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PESAVENTO Sandra Jatahy O Corpo e A Alma
PESAVENTO Sandra Jatahy O Corpo e A Alma
Resumo:
O texto analisa a legitimidade da micro-história enquanto estratégia metodológica de
redução da escala de análise para aprofundar o potencial de interpretação das fontes,
discutindo os limites da proposta historiográfica.
Resumé:
Le texte porte sur la legitimité de la microhistoire, qui se propose comme une stratégie
méthodologique de réduction d’échelle de l’ analyse pour mieux interpreter les sources,
tout en discutant les limites de cette proposition historiographique.
1
Professora do curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História pela UFRGS.
Mestre em História da Cultura pela PUCRS e doutora em História Social pela USP.
PESAVENTO, S.J. 2004. O corpo e a alma do mundo. A micro-história e a construção do passado.
História Unisinos, 8(10):179-189.
De uma certa forma, eu poderia mesmo entender que ora se faz uma pergunta
similar, mas mais elaborada ou atualizada, àquela questão que presidiu certa mesa-redonda
organizada nos quadros de um seminário que teve lugar na UFRGS em 1999: Da história
total à história em migalhas: o que se ganha, o que se perde.
Em texto apresentado durante este evento – Esta história que chamam micro –,
publicado em obra coletiva pela Editora da Universidade (Pesavento, 2000), explicitei
minha apreciação sobre a micro-história, que poderia ser aqui sinteticamente resumida.
A micro-história é antes um método ou estratégia de abordagem do empírico, que
implica o uso conjugado de dois procedimentos: redução de escala do recorte realizado pelo
historiador no tema, transformado em objeto pela pergunta formulada, e ampliação das
possibilidades de interpretação, pela intensificação dos cruzamentos possíveis, intra e
extratexto, a serem feitos naquele recorte determinado.
O aparente paradoxo – redução de escala/maior profundidade de análise – foi
considerado por mim um ganho e um avanço.
Em primeiro lugar, a positividade pode ser atribuída pela valorização do empírico,
resgatando a importância do trabalho de arquivo e, com isso, enfatizando que, sem a
presença da marca de historicidade – a fonte, o traço, o registro, o indício objetivo de
alguém ou algo que teve lugar no passado –, não há trabalho histórico possível.
Afirmei ainda, neste texto, que a escolha do micro implicou o recurso à metonímia
como figura metodológica de ação, a permitir que, do fragmento, tanto se permita a
multiplicidade de portas de entrada para a pesquisa quanto se amplie o espectro de
respostas possíveis para uma questão.
Entendi como sendo um ganho e um avanço este aspecto da micro-história de
proporcionar uma pluralidade de respostas, uma vez que isto implica maior abertura do
horizonte do historiador, justamente nas décadas que marcaram a virada de século e
milênio, caracterizadas pela perda das certezas ou verdades únicas e definitivas.
A micro-história seria, assim, uma postura atualizada e condizente com as
preocupações de seu tempo, esta era da dúvida e tempo da suspeita, onde tudo parece se
colocar sob interrogação e questionamento, onde se amplia o leque dos possíveis e se reduz
o horizonte das certezas. Tal postura garante para a micro-história um lugar privilegiado
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História Unisinos, 8(10):179-189.
Ora, o regional e o local, antes de tudo, são recortes simbólicos de sentido que, sem
dúvida alguma, obedecem a dimensões de escala, tal como as categorias do nacional ou do
internacional.
São, a rigor, construções imaginárias de pertencimento, representações do real que
assinalam identidades partilhadas. Constituem, portanto, elaborações culturais históricas,
que envolvem delimitações de espaço, formas de sociabilidade, perfis de atores e um elenco
de sensibilidades, razões, valores e manifestações do espírito entendidas como pertinentes a
um território específico. A região e o local são, assim, recortes de escala no espaço,
portadores de sentido cultural específico.
