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ISSN 2764-3298

BOLETIM MICOBIOTA
v. 3, n. 1 janeiro-março 2023

OS ZUMBIS DA VIDA
REAL E OS FUNGOS
QUE OS MANIPULAM
ISSN 2764-3298
BOLETIM MICOBIOTA
v. 3, n. 1, janeiro - março 2023

EXPEDIENTE

Sociedade Brasileira de Micologia (SBMic)


Diretoria 2022 - 2025

Presidente – Robert Weingart Barreto


Vice-presidente – Olinto Liparini Pereira
Secretário Geral – Davi Mesquita de Macedo
1º Secretário – Aristóteles Góes Neto
2º Secretário – Luis Roberto Batista
Tesoureira Geral – Marisa Vieira de Queiroz
1° Tesoureiro – Rodrigo de Almeida Paes
2º Tesoureiro – Maria Lúcia Scroferneker

Comitê Editorial e Equipe Técnica


Editor-chefe - Eduardo Guatimosim
Editor assistente - Robert Weingart Barreto
Diagramação e revisão - Mônica Calderano
Edição de vídeo Inspirando Novas Gerações - Débora Cervieri Guterres

Nota do editor
Os autores são responsáveis pela apresentação dos fatos contidos e
opiniões expressas nesta obra
Imagem da capa: Ophiocordycpes unilateralis s.l. infectando formiga
carpinteira|Foto João Araújo
Imagem da contra-capa: Estágios iniciais da infecção de Ophiocordyceps
unilateralis s.l. em formiga carpinteira|Foto João Araújo

Boletim Micobiota / Sociedade Brasileira de Micologia


– Vol. 3, n. 1 (2023) - Rio de Janeiro: SBMic, 2023 –
Trimestral. ISSN 2764-3298

1. Boletim Micobiota - Periódicos I. Brasil, Sociedade Brasileira de Micologia.


CDU 05 (579)

Autor Corporativo: Sociedade Brasileira de Micologia - SBMic


Estrada dos Três Rios 1416, Bloco 8 apto 402
Rio de Janeiro - RJ
CEP: 22.745-005
http://sbmic.org
E-mail: contato@sbmic.com
Instagram: @sociedadebrasileirademicologia

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EDITORIAL
Eis que publicamos a primeira edição de 2023.

Com ares de mudança e perspectivas de melhores tempos para a ciência no


Brasil, iniciamos o ano com um boletim para lá de especial.

Mais e mais pessoas vêm se interessando em contribuir com o Boletim e


percebendo nele, um espaço para divulgar assuntos de amplo interesse em
temas que envolvem a Micologia. Fazer o boletim nunca é tarefa fácil, mas tem
sido a cada nova edição, menos difícil – o que já é bastante coisa.

Nesta edição, trazemos na matéria da Capa um grupo de fungos


(Ophiocordyceps) que vem ganhando atenção da grande mídia em razão da série
de TV exibida na HBO Max intitulada “The Last of Us”. Fungos desse gênero são
capazes de produzir o fenômeno das formigas-zumbi, e a matéria de capa Nesta edição
apresenta um pouco do que sabemos acerca desses fungos além de imagens de
tirar o fôlego.
Com a palavra, a diretoria ........... 5
A temática também é abordada na seção Micologia Médica, onde são
exploradas aproximações e distâncias entre ficção e realidade, acerca do risco de Capa: Os zumbis da vida real e os
pandemias causadas por fungos. fungos que os manipulam ......... 6

Na Estante Micológica e na Micofagia, são apresentados os alimentos Inspirando novas gerações: Dra.
fermentados por fungos. Na primeira matéria, apresentamos um livro dedicado Clarice Loguercio Leite ......... 12
ao tema e, na segunda, uma pouco sobre o famoso molho shoyu – produzido a
partir da fermentação de grãos de soja por fungos do gênero Aspergillus. Falando nisso ..........16

A volta da seção Inspirando Novas Gerações detalha as contribuições da Dra. Estante micológica .......... 19
Clarice Loguercio Leite para a micologia. A entrevista é conduzida pelas colegas e
sócias da SBMic Dra. Maria Alice Neves e Dra. Larissa Trierveiler Pereira. Micologia Médica .......... 21

Não deixe de conferir as demais seções como Eventos, Falando nisso e o Líquen da Vez .......... 24
Líquen da vez.
Coleções micológicas ..........26

Desejamos a todos uma ótima leitura. Eventos .......... 28

Eduardo Guatimosim - Editor Chefe Beleza Sutil ou Evidente .......... 31


micobiotaboletim@gmail.com
Micofagia .......... 32

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Uma nota importante:

Para quem ainda não sabe, vale ressaltar que nosso boletim possui ISSN, e com
isso, todas as contribuições aqui publicadas, podem (e devem) ser incorporadas
ao Currículo Lattes de quem as publicou.

Fazer divulgação científica é algo tão importante quanto necessário, e tem sido
cada vez mais bem avaliado por parte das agências de pesquisa e fomento à
ciência, como a CAPES e o CNPq.

Para tal, estando logado na Plataforma Lattes do CNPq, vá em “Educação e


Popularização de C&T”, e depois em “Texto em jornal ou revista (magazine)”.

Na janela que se abrir, digite os dados relativos à sua publicação, salve e voilá,
está registrada a contribuição no seu Lattes. Simples, fácil e gratuito!

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COM A PALAVRA,
A DIRETORIA
Robert W. Barreto | Presidente da SBMic

Saudações micológicas aos nossos atuais e X CBM tem tido estão recebendo boa
futuros associados! acolhida. Primeiro, comemoramos o apoio
total da Universidade Federal de Minas
Os fungos estão na berlinda! Vários livros Gerais, que hospedará o evento.
voltados à divulgação científica sobre os
cogumelos, especificamente, e sobre os Em segundo lugar, obtivemos o apoio e
fungos em geral, têm sido lançados e têm parceria do Instituto Inhotim para o
tido boa acolhida mundial. X CBM. Detalhes da parceria estão sendo Em reunião ordinária realizada em
discutidos, mas, provavelmente incluirá fevereiro, a Diretoria decidiu manter os
A série televisiva “The Last of Us” – uma série atividades (eventos-satélite) nas áreas e valores da anuidade de todas as três
fantasiosa micocatastrófica, em que o vilão dependência do parque. categorias conforme o ano passado
ficcional é um bizarro “Cordyceps” – tem sido (Estudantes de Graduação: R$ 70/
um sucesso mundial com milhões de Houve, também, uma acolhida favorável Estudantes de Pós-Graduação: R$ 120 /
acessos. O momento é propício para para o convite feito para a Reserva Profissionais: R$ 250).
estimular novas vocações micológicas e criar Particular do Patrimônio Natural
pontes entre a SBMic e o público brasileiro. Santuário do Caraça, de uma parceria Serão concedidos descontos na inscrição
visando a realização do X CBM. do X Congresso Brasileiro de Micologia a
Antes, no entanto, temos que conquistar todos os sócios e sócias que pagarem a
como associados nossos próprios O congresso é daqui a um ano, mas o anuidade até o dia 31 de agosto de 2023.
colegas de vocação e profissão. O tempo passa rápido. Vamos precisar
número de pesquisadores e professores muito do apoio de nossos colegas para o Para consultar sua situação, acesse aqui
dedicados ao estudo dos fungos que não sucesso do evento. Coloquem o X CBM e digite seu e-mail de cadastro.
está cadastrado na SBMic é muito em suas agendas. Preparem suas Caso sua anuidade esteja paga, será
grande. Apenas uma minoria está em dia contribuições científicas, associem-se à possível baixar o comprovante de
com as anuidades. Temos que tratar isso SBMic, divulguem a Sociedade e seu quitação. Caso a anuidade esteja em
como um desafio coletivo de nossa congresso! Estamos otimistas e atraso, você será direcionado à página
comunidade micológica. “sonhando alto”. para pagamento.

A SBMic tem que ser entendida como a A fim de garantir a participação de toda Faça o pagamento da anuidade o quanto
casa e o fórum dos que escolheram os nossa comunidade, bem como, consolidar antes, pois pode haver atrasos de até 7
fungos como assunto preferido. Somos um evento à altura da SBMic, já foram dias entre a confirmação do pagamento e
muitos mas continuamos dispersos. Não estabelecidas as taxas de inscrição do disponibilização do comprovante de
precisa e nem deve ser assim! Congresso, sendo que o primeiro lote se quitação. Não deixe para a última hora.
encerra em 31 de agosto deste ano. A boa
Nosso congresso serve de motivação extra notícia é que sócios da SBMic têm
para atrairmos os colegas dispersos e desconto significativo na taxa de inscrição Robert W. Barreto é professor da
divulgar a Micologia e nossa própria do evento. Universidade Federal de Viçosa (UFV)
produção. e Presidente da SBMic
Mas ATENÇÃO! rbarreto@ufv.br
Estamos trabalhando intensamente para Para que o desconto seja garantido, é
organizar o X Congresso Brasileiro de necessário que os sócios e sócias estejam Eduardo Guatimosim é professor da
Micologia. Vamos aproveitar os “ventos com sua anuidade em dia. As anuidades, Universidade Federal do Rio Grande
favoráveis”! A página do congresso já está como o próprio nome diz, devem ser (FURG) e Editor Chefe do Boletim
disponível. pagas todos os anos, assim, quem pagou a Micobiota
anuidade em dezembro de 2022 deve e.guatimosim@furg.br
Algumas ideias que a organização do pagar novamente agora, em 2023.

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CAPA
Os zumbis da vida real
e os fungos que os manipulam

Ophiocordyceps humbertii infectando uma vespa próximo a um fungo torrubielóide


desconhecido branco (com peritécios alaranjados) | Foto: João Araújo

Micologia e horror cinematográfico se distópico em que fungos, artrópodes hospedeiros para torná-los
encontraram recentemente na forma denominados na série como zumbis da vida real, foi fonte de
de um jogo eletrônico de “Cordyceps”, deixaram de infectar e inspiração para os autores da série e
ação/aventura e uma série de TV manipular formigas para infectar e tem sido uma fonte de fascínio e até
derivada, ambos sob o nome The Last zumbificar humanos. mesmo alguma preocupação
of Us. (injustificável) do grande público.
A intrigante biologia de alguns
Tanto a série quanto o game que a “Cordyceps”, que têm a capacidade de Fungos entomopatogênicos, aqueles
antecede se passam em um cenário manipular o comportamento dos que infectam insetos, têm intrigado

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naturalistas desde o século 19 – como
Alfred Russell Wallace, um dos
grandes nomes por trás da ideia de
evolução das espécies por seleção
natural, – desde a década de 1860.
Mas, poucos cientistas se dedicaram
ao entendimento mais profundo
desses fascinantes organismos.

