimentos ou conflitos geram em nós aquilo
que chamamos de problemas. E uma vez que a vida coloca uma infindável
série de problemas, é sempre difícil e plena de dor, assim como de alegria.

1
A primeira das «quatro verdades nobres» dos ensinamentos de Buda diz que «viver
é sofrer».

Problemas e dor 19

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No entanto, é neste processo de confrontação e resolução de proble‑
mas que a vida adquire significado. Os problemas são o fio de distinção
entre o sucesso e a falha. Os problemas apelam à nossa coragem e sabe‑
doria. Na verdade, criam a nossa coragem e a nossa sabedoria. É unica‑
mente devido aos problemas que crescemos mental e espiritualmente.
Quando queremos fomentar o crescimento do espírito humano, desa‑
fiamos e encorajamos a capacidade humana de resolver problemas,
tal como na escola apresentamos deliberadamente problemas para as
crianças resolverem. É através da dor de confrontar e resolver proble‑
mas que aprendemos. Como disse Benjamin Franklin, «as coisas que
magoam ensinam-nos». Esta é a razão pela qual as pessoas sábias
aprendem a não temer mas, de facto, a encarar positivamente os pro‑
blemas e até a encarar positivamente a dor dos problemas.
A maior parte de nós não é assim tão sábia. Receando a dor, quase
todos nós, em maior ou menor grau, tentamos evitar os problemas.
Procras­tinamos, esperando que desapareçam. Ignoramo-los, esque‑
cemo-los, fingimos que não existem. Chegamos a tomar drogas que
nos ajudam a ignorá-los para que, anestesiando-nos contra a dor,
possamos esquecer os problemas que causam a dor.
Tentamos rodear os problemas em vez de os encarar de frente.
­Tentamos sair deles em vez de sofrermos o seu percurso.
Esta tendência para evitar problemas e o sofrimento emocional que
lhes é inerente é a base primária de toda a doença mental humana.
Uma vez que a maior parte de nós tem esta tendência em maior ou
menor grau, a maior parte de nós está mentalmente doente em maior
ou menor grau, não dispondo de saúde mental total. Alguns de nós
irão a extremos para evitar os problemas e o sofrimento que causam,
ultrapassando tudo o que é claramente bom e aconselhável para
encontrar uma saída fácil, construindo as mais intrincadas fantasias
para viverem, por vezes com total exclusão da realidade. Nas palavras
sucintamente elegantes de Carl Jung, «a neurose é sempre um substi‑
tuto do sofrimento legítimo»2.
Mas o próprio substituto acaba por se tornar mais doloroso do
que o sofrimento legítimo que se destinava a evitar. A neurose em si

2
Collected Works of C.G. Jung, Bollingen Ser., N.° 20, 2.a ed. (Princeton, N.J.: Princeton
Univ. Press, 1973), trad. R.F.C. Hull, Vol. II, Psychology and Religion: West and East, 75.

