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FAMÍLIA IMPORTA E EXPLICA:

INSTITUIÇÕES POLÍTICAS E
PARENTESCO NO BRASIL
Comitê Científico

Ary Baddini Tavares


Andrés Falcone
Alessandro Octaviani
Daniel Arruda Nascimento
Eduardo Saad-Diniz
Isabel Lousada
Jorge Miranda de Almeida
Marcia Tiburi
Marcelo Martins Bueno
Miguel Polaino-Orts
Maurício Cardoso
Maria J. Binetti
Michelle Vasconcelos de Oliveira Nascimento
Paulo Roberto Monteiro Araújo
Patricio Sabadini
Rodrigo Santos de Oliveira
Sandra Caponi
Sandro Luiz Bazzanella
Tiago Almeida
Saly Wellausen
RICARDO COSTA DE OLIVEIRA
(ORGANIZADOR)

FAMÍLIA IMPORTA E EXPLICA:


INSTITUIÇÕES POLÍTICAS E
PARENTESCO NO BRASIL

1ª edição

LiberArs
São Paulo – 2018
Família importa e explica: instituições políticas e parentesco no Brasil
© 2018, Editora LiberArs Ltda.

Direitos de edição reservados à


Editora LiberArs Ltda

ISBN 978-85-9459-085-5

Editores
Fransmar Costa Lima
Lauro Fabiano de Souza Carvalho

Revisão técnica
Cesar Lima

Editoração e capa
Editora LiberArs
Pedro Henrique Lima Andrade

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

Oliveira, Ricardo Costa de (org.)


O299f Família importa e explica: instituições políticas e parentesco
no Brasil / Ricardo Costa de Oliveira (organizador) - São
Paulo: LiberArs, 2018.

ISBN 978-85-9459-085-5

1. Ciências Sociais 2. Família – Estudos – Brasil 3. Família –


Brasil I. Título

CDD 301.2
CDU 308

Bibliotecária responsável: Neuza Marcelino da Silva – CRB 8/8722

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das páginas que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos,
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Editora LiberArs Ltda


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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
OS GENES DO PODER
FRANCISCO ANTONIO DORIA...................................................................................... 7

APRESENTAÇÃO
BRASIL: A FICÇÃO REPUBLICANA
E A REALIDADE DO NEPOTISMO E DO FAMILISMO
PAULO PINHEIRO MACHADO ....................................................................................13

PREFÁCIO
ESTUDOS SOBRE FAMÍLIA, PODER E RIQUEZA NO BRASIL:
UMA AGENDA DE PESQUISA NECESSÁRIA E URGENTE
PEDRO HENRIQUE PEDREIRA CAMPOS ...............................................................17

CAPÍTULO 1
COMO DEFINIR FAMÍLIA?
RICARDO COSTA DE OLIVEIRA .................................................................................27

CAPÍTULO 2
A REFERÊNCIA: A FAMILIA PATRIARCAL BRASILEIRA
ALESSANDRO CAVASSIN ALVES ..............................................................................49

CAPÍTULO 3
FAMÍLIA E POLÍTICA: REPENSANDO RELAÇÕES
MÔNICA HELENA HARRICH SILVA GOULART ...................................................65

CAPÍTULO 4
CLASSES SOCIAIS E HEREDITARIEDADE:
FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS
FERNANDO MARCELINO PEREIRA .........................................................................95

CAPÍTULO 5
A FAMÍLIA CAMPONESA:
UMA BREVE REVISÃO DE LITERATURA
NATÁLIA CRISTINA GRANATO .............................................................................. 113
CAPÍTULO 6
NEPOTISMO COMO CATEGORIA DE ANÁLISE SOCIOLÓGICA
ALESSANDRO CAVASSIN ALVES ............................................................................ 119

CAPÍTULO 7
NOTAS SOBRE A FAMÍLIA ESCRAVA
E O DEBATE ACADÊMICO NO BRASIL
NATÁLIA CRISTINA GRANATO............................................................................... 135

CAPÍTULO 8
CHERCHEZ LA FAMILLE! PROCURE A FAMÍLIA!
RICARDO COSTA DE OLIVEIRA .............................................................................. 143

CAPÍTULO 9
CLASSES ABASTADAS: A FAMÍLIA COMO
ESTRATÉGIA DE PRESERVAÇÃO DA RIQUEZA
ANTONIO DAVID CATTANI ...................................................................................... 163

CAPÍTULO 10
“FAMÍLIAS”, PARTIDOS E POLÍTICA:
INTERDEPENDÊNCIAS ENTRE DOMÍNIOS NA EDIFICAÇÃO DE
“HERANÇAS POLÍTICAS” NO RIO GRANDE DO SUL
IGOR GASTAL GRILL ................................................................................................... 173

CAPÍTULO 11
FAMÍLIAS POLÍTICAS E SEUS ESPECTROS
NA REPÚBLICA BRASILEIRA: O CASO DOS MENDONÇA
DE PERNAMBUCO (1966-2016)
JOSÉ ADILSON FILHO ................................................................................................. 191

CAPÍTULO 12
A FORMAÇÃO DE GRUPOS POLÍTICOS NO CEARÁ:
O CASO DOS FERREIRA GOMES
REJANE VASCONCELOS ACCIOLY CARVALHO
CLEYTON MONTE......................................................................................................... 203

CAPÍTULO 13
O PODER DAS FAMÍLIAS E AS FAMÍLIAS DO PODER
JOSÉ MARCIANO MONTEIRO .................................................................................. 219

SOBRE OS AUTORES ........................................................................................... 245


APRESENTAÇÃO

Os genes do poder

FRANCISCO ANTONIO DORIA

— Quero fazer uma exposição mostrando a continuidade do império,


república a dentro.
— Faço melhor: mostro que o núcleo duro da classe dominante brasileira
vem de longe, vem dos começos do período colonial, e exibe um emaranhado
de parentescos que formam-lhe uma espécie de rede de sustentação. Quem
manda hoje no Brasil já nasce, podemos dizer, com os genes do poder.
— Ah, não quero me meter nisso não.

Essa conversa aconteceu no início dos anos 1980 entre o diretor de um


dos grandes museus nacionais, e o autor dessa apresentação, e nos mostra
duas coisas: primeiro, a classe dominante brasileira é hoje, e sempre o foi, uma
grande família. Ou uma coleção de grandes famílias.
E quase podemos dizer, aqui o poder é uma questão genética.
Cerca de 1/3 dos presidentes brasileiros descendem do casal Braz Teves e
Leonor Leme, casal este que viveu em São Vicente por volta de 1600; e se não
descendem, aparentam-se no casamento a gente que dele, do casal Teves-
Leme, provem. Em Alagoas, uma família parece concentrar o poder político
local desde meados do século XVII. São os Calheiros, família da pequena nobre-
za da região de Viana ao norte de Portugal. Se são atores apagados em sua
terra, tornam-se então donos de um feudo que é a província, depois estado, de
Alagoas. Na Bahia, a família central ao poder colonial é aquela dos Monizes
Barretos. Em Pernambuco, fácil, os Cavalcantis e Albuquerques:

Quem nasceu em Pernambuco,


há de estar desenganado.
Ou se é um Cavalcanti,
ou se é um cavalgado1.

1
A quadrinha tem autoria conhecida, de que não me lembro agora

7
No Rio, a oligarquia vem do conglomerado de famílias que junta nos pa-
rentescos os Sás, os Correas de Sá, e os Correas Vasqueanes. E assim em diante.
Poder, no Brasil, tem nome e sobrenome.
Há uma espécie de microfísica do poder. Para examiná-la brevemente, eis
aqui um resumo da ascendência do atual (2018) prefeito de São Paulo — gene-
alogia que, por sinal, é também minha:

Minha linha e a do João2

1. Vasco Lourenço (I), n.c. 1350 em Moncaparacho; almoxarife de Tavira


em 1372, † em ... P.d.:
2. Gil Vasques, n.c. 1386, escrivão da alfândega de Tavira até 3.2.1464. Pai
de:
3. Vasco Lourenço (II), n. 1404 em Moncaparacho, vereador em Tavira,
1424?, vassalo d'El Rei, escrivão da alfândega de Tavira em 1464, † 1474. Pai de:
4. Doutor Mestre Afonso, físico-mor de Portugal — ministro da saúde e
médico privado do soberano. Documentado como um converso, decerto pela
mãe. Pai de:
5. Dr. Cristóvão da Costa. Doutor em cânones pela Universidade de Siena
em 1518; reitor do Studium Generale de Lisboa, 1526; depois chanceler-mor
da Relação de Lisboa (espécie de primeiro-ministro do reino). Casou c. 1519
com Guiomar Caminha, filha do Dr. Fernão Vaz de Caminha, desembargador da
relação em 1500 e sobrinho-neto do escriba Pero Vaz de Caminha. Pais de:
6. Fernão Vaz da Costa, n.c. 1520 e † 1567/8 no Brasil. Fidalgo da casa re-
al, com o tratamento de senhorio, comandou uma das goletas na frota que
trouxe, em 1549, o Dr. Tomé de Sousa ao Brasil. Pelo casamento com Clemenza
Doria (ver abaixo), foi feito em 1559 contador-mor da colônia (espécie de se-
cretário da fazenda do Brasil).
Em 1557 casou-se com Clemenza Doria, genovesa, criada da rainha D. Ca-
tarina, filha natural de Aleramo Doria, n.c. 1510 em Oneglia, Riviera del Ponen-
te, atestado desde então diversas vezes em Oneglia, em Gênova, em Sevilha, na
colônia genovesa local, e ainda atestado como comandante de uma nau militar
genovesa em 1570 ou antes, banqueiro e mercador com negócios na corte
portuguesa em 1556. Filho de Francesco Doria, mercador genovês radicado em
Sevilha, atestado c. 1500 em Sevilha, e de Gironima Centurione (filha de Lodi-
sio Centurione Scotto, o banqueiro que financiou Colombo, e de Isabella di
Oberto Lomellini).

2 Com os agradecimentos a Miguel de Sousa e a Manuel Abranches de Soveral.

8
Dado Fernão Vaz da Costa como parente (“sobrinho”) do governador-geral
D. Duarte da Costa, fato mencionado na carta d'armas de um seu (de Fernão
Vaz) sobrinho, “de Costa, pleno,” com data de 14.7.1605, onde estes são dados
como parentes dos Costas do Armeiro-Mor, família de D. Duarte.
Aqui se forma, em 1557, nesse casamento, o sobrenome Costa Doria.
Pais de:
7. Cristóvão da Costa Doria. N. na Bahia em 1560. Fidalgo da casa real, ca-
sa-se c. 1605 com D. Maria de Meneses, filha de Jerônimo Moniz Barreto de
Menezes e de D. Mécia Lobo de Mendonça. Pais de:
8. D. Antonia de Meneses. batizada em 1606 em Salvador, † após 1648. Ti-
nha o Dom das senhoras, expressamente reconhecido nestes Monizes por um
alvará régio de 1528. Casou em 1631 com Antonio Moreira de Gamboa, natural
da Bahia, n.c. 1590 e † após 1648, filho de Martim Afonso Moreira, fidalgo da
casa real, n. 1550 em Setúbal e † após 1622 em Salvador — e de s.m. Joana de
Gamboa. Pais de:
9. Martim Afonso de Mendonça, fidalgo da casa real e irmão de maior con-
dição da Santa Casa de Salvador em 1672. N. c. 1632 e c. três vezes. Da terceira
com D. Joana Barbosa, em 1665 no Monte Recôncavo.
Era do partido do governador odiado, o “Braço de Prata,” em oposição a
seus parentes, os Vaz da Costa e Sá Doria, estes do partido do Padre Antonio
Vieira. Dentre seus irmãos, sendo este Martim Afonso o primogênito, Antonio
Moreira de Meneses foi juiz ordinário da câmara de Salvador em 1691, e Ma-
nuel Teles de Meneses, o caçula, vereador em Salvador em 1669, e juiz de ór-
fãos no Socorro em 1678.
Pais de:
10. Gonçalo Barbosa de Mendonça, capitão das ordenanças, n. na Bahia em
1675, † 1737. Em 1716 c. no Recôncavo, Socorro, c. D. Antonia de Aragão Pe-
reira, descendente do Caramuru. Pais de:
11. Cristóvão da Costa Barbosa, sr. do engenho “Ladeira.” N. 1731, † 1809.
Casou com sua prima D. Antonia Luiza de Vasconcellos Doria (1744-1825),
como a mãe deste, descendente do Caramuru; D. Antonia Luiza filha do cel.
Manuel da Rocha Doria e de sua mulher (casados em 4.12.1726 na capela da
Piedade, no Carmo). Pais de:
12. Manuel Joaquim da Costa Doria (c. 1775, †após 1848), boiadeiro. Ca-
sado c. 1808 com a prima D. Teresa Mariana (ou Sebastiana) de Meneses Doria,
filha do tio materno o cel. José Luiz da Rocha Doria e de sua mulher e prima D.
Francisca Xavier de Menezes Doria. Pais de:
- José da Costa Doria (1809-1871). N. em Rio Fundo, Recôncavo, e mudou-
se para Itapicuru, onde foi secretário da câmara (1831) e depois vereador

9
(1837-1840). C. circa 1830 com a prima D. Helena Mendes de Vasconcellos.
Segue adiante.
- Antonio Joaquim da Costa Doria, n. 1815. Segue.
13. Antonio Joaquim da Costa Doria, n. no Monte Recôncavo c. 1815,
†1859 no seu engenho “Caberi,” no Monte. C. c. D. Eleuthéria Sofia de Menezes.
P. d.:
14. João Agripino da Costa Doria (1854-1902), catedrático de clínica ci-
rúrgica em Salvador, vereador em Salvador (1891-1895), prefeito municipal de
Salvador em 1895.
Foram com este João Agripino, vereadores na mesma legislatura, seu pri-
mo Guilhermino Álvares da Costa Doria, e o parente mais distante, o médico
José Rodrigues da Costa Doria, depois deputado federal e presidente de Sergi-
pe — fora José Rodrigues autor do primeiro estudo sobre entorpecentes aqui,
“Do maconhismo no Brasil.”
E João Agripino da Costa Doria é bisavô de João Doria Jr., novo prefeito de
S. Paulo.

***

Continua aqui a linha primogênita:


13. José da Costa Doria n. 1809 em Rio Fundo, no Recôncavo da Bahia, on-
de foi batizado na capela do engenho “Papagaio,” do tio paterno Antonio de
Bettencourt Berenguer César. Passa a Itapicuru em 1830 ou pouco antes, e
casa-se em 1831 com D. Helena Bernardina Mendes de Vasconcellos, ou de
Souza Mendonça, sua parenta, filha do tabelião Antonio Ponciano de Souza
Mendonça e de D. Elena de Vasconcellos. Entre 1831 e 1840 foi secretário da
câmara de Itapicuru e depois, vereador. Tinha a patente de capitão das tropas
de segunda linha, e aparece como fundador do primeiro teatro de Estância em
1858. † em 1871.
Pai de:
14. Diocleciano da Costa Doria. N. em 1841 em Itapicuru (BA) e † em 1920
no Rio. Médico, doutorado em 1869 na Faculdade de Medicina da Bahia; políti-
co ligado ao Partido Liberal, deputado provincial em Sergipe antes de 1880,
depois diretor de educação e higiene públicas em Santa Catarina, onde saneou
a capital e foi homenageado tendo seu nome dado a uma escola normal. Fixan-
do-se no Rio, teve grande clínica privada; era conhecido como Doloque, e a lista
dos que vão a seu sepultamento, em 1920, é um Who's Who da elite do Rio.
Casou-se em 1870 com D. Dária de Azevedo Moutinho, filha de Antonio da
Silva Moutinho e de D. Turíbia de Azevedo (filha do cônego Antonio Luiz de

10
Azevedo † 1848, e de sua common-law wife D. Jacinta Clotildes do Amor Divino,
ex-escrava ou filha de ex-escravos).
De seus filhos, Raul Moitinho da Costa Doria (1871-1948) foi comerciante
na praça do Rio, e Antonio Moitinho Doria (1875-1950), advogado notável,
fundou a OAB e presidiu o IAB. Raul é o avô paterno de Francisco Antonio Do-
ria.

A microfísica do poder na classe dominante brasileira desde sempre.

Microfísica? Bom, nome bonito para a gente descrever os mecanismos —


porque mecanismos são — pelos quais uma família torna-se poderosa, e assim
se mantém durante várias gerações. Começa num almoxarife, ao qual se se-
guem dois escrivães de alfândegas menores. E de repente um salto.
As gerações 1 - 3 mostram burocratas da província, personagens de im-
portância local, de voo curto.
A geração 4 é ocupada por um personagem considerável, o Doutor Mestre
Afonso, converso, físico-mor do reino, isto é, médico do rei e uma espécie de
ministro da saúde do reino. Como se dá este salto, de uma família de burocra-
tas da província para um ministro da corte portuguesa? Provavelmente através
de um casamento, que supomos fosse nos Lucenas, brilhante família de con-
versos, letrados e médicos.
Na geração 5, aparece o doutor Cristóvão da Costa, doutor em cânones pe-
la Universidade de Siena, e logo reitor da universidade, e mais em seguida,
chanceler-mor da Relação de Lisboa.
Chegam assim ao topo. Manterão poder e prestígio nas gerações seguintes?
Na geração 6 chegam ao Brasil. Fernão Vaz da Costa é um aventureiro, pe-
lo que dele sabemos e lemos na documentação coetânea; não é um letrado
como o pai e avô. Ganha um cargo burocrático elevado (seria o equivalente a
um ministério) ao se casar com Clemenza Doria, criada da rainha D. Catarina,
bastarda de Aleramo Doria, do ramo dos Dorias de Oneglia, comerciante na
praça de Sevilha, neto de Lodisio Centurione Scotto, o banqueiro genovês que
financiara Colombo, como está no documento de Assereto, de 1478.
Eram genoveses na origem, esses Dorias, de status nobre e titulado (a fa-
mília era principesca desde começos do século XVI) mas sua origem feudal já
fora há muito superada pelas suas atividades comerciais, que haviam enrique-
cido a Aleramo, um doublé de soldado de fortuna e mercador.
Pronto. Formado o sobrenome Costa Doria, passamos à nova geração. Do
personagem que a ocupa, Cristóvão da Costa, segundo do nome, ou Cristóvão
da Costa Doria, vemos a atitude quase blasée com a qual enfrenta o visitador da
inquisição, em 1592; não denunciara certo fato supostamente herético porque
não o julgara de importância, assim o declara. E — quase o vemos assim — o
inquisidor engole em seco e deixa-o ir “em boa hora.” Referido como fidalgo da

11
casa real, é o que dele em essência sabemos. Casa-se com D. Maria de Meneses,
dos Monizes da Bahia, filha de Jerônimo Moniz Barreto de Meneses.
Na geração 8 temos uma quebra na varonia, mas o status do grupo famili-
ar é mantido com o casamento de D. Antonia de Meneses dentro de família com
o mesmo perfil e background destes neobrasileiros: nobreza menor, mas anti-
ga, não titulada, e proeminência nos cargos da colônia.
Em seguida vem o que parece ser o patriarca da família. Leva um prenome
que é típico dos Moreiras antigos, radicados no Porto. Mas pega como apelido
um nome — prestigioso, e muito — que parece ter-lhe chegado por vias femi-
ninas, do casamento Moniz/Meneses, feito pelo Cristóvão da Costa II. Martim
Afonso de Mendonça casa-se três vezes, em famílias com prestígio na colônia. É
irmão de maior condição da Santa Casa de Salvador, e tem foro de fidalgo. Mas
não parece envolver-se nas miuçalhas da política local, do século XVII, embora
seja do partido, reacionário, do governador da época, o “Braço de Prata.” Deixa
o exercício eventual da vereança aos irmãos caçulas. É a geração 9.
Na geração 10, alguém (Gonçalo) que parece ser um fidalgo da campanha,
versão brazuca. Pobre, mas casado com uma descendente do Caramuru. Junto a
seu filho, Cristóvão III, senhor de engenho de fogo morto, casado com uma
prima, e mais o neto, Manuel Joaquim da Costa Doria, boiadeiro na região de
São Francisco do Conde. Este, casado com outra prima, que por sinal leva-lhe o
sangue do Padre Vieira, tio ancestral da linha.
Mas não estão decadentes. A presença simultânea de João Agripino da
Costa Doria, Guilhermino Álvares da Costa Doria, e José Rodrigues da Costa
Doria, na Câmara Municipal de Salvador em 1895; a carreira de João Agripino
como lente catedrático de clínica cirúrgica na Faculdade de Medicina local; e a
carreira de Rodrigues Doria, médico, depois deputado federal e presidente de
Sergipe; e aquela do primo Deocleciano da Costa Doria, mais outro médico,
deputado provincial em 1880 pelos liberais em Sergipe, e logo depois o sanea-
dor de Santa Catarina, durante a administração Rodrigues Chaves, tudo isso
mostra que a família se mostrava presente, e bem presente, no espaço da ad-
ministração da coisa pública.
Exercer o poder já é quase um vício nessa gente,
Esse foi um hors d'oeuvre. O desenvolvimento da tese, vocês encontram
nesse livro magnífico de nossos amigos.

Francisco Antonio Doria (UFRJ)


Rio de Janeiro, verão de 2018

12
APRESENTAÇÃO

Brasil: a ficção republicana


e a realidade do nepotismo e do familismo

PAULO PINHEIRO MACHADO

Esta obra consegue, ao mesmo tempo, oferecer um amplo panorama his-


tórico e social da família no Brasil e um conjunto de estudos com vários autores
focados em diferentes formas específicas de operação destas unidades de parentesco
em muitos meios sociais e em distintas partes e épocas de nosso país.
No ano de 2017, quando imagens veiculadas pelos canais de TV mostra-
vam o Deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR) conduzindo uma mala
recheada com 500 mil reais de propina da empresa JBS, o país foi sacudido por
mais um escândalo de corrupção. Rocha Loures era suplente de Deputado Fe-
deral e Assessor direto do Presidente da República, Michel Temer. Temer não
caiu e Rocha Loures está solto, mas o que chama a atenção em todo o episódio
é que este político é membro de uma extensa e antiga família paranaense, al-
guém muito enraizado na política estadual, com ramificações familiares nos
poderes executivo, legislativo e judiciário. A família Rocha Loures está no Pa-
raná antes desta Província ser emancipada. Entre seus ancestrais há Diretor de
Índios da Província, Deputados, Juízes e Desembargadores, oficiais das forças
armadas e titulares de Cartórios em vários municípios, gente que sempre este-
ve muito próxima ao aparelho de Estado e soube como poucos tirar todas as
vantagens e benefícios, como demonstra a pesquisa do professor Ricardo Costa
de Oliveira. Rocha Loures é, como dizem em Brasília, “gente de pedigree”, tal
como Aécio Neves e Rodrigo Maia. Ao longo da obra podemos perceber que
determinados vícios e estruturas parentais na política não acontecem apenas
nas regiões ditas “mais atrasadas” do país, mas, ao contrário, é característica
marcante mesmo nas regiões mais ricas e desenvolvidas.
No dia 17 de abril de 2016, um domingo, quando a Câmara dos Deputados
votou o Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, mesmo que ela não tives-
se cometido um crime de responsabilidade, boa parte dos 367 deputados que
votaram a favor de seu afastamento diziam que estavam votando “pela famí-
lia”. O golpe parlamentar de 2016 possui esta característica marcante, é um
verdadeiro retorno do poder oligárquico atualizado no Brasil. Não mais as

13
antigas oligarquias da Primeira República, baseadas na riqueza fundiária dos
Coronéis e seu poder de mando local e de intimação. Mas os beneficiários do
golpe de estado são oligarquias renovadas, algumas ainda fortemente presas
ao poder agrário, outras representando a grande mídia (dominada nacional-
mente por meia dúzia de famílias), empresas e bancos, que possuem muito
maior poder de mando e intimidação. As famílias dominantes são células desta
oligarquia financeira e rentista que abdicou de qualquer projeto de nação para
defender seus interesses mais imediatos. Ao longo do livro são vários os exem-
plos de políticos importantes que ramificam e reproduzem seu poder dentro
de diferentes órgãos do aparelho de estado, com forte presença no Judiciário e
Ministério Público, através do familismo e do nepotismo mais explícito. Há
alianças estratégicas entre famílias dominantes por meio de casamentos. São
processos de renovação e atualização das oligarquias.
Esta obra nos mostra que as famílias possuem diferentes formas sociais e
distintas configurações históricas. Não se trata de uma categoria dada, autoex-
plicativa, mas sim de uma forma de organização social que pode variar de
acordo com a classe social, a etnia e as condições históricas de existência. É um
problema de pesquisa que suscita reflexões de diferentes ordens.
Na Grécia Antiga, particularmente em Atenas, entre os séculos VI e V antes
de nossa era, quando esta polis tomou suas formas políticas mais amadureci-
das, um conflito se tornou evidente: a quem devia ser leal um membro da Po-
lis? À sua família ou às Leis do Estado? Isto era particularmente evidente
quando aconteciam crimes de sangue. A lei da família recomendava a vingança
direta e as Leis do Estado recomendavam um julgamento justo e, em caso de
condenação, uma punição pelo Estado, não pela família da vítima. O conflito
era algo novo, retratado pelas tragédias do teatro, impensável no passado,
onde o domínio político e social de uma nobreza de nascimento, baseada em
laços de fidelidade familiar gentílica, forçava a lealdade de seus membros à
família patriarcal nobre. O estado oligárquico era um mero instrumento de
exercício da vontade dos Arcontes, escolhidos entre as famílias mais importan-
tes da Ática.
No regime democrático ateniense, no entanto, o estado passou a ser geri-
do por todos os homens livres. Apesar deste grupo ser demograficamente pou-
co expressivo, reunia setores amplos da população. Além da antiga nobreza,
poderiam participar das assembleias, cargos públicos, tribunais e magistratu-
ras, plebeus das mais diferentes origens sociais, desde os ricos comerciantes e
armadores, até humildes artesãos e camponeses. A isonomia, o princípio da
igualdade de todos frente a lei, cimentou uma cultura cívica que procurou des-
colar os cidadãos de suas antigas estruturas de poder fortemente baseadas em
laços familiares extensos de domínio e subordinação.
Em Roma, durante o período de decadência das instituições republicanas,
é famoso o episódio do assassinato de Júlio César por vários senadores, inclu-

14
indo Marco Júlio Brutus, seu filho adotivo. Seria Brutus um ingrato, mau cará-
ter e traidor ou seria apenas mais um político preocupado em defender as
instituições republicanas, baseadas no princípio da impessoalidade? Embora a
República Romana não fosse uma democracia, suas instituições foram criadas
a partir do princípio da impessoalidade e da existência de magistraturas eleitas
com tempo de mandato reduzido, como uma reação ao poder despótico dos
primeiros Reis etruscos da cidade.
Esta obra não trata de um tema novo. No entanto, as análises e aborda-
gens são inteiramente atuais e inovadoras. Embora a base principal dos capítu-
los seja oferecida pela sociologia, a família é objeto de estudo interdisciplinar,
havendo capítulos focados em abordagens históricas, antropológicas e políti-
cas. São estudados os primeiros clássicos brasileiros que refletiram sobre o
assunto, como Oliveira Viana, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Há
um importante capítulo específico sobre setores médios ou classes médias e
suas formações familiares, além do debate sobre a família e o feminismo.
No caso do estudo das composições familiares das classes populares, de
pobres da cidade e do campo, tanto da atualidade, como do passado, o livro
também reserva importante espaço para formas distintas de organização fami-
liar, principalmente as que são baseadas em uniões de indivíduos sem casa-
mento civil ou religioso, ou em famílias chefiadas unicamente por mulheres.
São famílias historicamente existentes, mesmo no caso de famílias escravas,
que vem sendo descobertas e reconhecidas pelos pesquisadores nas últimas
décadas. Por séculos os escravos foram considerados “perdidos uns para os
outros, vivendo em promiscuidade”, mas estudos recentes, em várias partes do
país, revelam a existência de famílias que representavam tanto as lembranças
dos laços e heranças africanas, como esperanças num futuro de liberdade e
prosperidade. Frente ao discurso vindo do alto, sedimentado no senso comum,
de que ser “de família” no Brasil seria pertencer ou se subordinar a uma família
de proprietários brancos, ricos e bem posicionados politicamente, esta obra
revela outras formas de família que, se não dominam a política e a sociedade,
são meios fundamentais de sobrevivência e solidariedade entre as classes populares.
Enfim, a presente obra debate e analisa aspectos centrais da sociedade e
do ordenamento político e institucional brasileiro, onde a existência de práti-
cas de nepotismo, favorecimento e privilégios são verdadeiras barreiras à uma
necessária, urgente e profunda democratização da sociedade brasileira. Boa
leitura!

Florianópolis, 15 de fevereiro de 2018.


Prof. Paulo Pinheiro Machado
Departamento de História - UFSC

15
PREFÁCIO

Estudos sobre família, poder e riqueza no


Brasil: uma agenda de pesquisa
necessária e urgente

PEDRO HENRIQUE PEDREIRA CAMPOS

Recentemente aqui no Rio de Janeiro, durante um debate entre os candi-


datos à prefeitura da cidade, ao ser interpelado por um adversário ironicamen-
te se criaria a "bolsa-larica", como referência à agenda do seu partido a favor
da legalização das drogas, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) assim
respondeu ao deputado federal de extrema direita, Flávio Bolsonaro:

"Você não tem problemas. Você herda." 1

Flávio Bolsonaro é filho do neofascista Jair Bolsonaro. Essa família possui


vários integrantes na política, espalhados pela Câmara dos Deputados, Assem-
bleia Estadual do Rio de Janeiro, Câmara Municipal do Rio etc. Marcelo Freixo
já havia feito afirmações semelhantes para outras famílias que controlam os
meandros do sistema de poder no Rio, como os Garotinho, os Cabral, os Piccia-
ni e outros.
O caso citado acima ilustra como a dimensão familiar é importante na
construção de carreiras e estratégias políticas no Brasil. Não parece factível
proceder um estudo sobre a política brasileira sem levar em conta a questão
familiar, do parentesco e dos casamentos. Essa constatação aponta para a im-
portância e pertinência da obra que sai em um momento muito oportuno, em
meio a uma crise estrutural do sistema político brasileiro, em meio a golpe de
Estado e à escalada do Estado de exceção no nosso país. Mesmo com esse tur-
bilhão de rupturas, guinadas, recuos e episódios desconcertantes, não parece
ter havido alteração significativa do padrão familiar operado na política brasi-

1 Jornal Extra (2017). "Candidatos à Prefeitura do Rio, Freixo e Bolsonaro discutem sobre drogas em
debate". Endereço: https://extra.globo.com/noticias/rio/candidatos-prefeitura-do-rio-freixo-bolsonaro-
discutem-sobre-drogas-em-debate-20084623.html. Acesso em 23 de dezembro de 2017.

17
leira. Pelo contrário, com o caráter regressivo e todo o retrocesso vivido no
país nos últimos anos, a estrutura familiar que atravessa a forma como se faz
política no Brasil parece ter sido ainda mais revelada e reforçada, como alguns
dos exemplos trazidos pelo livro evidenciam.
Sendo assim, a coletânea constitui uma contribuição fundamental para
ajudar a compreender os percalços e desafios que temos adiante. Obra de se-
minal importância, esse livro comporta, para além do seu caráter de leitura
estritamente necessária para compreender os impasses que nos defrontam,
uma série de qualidades.
Em primeiro lugar, trata-se de fato de uma obra coletiva. Como fruto par-
cial de um curso de extensão e obra que decorre das atividades do Núcleo de
Estudos Paranaenses, o livro corresponde perfeitamente ao que se espera de
uma coletânea, tendo em vista que apresenta uma temática que aproxima e
perpassa os seus capítulos. Não se trata de uma colcha de retalhos com uma
temática guarda-chuva, como infelizmente é comum verificar em algumas das
publicações acadêmicas recentes, produzidas em ritmo fabril tendo em vista as
exigências de produção impostas pelas agências de fomento. Não é o caso des-
se livro, que tem coerência interna e é claramente fruto do amadurecimento de
uma discussão mantida coletivamente. Assim, a coletânea assume o caráter
real de uma obra coletiva com vigorosa coesão entre os capítulos que a constituem.
O segundo ponto alto do trabalho é o fato de os seus artigos atravessarem
questões que percorrem diferentes dimensões da temática da família e do pa-
rentesco. Assim, é problematizada inicialmente a definição de família e sua
etimologia. É tratada também a família patriarcal brasileira, a relação entre
família, poder e política, a especificidade da forma familiar nas camadas mé-
dias, nas classes populares e nas classes abastadas. É problematizada a socio-
logia da família e são recuperadas obras clássicas sobre o assunto. Reunindo
temáticas tão diversas no que diz respeito à questão tratada e, ao identificar
que a família constitui a principal instituição da formação do país - ao contrário
da importância da Igreja católica na América espanhola e da escola na América
inglesa -, esse livro desponta como uma obra de referência nos estudos sobre o
tema no Brasil.
Uma terceira qualidade altamente destacável do texto diz respeito ao ma-
terial utilizado. A obra retoma em seus diversos capítulos os estudos clássicos
sobre a questão, com referência às obras de Raymundo Faoro, Oliveira Vianna,
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, dentre outros.
No entanto, os autores da coletânea não se propõem a se deter apenas nesses
autores. Seguem além deles e percorrem uma bibliografia atualizada, que mui-
tas vezes revisa os postulados fundados pelos estudos clássicos. E a atualização
do trabalho não se restringe às referências utilizadas, mas às próprias temáti-
cas abordadas. Sendo assim, são tratados assuntos renovados dos estudos e da

18
bibliografia, como o debate sobre a família escrava, a questão do gênero e sua
relação com a instituição familiar, o crescimento das famílias uniparentais nas
classes populares, dentre outras controvérsias.
Relacionado a esse ponto positivo, é digno de nota a alta erudição do livro.
Ele não comete um defeito grave e desafortunadamente comum em alguns
estudos recentes, que é o de desenvolver uma pesquisa a partir de uma tábula
rasa, acessando uns poucos estudos e partindo para o caso a ser trabalhado. No
caso desta coletânea, são acessadas as diversas obras clássicas, tantos outros
estudos mais recentes sobre as diferentes questões estudadas e, em seguida,
são feitas as considerações, análises e aprofundamentos sobre os temas elen-
cados. Assim, a obra tem a postura correta e academicamente justa de não se
propor a "inventar a roda", mas, acessando estudos já realizados, avança no
conhecimento e na elaboração de uma agenda de trabalhos a ser desenvolvida
sobre a temática da família no Brasil.
É importante frisar também como o livro suscita o caráter inevitavelmen-
te interdisciplinar da abordagem do seu objeto. Acessando textos de autores de
diferentes formações universitárias, o livro indica como o estudo da família e
suas relações com o poder só pode ser fruto de um esforço coletivo que abran-
ge os saberes acumulados pelas diferentes tradições disciplinares das Ciências
Humanas. Assim, ao recorrer a obras de sociólogo(a)s, historiadores(a)s, cien-
tistas políticos(a)s, antropólogo(a)s, dentre outros especialistas, o(a)s auto-
res(a)s dos capítulos do livro mostram como a temática da família constitui um
ponto de encontro das pesquisas de diferentes áreas das Humanidades, sendo
essa uma das riquezas da obra e da temática problematizada.
Por fim, há de se destacar a leveza do texto e facilidade de leitura do livro.
Como foi derivado de um curso de extensão, muitas vezes a linguagem não se
reveste estritamente das formalidades acadêmicas, o que de forma alguma
incorre em qualquer prejuízo à qualidade e riqueza da análise. Pelo contrário,
transforma a leitura em algo mais agradável e, às vezes, divertido, tendo em
vista as ilustrações e referências estabelecidas.

***

Mas as contribuições do livro não se esgotam aí. Para além das indicações das
qualidades do trabalho supracitadas, resolvemos problematizar em separado
duas outras que parecem fundamentais, quais sejam: a da interface da questão
familiar com a dinâmica das classes sociais e a perspectiva do trabalho de es-
tabelecer uma pauta de pesquisas.
Em relação ao primeiro desses aportes que resolvemos analisar em sepa-
rado, é extremamente louvável o fato de que o livro não desloca a abordagem

19
das famílias do conceito de classes sociais. Pelo contrário, em vários capítulos
do livro as duas categorias são aproximadas e uma não leva à exclusão da ou-
tra. Isso parece ir contra a onda dominante dos estudos sobre família, que,
salvo engano, afastam-se da matriz teórica do materialismo histórico. A im-
pressão que temos é que a maioria dos trabalhos que abordam a relação das
famílias com o Estado e o poder o fazem por uma orientação teórica de cunho
mais próxima do liberalismo, calcada sobretudo na excepcional obra de Max
Weber, sugerindo conceitos como patrimonialismo e outros.
Sem afastar essa importante reflexão desenvolvida pela matriz liberal, os
autores do livro incorporam também as teorizações mantidas pelo marxismo
para compreender o fenômeno das famílias na política brasileira de hoje. Essa
postura por parte dos autores nos parece louvável e mesmo fundamental para
entender a questão. Isso porque, ao nosso ver, não podemos pensar a impor-
tância que as famílias ainda dispõem nas relações de poder e riqueza nas soci-
edades contemporâneas sem levar em questão o aspecto da herança e do con-
trole da propriedade privada nas sociedades capitalistas. A família é importan-
te ainda hoje no Brasil em boa medida porque se trata de uma instituição que
abrange a relação de propriedade, que é justamente o fundamento que dife-
rencia as classes sociais. É pelo mecanismo da herança que é transmitida a
propriedade privada e isso se faz sobretudo no meio familiar. A propriedade
dos meios de produção, por exemplo, que caracteriza a classe dominante, é
repassada no seio familiar mediante a instituição da herança. Da mesma forma,
o casamento dispõe de uma posição singular nas sociedades capitalistas. Como
disseram Karl Marx e Friedrich Engels no Manifesto Comunista: "A burguesia
rasgou o véu comovente e sentimental do relacionamento familiar e o reduziu
a uma relação puramente monetária." 2 Dessa forma, para além das alianças
políticas, o controle da propriedade privada parece uma questão não menor
para entender a dinâmica dos casamentos, principalmente nas famílias mais
ricas e poderosas, como vários diversos exemplos citados nos capítulos do
livro mostram.
Dentro da vasta obra original marxiana, o texto que mais parece trazer
elementos sobre a questão abordada no presente livro é o de Friedrich Engels,
A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Na obra, baseada
nas anotações críticas de Marx sobre o livro de Lewis Morgan sobre a socieda-
de antiga, Engels relaciona a origem da família, da propriedade privada e do
Estado. Para além de elementos evolucionistas e deterministas do texto, que
expressam um momento mais problemático da trajetória da obra marxiana -

2
MARX, Karl; ENGELS, Frederich (1988 [1848]). O Manifesto Comunista 150 Anos Depois. Tradução
de Victor Hugo Klagsbrunn. Rio de Janeiro / São Paulo: Contraponto / Fundação Perseu Abramo, 1988,
p. 10.