Isso gerou uma persistente lacuna no


conhecimento sobre a verdadeira
identidade, diversidade e história
evolutiva desses fungos que parasitam
insetos, incluindo a habilidade (em
alguns casos), de manipular o
comportamento de seus hospedeiros,
transformando-os em "zumbis".

Formigas-zumbi:
entendendo o fenômeno

O fenômeno de “zumbificação” de
humanos é um assunto controverso e
um tanto quanto místico. Já quanto
aos insetos (mais precisamente
formigas doentes) “transformados em
zumbis” não há dúvidas, eles existem!

A manipulação comportamental por


organismos parasitas é uma das
adaptações mais complexas e
intrigantes que surgiram através da
seleção natural.

Nessa associação fungo-formiga, as


formigas infectadas são manipuladas
a abandonarem os seus ninhos,
buscarem um local elevado na
vegetação e se prenderem às folhas
por suas próprias mandíbulas, o que
vai em direção oposta ao seu
comportamento altruísta, natural de
insetos sociais.

Essa manipulação posiciona o


hospedeiro em um microclima ideal
para o fungo se desenvolver e formar
corpos de frutificação que produzirão
e dispersarão os esporos no chão da
floresta.

Cadáver de formiga infectada por Ophiocordyceps unilateralis s.l.


presa pela mandíbula no ápice de uma folha | Foto: João Araújo

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Sendo assim, as imediações desses
cadáveres se tornam verdadeiros
campos minados de esporos que
infectarão as próximas formigas
que, por acaso, se atrevam a
cruzar o território semeado pelo
fungo.

Entre ficção e realidade

Existem alguns equívocos notáveis


(possivelmente deliberados),
aspectos fictícios exagerados e
erros científicos propositais na
proposta da série de TV. A intenção,
certamente, é a de estimular o
envolvimento, imaginação e o medo
do público, o que tem sido feito
com competência.

A série tem tido grande sucesso e Nigelia aff. martiale infectando um besouro | Foto: João Araújo
alcançado um público de vários
milhões de pessoas. Em resposta à
preocupação dos telespectadores,
vários artigos já foram
apresentados em grandes meios de
comunicação como National
Geographic, CNN, Forbes Magazine
entre outros. Neles, se esclarece
que é improvável se esperar que
“Cordyceps”, ou fungos
relacionados, se tornem patógenos
de humanos. Além dessas questões
sobre a impossibilidade de sermos
infectados por esses “fungos
zumbificantes” há alguns aspectos
da biologia dos “Cordyceps” que
não são ainda devidamente
explicados nessas matérias para o
público.

Em nome da prevenção contra


uma desnecessária “micofobia” são
apresentados a seguir alguns
pontos relevantes:

Niveomyces cf. coronata infectando Ophiocordyceps unilateralis s.l.


em formiga carpinteira | Foto: João Araújo

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1) Taxonomia, histórico evolutivo e nomenclatura
dos fungos zumbificantes

Nem todos os fungos comumente


referidos como “Cordyceps” manipulam
o comportamento de seus hospedeiros.
Todas as espécies que exibem
reconhecida “capacidade de
zumbificação” pertencem todas ao
gênero Ophiocordyceps.

O primeiro equívoco é o fato de que,


cientificamente falando, não há
evidências de que espécies que
verdadeiramente pertencem ao gênero
Cordyceps possam controlar o
comportamento do hospedeiro.

“O quê?” – o leitor deve estar pensando


agora – “Fomos bombardeados por
games, programas de TV e documentários
dizendo que os fungos “Cordyceps”
podem controlar o comportamento do
hospedeiro. Fomos enganados?”

Nem tanto! Para responder a essa


pergunta, precisamos esclarecer
algumas informações adicionais sobre Filogenia circular da ordem Hypocreales (cinza). Os fungos
esses fungos. “Cordyceps” em um sentido mais amplo compreendem todas as espécies
dentro do anel externo amarelo. O gênero Cordyceps é mostrado em verde,
o gênero Ophiocordyceps em azul e as espécies “zumbificantes” em
Até 2007, a maioria dos fungos vermelho. Todas as espécies marcadas em vermelho fazem parte do gênero
filamentosos que infectam insetos e Ophiocordyceps. Essa figura não reflete todas as espécies conhecidas para
produzem um corpo de frutificação estes grupos fúngicos, mas uma representação da diversidade de fungos da
ordem Hypocreales. Os organismos ao redor da árvore refletem os principais
eram classificados no gênero Cordyceps. grupos de hospedeiros parasitados pelos grupos de fungos à sua frente.
No entanto, estudos moleculares feitos Imagem: João Araújo e Mark Belan
nas últimas décadas mostraram que
esse grupo de fungos é composto por
(Cordycipitaceae, Clavicipitaceae e vermelho no box) pertencem ao
várias linhagens que desenvolveram a
Ophiocordycipitaceae), refletindo de gênero Ophiocordyceps (marcado em
capacidade de infectar insetos de forma
forma mais apropriada a história azul). Os membros autênticos do
independente ao longo da evolução do
evolutiva do grupo (box). gênero Cordyceps (marcado em verde)
reino Fungi. Os cientistas chamam essas
não são (até que se prove o contrário)
linhagens de “grupos monofiléticos”, o
A família Cordycipitaceae inclui vários “zumbificantes”.
que significa que cada grupo
gêneros de fungos, principalmente
compartilha um ancestral comum, sendo
parasitas de insetos, incluindo os A denominação “Cordyceps” – o
“parentes autênticos” e representa um
fungos do gênero Cordyceps. A família nome usado no game e série – é a
ramo único na Árvore da Vida dos
Ophiocordycipitaceae inclui outros denominação comumente usada
Fungos Hypocreales (box ao lado).
grupos (gêneros) monofiléticos, para se referir a um coletivo de
incluindo o grupo Ophiocordyceps espécies entomopatogênicas –
Tais estudos moleculares, combinados
unilateralis, que abrange a maioria das representado pelas espécies dentro
com observações morfológicas e
espécies dos “fungos zumbificantes”. do anel amarelo no box – e não
ecológicas, forneceram dados
apenas ao gênero Cordyceps, que é
convincentes para que se reorganizasse
Assim, as espécies que têm a representado como os ramos verdes
o grande apanhado de “Cordyceps” em
capacidade de infectar e transformar os na árvore filogenética.
três famílias fúngicas distintas
hospedeiros em zumbis (marcado em

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2) Existem muitas espécies de fungos manipuladores das
"formigas-zumbi”, não apenas uma
“Cordyceps” – o fungo manipulador Os “fungos zumbificantes” são muito de formigas éinfectada por “sua
das formigas zumbi, é tratado como especializados em relação às espécies própria espécie de fungo”. Portanto, se
uma única espécie em The Last of Us que infectam. Uma espécie de extrapolarmos esse número para a
e na maioria dos artigos não- Ophiocordyceps só pode infectar uma diversidade global de formigas
científicos, já que não há menção a espécie de formiga. No entanto, com carpinteiras, que se aproxima de 1.200
múltiplas linhagens e diferentes base em extensas pesquisas em todo espécies, e aplicarmos a taxa
tipos de infecção e estratégias de o mundo, é senso comum entre os (conservadora) de 50% das espécies de
manipulação que vemos nas micologistas que atuam na área, que formigas tendo um Ophiocordyceps
infecções da vida real. existem muito mais de 35 espécies especialista que as ataca, podemos
capazes de zumbificar seus estimar um número global de 600
O gênero Ophiocordyceps, que inclui hospedeiros. O fenômeno de espécies de “fungos zumbificantes”
todas as espécies de fungos “zumbificação” deve ser muito mais ainda a serem descritas.
manipuladores das “formigas- comum e a grande maioria dos
zumbi”, é composta atualmente por “fungos zumbificantes” ainda nem foi Atualmente, podemos ver apenas a
cerca de 320 espécies descritas. descoberta e descrita. ponta do iceberg, mas os trabalhos
Dentre essas, aproximadamente 35 avançam pelo mundo e o interesse pelo
tem documentado o efeito de Os levantamentos já feitos indicam tema é grande. Além de enriquecimento
manipulação do comportamento que mais de 50% das espécies de do conhecimento sobre diversidade e
das formigas infectadas. As formigas carpinteiras são infectadas taxonomia desses fungos, espera-se
“vítimas” são, predominantemente, por uma espécie única de que novos tipos de manipulação de
espécies de Camponotus spp. (as Ophiocordyceps, na Amazônia comportamento (zumbificação) sejam
formigas carpinteiras). brasileira. Cada uma dessas espécies revelados nos próximos anos.

Cadáver de formiga zumbificada por


Ophiocordyceps unilateralis s.l. | Foto: João Araújo

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Ophiocordyceps unilateralis s.l. em formiga carpinteira | Foto: João Araújo

3) Espécies de Ophiocordyceps são encontradas em quase todo o mundo

O terceiro equívoco é que os fungos Alguns anos depois, Blake Barnes, do onde morava. Essa espécie já havia
zumbis são organismos obscuros que Missouri, encontrou outra espécie de sido descrita por mim mesmo, anos
só são encontrados em áreas fungo zumbificante não descrita. antes, de outra parte da Flórida. O
remotas ou nas profundezas das Nesse caso, o fungo manipulava as fungo tinha sido coletado crescendo
florestas tropicais. Isso não é formigas, levando-as a morrerem e a em cabeças da formiga carpinteira
verdade. fazerem o fungo esporular dentro de (Camponotus floridanus). Essa nova
toras caídas em matas próximas a coleta revelou, finalmente, que a
Além das espécies realmente sua casa. Esse tipo, anteriormente formiga infectada, em seus momentos
encontradas nas profundezas das desconhecido de manipulação, finais, morde a folha de uma palmeira,
florestas, novas espécies vêm sendo provavelmente confere proteção ao o que também é comum em espécies
encontradas e descritas a partir de fungo contra o clima frio, amazônicas.
espécimes coletados, até mesmo contrastando com o comportamento
por amadores, em todo o mundo. usual de formigas infectadas em Fungos desse grupo podem ser
regiões tropicais, onde essas mordem bastante comuns em florestas e
Dois exemplos vêm de espécies folhas no sub-bosque. jardins pelo Brasil todo! Talvez, se
descritas nos Estados Unidos: você olhar com atenção, consiga
Ophiocordyceps kimflemingiae e Após um olhar mais atento e por encontrar tais zumbis (autênticos)
Ophiocordyceps blakebarnesii. meio de análises morfológicas e pendurados em plantas no seu quintal
genéticas, confirmou-se que o fungo ou numa floresta perto de você.
Kim Fleming descobriu que seu de Blake era de fato uma nova
próprio quintal na Carolina do Sul espécie. Ambas as espécies Uma coisa é verdade: estamos
era um hotspot com centenas de receberam o nome dos autores que cercados por zumbis da vida real.
formigas-zumbi. Essa micologista as descobriram. Mas isso não é motivo para termos
amadora foi observando e medo dos fungos. Afinal, não somos
coletando amostras ano após ano, Recentemente, em Gainesville, na formigas!
possibilitando, além da descrição da Flórida, foi encontrado por mim, um
João Araújo é curador assistente
nova espécie O. kimflemingiae, um espécime de Ophiocordyceps em micologia do New York
melhor entendimento sobre sua camponoti-floridani no quintal da casa Botanical Garden
ecologia. jaraujo@nybg.org

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INSPIRANDO NOVAS GERAÇÕES

Dra. Clarice Loguercio Leite: a identidade


feminina na pesquisa micológica
Essa seção traz testemunhos informais de alguns dos
grandes ícones da micologia no Brasil. Mulheres e
homens que, com amor e dedicação genuínos pela
ciência fizeram muitas contribuições importantes para
o avanço, o ensino e a divulgação da micologia
brasileira. A cada edição, duas ou mais pessoas são
convidadas a interagir com base em uma série de
perguntas semiestruturadas, e outras tantas de livre
escolha. Todas as entrevistas são gravadas e
disponibilizadas no nosso canal no Youtube.