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torna-se o maior problema. De acordo com o padrão, muitos tentarão
evitar essa dor e esse problema, construindo camada após camada de
neuroses. Felizmente, no entanto, alguns têm a coragem de enfrentar
as suas neuroses e começam — com a ajuda da psicoterapia — a
aprender a suportar o sofrimento legítimo. Em todo o caso, quando
evitamos o sofrimento legítimo que resulta do confronto com os
problemas, também evitamos o crescimento que os problemas nos
exigem. É esta a razão pela qual, nas doenças mentais crónicas, deixa‑
mos de evoluir, ficamos bloqueados. E sem se curar, o espírito humano
começa a mirrar.
Vamos, portanto, inculcar em nós próprios e nos nossos filhos os
meios para conseguir a saúde mental e espiritual. Quero com isto
dizer, ensinemos a nós próprios e aos nossos filhos a necessidade
do sofrimento e do seu valor, de enfrentar diretamente os problemas
e passar pela dor que acarretam. Afirmei que a disciplina é o jogo de
ferramentas de base de que necessitamos para resolver os pro­blemas
da vida. Tornar-se-á claro que estas ferramentas são técnicas de sofri‑
mento, meios através dos quais experimentamos a dor dos proble‑
mas de forma a analisá-los e resolvê-los com sucesso, aprendendo
e evoluindo ao mesmo tempo. Quando ensinamos a nós próprios e
aos nossos filhos a disciplina, estamos a ensinar-lhes e a nós próprios
a sofrer e também a crescer.
Que ferramentas são estas, estas técnicas de sofrimento, esta forma
construtiva de passar pela dor dos problemas a que chamo disciplina?
Há quatro: o adiamento da gratificação, a aceitação da responsabili‑
dade, a dedicação à verdade e o equilíbrio. Como é evidente, não são
ferramentas complexas cuja utilização requeira um treino aprofun‑
dado. Pelo contrário, são ferramentas simples e quase todas as crian‑
ças estão aptas a utilizá-las quando chegam aos dez anos. No entanto,
presidentes e reis muitas vezes se esquecem de as utilizar, causando a
sua própria queda. O problema não está na complexidade destas fer‑
ramentas mas na vontade de as usar. Porque são ferramentas em que
a dor é enfrentada e não evitada e, se se procura evitar o sofrimento
legítimo, evita-se a utilização destas ferramentas. Portanto, depois
de analisar cada uma destas ferramentas, examinaremos no próximo
capítulo a vontade de as utilizar, que é o amor.

Problemas e dor 21

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Adiamento da gratificação

Não há muito tempo, uma analista financeira com cerca de trinta anos
queixava-se-me, durante alguns meses, da sua tendência para pro‑
crastinar na sua função. Tínhamos analisado os seus sentimentos em
relação aos patrões e como se relacionavam com os sentimentos sobre
a autoridade em geral e especificamente com os pais. Examinámos as
suas atitudes face ao trabalho e ao sucesso e como se relacionavam
com o seu casamento, a sua identidade sexual, o seu desejo de com‑
petir com o marido e os seus receios dessa competição. No entanto,
apesar de todo este trabalho psicanalítico minucioso, ela continuava a
procrastinar na mesma medida. Finalmente, um dia, atrevemo-nos
a encarar o que era óbvio. «Gosta de bolo?», perguntei-lhe. Respondeu‑
-me que sim. «De que parte do bolo gosta mais?», continuei, «Da massa
ou da cobertura?» «Oh, da cobertura!», respondeu com entusiasmo.
«E como é que come uma fatia de bolo?», inquiri, sentindo-me o mais
pateta dos psiquiatras. «Como primeiro a cobertura, claro», respondeu
ela. Dos hábitos de comer bolo passámos para os hábitos de trabalho e,
como era de esperar, descobrimos que, diariamente, ela dedicava a pri‑
meira hora à metade mais gratificante do seu trabalho e as outras seis
horas ao restante, de que não gostava. Sugeri-lhe que, se se forçasse a
executar a parte desagradável do trabalho na primeira hora, ficaria livre
para tirar partido das restantes seis. Parecia-me, disse-lhe eu, que uma
hora de dor seguida de seis de prazer era preferível a uma hora de
­prazer seguida de seis de dor. Ela concordou e, sendo basicamente uma
pessoa dotada de força de vontade, deixou de procrastinar.
O adiamento da gratificação é um processo de programação da dor e
do prazer da vida de forma a aumentar o prazer, enfrentando e vivendo
primeiro a dor e acabando com ela. É a única forma decente de se viver.
Esta ferramenta ou processo de programação é aprendida pela maior
parte das crianças numa fase precoce da vida, por vezes até por volta
dos cinco anos. Por exemplo, ocasionalmente, uma criança de cinco
anos, ao jogar com um companheiro, sugerirá ao companheiro que seja
o primeiro a jogar para poder ter o prazer de jogar mais tarde. Aos seis
anos, as crianças poderão começar a comer o bolo primeiro e a cober‑
tura depois. Em todo o percurso escolar primário, esta capacidade pre‑
coce de adiar a gratificação é exercitada diariamente, p
­ articularmente