20
pós-Marx -, o livro tem o mérito de atentar para diferentes formas históricas da
família que existiram nas sociedades antigas. O estudo mostra como a família é
uma instituição criada pelo homem e que, com a diferenciação das classes soci-
ais, começa a assumir diferentes formas, conforme as diferentes classes sociais
que compõem a sociedade. Assim, Engels indica como em sociedades primiti-
vas havia classes sociais dominantes que praticavam a poligamia, enquanto
classes subalternas praticavam a monogamia 3. O mesmo livro indica como a
opressão de gênero advém da opressão de classe e como as classes sociais
nascem com a divisão do trabalho, desenvolvida e reforçada com a separação
entre campo e cidade. São indicadas formas de alta igualdade social e demo-
cracia nas formações sociais antigas, o que Engels chama de comunismo primi-
tivo. À medida que as sociedades foram se complexificando, criando mais divi-
são social do trabalho, classes sociais e especializações, mais importantes se
tornaram a família e o Estado. Por fim, o livro traz elementos interessantes ao
destacar como o Estado nasce justamente a partir da consolidação das classes
sociais. O Estado dispõe da função de garantir a exploração e a dominação de
classe, sendo instrumento de poder da classe dominante sobre as classes su-
balternas. Assim, por exemplo, o Estado romano se gestou a partir de uma
série de leis e regras, dentre as quais uma fundamental era a lei de herança,
que garantia a perpetuação do controle da propriedade privada em proveito de
algumas famílias em detrimento de outras 4.
Apesar de certas posturas teóricas pouco dialéticas e do fato de que o co-
nhecimento sobre essas sociedades primordiais se desenvolveu bastante desde
então, os apontamentos de Engels no livro podem ajudar no estudo da questão
da família, tendo em vista que essa constitui a principal obra original do mate-
rialismo histórico que se debruça sobre o tema. Como o autor pontua, a origem
da família e suas diferenciações decorrem da própria dinâmica da divisão soci-
al do trabalho, das classes sociais e da origem do Estado, enquanto agente que
garante a dominação de classe. Sendo assim, pensar a família relacionada à
dinâmica das classes sociais é possível, e é necessário atualizar a obra marxia-
na, pensando como se dá o fenômeno da família nas sociedades capitalistas
contemporâneas e particularmente na brasileira de hoje.

3
Interessante notar como Gramsci notaria um dualismo estrutural da forma do casamento na sociedade
norte-americana nos anos 1920 e 1930 no ensaio clássico "Americanismo e fordismo". Ver GRAMSCI,
Antonio (2001 [1934]). Cadernos do Cárcere. Vol. 4: Temas de cultura. Ação católica. Americanismo e
fordismo. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
4
ENGELS, Friedrich (2000 [1884]). A Origem da Família, Propriedade Privada e do Estado: trabalho
relacionado com as investigações de L. H. Morgan. 15ª ed. Tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil.

21
***

Além da contribuição da presente obra com a indicação da viabilidade da


conjugação da utilização da categoria de família com o aparato teórico-
conceitual do materialismo histórico, o livro também se mostra imensamente
fértil ao apontar para um método de trabalho altamente promissor e aplicável
a novos estudos. Assim, a recomendação de Ricardo de Oliveira, "Procure onde
está a família", parece constituir uma chave de pesquisa que permite a multi-
plicação dos trabalhos sobre o assunto. As considerações realizadas nos capítu-
los, para além da contribuição do conhecimento produzido e apresentado, abre
janelas para o encaminhamento de uma agenda de investigações profunda-
mente profícua e com alto poder explicativo sobre as questões brasileiras atu-
ais e pretéritas.
Nesse sentido, parece particularmente significativa a forma como alguns
dos capítulos do livro abordam e mesmo dissecam as relações das famílias com
o poder no estado do Paraná, com suas entradas no parlamento, no judiciário,
no controle das maiores empresas do estado etc. Nota-se uma clara possibili-
dade de reprodução de estudos com viés similar para outras regiões do país. A
nós parece particularmente necessário e urgente um conjunto de estudos co-
mo esses para entender o Brasil hoje e como o poder dessas famílias se renova
com as diferentes conjunturas históricas. Enfim, parece que precisamos de
estudos sobre essa temática de forma sistemática e metodologicamente cuida-
dosa para outros estados do país.
A dinâmica das famílias e seu controle sobre empresas já foi trabalhada
em diversos estudos. Assim, no âmbito da história econômica, o autor norte-
americano David Landes escreveu pouco antes de morrer o livro Dinastias.
Nessa obra, o historiador analisa a trajetória de algumas das famílias proprie-
tárias mais poderosas do capitalismo internacional, como os Baring, os Roths-
child, os Ford, os Rockefeller, os Morgan, os Toyoda, os Agnelli, os Peugeot,
dentre outras. O livro mostra como ainda hoje as empresas familiares são po-
derosas e importantes no capitalismo mundial e como o poder das famílias se
faz prevalecer sobre a estrutura de propriedade das sociedades anônimas exis-
tentes no mundo5.
Nessa linha, tentamos para a formação econômico-social brasileira dar a
nossa humilde contribuição com a coletânea Donos do Capital: a trajetória das
principais famílias empresariais do capitalismo brasileiro. Na obra, um esforço
coletivo para tentar entender a história de algumas das principais famílias do
empresariado brasileiro, abordamos casos como os Guinle, os Mauá, os Klabin,

5
LANDES, David S (2007). Dinastias: esplendores e infortúnios das grandes famílias empresariais.
Tradução de Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier.

22
os Gerdau, os Marinho, os Odebrecht, os Moreira Salles, os Setúbal, os Sarney,
dentre outros. Notamos como a estrutura familiar é um elemento altamente
relevante da forma como assume o capitalismo no Brasil. Verificamos também
outros fenômenos, como a centralidade do Estado e do fundo público para o
impulso do poder econômico e político dessas famílias, o apoio depositado e o
fortalecimento da maioria delas durante a ditadura, seu elevado caráter orga-
nizativo etc.6.
A nossa própria pesquisa desenvolvida sobre as empreiteiras brasileiras
durante a ditadura poderia ser em certa medida repensada a partir das formu-
lações efetuadas no presente livro. Assim, a leitura desta obra nos fez pensar
acerca da importância que têm as relações familiares para a própria trajetória
de algumas das principais empresas de engenharia do Brasil ao longo do tem-
po. Dessa forma, conforme pontuamos no livro Estranhas Catedrais, quando a
Camargo Corrêa foi fundada, em São Paulo, em 1938, um dos sócios majoritá-
rios, Sylvio Brand Corrêa, era nada mais nada menos do que cunhado do então
governador interventor do estado de São Paulo, Adhemar de Barros. Isso ga-
rantiu à empresa conduzida por Sebastião Camargo, sócio preponderante da
construtora, muitos contratos e um crescimento inicial bastante significativo. É
digno de nota também que Sebastião Camargo se casou com Dirce Penteado,
integrante de uma poderosíssima família da burguesia cafeicultura e industrial
paulista. De modo similar, é notável a relação de parentesco de Cesar Matta
Pires no processo de ascensão meteórica da sua empresa, a baiana OAS, já nos
seus primeiros anos de funcionamento. Pires vinha a ser genro de Antonio
Carlos Magalhães, que cumpria a função de presidente da Eletrobrás - uma
notória contratadora dos serviços de engenharia das empreiteiras - no ano de
fundação da empresa, em 19767. Esses casos ilustram como as relações famili-
ares parecem dispor de importância não menor na dinâmica dos sucessos e
fracassos empresariais no segmento das empreiteiras de obras públicas e ob-
viamente também em outros setores da economia.
Na condução dessa agenda de pesquisa, entendemos que certas pontua-
ções devem ser feitas. Talvez algumas sugestões possam ser incorporadas para
a aplicação dessa pauta de estudos, que esperamos que seja confirmada com
novas investigações. Assim, em primeiro lugar, parece-nos que é de suma im-
portância nas pesquisas sobre famílias, riqueza e poder no Brasil levar em
conta as condicionantes históricas específicas de cada período e a historicidade
de cada contexto. Assim, existe um risco nos estudos das famílias - não-

6 CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta (org.) (2017). Os Donos do
Capital: a trajetória das principais famílias do capitalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Autografia.
7
CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira (2014). "Estranhas Catedrais": as empreiteiras brasileiras e a
ditadura civil-militar, 1964-1988. Niterói: Eduff.

23
presente neste livro, mas muito comum em outros que se prendem mais às
noções teóricas de cunho liberal - de se entender a História como uma grande
continuidade, marcada pela perpetuação dos mesmos grupos sociais e familia-
res e também pela permanência de alguns agentes em sua relação com o Esta-
do, sem renovação, conflitos ou rupturas conforme os diferentes momentos
históricos vividos. Dessa forma, parece fundamental abordar as diversas for-
mas históricas e sociais que as famílias assumiram em diferentes contextos.
Parece relevante conhecer as distintas especificidades históricas das formas
assumidas pelas famílias no Brasil para compreender melhor a própria socie-
dade. Como é indicado nesta obra, "a família é sempre uma disputa política,
histórica e conceitual."
Outra anotação a ser feita sobre essa pauta de estudos diz respeito à im-
portância de se agregar o estudo das famílias a outros fenômenos sociais espe-
cíficos. Assim, as famílias se estruturam e se inscrevem nas agências do Estado
em claras estratégias formuladas por seus líderes, com integrantes no parla-
mento, no Judiciário e outras instâncias do aparato estatal, conforme indicado
no livro. No entanto, para além das famílias, outra forma de organização das
classes sociais se dá no âmbito da sociedade civil, nas formas associativas típi-
cas, como sindicatos, federações, partidos e organizações diversas de frações e
classes, como o empresariado e outros grupos sociais.
Assim, na agenda específica de estudo sobre a classe dominante, parece-
nos que cabe combinar o estudo das famílias com o conhecimento das formas
organizativas do empresariado no âmbito da sociedade civil. Para além das
famílias, esses agentes estão organizados em entidades chamadas nos estudos
lastreados na obra de Antonio Gramsci como os aparelhos privados de hege-
monia ou os partidos8. Um estudo notório nesse sentido é a obra seminal de
René Armand Dreifuss, que se debruçou sobre as formas associativas do em-
presariado brasileiro - em especial na sua fração internacional e associada ao
capital estrangeiro - às vésperas do golpe de Estado de 1964, mostrando como
esses agentes se juntaram a oficiais militares e agentes forâneos para derrubar
a democracia e impor um regime que atendesse aos seus interesses e projetos9.
Outra anotação à presente obra diz respeito à possibilidade aberta de se
comparar o padrão visível no Brasil com outras formações econômico-sociais
capitalistas análogas à nossa. Assim, a importância das famílias para a compre-
ensão da dinâmica política, do controle do poder e da riqueza não parece ser

8
Ver GRAMSCI, Antonio (2001). "Caderno 13 (1932-1934)". In: Cadernos do Cárcere. Vol. 3: Maquia-
vel. Notas sobre o Estado e a política. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira
9 DREIFUSS, René Armand (1981 [1981]). 1964: a conquista do Estado; ação política, poder e golpe de
classe. 3ª ed. Petrópolis: Vozes.

24
uma simples peculiaridade brasileira. Apesar de assumir formas específicas e
particularidades no Brasil, tendo em vista nossa formação histórica e caráter
particular do nosso capitalismo - por exemplo, altamente desigual, mais que
outros -, a relevância das famílias para a estrutura do poder, da propriedade e
da riqueza parece ser algo percebido também em outras sociedades. Sendo
assim, uma possibilidade que nos parece altamente frutífera é a do diálogo com
estudos similares feitos no exterior, com comparação dos padrões e tendências
encontrados em cada meio social, com indicação e explicação acerca das suas
semelhanças e diferenças. Esse parece constituir um campo aberto de estudos,
bastante ousado e trabalhoso, é certo, mas da mesma forma frutífero nas pos-
sibilidades de resultados e poder de alcance.
Por fim, para além dessas anotações e sugestões de caminhos por onde
derivar as pesquisas com base na categoria de família, o presente livro não é
uma obra aberta por deficiência, mas sim pela sua qualidade. Ao mesmo tempo
em que avança muito sobre diferentes questões, trazendo contribuições fun-
damentais sobre o tema, parte da riqueza do livro reside justamente nas possi-
bilidades que ele abre para novos estudos. O leitor tem em mãos uma obra de
referência nos estudos sobre família, poder e parentesco no Brasil. Ademais do
conhecimento acumulado, essa obra pode e deve ser usada para se proceder
novos estudos, de modo a perceber a dinâmica familiar presente nas estrutu-
ras de poder e manutenção da riqueza da sociedade brasileira. Entendemos
que essas pesquisas permitirão que conheçamos a forma como se dá o peso da
família sobre a dinâmica das relações sociais e da manutenção dos privilégios e
concentração de renda e poder no nosso país. Com esse conhecimento pode-
remos propor e demandar a superação desses mecanismos, que inibem a cons-
trução de uma sociedade mais igualitária, justa e democrática. Sendo assim,
poderemos superar essa estrutura oculta semelhante às castas que prevalece
na sociedade brasileira e que assim foi descrita e cantada por Chico Buarque
no ano de 1964: "Pedro pedreiro penseiro esperando o trem / Manhã parece,
carece de esperar também / Para o bem de quem tem bem de quem não tem
vintém [...] / E a mulher de Pedro, esperando um filho pra esperar também" 10.

Pedro Henrique Pedreira Campos (UFRRJ)


Rio de Janeiro, verão de 2017/2018

10
HOLANDA, Francisco Buarque de (1964). Letra da música Pedro Pedreiro .

25
CAPÍTULO 1

COMO DEFINIR FAMÍLIA?

RICARDO COSTA DE OLIVEIRA

A intenção do curso de extensão “Família, parentesco e política no Brasil”1


é chamar atenção para se entender a importância da FAMÍLIA para a compre-
ensão do Brasil contemporâneo.
Para iniciarmos destacamos a importância de dois textos que estão em in-
glês e ainda não foram traduzidos para o português. O primeiro texto é de
1951, de Antonio Candido a respeito da família brasileira e está no livro “Bra-
zil: portrait of half a continent” [Brasil: retrato de um meio continente]2. Um
livro da década de 1950 que foi uma coletânea de textos acadêmicos, culturais
e científicos que procuravam explicar o Brasil para os estrangeiros, principal-
mente para os Estados Unidos. É um texto bastante clássico. Ele chegou a ser
traduzido para o português, na época do mimeógrafo a álcool, na década de
1980, quando o texto rodou com bastante assiduidade. Antonio Candido tinha
formação em Sociologia e depois se dedicou ao campo da literatura e à crítica
literária, mas ele fez uma interessante síntese da tradição histórica, sociológica
e antropológica sobre o conceito de família. Antonio Candido é o único sobre-
vivente3 de uma geração que conviveu no auge da Universidade de São Paulo.
O outro texto, também em inglês, mas altamente recomendável é de Emi-
lio Williens publicado em 1953, “The Structure of the Brazilian Family” [A es-
trutura da família brasileira]4, publicada na coletânea “Social Force” [Força

1
Palestra de abertura do curso de extensão organizado pelo NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses da
UFPR) realizada em 30 de março de 2016.
2
CANDIDO, Antonio. “The Brazilian Family”. IN: T. L. Smith, & A. Marchant (orgs). Brazil: portrait
of half a continent. New York: The Dryden Press, 1951. p.291-312.
3
A palestra foi realizada dia 30 de março de 2016. Antonio Candido faleceu em 12 de maio de 2017.
Consultar Professor Antonio Candido morre aos 98 anos (Jornal da USP, 12/05/2017). Disponível em
http://jornal.usp.br/universidade/professor-antonio-candido-morre-aos-98-anos/. Acesso 18.julho.2017.
4
WILLEMS, Emilio. “The Structure of the Brazilian Family”. IN: Social Forces 31, 4: 339-345, May
1953. Oxford University Press

27
Social], disponível em pdf5. Encontram-se muitas críticas e resenhas sobre esse
texto. É um texto introdutório que apresenta o conceito de família no Brasil.
A questão central, que é também um dos temas da agenda política da atua-
lidade, é COMO DEFINIR FAMÍLIA? Tanto na contemporaneidade, onde hoje
em dia é uma grande discussão sociológica, jurídica, política, antropológica,
filosófica, como especialmente no passado, durante a gênese do Brasil. A nossa
leitura, a nossa visão, conceitualmente, ela é muito claramente definida – famí-
lia é qualquer forma de reunião social em que exista um conjunto de relações
pessoais, de relações sociais, de afeto, de afinidade e de relacionamentos, sejam
eles quais forem dentro de um pacto social que se estabeleça nessa própria
unidade familiar.
Então vejam que é um conceito extremamente flexível. É a discussão jurí-
dica da contemporaneidade: família é o que você acha que vale socialmente
com o determinado respeito de seus integrantes como família. Essa é uma vi-
são que pode ser também considerada contemporânea ou pós-moderna, mas é
aquela visão que nós encontraremos em 500 anos de Brasil.
Qual é afinal o conceito de família na tradição das diferentes formações
indígenas encontradas no século XVI? Essa é uma questão de etnografia, da
Antropologia. Cada grupo indígena, cada unidade linguística, cada unidade
cultural que nós denominamos de ameríndio, possuíam suas próprias concep-
ções, suas próprias dinâmicas e o que é extremamente importante, suas pró-
prias relações de poder. Então, toda a imensa demografia indígena, que é cons-
titutiva do Brasil, ela possuía já uma flexibilidade na definição do que era uma
família, do que era educação infantil, do que eram as fases e rituais da vida
social, com grande liberdade e autonomia. E o que é mais importante, nós
sempre temos o grau zero da família brasileira quando nós acompanhamos o
encontro do Estado português, do Estado ibérico com as suas instituições, com
esses grandes grupos nativos. É o grau zero da origem da moderna família
brasileira do início do século XVI. Ela, a família, existe sempre com muita auto-
nomia, com muita liberdade, com muita flexibilidade nas suas definições.
Temos na tradição teórica brasileira pré-científica as genealogias brasilei-
ras que são um primeiro grande exercício para compreendermos o Brasil. Es-
sas genealogias já apresentam esse conceito de família, de prosopografia, de
biografia e de trajetória de maneira rudimentar. Quando se pega qualquer
grande genealogia brasileira já temos um estudo de redes sociais, culturais,
políticas e econômicas em diagramas extremamente complexos e que surgiram
do encontro da mulher nativa com o homem português. Nessa relação há segu-
ramente desigualdade, divisão sexual e expansão demográfica fundada na vio-

5
Disponível em https://www.jstor.org/stable/2573069?seq=1#fndtn-page_scan_tab_contents. Acesso
18.julho.2017.

28
lência. Outras vezes essa relação foi consensual também ajudando no início da
demografia brasileira.
Quais são as trajetórias iniciais das primeiras genealogias brasileiras?
Quando pensamos, por exemplo, no centro-sul do Brasil falamos da própria
Genealogia Paulistana, a genealogia de João Ramalho com “Bartira”, a filha de
Tibiriçá. Encontramos a mulher indígena dentro da lógica matrimonial local
dos grandes grupos indígenas. Os Tupi eram matrilocais, o que significa que
havia um poder doméstico residencial estruturante das mulheres quando os
homens se deslocavam para residir na casa delas. A matrilocalidade era uma
característica morfológica dos grupos indígenas Tupi. Encontramos isso nos
registros de todos os cronistas do período colonial e na obra antropológica
inicial de Florestan Fernandes6.
Isso é muito importante porque agora no século XXI temos novas ferra-
mentas para entendermos a demografia, as genealogias e os processos de con-
tinuidade. A partir da estrutura inicial de João Ramalho e de Tibiriçá temos o
ponto de partida das famílias de São Paulo de Piratininga. Eles são os “pais
fundadores” de todo o bandeirantismo paulista que vai conquistar e colonizar
o centro-sul. Aqui também teremos estruturas matrilocais que podem ser pen-
sadas dentro dessa primeira formação. Além do mais, logo no início do século
XVI temos que reconhecer os estudos de estratificação social porque a socie-
dade colonial ela é pesadamente diferenciada. Ainda hoje o conceito de família
depende diretamente do locus na estrutura social. Você pode formar a família
que quiser, ainda hoje é como no passado: chegou em alguém, gostou, vibrou,
monta tua família! Depois escolhe se vai agregar filhos biológicos ou adotivos,
tudo isso é um pacto social e político que se estabelece.
Esse pacto é também a questão inicial do Brasil, da mulher indígena e do
homem que representa as estruturas institucionais do aparelho de Estado. A
mulher sempre manda e comanda. Se esse poder é explícito ou reconhecido
oficial, jurídica, institucional e politicamente é uma outra questão, mas não há
dúvidas que a mulher manda. Quando observamos o universo doméstico, jun-
tando todas as suas energias ou outras quaisquer você acha que a mulher
manda ou não? Quando vemos as questões das primeiras genealogias perce-
bemos como a mulher indígena é estruturante. Observamos que muitas vezes

6
Refiro-me à dissertação de mestrado sobre “A Organização Social dos Tupinambá”, defendida em 1947
pela Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) sob orientação de Herbert Baldus, e à sua tese de
doutoramento sobre “A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá”, defendida em 1951 pela
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo sob orientação de
Fernando de Azevedo. Esses trabalhos foram, posteriormente, publicados em livros: Florestan Fernan-
des, A organização social dos Tupinambá, São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949 (2. ed., São
Paulo, Livraria Pioneira Editora/Editora da Universidade de São Paulo, 1970; São Paulo, HUCI-
TEC/Editora UnB, 1989); idem, A função social da guerra na sociedade Tupinambá, São Paulo, Museu
Paulista, 1952 (2. ed., São Paulo, Livraria Pioneira Editora/Editora da Universidade de São Paulo, 1970).

29
as linhas de poder seguem a dinâmica matrilocal. Por exemplo, vamos ver um
dos maiores nomes, não só do Brasil, mas do império português: o Marquês de
Pombal7. Se seguirmos a mãe dele, a avó materna, a bisavó materna, naquilo
que a moderna genealogia genética chama da linha mitocondrial ela é ameríndia.
Mas o que é uma linha mitocondrial? É a linha exclusivamente materna e
feminina. É uma questão da biologia molecular. Quando ocorre a concepção da
vida humana o embrião apenas preserva a mitocôndria materna. O que aconte-
ce com a mitocôndria paterna no processo da reprodução (a não ser em um
caso excepcional de uma síndrome)? Ela é destruída, de modo que há uma
continuidade materna da linhagem das mães, avós maternas e bisavós maternas.
A linhagem mitocondrial do Marquês de Pombal, o todo poderoso do sécu-
lo XVIII na gestão do império português é uma linha pela genealogia ameríndia
de Pernambuco. É aquela mesma linha dos fundadores de Pernambuco, Jerô-
nimo de Albuquerque com a mulher indígena (“Tabira”, filha do cacique dos
Tabajará), seguindo o modelo Tupi de São Paulo de Piratininga de João Rama-
lho (português casado com “Bartira”, filha do cacique dos Tupiniquim chamado
Tibiriça). Também na Bahia, Caramuru (o português Diogo Alvares Correia) e
sua mulher indígena “Paraguaçu” (filha do cacique dos Tupinambá). O casal
Caramuru e Paraguaçu forma a primeira estrutura familiar colonial de Salva-
dor. Depois essa estrutura é ampliada na conquista territorial do Recôncavo
Baiano e em seguida para o resto da Bahia, de modo que a linhagem principal
em termos de estruturas familiares baianas é chamada da Linhagem da Família
de Caramuru.
Um detalhe que é bastante importante ressaltar – muitas vezes os nomes
dessas mulheres indígenas - Tabira, Paraguaçu, Bartira - apresentam dúvidas
de interpretação e são pontos de apagamento, as mulheres muitas vezes foram
invisibilizadas ou esquecidas, mas elas existiram! Essa conduta de apagamento
da importância da mulher nos processos sociais não ocorre apenas com a mu-
lher indígena, mas da mesma maneira vemos acontecer com a história da mu-
lher ao longo de boa parte das narrativas ocidentais.
Boa parte dos “homens bons” e da “nobreza da terra” local do período co-
lonial, da “nobreza imperial” e da “elite republicana” são originários dessas
primeiras linhagens resultantes da união do português com a mulher indígena.
Trazendo isso para a nossa atualidade: se colocamos a questão que afinal a
sociedade brasileira é uma das mais desiguais do mundo, devemos perceber
que ela é extremamente desigual por ser uma sociedade com grandes inércias,

7
Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782) foi secretário de Estado do Rei-
no durante o reinado de D. José I (1750-1777), sendo considerado, ainda hoje, uma das figuras mais
controversas e carismáticas da História Portuguesa.

30
com grandes continuidades. Todas as pesquisas, sejam elas de renda, patrimô-
nio, status, benefícios educacionais, etc., seguem em boa parte a dimensão da
reprodução familiar. É aquele tema dentro dessa discussão de família: só en-
tenderemos a estrutura social brasileira se a compreendermos como
uma estrutura genealógica.
Temos um jogo das continuidades. Observando a Genealogia Paulistana:
João Ramalho e Tibiriça. Aliás, um ponto interessante aqui: onde está enterra-
do Tibiriça? Se vamos à megalópole que é São Paulo, vemos quilômetros e
quilômetros de prédios, asfalto, concreto, cimento, favelas, mas o que encon-
tramos no centro da cidade, na Catedral da Praça da Sé, em seus subterrâneos,
na sua cripta? O túmulo de Tibiriça. Agora reflitam: quando vamos para a Eu-
ropa quem encontramos enterrados em suas principais catedrais? Por exem-
plo, na Abadia de Westminster em Londres? Lá está enterrada a alta nobreza, a
alta realeza, as figuras de grande destaque na história inglesa. Por quê? Porque
são formas simbólicas, rituais do poder e das prosopografias (biografias coleti-
vas) que marcam aquilo que é incomum em um grupo social no poder ou nas
performances. Então, Tibiriça enterrado na Cripta da Sé em São Paulo é muito
significativo, pois é a partir dele que se formam as principais famílias paulistas
que irão compor a rede de bandeirantes de São Paulo. Afinal, são os bandeiran-
tes que vão conquistar, colonizar e realizar incursões que formam o que hoje
temos como São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande do
Sul, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e esse núcleo de poder vai ser
transmitido.
Da mesma maneira ocorre em Pernambuco com a gênese e a saga da Fa-
mília Albuquerque, de modo que é uma das famílias brasileiras ainda hoje com
maior poder e com várias linhas genealógicas. Uma dessas linhas é esta que
discutimos – a linha mitocondrial. Essa é uma realidade genética, uma realida-
de biológica. Se fizermos uma pesquisa de genealogia genética da população
brasileira, atualmente com 205 milhões de habitantes8, qual é a proporção
mitocondrial ameríndia? Claro que não foram todos testados, são amostragens,
levantamentos estatísticos, mas temos algo em torno de 1/3 dos brasileiros e
das brasileiras, ou seja, mais de 60 milhões de pessoas com DNA mitocondrial
de origem ameríndia. E essas brasileiras o continuarão transmitindo.
Daí nos perguntamos: os nossos nativos indígenas das primeiras nações
desapareceram ou estão com suas linhagens miscigenadas e integradas na
moderna população brasileira? Estão miscigenadas e integradas na população

8
População brasileira cresce 0,8% e chega a 206 milhões (Portal Brasil, 31/08/2016). Disponível em
http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2016/08/populacao-brasileira-cresce-0-8-e-chega-a-206-milhoes.
Acesso 18.julho.2017.

31
brasileira e muitas delas são linhas do antigo poder do grupo Tupi. Quando
observamos alguns desses nomes, como os de Pernambuco, a Família Albu-
querque – basta levantar ainda hoje, quase 500 anos depois da implantação
das capitanias hereditárias, e veremos que não dá para entender boa parte do
judiciário, da advocacia, das estruturas de poder, mesmo aqui no Paraná, sem
incluirmos famílias como Cavalcanti de Albuquerque, Albuquerque Maranhão,
por exemplo. Vemos hoje nos deputados estaduais do Paraná um plantel de
legisladores de alta nomeada. Por exemplo, quando pegamos o deputado esta-
dual Alexandre Maranhão Khury, de onde vem o sobrenome Maranhão? Algum
tempo atrás, o presidente da OAB/PR era o advogado Edgard Luiz Cavalcanti
de Albuquerque (triênio 1998/2000). Quantos advogados, procuradores, pro-
motores, senadores e políticos com o sobrenome Maranhão Albuquerque en-
contramos?
Quando observamos a Genealogia Paulistana encontramos os primeiros
“homens bons”, membros da nobreza da terra, proprietários de escravos e
donos das primeiras grandes sesmarias da região de Curitiba. No período colo-
nial havia o estatuto da nobreza que tinha um conceito de família bem definido,
extremamente rigoroso feito a partir das ordenações do reino português – as
Ordenações Filipinas. Qual era o único conceito legal, legítimo, formativo e
oficial de família de acordo com as Ordenações Filipinas vigentes no Antigo
Regime, no século XVII? Qual era o único matrimônio legítimo que transferia
status, a propriedade e a chancela dos privilégios? – Era o casamento realizado
na Igreja Católica.
Observando esse antigo conceito de família do mundo social dos fundado-
res das principais vilas do Brasil Colônia: algum membro das igrejas evangéli-
cas neopentecostais, os mais moralistas como o Malafaia e o Bolsonaro, eles
entrariam no conceito tradicional de família do Antigo Regime ou não? Se você
não era católico não estava na regra. Então o que aconteceria com esses indiví-
duos pelos valores do Antigo Regime? O Malafaia seria tratado de que manei-
ra? Como seria tratado um pastor evangélico no Antigo Regime? Até mesmo
um Bolsonaro? Ou seja, havia uma lógica extremamente exclusivista que privi-
legiava uma forma que era a única reconhecida pelo Estado. Eles seriam consi-
derados ilegítimos e elementos antissociais pelos valores e regras do passado
senhorial.
Então é importante perceber que a família é sempre uma disputa política,
histórica e conceitual. Ainda bem que ela se movimenta e se transforma, se
reconfigura, se simboliza a cada geração e a cada momento. Mas quando esta-
mos analisando boa parte dessa primeira elite social e política da nossa pri-
meira classe dominante, aqui na vila de Paranaguá e Curitiba, já temos uma

32
estrutura social que é fundadora e que continua pelos séculos. Ela vai sendo
transmitida em diferentes formas e principalmente sob o ponto de vista de um
certo “ethos” e conceito de família. Quando lemos o texto de Antonio Candido
vemos que ele faz uma boa análise da primeira família patriarcal. O que era a
família patriarcal? Era a família chancelada, reconhecida pela igreja. É dessa
família que saem os homens bons, os que votam e são votados nas câmaras
municipais, as denominadas “repúblicas” do passado. Qualquer câmara muni-
cipal era vista como uma república.
Os homens bons e suas famílias formavam menos de 3% da população.
Aqui entra aquele jogo da historiografia tradicional e positivista para invisibili-
zar o todo social. Qual é a primeira personagem a ser invisibilizada, ocultada e
apagada da História: a MULHER. Porém, mesmo na família patriarcal ela tinha
muitos poderes. Quando o homem se ausentava ou falecia elas assumiam a
frente da família. As viúvas eram as famosas matriarcas, as famosas mandonas
e matronas do período colonial. As mulheres estão o tempo todo dentro dessa
concepção de família patriarcal, que é a concepção das Ordenações Filipinas.
Elas também recebiam propriedades, recebiam os dotes. Temos muitos estu-
dos historiográficos sobre o dote no Brasil colonial e suas estratégias de
transmissão9.
A família patriarcal era uma forma de poder que criou uma pequena bolha
que protegia seu autopoder, a grande propriedade e seus privilégios dentro do
aparelho de Estado. Era quase um corolário: esta grande família patriarcal que
está no passado colonial brasileiro só pode existir e se reproduzir dentro do
Estado. Então, não há ninguém, nenhum setor mais estatófilo, mais amigo, mais
amante do Estado do que a classe dominante. Por mais que os discursos de
alguns setores neoliberais, como os discursos de Eugenio Gudin e Roberto
Campos, preguem o contrário. Você já viu alguém poderoso correr do Estado?
Fugir do Estado? É exatamente ao contrário, todos querem estar no Estado.
Então, para a família patriarcal existir, se reproduzir, é o Estado a centralidade.
Essa centralidade do Estado para a família patriarcal é observada desde o
primeiro momento das genealogias, da gênese da formação. Uma família do
período colonial e que tinha grande poder, ela tinha que estar dentro do Estado
e receber sesmarias. O que é o instituto das sesmarias? - A sesmaria é a chan-
cela estatal, a carta de data da grande propriedade, a gênese do latifúndio. Isso
é apontado por toda sociologia clássica, principalmente na obra de Raymundo

9
Consultar NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São
Paulo (1600-1900). SP: Cia das Letras, 2001.
MUAZE, Mariana. As memórias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império. RJ: Zahar, 2008.
DEL PRIORE, Mari. A família no Brasil colonial. SP: Moderna, 2000.
DEL PRIORE, Mari. Mulheres no Brasil colonial. SP: Contexto, 2003.

33
Faoro, “Os Donos do Poder”10. Tivemos sesmarias do século XVI até o início do
século XIX. No Paraná a grande obra clássica é da historiadora Marina Ritter11.
Ela estuda todas as sesmarias concedidas no Paraná, do período colonial até o
início do império e faz um mapa, um geoprocessamento dessas propriedades.
Uma pergunta elementar para a Sociologia Histórica e Política: onde estão
os descendentes dos sesmeiros? Essas pessoas que podem comprovar pelas
suas genealogias familiares serem os descendentes dos proprietários das
grandes sesmarias do período colonial? Será que eles desapareceram com a
modernidade? Sumiram com o progresso social, econômico e cultural do Brasil?
Isso nos leva a outra questão: de que maneira ocorre a continuidade, as
transmissões (que podem ser masculinas e femininas)? Não esquecendo o
detalhe já aqui explicado: toda a primeira classe dominante do Brasil, com seu
conceito de família, de reprodução dos poderes, é uma estrutura que permane-
ceu e permanece, de modo que temos a seguinte observação de Emilio Willems
no texto já referido de 1953: ele como estrangeiro que era no Brasil chega a
uma conclusão objetiva – NÃO EXISTE NENHUMA INSTITUIÇÃO NO BRASIL
QUE NÃO SEJA ATRAVESSADA POR FAMÍLIAS. Ele escreve isso na década de
1950, quer dizer, pensou uma instituição brasileira há que se aprofundar além
do imediato, ir além do jogo que oculta as relações sociais de dominação e você
encontrará, em menor ou em maior grau, a presença de famílias operando de
maneira ativa. ISSO QUER DIZER, A UNIDADE SOCIAL DA POLÍTICA NO BRA-
SIL, NO PARANÁ, EM CURITIBA AINDA É FORMADA PELA IDEIA DE FAMÍLIA.
Temos um conceito de família como uma unidade social com primazia. Is-
so é um desafio porque questiona toda a moderna tradição das Ciências Soci-
ais, da Sociologia, da Ciência Política nos Estados Unidos e na Europa. O pro-
blema é que muitas vezes compramos e adquirimos o pacote científico e tecno-
lógico dessas localidades. Como a família na Europa Ocidental e em muitas de
suas relações nos Estados Unidos é um fenômeno do Antigo Regime, tende-se a
esquecer dessa realidade brasileira que vários autores, começando por Emile
Willems, apontam como fundante.
No pensamento social brasileiro tradicional havia também uma velha
guarda que ainda tinha essa concepção, como o próprio Oliveira Vianna. Esse
autor que assusta pelo seu reacionarismo, pelo seu conservadorismo. Ele tem
uma primeira fase onde ainda é racista, como todos que seguiam a pseudocien-
tificidade dos anos 1920 até o início dos anos 1930. Mas, Oliveira Vianna é um

10
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 2 volumes. Porto
Alegre: Globo, 1958.
11
RITTER, Marina Lourdes. As sesmarias no Paraná no século XVIII. Curitiba: IHGPR/Estante Paranis-
ta Nº 9, 1980.

34
que ainda coloca o conceito de família e instituições políticas12. Daí basta um
voo panorâmico nas instituições políticas do Estado do Paraná e uma descrição
do que é o governo estadual paranaense hoje para entendermos a proposta de
Oliveira Vianna.
O que é hoje o governo do Paraná?
Observamos o centro, o núcleo duro do poder executivo, que é comandado
pela Família Richa. Carlos Alberto Richa, filho do ex-governador, ex-senador,
ex-prefeito de Londrina José Richa. Os Richas formam um complexo familiar de
grande extensão. Começa com o governador Beto Richa cuja esposa é Fernanda
Bernardi Vieira, da mais rica família do capital financeiro paranaense dos anos
1970 – a Família Andrade Vieira, proprietária do Banco Bamerindus. Fernanda
tem uma genealogia de poder de profundas raízes porque ela vai pegar estru-
turas muito antigas não somente no Paraná, como também no Sudeste, em
Minas Gerais. Ela é descendente de uma das mais importantes genealogias
latifundiárias do Brasil do século XVIII – a Família Junqueira.
A genealogia da Família Junqueira tem boa parte da elite política, social e
cultural de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. É composta por milhares
de indivíduos e entre eles está Fernanda. Ela casa com Beto Richa atualizando
uma conexão familiar que gera importantes resultados.
Se quero falar de infraestrutura, obras, pedágios e empreiteiras no Paraná,
devo conversar com quem? - Com Pepe, José Richa Filho, irmão mais velho de
Beto Richa. Aí vamos vendo a dinâmica: Pepe casou com quem? Sempre “cher-
chez la femme” [procure a mulher], procure o casamento, procure a conexão
familiar. Ele casou com Morgana de Almeida Richa, juíza trabalhista que já
esteve no Conselho Nacional de Justiça (de 2009 a 2011). Então imagine que
nessa época você quisesse protocolar uma reclamação de nepotismo no Paraná
– eventualmente esse processo cairia para quem julgar? Provavelmente para
Morgana, uma pessoa que está nas conexões judiciais do poder.
Adriano Richa, o irmão caçula está na área de cartórios e tabelionatos. As-
sim vamos vendo como o Paraná opera. Não só os irmãos e as cunhadas parti-
lham dessa unidade social do governo do Paraná, mas também o primo Luiz
Abi-Antoun, “grande operador de licitações” presente em quase todas as inves-
tigações da GAECO, conforme levantamento de fontes públicas das operações
conduzidas no Paraná contemporâneo pela GAECO13, a saber: Operação Vol-
demort (fraude em licitações entre a empresa Providence Auto Center e o De-

12
OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Instituições políticas brasileiras. SP: Itatiaia, 1987.
13
Disponível no site do Ministério Público do Paraná - http://www.gaeco.mppr.mp.br/. Acesso
18.julho.2017.