Nesta edição, a professora Clarice Loguercio Leite é


entrevistada por duas de suas ex-alunas, as
pesquisadoras Maria Alice Neves e Larissa Trierveiler
Pereira. Na conversa, as três relembram os caminhos
traçados por Clarice, o legado deixado pela professora Clarice Loguercio Leite é professora associada da
na Universidade Federal de Santa Catarina, tratam do Universidade Federal de Santa Catarina. Com vasta
encantamento por algumas espécies e contam experiência em taxonomia, Basidiomycetes, lignocelulolíticos
episódios curiosos vividos por ela, além de debaterem e biodiversidade, é biológa, com licenciatura em Ciências
os desafios enfrentados pelas mulheres na prática da Biológicas pelas Faculdades Unidas de Bagé (1977), mestre
micologia no Brasil. em Botânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(1984) e doutora em Ciências - Micologia pela Universidad de
O vídeo com a entrevista pode ser encontrado Buenos Aires (1990). Foto: Reprodução Youtube
acessando este link.

Maria Alice Neves é professora associada na UFSC com Larissa Trierveiler Pereira é professora voluntária e
doutorado pela City University of New York e The New pesquisadora colaboradora do Laboratório de Estudos
York Botanical Garden e mestrado em Biotecnologia pela Micológicos da UFSCar, mestre em Biologia de Fungos pela
UFSC. Tem experiência em taxonomia, atuando UFPE e doutora em Botânica pela UFRGS. Atua com ênfase
principalmente com biologia sistemática molecular e em taxonomia de macrofungos, sistemática molecular,
filogenia de macrofungos e ectomicorrizas tropicais aspectos ecológicos de macrofungos, etnomicologia,
(Basidiomycota, Agaricales sensu lato, Boletales) micofagia, cogumelos comestíveis e divulgação científica
(perfil: @micolabufsc) Foto: Maria Alice Neves (perfil: @fancnacabeca). Foto: Larissa T. Pereira

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Maria Alice - Hoje estou aqui fazendo descobri que tinha uma professora no curso em Bariloche com o micologista
mais uma entrevista para a série sul do Brasil vinculada a um curso de alemão, doutor Rolf Singer. Só que ele
"Inspirando Novas Gerações", e nossa pós-graduação - no caso meu foi furou, e nós éramos muitas pessoas! A
inspiração de hoje é a doutora Clarice mestrado - eu me inscrevi. Mas doutora Irma Gamundí de Amos nos
Loguercio Leite, que eu tenho orgulho de quando eu cheguei para a entrevista, acolheu na casa dela, e eles ficaram
chamar de minha eterna professora, e ela disse “não, eu trabalho com muito constrangidos porque não eram
convidei a Larissa Trierveiler Pereira para macromicetos degradadores de só brasileiros - eram peruanos,
fazer essa entrevista comigo. Então, madeira”. E aí começou, eu gostei! paraguaios, várias pessoas que
Clarice, muito bem-vinda! Está super Tinha a parte microscópica e tinha a queriam fazer um curso com ele. E elas
charmosa, como sempre, voltando à vida parte de campo, mas pessoalmente deram o curso, nós fizemos muitas
depois do acidente que aconteceu no eu gosto mais de laboratório, e foi a coletas em Bariloche, todo mundo.
Congresso de Micologia aqui em Floripa minha iniciação. Ao fazer o mestrado,
(risos)... lá em Porto Alegre, eu pude fazer

Clarice - Ressurgindo das cinzas qual


fênix! Para quem não sabe da história,
eu fui homenageada no Congresso de
Micologia, em Florianópolis, em 2016, e
uma amiga minha, argentina, uma
micóloga chamada Andrea Irene
Romero, que trabalha com
Ascomicetos, ficou encarregada de
fazer a homenagem. E ela é muito
emocionada! Ela fez uma palestra, mas
ela chorou muito, e o que que
aconteceu? As pessoas pensaram que
eu tinha morrido, que era uma
homenagem pós-morte. Mas o mais
engraçado de tudo foi quando eu me
levantei na frente de todo mundo!

Maria Alice - Sim, a gente estava na


plateia e ouvia as pessoas dizerem
“nossa, eu não sabia que a Clarice tinha
morrido”... Mas foi uma homenagem
absolutamente merecida, e eu acho que
com isso a gente pode fazer um gancho
de como é que a Clarice saiu de Bagé? O 1978. Curso de especialização, em trabalho de campo com o professor Buckup, UFRGS.
Clarice Loguercio Leite está à esquerda com a mão no bolso.
que em Bagé te levou a estudar fungos ? Foto: Arquivo Clarice Loguercio Leite

Clarice - Eu fiz a graduação de uma


faculdade pequena do interior do Rio
Grande do Sul, e quando eu tive a
disciplina de Tópicos, que era junto
com a Botânica, eu tive algas e fungos,
e achei muito interessante. Era muita
coisa de microscópio, e eu achei que
eu ia me dedicar a fungos
pequenininhos, microscópicos. Depois,
eu fiz um curso de especialização no
ano seguinte que eu me formei e
comecei a ler sobre micromicetos, 1993. Maria Alice Halmenschlager, Maria Alice Neves, Aristóteles Góes Neto,
sempre fungos diminutos. Quando eu Clarice Loguercio Leite, Alexandra Gerber | Foto: Clarice Loguercio Leite

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Maria Alice - Porque o doutorado tu
fizeste lá depois, e foi quando conheceste
a Andrea, não foi?

Clarice - Sim, foi. Mas antes de ter ido


para o doutorado, eu já tinha feito esse
curso, que era um curso Internacional
de Agraricales. Foi uma ótima
experiência, a gente conheceu várias
pessoas.

Maria Alice - E isso foi antes de tu vires


1994. VI Congreso Latinoamericano de Botânica, Mar del Plata. Julio Mesa (Cuba),
para UFSC? Linda Kohn (Canadá), Silvia López, Edgardo Albertó, Clarice Loguercio Leite (Brasil) e
e Daniel Cabral (Argentina). | Foto: Clarice Loguercio Leite

Clarice - Sim, e depois que eu vim para


a UFSC, eu fiquei só 3 anos. Tinha uma
fila pra gente sair pro doutorado e
havia 3 pessoas na minha frente.
Quando eu entrei, eu já comecei a
fazer os contatos, e quando chegou
o momento, eu tinha tudo pronto.
Eu tinha duas cartas de aceitação,
uma em Buenos Aires e outra em
Leon.

Larissa – Eu queria perguntar se das


excursões que faziam pelas caminhadas 1996. II Congresso Latinoamericano de Micologia, La Habana, Cuba. Maria Alice Neves,
em Floripa - você esteve bastante tempo Clarice Loguercio Leite, Alexandra Gerber, Leif Ryvarden.| Foto: Clarice Loguercio Leite

coletando em Florianópolis e região de


Santa Catarina - se tem alguma espécie sempre com um grupo de fungos que deveriam ser, principalmente as
em especial que você gostou de ter visto, não tinha muita diferença de meninas, independentes. Os
se tinha uma favorita ou alguma que coloração. Outro que eu gostava muito meninos eram mais dependentes,
encontrou uma vez e ficou feliz por ter era Ganoderma, muito interessante. eles queriam me transformar numa
encontrado? espécie de mãe deles, e eu nunca
Larissa - Essa história do Rubroporus é senti isso das meninas.
Clarice - A que eu gosto é aquela que a interessante, porque era um novo gênero
gente encontrou aí (Rubroporus que foi encontrado ali na Botânica, onde Larissa - Você fala que sempre foi muito
carneoporis). Eu me abaixei e virei o a Clarice trabalhava, e que não é feliz com as pessoas que foram te
fungo, ele parecia uma romã comum! A gente não vê um monte de procurar e teve muita sorte, mas eu acho
vermelha. Aquilo foi muito gente encontrando ele por aí ou até que você não se dá conta também – ou
emocionante, porque primeiro mesmo aqui a gente não vê! talvez se dê e é muito modesta – de que
parecia uma espécie gelatinosa, e era. quando a gente entra no laboratório,
E essa mistura de ser, por cima, secão, Clarice - Fico muito orgulhosa de ter você, pra gente, também é um modelo!
pálido e sem muita cor, que é começado uma linha e de que isso Até hoje para mim é um modelo, uma
poliporáceo, com a beleza de ser uma tenha ficado tão importante. Eu inspiração de mulher, de professora, de
Fistulina hepatica, vamos dizer. Essa foi acho que é um legado do ponto de cientista. E vai além da pesquisa!
uma espécie assim, especial. Mas eu vista acadêmico pro estado de Santa
também gostava muito quando Catarina, o que aconteceu com a Clarice - Todos os elogios que eu
encontrava Aseroe rubra, por exemplo, micologia, que é óbvio. Assim, do zero, sempre recebi dos meus alunos, eu
que agora se chama Phallus. Era e olha o que é hoje! Só de eu ter saído sempre pensava “mas a gente
fedorentíssima, mas linda, parecia uma e duas pessoas terem entrado no meu escolheu, e a gente trabalha, com
perfeição. Todas essas, Gasteromycetes, lugar, é uma vitória. Eu tive sorte de identidade!” E não é somente a
com essas características inusitadas, ser procurada por pessoas que eram identidade por causa dos fungos. Não,
eu gostava disso! E eu trabalhei do jeito que eu achava que elas pelo contrário. É sobre o que é ser