22 O caminho menos percorrido

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através dos trabalhos de casa. Por volta dos doze anos, as crianças já
conseguem, ocasionalmente e sem ser por ordem dos pais, sentar-se
e fazer os trabalhos de casa antes de verem televisão. Pelos quinze
ou dezasseis anos, este é o comportamento esperado do adolescente
e considerado normal.
Torna-se evidente para os educadores que, nesta idade, um número
substancial de adolescentes fica aquém desta norma. Enquanto
­muitos detêm uma capacidade bem desenvolvida de adiamento da
gratificação, alguns, na casa dos quinze ou dezasseis anos, pare‑
cem quase não ter desenvolvido essa capacidade; de facto, alguns
pare­cem nem a ter de todo. Estes são os estudantes problemáticos.
Apesar de possuírem uma inteligência média ou mais elevada, têm
notas baixas simplesmente porque não se esforçam. Faltam às aulas
ou mesmo à escola por capricho momentâneo. São impulsivos e a sua
impulsividade reflete-se também na sua vida social. Envolvem-se fre‑
quentemente em lutas, nas drogas, e começam a ter problemas com a
polícia. Goza agora, paga depois, é o seu lema. Aí, entram os psicólogos
e os psicoterapeutas. Mas a maior parte das vezes, parece demasiado
tarde. Estes adolescentes reagem negativamente a qualquer tentativa
de interferência no seu estilo de vida de impulsividade e, mesmo
quando essa reação consegue ser ultrapassada com uma atitude calo‑
rosa e amigável e não de julgamento por parte do terapeuta, a sua
impulsividade é frequentemente tão forte que os impede de partici‑
par no processo de psicoterapia de uma forma significativa. Faltam às
consultas. Evitam todas as questões importantes e dolorosas. Portanto,
habitualmente estas tentativas de intervenção falham e estas crianças
abandonam a escola, prosseguindo um padrão de insucessos que os
leva frequentemente a casamentos desastrosos, a acidentes, a hospitais
psiquiátricos ou à cadeia.
Porquê isto? Por que razão a maioria desenvolve a capacidade de
adiar a gratificação, enquanto uma minoria substancial não conse‑
gue, muitas vezes irrecuperavelmente, desenvolver essa capacidade?
A resposta não é absoluta nem cientificamente conhecida. O papel dos
fatores genéticos não é claro. As variáveis não são suficientemente con‑
troláveis para servirem de prova científica. Mas a maior parte dos sinais
aponta claramente para a qualidade do acompanhamento parental
como determinante.