35
partamento de Transporte Oficial do Estado), Operação Publicano (pagamento
de propinas a servidores da receita estadual) e Operação Quadro Negro (es-
quema de desvio de dinheiro público destinado a construção e reforma de
escolas estaduais).
Se a governadoria é uma imensa teia de parentesco com os Richas, paren-
tes, primos e o Luiz Abi-Antoun, com todas as conexões e relações, então va-
mos analisar a vice-governadoria que também é uma grande família. A vice-
governadora Cida Borghetti é casada com Ricardo Barros, deputado federal
licenciado, atual Ministro da Saúde. Ele sempre é líder ou vice-líder de qual-
quer governo. Seu irmão Silvio Barros, o Segundo, também foi prefeito em
Maringá. Ambos são filhos de Silvio Barros, o pai, que foi prefeito de Maringá
eleito em 1972.
Aliás, as eleições de 1972 definiram as eleições de 2014: Silvio Barros
(pai) ganha para prefeito de Maringá e José Richa ganha para prefeito de Lon-
drina. Hoje, somos governados por Beto Richa, filho de José Richa e Cida
Borghetti, nora de Silvio Barros (pai). Eles vão criando uma grande estrutura.
Basta puxar as conexões.
Cida Borghetti tem o irmão Juliano, ex-vereador de grande nomeada na
política e câmara municipal de Curitiba, casado que foi com Renata Bueno, ex-
vereadora de Curitiba e filha de Rubens Bueno, deputado federal pelo Paraná.
A filha, Maria Victoria Borghetti Barros é deputada estadual.
Se tem uma estrutura que é muito importante ao lado das outras institui-
ções é a estrutura familiar. O que são essas grandes famílias? São uma comuni-
dade social, uma unidade de decisão e de gestão. Como então pensar os parti-
dos políticos e as grandes famílias? Vocês acham que alguém desafia a vontade
soberana da Família Bueno dentro do PPS (Partido Popular Socialista)? E a
juventude do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) com Marcelo
Richa, filho de Beto Richa, como presidente em 2011 e depois quando era Se-
cretário Municipal de Esportes da gestão de Luciano Ducci? É toda uma estru-
tura que cria um ethos e traz também toda aquela problemática: o partido
político como uma instituição que deveria ser moderna, como ele se relaciona
com as famílias poderosas? Quem controla a máquina, os governos, as juven-
tudes e as diferentes instâncias?
Voltemos ao governo do Paraná: a secretaria mais importante em termos
de Estado Maior, o cérebro do governo – a Chefia da Casa Civil – atualmente
está com o deputado federal licenciado Valdir Rossoni (que merece um estu-
do). Vamos analisar a Operação Quadro Negro para ver como a família é deci-
siva. Nessa operação aparece a empreiteira VALOR de Bituruna, cidade de
onde saiu Rossoni para o Brasil e o mundo. Ele saiu de lá, mas deixou o filho

36
Rodrigo e a nora Catiane Andriolli Nhoatto Rossoni na prefeitura. Até que a
Justiça Eleitoral teve que cassar a candidatura de Catiane por falta de filiação
partidária ao PSDB e outras coisinhas a mais. Imagine a que ponto chegou a
situação, devem ter feito muita coisa errada para fazer a Justiça Eleitoral se mexer!
A empreiteira VALOR – é acusada de desviar dinheiro das reformas e
construções de novas escolas no Paraná. Se for comprovado o envolvimento de
políticos com essa operação teremos o Chefe da Casa Civil do governo, Valdir
Rossoni e outros membros do governo acusados de uma grande estrutura de
desvio de verba pública.
A Operação Quadro Negro foi homologada pelo procurador-geral da Re-
pública Rodrigo Janot, envolvendo as famílias neptocratas, o nepotismo clepto-
crata, da República do Paraná, muitas acusaçãoe contra Richa, Traiano, Plauto,
Tiago Amaral, Rossoni, tudo sob as barbas dos justiceiros inertes da República
do Paraná e sua “farsa a jato”.
Aliás, acho que os que acreditam na República de Curitiba são idealistas,
“um verdadeiro brasileiro que está empunhando as bandeiras da moralidade,
da limpeza, da transparência”. E essa república já tem amigos no papel: os
carrões importados que aparecem com o adesivo “AQUI LADRÃO NÃO SE CRIA.
REPÚBLICA DE CURITIBA” cujos condutores usam óculos importados e a rou-
pa que comprou na viagem que fez para Miami mês passado. Então, como pes-
quisadores devemos analisá-los com muita atenção pois a República de Curiti-
ba é realmente um dos nossos fenômenos sociais e políticos.
Outro exemplo é o Secretário da Administração Reinhold Stephanes, um
grande tecnocrata que está há mais de 40 anos na alta administração parana-
ense: desde o tempo da ARENA, passando pelo PDS (Partido Democrático Soci-
al), PMDB, Requião, Richa, Collor, FHC e Lula. É mais fácil tentar dizer quem ele
não serviu nesses últimos 40 anos. Um cavalheiro distinto que se reproduziu. O
filho Stephanes Júnior estava na suplência da Assembleia Legislativa do Paraná
e assumiu como deputado estadual. Antes estava numa grande empresa do
setor elétrico.
Quando se vai mapeando, se faz uma cartografia com todas as informações
públicas disponíveis: é filho de quem? Com quem casou? Os filhos casaram com
quem? E começa-se a apontar a genealogia, esse grande diagrama do que é o
poder político no Brasil e no Paraná.
Dá para minimamente se aproximar e entender a Assembleia Legislativa
do Paraná, cujo nome do prédio é Aníbal Khury, sem utilizar o conceito de fa-
mília política? É possível minimamente estudar a Assembleia Legislativa sem
ter o conceito epistemológico de famílias e poderes políticos? Para se entender
essa casa, sua reprodução, dinâmica, códigos, comportamentos temos que

37
retomar o ethos do Aníbal Khury e de muitos outros que oferecem, nos presen-
teiam com um grande legado de parentesco, de modo que nós temos uns dos
“melhores legislativos do Brasil e do mundo”, segundo declara o deputado
Nelson Justus em várias entrevistas. O orçamento da ALEP para 2016 foi de
mais de 600 milhões de reais. Vemos como há a apropriação dessas relações e -
o que é muito importante quando vamos procurando entender a sociedade
brasileira – o jogo das continuidades, o jogo dos novos ingressos. Afinal, Aníbal
Khury vem da imigração libanesa, uma das mais importantes imigrações. De-
veria trazer algo novo, ser uma oxigenação, mas aqui vemos também outro
grande tema que deve ser verificado sempre que estudarmos família política e
parentesco: o casamento. Com quem casa Aníbal Khury? Com quem casam os
irmãos e as irmãs dele?
Os casamentos da Família Khury são casamentos com o que há de mais
tradicional, de mais estabelecido no Paraná, mesmo no Sul do Brasil. Eles se
casam com a velha ordem e reproduzem a velha classe dominante no sentido
de grupo social que domina a sociedade, controla os meios de produção e as
grandes propriedades, dominam a política e suas instituições, muitas vezes
extraindo recursos de maneira alternativa e informal, clientelismos, por fora
das regras formais.
A história das grandes famílias políticas é a história da grande proprieda-
de agrária. Quase todas são grandes proprietárias, latifundiários, e se não são
se tornam com o poder político.
Quase todos da Família Khury vão se casando em sequência. Nívia Sabóia,
esposa de Aníbal, descendia das velhas oligarquias do Rio Iguaçu. A sua irmã
Odete casou com o general Ítalo Conti. Os filhos vão se instalando em diferen-
tes instituições como a Assembleia Legislativa e o Tribunal de Contas. Eles vão
se casando e agregando novos interesses familiares. Eles vão se potencializan-
do quando têm ascensão social e econômica. É uma reorganização familiar
como se vê no caso do neto Alexandre Maranhão Khury e que pelo lado Mara-
nhão sua genealogia chega praticamente nas capitanias hereditárias. É uma
dinâmica que vai se atualizando. Basta analisar as famílias, os casamentos, as
genealogias.
O deputado estadual Alexandre Maranhão Khury casou com quem? – Im-
portante saber isso, pois às vezes, em uma antropologia política, se “casa” com
o sogro. Casamento aqui entendido no sentido da Sociologia Política. Na verda-
de, você se casa com quem quiser, e querendo ou não você acaba se casando
com o sogro, pois na verdade você se “casa” com a família inteira. Quem é o
sogro de Alexandre? O empresário da mídia e proprietário de haras Luis Mussi.
Quem era o sogro de Luis Mussi? O ex-governador Paulo Pimentel. E quem era

38
o sogro de Paulo Pimentel? João Lunardelli, da importante família de Geremia,
o “rei do café”. A Família Lunardelli é uma das maiores latifundiárias do Norte
do Paraná. Isto quer dizer que os filhos desse casamento (Alexandre e Paola)
irão descender ao mesmo tempo de Aníbal Khury e de Paulo Pimentel, ou seja,
uma nova geração reunindo muitos capitais sociais e políticos familiares.
Assim vamos compondo as relações que mostram que a família é unidade
social, família é um elemento ativo no campo político. Não se decidem as ques-
tões, a agenda política, a arena de interesses só no campo político. Muitas vezes
isso já vem decidido do campo familiar. Então, a família como unidade social
vai mostrar qual é a lógica, a racionalidade das instituições políticas. Como:
quem é que define o que o poder executivo faz? – É o que a Família Richa deci-
diu. O que a Família Borghetti-Barros decidiu. O que as famílias dos secretários,
dos deputados decidirem. Aqui também a conexão direta com o poder judiciá-
rio. Para quem observa a atual conjuntura brasileira, dá para entender o que
ela é sem minimamente se discutir os poderes estruturantes que estão aí no
dia-a-dia: a grande mídia e o poder judiciário? Daí paramos e pensamos: O que
é a grande mídia no Brasil?
A Revista Forbes de 2015 apontou como a família mais rica do Brasil a
Família Marinho que possuía uma riqueza estimada em 27 bilhões de dólares.
E para se entender o império da Rede Globo você vai se valer da teoria do em-
presário schumpeteriano (empreendedor e inovador) ou você vai usar o con-
ceito de família?
A Rede Globo é dos filhos de Roberto Marinho. Há estudos sobre a longa
genealogia da família Marinho. Ela entra em todas as conexões da riqueza e do
poder, dos paraísos fiscais, o off shore do off shore, o paraíso fiscal do paraíso,
quer dizer, é um todo extremamente bem articulado produzindo obras “cultu-
rais, didáticas e pedagógicas” como o Faustão e o Big Brother Brasil. Quanto
ganha um Faustão para fazer o que ele faz? O orçamento da Rede Globo é prati-
camente o orçamento de um Estado como o Paraná – quase 20 bilhões de reais.
Imagine você com esse comando midiático, financeiro e com essa rede que só
existe no Brasil. Você ainda pode verticalizar um império comunicativo. Nos
Estados Unidos seria impossível a existência de uma Rede Globo, pois pela
legislação é tudo “fatiado” além de ser regionalizado: ou você tem televisão, ou
jornal, ou rádio, ou mídia ou informática.
A Rede Globo é um produto brasileiro que demorou 50 anos para se con-
solidar. Começou no período da ditadura militar junto com a ARENA, depois
com o PDS (Partido Democrático Social) e teve o grande apoio e estímulo de
Fernando Henrique Cardoso e do PSDB.

39
Fernando Henrique Cardoso é outro grande talento. Ele e sua família, dona
Ruth, o filho Paulo, a filha Luciana que era acusada de ser funcionária fantasma
no senado, a filha Ana Beatriz que foi casada com David Zylberstajn da agência
de Petróleo. FHC como colega sociólogo, príncipe da Sociologia segue o mesmo
modelo de família patriarcal do período colonial/imperial, isto quer dizer, você
tem a família oficial ou oficiosa e está liberado qualquer tipo de relacionamen-
to extraconjugal dado o interesse e a oportunidade estratégica. Então ele se
relaciona com Miriam Dutra Schmidt. Ela fez uma etnografia das relações entre
a Rede Globo, o PSDB, a Revista Veja, contas na Europa e a BRASIF. O grande
político FHC, ex-senador, ex-ministro, ex-presidente tem uma relação com uma
das mais importantes jornalistas da Rede Globo. Daí levanta-se a velha ques-
tão: e o filho da jornalista, quem era o pai? Quem é que pagava a pensão de 100
mil dólares por ano? –Essa atitude de FHC não é diferente da concepção freyri-
ana de que havia a família oficial do patriarca e depois se tinha toda uma rede
de relacionamento, que são relações com escalas de poder e se tem também
todas as séries de vínculos com os grupos que foram completamente invisibili-
zados.
Até aqui falamos das mulheres, das famílias e do poder. E na História Soci-
al, como fica na Sociologia do conceito de famílias dos grupos populares, da
classe trabalhadora e principalmente a questão desde a família indígena, a
família escrava, os africanos/negros, a família mestiça? - Invisibilizadas na
construção social e historiográfica do Paraná e do Brasil. Onde entram os ín-
dios, os negros, o racismo, o preconceito a partir dessa cúpula dominante? E
também os homens e mulheres livres e pobres? As explosões sociais na histó-
ria do Brasil, desde o império até a república é exatamente aquilo: quando você
quer entender essas grandes e poderosas famílias nós sempre acabamos en-
contrando, de maneira oculta, de maneira escondida as contradições e as vio-
lências que foram negadas. É a questão claramente colocada: se quase todas as
famílias no poder são grandes proprietárias de terras, então como alguém
pode obter, conquistar uma propriedade rural?
Em primeiro lugar a conquista da terra se deu (e ainda se dá) com a vio-
lência original contra os índios, escravos e camponeses. Aqui cito mais um
exemplo para continuarmos entendendo e compreendendo o esquema da fa-
mília, da grande propriedade, dos grandes negócios e das grandes fortunas - é
uma família símbolo do Paraná porque representa a modernização burguesa.
Quando pensamos modernização burguesa devemos colocar a questão: ocor-
reu ou não uma revolução burguesa no Brasil e no Paraná? Para respondermos
a essa questão usaremos um contraponto que é epistemológica, política e con-
ceitualmente mais desafiador – o conceito de METAMORFOSE BURGUESA e
não revolução burguesa.

40
Qual é a diferença entre revolução e metamorfose? Revolução dá a ideia
de ruptura, descontinuidade, corte, reinício. Já metamorfose dá a ideia de con-
tinuidade, o antigo lentamente se transforma em algo ao mesmo tempo que é
diferente (mas não é novo!) e que é a continuidade, como a metamorfose da
lagarta que ao sair do casulo é uma borboleta, mas ao mesmo tempo não dei-
xou de ser lagarta em seu interior!
Este ponto é importante porque entra no centro da questão: quando pen-
samos o Paraná no século XX chegamos nessa família, exemplo da moderniza-
ção burguesa: qual foi o primeiro grande político-empresário, que era o mais
rico do Paraná, do Sul do Brasil e chegou a ser governador do Paraná? Ele era
de origem imigrante, ou seja, ele não está nas genealogias tradicionais, com seu
passado familiar no velho senhoriato. Durante muito tempo, em vários círculos
(e ainda hoje um ou outro reacionário) colocava a questão: ou você está na
Genealogia Paranaense14 ou você não é classificado. Esse era o raciocínio em
vários grupos elitizados – quase uma concepção etno-histórica de origens, de
situação e de grupos familiares. Se sua família não aparece na Genealogia Pa-
ranaense você está fora desse “planetinha”, desse mundinho social e político
tradicional.
Mas aí temos esse grande empresário que era o mais rico, o mais podero-
so, um verdadeiro fenômeno que se chamava Moisés Lupion. Nascido em 1908,
em Jaguaraíva/PR, de família imigrante, começou como menino pobre venden-
do amendoim. Trabalhou como engraxate e realizava pequenos serviços. O pai
dele era imigrante espanhol dedicado ao trabalho braçal e manual. Tentou o
pequeno comércio, mas fracassava, falia. A mãe Carolina Wille era da cidade da
Lapa. Ao longo da década de 1930, o jovem empreendedor, Moisés Lupion
produziu um verdadeiro milagre porque ele se tornou o mais rico empresário
do Paraná. Há uma boa descrição da sua fortuna no início dos anos 1940 feita
por Leite Júnior e Escobedo15 que começa a descrever somente as grandes
propriedades e uma delas chamava bastante a atenção, pois calcularam que ela
possuía mais de um milhão e trezentas mil araucárias, a Gleba Santa Helena.
Agora imagine se você tivesse mil pés de araucárias e eu te dou um balde com
tinta e um pincel, para você numerar uma a uma: quantos quilômetros em
extensão territorial você acha que iria percorrer para numerar todas as suas
mil araucárias? Quanto espaço é necessário para se ter apenas mil pés de arau-
cárias? Agora imagine isso para mais de um milhão de araucárias? Isso em

14
A Genealogia Paranaense de Francisco Negrão compreende aproximadamente 35 mil indivíduos
listados. Estimando-se que cerca de um milhão de indivíduos viveram no Paraná entre a segunda metade
do século XIX e meados da década de 20, quando Negrão ainda pesquisava os últimos nascimentos, a
obra cobre algo entre 3 e 5% de todos os paranaenses vivos entre mais ou menos 1640 e 1925. NE-
GRÃO, Francisco Negrão. Genealogia Paranaense. 6 volumes. Curitiba: Imprensa Oficial, 1928.
15
LEITE JUNIOR, Hors-Meyll T. & ESCOBEDO, Marcel Luiz. Moyses Lupion: civilizador do Paraná.
2 volumes. Curitiba: Imprensa Oficial, 2006.

41
apenas uma das grandes glebas. Sem contar toda a estrutura de indústrias,
serrarias, logística, de abastecimento, de serviços, de combustível. Ainda tinha
atividades no setor de mineração, aviação, navegação, revendedora de auto-
móveis, comércio, quer dizer, ele monta um mega patrimônio capitalista, de
mercado, que mostra afinal a “revolução burguesa” que deveria ter existido no
Paraná como parte, como símbolo do Brasil.
Como foi possível Moisés Lupion se tornar rico, poderoso e governador do
Paraná? Ele foi um político muito interessante e estratégico, mas como foi pos-
sível ele ter sido eleito governador? Será que foi o “livre” mercado? A inciativa
privada? Mérito? Empreendedorismo? Ele fez na FAE o curso de Business
School? Foi um “case” capitalista (afinal não existe capitalismo, isso é coisa de
machistas, existem apenas empresários bem-sucedidos, existem “cases” capita-
listas)?
Como foi possível esse fenômeno empresarial, econômico, esta mega for-
tuna com milhões de araucárias, carros, minas, aviões, rebocadores, empresas,
prédios, galpões? Como foi possível o Paraná produzir um Lupion? Afinal ele
existiu ou não? Ou é uma figura mítica como Noé da Bíblia? – Sim, Moisés Lu-
pion existiu empiricamente. Ele foi um produto histórico, social e econômico.
Então vamos levantar a sua rede de poder, de amizades e de cumplicida-
des. Moisés Lupion casou com quem? – Com Hermínia Rolim, neta de Telêmaco
Borba16. Vemos como vão se articulando as conexões: a nova fortuna empresa-
rial, o talento, o mérito, as novas energias se juntam com as velhas oligarquias
do Tibagi e principalmente com o interventor Manoel Ribas.
Até recentemente saiu uma biografia oficial e autorizada de Manoel Ribas.
Boa parte da dinâmica do Paraná pode ser entendida por essas biografias ofici-
ais e autorizadas, que devem ser lidas porque elas sempre elogiam – tanto a de
Moisés Lupion, como a do Ney Braga, como a de Bento Munhoz, como a de
Manoel Ribas.
Agora, para entender o fenômeno Moisés Lupion temos que entender o
casamento dele com as oligarquias tradicionais da classe dominante e as rela-
ções dele com Manoel Ribas, daí entenderemos como se abrem os caminhos e
as portas para ele. Os biógrafos oficiais de Lupion dizem que ele conseguiu
vencer pela própria inciativa – mas não podemos esquecer que essa iniciativa é
um jogo social, precede um jogo anterior, um certo jeito de se distribuir as
cartas sociais. Se alguém tem um milhão de araucárias você suspeita que outro

16
Um dos meus livros favoritos sobre o avô materno de Hermínia Rolim é “Telêmaco mandava matar”,
escrito por Oney Borba em 1987. Percebe-se que o autor está “elogiando” – alguém falou mal de Telê-
maco? Para mim, ele foi “um herói civilizador do sertão que levou o progresso para o índio, o caboclo, o
negro e para as araucárias”. BORBA, Oney B. Telêmaco mandava matar e outras crônicas. Curitiba:
Litero-Técnica, 1987

42
alguém nada terá, muitos outros vão ficar sem uma terrinha sequer para plan-
tar uma hortinha, não? E assim se vai compondo essa grande fortuna, poucos
ganham e muitos perdem. Poucos lucram e muitos trabalham para receber
resultados miseráveis ao longo de suas vidas.
E Moisés Lupion também se reproduz. Hoje temos vários “Lupions”, mui-
tos em cargos interessantes e importantes. Abelardo Lupion (neto de Moisés)
esteve na Câmara dos Deputados como deputado federal em várias legislatu-
ras, também fundou a União Democrática Ruralista (UDR) no Paraná e agora
está na presidência da COHAPAR. Seu filho Pedro Lupion (bisneto de Moisés) é
deputado estadual e está na Assembleia Legislativa desde 2010. Sua sobrinha
Rafaela Marchiorato Lupion está na Casa Civil, no Conselho Estadual dos Direi-
tos das Mulheres.
Se fosse o Paraná dos anos de 1920 alguém saberia quem era Lupion? –
Ele era um ilustre desconhecido. Quando ele adquire a grande riqueza, o gran-
de patrimônio empresarial passa a precisar das relações políticas e familiares.
Não existe grande empresário sem conexão política dentro do Estado e sem
família bem relacionada nas instituições do poder. O capitalismo é politicamen-
te orientado. O próprio conceito de mercado ele precisa do Estado: moeda,
segurança, controle da força de trabalho, et caterva.
E continuamos observando: os filhos e irmãos de Moisés Lupion casaram
com quem? Eles vão casar com novos empresários? Com o novo Paraná da
imigração? Com novos valores da ascensão e da mobilidade? Casam com gente
igualmente nova e ascendente? – Não, eles casam preferencialmente com a
classe dominante tradicional. Casam com gente velha no poder ou de poderes
velhos. Aí basta analisar caso a caso, por exemplo, do Castelinho do Batel, pré-
dio bonito e suntuoso mandado construir em 1924 pelo cafeicultor e cônsul ho
norário da Holanda - Luiz Guimarães - e que foi comprado por Moisés Lupion
em 1947. Hoje é um centro de eventos administrado por Vera Amaral Lupion.
A senhora Vera Amaral Lupion hoje representa a titularidade do Castelo
do Batel. Sobre a família Lupion, basta ver as colunas sociais, as informações de
quem é quem no jogo do poder político, estratégico e econômico. O sobrenome
Amaral vem da família Ferreira do Amaral, a mesma família do médico Victor
Ferreira do Amaral, um dos fundadores da Universidade do Paraná em 1912.
Aliás, é uma das poucas universidades do mundo criadas por um escravocrata.
Vocês sabiam que Victor Ferreira do Amaral possuía escravos na juventude?
Parece ser um detalhe menor, uma coincidência, mas não esqueçamos que um
escravocrata tem uma mentalidade autoritária marcada pela desigualdade social.
Mas continuemos levantando as redes de conexões da Família Lupion. A
primeira de que falamos foi a conexão LUPION-ROLIM, depois LUPION-
AMARAL. Mas eles também se casam com outra família que é uma das mais
importantes na história paranaense – a Família Guimarães, do Visconde de
Nácar (Manoel Antonio Guimarães).

43
O Visconde de Nácar foi um dos mais importantes políticos, empresários
paranaenses e homem público do império. Ele era ou não traficante de escra-
vos? – Os ingleses entraram na Baía de Paranaguá atrás do que no episódio
conhecido como Batalha Cormorant? Todas as denúncias do período imperial,
dos jornais da época e dos estudos dos especialistas demonstram essa relação
do Visconde de Nácar com o tráfico de escravos após a sua proibição pelo go-
verno imperial brasileiro em 1850.
Quantos Guimarães temos hoje no poder contemporâneo do Paraná? Na
Assembleia Legislativa, vindo de Ponta Grossa temos o Plauto Miró Guimarães.
Vindo de Campo Largo temos o deputado estadual Alexandre Guimarães, filho
do ex-prefeito Affonso Portugal Guimarães. No Tribunal de Contas temos o
conselheiro Fernando Guimarães. Seu pai era Fernando Macedo Guimarães,
fruto da união de duas grandes famílias paranaenses.
Da conexão LUPION-GUIMARÃES temos o médico Alô Guimarães um dos
fundadores da moderna psiquiatria no Paraná. Na década de 1970 no Paraná
existia o jovem Austregésilo Carrano Bueno que era habituado a fumar maco-
nha. Qual era o tratamento para o “maconheiro paranaense” nos anos 70? Ma-
nicômio e a terapia do choque elétrico. O caso desse jovem ficou conhecido,
pois ele relatou sua experiência no livro “Canto dos Malditos” que inspirou o
filme “Bicho de Sete Cabeças”. Quem assinava os laudos do jovem Austregésilo?
O doutor Alô Guimarães, filho do General Theodorico Gonçalves Guimarães e
de Stella Ticoulatt Guimarães e que foi deputado estadual (1935- 1937), prefei-
to de Curitiba (1945), deputado federal (1946-1948 e 1954-1955) e senador
(1955-1963). Alô era irmão de Acir Guimarães (deputado federal de 1946-
1948) que casou com Maria Lúcia Lupion, filha de David Wille Lupion, irmão
de Moisés Lupion.
A medicina é um magneto para atrair pessoas elitizadas que geralmente
possuem uma mentalidade mais conservadora, uma visão mais tradicional,
basta analisarmos a galeria dos presidentes da Associação Médica do Paraná.
Então se pegarmos qualquer instituição paranaense teremos a presença
da família: na universidade, na assembleia legislativa, no tribunal de contas, no
judiciário, no executivo, na associação médica, na engenharia, no mundo jurídi-
co, na mídia et caterva.
Vimos que a mídia brasileira é dominada por famílias como a Marinho e a
Saad. Qual a relação do “Rouba, mas faz!”17 do governador de São Paulo Ade-
mar de Barros e a Família Saad, do Grupo Bandeirantes de Comunicação? É
exatamente o avô materno, o ex-governador e ex-prefeito de São Paulo Ademar
de Barros. Quantos imóveis urbanos a Família Barros, os descendentes de

17
Um dos slogans de campanha eleitoral de Ademar de Barros na campanha eleitoral para prefeito de
São Paulo, em 1957 era "Ademar rouba, mas faz", que, apesar de ser uma frase cunhada por seu adversá-
rio Paulo Duarte, acabou por ser seu lema, se promovendo em cima das inúmeras acusações de corrup-
ção, na época chamadas de "negociatas".

44
Ademar de Barros possuem ainda hoje em São Paulo? Se você é prefeito e quer
aumentar o IPTU você vai atingir o bolso de quem? Se você tem ou representa
uma classe de proprietários com milhares de imóveis urbanos, o aumento do
IPTU vai bater no seu bolso ou não? O deputado Eduardo Cunha, ex-presidente
da Câmara do Deputados, é primo de Johnny Saad de acordo com a jornalista
Barbara Gancia18, o que foi negado posteriormente.
Se continuarmos observando também teríamos uma análise similar da
família Abravanel, do Silvio Santos, que hoje já é uma família organizada, que
está se reproduzindo e mereceria um estudo.
No Paraná, os grandes veículos de comunicação, a grande imprensa, a te-
levisão, estão nas mãos da Família Cunha Pereira. Você identifica os Cunha
Pereira em quais instituições nos últimos 50 anos, além do jornal Gazeta do
Povo e da RPC (filial da Rede Globo)? – Tivemos Cunha Pereira no Tribunal de
Contas, no Tribunal de Justiça, com desembargadores, na Associação Comercial
do Paraná e até nos esportes. Assim vemos como a família do poder tem tentá-
culos em várias instituições.
Na verdade, as famílias fazem composições com outras famílias com quem
casam, interagem, convivem e acabam se alojando nas instituições públicas.
Assim, temos uma grande engrenagem, um grande sistema familiar dominante,
que é o comportamento do poder no Brasil, da classe dominante e dos seus
grandes interesses, o que abrange o poder executivo, legislativo, judiciário, o
sistema judicial, o ministério público, et caterva.
Qual é a faixa salarial para muitos setores do judiciário? Se você ganhar
menos de 100 mil reais por mês você será considerado um “mané”, um calça-curta!
Toda aquela estrutura de privilégios, luxos e extrativismo estatal se re-
produz no controle da mídia, cartórios, tabelionatos e empresariado, que vi-
vem das licitações e dos orçamentos estatais.
Como é ter uma grande empreiteira no Brasil? A Operação Lava-Jato está
levantando muito das entranhas, apesar de ser de maneira direcionada, mas
está demonstrando toda a dinâmica, como já demonstrou a tese de doutorado
de Pedro Campos sobre a formação das grandes empreiteiras no Brasil e que
se transformou no livro “Estranhas catedrais”19.
A grande questão que se coloca e que será objeto de reflexão desse curso:
NÃO É POSSÍVEL PENSAR A COMPLEXIDADE SOCIAL, ECONÔMICA, CUL-
TURAL, MIDIÁTICA E POLÍTICA NO BRASIL SEM PRESTAR ATENÇÃO AO
CONCEITO DE FAMÍLIA!
Não quer dizer, é claro, que essa questão seja exclusiva, mas sem a ideia,
sem a reflexão crítica do conceito de família, hoje em dia um pesquisador não

18
Conforme http://jornalggn.com.br/noticia/barbara-gancia-diz-que-band-determinou-que-ela-nao-
falasse-de-cunha. Acesso 18.julho.2017.
19
CAMPOS, Pedro Henrique Pereira. Estranhas catedrais: empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-
militar (1964-1988). RJ: EDUFF, 2014.

45
conseguirá entender nenhuma das instituições brasileiras, seja o executivo, o
legislativo, o judiciário e o resto todo.
Em Brasília qual é a proporção de deputados com família na política? –
Mais da metade. Quantos senadores têm família na política? - Dois terços. E
nos tribunais de conta da união?20 Estes dados aumentaram para a atual legis-
latura, mais de 60% na Câmara dos Deputados e uns 75% no Senado de parla-
mentares vinculados às famílias do poder.
É possível compreender os atores da Operação Lava-Jato sem a ideia de famí-
lia? Eles herdam valores familiares ou não? Mentalidades? Postura ideológicas?
21

Carlos Fernando dos Santos Lima, Procurador Regional da República atu-


almente atua na força-tarefa Operação Lava-Jato. Vocês viram no dia da con-
dução coercitiva de Lula (04 de março de 2016)? Quem falou na televisão? -
Carlos. Ele é filho de quem? É filho do deputado estadual da ARENA Osvaldo
dos Santos Lima, promotor, vice-prefeito em Apucarana e presidente da As-
sembleia Legislativa do Paraná, em 1973, no auge da ditadura, quando as pes-

20
Consultar:
OLIVEIRA, Ricardo Costa. Famílias Políticas e Desempenho Eleitoral nas Eleições de 2010. IN:
ANAIS da 8° Encontro Associação Brasileira de Ciência Política- ABCP 2012. Disponível em
https://cienciapolitica.org.br/system/files/documentos/eventos/2017/02/familias-politicas-e-desempenho-
eleitoral-nas-eleicoes-2010.pdf. Acesso 18.julho.2017.
Herdeiros de políticos ocupam metade da Câmara (Congresso em Foco, 03/02/2016). Disponível em
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/herdeiros-de-politicos-ocupam-metade-da-camara/. Acesso
18.julho.2017.
Quase 300 deputados têm parentes na política (Congresso em Foco, 11/04/2011). Disponível em
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/quase-300-deputados-tem-parente-na-politica/. Acesso:
18.julho.2017.
Dois terços dos senadores têm parentes na política (Congresso em Foco, 07/04/2011). Disponível em
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/dois-tercos-dos-senadores-tem-parentes-na-politica/. Acesso:
18.julho.2017.
Os senadores e seus parentes na política (Congresso em Foco, sem data). Disponível em
http://congressoemfoco.uol.com.br/upload/congresso/arquivo/Parentes_Senadores.pdf. Acesso:
18.julho.2017.
Família se perpetua há dois séculos no Congresso (Congresso em Foco, 20/04/2015). Disponível em
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/familia-se-perpetua-ha-dois-seculos-no-congresso/. Acesso
18.julho.2017.
Sem renovação: jovens são parentes de políticos (Congresso em Foco, 15/03/2011). Disponível em
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/sem-renovacao-jovens-sao-parentes-de-politicos/. Acesso
18.julho.2017.
Parentes de políticos e policiais são campeões de votos (Congresso em Foco, 07/10/2014. Disponível em
http://m.congressoemfoco.uol.com.br/noticias/parentes-de-politicos-e-policiais-sao-os-campeoes-de-
votos/. Acesso 18.julho.2017.
Bancada Jovem #SQN: deputados mais novos da Câmara mostram que ainda somos os mesmos e vota-
mos como nossos pais. Disponível em: https://tab.uol.com.br/jovens-politicos#bancada-jovem-sqn.
Acesso em: 25.abril.2017. De pai para filho: as famílias que mandam na política. Congresso, um
negócio de família. IN: Congresso em Foco, Ano 6, Nº 26, julho 2017, p. 36-46.
21
OLIVEIRA, Ricardo Costa de. MONTEIRO, José Marciano. GOULART, Mônica H.H.S. VANALI,
Ana C. “Prosopografia familiar da Operação Lava-Jato e do Ministério Temer”. Disponível em REVIS-
TA NEP-UFPR (Núcleo de Estudos Paranaenses), Curitiba, v.3, n.3, p. 1-28, agosto 2017.
Consultar também OLIVEIRA, Ricardo Costa de. MONTEIRO, José Marciano. GOULART, Mônica
H.H.S. VANALI, Ana C. “Operação Lava-Jato e Primeiro Ministério Temer: apontamentos prosopográ-
ficos”. IN: OLIVEIRA, Ricardo e VANALI, Ana C. (orgs). Instituições e poder político. Curitiba:
Editora Prismas, 2017.

46
soas não podiam votar e nem debater livremente. O avô foi Luiz dos Santos
Lima, comerciante e juiz em São Mateus do Sul, na época do coronelismo local.
A partir daí encontramos esta família na Genealogia Paranaense22 situada nas
oligarquias da Lapa entre latifundiários escravistas, família aparentada ao
Barão dos Campos Gerais e outros membros da classe dominante tradicional
desta região. A Lapa já forneceu Flávio Suplicy de Lacerda, ministro da educa-
ção autoritário na ditadura militar e Ney Braga.
À medida que vamos compondo esse quadro, formamos o mosaico políti-
co. Para entendermos a desigualdade social no Brasil o enredo é basicamente
genealógico. Quem vem dos setores de alta renda, dos altos patrimônios, tende
a continuar no mesmo patamar, da mesma maneira que quem está na baixa
renda, na baixa escolaridade, nos bairros populares, é negro, é mestiço, des-
cendentes dos ameríndios, dos negros escravizados, da senzala, da brutalidade
colonial/imperial. Temos exceções, é claro! Mas como diz uma canção brasilei-
ra: “analisando a cadeia hereditária ... onde o rico cada vez fica mais rico e o
pobre cada vez fica mais pobre, ... o motivo todo mundo já conhece: é que o de
cima sobe e o debaixo desce”23.
Da mesma maneira a história social do empresariado moderno no Brasil
envolve literalmente casamentos com setores provenientes do “Antigo Regi-
me” em várias situações. O novo casa com o arcaico e tradicional. Colocando
de outra maneira: se você fosse filho de desembargador, sua esposa fosse filha
de um almirante, seu irmão fosse alto funcionário do Tribunal de Contas, em
que mundo, em que planeta você viveria? É um planeta em que você veria as
disputas sociais e as estruturas em reprodução, em renovação dentro da ideia
de família! As famílias têm a característica de se perpetuarem no poder. Isso
acontece pela via do nepotismo ou dos casamentos entre membros que co-
mungam do mesmo status social.
Portanto, FAMÍLIA AINDA IMPORTA E EXPLICA !

Curitiba, 30 de março de 2016.


Sessão de abertura do curso de extensão “Família,
política e parentesco no Brasil” promovido pelo grupo de
pesquisa NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses – UFPR)
Tema: A família como categoria de análise sociológica
Palestrante: Professor Doutor Ricardo Costa de Oliveira

22
Verificar Negrão, Francisco. Genealogia Paranaense. Volume 1, p. 543 e Volume 4, p. 437. Curitiba:
Imprensora Paranaense, 1928.
23
Canção Xibom, bom bom. Interpretação pela banda As Meninas. Letra disponível em
https://www.letras.mus.br/as-meninas/44262/. Acesso 18.julho.2017.