Mas, ao mesmo tempo, são construções de sentido relacionais, que têm razão de ser,
em sua singularidade, vis-à-vis uma outra unidade de referência mais ampla, em escala
nacional ou internacional. Em outras palavras, as especificidades ou singularidades que
compõem um perfil identitário local ou regional têm como referência uma alteridade,
composta por outras microunidades de sentido ou por um conjunto simbólico global,
sancionado como padrão de coesão social macro.
Sob este enfoque, seria a micro-história o método ideal para o estudo e a análise
destes recortes, uma vez que as especificidades se explicitariam e ganhariam significado
por aquilo que estaria extramicro, ou extra-região e extralocal.
É próprio do método da micro-história estabelecer esta grade de múltiplas relações,
o que o faz uma espécie de laboratório de experiências. Na medida em que estas relações
pressupõem um in e um out com relação à escala escolhida, a micro-história seria ainda o
método que jogaria com as dimensões do geral e do específico, do todo com a parte, do
particular com o geral, da regra com a anomalia, do consensual com a diferença ou ainda do
texto com o contexto.
Em suma, é pela intensificação destas relações que se potencializa a interpretação,
mas tal procedimento requer um conhecimento do historiador muito mais amplo do que
aquele que se pressupõe para uma análise em escala reduzida.
Realizar microanálise é dizer mais sobre um recorte do real a partir de um método,
mas isto é dado também pela bagagem de conhecimento prévio e à parte deste recorte de
escala.
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Chegamos, com isso, ao coração do plus: o corpo e a alma do mundo, sonho de todo
historiador, mesmo sabendo que, desta temporalidade escoada, ele só possa construir
versões que ofereçam verossimilhança com o real passado.
Com o corpo e a alma do mundo queremos tanto dizer as coisas, os gestos, as
práticas e as gentes de cada dia que um dia existiram, na sua cotidianidade ou na sua
excepcionalidade, e que constituem o corpo deste passado, quanto nos referimos às
sensibilidades, às motivações, às razões, as certezas, às emoções e aos sentimentos que
correspondem à alma do mundo de um momento histórico dado.
Falamos, pois, de coisas mensuráveis e quantificáveis, por um lado, e de coisas
aparentemente invisíveis ou de difícil percepção, por outro. Seria, no caso, a micro-história
um método legítimo para a apreensão destas duas dimensões da vida, que aqui chamamos,
em liberdade poética, do corpo e da alma do mundo?
Arriscamos dizer que sim.
Há, sem dúvida, um lado mensurável da vida, das coisas visíveis do acontecer de
cada dia, onde se torna possível resgatar a dinâmica do social, o movimento das pessoas no
espaço, as interações e os conflitos, o trabalho e a guerra, o lazer e o consumo, a pobreza e
a acumulação, as migrações e o povoamento, redes sociais e interações de toda espécie,
ações políticas, obras do Estado, iniciativas privadas.
Em escala reduzida, todo este mundo do cotidiano, de que é feita a vida, se revela na
sua normalidade, em série e freqüência. Não só aquilo que marcaria a cotidianidade, pois a
micro-história exporia também o grande acontecimento, os feitos excepcionais, que em
relação com o cotidiano se revelariam inusitados, imprevistos.
De certa forma, poderíamos dizer que a postura da micro-história é aquela que
melhor se adaptaria a uma espécie de reinvenção do cotidiano, tal como a proposta por
Michel de Certeau (1990). Mesmo relativizando a obtenção da verdade, Certeau entendeu
ser possível responder a este “desejo de verdade” que move o historiador, através da busca
de uma descrição verossímil.
Para tanto, Michel de Certeau se empenhou em recuperar os traços da vida pelo
resgate exaustivo dos fatos acontecidos, tornando inteligível uma temporalidade do
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daquilo que Carlo Ginzburg (1997) definiu como a enargheia, a impressão da capacidade
humana de representar e exprimir o mundo, a energia vital que se abriga em um momento
histórico dado e que se traduz na capacidade de representar o mundo.