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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2005. Curso com Roy Halling na UFSC. Esq para dir de pé: Marcelo Rother, Andrea Romero, Clarice Loguercio Leite, Larissa
Trierveiler Pereira, Marisa Campos Santana, Wagner Cortez, Cláudia Groposo, Maria Alice Neves, Roy Halling, Josué Michels, Juliano
Marcon Baltazar. Agachados, esq para dir: Gilberto Coelho, Elisandro Ricardo Dreschler dos Santos| Foto: Clarice Loguercio Leite

uma mulher em um lugar que, por um aluno me disse “mas a senhora fazer, senão a gente vira um replicador
mais que seja mais livre, a gente não gosta de mim!” e eu dizia, “mas de metodologia. Por que a gente
ainda tem que lutar às vezes, muitas eu não tenho que gostar de ti, meu admira os antigos micólogos? Porque
vezes. Houve reuniões em que eu objeto de amor é a micologia!” eles não tinham microscópio, e olha
resolvi perguntar pro colega qual era o que coisas perfeitas eles fizeram! Foi
problema! Então, é esse tipo de coisa. Maria Alice – Como você vê a diferença na muito tempo investido, e eu acho que
Eu fico vendo a postura que eu tenho, educação ao longo das gerações de tem que ter esse tempo, essa vontade,
que eu tomei na minha vida, que é ser estudantes desde que começou a dar aula? essa capacidade de pensar e de fazer
enfrentadora, é ser quase "masculina" as coisas, essa dedicação. Tem que
para conseguir lidar. Até os alunos que Clarice - As pessoas que têm uma certa decantar, tem que passar um tempo
eram rebeldes, eu sempre fui para cima. característica para fazer pesquisa e para a gente amadurecer.
Eu me lembro, na época, do João André investigação continuam muito
Jarenkow dizer “um dia eles vão te parecidas. O que facilitou é que tu tens Maria Alice – Tem algum recado que para
bater”, e eu pensava “não, eles batem meios, rapidez em realizar. Tu passou inspirar as futuras gerações?
em quem abaixa a cabeça para eles”. Eu por um momento em que para a gente
tinha que ter esse enfrentamento numa pesquisar em uma bibliografia, por Clarice - As pessoas têm que pensar
sala de aula. exemplo, a gente tinha que pedir, muito, ler muito e ter muita aptidão.
escrever para o autor, esperar muito Estou falando aqui com duas mulheres
Maria Alice - Vejo que o que as pessoas tempo... Mestrado e doutorados muito versáteis, elas fazem muitas
chamam de crueldade é ser direta e ser demoravam muito tempo porque não coisas. Essa versatilidade, essa força
objetiva. Mas as pessoas se ofendem se tu se tinha acesso à bibliografia, por interior, é importante para quem faz
é séria e direta, quando essa é na verdade exemplo. Então, a tecnologia auxiliou, ciência. A gente precisa ter paciência e
a forma mais eficiente de se trabalhar, mas eu não acho que a tecnologia pensar que um dia vai dar certo, não no
especialmente na ciência. deixe pessoas que não têm sentido da esperança, mas da
interesse pela ciência mais persistência. Pensando
Clarice - Então tem uma educadora, do interessadas. Eu não vejo isso! Acho persistentemente é que vou seguir.
ponto de vista acadêmico, e você que há pessoas que conseguem usar
também se torna uma orientadora do Larissa Trierveiler Pereira é professora
esses mecanismos mais recentes e
ponto de vista civilizatório para certas da Universidade Federal de
fazer um trabalho melhor, com mais
São Carlos (UFSCar) e representante
pessoas. Eu acho que um professor é, qualidade. Mas acho que é anterior a regional da SBMic
de certa forma, em vários aspectos, isso: as pessoas que gostam de ler, Lt_pereira@yahoo.com.
um artista! Ele representa, ele tem um as pessoas que gostam de pensar,
texto que é o que ele deve essas pessoas podem fazer ciência. Maria Alice Neves é professora
saber muito bem, mas também fazer Pensar profundamente sobre certas associada na Universidade Federal
essa performance e tem que ser isso: coisas, até mesmo sobre a existência, é de Santa Catarina (UFSC) e
flertar com as pessoas, seduzir. Uma vez representante regional da SBMic
isso que faz com que a gente possa
maliceneves@gmail.com

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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FALANDO NISSO

IUCN SSC Brazil Fungal Specialist Group -


fungos no caminho da conservação da
biodiversidade brasileira
O Brasil não valoriza e não conserva Em 17 de janeiro de 2023, Jon Paul este é o primeiro focado na funga do
sua funga. Rodríguez (presidente da Comissão de Brasil e que pretende somar esforços
Sobrevivência de Espécies da IUCN) com pessoas e entidades a fim de
Parece forte dizer isso sobre os
comunicou oficialmente a criação do alcançar a proteção desses organismos.
fungos e liquens do seu território,
IUCN SSC Brazil Fungal Specialist Group
certo? Mas em termos de legislação e
políticas de inclusão deles em uma (BrazFunSG, na sigla em inglês). O Brasil é um país megadiverso e que
agenda de conservação da abriga vários ecossistemas, incluindo
biodiversidade, é isso mesmo o que O Grupo de Especialistas em Fungos do hotspots de biodiversidade mundial. A
acontece. Brasil, da Comissão de Sobrevivência rápida perda de hábitats no Brasil,
de Espécies (SSC, na sigla em inglês) da tanto em extensão quanto em
Não existe ainda uma lista vermelha IUCN é o sexto grupo internacional de qualidade, representa um dos
oficial para a funga do Brasil, bem
especialistas dedicados à conservação principais problemas para a
como, não há registro de nenhuma
de fungos junto à organização, mas conservação das espécies, tanto da
espécie ameaçada de extinção em
Planos de Ação de Conservação do
Governo Brasileiro, tanto na esfera
nacional quanto na dos estados.

Esta informação nos leva a outro


questionamento: mas existem fungos
ameaçados de extinção no Brasil? A
resposta, é simples e direta: Claro que
sim!

Várias espécies de fungos são alvo dos


mesmos problemas ambientais que
põem em risco a sobrevivência de
animais e plantas. Portanto, há
espécies ameaçadas sim, e algumas
delas inclusive já foram reconhecidas e
seu status de conservação já foi
publicado na lista vermelha global da
União Internacional para Conservação
da Natureza (IUCN, na sigla em inglês),
maior órgão internacional de proteção
à natureza.

Para conhecer mais sobre as espécies


brasileiras de fungos reconhecidas
como ameaçadas de extinção, acesse
o site do Grupo de Pesquisa
MIND.Funga/MICOLAB/UFSC.

Mesmo diante de um cenário de não Fomitiporia nubicola Alves-Silva, Bittencourt & Drechsler-Santos. Espécie descrita em
valorização e negligência legal e 2020 que é encontrada, até o momento, crescendo apenas em árvores vivas e troncos
mortos de Drimys angustifolia. Existem apenas dois registros de ocorrência de
política, as mudanças já começaram Fomitiporia nubicola, ambos localizados em Santa Catarina, sul do Brasil.
a acontecer e o futuro quanto à Fomitiporia nubicola é uma espécie ameaçada pelas ações antrópicas, sendo
considerada vulnerável pelos critérios de avaliação da IUCN | Foto: Genivaldo Alves-
conservação da funga brasileira Silva
parece ser algo promissor.

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Algumas capturas de tela de reuniões durante as etapas de organização da proposta de criação do Grupo de Especialistas em Fungos do
Brasil, da Comissão de Sobrevivência de Espécies (SSC) da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). As fotografias
mostram os membros do Grupo até o momento: 1 - Prof. Dr. Elisandro Ricardo Drechsler-Santos. 2 - Profa. Dra. Luciana da Silva Canêz. 3 -
Prof. Dr. Diogo Henrique C. Rezende. 4 - Prof. Dr. Francisco J. Simões Calaça. 5 - Prof. Dr. Nelson Menolli-Jr. 6 - Profa. Dra. Larissa Trierveiler
Pereira. 7 - Prof. Dr. Jadson Diogo P. Bezerra. 8 - Profa. Dra. Tiara Sousa Cabral. 9 - Biólogo Kelmer Martins-Cunha

funga quanto da flora e fauna. Ainda não existem os fundamentos regulamenta a proteção e
para uma política de inclusão de conservação das espécies.
Esse processo vem aumentando fungos na agenda de conservação do
significativamente, principalmente Brasil, uma vez que espécies Com isso, um país de proporções
em domínios fitogeográficos e ameaçadas recentemente publicadas continentais, dotado de grande
ecossistemas que resguardam vários na lista vermelha global, ainda não diversidade de fungos, deve buscar
endemismos fúngicos. foram reconhecidas em uma lista formas de fortalecer planos e ações
vermelha nacional ou em programas que permitam proteger suas
Felizmente, o país vem revelando de conservação e biodiversidade do espécies.
muitas novidades no processo de governo brasileiro.
reconhecimento de espécies O BrazFunSG surge neste contexto,
fúngicas, mas até o momento pouco Essa negligência pode ser explicada com a seguinte visão: “Brasil, um
se sabe sobre o estado de pela ausência de menção a esses país que valoriza e conserva os
conservação de tais espécies. organismos na legislação federal que Fungos”. O grupo, inicialmente

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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formado por oito pesquisadores de
diferentes regiões do país, e por
especialistas em diferentes grupos
de fungos, tem em sua equipe
micólogos e liquenólogos dedicados
a incluir os fungos nos diferentes
programas de sobrevivência de
espécies, na legislação ambiental,
áreas protegidas, política social e
econômica, gestão de ecossistemas,
educação e comunicação científica.

Num futuro próximo, outros


especialistas com experiência
relevante em diferentes áreas,
inclusive estrangeiros, serão
convidados a se juntarem ao grupo, a
fim de somar esforços para a
conservação da funga brasileira.