47
CAPÍTULO 2

A REFERÊNCIA: A FAMILIA
PATRIARCAL BRASILEIRA

ALESSANDRO CAVASSIN ALVES

O tema “a família patriarcal brasileira” nos leva necessariamente a ler e


refletir sobre as formulações elaboradas por Gilberto Freyre, construída e de-
fendida pelo autor ao longo do século XX, enquanto uma referência obrigatória.
Mas, ao mesmo tempo, autores contemporâneos a Freyre, como Sérgio Buar-
que de Holanda, Antonio Candido, Oliveira Viana, Charles Wagley, Emilio Wil-
lems, Nestor Duarte, Raymundo Faoro, entre tantos outros, também discuti-
ram, cada qual a seu modo, um passado colonial calcado na organização de tipo
familiar.
A família patriarcal brasileira, aquela família de caráter rural, do engenho
ou da fazenda, extensa por necessidade, bem como, hierárquica e autoritária,
que gera coesão, submissão e reciprocidade entre seus pares, certamente foi
um tipo específico de organização, mas que, como veremos, foi o lugar privile-
giado do nascimento da sociedade brasileira, moldando a cultura de um país
continente.
Toda essa interpretação construída no século XX foi igualmente aprofun-
dada mais recentemente com estudos empíricos específicos, tendo como tema
indivíduos (patriarcas ou matriarcas), famílias, grupos, em determinadas loca-
lidades e regiões, em seus distintos períodos históricos (ao longo dos anos de
formação colonial e da experiência de independência com seus dois imperado-
res), que, por sua vez, estão a contribuir para se entender melhor o país que
temos.
Frente a vasta possibilidade de se entender a referência “família patriarcal
brasileira” delimitamos três autores, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Ho-
landa e Oliveira Viana, como fontes para se pensar o tema e, assim, buscar
apontar a relevância de se estudar ainda hoje a família no Brasil1.

1
Cf. Anexo: “Sugestão de leitura complementar”, sobre a temática da família patriarcal brasileira.

49
A família patriarcal para Gilberto Freyre

Como Gilberto Freyre define a “família patriarcal brasileira”, tendo como


referência Casa-grande e senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936), The
Patriarchal Basis of Brazilian Society (1964)? E qual o papel do patriarcado na
formação da sociedade brasileira?
Freyre afirma que a família, como aqui se organizou, foi a unidade coloni-
zadora deste país. Atestam para isso inúmeras fontes materiais e imateriais
sobre o período colonial. E, com uma frase já clássica, o autor nos dá a noção do
poderio dessa instituição que organiza o território, sob a fortaleza da casa-
grande e que engloba a força de trabalho concentrada na senzala sob o regime
da escravidão:

A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema


econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária); de
trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o banguê, a rede, o
cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao
pater famílias, culto dos mortos etc.); de vida sexual e de família (o
patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (o “tigre”, a touceira
de bananeira, o banho de rio, o banho de gamela, o banho de assento, lava-
pés); de política (o compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco, cemitério,
hospedaria, escola, Santa Casa de misericórdia amparando os velhos e as
viúvas, recolhendo órfãos. Desse patriarcalismo, absorvente dos tempos
coloniais a casa-grande do engenho Noruega, em Pernambuco, cheia de salas,
quartos, corredores, duas cozinhas de convento, despensa, capela, puxadas,
parece-me expressão sincera e completa. Expressão do patriarcalismo já
repousado e pacato do século XVIII; sem o ar de fortaleza que tiveram as
primeiras casas-grandes do século XVI (FREYRE, 1999, p.LIII).

Para Freyre, então, a família foi a unidade formadora deste país, muito
mais que o Estado ou a Igreja, por concentrar toda uma estrutura organizacio-
nal de vida em sociedade ao redor da casa-grande. E ainda, “a força concentrou-
se nas mãos dos senhores rurais. Donos das terras. Donos dos homens. Donos das
mulheres. Suas casas representam esse imenso poderio feudal” (FREYRE, 1999,
p.LVII)2.

2
Ao longo do livro Casa-grande e senzala, Freyre defende sua tese: “A família, não o indivíduo, nem
tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator coloni-
zador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos,
bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial
mais poderosa da América. Sobre ela o rei de Portugal quase reina sem governar. Os senados de Câmara,
expressões desse familismo político, cedo limitam o poder dos reis e mais tarde o próprio imperialismo
ou, antes, parasitismo econômico, que procura estender do reino às colônias os seus tentáculos absorven-
tes” (FREYRE, 1999, p.18-19).

50
É a força do patriarcado, hierárquico e violento, mas que gera “espírito de
família” e “coesão de família” como forma de sobrevivência, num “antagonismo
equilibrado”, como defende Freyre.
A família patriarcal, então, organizava-se tendo um sistema econômico de
monocultura, latifundiário e escravocrata, do norte ao sul do Brasil, e que pre-
cisava se consolidar, enfrentando as adversidades do clima tropical, de indíge-
nas e africanos hostis ou insubmissos, de invasores estrangeiros etc. Porém, a
característica do português, “cosmopolita e plástico”, dado a “miscibilidade” e
“aclimatabilidade”, foi compondo com as características próprias das outras
culturas indígenas e negras da qual teve contato, impondo-se e modificando-se
de acordo com as necessidades de sobrevivência nesta colônia portuguesa na
América. Cada cultura com sua etnia contribuiu decisivamente para a formação
do Brasil, sob a grande instituição de caráter familiar.
Portanto, como bem apresenta Elide Rugai Bastos, para Gilberto Freyre, o
patriarcado, as etnias (“raças”) e suas culturas e o trópico são os marcos defi-
nidores da formação nacional, sob o peso desse sistema de produção econômi-
co específico; e de um sistema escravocrata que permite ao dominador ir além
da dominação econômica, “confraternizando-se” com seus subordinados, ge-
rando filhos do senhor com a escrava (primeiro com a indígena – “base física
da família brasileira”, depois com a negra – na qual é inegável de como o negro
foi influenciando a vida social no Brasil, mesmo sob a pérfida escravidão), for-
mando, assim, a família extensa. Eis o fenômeno da miscigenação, tanto bioló-
gica quanto cultural, e que possibilitou, de acordo com Freyre, a tese da demo-
cracia racial brasileira (BASTOS, 1999).
Assim, sendo a família patriarcal colonial o vivo e absorvente órgão de
formação social brasileira, para Freyre, ela é “a história íntima de quase todo
brasileiro”, exprimindo o “caráter do brasileiro” e a “nossa continuidade social”3.
Mesmo em Sobrados e mucambos, quando Freyre (2004) comenta sobre a
desestruturação deste mundo colonial, formador do Brasil, a partir do século
XIX, com o chamado fim da família patriarcal rural devido à influência dos ide-

3
Para Elide Rugai Bastos, “a família é a categoria nuclear da explicação freiriana. É na família que se
torna possível perceber os elementos que caracterizam as relações e os processos que envolvem os
homens. É aí que encontramos as formas fundamentais que a vida assume. Essa definição desenha o
caminho da análise freiriana. Primeiramente, a escolha das instituições e dos personagens a serem estu-
dados. O complexo agrário-industrial do açúcar visto como um microcosmos que se alarga e figura a
sociedade. Os personagens – o patriarca, central na definição desse universo social; o escravo, a mulher,
o menino, secundários, gravitando em torno do primeiro. Mas os sinais se invertem. Os atores aparente-
mente marginais ganham o centro do palco, mudam o rumo da história. São eles que recriam em outro
patamar as relações sociais. Terminam por impor seu modo de vida, sua visão de mundo, seus costumes,
sua estética, sua fala. Assim, altera-se a ordem social, mudam-se os papéis. O dominante acaba por ser
dominado. E o dominado, por dominar, impondo sua cultura. Trata-se, para o autor, da figuração da
democracia” (BASTOS, 1999, p. 231-232).

51
ais liberais e burgueses, da decadência da agricultura do açúcar, do surgimento
de uma família de tipo nuclear, do individualismo, do desenvolvimento das
cidades, do novo tipo de oposição social entre sobrados e mucambos (e não
mais da “composição” casa-grande e senzala), na verdade, o “espírito de famí-
lia” permanece. E reafirma Roberto Da Matta, ao prefaciar Sobrados e mucam-
bos, que, apesar dos ideais modernizadores, “o peso social e simbólico da famí-
lia, em contrates com a massa de aparência individualizada”, continua a pre-
ponderar (DA MATTA, 2004, p.17).
O sociólogo Pierre Bourdieu vê, igualmente, na construção desta ficção
bem fundamentada que é a família, um produto de um “verdadeiro trabalho de
instituição” que visa assegurar sentimentos de integração “que é condição de
existência e de persistência dessa unidade”, impondo “nome de família”, “ca-
samento” e “herança”.

As estruturas de parentesco e a família como corpo só podem se perpetuar ao


preço de uma criação continuada do sentimento familiar, princípio cognitivo
de visão e de divisão que é, ao mesmo tempo, princípio afetivo de coesão, isto
é, adesão vital à existência de um grupo familiar e de seus interesses.
Esse trabalho de integração é tanto mais indispensável porque a família, que
para existir e subsistir deve se afirmar como corpo, sempre tende a funcionar
como um campo, com suas relações de força física, econômica e, sobretudo
simbólica (vinculadas, por exemplo, ao volume e à estrutura dos capitais que
seus diferentes membros possuem) e suas lutas pela conservação ou
transformação dessas relações de força (BOURDIEU, 1996, p.130).

Família, assim, tende a ir além do simples universo de procriação e cuida-


do da prole que as concepções burguesas tendem a afirmar a partir do século
XIX, para funcionar como um campo nos quais interesses, sentimentos, prote-
ção de seus membros, princípios de continuidades das conquistas econômicas
desse grupo familiar tendem a proteger.
Apesar disto, concordamos que, tendo em vista que o modelo de família
patriarcal extensa da casa-grande do engenho Noruega, em Pernambuco, des-
crita por Freyre, logicamente não abrange tantos outros tipos de famílias que
também se organizaram no Brasil como demonstra Eni de Mesquita Samara
(1987), sendo essa apenas uma amostra de um tipo de família de segmento da
classe dominante, posição da qual também Freyre escrevia sua obra.
Mas, a leitura freyriana nos permite pensar de que foi esse modelo patri-
arcal familiar rural, extenso, hierárquico, miscigenado, “verdadeiro trabalho de
instituição”, “uma representação de família” que, com suas características pró-
prias predominou sobre o país, avançando aos dias atuais enquanto “a família
como valor”, como discute Roberto Da Matta, “uma família à brasileira, com

52
toda sua força institucional”, que, na política, como exemplo, utiliza do nepo-
tismo, das relações de poder e suas conexões, dos “nomes de família”, do
“compadrismo”, das relações de amizade, para agir “realizando a ponte entre o
mundo público e o universo privado, e agir como grupo corporado (como uma
pessoa jurídica indivisível), apesar de todas as suas enormes diferenças inter-
nas” (DA MATTA, 1987, p.118).
Esse modelo de “família como valor” foi tão forte que influencia até mes-
mo uma classe média, por vezes composta por famílias descendentes de euro-
peus de imigração mais recente, do final do século XIX e início do século XX,
que, a princípio, eram independentes de nosso passado colonial patriarcal, mas
que, se não tiverem o devido cuidado, tornam-se (com inúmeros exemplos em
nossa sociedade atual), ao chegarem ao poder (político ou econômico), de
atuarem “como famílias patriarcais e seus membros como patriarcas ou líderes
tutelares” (DA MATTA, 1987, p.120). Isso, porque, de alguma forma, foram
influenciados pela referência de organização da antiga “família patriarcal bra-
sileira”.

A família patriarcal para Sérgio Buarque de Holanda

Tendo como referência o livro Raízes do Brasil, publicado em 1936, Sérgio


Buarque de Holanda, na mesma década de lançamento de dois dos principais
livros de Gilberto Freyre, também se lança ao problema de identificar: “qual
passado temos e qual futuro podemos ter?” E, para nosso objetivo, como Sérgio
Buarque, nesse livro, interpreta a questão da família patriarcal na formação do
Brasil?
Assim como para Gilberto Freyre, para Sérgio Buarque nós herdamos da
Península Ibérica algumas características que influenciam a organização social
e cultural de nossos povos. Uma delas é a cultura da personalidade, que nos
distancia dos ideais da igualdade essencial entre os homens; aqui há a valori-
zação extremada da pessoa, em especial em relação aos bens materiais, feitos e
virtudes (HOLANDA, 1995, p.32); entre nós, também, há o olhar para o traba-
lho como um fardo, que nos distancia dos ideias da “ética protestante” (Ibidem,
p.38-39), daí a recorrência e defesa do escravismo, e a figura do “patriarca”
como líder incontestável; e, frente a isso, para Sérgio Buarque, os governos são
o único princípio organizador das sociedades ibéricas, tendo como base o per-
sonalismo autoritário. Afinal, “em terra onde todos são barões não é possível
acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”
(Ibidem, p.32).

53
Nesse sentido, Sérgio Buarque distancia-se de Gilberto Freyre que vê na
família o único elemento colonizador. Para Buarque, numa terra em que “todos
são barões”, demonstrando a importância do fator familiar, há a necessidade
de um princípio de poder maior representado pelo Estado e seus governantes.
Retomando as características do colonizador ibérico, o autor, ao separar
os tipos ideais de aventureiro e trabalhador, destaca que entre nós o espírito de
aventura teria sido, em sua forma mais crua – a ânsia de prosperidade sem
custo, de títulos honoríficos e de riqueza fácil –, características da colonização
portuguesa. Aqui, “o que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza,
mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho” (Ibidem, p.49).
Contribui para isso, a característica da plasticidade social do aventureiro portu-
guês, incorporando a cultura indígena e o trabalho escravo; afinal, “sem braço
escravo e terra farta, terra para gastar e arruinar, não para proteger ciosamen-
te, ela [a colonização] seria irrealizável” (Idem). E o fator da ausência de “qual-
quer orgulho de raça” por parte do português e sua predisposição à mestiça-
gem foi formando uma cultura específica nos trópicos.

Em sociedade de origens tão nitidamente personalistas como a nossa, é


compreensível que os simples vínculos de pessoa a pessoa, independentes e
até exclusivos de qualquer tendência para a cooperação autêntica entre os
indivíduos, tenham sido quase sempre os mais decisivos (HOLANDA, 1995,
p.61).

No capítulo sobre nossa “herança rural”, então, Sérgio Buarque apresenta


o legado do nosso passado colonial, calcado na família patriarcal. E somente na
abolição da escravatura se dá o marco divisório para um novo período de nos-
sa história. E, assim, interpreta Brasílio Sallum Júnior, sobre a família patriarcal
em Sérgio Buarque:

O centro de toda organização dos domínios rurais foi, desde a colônia, a


família patriarcal, organizada segundo as normas do antigo direito romano-
canônico que se mantiveram na península Ibérica. Incluem-se no seu círculo
não só os parentes de sangue, mas também os agregados, escravos
domésticos e das plantações. (...).
Nela, o pátrio poder é quase ilimitado, mantendo-se quase imune às pressões
ou restrições de fora. A propriedade rural como um todo estava sujeita à sua
vontade. E ela própria era um organismo que, em princípio, bastava-se a si
mesmo, tendia à autarquia. Tinha escola, capela, produzia sua alimentação
cotidiana, os móveis e apetrechos do engenho saíam de suas serrarias
(SALLUM Jr., 1999, p.245).

54
No mundo colonial e mesmo depois, “o quadro familiar torna-se tão pode-
roso e exigente que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto
doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A
nostalgia desta organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem
necessariamente às preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar
de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades”
(HOLANDA, 1995, p.82). Por isso, a mentalidade da casa-grande teria invadido
inclusive as cidades no século XIX, com o gosto pelo não-trabalho manual, pe-
los símbolos de grandeza, como o título de bacharel, anel de grau, um universo
mental personalista, tudo incompatíveis com as exigências da economia mo-
derna e da democracia liberal igualitária. E esse espírito está presente na pró-
pria elite reformista do Império. Daí a dificuldade para com qualquer reforma
mais significativa nesse país.

Toda a ordem administrativa do país, durante o Império e mesmo depois, já


no regime republicano, há de comportar, por isso, elementos estreitamente
vinculados ao velho sistema senhorial (HOLANDA, 1995, p.88).

Porém, como já dito, para Sérgio Buarque “o Estado não é uma ampliação
do círculo familiar” e “só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é
que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão” (Ibidem, p.141).

Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia
de família – e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal –
tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições à formação e evolução
da sociedade segundo conceitos atuais (Ibidem, p.143-144).

No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família


patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – (...) – ia acarretar um
desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivo ainda hoje (Ibidem,
p.145).

Podemos observar ao longo de nossa história “o predomínio constante das


vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fecha-
dos e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi
sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura
em nossa sociedade” (Ibidem, p.146). As relações que se criam na vida domés-
tica forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós,
afirma Sérgio Buarque, mesmo em nossas instituições democráticas.
Daí, o autor apresenta o conceito de homem cordial:

55
Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a
civilização será a cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”
[expressão de Ribeiro Couto]. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a
generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam,
representam, com efeito, um traço defino do caráter brasileiro, na medida, ao
menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões
de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano
supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São,
antes de tudo, expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico
e transbordante (Ibidem, p.146-147).

Portanto, nossa forma de convívio social, herança da família patriarcal, é o


contrário da “civilidade”, pois ela visa, em primeiro lugar, à defesa “familiar”
frente à dureza da vida em sociedade. Daí a aversão ao ritualismo social, que se
afrouxa e se humaniza aos mais próximos. Entendemos, daí, a expressão “inho”
para aproximar ao “coração”, a predominância do nome individual, do batismo,
que prevalece, um fundo emotivo em nossa forma de convívio, um tipo de reli-
giosidade própria, sem obrigações, mais familiar e com horror às distâncias. E,
reafirma Sérgio Buarque, que no Brasil há “um apego singular aos valores da
personalidade configurada pelo recinto doméstico. Cada indivíduo, nesse caso,
afirma-se ante os seus semelhantes indiferentes à lei geral, onde esta lei contrarie
suas afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais, do resto
do mundo” (Ibidem, p.155). Assim, deriva desse apego emocional familiar à
dificuldade ou impossibilidade pela democracia liberal.
E sobre a democracia no Brasil, o autor afirma:

Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se


naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde
coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda,
confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com
familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um
lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e
tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os
mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da
burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação
tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que
pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e
discursos.
É curioso notar-se que os movimentos aparentemente reformadores, no
Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo: foram de inspiração
intelectual, se assim se pode dizer, tanto quanto sentimental (Ibidem, p.160).

56
Pós-abolição da escravatura há o início do solapamento progressivo da-
quela civilização tradicional. Porém, o fim das bases materiais do patriarcalis-
mo não eliminou suas expressões políticas e intelectuais (SALLUM Jr., 1999,
p.254). E, nossa elite (senhores de engenho, coronéis, a plutocracia da primeira
República) buscava revoluções lentas, seguras e concertadas; no século XIX,
por exemplo, “adotamos as fórmulas da Revolução Francesa ou da república
norte-americana ajustando-as aos nossos velhos padrões patriarcais e coloniais.
As mudanças, assim, teriam sido mais de ‘aparato’ que de ‘substância’” (SALLUM
Jr., 1999, p.255).

A família patriarcal para Oliveira Vianna

No livro de maturidade de Oliveira Vianna, Instituições Políticas Brasilei-


ras, publicado em 1949, dois anos antes de seu falecimento, o autor visava
entender a formação histórica específica brasileira, diferente da trajetória dos
países anglo-saxões, berço da democracia liberal. E, aqui, temos a sua reflexão
sobre a incontestável presença do tipo família patriarcal no processo formativo
e cultural desse país.
Para Oliveira Vianna, o individualismo da família extensa gerou entre nós
a despreocupação com o interesse coletivo, uma ausência de espírito público e
de espírito do bem comum, de solidariedade comunal e coletiva, bem como,
carência de instituições corporativas (VIANNA, 1987, p.127). Daí decorre nossa
dificuldade para com a democracia liberal, devido à herança de um modelo
familiar patriarcal.
O autor, para denominar esse momento formativo brasileiro, identifica as
famílias como clãs. Temos, assim, o clã feudal e o clã parental. Maria Hermínia
Tavares de Almeida assim descreve o pensamento de Oliveira Viana:

No Brasil, a colonização produziu duas instituições fundamentais, moldadas


por dois arraigados complexos culturais, em tudo avessos aos costumes e
práticas democráticas: o clã feudal e o clã parental. O clã feudal brota da
grande propriedade rural autossuficiente. É uma estrutura complexa e
hierarquizada. No seu vértice está o senhor do feudo e sua família. Abaixo
dele, vêm seus auxiliares mais graduados: o administrador e o feitor, e no
mesmo plano destes, o capitão da fazenda. Em seguida, o povo-massa dos
campos, o grupo variado de dependentes, presos ao senhor por distintos laços
de subordinação: trabalhadores obrigados, tais como sitiantes, agregados,
colonos, foreiros; escravos; índios administrados; acoitados e capangas;
pequenos proprietários residentes no domínio rural; pequenos comerciantes
vicinais (ALMEIDA, 1999, p.299-300 – grifo nosso).

57
Do clã feudal temos os tipos sociais: senhor de engenho, sesmeiro, fazen-
deiro, senhor de currais, estancieiro, sertanista, bandeirante, caudilho do pam-
pa, enfim, “senhores de domínio”, junto a seus capangas, cabras, matadores
pagos, capitães-do-mato. E temos as instituições típicas: imunidade de feudo, o
dever de obediência e fidelidade e sua contrapartida, o dever de proteção e
assistência, que ligavam ‘morador’ e grande proprietário. O clã feudal foi “a
única forma de solidariedade do povo-massa dos campos que a nossa nobreza
territorial conseguiu organizar” (VIANA, 1987, p.206).
Quanto ao clã parental, resultado do clã feudal, temos uma:

Organização aristocrática moldada pelo complexo da família senhorial, um


dos principais agentes de formação do direito público costumeiro no Brasil.
Mais extenso e impreciso do que a família senhorial, o clã parental recobre a
família extensa; a parentela de sangue, afinidade ou adoção. Seus elementos
constitutivos são: o patriarca da família; os parentes consanguíneos (filhos e
netos); os parentes colaterais (irmãos, tios e sobrinhos); os parentes por
afinidade civil (genros e cunhados); os parentes por afinidade religiosa (os
‘compadres’ e ‘afilhados’); os parentes por adoção (os ‘crias’ da casa senhorial
e, sem dúvida, os ‘moleques mimosos’ de Antonil e Vilhena) (VIANNA, 1987,
p.212; ALMEIDA, 1999, p.300).

Enfim, um sistema complexo de deveres e normas une e dá solidez ao clã


parental: obrigações de solidariedade, responsabilidade coletiva, proteção e
assistência recíproca. Isso, porque, as condições da colonização favoreceram a
constituição dessa trama familiar específica. E, algumas instituições tornaram-
se mais espessas: a endogamia, o compadrio, o talião privado, que envolvia a
todos nas guerras entre famílias. E, consequentemente, em torno do clã paren-
tal girou a atividade política da colônia, transpondo para a esfera pública o
conjunto inteiro de vínculos que unia a parentela.
Em síntese, os clãs feudais e os clãs parentais definiram as feições da vida
pública no Brasil colonial; seus complexos culturais típicos moldaram normas,
usos e hábitos políticos que davam substância a nosso direito público costu-
meiro. O legado de três séculos de colonização foi, assim, uma sociedade dis-
persa em herdades rurais, pouco coesa e fortemente hierarquizada, e uma
cultura política privatista, particularista, personalista, localista e paternalista-
autoritária. Sobre esse terreno impróprio, e sem cuidar de modificá-lo, as elites
que fizeram a independência quiseram edificar a democracia (ALMEIDA, 1999,
p.300-301).
Com o surgimento da monarquia constitucional [pós 1822/1824] e a regra
do sufrágio, algo de novo aconteceu no Brasil. Os chefes feudais tiveram, então,
de se solidarizar, cooperar, também em relação à mobilização dos seus clãs em
favor do controle do processo eleitoral, dividindo-se através dos dois únicos

58
partidos nacionais existentes. E cada grupo contou com um chefe ostensivo,
“com governo e autoridade em todo o município e a cujo mando todos obedecem”
(VIANNA, 1987, p.219).
Este chefe ostensivo é um agente unificador local: é o garante da unidade
do comportamento dos clãs agremiados num destes dois grupos sociais, não
existentes anteriormente. [...] estão todos eles unidos agora debaixo de uma
legenda, de um lábaro, de uma bandeira, que até então não arvoravam: são
Conservadores ou Liberais (VIANNA, 1987, p.219).
Os clãs eleitorais eram de bases municipais, formados a partir do clã feu-
dal e parental, com objetivos políticos. Isto possibilitava ao chefe local e a sua
vasta parentela “o direito de oprimir os clãs rivais, de aconchegar parentes e
amigos nos pequenos ofícios locais – o que era um meio, praticamente, de as-
segurar-se contra a possibilidade de perseguições partidárias dos funcionários
e autoridades locais” (VIANNA, 1987, p.222). Daí um traço de nosso direito
público costumeiro: “inquéritos abafados”, “prisões” injustificadas, intimações
policiais para “diligências” (intimando o oponente), nomeação por parte do
Governador [esse nomeado pelo poder imperial] de delegados, subdelegados,
inspetores de quarteirão e o “recrutamento” às armas de quem era contrário,
tudo em consonância com o chefe ostensivo local do mesmo partido do Gover-
nador. Havia também a nomeação para a Guarda nacional e a nobiliarquia do
Império (comendador, barão, visconde, entre outros títulos). A função política
da Guarda Nacional era “impor-se aos demais clãs feudais e senhoriais pelo
princípio da disciplina e obediência militar e também por esse aliciamento
espontâneo, que o comando militarizado naturalmente suscita” (Ibidem, p.224).
Mas, para a estabilidade deste sistema de mando, contribuía também a
troca dos Gabinetes no governo do Centro. De Conservador para Liberal e vice-
versa, e com a troca do bastão de chefe local de um a outro “clã eleitoral” (Ibi-
dem, p.226).
Portanto, isto não significou que o povo-massa ficasse independente dos
senhores, mas continuaram na dependência devido ao princípio ou força da
agregação, presente desde o primeiro século de nosso descobrimento. “O que
equivale dizer que o clã eleitoral não tinha nenhuma origem democrática, não
provinha da vontade do povo; derivava, sim, da propriedade da terra – do di-
reito feudal da sesmaria ou do latifúndio” (Ibidem, p.229).
Os senhores rurais tinham agora de organizar o povo-massa local para vo-
tarem, contando com o apoio e poder do Presidente da Província / Governador
(e seu poder de nomeação das forças repressivas) e que tinha o apoio do Cen-
tro. Os senhores locais tinham que “procurar para si o apoio do Governador”
(Ibidem, p.230) e vice-versa.
Era a democracia sobreposta a uma realidade sociocultural adversa, do-
minada pelo espírito de clã e pelo primitivismo do povo-massa, que transforma
as eleições em um espetáculo tumultuado e violento e seus resultados em farsa

59
(ALMEIDA, 1999, p.302). Dela surge as instituições: partido dos governadores,
partido dos coronéis, nepotismo, todos marcadas pelo privatismo e o persona-
lismo. Enfim, chegamos à democracia sem que se houvesse formado um “com-
plexo democrático de Nação”, um sentimento de coletividade nacional e a per-
cepção de um Estado como instrumento de realização do bem público e dos
interesses nacionais. O Estado é um butim privado, os partidos instrumentos
de realização dos interesses particularistas de chefetes e seus protegidos (Ibi-
dem, p.303).
Enfim, conclui Maria Hermínia Tavares de Almeida, “para Oliveira Viana,
uma elite de indivíduos excepcionais e um dirigente dotado da consciência
nacional que falta ao povo parecem ser, assim, necessários para que o país
escape ao destino ao qual o condenara sua história. A transformação do Brasil
em nação plenamente constituída não é, afinal, de todo impossível. Mas requer
que se discutam as condições de êxito da política transformadora” (ALMEIDA,
1999, p.304-305). E, “o desafio central da reforma política no Brasil é desenhar
instituições específicas capazes de neutralizar, ou pelo menos reduzir, por
meio de um sistema de freios e contrapesos, a influência adversa do espírito de
clã. Criar um ambiente hostil à cultura política privatista, personalista e patri-
monialista do clã é condição prévia para a liberdade, democracia e progresso”
(Ibidem, p.309). Enfim, a solução política que Oliveira Viana pensava para o
Brasil era a do enfrentamento dos clãs familiares e de suas redes particularistas.

Considerações finais

Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Oliveira Viana, cada qual a


sua maneira, situaram a família patriarcal rural como referência na construção
da sociedade brasileira. Eles, com suas pesquisas, apontaram a relevância des-
se tipo de família senhorial que foi se constituindo, de norte a sul desse imenso
território, ao longo de quatrocentos anos, impondo seus valores e seu modo de
vida, enquanto sinônimo de sobrevivência e de manutenção de poder, frente a
um Estado mais ou menos independente em sua ação aos grupos familiares.
Atualmente, sem dúvida, há um avanço significativo de novas pesquisas
empíricas sobre a referência “família patriarcal brasileira”, bem como, sobre a
diversidade de outros modelos de organização social encontrado no imenso
território brasileiro neste longo período (CORRÊA, 1981; SAMARA, 1987;
NAZZARI, 2001; FRAGOSO, ALMEIDA, SAMPAIO (orgs.), 2007).
Entretanto, as novas pesquisas sobre as famílias patriarcais rurais e sua
ação e permanência ao longo do tempo parecem continuar a apontar para as
evidências necessárias para se entender a “família como valor” no Brasil, como
salienta Roberto Da Matta (1987). Vide, por exemplo, os trabalhos de Ricardo
Costa de Oliveira (2001; 2012; 2015), que empiricamente demonstra a centra-
lidade do conceito família na realidade social e política brasileira em pleno

60
século XXI, na qual, “redes familiares controlam partidos políticos, controlam o
centro do poder executivo e formam redes atravessando o poder legislativo com
parlamentares hereditários, sempre se renovando pelas gerações. O poder judici-
ário também sente as redes de cumplicidades e reproduções de algumas famílias
e seus protegidos” (OLIVEIRA, 2012, p.13). Enfim, ainda é fundamental buscar
entender a referência “família patriarcal brasileira”.

Curitiba, 30 de março de 2016.


1ª sessão do curso de extensão “Família, política e
parentesco no Brasil” promovido pelo grupo de pesquisa
NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses – UFPR)
Tema: A família patriarcal brasileira
Palestrante: Professor Doutor Alessandro Cavassin Alves

Referências

ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. (1999). Oliveira Viana. Instituições Políticas brasileiras. In:
MOTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico. 2ª ed. São Paulo:
Editora Senac São Paulo, pp.293-314.

BASTOS, Elide Rugai. (1999). Gilberto Freyre. Casa-grande & Senzala. In: MOTA, Lourenço Dantas
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pp.215-234.

BOURDIEU, Pierre. (1996). Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus.

CORRÊA, Mariza. (1981). Repensando a família patriarcal brasileira. Cad. Pesq. São Paulo (37): 5-
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DA MATTA, Roberto. (1987). A família como valor: considerações não-familiares sobre a família à
brasileira. In: ALMEIDA, Ângela Mendes de. [et al]. Pensando a família no Brasil; da colônia à mo-
dernidade. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo: UFRRJ, pp.115-136.

FREYRE, Gilberto. (1964). “The Patriarchal Basis of Brazilian Society”. In Joseph Maier & Richard
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Sugestão de leitura complementar


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SP: Brasiliense, pp.13-38.

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Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 15ª ed.
rev. São Paulo: Global, pp.8-18.

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WILLEMS, Emilio. (1953). “The Structure of the Brazilian Family”. Social Forces, 31, n.4, pp.339-
345.

63
CAPÍTULO 3

FAMÍLIA E POLÍTICA:
REPENSANDO RELAÇÕES1

MÔNICA HELENA HARRICH SILVA GOULART

A correlação analítica entre os temas política e família ficou direcionada


por várias décadas (precisamente entre 1950 até 1990) aos estudos que re-
montavam essa discussão ao Brasil do passado, ou seja, Colonial, Monárquico e
da Primeira República, além de poucas obras retratando os anos 1940. As pes-
quisas vinculadas a estas questões (poder político + relações de parentesco)
tinham o propósito de explicar a realidade social a partir de contextos específi-
cos: o Brasil (ou parte dele) marcado pelo (pré)capitalismo tardio, pautado
pela economia eminentemente agroexportadora; o Brasil da elevada concen-
tração populacional nos espaços rurais; o Brasil do elevadíssimo índice de
analfabetismo; e o Brasil arcaico em termos de organização partidária e das
instituições públicas.
Tais abordagens históricas trazem uma espécie de regularidade e até
mesmo de normalidade no modus operandi desta relação. Ou seja, como se o
campo da política fosse mesmo o espaço priorizado para as famílias, de certa
forma as mais notáveis de cada lugar. Compondo o debate, alguns trabalhos
apontam para regiões específicas, como a nordestina, uma vez que indicam a
dinâmica da conexão político-familiar como fato “inerente” à estrutura social
precária. Outros apontam para lugares onde há exclusão dos aspectos mais
básicos da cidadania, áreas fundadas politicamente em relações tradicio-
nais/patriarcais, estabelecidas “desde sempre” pela conjugação assimétrica

1
Importante destacar que o presente capítulo (esboçado inicialmente para a palestra "Família e política:
repensando relações", da 2ª sessão do Curso de Extensão NEP: Família, parentesco e política no
Brasil, realizada em 27 de abril de 2016) serviu de base para desenvolvimento do artigo de OLIVEIRA,
Ricardo Costa de; GOULART, Mônica Helena Harrich Silva; VANALI, Ana Christina; MONTEIRO,
José Marciano. Família, parentesco, instituições e poder no Brasil: retomada e atualização de uma agen-
da de pesquisa. Revista Brasileira de Sociologia, v. 5, p. 165-198, 2017.