Resgatar as sensibilidades implica encontrar a tradução externa, enquanto marca de
historicidade, de uma impressão interna. Mas esta é tarefa das mais finas, delicadas,
profundas, pois a realidade não se apresenta de forma literal ou transparente.
O mundo é simbólico, a realidade é cifrada, discursos e imagens são portadores de
sentidos e de elementos sutis, por vezes quase imperceptíveis, multifacetados.
É preciso, pois, ir ao encontro deste mistério do mundo, optando sempre pelo olhar
oblíquo, indireto, para ver além, mudando o ponto da observação.
Quando Calvino fala da qualidade da leveza como proposta de decifração, diz que
“é preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de
conhecimento e controle” (Calvino, 1990, p. 19).
O corpo do mundo não tem vida sem a alma, e é no encalço desta sintonia fina que a
micro-história poderá revelar o seu plus. Atingir as sensibilidades dos homens do passado,
revelar como eles representavam a si próprios e ao mundo, eis a tarefa ou desafio a ser
realizado pelo método da microanálise.
A micro-história, com sua análise exaustiva ou descrição densa – para tomarmos de
empréstimo um termo caro à antropologia cultural –, fornece imagens que aspiram à
precisão ou, pelo menos, aproximação com o passado. Mas é preciso que elas sejam
dotadas de sentido, que os personagens, ações e discursos sejam impregnados de razões e
sentimentos, que expliquem por que e como se movia a existência dos homens.
Falamos do imaginário, sim, daquilo que Jean Starobinski definiu como a
comunicação com a alma do mundo, com a sensibilidade tradutora da vida em
representações. Seria, pois, exatamente isso a meta de cada historiador que investiga no
campo da História Cultural: captar este reduto sensível de investimento na percepção,
reconhecimento e qualificação do mundo!
Como diz Ítalo Calvino (1990, p. 90), “estamos sempre no encalço de uma coisa
oculta ou, pelo menos, potencial ou hipotética, de que seguimos os traços que afloram na
superfície do solo”.
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Há traços visíveis, explícitos, mesmo quantificáveis, mas há outros que não se dão a
revelar senão pelo esforço do imaginar e que dão conta do universo mental dos homens de
um outro tempo, imperceptíveis à vista, quase invisíveis ou subterrâneos, renitentes a serem
mensurados. É nesta busca de sentidos, de lógicas ou da descoberta das irracionalidades da
vida que a micro-história pode se revelar eficaz: revelar as coisas não ditas, mas intuídas,
preencher lacunas e ausências, divisar indícios e traços onde um olhar desavisado nada
identificaria.
Em suma, a micro-história poderia, ou mesmo ousaria, ser capaz de produzir, ao
mesmo tempo, estas duas formas de conhecimento da realidade de que fala Roland Barthes
(1980): uma que produz um saber sobre as coisas que podem ser medidas e mesmo
comprovadas, e que pertence ao reino do corpo do mundo, da observação direta do real;
outra que constrói um saber sensível, através de indícios, de sensibilidades, emoções e
valores, por vezes imperceptíveis, que têm na imaginação o seu potencial criador e que
fazem parte daquilo que pode ser definido como a alma do mundo.
Mas esta história, assim concebida, seria ainda chamada de micro, mesmo contendo
o corpo e a alma do mundo? Só se nos ativermos à sua estratégia de redução de escala,
porque neste micro estaria contida a vida dos homens, em um momento dado de sua
história.
Referências
BARTHES, R. 1980. La chambre claire : note sur la photographie. Paris, Gallimard, 192
p.
CALVINO, Í. 1990. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Companhia das
Letras, 141 p.
DE CERTEAU, M. 1990. L’ invention du quotidien. 1. Arts de faire. Paris, Gallimard, 347
p.
DEL COL, A. 1996. Domenico Scandella detto Menocchio: i processi dell’Inquisizione.
Parenthèse, 3.
GEERTZ , C. 1989. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 323 p.
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História Unisinos, 8(10):179-189.