O BrazFunSG irá promover diversas Logo criada para representar o grupo que busca integrar tanto a
dimensão continental do país e a relevância da funga, como
ações, entre elas: componente essencial para o equilíbrio dos ecossistemas terrestres

1. realização de workshops oficiais da


IUCN para a avaliação do estado de
conservação de espécies e
treinamento de especialistas na Luciana da Silva Canêz é professora na Universidade Federal
aplicação dos critérios e categorias do Mato Grosso do Sul (UFMS) e sócia da SBMic
da organização; luciana.canez@ufms.br

2. difusão da importância da Diogo Henrique Costa de Rezende é coordenador do Núcleo de Especialistas


conservação dos diferentes grupos em Micologia da Sociedade Botânica do Brasil (SBB) e sócio da SBMic
de fungos que ocorrem no Brasil diogobio.dh@gmail.com
para cientistas de diversas áreas e
para o público não acadêmico; Francisco J. Simões Calaça é doutor pela Universidade
Estadual de Goiás (UEG) e sócio da SBMic
3. atualização periódica da lista de calacafjs@gmail.com
espécies que ocorrem no Brasil como
parte do Projeto Flora e Funga do Larissa Trierveiler Pereira é professora da Universidade Federal
Brasil; de São Carlos (UFSCar) e sócia da SBMic
Lt_pereira@yahoo.com.br
4. engajamento político nas esferas
municipais, estaduais e federal. Na Nelson Menolli Jr. é professor do Instituto Federal de
comunicação e difusão científica, São Paulo (IFSP) e sócio da SBMic
tanto para o público especializado menollijr@yahoo.com.br
quanto para o público em geral. O
grupo também visa realizar ações Jadson Bezerra é professor da Universidade Federal de Goiás (UFG)
nas principais mídias sociais e representante regional da SBMic
(@iucnssc_fungibrazil, e jadsonbezerra@ufg.br
@iucnfungibrazil), além do site que
está em elaboração. Tiara S. Cabral é técnica do Laboratório de Micologia da
Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e sócia da SBMic
Como estratégia para a conservação, ttiara@gmail.com
divulgação e popularização da funga
do Brasil, o BrazFunSG busca o apoio Kelmer Martins-Cunha é graduando da Universidade Federal
de toda a comunidade de de Santa Catarina (UFSC) e sócio da SBMic
micologistas e liquenologistas, bem kelmermartinscunha@gmail.com
como, de entusiastas do Reino Fungi,
para que possamos fazer do Brasil Elisandro Ricardo Drechsler-Santos é professor da Universidade Federal
um país que, de fato, valoriza e de Santa Catarina (UFSC) e representante regional da SBMic
conserva sua funga! drechslersantos@yahoo.com.br

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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ESTANTE MICOLÓGICA

Um banquete microbiano
Ao organizarmos o livro pioneiro em
língua portuguesa chamado
“Microbiologia de Alimentos
Fermentados” (Editora Blucher, 2022),
recorremos a uma divisão clássica dos
alimentos fermentados em grupos,
baseada no tipo de matéria-prima.

À exceção dos capítulos introdutórios –


sobre aspectos gerais relacionados ao
histórico de produção, bioquímica da
fermentação, culturas industriais e
benefícios à saúde relacionados ao
consumo de fermentados – os demais
capítulos tratam especificamente da
fermentação de vegetais, leite e
queijos, leguminosas, pães, bebidas
alcoólicas e não alcoólicas, dentre
outros.

Hoje, revendo o conteúdo do livro


como um todo, é notável que os
fungos exercem um papel de grande
destaque na fermentação de
praticamente todo o tipo de alimento
e/ou bebida fermentada.

Como falar da fermentação de lácteos


sem mencionar a importância dos
fungos na maturação de queijos
clássicos, como os Brie e Roquefort,
por Penicillium camemberti e Penicillium
roqueforti, respectivamente?

Em um contexto mais recente, como


tratar dos queijos artesanais de casca ,

florida, cada vez mais valorizados no


Brasil e no mundo, deixando de lado o Livro junto a alimentos fermentados: a partir de cima, em sentido horário:
cerveja, chocolate, angkak, queijo brie, sufu vermelho e koji
papel dos fungos na complexa ecologia Foto: José Guilherme Prado Martin
relacionada à sua maturação?
falar das várias espécies de leveduras Em produtos cárneos, Mucor e
Ainda pensando nos lácteos, como envolvidas na fermentação do kefir – Penicillium também merecem
poderíamos abordar a fermentação do cujo processo, se prolongado, pode destaque, além de Debaryomyces,
leite sem fazer menção ao exótico viili resultar em uma bebida frisante e de responsáveis pelo desenvolvimento de
finlandês, recoberto por uma belíssima relativo teor alcoólico? (não à toa, o sabor e aroma típicos, bem como, pela
camada de Geotrichum candidum que kefir é conhecido por alguns como melhoria da aparência e por uma
reduz a acidez do produto, conferindo “champanhe de leite”). desidratação mais uniforme do
aromas e sabores particulares? Sem produto.

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Grãos de kefir de leite Chá fermentando para produção de kombucha
Foto: José Guilherme Prado Martin Foto: José Guilherme Prado Martin

Dos cárneos para os plant-based, sem fermentar a soja, que se transformará que bactérias acéticas correspondam
dúvidas é no grupo das leguminosas no tão apreciado shoyu? ao grupo mais abundante, as leveduras
que os fungos são a grande estrela! são imprescindíveis para a ecologia da
Desde o tempeh indonésio E como em uma mesa que se preze fermentação do chá, contribuindo,
fermentado por Rhizopus oligosporus, não pode faltar uma boa dose de ainda, com a formação de compostos
ao molho de soja (em que o koji, bebida, não poderíamos deixar de voláteis responsáveis pelos atributos
Aspergillus oryzae, exerce papel mencionar a relevância das leveduras de sabor da bebida.
primordial), passando pelos para a produção de bebidas
fermentados asiáticos (ainda) pouco fermentadas produzidas e consumidas Que tal se refestelar nesse banquete
conhecidos de grande parte da no mundo todo. microbiano junto a uma leitura atenta
população, como o angkak (arroz sobre cada um desses grupos de
chinês com sua hipnotizante cor Falar de Saccharomyces cerevisiae e sua alimentos e bebidas, com informações
avermelhada devido ao crescimento relação com a fermentação de cervejas, técnicas acerca dos bioprocessos
de Monascus purpureus, mesmo fungo vinhos e cachaça pode soar redundante, envolvidos na sua fermentação? É a
usado na produção de sufu vermelho, mas e o papel de leveduras autóctones isso que o livro “Microbiologia de
uma espécie de tofu fermentado). na fermentação de uma grande Alimentos Fermentados” se propõe.
variedade de bebidas alcoólicas, como
Os fungos, sejam eles filamentosos ou hidroméis, meloméis, alguns tipos de Fermentemos!
leveduriformes, operam vinhos, fermentados de frutas e cervejas
transformações incríveis, trazendo especiais – a exemplo das cervejas José Guilherme Prado Martin é
texturas e sabores complexos e cada belgas Lambic, Gueuze e Kriek, e da professor da Universidade
vez mais apreciados no mundo todo. americana Coolship Ale? Federal de Viçosa (UFV)
Será que alguém é capaz de tomar nas guilherme.martin@ufv.br

mãos um pedaço de tempeh e não se Para os sóbrios de plantão, a


Juliano De Dea Lindner é
maravilhar com o micélio a recobrir importância das leveduras na produção
professor da Universidade Federal
cada grão? Ou, ainda, não se inebriar de kombucha, especialmente de Santa Catarina (UFSC)
com o cheiro de koji fresco prestes a Zygosaccharomyces, é notória. Ainda juliano.lindner@gmail.com

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MICOLOGIA MÉDICA

Uma pandemia desastrosa para a


humanidade causada por fungos é possível?
A série "The Last of Us" sob uma perspectiva micológica
No dia 15 de janeiro deste ano, foi lançada pelo canal
HBO, a série americana “The Last of Us”. Ela retrata um
mundo colapsado por uma pandemia causada por um
fungo. O nome usado na série é “Cordyceps” (para
comentários sobre o uso do nome científico correto, vide
a matéria de capa). Na série, os espectadores são levados
a se assustarem com as doenças causadas por fungos. O
interesse acaba se estendendo na forma de curiosidade
em se conhecer melhor a funga, o que aumenta a
visibilidade de nossa disciplina. Micologistas de todas as
áreas, porém, têm sido questionados:

Existe mesmo o risco de uma pandemia fúngica em humanos,


como a retratada na série? Seria possível que “Cordyceps” ou
outras espécies fúngicas causem infecções no sistema
nervoso dos humanos, e então conseguirem controlar nossos
corpos e mentes? Quais são as ameaças reais de uma
pandemia causada por fungos nos dias atuais?

Este texto visa esclarecer como os fungos podem ser uma


ameaça real para a vida dos animais na terra, e em
particular do homem.

Há estimativas muito variadas sobre a diversidade fúngica


no planeta. Atualmente, estima-se que existam 5 milhões
de espécies de fungo no mundo (por metabarcoding o
número sobe para entre 12 e 13 milhões). Pelo menos 150
mil espécies são reconhecidas, das quais, 500 são listadas
como patogênicas ao ser humano.

As micoses são subdivididas em dois grandes grupos:


oportunistas e primárias. As micoses oportunistas
ocorrem quando existe uma condição de desequilíbrio do
sistema imune, por exemplo no caso de pacientes
HIV/AIDS, pacientes transplantados, ou aqueles sob
terapia corticosteroide.

Os principais agentes etiológicos das micoses


oportunistas são: Candida spp., Aspergillus spp. e
Cryptococcus spp. As micoses primárias acometem
indivíduos independentemente da condição do seu
sistema imune sendo o fungo por si só, o fator
Série americana foi lançada em janeiro de 2023 | Foto: Divulgação HBO

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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determinante da patologia. Dentre estas, destacam-se as cutâneas/subcutâneas respectivamente. Em mulheres, a
causadas por fungos dos gêneros Histoplasma, candidíase vaginal é uma infecção ginecológica muito
Paracoccidioides, Coccidoides e Sporothrix. comum causada pelo crescimento excessivo do fungo
Candida albicans, que vive normalmente no trato digestivo
Em geral, os seres humanos e a maioria dos mamíferos são e genital.
resistentes a doenças fúngicas invasivas – particularmente
se comparados com animais de “sangue frio”. Uma Entretanto, alguns fungos podem de fato cruzar a
combinação de imunidade adaptativa e endotermia (a barreira hematoencefálica e causar diversas infecções
grande maioria dos fungos não cresce a 37°C) protege os severas que são classificadas como meningites ou
mamíferos e as aves de potenciais ataques. meningoencefalites, abscessos cerebrais, rino-órbito-
cerebral e que são frequentemente fatais ou de difícil
Infelizmente as doenças fúngicas de humanos vêm se tratamento.
tornando bastante comuns. Ainda que de forma irônica, o
próprio progresso médico (implementação de terapias Exemplos de gêneros de fungos que causam tais
baseadas em imunobiológicos em pacientes infecções no sistema nervoso central incluem
transplantados – por exemplo) tem aberto as portas para Cryptococcus spp., Mucoromycetes (Rhizopus sp.,
infecções fúngicas. Ademais, a tragédia global da Rhizomucor sp. e Mucor sp.), alguns fungos ditos
epidemia de HIV criou legiões de pessoas dimórficos – capazes de se desenvolverem com forma
imunocomprometidas. Para esses últimos, a criptococose filamentosa ou como leveduras unicelulares
é hoje uma grande causa de mortes na África (Histoplasma spp., Paracoccidioides spp., Blastomyces
subsaariana, e a histoplasmose na America Latina. spp. e Coccidioides spp.), alguns “fungos negros”
(Exophiala dermatitidis, Cladophialophora bantiana e
Em outubro de 2022, a Organização Mundial de Saúde Rhinocladiella mackenziei) e Candida spp.
criou uma lista prioritária de patógenos fúngicos para
orientar a pesquisa, desenvolvimento e ações de saúde Para a maioria das situações em que esses fungos
púbica. Nessa lista da OMS há três categorias: prioridade infectam pacientes humanos, as pessoas adoecem ao
crítica, alta e média. Ela inclui fungos como Candida auris e inalar os esporos de fungos, causando uma doença
Sporothrix brasiliensis – importantes patógenos de primaria nos pulmões e, a partir dali a colonização pode
humanos, que estão emergindo no país e no mundo com se expandir pela corrente sanguínea e então se
algum potencial pandêmico. disseminar para o cérebro ou a medula espinhal.