65
entre os interesses público e privado. Também existem estudos que indicam as
mesmas formas de relação (política + família) em outras regiões do Brasil,
ainda que permeadas por certos discursos e ideologias de modernidade, como
no caso do Paraná da República Velha. (GOULART, 2014).
Porém, o que se percebe atualmente, e cada vez mais, é a significativa pre-
sença de famílias dominando politicamente municípios e estados, além de vá-
rios espaços importantes no cenário nacional. Sobrenomes firmados não so-
mente em ocupações político-eletivas, mas também de nomeação. Pontuamos,
dessa forma, que o perfil familiar da política brasileira não se restringe ao pas-
sado, mas deve ser visto como um fenômeno que atravessa momentos diferen-
tes da História do Brasil e que, ainda hoje, tem seu lugar garantido na posse
irrestrita de cargos políticos em boa parte das esferas de poder. Encontramos
continuadamente sobrenomes políticos históricos e de seus parentes em espa-
ços do legislativo, do executivo, do judiciário2, em instituições como tribunal de
contas, ministério público, empresas públicas, cartórios, mídia, grandes em-
presas da construção civil, do setor bancário 3 entre outros.
Em verdade, o que se verifica a cada pleito, tanto do ponto de vista dos es-
tados como das pequenas cidades do interior, em capitais e no plano federal 4, é
a continuidade da política como campo propício para o exercício de atividades
familiares5. Pode-se encontrar no Estado, e não raramente, netos, bisnetos ou

2
Até mesmo os representantes “mais notáveis” do judiciário, que estão sob os holofotes da grande mídia
enquanto paladinos da moralidade pública, têm seus sobrenomes misturados aos ramos familiares mais
presentes na tradicional política brasileira e regional. Conferir OLIVEIRA, 2018.
3
Importante consultar: CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta. (Orgs.).
Os Donos do Capital. Trajetória das principais famílias empresariais do capitalismo brasileiro. Rio de
Janeiro: Autografia Edição e Comunicação, 2017.
4
Vale conferir: Herdeiros de políticos ocupam metade da Câmara. Congresso em Foco. 3 fev. 2016.
Disponível em: <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/herdeiros-de-politicos-ocupam-metade-da-
camara/>. Acesso em: 26/04/2016.
5
Para ilustrar alguns casos da estreita relação entre família e política em diferentes estados do Brasil,
durante os anos 2013 a 2016, segue: Opinião: Política é negócio de família em Alagoas. Alagoas na
NET. 3 set. 2014. Disponível em: <http://www.alagoasnanet.com.br/v3/opiniao-politica-e-negocio-de-
familia-em-alagoas/>. Acesso em: 26 abr. 2016. Governo do Paraná é negócio de poucas famílias, diz
professor. 18 maio 2015. Rede Brasil Atual. Disponível em:
<http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2015/05/governo-do-parana-e-negocio-de-poucas-familias-
diz-professor-3240.html>. Acesso em: 26/04/2016. De pai para filho: eleição vira negócio de família
no Piauí. Mural da Vila. 28 set. 2014. Disponível em: <http://www.muraldavila.com.br/noticias/de-pai-
para-filho-eleicao-vira-negocio-de-familia-no-piaui-26121.html>. Acesso em: 26/04/2016. Política no
Maranhão se eterniza como negócio de família. Bastidores da Notícia. 14 out. 2014. Disponível em:
<http://luiscardoso.com.br/politica/2014/10/politica-no-maranhao-se-eterniza-como-negocio-de-
familia/>. Acesso em: 26/04/2016. 2016. Murici, a cidade onde a família de Renan Calheiros se
reveza no poder. Veja.com.13 abr. 2013. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/murici-
a-cidade-onde-a-familia-calheiros-se-reveza-no-poder>. Acesso em: 26/04/2016. Política em família:
graus de parentesco marcam cenário no Tocantins. Conexão Tocantins. 11 ago. 2011. Disponível em:
<http://conexaoto.com.br/2011/08/11/politica-em-familia-graus-de-parentesco-marcam-cenario-do-
Tocantins>. Acesso em: 26/04/2016. Clãs políticos. Famílias controlam 45% das prefeituras cearen-
ses. O Povo Online. 7 fev. 2016. Disponível em:
<http://www.opovo.com.br/app/opovo/dom/2016/02/06/noticiasjornaldom,3572309/clas-politicos-familias-
controlam-45-das-prefeituras-cearenses.shtml>. Acesso em: 26/04/2016. Família Alves no RN: concentração
de poder. Disponível em:<http://www.robsonpiresxerife.com/notas/o-poder-da-familia-alves-no-rio-grande-

66
trinetos daqueles que em tempos remotos já estavam presentes nos espaços de
poder, sustentados por relações e vínculos familiares que lhes permitiam o
exercício político. Com o mesmo empenho eleitoral, também preparam seus
sucessores escolhendo “a dedo” filhos/as, netos/as, irmãos/irmãs, sobri-
nhos/as, genros/noras. O fato é que esta questão, marcada pela análise do viés
parental da política em meio a sua continuidade, longa duração e não como
característica do passado, foi retomada por autores da Sociologia Política e da
História de forma mais intensa e expressiva somente a partir dos anos 1990.
O presente texto tem o propósito de mapear, do ponto de vista da produ-
ção acadêmica, os principais autores e estudos que assinalam as seguintes
reflexões: Qual o lugar da variável família6 na análise da política brasileira?
As relações familiares são relevantes para compreensão da dinâmica do jogo
político? O poder político de certas famílias apresenta longa duração em
termos de concentração de cargos públicos, eletivos ou não? O que faz com que
determinados grupos familiares ocupem historicamente instituições públicas
ao longo do tempo, ainda que estas sejam permeadas racionalmente por novas
dinâmicas e arranjos estruturais?
Para tanto, procuramos apontar os caminhos que a referida temática per-
correu, sendo temporalmente preterida por parte de autores das Ciências So-
ciais e, posteriormente nos anos 1990, retomada em pesquisas empíricas e
teóricas que consideram a família como variável central para compreensão da
realidade política e das relações de poder. Em outros termos, apresentaremos
como esse mapa sociológico foi reconsiderado suscitando o devido lugar a esta
agenda de pesquisa que, para além da academia, do debate científico e episte-

do-norte/>. Acesso em: 26 abr. 2016. Isso é Rondônia: família Donadon luta na justiça para manter
empregos de parentes. Tudo Rondônia.com [s.d.]. Disponível em: <http://tudorondonia.com.br/noticias/isso-
e-rondonia-familia-donadon-luta-na-justica-para-manter-empregos-de-parentes-,1366.shtml>. Acesso em:
26/04/2016.
Governadora de Roraima emprega 19 familiares em secretarias. Globo.com. 7 jan. 2016. Disponível
em:<http://oglobo.globo.com/brasil/governadora-de-roraima-emprega-19-familiares-em-secretarias-
14993971>. Acesso em: 26/04/2016. Afiliado político de José Sarney é eleito governador do Amapá pela
3ª vez. Uol Eleições 2014. 16 out. 2014. Disponível em:
<http://eleicoes.uol.com.br/2014/noticias/2014/10/26/waldez-e-eleito-governador-do-amapa-pela-3-vez.htm>.
Acesso em 26/04/ 2016. João Campos, o herdeiro de Eduardo, chega à política. Carta Capital. 25 fev. 2016.
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/politica/joao-campos-o-herdeiro-de-eduardo-chega-a-
politica>. 26/04/2016. A grande família: bons de voto, clãs se perpetuam na política de Mato Grosso do
Sul. Mídia Max. 24 maio 2014. Disponível em: <http://www.midiamax.com.br/noticias/911014-a-grande-
familia-bons-de-voto-clas-se-perpetuam-na-politica-de-mato-grosso-do-sul.html>. Acesso em: 26/04/2016.
Política como negócio de Família: Mário Covas Neto é eleito presidente municipal do PSDB de São
Paulo. Jornal Grande Bahia. 1 jun. 2015. Disponível em:
<http://www.jornalgrandebahia.com.br/2015/06/politica-como-negocio-de-familia-mario-covas-neto-e-eleito-
presidente-municipal-do-psdb-de-sao-paulo/>. Acesso em: 26/04/2016. Família Galindo forma novo grupo
político para disputar eleições em 2016. Revista Sergipe News. 29 out. 2015. Disponível em:
<http://revistasergipenews.com.br/2015/10/29/familia-galindo-forma-novo-grupo-politico-para-disputar-
eleicoes-em-2016/>. Acesso em: 26/04/2016.
6
Vale ressaltar que o tema FAMÍLIA fora apropriado por áreas como o Direito Civil, a Psicologia Social e
Antropologia. Porém, pensado essencialmente no sentido de políticas públicas, ou seja, num caráter diferente ao
qual examinamos aqui.

67
mológico, retrata, de forma singular, a práxis que define o “fazer e participar”
da política no Brasil.

A centralidade da esfera familiar para a análise da política brasileira

Da mesma forma que Ricardo Costa de Oliveira 7 (1993; 1995;1997;


1998;1999; 2000; 2001), durante os anos 1990, reinaugura 8 a discussão da
política por meio da visualização das relações de parentesco 9 observando o
contexto paranaense, Letícia Bicalho Canêdo 10 (1994;1995; 1997) sinaliza em
seus artigos, na mesma época, a centralidade das relações de parentesco para
pensar a política mineira, bem como a continuidade de certos sobrenomes.
Seguindo abordagem semelhante, na década de 2000, Igor Gastal Grill11 (2004;
2008; 2012) também enfatiza em suas produções os aspectos familiares como

7
Ricardo Costa de Oliveira, Sociólogo, é Professor Associado na Universidade Federal do Paraná (UFPR),
onde trabalha desde 1991. Ao longo de sua carreira desenvolveu inúmeras atividades de ensino e pesquisa, além
de várias orientações em trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado pelo
Departamento de Ciências Sociais e pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Ex-coordenador da
Secretaria de Ciência e Tecnologia do Paraná. Tem pesquisas publicadas também na área de genealogia genéti-
ca brasileira, sendo membro de um projeto internacional sobre o tema. Em 1994 criou o Núcleo de Estudos
Paranaenses (NEP), grupo cada vez mais ativo em pesquisas e publicações na área de política e relações de
parentesco. Disponível em: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4700287A7>.
Acesso em: 05/09/207.
8
O tema “família e relações de parentesco” considerado como elemento importante para explicação das rela-
ções sociais e da configuração da estrutura política brasileira teve destaque nas primeiras grandes obras de
abordagem sociológica e histórica de autores como Gilberto Freyre (2013) (Casa Grande & Senzala, de
1933), Sérgio Buarque de Holanda (1995) (Raízes do Brasil, de 1936), Oliveira Vianna (1987) (Instituições
Políticas Brasileiras, de 1946), Aguiar Costa Pinto (1980) (Lutas de famílias no Brasil, de 1949), Antonio
Cândido (The Brazilian Family, 1951), Emílio Willems (The Structure of the Brazilian Family, de 1953), Cid
Rebelo Horta (Famílias Governamentais em Minas gerais, de 1956), entre outros. (OLIVEIRA, GOULART,
VANALI, 2016). Ainda que marcados por especificidades teóricas, metodológicas e, principalmente, que
impliquem em posicionamentos positivo ou negativo acerca da família na construção das relações sociais e no
desenvolvimento da política e do Estado no Brasil, os autores apontam robustamente a atuação familiar ao
demarcar sua presença na construção da realidade social brasileira.
9
A inspiração teórica também se deu pelas pesquisas de genealogia do prof. Dr. Francisco Antonio Dória,
apresentadas na obra Os Herdeiros do Poder (2009), publicada primeiramente em 1994.
10
“Historiadora, Letícia Bicalho Canêdo é Professora Titular aposentada na Faculdade de Educação da UNI-
CAMP, onde trabalhou de 1983 a 2012. Além das atividades de docência, pesquisa e orientação, também criou
o FOCUS -Grupo de Pesquisa sobre Instituição Escolar e Organizações Familiares em 1994 e coordenou os
trabalhos de pesquisa deste grupo até 2012. Seu trabalho de pesquisa é centrado na história e nas recomposições
contemporâneas dos poderes do Estado, com acento nas transformações das elites políticas e demais grupos
dirigentes (recrutamento, modos de legitimação, trajetórias), que são inseparáveis de invenções de instituições
como a escola, o voto e a representatividade parlamentar.” Disponível em:
<https://leticiabcanedo.wordpress.com/sobre/>. Acesso em: 04/09/2017.
11
Igor Gastal Grill: “Possui Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (1996; 1995), mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (1999; 2003), com estada de doutoramento junto à École des Hautes Études en Sciences Sociales
(Paris/2002). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, atualmente é Professor Associado II na UFMA
e está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. É editor da Revista Pós Ciências Sociais -
REPOCS. Foi coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFMA (2011-2013).
Desenvolve pesquisas sobre processos, condicionantes e lógicas de seleção de elites. Coordena o Laboratório de
Estudos Sobre Elites Políticas e Culturais - LEEPOC.” Disponível em:
<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4703643D2>. Acesso em: 15/09/2017.

68
elementos indispensáveis para o entendimento da política ao tomar como
contexto de análise o estado do Rio Grande do Sul.
A partir de pesquisas empíricas Oliveira, Canêdo e Grill 12 passam a indi-
car com destaque a variável família como aspecto relevante para os estudos da
política brasileira não mais somente em contextos atrasados e patriarcais, mas
modernos e contemporâneos. O cenário político analisado pelos autores en-
contra-se notadamente em meio à complexidade da realidade brasileira capita-
lista e urbanizada, fundada em instituições de base republicana e democrática.
Para eles, a perspectiva de se imprimir a tônica “família” na percepção política
acaba sendo chave importante para compreensão das relações de poder no
Brasil, do funcionamento das instituições e do jogo político, de forma geral.
Determinados grupos familiares concentram historicamente, alguns por
séculos, privilégios sociais, econômicos e, sobretudo, posições de prestígio.
Nesse sentido, o quadro abaixo identifica as produções dos três autores a res-
peito do tema e aponta também seus períodos e contextos de análise 13.

QUADRO 1 – OLIVEIRA, CANÊDO, GRILL: “FAMÍLIA E POLÍTICA”

AUTOR OBRAS/TEXTOS ESPECÍFICOS DA TEMÁTICA

Letícia Bicalho Canêdo14 CANÊDO, Letícia Bicalho. Aprendendo a votar. In:


PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. (Orgs.).
História da Cidadania. 3. ed. São Paulo: Ed. Con-
texto, 2005.
______. Caminhos da Memória: parentesco e poder.
Revista Textos de História, Brasília, v. 2, n. 3, p.
85-122, 1994.
______. Metáforas do Parentesco e a duração em
Política. Revista Textos de História, Brasília, v. 3,
n.1, p. 82-103, 1995.
______. As metáforas da família na transmissão de
poder político: questões de método. Cadernos
CEDES, Campinas, v. 18, n. 42, ago. 1997.

12
Conferir o QUADRO 1.
13
As obras e artigos publicados pelos autores no fim de 2017 e primeiro semestre de 2018, principalmente
OLIVEIRA, não foram consideras para o respectivo Quadro.
14
Importante salientar que a professora Letícia Bicalho Canêdo, hoje aposentada pela UNICAMP, teve grande
contribuição científica em outros temas, também caros às Ciências Sociais, como: trabalho, organização
sindical, participação política, educação e cultura, Teoria das Organizações, politização de grupos dirigentes,
agências de cooperação científica, voto secreto e feminismo, entre outras discussões. Disponível em:
<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4787520Y6&dataRevisao=null>. Acesso em:
03/09/2017.

69
______. Herança na política ou como adquirir dispo-
sições e competências necessárias às funções de
representação política. Pró-Posições, Campinas, v.
13, n. 2(39), set./dez., 2002.
______. Ritos, símbolos e alegorias no exercício pro-
fissional da política. In: CANÊDO, Letícia Bicalho.
(Org.). O sufrágio universal e a invenção demo-
crática. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
______. Um capital político multiplicado no trabalho
genealógico. Revista Pós Ciências Sociais, Mara-
nhão, v. 8, n. 15, p. 55-75, jan./jun. 2011.

Ricardo Costa de Oliveira OLIVEIRA, Ricardo Costa de. Conquista e coloniza-


ção do Brasil: espaço, natureza e sociedades na
longa duração. Revista de Sociologia e Política,
Curitiba, n.1, p. 03-27, 1993.
______. A formação do Paraná em 1853. In: I Con-
gresso do Brasil Império, Vassouras, 1995.
______. Notas sobre a política paranaense de 1930-
1945. Revista de Sociologia e Política, Curitiba,
n.9, p. 47-56, 1997.
______. A transformação burguesa no Paraná. In: XVI
Jornadas História Econômica, Buenos Aires,
1998.
______. A burguesia imigrante no Paraná. In: III
Congresso Brasileiro de História Econômica,
Curitiba, 1999.
______. Bandeirantes e cristãos novos em Curitiba.
Revista da Academia Paranaense de Letras,
Curitiba, v. 43, p. 101-115, 2000.
______. O Silêncio dos Vencedores: genealogia,
classe dominante e Estado no Paraná. Curitiba:
Moinho do Verbo, 2001.
OLIVEIRA, Ricardo Costa de; SALLES, Jefferson de
Oliveira; KUNHAVALIK, José Pedro. A Construção
do Paraná Moderno: políticos e política no Gover-
no do Paraná de 1930 a 1980. Curitiba: SETI, 2004.
______. Famílias, poder e riqueza: redes políticas no
Paraná em 2007. Sociologias, Porto Alegre, n. 18, p.
150-169, jun./dez. 2007.
______. Na Teia do Nepotismo: sociologia política
das relações de parentesco e poder político no
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no exercício do métier. TOMO, São Cristóvão, SE, n.
10, jan./jun. 2007.
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______. Heranças Políticas no Rio Grande do Sul.
Revista NEP, Curitiba, v. 3, p. 471-484, 2017.

FONTE: A Autora.

De maneira mais específica, a proposta de Oliveira e Canêdo é pensar a


política para além das estatísticas dos partidos políticos e dos resultados elei-
torais (mas também a partir deles, conforme enfatiza Grill); embora ratifique-
mos sua importância analítica. Boa parte das Ciências Sociais, principalmente a
Ciência Política, deixou de considerar a família como elemento significativo

71
para conhecimento do jogo político em contextos contemporâneos. Como se tal
avaliação demarcasse interpretações incoerentes, ou que diante do processo
de institucionalização da política e da realidade social essa variável fosse des-
colada e incompatível com as novas abordagens teóricas e seus métodos de
pesquisa. Para Canêdo (1994), a influência do caráter mais técnico e estatístico
apresentado pela obra de Maurice Duverger, Os Partidos Políticos (1967), fez
com que a análise da relação político-familiar ficasse relegada aos contextos do
passado e não como uma lógica operante junto aos partidos políticos e aos
resultados eleitorais do pós 1945, do período da ditadura militar e, fundamen-
talmente, após os anos da redemocratização.
Segundo a autora, após os anos 1950 e 1960, estabeleceu-se uma espécie
de “contradição analítica” ao se vincular o campo político com aspectos famili-
ares, haja vista que tal situação não seria mais correlata à práxis política da
sociedade moderna – pois a “nova realidade” se validaria politicamente apenas
pela presença de outras forças e demandas, de outras instituições e atores (os
políticos, representantes de seus partidos e falando em nome de seus eleito-
res). Nessa linha, contudo, Canêdo (1994; 1995) aponta que tais abordagens
limitaram a complexidade da política uma vez que esta é construída fundamen-
talmente por laços sociais em cuja base se encontra a estrutura familiar. Afinal
(...)”os estudos sobre o poder naturalizam os fatos do político ao reterem so-
mente a expressão da luta política em siglas partidárias e em resultados numé-
ricos das eleições, supostamente decodificados por qualquer pessoa.” (CANE-
DO, 1995, p. 87).
Ao fazer uso de nomes e de sobrenomes, bem como de genealogias, bio-
grafias e busca de trajetórias individuais e familiares, Oliveira (2001; 2004;
2007; 2012; 2015; 2016), Canêdo (1994; 1995; 1997; 2005; 2011) e Grill
(2003; 2004, 2007, 2008, 2012) apontam em suas obras a dinâmica do jogo
político que só pode ser percebida por meio dos vínculos de parentesco. Se-
gundo os autores, estes abrem condições para o estabelecimento de redes de
proteção e de continuidade, e até mesmo de fortalecimento político numa
perspectiva horizontalizante no domínio de cargos estratégicos e de longa
duração. Ou seja, certas parentelas atravessam momentos históricos diferenci-
ados, ao mesmo tempo que se fortalecem no poder, agregando novos capitais 15
por meio de casamentos com grupos emergentes, tanto do ponto de vista eco-
nômico como político.

15
Segundo a teoria de Pierre Bourdieu, o termo “capital” pode ser entendido como “(...)um ‘recurso’,
segundo o modelo do ‘patrimônio’, isto é, um estoque de elementos (ou ‘componentes’) que podem ser
possuídos por um indivíduo, um casal, um estabelecimento, uma ‘comunidade’, um país, etc. Um capital
é também uma forma de ‘segurança’, especialmente do ponto de vista do futuro; tem a característica de
poder, em determinados casos, ser investido e acumulado de modo mais ou menos ilimitado.” (CATANI,
NOGUEIRA et al., 2017, p. 101).

72
Vários trabalhos e pesquisas desenvolvidas nos últimos anos têm sido re-
alizadas a partir da inspiração e influência dos três autores. Ainda que focali-
zados em esferas de poder e instituições distintas, inúmeros estudos foram
dirigidos para análises sobre o legislativo, o executivo, o judiciário, tribunais de
conta, futebol, maçonaria, cartórios, atores políticos e famílias específicas, as-
sim como investigações sobre a política familiar local e regional. Pode-se tomar
como exemplo variados estudos: ADILSON FILHO, 2013; ALVES, 2015, 2017;
AMARAL, 2016; COELHO, 2017; FIUZA, 2016; GOMES, 2017; GOULART, 2008,
2014, 2015, 2016a, 2016b, 2017; KAMINSKY, 2013; LAIBIDA, 2016; MACHA-
DO, 2016; MONTEIRO,2017; PEREIRA, 2016; PEREIRA, OLIVEIRA, 2017; PI-
MENTEL, 2014; RESENDE, 2014; 2015; SILVA, 2015; VANALI, 2017; GRANA-
TO, 2017; ZAPANI, 2017; OLIVEIRA, MONTEIRO, GOULART, VANALI, 2017.
Afinal, conforme destaca Oliveira (2012, p. 13), basta uma leitura mais atenta
da realidade para perceber que lugar ocupa a variável família e seus tentáculos
consanguíneos nos meios sociais mais articulados:

A minha tese é simples. Família ainda importa. As estruturas de parentesco


formam parte da realidade social e política brasileira no século XXI. Redes
familiares controlam partidos políticos, controlam o centro do poder
executivo e formam redes atravessando o poder legislativo com
parlamentares hereditários, sempre se renovando pelas gerações. O poder
judiciário também sente as redes de cumplicidades e reproduções de algumas
famílias e seus protegidos. O Tribunal de Contas em boa parte é um tribunal
de parentes também. Ainda hoje os cartórios representam antigas redes
familiares. A mídia, a intelectualidade, os jornalistas também já formaram
grandes redes de parentesco e domínio familiar, agora em processo de
modernização e profissionalização.

Sem dúvida, Canêdo, Oliveira e Grill, cada um a partir de suas bases meto-
dológicas, abriram caminhos para outros pesquisadores percorrerem e inicia-
rem novas investigações. Inegavelmente, os estudos dos autores citados e os
demais trabalhos acadêmicos que passaram a assumir a variável família se
tornam cada vez mais relevantes ao evidenciarem sobrenomes se ampliando
nos espaços de poder através do nepotismo e, paralelamente, parentelas que
conseguem ter continuidade na esfera pública, mesmo diante de transforma-
ções e mudanças sociais. Então, cabe salientar questões epistemológicas fun-
damentais, as quais devem perpassar os referidos estudos: O que faz com que
certas famílias permaneçam no controle político? Que recursos, materiais e/ou
simbólicos, lançam mãos? Qual o papel do casamento neste processo de acú-
mulo e continuidade de poder?

73
Política e família: inovações e rupturas analíticas

A história da Sociologia no Brasil aponta que o tema família e política co-


mo objeto de reflexão não é atual. Autores como Gilberto Freyre (2013), Sérgio
Buarque de Holanda (1995) e Oliveira Vianna (1987), entre outros, nos anos
1930 e 1940 já haviam anunciado a importância da família como objeto signifi-
cativo para compreensão da estrutura da realidade social, assim como para a
análise da esfera política e da construção do Estado.
Em Casa Grande & Senzala (de 1933), Gilberto Freyre chama a atenção pa-
ra o papel da família patriarcal enquanto núcleo fundamental da organização
social, a qual foi capaz de permear outras esferas da sociedade e interpor sua
plasticidade e interesses. Já em Raízes do Brasil (obra de 1936), Sérgio Buarque
de Holanda aponta o clã familiar como mecanismo de impedimento ao avanço
de relações políticas, que deveriam ser pautadas pelo domínio dos interesses
públicos e coletivos. Seria necessário, portanto, a criação de mecanismos limi-
tadores à sobreposição de interesses privados, particularistas, sobre os inte-
resses públicos.
Ao integrar outros campos, os negócios referentes à esfera familiar pas-
sam a se justapor e a construir práticas negativas, até mesmo contrárias à im-
pessoalidade e à formalidade, mecanismos essenciais para o desenvolvimento
social de qualquer Estado-Nação. Nesses termos, Oliveira Vianna, em Institui-
ções Políticas Brasileiras (lançado em 1946), também indica que a presença da
família para além da esfera privada foi elemento restritivo na construção de
um poder central articulado e forte, daí os perigos, segundo ele, da democracia
e da federalização, porque estariam possibilitando o ingresso dos interesses
privados em lugar dos coletivos.
Contudo, abordagens que tinham a família como componente importante
na visualização da organização da estrutura social e política do Brasil foram se
tornando cada vez mais escassas e deram lugar às perspectivas de visualização
do passado, conforme já indicado. Em conjunto, tais obras, a partir dos anos
1950, passam a vincular a temática político-familiar sob a ótica de contextos
anteriores e a partir de conceitos 16 caros às Ciências Sociais como mandonis-

16
Existe um conjunto de obras e autores (clássicos) que fomentam um debate consolidado, e ainda
aberto, sobre as relações estabelecidas entre o público e privado (LEAL, 1986; QUEIROZ, 1976;
CAMMACK, 1979; JANOTTI, 1989; DUARTE, 1939; FAORO, 1993; entre outros) a partir das dispu-
tas de poder político. Pode-se dizer que neste debate teórico seguem dois polos: i) as obras teóricas que
discutem os aspectos conceituais, demarcando o que se entende como coronelismo (e também como
mandonismo), qual o tipo de relação estabelecida entre os atores envolvidos, ou seja, os representantes
do setor privado (coronéis, eleitores) e os representantes do setor público (governadores, partidos políti-
cos, instituições púbicas e até mesmo o Estado); ii) as obras que primam pela abordagem empírica,
testando certas interpretações teóricas à luz de análises regionais e locais. Neste caso, também se encon-
tra rica produção indicando possibilidades de diferenciação em termos de expressão regional uma vez
que as disputas políticas e de poder estão alicerçadas em locais, economias, histórias e relações sociais
diferenciadas. Conferir o QUADRO 2.

74
mo17 e coronelismo18, percorrendo contextos e regiões específicas. Estudos
identificando famílias e seus representantes mais poderosos que, através da
violência e de inúmeros tipos de fraudes, faziam uso da máquina estatal pelo
porte de recursos materiais/financeiros, especialmente a posse da terra, con-
seguiam se impor à massa da população e controlar diretamente os resultados
eleitorais.
Aqui, necessitamos pontuar a relevância desse debate teórico e
conceitual, concentrado19 entre as décadas de 1950 a 1990, sobre o coronelis-
mo e o mandonismo, conforme enfatiza o QUADRO 2. Foram desenvolvidas
muitas pesquisas empíricas e discussões fundamentais não só para a compre-
ensão da configuração da sociedade brasileira e suas peculiaridades regionais,
mas para o entendimento da composição do poder e das relações de parentes-
co no contexto político, além de contribuírem para o estabelecimento e conso-
lidação das Ciências Sociais no Brasil, particularmente da Sociologia Política.

QUADRO 2 – “ANÁLISES TRADICIONAIS”: POLÍTICA E FAMÍLIA

PERSPECTIVAS ANALÍTICAS PRINCIPAIS OBRAS/TEXTOS

CAMMACK. Paul. O “coronelismo” e o “compro-


misso coronelista”: uma crítica. Cadernos do
Departamento de Ciência Política, Belo Hori-
Discussão teórica e conceitual zonte, n. 5, p. 1-20, 1979.
CARONE, Edgard. Coronelismo: definição históri-
ca e bibliografia. Revista de Administração de
Empresas, v. 11, n. 3, p. 85-89, 1971.

17
O vocábulo mandonismo pode ser entendido como um traço, uma característica da política brasileira
desde o processo de colonização (e seguiu perdendo forças) onde o chefe local, o potentado, o senhor, o
proprietário, mormente aquele que tem a posse da terra (representando certos sobrenomes), assevera por
controlar recursos e, dessa forma, expressa significativo poder sobre os indivíduos ao seu redor, tendo
condições de influenciar suas “escolhas” eleitorais. (CARVALHO, 1997).
18
Em termos conceituais, compartilhamos da perspectiva teórica de Vitor Nunes Leal. Autor que entende o
coronelismo como um sistema político permeado por relações hierárquicas de poder político e de fidelidade
entre os atores sociais, em situações distintas de dependência; os quais representam o poder privado e o
poder público, tendo como objetivo geral manter o andamento do processo político-eleitoral de acordo com
seus interesses (e de seus grupos familiares). Nessa vertente, tal fenômeno expressou seu auge de força
durante o contexto da República Velha, entretanto, reconhecemos que se estendeu temporalmente em
lugares (específicos) mais isolados e atrasados no que diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo, da
urbanização e da industrialização, além de se fazer presente em cenários atrasados, como alta taxa de anal-
fabetismo, pobreza e exclusão social. “Coronelismo, que é o sistema de reciprocidade: de um lado os chefes
municipais e os coronéis, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro
lado, a situação política dominante no Estado, que dispões do erário, dos empregos, dos favores e da força
policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça.” (LEAL, 1986, p. 43).
19
Indicamos aqui que o referido debate ainda se coloca presente e atual nas Ciências Sociais. Muitos estu-
dos empíricos ainda se fazem necessários para o entendimento de relações de poder político local em várias
regiões do Brasil, assim como também redirecionamentos teóricos são sempre relevantes para o diálogo
científico.

75
CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Corone-
lismo e Clientelismo: uma discussão conceitual.
DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de
Janeiro, v. 40, n. 2, p. 229-250, 1997.
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COSTA PINTO, Luis de A. Lutas de família no
Brasil: introdução ao seu estudo. São Paulo: Cia
editora Nacional, 1949.
DINIZ, Eli. Voto e Máquina Política: patronagem
e clientelismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
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DÓRIA, Carlos Alberto. Coronelismo e Oligar-
quias. Brasil História Texto & Consulta. São Pau-
lo: Brasiliense, 1979.
DUARTE, Nestor. A Ordem Privada e a Organi-
zação Política Nacional. São Paulo: Cia Editora
Nacional, 1939.
FAORO, Raimundo. República Velha: os funda-
mentos políticos. In: ______. Os Donos do Poder:
formação do patronato político brasileiro. V. 1-2.
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(Primeira edição em 1957).
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no
Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 1997.
JANOTTI, Maria de L. M. Sociedade e política na
Primeira República. São Paulo: Atual, 1999. 132
p. (Série Discutindo a História do Brasil).
______. O coronelismo: uma política de compro-
missos. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Coleção
Tudo é História, 13).
LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto:
o município e o regime representativo no Brasil.
5.ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1986. (Primeira
edição publicada em 1949).
______. O coronelismo e o coronelismo de cada um.
Dados, v. 23, n. 1, p. 11-14, 1980.
QUEIROZ, M. I. P. de. O coronelismo numa inter-
pretação sociológica. In: ______. Mandonismo
local na vida política brasileira e outros en-
saios. São Paulo: Alfa-Ômega, p. 1976. p. 163-214.

76
SAES, Décio de Azevedo Marques de. Coronelismo
e Estado burguês: elementos para uma reinter-
pretação. Nova Escrita Ensaio, São Paulo, v. 4, n.
9, p. 107-127, 1982.

ABORDAGENS REGIONAIS PRINCIPAIS OBRAS/TEXTOS

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Bahia. Salvador: editora da Universidade Federal
da Bahia, 1972.
MATTOSO, Kátia de Queirós. Família e sociedade
na Bahia do século XIX. São Paulo: Corrupio,
1994.
PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquias
1889-1943: a Bahia na Primeira República Brasi-
leira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

Ceará LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família, tradição


e poder: o(caso) dos coronéis. São Paulo: Anna-
blume, 1996.

Goiás CAMPOS, Francisco Itami. Coronelismo em Goi-


ás. Goiânia: Ed. Univ. Fed. de Goiás, 1987.
PALACÍN, L. G. Coronelismo no extremo norte
de Goiás: o Padre João e as Três revoluções de
Boa Vista. São Paulo: Loyola, 1990.

Mato Grosso ARRUDA, Larissa Rodrigues Vacari de. Disputas


Oligárquicas: as práticas políticas das elites
mato-grossenses (1892-1906). São Carlos:
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Minas Gerais CARVALHO, José Murilo de. Barbacena: a Família,


a Política e uma Hipótese. Revista Brasileira de
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MARTINS FILHO, Amilcar. Clientelismo e Repre-


sentação em Minas Gerais durante a República
Velha: uma crítica a Paul Cammack, Dados, v. 27,
n. 2, p. 175-197, 1984.
SILVA, Celso José da. Marchas e contra-marchas
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77
“Nordeste” BURSZTYN, M. O poder dos donos: planejamento
e coronelismo no Nordeste. Rio de Janeiro: Vozes,
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CARVALHO, Rejane V. A. Coronelismo e neo-
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um estudo de caso da oligarquia de base familiar.
Rio de Janeiro: Record, 1993.
RÊGO, André Heráclito. Família e Coronelismo
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Girafa Editora, 2008.

Paraná GOULART, Mônica H. H. S. Poder local e corone-


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(Sociologia Política) – 232 f. Curitiba, Universida-
de Federal do Paraná, 2004.

Pernambuco DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação.


Pernambuco: PROEX/CECAC Prog. Editorial,
1987.
MARTINS, P. H. N. Coronelismo e dominação
burguesa. Symposiun – Revista da Universidade
Católica de Pernambuco, Recife, v. 25, n. 2, p. 29-
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SÁ, Maria Auxiliadora Ferraz de. Dos velhos aos
novos coronéis. Recife: Pimes, 1974.

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1897.

Santa Catarina PIAZZA, W. F. Coronelismo em Santa Catarina.


Roteiro – Fundação Educacional do Oeste Catari-
nense. Joaçaba, v. 2, n. 6, p. 25-30, 1981.

78
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quatro gerações de uma grande família do sudes-
te brasileiro (1758-1850). Cadernos do Centro
de Estudos Rurais e Urbanos, São Paulo, n. 19,
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Tocantins EMMI, M. A oligarquia do Tocantins e o domí-


nio dos castanhais. Belém: Centro de Filosofia e
Ciências Humanas/NAEA/UFPA, 1987.
FONTE: A Autora (2017).

Confere-se valor e importância significativa para os respectivos estudos 20


porque possibilitaram: i)averiguar teórica e empiricamente como o poder
político se organizou em contextos históricos diferenciados (da colonização, do
Império e das primeiras décadas da República) e de que maneira se articulou
em instituições ainda em processo de formação, ii) identificar como se consoli-
daram as relações sociais entre atores políticos com posições hierarquicamen-
te distintas na estrutura social e como estas relações se manifestaram nas mais
diversas regiões do Brasil. Dessa forma, consideramos este debate relevante ao
permitir comparações temporais e análises reflexivas sobre a forma pela qual
determinados grupos políticos seguiram dominando ao mesmo tempo em que
os cenários político, econômico, social, institucional e cultural se modificavam
fortemente. Sendo assim, então, o que nos permite sinalizar a continuidade de
certos grupos familiares no controle da política como um fenômeno atual?
Conforme os autores, notadamente Ricardo Costa de Oliveira (2001;
2012; 2015; 2016), aponta-se para o processo de metamorfose burguesa, isto
é, quando se expressa a capacidade de famílias atravessarem instituições por
longa duração, conseguindo assegurar, através de ajustes e adaptações, sua
importância política e concentração de cargos, posições em destaque e privilé-
gios sociais, mesmo em conjunturas distintas.
Para tanto, Oliveira (2000; 2001) mostra empiricamente os sobrenomes
dos povoadores que estiveram presentes nas terras paranaenses, ainda no
período de ocupação inicial durante os séculos XVII e XVIII. Remontando ge-
nealogicamente aos primeiros sesmeiros, o autor exibe empiricamente de que
forma seus descendentes ainda permanecem nos legislativos, nas prefeituras, no
judiciário... Grupos que se consolidaram política e economicamente, alguns por
mais de 300 anos, e foram incorporando capitais diversos pelos casamentos
com outras famílias poderosas, chamadas de classe dominante tradicional21.

20
Conferir QUADRO 2. Porém, salientamos que o respectivo levantamento apresenta somente uma
parte da produção intelectual. A atualização mais completa do debate está em andamento.
21
Em suas obras, Oliveira utiliza como base de análise da longa duração os ramos familiares presentes
na Genealogia Paranaense, de Francisco Negrão. Obra que apresenta, em seis volumes e adendos, os
mais “valorosos desbravadores” das terras que formariam o Paraná. (NEGRÃO, 1926).

79
Como indicativo da situação apontada, ao mapear os principais cargos políticos
no Paraná contemporâneo, Oliveira (2012) listou apenas 62 famílias presentes
em tais posições e, dentre estas, várias com de longa duração, demarcando o
poder político regional há séculos. Vale ressaltar que entre as famílias citadas
existem vínculos matrimoniais, fato que torna o pequeno grupo ainda mais
restrito e politicamente estruturado.
Deste modo, entre os anos 1950 e 1990, as obras que objetivavam abor-
dar questões políticas verificando a presença de famílias no poder (asseguran-
do seus interesses privados) tinham como cenário de análise momentos ante-
riores, isto é, o passado brasileiro, demarcando limites históricos na apreensão
da configuração política e família, conforme citado previamente.
Porém, o respectivo debate (sobre mandonismo e coronelismo) ocupou
espaços acadêmicos fundamentais num momento onde não mais se considera-
va epistemologicamente a continuidade de tais relações. Como se a “moderni-
dade” após os anos 1950/1960 tivesse automaticamente rompido com estru-
turas arcaicas e patrimonialistas anteriores. Como se a política das últimas
décadas estivesse fundada num quadro plenamente partidário e Estatal, onde
interesses privados e públicos se manifestassem plenamente separados, per-
meados por uma racionalidade weberiana em que tais categorias não mais se
misturassem. Ou como se o fato de apontar empiricamente a capacidade de
grupos políticos familiares permanecerem no poder resultasse em um “atraso
científico” ou deslocamento metodológico, fugindo de premissas acadêmicas22
básicas da época. Afinal, somente nos anos 1990 23 que a temática ressurge e,
mais ainda, fortalecida ao apontar a continuidade dos interesses familiares
inseridos e consolidados no jogo político do presente.

Questões teóricas e metodológicas

Em termos de inovações metodológicas, Canêdo, Oliveira e Grill promo-


vem propostas distintas e ao mesmo tempo complementares. Suas pesquisas
tornam-se necessárias para o entendimento dos instrumentos que, de certa
forma, asseguram a presença, continuidade e força das parentelas no campo
político. Cada um a sua maneira demarca temas e reflexões significativas.
Para Canêdo, a análise da memória política se mostra central enquanto
mecanismo de transmissão do patrimônio político. Ao analisar sobrenomes

22
Nesse viés, não descartamos conflitos do ponto de vista de investimentos e recursos para pesquisa na
medida em que a lógica do período era apontar o Brasil do futuro e não o Brasil que ainda estaria funda-
do, ao menos no campo das relações políticas, em práticas decorrentes do passado. Sendo assim, este
ponto ainda necessita ser desvendado.
23
Letícia Bicalho Canêdo também chama a atenção para linhas de discussão e apreensão da dimensão
familiar como no campo do Direito e da Assistência Social onde é considerada como objeto de políticas
públicas refletida estatisticamente.

80
históricos da política mineira, aponta que a conservação da memória de sobre-
nomes é fator indispensável para continuidade dos respectivos grupos. Enten-
de que a definição do voto passa por aspectos da vida social, onde a memória
coletiva é simbolicamente construída e reafirmada. Nesse caso, a autora inves-
te nos estudos de rituais24 políticos, ou seja, nos momentos onde nomes são
retomados durante festividades, homenagens e inaugurações de obras. São a
partir dessas oportunidades coletivas que a história da família se mistura à
história social, do município, do estado e, quiçá, do país.
O fato de se consolidar sobrenomes em ocasiões importantes abre-se es-
paço para evocar a memória dos eleitores durante o pleito. Aliás, os rituais
reativam, em instantes diversos, a memória das famílias políticas e envolvem,
na mesma situação, feitos e honras do passado e do presente. Daí a autora
chamar atenção para o voto como ato não isolado, mas estabelecido coletiva-
mente, pois a escolha está interligada à memória coletiva quando se lança mão
de nomes envolvidos em ocasiões e fatos importantes. Os rituais “(...)que orde-
nam as categorias de pensamento e de percepção que aplicamos espontanea-
mente no campo político, dando-lhe a duração, isto é, a possibilidade de se
falar no passado quando se está falando de algo no futuro que se estabilizou.”
(CANÊDO, 1994, p. 87). Esses ensejos são mais fortes e marcantes que as cam-
panhas políticas racionalmente preparadas na medida em que operam no
campo simbólico, dos sentimentos e emoções, portanto, frequentemente mais
envolventes e menos questionadores por parte do corpo eleitoral.
Os rituais consolidam e consagram as chamadas linhagens políticas, as-
sim como internalizam condutas políticas não somente por parte dos eleitores
como também dos membros das famílias. (CANÊDO, 2005). Para a autora, li-
nhagem política significa tradição, capacidade demonstrada pela durabilidade
histórica de um grupo familiar permanecer no poder em um município ou re-
gião. Ao mapear genealogicamente os cargos e períodos em que um sobrenome
(e seus troncos) deteve ao longo do tempo, abre-se possibilidade de confirmar
seus elementos de tradição. Os próprios registros institucionais indicam a for-
ça do grupo por meio do tempo e da quantidade de mandatos políticos acumu-
lados pela família em uma localidade definida. Recurso que é utilizado pelos
três autores.
Portanto, outro aspecto central para Canêdo é a pesquisa genealógica,
pois tem o papel de confirmar a concentração de capital, indicando também a

24
Dentre os rituais analisados pela autora estão as festividades de aniversário da santa da cidade (ou seja,
a data comemorativa da cidade de Muriaé, em Minas Gerais, e o funeral de um político, marcado pela
ostentação e reativação da força tradicional da família no espaço municipal. (CANÊDO, 1995; 2005).
Isto é, em se tratando dos rituais a autora aponta: “(...)pretendo abordar a política a partir do que não é
evidente, servindo-me de suas expressões ‘oficiosas’, com o objetivo de refletir sobre as formas de
politização das relações sociais que as análises habituais em geral ignoram em nome das formas oficiais
da política.” (CANÊDO, 2005, p. 247).