Adiamento da gratificação 23

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Os pecados do pai

Não é que em casa destas crianças autoindisciplinadas não exista qual‑


quer espécie de disciplina parental. Na maioria dos casos, estas crianças
são frequente e severamente punidas durante a infância — recebem
bofetadas, murros, pontapés, pancada e chicotadas dos pais, até por
infrações menores. Mas esta disciplina não tem signi­ficado. Porque é
uma disciplina indisciplinada.
Uma das razões por que não tem significado é que os próprios pais
são autoindisciplinados e servem, portanto, de modelos de indisci‑
plina para os filhos. São os pais «Faz como eu digo, não faças como
eu faço». Provavelmente, embebedam-se frequentemente na presença
dos filhos. Discutem em frente às crianças sem comedimento, digni‑
dade ou racionalidade. São desleixados. Fazem promessas que não
cumprem. As suas próprias vidas estão óbvia e frequentemente em
desordem e desarranjo e as suas tentativas de ordenar as vidas dos
filhos são por eles vistas como sem sentido. Se o pai espanca a mãe
regularmente, que sentido faz para um rapaz a mãe bater-lhe porque
ele bateu na irmã? Faz sentido quando lhe dizem que tem de aprender
a controlar-se? Se não temos o benefício da comparação enquanto
pequenos, os nossos pais são semelhantes a deuses aos nossos olhos.
Quando os pais fazem as coisas de determinada maneira, para a
criança essa é a maneira de as fazer, a maneira como devem ser feitas.
Se a criança vê os pais comportarem-se no dia a dia com autodisci‑
plina, comedimento, dignidade e capacidade de ordenar as suas vidas,
sentirá nas mais íntimas fibras do seu ser que essa é a maneira de
viver. Se a criança vê os pais viverem o dia a dia sem autodomínio ou
autodisciplina, virá a acreditar no mais íntimo do seu ser que essa é a
maneira de viver.
Ainda mais importante do que os modelos é o amor. Porque mesmo
em lares caóticos e desordenados, o amor está por vezes presente,
e desses lares podem resultar crianças autodisciplinadas. E, não poucas
vezes, os pais com profissões liberais — médicos, advogados, mulheres
dirigentes de associações e filantropos — que levam vidas rigidamente
ordenadas e decorosas, mas onde falta o amor, trazem ao mundo
crianças que são tão indisciplinadas, destrutivas e desorganizadas
como uma criança de um lar pobre e caótico.

24 O caminho menos percorrido

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No limite, o amor é tudo. O mistério do amor será objeto de exame
mais adiante neste trabalho. No entanto, por uma questão de coerên‑
cia, poderá ser útil fazer-lhe uma referência breve, ainda que limitada,
bem como à sua relação com a disciplina, neste ponto.
Quando amamos alguma coisa, ela tem valor para nós, e quando
algo tem valor para nós gostamos de passar tempo a tê-lo connosco,
a apreciá-lo e a tratá-lo. Observe-se um adolescente apaixonado
pelo seu carro e repare-se no tempo que ele gasta a admirá-lo, poli‑
-lo, repará-lo e afiná-lo. Ou uma pessoa mais velha com um roseiral
amado e o tempo passado a podar, a adubar, a fertilizar e a estudá-lo.
Assim é quando amamos as crianças; passamos tempo a admirá-las e
a tratar delas. Damos-lhes o nosso tempo.
A boa disciplina requer tempo. Quando não temos ou não estamos
na disposição de dar tempo aos nossos filhos, nem sequer os observa‑
mos suficientemente de perto para perceber quando a necessidade que
têm da nossa ajuda disciplinar é subtilmente expressa. Se a sua neces‑
sidade de disciplina for tão flagrante que colida com a nossa cons‑
ciência, podemos ainda ignorar essa necessidade com o argumento de
que é mais fácil fazer-lhes a vontade — «Hoje não estou com energia
para os confrontar». Ou, finalmente, se somos compelidos a agir pelo
seu mau comportamento ou pela nossa irritação, imporemos a disci‑
plina, muitas vezes brutalmente, mais pela ira do que por deliberação,
sem analisar o problema ou sequer perder tempo a considerar que
forma de disciplina é a mais adequada àquele problema em particular.
Os pais que dedicam tempo aos filhos, mesmo quando não é soli‑
citado por notório mau comportamento, apercebem-se de neces‑
sidades de disciplina subtis, a que responderão com insistência,
reprimenda, crítica construtiva ou elogio, ministrados com sensatez
e afeto. Observam como os filhos comem bolo, como estudam, quando
dizem pequenas mentiras, quando fogem dos problemas em vez de os
enfrentar. Dedicarão tempo a fazer estas pequenas correções e ajustes,
ouvindo os filhos, respondendo-lhes, apertando um pouco aqui, alar‑
gando um pouco ali, fazendo-lhes pequenas preleções, contando-lhes
histórias, dando-lhes pequenos abraços e beijos, pequenos ralhetes,
palmadinhas nas costas.
A qualidade da disciplina ministrada por pais que amam é superior
à disciplina de pais que não amam. Mas isto é apenas o princípio.

Os pecados do pai 25

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