É sabido que a maioria dos antifúngicos disponíveis no Já no caso de Candida spp., que naturalmente habita o
mercado utilizados no tratamento destas micoses são nosso corpo de forma benigna, a colonização do
muitas vezes ineficazes devido aos mecanismos de cérebro se dá pela corrente sanguínea e geralmente
resistência intrínsecos destas espécies. Não existem está ligada a imunossupressões severas. Ainda é um
vacinas para serem utilizadas na prevenção nem no mistério como os fungos conseguem cruzar a barreira
tratamento destas micoses. hematoencefálica, mas os principais fatores de risco
são: pacientes com HIV/AIDS, o uso prolongado de
Ou seja, a funga não deve ser negligenciada como fonte esteróides (como a prednisona), tratamentos
de risco em potencial de eventos catastróficos globais. continuados com medicamentos administrados após o
Dois exemplos assustadores de pandemias envolvendo transplante de órgãos e drogas anti-TNF (fator de
fungos estão em andamento hoje. Uma está levando à necrose tumoral), que às vezes são administrados no
extinção em massa de anfíbios (sapos, pererecas e tratamento de artrite reumatóide ou outras condições
salamandras) pelo mundo – o vilão é um quitrídio (fungo autoimunes. As meningites fúngicas não se espalham
aquático). A outra, a “síndrome do nariz branco” causada entre as pessoas como é reportado na série de TV –
por Pseudogymnoascus destructans – introduzido (não se diretamente inspirado em outras fantasias de filmes de
sabe como) a partir da Europa, que está dizimando horror como os de vampiros, lobisomens e zumbis em
amplamente as populações de morcegos norte- que a infecção é transmitida pela mordida de pessoas
americanos, com graves consequências potenciais ao infectadas.
meio ambiente e à agricultura.
Mas uma vez estabelecida uma infecção no sistema nervoso
Em contrapartida, as micoses mais comuns são as menos central, estes fungos poderiam então controlar a mente de
perigosas. Exatamente aquelas que acometem unhas e nós humanos? A resposta é não.
peles, conhecidas como onicomicoses ou micoses

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História derivada de um vídeo-game mostra a sociedade após uma brutal destruição provocada por fungos | Foto: Divulgação HBO

Não existem dados na literatura que mostrem que os O cérebro humano produz grandes quantidades, por
fungos podem controlar nossas ações como mostrado na exemplo, de dopamina – importante neurotransmissor,
série de TV “The Last of Us”. No entanto, há casos em que envolvido na regulação da atividade motora, processos
infecções fúngicas do sistema nervoso central podem cognitivos, mecanismos defensivos e modulação de
impactar a cognição do doente. Um exemplo, são as funções motivacionais. Ou seja, C. neoformans pode usar a
infecções do sistema nervoso central por Cryptococcus dopamina presente no cérebro de pessoas infectadas
neoformans, que além de provocarem dores de cabeça, para produção de componentes essenciais para sua
náuseas, vômitos, poliúria, aumento da temperatura sobrevivência neste órgão.
corporal e sonolência, podem também levar a um estado
de confusão mental, convulsões, depressão e diminuição A realidade sobre os resultados da infecção de patógenos
da função mental. Estudo recente mostra que alguns fúngicos humanos é assustadora e não ficcional.
pacientes com doença de Parkinson, uma doença Epidemias, entretanto, ainda não são uma realidade. Tais
neurodegenerativa que tem como principal característica infecções catastróficas são raras e não contagiosas.
a inflamação de neurônios, apresentavam infecções
mistas de bactérias e fungos. A maioria dos fungos Mas é preciso atenção. Num mundo em transformação e
identificados nesse estudo sobre doença de Parkinson cada vez mais desequilibrado pela atividade humana, os
pertenciam aos gêneros Botrytis sp., Candida sp., Fusarium gatilhos para novas pandemias são imprevisíveis. O
sp. e Malassezia sp. estudo da Micologia é sim fundamental para se evitar que
fungos patogênicos se tornem, de fato, uma ameaça para
Um outro aspecto curioso é que uma vez que uma os humanos. É o que a Organização Mundial da Saúde nos
infecção fúngica é estabelecida no sistema nervoso sugere: prestar atenção e estudar os fungos.
central, os patógenos podem então utilizar compostos
produzido nesse órgão para sua proteção. Por exemplo, o
tropismo de C. neoformans pelo cérebro foi correlacionado
Marcus de Melo Teixeira é docente da Universidade de
com a presença de altas concentrações de precursores
Brasília (UnB) e representante regional da SMBic
para a atividade da lacase. Essa enzima é fundamental
marcus.teixeira@gmail.com
para a produção de melanina, um fator de virulência
importante para esse fungo.

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LÍQUEN DA VEZ

Ramalina celastri (Spreng.) A. Massal., 1861


Quem é curioso e observador da rica
natureza brasileira já deve ter
percebido a abundância de liquens
fruticosos (Fig.1).

Há um gênero que produz belos


ramos, conhecido como Ramalina Ach.
in Luyken, 1809 nom. cons. (Latim
ramus = ramo), que é bem possível que
você já tenha visto crescendo sobre
rochas ou caules de árvores, ao longo
das margens dos rios, em barrancos
na beira da estrada ou em trilhas nos
pontos turísticos.

Nosso país tem cerca de 40 espécies


de Ramalina (e várias ainda a serem
nomeadas!), e embora elas ocorram
em praticamente todos os
ambientes, são mais frequentes em
áreas abertas, em regiões com
maior umidade no ar, e
principalmente com a presença de
nevoeiros.

As espécies de Ramalina podem ser


cespitosas ou pendulosas (Fig. 2), e
não raramente atingem cerca de 1,5
metro de comprimento. Os talos
são geralmente sólidos, porém há
algumas espécies brasileiras com
talo oco. A presença de Fig 1 - Liquenólogo Emerson Gumboski observando Ramalina
pseudocifelas na superfície é em galho de árvore, Rio Pardo – RS. | Foto A.A. Spielmann
característica do gênero (raramente
são ausentes), assim como um
tecido condroide interno que está
quase sempre presente e dá maior
resistência aos ramos.

Os esporos de Ramalina são


incolores e 1-septados, e todas as
espécies produzem ácido úsnico. A
química é bastante rica, com ácidos
graxos, triterpenoides, orcinol
depsídeos, β-orcinol depsídeos e β-
orcinol depsidonas.

No gênero Ramalina supõe-se que


as espécies apresentem um grau
expressivo de plasticidade
fenotípica. Isso se reflete em muitos
nomes publicados ao longo do
tempo, vários dos quais

Fig.2 - Figueira coberta por espécies pendulosas de Ramalina.


Rio Grande – RS | Foto A.A. Spielmann

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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correspondem a uma mesma
espécie, e assim são reconhecidos
taxonomicamente como “sinônimos”.

Existem diversas reclassificações e


muito trabalho a ser realizado para
tentar ‘organizar’ um pouco essa
diversidade mundial que
compreende cerca de 300 espécies!

Uma espécie muito comum e


amplamente distribuída por todo o
Brasil, mas com maior frequência nas
regiões sul, sudeste e centro-oeste
do país, é Ramalina celastri (Fig. 3).

Com registros no mundo todo


(exceto na Antártica), ela é tida como
uma das espécies com alto grau de
plasticidade morfológica, mas que
estudos recentes já demonstraram se
tratar de um “complexo” (muito
interessante!) de espécies.

De todo modo, R. celastri pode ser Fig. 3: Ramalina celastri em seu hábitat, mostrando os ramos, apotécios e
pseudocifelas. Canguçu – RS | Foto A.A. Spielmann
caracterizada pelo talo cespitoso,
ramos achatados e relativamente
largos, pseudocifelas elipsoides a
lineares (Fig. 4) sobre toda a
superfície, ausência de propágulos
simbiônticos, geralmente com
apotécios por todo o talo e ausência
de compostos medulares
secundários.

Os estudos recentes têm


demonstrado que padrões de
anatomia dos ramos, tamanho dos
esporos (mesmo que com diferença
sutil), e padrão de distribuição das
pseudocifelas são importantes
características para distinção das
espécies desse complexo.

Somado a isso, a distribuição


geográfica também é muito
importante para ajudar no
entendimento desta diversidade, que
tanto carece de estudos.
Fig. 4. Ramalina celastri, mostrando em detalhe as pseudocifelas.
São Francisco de Paula – RS | Foto A.A. Spielmann
Quantas Ramalina você já observou
nos locais que visitou? Serão elas Emerson Gumboski é professor na Universidade da
parte do complexo Ramalina celastri? Região de Joinville (UNIVILLE) em São Francisco do Sul
e sócio da SBMic
emersongumboski@gmail.com
Para saber mais:
https://www.facebook.com/fungoslique Adriano Afonso Spielmann é professor da Universidade
nizados. Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em Campo Grande,
e representante regional da SBMic
adriano.spielmann@ufms.br

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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COLEÇÕES MICOLÓGICAS

Coleção Micológica do Herbário UB (CMHUB)


A Coleção Micológica do Herbário
UB (CMHUB) foi idealizada e criada
em 1993 pelo professor emérito
José Carmine Dianese. A Fundação
Banco do Brasil financiou a criação
da coleção enquanto a melhoria da
infraestrutura e modernização foi
financiada por várias agências de
fomento como a Financiadora de
Estudos e Projetos (FINEP/MCTI), a
Fundação de Apoio a Pesquisa do
Distrito Federal (FAP-DF), o Conselho
Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), e a
Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior
(Capes).

A CMHUB é uma coleção fiel


depositário registrada no Index
Herbariorum que preserva a maioria
do acervo em envelopes de 30 × 20
cm contendo amostras vegetais
herborizadas. Juntamente com o
herbário são mantidas lâminas
permanentes contendo as
estruturas reprodutivas dos fungos
(Figura 1).

Toda a coleção é mantida em uma


sala exclusiva contendo armários
deslizantes para organização dos
Fig.1 Coleção Micológica do Herbário UB | Foto: Danilo B. Pinho
espécimes fúngicos e um sistema de
refrigeração para manutenção de
uma temperatura baixa e constante
(Figura 2).