81
reprodução das famílias nos espaços de poder. Afinal, a genealogia “(...) legiti-
ma determinada descendência, assegurando, no seu traçado, a continuidade e a
coesão de diversas gerações de uma família.” (CANÊDO, 1994, p. 99). Para
Oliveira (2001; 2012; 2015; 2016; 2017 et al.) a genealogia crítica permite
entender o sentido dos casamentos e da acumulação de força política e econô-
mica de famílias. Ao levantar a genealogia de um grupo percebe-se a consolida-
ção de seus indicadores de poder e em que medida os novos laços, por meio de
casamentos, agregaram potencial eleitoral (político, além de econômico) à
perpetuação do próprio grupo. Assim,

Ela permite a análise temporal dos itinerários familiares ao longo dos séculos.
Esta disciplina auxiliar informa sobre a gênese e os processos constitutivos
de grupos familiares cujas informações primárias podem ser lidas, traduzidas
e convertidas, desde que a coleta de dados seja orientada a partir de teorias
críticas, em bases para o estabelecimento das classes sociais como totalidades
vivas, compostas de homens e mulheres reais na história em suas efetivas
relações sociais. (OLIVEIRA, 2001, p. 19).

A genealogia se impõe como trunfo fundamental no jogo político, legiti-


mando as ações e discursos dos agentes sociais. Os políticos também falam em
nome de sua ancestralidade e, mediante linguagem (política) adequada, re-
forçam o poder dos atores do presente. Canêdo destaca também que a genea-
logia se apresenta ao pesquisador através de dois aspectos: i) dos arquivos
históricos organizados em termos cronológicos por meio de datas de nasci-
mento, casamento, morte, etc; ii) da indicação da dimensão simbólica ao estru-
turar as atividades da família decorrentes do posicionamento de seus mem-
bros no jogo político. Ambos aspectos25 devem ser considerados porque permi-
tem compreender a dimensão sociológica, histórica e política dos grupos. (CA-
NÊDO, 2011). Afinal,

“(...)a escrita genealógica, ou seja, a prova escrita de um capital acumulado


por gerações, legitima o poder da família nas atividades políticas. Para os
agentes interessados, ela se transforma num importante trunfo do jogo
político; inscreve a família numa continuidade e marca, desta maneira, a

25
Como exemplo da referida perspectiva metodológica, Canêdo destaca a genealogia político-familiar
(entre os anos 1890 até 1970) através da descendência de sua trisavó, Balbina Honório, casada com
Manoel da Silva Canêdo, e irmã de Honório Hermeto Carneiro Leão, importante político do Império.
Nesse estudo, foram levantados 575 cargos, dos quais 327estavam ligados à atividades e funções públi-
cas, indicando que os deputados e senadores da família ocuparam vários cargos públicos no estado.
(CANÊDO, 2011). Vale lembrar que o político mineiro Honório Hermeto Carneiro Leão teve papel
decisivo para a emancipação política da Província do Paraná, em 1853. (OLIVEIRA, 2001).

82
solidez de seu poder social e político, seu domínio do tempo e sua capacidade
de adaptação. (CANÊDO, 2011, p. 73)

Os casamentos são tomados como estratégias para garantia de prestígio,


de acumulação de capitais e podem redirecionar a atuação no jogo político, da
mesma forma que consolidam congruência nas relações de poder. (CANÊDO,
2011; OLIVEIRA, 2016).
Outro tema significativo, segundo Canêdo, é o vocabulário político, ainda
que permeado por simbologia decorrente do espaço privado familiar e, portan-
to, aparentemente contraditório à lógica moderna da sociedade democrática.
Termos como “afilhado político”, “herança partidária”, “herdeiro político” são
recorrentes e utilizados com a finalidade de transmissão de poder, de delega-
ção de capital para outro agente político, confirmando o vínculo entre ambos, o
sentido de permanência no grupo. Mesmo que não seja consanguíneo o víncu-
lo, a proximidade estabelecida pela linguagem confere “familiaridade” e “pa-
rentesco” entre ambos. (CANÊDO, 1997). Nesse sentido, Grill (2008) destaca
que as heranças familiares no campo político também podem estabelecer
vertentes ideológicas fundamentais, além de carismas na medida em que são
estratégias de apropriação de recursos; como no caso pela luta da herança do
“trabalhismo” no Rio Grande do Sul.
Ainda se tratando da herança política, Canêdo chama atenção para o fato
de que a metáfora da família e sua linguagem nos pleitos eleitorais retira a
perspectiva de alternância do poder porque o que se estabelece é a transmis-
são quase que automática a um indivíduo previamente designado. A “escolha”
se dá pelo vínculo a um grupo de atores e não a uma proposta político-
partidária ou um conjunto de ideias e projetos políticos. Sendo assim, impede
que o cidadão-eleitor exerça liberdade de escolha ao imprimir no início da
corrida eleitoral uma espécie de desigualdade prévia em relação aos candida-
tos que não desfrutam de apadrinhamento político, ou seja, sinaliza antecipa-
damente a desigualdade entre os competidores. Portanto, os estudos e investi-
gações sobre transmissão (familiar) do poder26 político são relevantes para
compreensão do processo eleitoral, partidário e até mesmo do cenário demo-
crático em razão de atribuir dispersão de seus significados reais.
As pesquisas sobre transmissão política através de “redes políticas” de-
vem contemplar três áreas: a Ciência Política, a Sociologia e a História, o que
Canêdo (1997) chama de metodologia da “sócio-história do político”. Se isola-
dos, os estudos podem direcionar erroneamente para a insignificância dos
laços de família em meio à propagação de um patrimônio político. A compreen-

26
Em suas pesquisas empíricas, galgando sobrenomes e genealogias sobre a política mineira, Canêdo
(1997) identificou mecanismos de transmissão hereditária nas relações de poder.

83
são da transmissão de poder só pode ser percebida se conjugada a partir de
outros e múltiplos elementos como os estudos sobre nepotismo, moralização
da representação política e apadrinhamento, por exemplo. Segundo Oliveira
(2012, p. 73), o fenômeno do nepotismo deve ser visto através de “(...) um
processo de concentração de poder e de renda, responsável pela formação de
desigualdades e carências de longa duração. O estudo dos ricos e poderosos é
inseparável da análise das relações privilegiadas desenvolvidas por esses gru-
pos nas instituições e nos aparelhos de poder do Estado.”
Em termos metodológicos, a junção analítica entre as áreas citadas permi-
te contemplarmos várias possibilidades a partir de fontes heterogêneas de
pesquisa, entre elas as entrevistas, a investigação de documentos escritos (car-
tas, orçamentos familiares, inventários, anotações domésticas e públicas, sen-
tenças jurídicas, fotos e comentários em eventos sociais, álbuns familiares...) e,
sobretudo, a pesquisa genealógica, a qual visa identificar e assegurar longevi-
dade política e a legitimidade do parentesco.
Embora num contexto de análise regional diferente, vários elementos
apontados por Canêdo também são recorrentes nas pesquisas de Oliveira e de
Grill. Fato que valida ainda mais a necessidade de apropriação da variável fa-
mília para o encadeamento das relações de poder, das trajetórias e da integra-
ção das biografias.
Ao focalizar sua análise na herança política, Grill também enfatiza que es-
ta se expressa de forma diferente na competição política uma vez que se assen-
ta a partir de capitais27 políticos diferenciados, sendo eles: o capital pessoal de
notoriedade (prestígio individual), o capital delegado e capital pessoal heroico.
Para o autor, a herança política apresenta-se como um “(...)sistema de relações
inseridas em uma tradição política ou força política cuja forma de enunciação
busca na matriz do parentesco biológico o vocabulário e a forma de ordenar os
elos hierárquicos.” (GRILL, 2005, p. 159).
Nesse sistema de transmissão o processo é pensado pelo autor de forma
bilateral. É preciso que o “recebedor” tenha condições de incorporar tal com-
promisso, sendo capaz de ser o novo detentor do capital político. Assim, abre-
se possibilidade para averiguar se o herdeiro tem condições de receber seu
espólio. Aqui, a herança não se estabelece tão somente a partir de relações
pessoais, mas também pode ser firmada entre o herdeiro e o partido político.
A respeito de diferenciação teórica e metodológica entre os autores, Grill
dá destaque para as questões partidárias porque que vincula o estudo de cer-
tas famílias políticas inseridas no quadro partidário e nas transformações eco-
nômicas ocorridas no Rio Grande do Sul ao longo do século XX. Para o autor, os

27
Assim como Canêdo, Grill (2004) também faz uso da abordagem teórica de Pierre Bourdieu, lançando
mão de conceitos como capital político, capital simbólico, por exemplo.

84
partidos políticos permitem o estabelecimento do vínculo familiar e ponde-
ram as diferenças ideológicas, profissionais e ocupacionais desses grupos,
ainda que algumas rupturas partidárias na mesma linhagem política não sejam
descartadas, aspecto em que o autor chama de desalinhamento ideológico.
(GRILL, 2003; 2004; 2008; 2012; 2017).
Mesmo no processo de transferência de capital político partidário se faz
“(...) referência à linguagem da sucessão familiar (herdeiro, genealogia, linha-
gem, cria, etc) para conceber transmissões no interior de partidos políticos.”
(GRILL, 2004, p. 162). Para tanto, afirma que as redes de parentesco se ex-
pressam num cenário político moderno e não somente arcaico, mediante a
presença de grupos políticos articulados à história partidária da região. Sua
observação se inscreve também sobre os políticos descendentes de famílias de
imigrantes que acabaram formando redes de poder onde alguns conseguiram
percorrer politicamente o século XX.
De maneira similar aos demais autores, Grill se utiliza de termos como
longa duração ao identificar grupos que atravessam historicamente o campo
político rio-grandense, acumulando cargos e controlando partidos políticos.
Contudo, ao apontar para a perspectiva do herdeiro político, enfatiza a preocu-
pação em relação ao que seria a vocação política definindo-a como “(...) resul-
tado de laços de parentesco resultantes de uma descendência ou de casamen-
tos (parentesco por consanguinidade ou de aliança e por vínculos de parentes-
co político.” (GRILL, 2005, p. 166).
Assim, a vocação política se configura ao internalizar as disposições para
receber o patrimônio político, construído e acumulado por meio de vínculos
não somente consanguíneos, mas através de casamentos e de arranjos de
“apadrinhamento” no campo político institucional. O que explica o fato de al-
guns membros da mesma família disputarem a memória política do seu sobre-
nome.
A partir de entrevistas28 Grill (2004) identificou três aspectos eminentes
para os herdeiros políticos quando acionado o aparato simbólico de seus an-
cestrais: i) o reconhecimento da reputação familiar na esfera política; ii) a fa-
miliaridade com os meios políticos e seus agentes; iii) e os acessos promovidos
pelo vínculo político familiar a contextos e situações propícias. No fim das con-
tas, as famílias “(...)constituem o locus de reprodução [itálico do autor], pois são
capazes de orquestrar um conjunto de estratégias (...) que formam um sistema

28
Grill (2008, 2012) pesquisou a trajetória política de 200 deputados federais gaúchos entre os anos 1945
a 2006. Estudou de forma mais detalhada e pela perspectiva da longa duração, incluindo entrevistas, 24
deputados e seus familiares para compreender a existência de um padrão de reprodução política e de
posicionamento no cenário ideológico e partidário dos respectivos sobrenomes. Assim, percebeu que em
algumas famílias ocorrem deslocamentos geracionais em termos de vínculos partidários e de posiciona-
mento ideológico.

85
de funções interdependentes, compensatórias e cronologicamente articula-
das.” (GRILL, 2012, p. 139).

Considerações Finais

Falar de política é também considerar os nomes e os sobrenomes de


quem a exerce. O presente texto procurou mostrar, através da análise de signi-
ficativa produção acadêmica, que mesmo num cenário político e social alta-
mente complexo, as relações existentes entre grupos familiares com duradoura
atuação na política não é um fato isolado, tão menos algo do Brasil dos séculos
passados. Mas, sobretudo, presente no cenário político do século XXI.
Embora tenha sido negligenciada durante certo período, a conexão políti-
co-familiar se mostra cada vez mais relevante para compreensão das relações e
das estruturas de poder. Mesmo quando pensada em termos históricos e a
partir de discussões do poder local, via mandonismo ou sistema coronelista, a
respectiva abordagem remonta obras importantes, as quais cumpriram papel
fundamental ao preencherem lacunas analíticas num período em que a refle-
xão da política se direcionou principalmente para a dinâmica partidária e elei-
toral.
Conquanto, a partir dos anos 1990, os estudos sobre a longa duração e
continuidade do poderio político de grupos familiares, e suas conexões com o
poder, se mostram cada vez mais frequentes. Autores como Letícia Bicalho
Canêdo, Ricardo Costa de Oliveira e Igor Gastal Grill tornaram-se fontes obriga-
tórias para estudos políticos e institucionais cuja variável família se consolida
como viés fundamental; sobretudo pautados em pesquisas empíricas.
Assim, Canêdo, Oliveira e Grill destacam-se como referências sociológicas
importantes em termos teóricos, conceituais e metodológicos para a análise
político-familiar em contextos contemporâneos. Seus estudos identificam em-
piricamente como as relações familiares (e seus mecanismos de continuidade
nos espaços de poder) e a política podem ser expressas na realidade social,
sempre que relacionadas às instituições centrais e definidoras de privilégios
historicamente direcionados.
Tais estudos de Sociologia Política também se mostram fundamentais
quando conjugados com abordagens típicas da Ciência Política e da História.
Para o entendimento pleno do jogo político-partidário, dos resultados eleito-
rais e dos arranjos institucionais, além do mapeamento biográfico dos indiví-
duos que governam há tempos, deve-se levar em consideração as relações de
parentesco, as conexões familiares e seus aportes genealógicos. Não é à toa que
Ricardo Costa de Oliveira, quando procura desvendar a situação social de certo
agente político em destaque no poder, sempre ressalta em seus estudos e pa-
lestras: “Procure onde está a família!”

86
Curitiba, 27 de abril de 2016.
2ª sessão do curso de extensão “Família, política e
parentesco no Brasil” promovido pelo grupo de pesquisa
NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses – UFPR)
Tema: Pensando a relação entre Família e Política
Palestrante: Professora Doutora Mônica Helena Harrich Silva Goulart

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94
CAPÍTULO 4

CLASSES SOCIAIS E HEREDITARIEDADE:


FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS

FERNANDO MARCELINO PEREIRA1

Introdução

Cientistas sociais e economistas freqüentemente subestimam a heredita-


riedade na reprodução das classes sociais. Muitos corroboram da percepção
que o capitalismo moderno pressupõe um alto grau de mobilidade social e que
os mais capazes vencem na competição pelas melhores oportunidades. É fasci-
nante a idéia de que diz vivemos numa sociedade em que os indivíduos podem
ir tão longe quanto os próprios méritos possam levar, que os indivíduos bem
sucedidos são aqueles que combinam fatores como habilidades inatas, trabalho
duro, atitude correta e alto caráter moral e integridade. Tudo depende da ca-
pacidade e da vontade de cada um. Não são poucos que tendem a pensar que a
sociedade deveria funcionar, sem contar aqueles que acham que a sociedade já
funciona atualmente assim. Neste artigo apresentamos variáveis ligadas ao
papel da socialização familiar na reprodução das classes sociais. Debatemos a
força social da família e sua herança na conformação da estrutura social e na
reprodução das diferentes classes sociais.

1
Graduado em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), Mestre em
Ciência Política e Doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro
do Núcleo de Estudos Paranaenses (NEP). Têm experiência na área de Sociologia e Ciência Política,
com ênfase em pesquisas sobre classes sociais, estruturas de parentesco, poder político paranaense, poder
judiciário e tribunal de contas.

95
Critérios para definição das classes sociais

Apesar de alguns terem apressadamente formulado “novas teorias” para


concluir que as classes sociais teriam desaparecido ou que não eram mais ato-
res relevantes na sociedade, está renascendo o debate sobre as classes sociais.
As mudanças promovidas pelos governos Lula e Dilma – como a elevação do
salário mínimo, ampliação do crédito, geração de empregos formais e progra-
mas sociais de distribuição de renda - fizeram emergir um amplo setor da po-
pulação brasileira antes excluída do mercado.
Muitos atribuíram equivocadamente a este fenômeno a formação de uma
“nova classe média”2, o que pelo facilitou a retomada da discussão sobre as
classes sociais e suas lutas. Ficou evidente que é essencial estabelecer alguns
critérios para a definição das classes sociais. Afinal de contas, existem diversas
metodologias para classificação social. O próprio conceito “classe social” sofre
de uma marcante ausência de consenso na definição de quais critérios inserem
os agentes dentro das classes e, conseqüentemente, quais seriam seus interes-
ses e posições na luta de classes.
A classificação dos seres humanos conforme sua posição na divisão social
da propriedade e no processo produtivo não é uma “invenção marxista”, como
pensam alguns. Mesmo os economistas clássicos, como Adam Smith e David
Ricardo, em sua tentativa de explicar as novas formas produtivas capitalistas,
tiverem a divisão da propriedade como base para a análise da classificação
social. Segundo Smith e Ricardo, a nova modalidade de produção se confronta-
va com três classes de atores: a) a dos proprietários territoriais, que vivia da
renda fundiária, materializada na forma de trabalho (corveia), produtos (par-
cela da produção), ou dinheiro (aluguéis); b) a dos proprietários capitalistas,
que vivia de lucros, de juros e aluguéis; e c) a dos que não possuíam proprie-
dades capazes de gerar rendas, lucros, juros e aluguéis, mas possuíam força de
trabalho. Essa terceira classe podia vender sua força de trabalho, por determi-
nado tempo, em troca de salário, aos proprietários territoriais e capitalistas,
para lavrar e cultivar a terra e colher a safra, para movimentar as ferramentas
e máquinas e processar as matérias primas para produzir bens de uso 3.
Karl Marx adotou o mesmo critério histórico de classificação das classes e
da relação de cooperação e luta entre elas, conforme aceita por aqueles eco-
nomistas clássicos. Porém, ao contrário deles, estabeleceu que, do mesmo mo-
do que a burguesia mercantil fora a classe que, em luta contra os senhores
feudais, os superara e os liquidara como classe, o proletariado era a classe que

2
Néri, Marcelo. A nova classe media: o lado brilhante da base da pirâmide, Saraiva, 2012.
3
Smith, Adam. A riqueza das nações. São Paulo, Nova Cultural, 1988; Ricardo, David. Princípios de
economia política e de tributação. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1965.

96
mais fortemente se opunha ao capitalismo e estava fadada a superá-lo e liqui-
dar não apenas a burguesia, mas também a si próprio, como classe. Embora
esta tese de Marx gere uma polêmica intensa, seu critério básico para a dife-
renciação entre as classes, isto é, a relação com a propriedade ou, em outras
palavras, a posição que cada indivíduo ou grupo de indivíduos ocupa o proces-
so produtivo e de troca, se mostrou pertinente para a análise da estrutura de
classes das sociedades.
Para Marx as classes sociais representam grandes grupos sociais defini-
dos por sua inserção nas relações fundamentais de produção dentro de um
sistema econômico e social particular. Trata-se de um conceito relacional, pois
as classes são sempre definidas no âmbito das relações sociais, em particular
nas relações das classes entre si gerando interesses intrinsecamente opostos e
antagônicos. As classes deste gênero costumam ser duas: a classe dirigente e
detentora dos meios de produção e a classe executante, privada dos meios de
produção e trabalhando para a primeira. As formas específicas desta relação
contraditória é o que caracteriza diferentes modos de produção.
A constatação dessa bipolaridade no modo de produção capitalista não
significa que Marx exclua a existência de outras classes nas formações sociais
capitalistas. No último capítulo de O Capital, Marx chama a atenção para o fato
de as camadas intermediárias e transitórias da sociedade obscurecerem os
limites das classes4. Antes, em A Luta de Classe na França, 1848-1850 e O Dezoi-
to Brumário, Marx já fornecia uma análise de classe de uma situação política.
Seu exame da aristocracia financeira, burguesia industrial, pequena burguesia,
campesinato, lumpemproletariado, proletariado industrial, burocratas, profis-
sionais liberais, burguesia monárquica e grande burguesia na França não ape-
nas produziu um grande número de termos classistas, mas também os combi-
nou com uma visão de estado, das instituições e partidos políticos. É possível
identificar que Marx procurou estabelecer a determinação objetiva dos agentes
de acordo com as relações de produção, isto é, as injunções econômicas, sem se
afastar dos caracteres políticos e ideológicos. Menos do que uma classe que
possui determinada renda, as classes só existem se relacionando e lutando com
e contra outras classes. Nenhuma classe tem uma lógica independente. A com-
plexa relação destes elementos, que nunca aparecem isoladamente, conflui
numa noção mais aprofundada das classes e, principalmente, da luta de clas-
ses5.

4
Marx, Karl. O capital. São Paulo, Editora Nova Cultural, Vol. I e II, 1996.
5
MARX, Karl. As lutas de classes na França de 1848 a 1850/18 Brumário de Luís Bonaparte. In: Obras
escolhidas: Karl Marx – Friedrich Engels.. Rio de Janeiro, Vitória, 1956.

97
Limites dos estudos empíricos no Brasil

Quando se trata de estudos empíricos o conceito de classe é usado com


significados muito diferentes. Geralmente Classe social é definida como um
grupo de pessoas que têm status social similar segundo critérios diversos,
sendo destacadamente o econômico o mais utilizado. Encontramos diversos
critérios para definir classes sociais na literatura e na imprensa, incluindo as
visões. No Brasil é comum encontrar pesquisas com classificações como o Cri-
tério Brasil da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa (ABEP), o crité-
rio do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o critério
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O Critério Brasil é o padrão estabelecido pela Associação Brasileira de
Empresas de Pesquisa (ABEP) e adotado pelas empresas do setor para classifi-
car os estratos sociais. Na formulação inicial do critério, foram consideradas 35
variáveis para estimar a renda permanente das famílias. Entre essas variáveis
estão a posse de bens duráveis (carro, TV, etc), condições de moradia (como
número de banheiros), nível de escolaridade do chefe da casa e oferta de servi-
ços públicos (água, luz, etc). A esses quesitos são atribuídos pontos para se
concluir a qual classe a família pertence. A renda monetária da família entrou
só na primeira vez que foi feita a classificação. Na estratificação social para
2016, foram atualizadas 15 variáveis e admitiu-se que o total de famílias ficou
estável em 66,7 milhões. Além do Critério Brasil, consultorias também usam só
a renda monetária para estratificar a população. Neste caso, o efeito da crise
aparece instantaneamente (ABEP, 2016).
As pesquisas que estabelecem o critério de renda para definição de classe
se diferenciam apenas pelo valor variável aplicado. As pesquisas do IBGE, por
exemplo, são baseadas no número de salários mínimos e se dividem em cinco
faixas de renda ou classes sociais, conforme a tabela abaixo válida para o ano
de 2015 (salário mínimo em R$ 788,00).
O critério do IBGE é o por faixa de salários mínimos. A visão governamen-
tal das classes sociais, utilizada pelo IBGE no censo populacional a cada dez
anos, é baseada no número de salários mínimos. Simples, divide em apenas
cinco faixas de renda ou classes sociais (conforme a tabela 1) válida para este
ano (salário mínimo em R$ 880,00 em 2016).

98
Tabela 1 – Classes sociais por faixas de salário-mínimo (IBGE)

CLASSE Nº SALÁRIOS-MÍNIMO (SM) RENDA FAMILIAR (R$)


A Acima 20 SM R$ 18.740,01 ou mais
B De 10 a 20 SM R$ 9.370,01 a R$ 18.740,00
C De 4 a 10 SM R$ 3.748,01 a R$ 9.370,00
D De 2 a 4 SM R$ 1.874,01 a R$ 3.748,00
E Até 2 SM Até R$ 1.874,00
Fonte: Portal do IBGE (https://www.ibge.gov.br/)

Trata-se de um critério de cálculo fácil e objetivo, mas que leva somente


em consideração o salário atual da pessoa e ignora eventuais conquistas e pa-
trimônio. Mudanças repentinas de salário para cima ou para baixo podem dar
outro viés ao resultado e torná-lo impróprio para algumas finalidades.
Todos estes são critérios objetivos de estratificação social e econômica,
variando entre critérios multidimensionais (Critério Brasil) e unidimensionais
(FGV e IBGE). Os critérios unidimensionais levam em consideração apenas
uma variável, como, por exemplo, a renda ou o tipo de ocupação. Os critérios
multidimensionais levam em consideração um conjunto de variáveis para clas-
sificar a sociedade, como renda, educação, ocupação, bens disponíveis no do-
micílio, dentre outras.
As pesquisas que estabelecem o critério de renda para definição de classe
se diferenciam apenas pelo valor variável aplicado, como as pesquisas do IBGE
baseadas no número de salários mínimos. Outro critério utilizado pela maio-
ria dos institutos de pesquisa para classificar os estratos da sociedade é ba-
seado na capacidade de consumo. A metodologia de cálculo e caracterização
das classes mais conhecida por este método é o Critério de Classificação Eco-
nômica Brasil (CCEB), utilizada em pesquisas regulares da ABEP - Associação
Brasileiras de Empresas de Pesquisa. Trata-se de um instrumento de segmen-
tação econômica que utiliza o levantamento de características domiciliares
(presença e quantidade de alguns itens domiciliares de conforto e grau esco-
laridade do chefe de família) para diferenciar a população. O critério atribui
pontos em função de cada característica domiciliar e realiza a soma destes
pontos. É feita então uma correspondência entre faixas de pontuação do cri-
tério e estratos de classificação econômica definidos por A1, A2, B1, B2, C1,
C2, D, E (tabela 2). O Critério Brasil divide a sociedade em oito grupos, classifi-
cados de acordo com o acesso a uma série de bens e serviços, com algumas
variáveis sociais sendo consideradas. As variáveis incluíam a posse e quanti-
dade de certos produtos e a renda. Os itens utilizados englobam o número de
automóveis, de aparelhos de TV em cores, de rádios, de banheiros, de máquina

99
de lavar roupa, de geladeira e freezer, de videocassete/DVD, de empregados
domésticos, além do nível de instrução do chefe de família, conforme tabelas 3,
4 e 5.
Tabela 2 – Classificação por pontos (ABEP)

CLASSE SOCIAL Nº DE PONTOS


A 45 a 100
B1 38 a 44
B2 29 a 37
C1 23 a 28
C2 17 a 22
DeE 0 a 16
Fonte: Portal da ABEP (https://www.abep.org/)

Tabela 3 – Sistema de Pontos – Posse de itens (ABEP)

QUANTIDADE DE ITENS
POSSE DE ITENS 0 1 2 3 4 ou +
Banheiros 0 3 7 10 14
Empregados domésticos 0 3 7 10 13
Automóveis 0 3 5 8 11
Microcomputador 0 3 6 8 11
Lava louça 0 3 6 6 6
Geladeira 0 2 3 5 5
Freezer 0 2 4 6 6
Lava roupa 0 2 4 6 6
DVD 0 1 3 4 6
Micro-ondas 0 2 4 4 4
Motocicleta 0 1 3 3 3
Secadora de roupa 0 2 2 2 2
Fonte: Portal da ABEP (https://www.abep.org/)

100
Tabela 4 – Sistema de Pontos –
Escolaridade pessoa referência da família (ABEP)
ESCOLARIDADE PONTUAÇÃO
Analfabeto/ Fundamental I incompleto 0
Fundamental I completo/Fundamental II incompleto 1
Fundamental II completo/ Ensino Médio incompleto 2
Ensino Médio completo/ Superior incompleto 4
Superior completo 7
Fonte: Portal da ABEP (https://www.abep.org/)

Tabela 5 – Sistema de pontos – acesso serviços públicos (ABEP)


SERVIÇO PÚBLICO NÃO SIM
Àgua encanada 0 4
Rua pavimentada 0 2
Fonte: Portal da ABEP (https://www.abep.org/)

Entretanto, é evidente que a análise da posse ou não de bens selecionados


não reflete necessariamente o compartilhamento de características e/ou dife-
renças para agrupá-las em uma mesma classe. O que não se percebe é que o
consumo é resultado de um complexo processo de diferenciação social. Esta
metodologia de classificação social não leva em consideração que pessoas de
mesmo nível de rendimento podem possuir preferências distintas, o que as
levarão a consumir produtos diferentes umas das outras. Também são descon-
sideradas as diferenças de classe de cada produto. Enfim, o consumo se define
pelos estilos de vida gerados pelo habitus de cada classe e fração de classe.
Estudos para medir a desigualdade social baseados em critérios de renda
tendem a subestimar fatores de fundo que reproduzem as classes sociais e
seus privilégios. Informações sobre a distribuição de renda oferecem relativa-
mente pouca informação sobre as características dos indivíduos e suas famí-
lias. Portanto, a renda não equivale à classe, por mais que a classes existam
através da relação social que distribui renda tendo por base as relações de
propriedade (POCHMANN, 2012).
A renda também diz muito pouco sobre a relação entre classe e ação polí-
tica. O resultado é que a desigualdade social aparece como se fosse um produto
dado da realidade, sem a ação de grupos ricos e poderosos. Por isso, quando se
busca apenas quantificar a desigualdade (seja pela renda ou consumo), este
tipo de classificação também passa longe do essencial, pois não explica como a
desigualdade se reproduz por meio de interesses dominantes na forma de

101
redes familiares e sociais de riqueza e poder. Por isso as classes sociais não
devem ser definidas estritamente pela renda ou tipo de consumo. Estas variá-
veis não determinam as classes.
Renda e consumo são efeitos do processo de diferenciação social cuja ori-
gem se remete a toda transmissão invisível e imaterial da socialização familiar
e que acabam por produzir sujeitos com diferentes capacidades de acordo com
a classe. Embora o esforço para entender as desigualdades sociais pela distri-
buição de renda ou capacidade de consumo não seja trivial, buscar entender as
variações de socialização familiar das classes sociais pode ser um melhor ca-
minho para obter um quadro mais completo da desigualdade no país.

O papel da família na reprodução das classes sociais

Ao transformar as classes em categorias econômicas autônomas, este tipo


de pesquisa desconsidera que cada classe mobiliza capitais específicos. Jessé
Souza entende que o tema da produção e reprodução das classes sociais no
Brasil é dominado por uma leitura economicista e redutora da realidade social,
que pressupõe que as determinações econômicas (renda ou consumo) são as
únicas variáveis realmente importantes para o conceito de classe6. Em suas
palavras:

as classes sociais se formam pela herança afetiva e emocional, passada de


pais para filhos no interior dos lares, de modo muitas vezes implícito, não
consciente e inarticulado. São esses estímulos, que são muito distintos
dependendo do ambiente familiar típico de cada classe social, que irão
construir formas específicas de agir, reagir, refletir, perceber e se comportar
no mundo. E é precisamente a presença ou falta de certos estímulos, por
exemplo, estímulos para a disciplina, para o autocontrole, para o pensamento
prospectivo, para a concentração, que irá definir as classes vencedoras e
perdedoras antes mesmo do jogo da competição social se iniciar de forma
mais explícita7.

Entretanto, como assevera Wladimir Pomar, tomar a propriedade dos


meios de produção (basicamente, na sociedade capitalista, capital dinheiro e
capital meios de produção, circulação e distribuição) como critério básico para
a análise e classificação das classes sociais só se torna economicista se não
forem tomadas na devida conta as peculiaridades históricas de cada uma des-
sas classes, isto é, se não forem considerados seu grau histórico de participa-
ção na renda e na renda social acumulada, seu padrão de vida, nível educacio-

6
Souza, Jesse. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Paulo, Leya, 2015.
7
Souza, Jesse. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

102
nal, qualificação técnica, nível cultural, nacionalidade, religiosidade, e igualda-
de de gênero, social, racial e política. Ou seja, qualquer classe social da atuali-
dade do mundo capitalista, em cada país ou região, possui características co-
muns quanto à propriedade e às relações de produção, mas características
diferentes, relacionadas com a história de desenvolvimento local do capitalis-
mo e da luta de classes8.Em grande medida, estes critérios elencados por Po-
mar se remetem as formas de transmissão familiar das riquezas materiais e
imateriais.
Uma importante abordagem que leva em consideração a família na repro-
dução das classes sociais encontra-se na obra de Pierre Bourdieu. Ele concebe
o pertencimento de classe não apenas pela propriedade ou ausência de propri-
edade, mas pela apropriação diferenciada dos diferentes tipos de capital (capi-
tal econômico, capital cultural, capital social etc.). Desse modo, sua definição
implica não apenas as propriedades econômicas das classes sociais, mas tam-
bém seus recursos culturais, em termos de títulos escolares e de meios não-
escolares de se apropriar da cultura legítima, como através da socialização
familiar, que pode incutir disposições para a leitura, a escrita ou uma disposi-
ção estética, que colocam alguns grupos sociais em vantagem na competição
social com outros grupos, desprovidos dos mesmos recursos.
Bourdieu propõe a construção teórica do espaço social cujas três dimen-
sões fundamentais sejam definidas pelo volume e estrutura do capital, assim
como pela evolução dessas duas propriedades, manifestada por sua trajetória
passada e seu potencial no espaço social. Desse modo, os agentes estão distri-
buídos no espaço social global de acordo com o volume global de capital (capi-
tal econômico, capital cultural e, também, capital social) como conjunto de
recursos e poderes efetivamente utilizáveis; e, numa segunda dimensão, de
acordo com a estrutura de seu capital, ou seja, de acordo com o peso relativo
das diferentes espécies de capital no volume total de seu capital. A primeira
dimensão estabelece a distinção entre as grandes classes de condições de exis-
tência, enquanto a segunda estabelece a distinção segundo as frações de classe.
Bourdieu destaca que as escolhas dos indivíduos devem ser compreendi-
das a partir do seu gosto e não a partir de sua renda, como defendem os eco-
nomistas. Ele destaca que o conceito de estilo de vida é importante para pensar
de que maneira as diferenças no campo das posições sociais se expressam no
interior de um espaço simbólico. Para Bourdieu, os estilos de vida constituem a
“retradução simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de
existência”, expressão do habitus, definido por Bourdieu como princípio gera-
dor de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, como sistema

8
Pomar, Wladimir. Debatendo classes e luta de classes no Brasil. Fundação Perseu Abramo, 2012.
Disponível em http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/ed01-fpa-discute.pdf

103
de classificação de tais práticas, ou seja, como capacidade de diferenciar e
apreciar essas práticas e produtos. É na relação entre essas duas capacidades
que definem o habitus que se constitui o mundo social representado, ou seja, o
espaço dos estilos de vida. Nesse sentido, somente pela construção do habitus
como fórmula geradora de práticas e de julgamentos que a relação entre as
características pertinentes da condição econômica e social e os traços distinti-
vos associados à posição correspondente no espaço dos estilos de vida se torna
inteligível. Enquanto produto das condições materiais da existência, o habitus
se constitui em necessidade incorporada, em um sistema de disposições durá-
veis e transponíveis que realiza uma aplicação sistemática e universal e se
estende para além do que foi diretamente adquirido, para além da necessidade
inerente às condições de aprendizagem. Deste modo, a unidade e sistematici-
dade observada no conjunto das práticas e propriedades de um agente – ou
mesmo do conjunto de agentes que são o produto de condições semelhantes –
é a fórmula generativa que está no princípio do gosto e do estilo de vida9.
Para Bourdieu, a família tem um papel determinante na transmissão de
habitus específicos na reprodução, não apenas biológica, mas social, isto é, na
reprodução da estrutura do espaço social e das relações sociais. Ela é um dos
lugares por excelência de acumulação de capital sob seus diferentes tipos e de
sua transmissão entre as gerações, o que garante de forma duradoura alguns
sentimentos que devem garantir a integração do grupo familiar. Nesta perspec-
tiva, a integração funciona como uma condição necessária para a persistência
da unidade familiar. Além disso, “os ritos de instituição (palavra que vem de
stare, manter-se, ser estável) visam constituir a família como uma entidade
unida, integrada, unitária, logo, estável, constante, indiferente às flutuações dos
sentimentos individuais”10. Esta “uma ficção bem fundamentada” gera o que
Bourdieu denomina de “espírito de família”: uma série de atitudes presentes
nas dinâmicas familiares, como generosidade, solidariedade, ajuda mútua en-
tre seus membros, troca de gentilezas, entre outras.
Independente do contexto social, nas palavras de Bourdieu, a família seria
“[...] o filtro através do qual se começa a ver e a significar o mundo. Esse pro-
cesso que se inicia ao nascer entende-se ao longo de toda vida, a partir dos
diferentes lugares que se ocupa na família”11. Assim podemos pensar na família
como instância de socialização responsável pela incorporação do habitus pri-
mário, os esquemas cognitivos incorporados de modo pré-reflexivo e automá-
tico no ambiente familiar. Compreende-se assim a importância da família uma
vez que é por intermédio dos processos de interação familiar que ocorrem os

9
Ver as obras de Bourdieu: A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 1987; A distinção
– crítica social do julgamento. São Paulo, Editora Zouk/Edusp, 2013.
10
Bourdieu, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, Papirus, 1996.
11
Idem, p. 125.

104
primeiros processos de socialização. Mesmo que ao longo de suas trajetórias
de vida os sujeitos compartilhem outros modos de socialização que ultrapas-
sam a esfera familiar (escola, grupo de pares, amizades, namoros, grupos reli-
giosos, entre outros), e assim, progressivamente, vão reestruturando o habitus
primário, é na socialização primária ou, dito de outra forma, na socialização
familiar que ocorre a incorporação das disposições mais duradouras dos indi-
víduos, os esquemas de percepção, classificação e ação.
A originalidade da abordagem de Bourdieu está em ter tentado criar um
quadro teórico capaz de relacionar os agentes sociais, as estruturas de domi-
nação e o papel da família da reprodução de diversos mecanismos invisíveis de
distinção social.
Nesta mesma perspectiva, Cynthia Sarti define a família como um lugar
em que se aprendem as primeiras falas, onde se constrói a imagem do mundo
exterior e interior, local de ordenação e sentido das experiências vividas. Sua
relevância se relaciona ao fato da família ser a responsável pelas primeiras per-
cepções, valores e crenças sobre o mundo social. Em suas palavras a família é:

uma história que se conta aos indivíduos desde que nascem, ao longo do
tempo, por palavras, gestos, atitudes ou silêncios e que será, por eles,
reproduzida e re-significada, à sua maneira, dados os distintos lugares e
momentos dos indivíduos na família. Vista como uma realidade que se
constitui pela linguagem, socialmente elaborada e internalizada pelos
indivíduos, a família torna-se um campo privilegiado para se pensar a relação
entre o individual e o coletivo, portanto, entre mim e o outro 12.

A família constitui-se como um meio privilegiado de transmissão seja de


um nome, do sobrenome, do patrimônio, da educação, da cultura ou de uma
profissão. O processo de transmissão na família é fundamental para a constru-
ção de si, isto é, para a formação da identidade do indivíduo. As gerações da
família transmitem conteúdos que visam assegurar a sobrevivência do grupo
familiar através do tempo. Por isso a história de cada sujeito inicia-se em uma
pré-história que antecede o nascimento, em que é tecida uma trama de expec-
tativas, fantasias e desejos dos ascendentes. Ou seja, o indivíduo, mesmo antes
de nascer, já recebe uma projeção familiar e vem ao mundo inserido em uma
história preexistente da qual ele é herdeiro e também prisioneiro 13.

12
Santi, Cynthia. A família como ordem simbólica, Revista Psicologia USP, 2004, 15(3), p. 13.
13
Falke, D; Wagner, A. A dinâmica familiar e o fenômeno da transgeracionalidade: definição de concei-
tos. In: WAGNER, A. (Org.). Como se perpetua a família? A transmissão dos modelos familiares. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2005.

105
A psicanálise, desde Freud, entende que a função do grupo familiar é
transmitir uma herança psíquica adquirida, perpetuando e conservando a sua
identidade. Nesse sentido, em “Totem e Tabu” (1913), Freud afirma que:

nenhuma geração pode ocultar à geração que a sucede, nada de seus


processos mentais mais importantes, pois a psicanálise mostrou que todos
possuem na atividade mental inconsciente um “apparatus” que os capacita a
interpretar as reações de outras pessoas, isto é, desfazer as deformações que
os outros impuseram à expressão de seus próprios sentimentos14.

Freud aponta duas formas centrais de transmissão: uma delas passa pela
cultura e pela tradição; a outra, pela parte orgânica da vida psíquica das gera-
ções. Não fica claro até que ponto se refere a idéias inatas ou fixadas pela cul-
tura. A idéia que marca esse texto é a da existência de uma hereditariedade
psicofilogenética. Em O ego e o id (1923), o inconsciente hereditário e transge-
racional é apontado como parte dessas aquisições da humanidade, dos legados
geracionais e arcaicos. Contudo, as disposições psíquicas herdadas necessitam
de estimulação, de experiências reais de vida, para que seu funcionamento seja
atualizado15.
Para o psicanalista Jacques Lacan, entre todos os grupos humanos, a famí-
lia desempenha um papel primordial na transmissão da cultura, na primeira
educação, na repressão dos instintos e na aquisição da língua materna. A famí-
lia preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico e, mais
amplamente, transmite estruturas de comportamento e representação que
ultrapassam os limites da consciência. Desse modo a família estabelece uma
continuidade psíquica entre as gerações 16. Kaës ressalta que a família apresen-
ta um duplo eixo estruturante: o eixo horizontal, o qual oferece suporte ao
sujeito por meio das identificações mútuas com seus semelhantes, e o eixo
vertical, da filiação e das afiliações, que inscrevem o sujeito na sucessão de
movimentos de vida e de morte no percurso das gerações17.
É neste sentido que o conceito de famílias de classe, proposto por Daniel
Bertaux, nos ajuda a pensar a família como eixo de construção das diferenças
sociais. Ele desenvolveu a metodologia de pesquisa social denominada de an-
troponomia, baseada em histórias de vida e na reconstrução social de estudos

14
Freud, Sigmund. Totem e Tabu e Outros Trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 124.
15
Freud, Sigmund. O Ego e o Id. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas com-
pletas de Sigmund Freud. v. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 11-83.
16
Lacan, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo, ensaio de análise de uma função
em Psicologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
17
Ver os interessantes trabalhos de Kaës, R. (1997). O grupo e o sujeito do grupo: elementos para uma
teoria psicanalítica do grupo. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1997; Os espaços psíquicos comuns e
compartilhados: transmissão e negatividade. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2005.

106
de caso sobre famílias. A perspectiva de investigação atravessa as gerações e
forma um conjunto de indivíduos relacionados entre si, com suas biografias,
datas, cronologias, locais e principalmente as suas profissões e o seu lugar na
estrutura social. A relação entre pai e filho de proprietários de capital, por
exemplo, está fundamentalmente baseada na herança. O filho é visto como
herdeiro e constitui uma justificação para acumulação de capital. Os filhos dos
trabalhadores não têm esta relação com os pais. A relação entre marido e mu-
lher também muda. Na classe trabalhadora o trabalho da mulher é crucial para
a reprodução da força de trabalho masculina. Na família burguesia isso é bem
mais relativo18. Conforme Bertaux, a hereditariedade não se dá apenas pela
influência das instituições que perpetuam as desigualdades, mas sobretudo
porque os filhos das diferentes classes sociais são criados de formas muito
diferentes. Para ele, é limitada a visão que atribui à escola um desempenho
decisivo na construção da hereditariedade e imputa à família a responsabilida-
de pela transmissão mais intensa de capital cultural aos filhos, que comporão
gerações de proletários que se redesenham ao longo da história.
Entende-se, assim, que a distribuição dos indivíduos em classes não é ar-
bitrária, pois segue lógicas ligadas ao nascimento, à família e a socialização em
diferentes meios sociais. Conforme a síntese de Ricardo Costa de Oliveira, “a
análise da estrutura de classe deve ser pesquisada como um mecanismo fami-
liar de transmissão de origens sociais, posições sociais, capitais sociais e pa-
trimônios entre gerações ao longo do tempo”. Isso porque “a estrutura social
também é uma estrutura genealógica. A riqueza e a pobreza também podem
ser formas sociais hereditárias, quando pensamos em termos de grandes agre-
gados coletivos na longa duração”19. A lógica de criação dos filhos e as diferen-
ças na dinâmica familiar entre as classes têm conseqüências em longo prazo.
Como afirma Jesse Souza, cada classe social possui seu próprio conjunto
de características psicossociais incorporadas. Os indivíduos são produzidos
por uma cultura de classe específica, o que dá origem e reproduz a desigualda-
de social por meio de transferência de valores e reprodução de privilégios,
abrindo ou reduzindo possibilidades (casamentos, amizades, relações...). É pela
família que cada sujeito recebe um acúmulo de conhecimentos e as regras mo-
rais que asseguram acesso privilegiado aos bens e recursos escassos em dispu-
ta na sociedade. O pertencimento de classe é definido, com alta probabilidade
pelo menos e na imensa maioria dos casos, pela herança de classe – pela pre-
sença ou ausência relativa de capital cultural e capital econômico – na qual se é

18
Bertaux, Daniel. Estructura de clases, movilidad de clases y distribución de las personas. Revista
Herramienta número 5, 2012. Disponível em http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-
5/estructura-de-clases-movilidad-de-clases-y-distribucion-de-las-personas
19
Oliveira, Ricardo Costa de. A teia do nepotismo – sociologia política das relações de parentesco e
poder político no Paraná e no Brasil. Curitiba, Insight, 2012.

107
socializado. As classes sociais se formam pela herança afetiva e emocional,
passada de pais para filhos no interior dos lares, de modo muitas vezes implíci-
to, não consciente e inarticulado. São esses estímulos, que são muito distintos
dependendo do ambiente familiar típico de cada classe social, que irão constru-
ir formas específicas de agir, reagir, refletir, perceber e se comportar no mun-
do. E é precisamente a presença ou falta de certos estímulos, por exemplo,
estímulos para a disciplina, para o autocontrole, para o pensamento prospecti-
vo, para a concentração, que irá definir as classes vencedoras e perdedoras
antes mesmo do jogo da competição social se iniciar de forma mais explícita.
Em suas palavras,

as famílias de uma mesma classe social ensinam coisas muito semelhantes


aos filhos, e é isso que explica que esses filhos de uma mesma classe
encontrem amigos, namorados e, depois, esposas e maridos da mesma classe
e comecem todo o processo de novo. A “endogenia de classe”, ou seja, o fato
de as pessoas, em esmagadora maioria, se casarem dentro de uma mesma
classe, mostra, de modo claro e insofismável, que as famílias reproduzem, na
verdade, valores de uma classe social específica. O fato de o senso comum
nunca perceber a presença das classes e da economia moral que vai
determinar o comportamento peculiar de cada classe é o que explica
precisamente que a “determinação social” dos comportamentos individuais
seja sistematicamente escondida e “esquecida”. Como esse aspecto central é
deixado às sombras, pode-se culpar “indivíduos” por destinos que eles, na
verdade, não escolheram20.

O tipo de socialização familiar é determinante no contínuo processo de


reprodução de desigualdades sociais. As classes, a depender da riqueza e do
poder, desenvolvem socializações próprias, capazes de transmitir a sobrevi-
vência e a reprodução de sua condição de classe. Neste sentido, a origem fami-
liar, isso é, as condições de nascimento são cruciais na transmissão e reafirma-
ção das classes sociais e suas condições de luta social. Grande parte do proces-
so de reprodução cultural e material da sociedade tem lugar no interior de da
instituição familiar. A formação de classe da família acontece pela transmissão
de propriedades, status, prestígio, riquezas, conhecimento, inserção social,
valores e moral. Por isso, apesar de ser comum a idéia de que a toda família é
igual, as famílias produzem sistemas contrastantes e diferentes relações soci-
ais de acordo com a classe. Logo, podemos pensar em variantes estruturais do
modo de socialização familiar de acordo com as classes sociais.

20
Souza, Jesse. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Paulo, Leya, 2015.

108
As gerações mais velhas, ao transmitirem os valores e os mitos familiares,
delegam aos membros da família um papel e um destino, atribuídos pelas leis
familiares. Cada família tem suas leis que vão sendo herdadas ao longo do ciclo
de vida familiar. São “lealdades invisíveis”, conteúdos, legados e repetições que
perpassam as gerações, muitas vezes sem serem nomeados explicitamente. Os
compromissos de lealdade tecem uma rede resistente que mantém unidas as
partes do sistema familiar e marcam o pertencimento do indivíduo ao grupo, o
que garante a sobrevivência do grupo familiar através das gerações 21. Com a
lealdade vem o legado, estabelecido como um mandato veiculado através das
gerações, que tem por função transmitir às gerações seguintes os principais
aspectos da família, aos quais se espera que seja dada continuidade. Isto pode
ser notado quando há repetição de nomes na família, ou, por exemplo, em ca-
sos de predominância de nomes com sentidos religiosos.

CONCLUSÃO: UMA AGENDA DE PESQUISA SOBRE AS CLASSES SOCIAIS

O estudo da instituição familiar contribui de maneira decisiva para a


compreensão da existência e reprodução das classes sociais e relações sociais
que moldam a sociedade. É preciso ir além dos modelos de estratificação social
baseados na renda diferencial e nos estímulos econômicos, o que coloca a im-
portância nos debruçar sobre as diferentes formas de classificação social por
meio da socialização familiar. Ao contrário de ser uma simples diferença entre
uma faixa salarial temporária, estas classes se reproduzem em grande medida
familiarmente, apesar dos desejos irreais daqueles que defendem que o capita-
lismo teria destruído o conceito de classe por propiciar enorme mobilidade
social de acordo com o talento, capacidade e vontade de cada um.
Existem muitas dificuldades para considerar e ordenar os materiais ne-
cessários para o estudo da estrutura das classes sociais e obter uma represen-
tação aproximada da realidade. Estas dificuldades só ficam mais claras através
do estudo do processo real da vida das classes sociais de cada país e das famí-
lias que as compõem na atualidade. Os resultados parciais deste trabalho apon-
tam para a pertinência da realização de outras investigações, visando ao apro-
fundamento da compreensão dos processos de transmissão geracional das
classes sociais.
Os processos de incorporação e constituição do habitus primário não po-
dem ser pensados sem considerar as diferentes posições sociais ocupadas
pelos indivíduos, bem como suas trajetórias. Crianças observam e imitam seus
pai quase automaticamente, o que faz existir uma socialização permanente,
mesmo quando os pais não estão conscientemente educando seus filhos. Neste

21
Boszormenyi-Nagy, I. & Spark, G.. Invisible loyalties. Levittown: Brunner/Mazel, 1984.

109
processo os pais provem com e sem intenção seus filhos com um estilo de vida
que tipifica o pertencimento de classe. Esta socialização transmite uma série de
modelos, atitudes, valores, tabus, recursos lingüísticos, cognitivos, educacio-
nais, comunicacionais e emocionais, bem como econômicos e patrimoniais.
Esta transmissão familiar é um dos principais mecanismos de moldar a trajetó-
ria social dos indivíduos. A pesquisa sobre as classes sociais, e isto que tenta-
mos demonstrar neste estudo, depende da incorporação da dimensão heredi-
tária na reprodução da riqueza e poder. A hereditariedade não se dá apenas
pela influência das instituições que perpetuam as desigualdades, mas, sobretu-
do, porque os filhos das diferentes classes sociais são criados de formas muito
diferentes. A estrutura de classes permite que os filhos nasçam com o mesmo
status que seus pais. Conclui-se que existe uma larga persistência de descen-
dentes na formação das classes sociais e que podemos ignorar que a herança
genealógica afeta na mobilidade social.

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111
CAPÍTULO 5

A FAMÍLIA CAMPONESA:
UMA BREVE REVISÃO DE LITERATURA

NATÁLIA CRISTINA GRANATO1

Introdução

A categoria sociológica “família camponesa” vem sendo discutida pelas


Ciências Sociais no Brasil desde a década de 1960, tendo como principal refle-
xão a relação entre o campo e o avanço do capitalismo. Em razão disto, são
recorrentes as seguintes indagações: estaria a forma de organização social
camponesa ameaçada pelo avanço de tal sistema? A família camponesa estaria
comprometida com a intensificação da urbanização registrada no período?
Duas principais interpretações sobre a família camponesa e o avanço do
capitalismo estão presentes nas Ciências Sociais, especialmente na Antropolo-
gia. Na primeira interpretação, constata-se que a produção familiar camponesa
teria uma lógica própria, diferente da capitalista (ALMEIDA, 1986). A lógica
interna do campo se constituiria numa barreira ao avanço capitalista no cam-
po. As famílias rurais e suas extensões, que incluem grupos de vizinhos, paren-
tes e compadres, formariam grupos solidários e equipes de trabalho coletivo
de resistência às relações capitalistas no campo (ALMEIDA, 1986).
A Segunda Interpretação corresponde à ideia de que as formas de organi-
zação familiar no campo possuiriam diferentes versões. Com o avanço do capi-
talismo no campo, o mesmo se adaptaria às peculiaridades rurais, proporcio-
nando um processo de enriquecimento de algumas famílias rurais, enquanto
outras se proletarizariam (ALMEIDA, 1986).
Uma nova fase de estudos sobre o meio rural debruça-se sobre as refle-
xões acerca das “famílias camponesas”, que se caracterizariam pela presença
de proprietários e arrendatários que se utilizariam da mão-de-obra familiar,
com poucos recursos financeiros em geral (ALMEIDA, 1986).

1
Doutoranda e Mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em Ciências
Sociais pela mesma instituição (Bacharelado e Licenciatura). Integrante do Núcleo de Estudos Paranaen-
ses da UFPR. E-mail: nataliagranato@hotmail.com

113
Tais estudos focalizam as questões econômicas e as questões extra eco-
nômicas que perpassam o mundo rural e suas formas de organização do traba-
lho familiar e camponês (ALMEIDA, 1986).
No presente artigo, nos deteremos em assinalar alguns estudos que fazem
parte desta nova fase de estudos sobre o meio rural, vendo as relações familia-
res no campo sob as perspectivas econômicas e sobretudo, extra econômicas,
constatando a manutenção da organização social familiar no campo.

Estudos sobre a família e o trabalho entre os camponeses

A Antropologia brasileira problematizou em seus estudos a questão do


campesinato brasileiro e suas formas de organização social, atentando-se às
questões de parentesco, vizinhança, compadrio, trabalho, hierarquia familiar,
tarefas cotidianas, divisão das mesmas entre os homens, as mulheres e as cri-
anças, entre outras. Partindo de uma perspectiva de que o campesinato brasi-
leiro possui uma cultura própria, distinta da capitalista, alguns autores defen-
deram que tais modos de vida se manteriam com o avanço do capitalismo, e a
família continuaria como categoria central da organização social e cultural
camponesa. Tais trabalhos foram realizados sob a base de minuciosos traba-
lhos de campo que buscaram a compreensão densa de pequenas comunidades
camponesas. Destes estudos, selecionamos três produções que debatem a
peculiar organização social camponesa e suas características que envolvem
família e trabalho.
O primeiro estudo corresponde ao livro “A Morada da Vida: Trabalho Fa-
miliar de Pequenos Produtores do Nordeste do Brasil”, de autoria da professo-
ra da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Beatriz Maria Alásia de Heredia.
Tal livro é resultado da Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ, que teve como membros
da banca Moacir Palmeira, orientador, Roberto Cardoso de Oliveira e Otávio
Velho.
O livro tem como objetivo a “análise da organização interna de unidades
de produção camponesas” (HEREDIA, 1979, p.15). Para tanto, a autora realizou
trabalho de campo e entrevistas durante uma época do ano de 1972, tendo
como preocupação inicial o “estudo da família como unidade de produção e de
consumo” (HEREDIA, 1979, p.24);
O lugar pesquisado foi o Povoado de Boa Vista, situado a 5 km de Riacho
Doce, na Zona da Mata Norte, Pernambuco. A autora pesquisou os sítios e as
famílias produtoras, que compreendem casas e roçados. As casas são habitadas
por indivíduos ligados por laços de parentesco, e os roçados são organizados
sob o trabalho familiar de cultivo de alimentos como a mandioca, o milho e o
feijão (HEREDIA, 1979, p.37).

114
A autora observa que o inverno é a estação do ano que apresenta maior
atividade agrícola. Nesse momento do cultivo, homens, mulheres e crianças
vão trabalhar no roçado, sendo o pai da família o responsável pela organização
das atividades do roçado e a mãe da família a responsável pela organização das
tarefas ligadas à casa. Há uma clara divisão sexual do trabalho: “O pequeno
produtor, como pai de família, é quem deve prover o consumo coletivo dos
membros do grupo doméstico (...) o lugar do homem é no roçado, enquanto o
da mulher, mãe de família, é a casa” (HEREDIA, 1979, p.78);
O pai de família, neste sistema de produção familiar camponês “é o chefe
da família tanto no roçado quanto na casa” (HEREDIA, 1979, p.78). Às mulhe-
res, reserva-se o espaço da esfera privada, ou seja, a casa, mas mesmo assim
ela não chefia este espaço, conferido ao pai de família homem. Os camponeses
não consideram as atividades desenvolvidas pelas mulheres na casa e no roça-
do como trabalho, e sim uma ajuda aos homens. A venda dos produtos na feira
também pertence ao domínio da esfera masculina, pública: “O homem é o ho-
mem e a mulher é a mulher (...) Mas eu fazer um negócio e quem vende é a
minha mulher? Não, a não ser que o homem seja bicha, ela não (...)” (produtor
rural, citado por HEREDIA, 1979, p.87);
Tal dinâmica aplica-se inclusive ao que tange o cuidado dos animais como
o burro, o cavalo e o gado. Estes são se responsabilidade masculina, enquanto
que os animais domésticos como cabras, porcos e aves são de responsabilidade
feminina.
Os produtores rurais reproduzem esta lógica de divisão sexual do traba-
lho na educação dos seus filhos homens, que “começam a possuir roçadinhos
individuais entre os 10 e 12 anos de idade” (...) o “processo de aprendizagem
do trabalho agrícola é efetuado sob a orientação e com a contribuição do pai
(...)” (HEREDIA, 1979, pp. 108-109). Os pais de família também são encarrega-
dos de levar os filhos homens para a feira, em prol do aprendizado que os
mesmos passarão a desenvolver no futuro.
Em resumo, tal estudo, ao analisar densamente as famílias camponesas e
suas formas de organização social ligadas por laços de vizinhança, casamento e
compadrio, constata a permanência das práticas tradicionais de organização
familiar no campo, em detrimento do avanço do capitalismo, pois a cultura
camponesa teria uma lógica própria, diferente da capitalista, concluindo que
“através de diferentes esferas e de forma coletiva, estes pequenos produtores
dão prosseguimento à luta pela sua preservação” (HEREDIA, 1979, p.158).
O segundo estudo que assinala a permanência da categoria família cam-
ponesa nas relações de produção capitalistas no mundo rural intitula-se “Os
Herdeiros da Terra: parentesco e herança numa área rural”, de autoria de Mar-
garida Maria Moura. Tal estudo é resultado da dissertação em Antropologia
Social do Museu Nacional da UFRJ, defendida em 1973, também orientada por
Moacir Palmeira.

115
Direcionando sua análise à região Sudeste, a autora escolheu o povoado
de São João da Cristina, localizado no município de Maria da Fé, na região de
Alta Mantiqueira, Minas Gerais, composto de vários sítios.
O livro descreve com detalhes o trabalho e a alimentação dos pequenos
produtores rurais, além de assinalar como se desenvolvem os laços de vizi-
nhança e parentesco, a organização familiar e a questão da Herança da Terra.
Assim como o trabalho de Heredia, Moura também constata a nítida sepa-
ração entre o trabalho masculino e o trabalho feminino no campo, o primeiro
realizado na roça e o segundo na casa. Mas, ao contrário dos produtores rurais
observados por Heredia, que não consideravam os afazeres femininos como
trabalho, e sim como uma ajuda, os sitiantes analisados por Moura igualavam a
casa com a roça, considerando ambos como trabalho.
Nos sítios localizados em São João da Cristina, as tarefas femininas eram
domésticos e resumiam-se ao trabalho de casa, realizando diariamente a lim-
peza e arrumação da mesma, o cuidado das crianças, o preparo de alimentos, a
confecção de derivados do milho e amendoim e a alimentação dos animais;
Já as tarefas masculinas resumiam-se ao trabalho na roça e negociação
dos produtos na feira. Os meninos começavam a trabalhar na roça a partir dos
8 anos de idade
As relações de parentesco eram extensas à vizinhança. O discurso típico
das pessoas do bairro era o de que todos eram parentes. A respeito disto, Mou-
ra discorre: “(...) a palavra ‘parente’ serve para identificá-los num todo, em que
todos estão unidos, em que o comportamento de todos é uniforme e possivel-
mente em que todos estão irmanados pelo mesmo credo religioso (...)” (MOU-
RA, 1978, p.32).
Para a manutenção da organização do trabalho familiar camponês, a insti-
tuição do matrimônio era indispensável, uma vez que o mesmo era o “ponto de
partida para a divisão do trabalho dos sexos e depois, com a prole, das idades
face a diferentes tarefas no âmbito de cada propriedade” (MOURA, 1978,
pp.34-35);
No povoado de São João da Cristina, “a condição de proprietário indepen-
dente intimamente associada ao matrimônio”. (MOURA, 1978, p.35). O mesmo
permite a “concessão de uma parcela de terra ao filho que se está emancipan-
do, de modo que, produzindo uma renda própria, se inicie no seu próprio sus-
tento” (MOURA, 1978, p.35). Nesse contexto, a condição de homem solteiro
adulto é inaceitável, ao passo que a condição de mulher solteira adulta é soci-
almente aceita, dada a recorrência deste fenômeno, causado pela emigração
masculina rumo às regiões urbanas em busca de trabalho, além das mesmas
muitas vezes se conformarem com a autoridade paterna ao longo de suas vi-
das.
Outros trabalhos que assinalam a persistência da organização familiar
camponesa em detrimento do avanço do capitalismo são de autoria do Profes-

116
sor de Antropologia da Universidade de Brasília Klaas Woortmann, estudioso
das questões antropológicas envolvendo campesinato, família e parentesco.
Destes trabalhos, destacamos o artigo “Com Parente Não se Neguceia” O Cam-
pesinato Como Ordem Moral. Tal artigo objetiva uma aproximação, através da
etnografia do campesinato, do que o autor chama de ética camponesa “consti-
tutiva de uma ordem moral, isto é, de uma forma de perceber as relações dos
homens entre si e com as coisas” (WOORTMANN, 1990, p.11);
O autor não vê o campesinato como modo de produção, mas como ex-
pressão de uma moralidade. Com a etnografia camponesa, o autor constata que
os produtores rurais veem a terra como “patrimônio da família, sobre a qual se
faz o trabalho que constrói a família enquanto valor. Como patrimônio, ou co-
mo dádiva de Deus, a terra não é simples coisa ou mercadoria. Estou tratando,
pois, de valores sociais; não do valor-trabalho, mas do trabalho enquanto um
valor ético. Esta tentativa se afasta, portanto, da tendência economicista que vê
o campesinato como um modo de produção com sua lógica própria ou como o
resultado de determinações impostas pela lógica do capital” (WOORTMANN,
1990, p.12). Assim, o autor diferencia as lógicas do que ele chama de “Homo
economicus” do “Homo moralis”. A etnografia realizada por Woortmann se
debruça sob algumas categorias centrais do campesinato brasileiro, como o
trabalho, a família, a liberdade, além de outras como a comida. Tais categorias
são analisadas a partir dos estudos antropológicos que consideram a cultura
como o “universo de representações de um grupo, categoria ou sociedade” e
também “um conjunto de textos ou discursos” (WOORTMANN, 1990, p.23).
Uma das categorias analisadas foi o sítio, que se caracteriza como o espaço de
troca de mulheres e se realizam as alianças entre os homens. A hierarquia fa-
miliar determina as relações de propriedade. Segundo o autor, o

“direito aos recursos do Sítio são dados pela descendência; o acesso ao sítio
nos dois últimos sentidos da palavra são dados pela filiação, casamento e
residência. Então, sítio e família são termos polissêmicos e paralelos, mas
cuja polissemia “unifica” categorias de espaço e de parentesco.”
(WOORTMANN, 1990, p.32).

O autor assinala a permanência do trabalho familiar entre os camponeses,


que não se resume apenas em termos econômicos, e sim, simbólicos e morais.
Se a grande maioria dos sitiantes se veem como parentes, não é possível que se
estabeleçam relações de troca sob a lógica puramente capitalista em que os
envolvidos em um dado negócio saem perdendo ou ganhando. Daí a expressão
“Com parente não se neguceia”, proferida pelos sitiates que dá título ao texto.
Segundo o autor, o negócio “é percebido como a negação da moralidade, pois
ele significa ganhar às custas do trabalho alheio. É percebido, então, em oposi-
ção ao trabalho e como uma atividade que não envolve honra” (WOORTMANN,

117
1990, p.38). Neste contexto, não há espaço para relações assalariadas capitalis-
tas dentro da ordem moral camponesa, e a mesma se define a partir da hierar-
quia familiar.

Considerações Finais

Este artigo procurou demonstrar, através da explanação de estudos pro-


duzidos por pesquisadores da Antropologia, sobretudo da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro e da Universidade de Brasília, os resultados dos trabalhos
de campo realizados no interior dos sítios camponeses brasileiros a perma-
nência da organização social baseada na família, seja no trabalho ou nas rela-
ções com a vizinhança. Tal interpretação é oposta aquelas que destacam o
avanço do capitalismo no campo e a mudança nas relações sociais camponesas.
Os principais trabalhos do artigo destacaram o modo de vida camponês
nos seus aspectos extra econômicos, que envolvem importantes aspectos não
levados em consideração por análises puramente economicistas. Os discursos
e as práticas de camponeses reais, juntamente com suas famílias, compadres e
vizinhos são levados à sério pelo trabalho de campo antropológico, que possi-
bilita uma problematização sofisticada do objeto de estudo em questão. Um
olhar sob esta perspectiva em relação a família camponesa continua sendo
atual e pertinente.

Curitiba, 30 de novembro de 2016.


9ª sessão do curso de extensão “Família, política e parentesco no Brasil”
promovido pelo grupo de pesquisa NEP
(Núcleo de Estudos Paranaenses – UFPR)
Palestrante: Professora Mestra Natália Cristina Granato

Bibliografia

ALMEIDA, Mauro William Barbosa de (1986). Redescobrindo a Família Rural. RBCS no


1, V.1, jun, 1986. p.66-83. Disponível em:
www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_01/rbcs01_06.htm Acesso em
15/04/2016.
HEREDIA, Beatriz M. A. de (1979). A Morada da Vida: Trabalho Familiar de Pequenos
Produtores do Nordeste do Brasil. RJ: Paz e Terra. pp. 77 – 104 (“Casa Roçado”), 105 –
120 (“Roçado – Roçadinho”).
MOURA, Margarida Maria (1978). Os Herdeiros da Terra: Parentesco e Herança numa
área rural. SP: Hucitec. pp. 31 – 45 (“A Família e o Parentesco”); pp. 47 – 71 (“A Herança
da Terra”).
WOORTMANN, K. (1990). “Com Parente não se Neguceia”. Anuário antropológico 1987/
Editora da Universidade de Brasília/Tempo Brasileiro, 1990, pp. 11 - 73.

118
CAPÍTULO 6

NEPOTISMO COMO CATEGORIA


DE ANÁLISE SOCIOLÓGICA

ALESSANDRO CAVASSIN ALVES

O nepotismo está estritamente ligado à família, pois, ele só existe se a fa-


mília estiver envolvida sendo um fenômeno político e social bastante conheci-
do pela sua evidência histórica e pela prática ainda recorrente, em especial
tendo como referência o Brasil. O objetivo, então, é analisar a legislação brasi-
leira sobre o assunto e abordagens teóricas que consideram o nepotismo um
fato prejudicial à sociedade, em especial à meritocracia e teorias que defendem
tal comportamento. Por fim, analisa-se uma ferramenta em rede social que
destaca notícias sobre o nepotismo na mídia.
No trabalho “Nepotismo, parentesco e mulheres”, organizado por Ricardo
Costa de Oliveira (2016), destaca-se que o nepotismo, apesar de atrair a aten-
ção de alguns pesquisadores, “no caso brasileiro são poucos os autores que
estudam o tema profundamente”.
Neste sentido, faz-se necessário ampliar a reflexão sobre o assunto, verifi-
cando a legislação brasileira e teorias contra e em defesa ao nepotismo. E fren-
te a isso, o que os meios de comunicação, com todos seus interesses em jogo,
apresentam sobre a dinâmica do nepotismo em nossa sociedade. Interpretar o
que a mídia fala quase que cotidianamente sobre o nepotismo pode igualmente
nos dar a conhecer aspectos da realidade brasileira e de seus grupos dominan-
tes, organizados, muitas vezes, em caráter familiar.
De certa forma, queremos proporcionar a observação de como o nepotis-
mo é um fato marcante na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, o que isto
nos revela. E destacar a importância de mecanismos de divulgação, como o
Observatório do Nepotismo no Brasil, idealizado pelo NEP (Núcleo de Estudos
Paranaenses), divulgado em redes sociais, na formação da consciência sobre
tal fenômeno neste país.

119
O nepotismo e a legislação

A tabela 1, a seguir, demonstra o que pode ser considerado nepotismo em


relação ao grau de parentesco, publicado pela Câmara federal brasileira.

Tabela 1 – Graus de Parentesco para fins de Nepotismo


(Autoridade Nomeante e Cônjuge)

Formas de Parentesco Graus de Parentesco


1º Grau 2º Grau 3º Grau

Ascendentes Pais (inclusive Avós Bisavós


Em linha
madrasta e pa-
Parentes reta
drasto)
Consanguíneos
Descendentes Filhos Netos Bisnetos
Em linha Irmãos Tios e Sobrinhos
colateral (e seus cônjuges)
Sogros (inclusive Avós do cônjuge Bisavós do
madrasta e pa- ou companheiro cônjuge ou com-
drasto do cônjuge panheiro
Ascendentes
Em linha ou companheiro)
reta Enteados, genros, Netos (exclusi- Bisnetos (exclusi-
Parentes por Descendente noras (inclusive vos do cônjuge vos do cônjuge ou
afinidade do cônjuge ou ou companheiro) companheiro)
companheiro)
Cunhados Tios e sobrinhos
Em linha (irmãos do do cônjuge ou
colateral cônjuge ou companheiro (e
companheiro) seus cônjuges)
Fonte: Câmara Federal. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/a_camara/estrutura-
adm/depes/secretariado-parlamentar/diagrama-de-parentesco. Acesso em: 31/08/2016.

Observação: o cônjuge ou companheiro, embora não seja considerado pa-


rente, encontra-se sujeito às vedações contidas na Súmula Vinculante nº 13 do
Supremo Tribunal Federal. Fonte: Câmara Federal. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/depes/secretariado-
parlamentar /diagrama-de-parentesco. Acesso em: 31/08/2016.
Em 21 de agosto de 2008 o Supremo Tribunal Federal considerou que a
nomeação para cargos de direção, chefia, cargos de comissão ou de confiança
na administração pública por parte da autoridade pública nomeante violava a
Constituição, quando o nomeado tivesse o grau de parentesco estabelecido
para fins de nepotismo. Era a Súmula Vinculante nº 13.

Súmula Vinculante nº 13
A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou
por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de
servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou
assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou,

120
ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em
qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a
Constituição Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurispru
dencia/menusumario.asp?sumula=1227. Acesso em 05/09/2016.

Entretanto, por que ainda acontece o nepotismo? Em jurisprudência pos-


terior ao enunciado, o nepotismo foi permitido quando ocorrer para cargo
nomeado como “agente político”.

Nepotismo e agente politico

"1. A jurisprudência do STF preconiza que, ressalvada situação de fraude à lei,


a nomeação de parentes para cargos públicos de natureza política não
desrespeita o conteúdo normativo do enunciado da Súmula Vinculante 13"
(RE 825682 AgR, Relator Ministro Teori Zavascki, Segunda Turma,
julgamento em 10.2.2015, DJe de 2.3.2015 – grifo nosso). Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menusumario.asp?sumula=122
7. Acesso em 05/09/2016.

Portanto, não se caracteriza violação da Constituição quando o parente


nomeado for para “cargos públicos de natureza política”. Tal formulação legal
abre brechas para que o nepotismo continue sendo praticado como algo legal,

Sobre o nepotismo – definições

Nepotismo vem do latim nepotis ou nepotes, que significa sobrinho ou neto


e no plural nipoti, descendentes; sua origem remonta às administrações ecle-
siásticas que nomeavam sobrinhos, parentes dos Papas para cargos adminis-
trativos da Igreja. Na Ciência Política este conceito é utilizado para dizer do uso
do poder por alguma autoridade constituída com o fim de beneficiar parentes
com cargos públicos ou outros (GUIMARÃES, 2012, p.16).
Para Ricardo Costa de Oliveira, “nepotismo na sociologia política é a rela-
ção entre parentesco e Estado” (OLIVEIRA, 2012, p.14); “Relação entre estru-
turas de poder político e estruturas de parentesco. O nepotismo é uma relação
política de favoritismo e de patronagem, sob as mais diversas formas sociais e
políticas” (Ibidem, p.73); “A rede de nepotismo é uma grande rede de influên-
cias e interesses com cargos públicos, fornecedores do aparelho de Estado e
conexões variadas de interdependências pessoais, monetárias e políticas” (Ibi-
dem, p.83).

121
João Gaspar Rodrigues (2005) apresenta algumas formas de nepotismo:
“Nepotismo direto”: Quando há uma nomeação de parentes para algum cargo
público pelo ator político que possui acesso aos recursos públicos; “Nepotismo
indireto”: Quando o agente público contrata parentes de subordinados seus;
“Nepotismo cruzado”: Quando há acordos entre atores públicos e há contrata-
ções de parentes destes atores como troca de favores. “Nepotismo trocado”:
Quando ocorre entre instituições da mesma espécie, como exemplo, podemos
citar troca de parentes entre os poderes Executivos, entre poderes Legislativos,
entre Tribunais etc.
Jurutan Alves da Silva (2016), ao descrever a família política Pinheiro em
Ibirité, Minas Gerais, comenta sobre um “nepotismo eleitoral”, isto é, um políti-
co vitorioso da família que vai abrindo caminho para outros parentes partici-
parem do poder.
Ricardo Costa de Oliveira (2012, p.18) comenta sobre um “nepotismo mili-
tante”, na qual, apesar de serem poucos os defensores do nepotismo, “há mui-
tos praticantes e sócios do nepotismo”. Um “nepotismo militante” que já vem
de cima, das mais altas hierarquias, como Presidentes da República (Ibidem,
p.103-104), Governadores, Juízes, Deputados, Prefeitos e Vereadores. Ou mes-
mo a expressão “supernepotismo”, tendo como referência a família Richa, no
governo do Paraná, nos dois mandatos, 2011-2014 e 2015-2018, quando os
principais cargos públicos de seu governo são coordenados por seus familiares
(Ibidem, p.151-166). Ou ainda a “bancada do nepotismo” referindo-se aos no-
vos deputados estaduais nas Assembleias Legislativas com vínculos de paren-
tesco com seus pais, avós, sogros que também já exerceram cargos políticos
(vide o caso da Assembleia Legislativa do Paraná, Ibidem, p.167).
Roberto DaMatta (1987) discute o “nepotismo à brasileira”, citando o
exemplo do Ministro Ibrahim Abi-Ackel (o ministro em família), no Governo
Militar de João Batista Figueiredo, além dos exemplos no Governo Sarney e
seus Ministros, na redemocratização, pós 1985. Afinal, “dos 24 Ministros, dez
têm a mulher, genros e cunhados no governo”, enfim, surge, ou continua a fa-
mília à brasileira, com toda a sua força institucional e em extraordinário vigor
pelo nepotismo.
Afinal, como analisar o fenômeno do nepotismo tão presente em nossa re-
alidade política?