A CMHUB é a principal coleção de


fungos fitopatogênicos da região
Centro-Oeste do Brasil, possuindo
exemplares dos reinos Amoebozoa,
Straminipila e Fungi. A maioria do
acervo compreende formas
microscópicas de fungos epífitas,
parasitas e hiperparasitas obtidos
de tecidos vegetais.

O acervo da CMHUB compreende


principalmente fungos associados
com plantas nativas do Bioma
Cerrado. As expedições em áreas de
abrangência do Bioma Cerrado
iniciaram em 1994, incluindo áreas Fig. 2 Coleção é mantida em sala exclusiva com armários deslizants e sistema de
refrigeração para manutençào das baixas temperaturas. | Foto: Danilo B. Pinho

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exposição durante a Semana
Universitária para atrair a atenção dos
estudantes do ensino básico.

A CMHUB possui toda infraestrutura


necessária para documentação e
descrição de espécies fúngicas como
microscópio estereoscópio,
microscópio de luz e criostato (Figura
3). Além disso, a UnB possui
microscópio eletrônico de varredura e
microscópio eletrônico de
transmissão para obtenção de
imagens. A coleção também possui
uma sala reservada contendo todos
os equipamentos necessários para
extração e amplificação do DNA de
espécimes fúngicos.

Em 2016 foi criada a coleção de


culturas fúngicas da Universidade
de Brasília para a preservação in
vivo dos espécimes fúngicos. A
coleção de culturas possui
aproximadamente 4.000 isolados
incluindo oomicetos, leveduras,
fitopatógenos, endófitos,
saprófitos, fungos habitantes do
solo e agentes de controle
biológico. Os isolados são
armazenados em água esterilizada,
glicerol 10% e meio de cultura
coberto com óleo mineral. As
espécie-tipo e os fungos de
importância econômica também
são preservados em nitrogênio
Fig. 3 Sistema de fotodocumentação da CMHUB - Microscópio estereoscópio líquido.
com sistema de fotodocumentação | Foto: Danilo B. Pinho

Atualmente a CMHUB carece de um


nos estados da Bahia, Goiás, Maranhão, identificados, sendo que 642 servidor exclusivo para organização
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, espécimes foram identificados a nível do acervo. O professor Danilo Batista
Minas Gerais, Piauí, Rondônia, Tocantins de espécie. A CMHUB preserva 148 Pinho é o curador da coleção e conta
e Distrito Federal. Enquanto as áreas do holótipos, sendo 18 espécies-tipo de somente com o apoio de estudantes
Piauí e Tocantins estão pouco novos gêneros e duas espécie-tipo de da graduação e da pós-graduação
representadas, ainda não há espécimes novas famílias. Apesar das para organizar e manter o herbário e
obtidos em áreas de Cerrado dos contribuições taxonômicas, a maioria a coleção de culturas. Essa limitação
estados de São Paulo e Roraima na do acervo da CMHUB ainda de recursos humanos tem dificultado
CMHUB. permanece sem identificação a nível a digitalização das informações para
de espécie. inclusão em um banco de dados
A CMHUB possui aproximadamente online como o specieslink.
25.000 exsicatas preservadas, sendo A CMHUB integra o Museu de Biologia
que apenas metade do acervo foi da Universidade de Brasília que
identificado a nível de ordem. Entre os incentiva atividades de ensino,
diferentes grupos fúngicos, a maioria pesquisa e extensão para
Danilo Batista Pinho é professor da
dos 13.000 espécimes pertencem as popularização da ciência. As principais
Universidade de Brasília (UNB) e é
ordens Asterinales, Capnodiales, atividades promovidas pelo Museu de
sócio da SBMic
Meliolales, Mycosphaerellales e Biologia são visitas guiadas de
danilopinho@unb.br
Phyllachorales. Até o momento, 744 estudantes do ensino médio e de
gêneros pertencentes aos filos graduação para demonstração da
Ascomycota e Basidiomycota foram importância dos fungos e uma

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EVENTOS

Um olhar sobre a diversidade de fungos


Ascomycota no Sul do Brasil

Participantes do 1º Curso de Diversidade de Macrofungos Ascomycota, no Parque Nacional de São


Joaquim, em Urubici/SC, novembro de 2022. Foto: MIND.Funga

Existem momentos na vida que Santa Cruz (UESC); os liquens, curso (que também foi uma disciplina
precisam ser especiais. Precisam ser reverenciados a todo momento pelo do PPGFAP) “Diversidade de
marcados por algo único e inédito! Prof. Adriano Spielmann, da Macrofungos Ascomycota”, no
Universidade Federal do Mato Grosso município de Urubici/SC.
Foi assim que aconteceu o encontro do Sul (UFMS); os coprófilos, lindos
entre ilustres representantes de habitantes de substratos com cheiro O curso contou com atividades práticas
gerações de especialistas brasileiros não tão agradável, observados pelo em ecossistemas de altitude do Parque
que dedicam sua vida a estudar a Prof. Francisco Calaça, da Nacional São Joaquim, cuja realização
diversidade de fungos ainda pouco Universidade Estadual de Goiás (UEG), se deveu aos apoios dos projetos INCT
conhecidos no Brasil: os Ascomycota. e os fascinantes fungos Herbário Virtual da Flora e dos Fungos,
manipuladores de insetos, abrangidos PELD/BISC, MIND.Funga
O planejamento era antigo, antes pelo Dr. João Araújo do Jardim PRONEM/FAPESC, ICMBio (PARNA São
mesmo de imaginarmos uma Botânico de Nova Iorque (NYBG). Joaquim), The New York Botanical
pandemia (Covid-19). Somente em Garden, PPGFAP/UFSC e Sociedade
2022, na Serra Catarinense, que jovens Este é um importante passo para a Brasileira de Micologia (SBMic).
micologistas tiveram a oportunidade popularização, conservação e
de andar nas mágicas matas nebulares continuidade dos estudos da A oportunidade foi dada para
ao lado de uma das maiores diversidade de fungos Ascomycota do participantes de todo o Brasil, bem
autoridades em micologia ambiental Brasil. A iniciativa foi organizada pelo como do Reino Unido e dos Estados
do nosso país. grupo de pesquisa Unidos da América. Ao todo, quase 20
MIND.Funga/MICOLAB e pelo PPG em pessoas, entre estudantes do PPGFAP,
O aprendizado dessa experiência Biologia de Fungos, Algas e Plantas cursistas da comunidade externa ao
chegou a grupos de Ascomycota tão (PPGFAP) da Universidade Federal de programa e professores convidados,
diversos e cheios de novidades, como Santa Catarina (UFSC). estiveram envolvidos em diversas
os fitopatógenos, estudados há mais atividades focadas no estudo de
de 50 anos pelo Prof. José Luiz Entre os dias 28 de novembro e 02 de diferentes grupos de fungos
Bezerra, da Universidade Estadual de dezembro de 2022, foi realizado o Ascomycota.

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Os professores compartilharam suas
experiências e conhecimentos durante
as coletas, sempre orientando sobre as
boas práticas de campo e pós-campo,
com aulas e seminários, estes últimos
apresentados tanto pelos professores
quanto pelos cursistas.

Durante os dias de curso, foram


coletados 258 espécimes, totalizando
101 espécies distribuídas em 50
gêneros. Destes espécimes, 125 são
liquens, 75 sapróbios e 26
fitopatógenos, 21 entomopatógenos e
11 coprófilos.

Muitas das coletas representam


novidades científicas, sendo novos
Coordenadores e pesquisadores convidados do 1º Curso de Diversidade de Macrofungos
registros para Santa Catarina e/ou Ascomycota em frente ao antigo prédio do Departamento de Botânica do CCB da UFSC.
Brasil, ou ainda espécies novas para a Foto: MIND.Funga
ciência. Todo o material foi organizado
de forma física e digital pelos cursistas,
bem como foi tombado no fungário
FLOR da UFSC.

Uma vez que os estudos sobre a funga


do Brasil, especialmente aqueles
focados em Ascomycota, são escassos
em comparação com a fauna e a flora,
iniciativas como essa destacam a
importância, a diversidade e a
necessidade de conservação tanto do
grupo quanto dos ecossistemas onde
ocorrem.

Um evento como este, onde foi possível


reunir quatro dos maiores especialistas
do Brasil e fora dele, certamente é um
feito memorável e que em muito
acrescentou ao conhecimento destes
organismos, despertando a curiosidade
dos cursistas e da comunidade
acadêmica para um grupo ainda pouco
estudado, de forma imersiva e em um
dos ecossistemas mais ameaçados do Alguns representantes, dentre as mais de 100 espécies encontradas no 1º Curso de
Diversidade de Macrofungos Ascomycota, dos grupos de ascomicetos abordados no curso: 1
Brasil. - ascomiceto do gênero Erioscyphella; 2 - líquen do gênero Heterodermia; 3 - fungo
coprófilo do gênero Cheylimenia; 4 - fungo das formigas-zumbis, pertencente ao gênero
Ophiocordyceps. Fotos: MIND.Funga
Em uma semana de curso, foram obtidos
quase 260 espécimes da funga de
ascomicetos do Sul do Brasil,
Francisco J. Simões Calaça é doutor pela
representados por mais de 100 espécies!
Universidade Estadual de Goiás (UEG) e sócio da SBMic
calacafjs@gmail.com
Em outras palavras, isso representa ao
menos dez vezes o número de espécies
Adriano Afonso Spielmann é professor da Universidade Federal de
desse grupo de fungos atualmente
Mato Grosso do Sul (UFMS) e representante regional da SBMic
conhecidas para a região. Iniciativas como
adriano.spielmann@ufms.br
esta suscitam em jovens estudantes a
importância de recursos humanos
Elisandro Ricardo Drechsler-Santos é professor da Universidade Federal
treinados (e apaixonados) em micologia,
de Santa Catarina (UFSC) e representante regional da SBMic
passo essencial para avançarmos na
drechslersantos@yahoo.com.br
conservação da funga brasileira.

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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EVENTOS

Simbiose - A conexão pelos fungos


Uma exposição combinando arte e Micologia
De passagem pelo Rio de Janeiro, e adequado. É impossível para (fácil de reconhecer) belos cestos,
seguindo a recomendação pessoal da micófilas e micófilos não se emprestados pela Dra. Ishikawa, em
colega Dra. Noemia Ishikawa, fui visitar simpatizarem com a fala. que dentre os componentes, utilizados
a exposição Simbiose – a conexão pelos para sua confecção, estão rizomorfos
fungos (mais informações neste link). Adentra-se a sala da exposição. É uma de Mycena sp. Mesmo micologistas bem
área ampla que inclui uma coluna informados vão encontrar algo entre os
A exposição acontece no museu Oi central/estipe a partir da qual se diversos temas abordados que se
Futuro e fica aberta ao público (entrada estende uma de teia micelial apresentará como novidade, e isso não
franca) entre 9 de fevereiro e 26 de simbólica. Grandes almofadões estão é pouco!
março de 2023. A visitação pode ser dispostos para as pessoas se
feita de quarta à domingo, de 11h até acomodarem e apreciarem um Apesar da exposição se chamar
20h. espetáculo visual projetado ao fundo. Simbiose, e apesar do termo simbiose
ter sido cunhado por um dos pais da
O Oi Futuro fica no bairro do Imagens fungóides se sucedem onde Micologia (Anton de Bary) – para
Flamengo, próximo ao Largo do se reconhecem eventos multicores de descrever a relação existente entre
Machado e o acesso é fácil pelo metrô. esporulação e dispersão, movimentos fungos e algas, presente nos liquens –
O ambiente é espaçoso e comporta plasmodiais e outras animações estes parecem ter sido omitidos da
outras exposições. A “Simbiose” fica no geradas pela Deeplab Project. O exposição. Esta é uma importante
primeiro andar e ocupa apenas um conjunto da obra, lembra uma das lacuna.
espaço. galerias do Instituto Inhotim (em
Minas Gerais), que leva o nome de A impressão final é boa. Válida
Antes de adentrar a exposição, há uma Cosmococa. tentativa de conectar Micologia e arte,
gravação em que um ator (Eriberto numa “simbiose” interessante e
Leão) interpreta um fungo (na verdade Melhor que a componente artística é incomum. Toda a forma de divulgação
representando o coletivo dos fungos), o apanhado de informações da Funga e da Micologia merece ser
anunciando ao público sua relevância. telegráficas sobre os fungos afixado valorizada e aplaudida!
Uma voz feminina falando em nome em pequenos painéis pela superfície
da Funga teria sido, na verdade, mais de duas grandes paredes. Há inclusive

Exposição está em cartaz no Oi Futuro, Rio de Janeiro, até 26 de março | Foto: Robert. W. Barreto

Robert W, Barreto é professor da Universidade


Federal de Viçosa (UFV) e presidente da SBMic
rbarreto@ufv.br

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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BELEZA SUTIL OU EVIDENTE

Um parasita sutil e nem sempre evidente

Um fungo que cresce superficialmente em folhas e


que parasita seu hospedeiro de forma sutil. Sua rede
de hifas se espalha sobre a folha do hospedeiro,
conectando fungo e planta em muitos pontos. É
diminuto e difícil de se encontrar e apreciar.

Batistinula gallesiae Arx (Asterinaceae, Asterinales,


Dothideomycetes)
Substrato: Folhas de Paubrasilia echinata (pau-brasil)
Localidade: Reserva Natural Vale, Sooretama, Espírito
Santo

André Luiz Firmino é professor da Universidade


Gênero descrito em 1960 em homenagem ao grande
Federal de Uberlândia (UFU) e sócio da SBMic
micologista brasileiro, Augusto Chaves Batista. andrefirmino@ufu.br

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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MICOFAGIA

O molho de soja e a potência do Umami


Dentre os diferentes tipos de alimentos fermentados à
base de soja, que incluem o missô, o natto e o tempeh,
talvez o molho de soja seja o mais popular.

Sim, aquele shoyu com o qual todos nós temperamos


nossos deliciosos sushis e sashimis é, originalmente,
fermentado (e muito bem, por sinal). São meses até que
seus principais ingredientes, a soja, o trigo e o sal, sejam
transformados nesse molho capaz de potencializar o sabor
não só de pratos orientais, mas de preparações
gastronômicas mundo afora.

Embora relacionado à tradição culinária japonesa, sua


produção teve origem na China (onde é conhecido como
chiang-yu). Inicialmente, produzia-se uma pasta
misturando-se carne bovina, de peixes ou aves, sal, licores
e cereais previamente embolorados (parece estranho, não
é mesmo? Mas tudo fará sentido mais adiante!).

Toda essa mistura era mantida em recipientes fechados


por ao menos 3 meses. Depois desse tempo, a mistura se
parecia com uma espécie de missô, como esses utilizados Koji – inóculo de Aspergillus oryzae para preparo de
atualmente; e, o líquido exsudado, de forte odor e sabor, shoyu | Foto: José Guilherme Prado Martin

era, então, utilizado para condimentar diferentes tipos de


pratos. Essa teria sido a história por trás da origem do
chiang-yu chinês e, consequentemente, do shoyu japonês.
Apenas por volta do século VI a carne teria sido substituída
pela soja.

O modo de produção, tempo de duração e proporção dos


ingredientes varia de maneira significativa de acordo com
a região produtora. No Japão, por exemplo, são vários
tipos diferentes de shoyu, a depender da proporção entre
as quantidades de soja e trigo.

O koikuchi-shoyu, por exemplo, é o mais popular, e leva


partes iguais desses ingredientes; já o tamari-shoyu é feito
com maior quantidade de soja (90%), resultando em um
molho de sabor mais suave; e o shiro-shoyu leva mais trigo
do que soja.

Independentemente do tipo, o molho de soja é


tradicionalmente produzido em 2 estágios distintos,
conhecidos como koji e moromi.

Começamos pelo estágio koji, pois é aqui que entra a


principal estrela do processo: o fungo Aspergillus oryzae –
Estágio moromi – koji acrescido de salmoura
lembrem-se que na China antiga se utilizavam cereais Foto: José Guilherme Prado Martin

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Molho de soja pronto | Foto: José Guilherme Prado Martin

embolorados para produção do molho rudimentar? Pois Esse processo em geral leva 72 horas, e a temperatura

bem, koji ( ) em japonês significa “grão mofado”, e o fungo deve ser muito bem controlada, pois se muito baixas,
crescido é reconhecido como uma verdadeira bomba dificultam o crescimento do fungo; se aumentarem demais
enzimática. (como ocorre naturalmente, já que o crescimento
microbiano gera calor), o fungo pode morrer e inviabilizar
São essas enzimas as responsáveis por grande parte das a produção do shoyu. E são essas enzimas que,
transformações da soja no molho escuro e saboroso. posteriormente, atuarão no estágio seguinte, o moromi.
Ainda que esta espécie seja mais próxima de Aspergillus
niger (utilizado amplamente em processos industriais) e de Aqui, o koji é misturado a uma salmoura (entre 13% e
Aspergillus flavus (reconhecido por seus isolados que têm a 20%). O tempo de fermentação nesse estágio pode variar
capacidade de produzir toxinas), A. oryzae não as produz, o de 6 a 8 meses – a partir de agora certamente você
que fica claro quando olhamos para todo o passado e economizará no shoyu, reduzindo o desperdício! E é
histórico de uso deste fungo na produção de alimentos e durante todo esse tempo que o amido é convertido em
bebidas. produtos como álcoois, ácidos (especialmente o lático), e
dióxido de carbono, enquanto as proteínas são quebradas
É na fase koji que A. oryzae, na forma de uma bela névoa em peptídeos e aminoácidos que conferem aromas e
constituída de esporos, é inoculado em grãos de soja sabores característicos.
previamente cozidos e misturados ao trigo já tostado.
Enquanto os esporos germinam e crescem sobre os grãos, Em unidades de produção ao estilo tradicional, os
criando uma camada branco-acinzentada (por vezes microrganismos naturalmente presentes nas paredes dos
esverdeada) pulverulenta, uma série de enzimas é tanques iniciam a fermentação; em indústrias, bactérias
produzida, especialmente as amilases (que quebram o láticas e leveduras são adicionadas para direcionar o
amido em maltose e glicose), as proteases (que quebram processo, padronizando a qualidade do produto. Destaque
as proteínas, gerando peptídeos e aminoácidos) e as para as leveduras halotolerantes Zygosaccharomyces rouxii
lipases (que liberam ácidos graxos a partir de lipídeos).

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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e Clavaria versatilis, bem como bactérias láticas,
especialmente Tetragenococcus halophilus.

Após todo esse processo, tudo é filtrado para que se retire


a fração sólida, e, então, o molho obtido é pasteurizado.
Embora muita gente torça o nariz para produtos
pasteurizados, neste caso o processo é muito importante,
pois nas temperaturas empregadas (em torno de 80 °C)
formam-se compostos de sabor que contribuem
positivamente para a qualidade do shoyu. Após envasado,
o molho de soja está repleto de umami, gosto
característico relacionado à presença principalmente de
glutamato.

Antes de finalizarmos essa deliciosa viagem micofágica, é


importante destacar que nem todo molho de soja é
fermentado.

Muitas indústrias o produzem pela hidrólise ácida da soja.


Os grãos são cozidos e submetidos a um tratamento com
ácido clorídrico por algumas horas. Após resfriamento e
neutralização com hidróxido de sódio, o produto é
prensado e filtrado, para, então, receber outros
ingredientes, como xarope de milho e sal. Além disso,
adiciona-se corante caramelo, que confere a cor escura tão
associada ao molho de soja. Na próxima ida ao
supermercado, que tal dar uma lida na lista de
ingredientes do seu molho shoyu favorito? Talvez ele se Frango estilo oriental
enquadre nesse tipo de produto.

Ingredientes:
No entanto, o shoyu fermentado tradicional apresenta
coloração que tende mais para o marrom que para o
1 quilo de sobrecoxa de frango desossada
preto, o que pode prejudicar a aceitabilidade dos
Suco de 2 laranjas pera
consumidores habituados ao molho mais escuro.
½ xícara de chá de shoyu (fermentado - legítimo)
Notou que em nenhum momento esse processo envolve a
2 cm de gengibre fresco ralado
fermentação? É por isso que o molho quimicamente
2 dentes de alho ralados
elaborado não é classificado como um alimento
1 pitada de sal
fermentado. Na tentativa de melhorar as características de
sabor e aroma, algumas indústrias fazem um processo
Modo de preparo:
misto, adicionando partes de molho moromi ao substrato
químico previamente preparado.
Prepare uma marinada misturando o suco de laranja, o
shoyu, gengibre e alho ralados e o sal. Misture bem o
Se tiver a oportunidade de provar um molho
frango à marinada e mantenha tudo dentro de um saco
tradicionalmente fermentado, não hesite – você irá se
plástico bem fechado durante 30 minutos, sob
surpreender! Falando em surpresa, que tal aproveitar todo
refrigeração. Descarte a marinada e leve as sobrecoxas ao
esse conhecimento sobre fermentação e aprender a
forno pré-aquecido a 250°C até dourar (cerca de 20
preparar um prato simples, mas repleto de umami? Então
minutos). Outra opção é levar à frigideira com a pele virada
já reserve uma dose de shoyu e surpreenda seus
pra baixo até dourar (virando e repetindo o processo), ou,
convidados!
ainda, assar em grelha até ficar tostado.

José Guilherme Prado Martin é professor da


Universidade Federal de Viçosa (UFV).
guilherme.martin@ufv.br

Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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O Boletim Micobiota é uma publicação da Sociedade Brasileira de Micologia.
Outras informações em https://sbmic.org/index.php

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