Nepotismo como categoria de análise sociológica

Apesar de ser um tema bastante comentado, poucos estudos trazem a


questão do nepotismo como categoria de análise sociológica.

122
Nesse sentido, o livro Na teia do Nepotismo, lançado em 2012, pelo Profes-
sor Doutor Ricardo Costa de Oliveira, tornou-se uma referência obrigatória
para se entender o tema no Brasil. O autor nos leva a observar o fenômeno do
nepotismo, tendo como parâmetro a centralidade da organização família em
nosso país. Afinal, “nepotismo ou porque a família importa”.

Minha tese é simples. Família ainda importa. As estruturas de parentesco


formam parte da realidade social e política brasileira no século XXI. Redes
familiares controlam partidos políticos, controlam o centro do poder
executivo e formam redes atravessando o poder legislativo com
parlamentares hereditários, sempre se renovando pelas gerações. O poder
judiciário também sente as redes de cumplicidades e reproduções de algumas
famílias e seus protegidos. O Tribunal de Contas em boa parte é um tribunal
de parentes também. Ainda hoje os cartórios representam antigas redes
familiares. A mídia, a intelectualidade, os jornalistas também já formaram
grandes redes de parentesco e domínio familiar, agora em processo de
modernização e profissionalização (OLIVEIRA, 2012, p.13).

De forma concreta e visível, as instituições políticas, como partidos, o po-


der legislativo, executivo e judiciário, das esferas nacional, estadual e munici-
pal, são controladas por redes familiares, bem como instituições relevantes
como a mídia, a intelectualidade e o jornalismo. Tal fato só foi possível devido a
“instituições políticas frágeis” que pouco contribuem para limitar o poder fami-
liar, como salienta Oliveira.

O fenômeno do nepotismo é, antes de tudo, um sintoma da presença de


instituições políticas frágeis. O nepotismo está associado com desigualdades
sociais, formas de patronagem e de clientelismo político. O próprio Estado é
controlado por interesses privados e não há plenos controles públicos entre
os poderes porque o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e órgãos como os
Tribunais de Contas e o Ministério Público também são parcialmente
formados por grandes redes de favores e de parentesco. Os partidos políticos
se enfraquecem ou desaparecem como instituições e a política se resume aos
negócios de famílias, com seus interesses e redes de dependências pessoais.
Estados como o Paraná e os estados nordestinos têm longas histórias
políticas de oligarquias familiares atuantes nas últimas décadas. O familismo
ainda é uma constante na política brasileira (OLIVEIRA, 2012, p.14) 1.

1
E Oliveira reforça seu argumento: “O fenômeno do nepotismo é, ao mesmo tempo, o sintoma e a causa
de instituições fracas. O seu ambiente social é a desigualdade social e a vulnerabilidade social de cliente-
las políticas” (OLIVEIRA, 2012, p.15); “O nepotismo, para existir e triunfar, deve cooptar os outros
poderes” (ibidem, p.17); “O nepotismo só pode sobreviver com a falta de transparência na política e com
a ignorância, subserviência e cumplicidade do sistema político e partidário” (idem). “O nepotismo existe
no meio de grandes carências pessoais, no meio de um eleitorado pobre e sem cidadania, dominado pelo

123
As instituições políticas frágeis, no sentido de permitirem o nepotismo,
contam ainda com fatores como “cargos comissionados”. Para Ricardo Costa de
Oliveira, “nepotismo, familismo e empreguismo sempre andam juntas” (Ibidem,
p.16), e ainda, “há correlação entre cargos comissionados e nepotismo” (Ibi-
dem, p.86).
Vejamos o seguinte gráfico sobre cargos comissionados no Estado do Pa-
raná (dados de 2013), que são de 4.366 funcionários, somando um gasto em
folha de R$ 18,6 milhões mensais.

Gráfico 1 – Cargos Comissionados no Estado do Paraná (2013)

Fonte: Gazeta do Povo, Curitiba, PR, 18/04/2013. Número de servidores comissionados


no governo do Paraná aumenta em 10%.

As nomeações para esses cargos públicos comissionados podem ocorrer


para o favorecimento de contratação de parentes de políticos ou funcionários
públicos de carreira.
Cargos comissionados na Assembleia Legislativa do Paraná: o total decla-
rado de funcionários é de 2.458. Destes, são funcionários comissionados 1.942,
ou seja, 79% (Gazeta do Povo, 05/04/2008, in: OLIVEIRA, 2012, p.90). Tal fato
demonstra a possibilidade dessa Casa legislativa, através de seus políticos
eleitos e funcionários de carreira controlarem a nomeação de grande parte dos
seus servidores.
Cargos comissionados na Câmara Municipal de Curitiba: o total declarado
de funcionários é 728. Desses, funcionários comissionados 539, ou seja, 74,2%
(Gazeta do Povo, 22/04/2009, in: OLIVEIRA, 2012, p.90). Tendo, assim, o poder
legislativo municipal a mesma lógica de nomeação do poder legislativo estadual.

clientelismo, com redes e estruturas de dependências pessoais” (Ibidem, p.18). Nepotismo que se encon-
tra no Poder Executivo, Poder Legislativo, Poder Judiciário, Ministério Público e Tribunal de Contas. E,
por fim, “o nepotismo apresenta uma forte base municipal” (Ibidem, p.19).

124
Para Ricardo Costa de Oliveira, a solução para o fenômeno do nepotismo
passaria por uma administração moderna e transparente, partidos políticos
realmente abertos à participação de todos, além de uma cultura política por
parte dos cidadãos/eleitores contra o nepotismo.

Uma administração moderna e transparente, com concursos públicos e


sistemas racionais de meritocracia na burocracia e no orçamento do Estado, é
fundamental. A modernização burocrática diminuiria os privilégios para os
políticos profissionais e comissionados, o que limitaria o fenômeno do
clientelismo e do nepotismo. Somente a modernização, o planejamento de
nossas instituições políticas e a criação de modernos partidos políticos
poderá desenvolver plenamente a nossa cidadania e democracia frente a
essas questões. Eleitor educado e organizado é eleitor mais consciente
(OLIVEIRA, 2012, p.18).

A conclusão é que temos em vários quadrantes praticamente uma ‘casta’


hereditária de políticos profissionais. A política vem se tornando negócio de
família e negócio de ricos. As eleições são caríssimas e muitos só querem o
extrativismo estatal; isto é, só querem ganhar muito, ganhar mais e rápido
dentro do aparelho estatal (Ibidem, p.18).

O que pode limitar o nepotismo é a luta contra a cultura política do


nepotismo (Ibidem, p.21).

Frente ao exposto, entretanto, também existem teóricos defensores do


nepotismo. Adam Bellow, jornalista norte-americano, seria um deles. No livro
Em louvor do nepotismo: uma história natural (In praise of nepotism: a natural
history), publicado nos Estados Unidos em 2003 e no Brasil em 2006, o autor
apresenta argumentos sobre a naturalidade do fenômeno, como algo “constitu-
tivo da natureza humana”. Afinal, muito mais antiga do que a defesa da merito-
cracia, é a defesa da tradição familiar.
E, nesse sentido, o autor faz um imenso levantamento de nomes de famí-
lias atuais nos Estados Unidos em sua “sucessão hereditária”, em seu favoreci-
mento de parentes (em especial no Posfácio – O nepotismo americano hoje,
BELLOW, 2006, p.647-676), no mundo da política, nos negócios, nas ar-
tes/literatura, nas artes/música, nas artes/Hollywood, nas artes/televisão, nos
esportes e outras profissões demonstrando como o nepotismo necessita ser
melhor compreendido. E, portanto, é um fenômeno recorrente tanto na esfera
pública como privada2.

2
Felix Garcia Lopez Junior (2006) aponta que Adam Bellow não deixa claro o próprio conceito de
nepotismo, por ser muito maleável, aplicado a qualquer tipo de sucessão hereditária e que não há forma
de medir se isso realmente é bom ou ruim, pois dependeria da cultura e representações sociais de cada
povo.

125
Voltando à política, mesmo com a tradicional democracia americana, com
sua classe média forte, os direitos civis, a meritocracia e igualdade de oportu-
nidades, o profissionalismo, o individualismo desenfreado e a dissolução fami-
liar nessa mesma classe, parecem renascer, pós segunda guerra mundial, as
tendências das famílias dinásticas ou o antigo sistema wasp (White, Anglo-
Saxon and Protestant) nos Estados Unidos. E, o autor, cita o exemplo gritante
da disputa eleitoral presidencial do ano de 2000 entre George W. Bush, filho de
ex-presidente, neto de senador e tendo um irmão governador e Al Gore (Albert
Arnold “Al” Gore Júnior), filho de senador. “A rivalidade de Gore e Bush desen-
cadeou um interesse imediato no ‘retorno’ das dinastias políticas” (BELLOW,
2006, p.09). E, mesmo após a vitória de Bush, famílias políticas continuaram
em evidência, quando esse passou a indicar membros de filhos de políticos e
militares para compor seu governo (Ibidem, p.12). E, ainda, nomes que repre-
sentam a elite wasp continuavam a vencer eleições, bem como o fenômeno de
famílias de classe média descendentes de novas imigrações que passam a fazer
carreira política delegando a seus filhos os sobrenomes necessários para con-
correrem aos cargos públicos (Ibidem, p.16). Nesse sentido, era o “retorno”
evidente de que famílias estariam passando de pais para filhos cargos públicos
americanos. Eis um conflito que chama a atenção de Bellow: “parentesco mais
Estado é igual a nepotismo” (Ibidem, p.39). Porém, para o autor, isso não é um
problema, mas um conflito salutar, que “tem origem na natureza” e “desempe-
nhou um papel vital na vida social dos homens e ostenta um histórico de con-
tribuições marcantes para o progresso da civilização” (Ibidem, p.40). E é um
fenômeno que “não conseguimos reprimir”, diz o autor.
Assim, tendo como referência que os pais tendem a privilegiar seus filhos
em momentos de competição e de que familiares tendem a ajudar seus paren-
tes; e ainda, de que crescer num ambiente político, artístico, de negócios, de
esportes, favorecem em seus familiares o gosto e o aprendizado pela profissão
de seus pais; tudo nos leva a crer na naturalidade do nepotismo, explica o autor3.
Mas, o que Bellow acredita é de que se está em movimento um “Novo Ne-
potismo” nos Estados Unidos, que vem exatamente da classe média que defen-
de o princípio do mérito. O “Novo Nepotismo” não significa apenas privilegiar o
filho ou o parente por ser membro da família. O que se quer mostrar é de que o
mesmo filho ou parente tem de ser tão bom quanto quem o nomeia. É a defesa
do mérito daquele que consegue um cargo facilitado pelo nepotismo em detri-
mento do que o autor chama do “Velho Nepotismo” de privilegiar parentes sem
nenhuma capacidade ou experiência para o trabalho. Voltando ao exemplo de

3
Lopez Junior (2006) também percebe nessa ideia de Bellow uma contradição, entre o imperativo
biológico universal e o nepotismo como construção cultural.

126
George W. Bush, o filho, votar nele, com seus defeitos visíveis, era saber que se
estava votando em sua família e na rede criada por Bush pai. Bellow chama isto
de “nepotismo meritocrático” (Ibidem, p.33), que requer do nepote competên-
cia e, até mesmo, independência, caso contrário irá prejudicar os negócios da
família, irá perder eleições, fará uma má administração pública ou privada e
desempenhará de forma rudimentar e prejudicial sua função, o que seria repu-
diado pela própria sociedade4.
Outra defesa ao nepotismo foi encontrada na monografia em Direito, na
UFPR, de Daniela Pretto (2009) e orientador Professor Dr. Romeu Felipe Bacel-
lar Filho. Tendo como referência a cultura e formação da nação e do povo bra-
sileiro associada à patronagem e a consequente dificuldade de se estabelecer
no país um sistema de mérito, de dados estatísticos de 2008 de como o brasi-
leiro encara de forma positiva o nepotismo, do princípio da isonomia em que o
contratante (político) deve ter a liberdade de escolher/nomear alguém de sua
total confiança (ficando para a concorrência das vagas comissionadas apenas
aqueles em que o político conheça de forma satisfatória) e a competência e
eficiência do nomeado no exercício de seu cargo público, é que devem pautar
as reflexões sobre o nepotismo. E, com isso, a autora pode concluir de “que não
procedem os argumentos utilizados para justificar a edição da súmula vincu-
lante número 13” (PRETTO, 2009, p. 69), afinal, eliminar a prática do nepotis-
mo no Brasil iria contra a cultura de seu povo e feriria a própria Constituição
Federal5.

Nepotismo na mídia e o Observatório do Nepotismo no Brasil

“‘Você que está falando!” – As notícias falam sobre a imensa rede de pa-
rentesco no poder político” (OLIVEIRA, 2012, p.21). O exemplo a seguir foi
publicado no jornal Gazeta do Povo (Curitiba, PR):

“NEPOTISMO – Parentes de desembargadores em gabinetes “cruzados”


pedem exoneração no TJ-PR”.
Denúncia foi feita por um magistrado e publicada na edição de fim de semana,
por Katia Brembatti, [30/08/2016].
Dois familiares de desembargadores que atuam no Tribunal de Justiça do
Paraná (TJ-PR) foram exonerados, a pedido, de cargos comissionados nesta

4
Talvez seja esse também o argumento da grande maioria dos militantes do nepotismo, a questão da
eficiência do parente contratado. Lopez Junior (2006) vê, entretanto, a falta nos argumentos de Bellow
da comparação de “sistemas administrativos mais burocratizados” no mundo, como forma de se avaliar,
comparativamente, a real eficiência entre quem contrata funcionários especializados para cargos públicos
e quem contrata familiares.
5
Acreditamos que seria necessário rever alguns argumentos, em especial quando se defende que o
Estado não deva fazer algo contra a cultura do nepotismo, principalmente quando se considera que os
cargos são apenas para favorecer parentes, independente da eficiência ou não deles.

127
semana. As exonerações ocorreram depois que o desembargador José
Maurício Pinto de Almeida denunciou a existência de nepotismo cruzado –
quando uma nomeação é feita em troca de outra, para burlar a proibição de
contratar parentes. A situação foi revelada na coluna de Celso Nascimento.
De acordo com a denúncia – enviada, em meados de agosto, à presidência do
TJ-PR, ao Ministério Público e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) –, Cedric
de Vicente, filho do desembargador Roberto de Vicente, estava nomeado no
gabinete de Laertes Ferreira Gomes. Já a esposa de Laertes, Glaci Terezinha
Gomes, estava nomeada no gabinete de Vicente. Cedric e Glaci são servidores
efetivos, com estabilidade funcional no TJ, mas estavam desempenhando
cargos comissionados e recebendo adicional salarial por isso. A gratificação,
em ambos os casos, chega a R$ 7,3 mil a mais, por mês, no salário.
A Gazeta do Povo procurou o Tribunal de Justiça, os desembargadores e os
servidores mencionados, mas a resposta foi a mesma em todos os casos: que
ninguém iria se pronunciar sobre a situação.
Outros casos
Em 2014, uma correição feita pelo CNJ no Tribunal de Justiça do Paraná já
havia encontrado indícios de irregularidades na nomeação de funcionários,
inclusive com suspeitas de nepotismo cruzado. À época, a resposta do TJ
negou qualquer prática ilícita. (GAZETA DO POVO, Curitiba, PR, 30/08/2016.
Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/parentes-de-
desembargadores-em-gabinetes-cruzados-pedem-exoneracao-no-tj-pr-
9inlc7qbkjblq5y5ak827drwt. Acesso em 15/09/2016).

A reportagem nos encaminhava para denúncias no mesmo tribunal para o


ano de 2014:

JUDICIÁRIO – CNJ aponta indício de nepotismo e outros problemas no TJ do


Paraná.
Documento do Conselho Nacional de Justiça indica que a Justiça estadual dá
licenças em excesso a funcionários e tem elevado número de comissionados,
dentre outras questões, por Katna Baran [17/07/2014]
Sem solução – Veja os problemas encontrados pelo CNJ no TJ-PR que ainda
não foram solucionados:
Administrativos
• Nepotismo direto e cruzado entre os funcionários do TJ.
• Inexistência da declaração de bens e renda, entre 2010 e 2012, de 105
magistrados e servidores.
• Ilegalidade na concessão de férias. Há casos de servidores que não gozavam
férias há mais de três anos.
• Períodos muito extensos de licenças de funcionários por motivos de doença
e paternidade, entre outros.
• Cargos comissionados em excesso. Em 2013, 89% dos servidores do TJ não
tinham vínculo com a administração, o que contraria a resolução do CNJ que
determina que pelo menos 50% dos comissionados devem ser servidores de
carreira.
Precatórios

128
• Falta de controle de todos os depósitos para pagamento de precatórios nos
municípios paranaenses.
• Não atendimento à recomendação do CNJ para revisar os precatórios
envolvendo as prefeituras de Curitiba e Maringá.
• 87% dos cargos em comissão do Tribunal de Justiça do Paraná são
ocupados por servidores sem vínculo com a administração. O CNJ estabelece
que 50% dos comissionados têm de ser servidores da carreira judiciária.
• 105 magistrados e servidores do Tribunal de Justiça do Paraná não
apresentaram declaração de bens e renda entre 2010 e 2012. Além disso, não
houve qualquer punição a esses funcionários por parte do TJ. (GAZETA DO
POVO, Curitiba, PR, 17/07/2014. Disponível em: http://www.gazetadopovo.co
m.br/vida-publica/cnj-aponta-indicio-de-nepotismo-e-outrosproblemas-no-tj-do-
parana-eb0uxgbe6tl01cv3sa8rwvn7y. Acesso em 15/09/2016.

Enfim, as notícias sobre o nepotismo no Brasil são quase que diárias e bas-
tante graves, por demonstrarem a fragilidade de nossas instituições, bem co-
mo, sua ocupação por familiares de servidores públicos de carreira ou políticos
eleitos.
Neste sentido, analisaremos a ferramenta do Observatório do fenômeno
do nepotismo no Brasil, publicada na rede social facebook
(https://facebook.com/nateiadonepotismo?ref=hl), enquanto uma comunida-
de, tendo como idealizador o Professor Doutor Ricardo Costa de Oliveira do
NEP – Núcleo de Estudos Paranaenses da UFPR (Universidade Federal do Pa-
raná). Tem como título: Na Teia do Nepotismo. Sociologia Política do Nepotis-
mo. A presente ferramenta divulga notícias sobre o fenômeno do nepotismo no
Brasil, a partir do que sites e jornais nacionais publicam sobre o tema. Portan-
to, a comunidade apenas repete a notícia divulgada. Iremos analisar o que foi
publicado no mês de fevereiro de 2017.
Por exemplo, ao abrir o link no dia 28/02/2017, apareceu a notícia da juí-
za Célia Regina Ody Bernardes, que autorizou as buscas no escritório do filho
do ex-presidente Lula. Ela é irmã do prefeito de Blumenau, Napoleão Bernar-
des Neto, do PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro). A essa notícia está
associada outra, da posse de Célia Regina como juíza federal, em 2011, na qual
Napoleão Bernardes esteve em Brasília sendo acolhido pelos senadores Aécio
Neves (MG), Paulo Bauer (SC), Álvaro Dias (PR) e o ex-senador José Serra (SP).
A última publicação seria a do dia 23/02/2017, sobre: “Jorge Luz e Bruno
Luz, pai e filho, lobistas na Petrobras e ligados ao PMDB, foram presos na ma-
nhã desta quinta (23/02) na 38ª fase da Lava Jato”. (Disponível em:
https://www.brasil247.com/pt/247/rio247/281816/PF-prende-suspeito-de-
operar-propinas-do-PMDB.htm. Acesso em 28/02/2017).
No dia 21/02/2017 temos a reprodução da nomeação do filho do Ministro
da Defesa, Raul Jungmann, Bruno Costa Jungmann, para um cargo comissiona-
do no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, do Minis-
tro Gilberto Kassab (Gabinete do Ministro, Portaria nº 824, de 15/02/2017).

129
Um dia depois de sua nomeação vir a público a portaria foi anulada (Disponível
em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/02/21/filho-
de-ministro-da-defesa-perde-cargo-um-dia-apos-nomeacao-vir-a-publico.htm.
Acesso em 28/02/2017).
Do dia 20/02/2017 temos a publicação sobre a notícia da investigação do
envolvimento do Chefe da Casa Civil do governador Beto Richa (PSDB), do
Paraná, Valdir Rossoni e do seu filho Rodrigo Rossoni, quando prefeito de Bitu-
runa, Paraná, sobre desvio de R$17 milhões de construção de escolas no Para-
ná. (Disponível em: http://m.folha.uol.com.br/poder/2017/02/1860245-
auxiliar-de-richa-e-investigado-em-caso-de-desvio-de-r-17-mi-no-
pr.shtml?mobile. Acesso em 28/02/2017).
Do dia 16/02/2017 temos o destaque para a seguinte notícia:

"A Andrade Gutierrez foi integrante do consórcio construtor de Belo Monte.


Segundo Flávio Barra, entre R$ 4 milhões e R$ 5 milhões foram repassados ao
senador Edison Lobão (PMDB) pelas obras de Angra 3 e R$ 600 mil da
hidrelétrica. A propina de Belo Monte teria sido entregue em espécie na casa
de Márcio Lobão, no período em que o pai, hoje presidente da Comissão de
Constituição e Justiça do Senado foi ministro de Minas e Energia. Lobão
comandará a sabatina de Alexandre de Moraes para o Supremo Tribunal
Federal. Se tiver o nome aprovado na Casa, Moraes será o revisor da Lava Jato
no STF" (Disponível em: http://www.brasil247.com/pt/247/poder/280678/
Filho-de-Lob%C3%A3o-recebeu-propina-de-Belo-Monte-emesp%C3%A9cie-
diz-delator-da-Andrade.htm. Acesso em 28/02/2017).

Do dia 15/02/2017 destaca-se a notícia sobre problemas que envolvem


desvios de dinheiro público na Universidade Federal do Paraná, em que um
professor passaria parte dos recursos a seus dois filhos. (Disponível em:
http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/tcu-ve-nepotismo-e-desvios-em-
bolsas-ao-monitorar-repasses-do-dnit-a-ufpr.ghtml. Acesso em 28/02/2017).
Do dia 13/02/2017 temos a publicação sobre ACM Neto (Antonio Carlos
Magalhães Neto), prefeito de Salvador, Bahia, que possui 11 parentes dele e
de aliados nomeados para sua gestão (Disponível em: http://bahia.ba/politica/
acm-neto-nomeia-tio-e-chega-a-11-parentes-dele-e-de-aliados-na-
gestao/Acesso em 28/02/2017).
Do dia 10/02/2017, notícia sobre o escritório da família de Alexandre de
Moraes e as ações que as mesmas defendem no Supremo Tribunal Federal da
qual Alexandre fará parte (Disponível em: http://m.folha.uol.com.br/poder/20
17/02/1857457-escritorio-de-familia-de-moraes-atua-em-acoes-no-
supremo.shtml. Acesso em 28/02/2017).
No dia 09/02/2017 temos a suspensão da nomeação do filho de Marce-
lo Crivela para a Casa Civil no Rio de Janeiro (Disponível em: http://g1.globo.co

130
m/rio-de-janeiro/noticia/marco-aurelio-suspende-nomeacao-de-filho-de-
crivella-para-a-casa-civil-no-rio.ghtml. Acesso em 28/02/2017).
No mesmo link há uma divulgação sobre nepotismo na Prefeitura de Ita-
nhém, Bahia (Disponível em: http://aguapretanews.com.br/reportagem-
especial-ministerio-publico-notifica-prefeita-de-itanhem-sobre-nomeacoes-
de-parentes/ Acesso em: 28/02/2017).
No dia 07/02/2017 o destaque para a reportagem do deputado Alberto
Fraga (DEM-DF) e a contratação de sua filha Bruna Brasil Fraga e o genro Jo-
ão Ribeiro da Silva Neto no próprio gabinete (Disponível em: http://congresso
emfoco.uol.com.br/noticias/deputado-alberto-fraga-dribla-lei-do-nepotismo-
e-trabalha-com-filha-e-genro-no-gabinete/ Acesso em 2/02/2017).
Em 06/02/2017 destaca que: “Filho de Eliseu Padilha advoga para empre-
sa citada na Lava Jato” (Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ult
imas-noticias/2017/02/06/filho-de-padilha-advoga-para-empresa-citada-na-
lava-jato.htm. Acesso em 28/02/2017).
Em 04/02/2017 temos publicado a seguinte informação sobre Moreira
Franco (Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/a-lava-
jato-avanca-sobre-a-arvore-carregada-de-sogros-e-genros/) Acesso em
28/02/2017):

Via Etel Frota PARENTELAS (Elio Gaspari, no jornal de hoje) "O ministro
Moreira Franco é sogro de Rodrigo Maia e foi genro do senador Amaral
Peixoto, genro de Getúlio Vargas. Eunício de Oliveira foi genro do cacique
cearense Paes de Andrade, que foi genro do deputado Martins Rodrigues e é
sogro de César Mata Pires Filho, cujo pai, fundador da empreiteira OAS, foi
genro de Antonio Carlos Magalhães, que governou a Bahia três vezes e foi avô
do atual prefeito de Salvador.

Em 02/02/2017 temos uma breve biografia do jovem Crivella-filho, no-


meado como Secretário da Casa Civil no Rio de Janeiro por seu pai (Disponí-
vel em: http://oglobo.globo.com/rio/crivella-nomeia-filho-como-secretario-
da-casa-civil-20861075. Acesso em 28/02/2017).
Enfim, no breve mês de fevereiro de 2017, em meio ao feriado de Carna-
val, foram postadas 13 notícias sobre o tema nepotismo no Brasil no Observa-
tório do fenômeno do nepotismo no Brasil.
O elevado número de reportagens, bem como seus conteúdos, demonstra
aquilo que Ricardo Costa de Oliveira (2016) defende como uma das formas de
estudar o nepotismo, por aquilo que ele ainda pode nos mostrar sobre a socie-
dade brasileira atual. Diz Oliveira: o nepotismo “pode revelar-nos outros canais
de exercício do poder: os constituídos pelo complexo de relações sócio-

131
políticas e culturais, tanto clientelistas como familiares e, ainda, o extraordiná-
rio crescimento em influência dos grupos dominantes através de redes bem
definidas” (OLIVEIRA, 2016, p.4).

Curitiba, 28 de setembro de 2016.


7ª sessão do curso de extensão “Família,
política e parentesco no Brasil” promovido pelo grupo de
pesquisa NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses – UFPR)
Tema: Nepotismo como categoria de análise sociológica
Palestrante: Professor Doutor Alessandro Cavassin Alves

Referências
BELLOW, Adam. (2006). Em louvor do nepotismo: uma história natural. São Paulo: A Girafa Edito-
ra.

DA MATTA, Roberto. (1987). A família como valor: considerações não-familiares sobre a família à
brasileira. In: ALMEIDA, Ângela Mendes de. [et al]. Pensando a família no Brasil: da colônia à mo-
dernidade. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo: UFRRJ.

GUIMARÂES, Juarez da Rocha. (2012). O nepotismo no Brasil: desafiando a democracia. In: Revista
Rumos da Economia, v. 26, n. 198, p. 16-19, julho.

LOPEZ JUNIOR, Felix Garcia. (2006). A meritocracia possível. Resenha: BELLOW, Adam. In praise of
nepotism: a natural history. New York: Doubleday, 2003. 566p. in: Sociedade e Estado. Brasília,
v.21, n.3, p.773_779, set/dez. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&p
id=S0102-69922006000300011#tx01. Acesso em 24/02/2017.

OLIVEIRA, Ricardo Costa de. (2012). Na teia do nepotismo. Sociologia política das relações de
parentesco e poder político no Paraná e no Brasil. Curitiba, PR: Insight.

OLIVEIRA, Ricardo Costa de (Org.). (2016). Nepotismo, parentesco e mulheres. Curitiba: RM Edito-
res.

PRETTO, Daniela. (2009). Nepotismo na Administração Pública Brasileira: A questão dos cargos
em comissão e a Súmula Vinculante Número 13. Monografia em Direito, Curitiba: UFPR. Orienta-
dor: Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho.

RODRIGUES, João Gaspar. (2012). Nepotismo no serviço público brasileiro e a Súmula Vinculante
nº 13. In: Revista do direito administrativo, maio/agosto, vol. 260, p. 203-229. Rio de Janeiro.
Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23582/nepotismo-no-servico-publico-brasileiro-e-a-
sumula-vinculante-n-13. Acesso em 06/09/2016.

SILVA, Jurutan Alves da. (2016). A raiz do poder em Ibirité. In: Revista NEP – Núcleo de Estudos
Paranaenses da UFPR, Curitiba, v.2, n.2, p.518-560, maio 2016. Disponível em:
http://revistas.ufpr.br/nep/article/view/47007/28199 . Acesso em 06/09/2016.

132
Sugestão leitura complementar

BRASIL (1996). Tribunal de Contas da União (TCU). Cargo em comissão: nomeação de parentes
efeitos da lei que veda a contratação. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v.12, p.367-
371, junho.

BOMFIM, Benedito. Calheiros (2000). O nepotismo nos três poderes. Consulex: Revista Jurídica,
Brasília, v.4, n.40, p.33, abril.

CHRUSCINSKI, Rodrigo Cesar. (2016). Nepotismo e Patrimonialismo no Paraná: os efeitos da


Súmula Vinculante 13. Monografia em Ciências Sociais, Curitiba: UFPR. Orientador: Dr. Ricardo
Costa de Oliveira.

GARCIA, Emerson (2003). O nepotismo. Fórum de Contratação e Gestão Pública, Belo Horizonte,
v.2, n.15, p.1785-1788, março.

GOMIDE, Marcia Maria Magaldi (1990). Pensando o nepotismo reflexões sobre a prática política
brasileira. Brasília: UNB, Graduação em Antropologia.

GURJÃO, Eliete de Queiroz (1994). Morte e vida das oligarquias. Paraíba (1889-1945). João Pessoa:
Editora UFPB.

GRAHAM, Richard (1997). Clientelismo e política no Brasil do século XIX. RJ: Editora UFRJ.

LEWIN, Linda (1993). Política e parentela na Paraíba. RJ: Record.

LIMA, Maria Antonia Pedroso de (1999). Grandes famílias, grandes empresas: ensaio antropológi-
co sobre uma elite de Lisboa. Lisboa: ISCTE.

MACMULLEN, Andrew (1999). Fraud, mismanagement and nepotism: the Committee of Independ-
ent Experts and the fall of the European Commission 1999. Crime law and social change, v.31, n.3,
p.193-208.

MACHADO, Agapito (1996). Ação popular: anulação de nomeações ilegais; nepotismo; TRT/CE;
sentença sujeita ao duplo grau de jurisdição. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, São
Paulo, v.20, n.149, p.95-116.

MACHADO, Hugo de Brito (1994). Nepotismo e isonomia. Revista Ajufe, São Paulo, n.41, p.24-25,
junho.

NEPOTISMO: origens e paroxismo. Consulex: revista jurídica, v.9, n.200, p.26-27, maio 2005
NEPOTISMO. Consulex: revista jurídica, v.9, n.200, p.31-33, maio 2005

NIESS, Alexandre (2012). Carreiras políticas e nepotismo na Terceira República Francesa (1871-
1940). IN: Revista Brasileira de Ciência Política, agosto, Nº 8 Páginas 71-100.

NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. (2009). O caso Maurício Requião. Uma análise da decisão do
ministro Ricardo Lewandowski do STF à luz da súmula vinculante nº.13 – Nepotismo. In: Rede –
Revista Eletrônica de Direito do Estado. N. º20, Salvador, Bahia, Brasil. Disponível em:
http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-20-OUTUBRO-2009-ROBERTO-NOGUEIRA.pdf.
Acesso em 06/09/2016.

OLIVEIRA, Ricardo Costa de (2007). Famílias, poder e riqueza: redes políticas no Paraná em 2007.
IN: Sociologias, dezembro, Nº 18, Páginas 150-169

PACHECO, José da Silva (2005). Da extinção do nepotismo no Judiciário. ADV Advocacia Dinâmica:
boletim informativo semanal, v.25, n.45, p.903-901.

133
PASTORE, José (2005). Nepotismo e profissionalismo. Consulex: revista jurídica, v.9, n.200, p.28,
maio.

PIRES, Cláudio Soares (1995). Nomeação de parentes no serviço público. Jornal Trabalhista, Brasí-
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PITAS, José (2005). Nepotismo e cargos em comissão. Consulex: revista jurídica, v.9, n.200, p.29,
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RIBEIRO JUNIOR, José Hortêncio (2005). A ilegalidade do nepotismo no Poder Judiciário. Consulex:
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SANTANA, Izaias José de (2001). Cargos em comissão: nomeação de parentes; possibilidade. Bole-
tim de Direito Municipal, São Paulo, v.17, n.8, p.537-544, agosto.

SARDINHA, Edson (2017). Congresso, um negócio de família. IN: Revista Congresso em Foco, Ano
8, Nº 26, julho, p.36-46

SILVA, Antonio Álvares da (2004). Reforma do judiciário: uma justiça para o século XXI. Belo Hori-
zonte: Del Rey.

SILVA, Floriano Corrêa Vaz da (1995). Pela proibição do nepotismo. Justiça e Democracia: Revista
Semestral de Informação e Debates, São Paulo, p 49-50, jul./dez.

VASCONCELOS, Telmo da Silva (2002). O Princípio Constitucional da Moralidade e o Nepotismo. L


& C: Revista de Direito e Administração Pública, Brasília, v.5, n.50, p.26-30, agosto.

VAZ, Lúcio (2005). A ética da malandragem: no submundo do Congresso Nacional. São Paulo:
Geração Editorial

134
CAPÍTULO 7

NOTAS SOBRE A FAMÍLIA ESCRAVA


E O DEBATE ACADÊMICO NO BRASIL

NATÁLIA CRISTINA GRANATO1

Introdução

O presente artigo trata da discussão sobre a “família escrava”, que se re-


vela como um importante ponto a ser observado e reanalisado pelas Ciências
Sociais, principalmente após a contribuição da produção historiográfica pro-
duzida sobre o tema, sobretudo a partir dos anos 1970. Tal rediscussão é ne-
cessária, pois a análise sobre a “família escrava” no Brasil possui duas fases: a
primeira, formulada pela Escola Paulista de Sociologia 2, enfatiza a inexistência
das formas de organização familiar entre os escravos, dado o caráter perverso
do capitalismo escravocrata que teve como consequência a desumanização dos
negros, vistos pelos senhores de escravos como objetos que realizavam o tra-
balho braçal. Tal interpretação acerca da família escrava era coadjuvante, pois
os autores desta Escola tinham como preocupação mais ampla a análise da
escravidão e crítica ao sistema capitalista de modo geral.
A segunda fase corresponde aos estudos inspirados pela Micro História 3,
que revelaram a existência da família escrava no Brasil. Estes estudos não
possuem, em geral, o objetivo de uma análise crítica ampla ao sistema escravo-

1
Doutoranda e Mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em Ciências
Sociais pela mesma instituição (Bacharelado e Licenciatura). Integrante do Núcleo de Estudos Paranaen-
ses da UFPR. E-mail: nataliagranato@hotmail.com
2
Sob a liderança de Florestan Fernandes, a Escola Paulista de Sociologia congregava trabalhos que
afirmavam as Ciências Sociais no Brasil de maneira especializada, com foco teórico de construção de
projetos para o Brasil com a perspectiva de uso social dos conhecimentos produzidos em prol da trans-
formação da nação, em contraposição ao passado condenável (ARRUDA, 2010, p.15). Nesse sentido, a
escravidão faz parte deste passado condenável, na qual os autores como Octávio Ianni e Fernando Henri-
que Cardoso (1960) e novamente, Fernando Henrique Cardoso (2003) assinalam suas características
negativas para a sociedade brasileira, nas quais uma das consequências foi o não desenvolvimento da
família escrava no período.
3
Inspirados na Micro história, os principais autores que revelam a existência da família escrava através
de dados empíricos se referem a Stuart Schwartz (1988), Robert Slenes (1999), José Flávio Motta (1999)

135
crata e capitalista, mas se dedicaram ao estudo da família escrava de modo
mais específico, constatando a sua existência através da análise de fontes his-
tóricas primárias.
Tal fase impulsionou a investigação sobre a instituição familiar escrava
realizada por diversos pesquisadores espalhados pelos programas de pós-
graduação em todo o Brasil. Deste modo, o que não era uma questão problema-
tizada pela Escola Paulista de Sociologia porque era negada, passou a ser re-
pensada e problematizada, levando em consideração as peculiaridades das
diversas regiões do país.
A seção a seguir direciona-se às principais contribuições destas duas fases
para a análise da família escrava no Brasil.

Principais interpretações sobre a (in)existência da família escrava

Uma reflexão sociológica precursora sobre a suposta forma de organiza-


ção familiar entre os escravos no Brasil foi dado pela “Escola Paulista de Socio-
logia”, através de intelectuais como Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni
e Florestan Fernandes. Tal assunto não era central, mas fazia parte de uma
série de estudos que analisavam criticamente a constituição do Brasil a partir
das categorias sociológicas de raça e classes sociais no capitalismo que se
combinavam com a escravidão.
Nos estudos realizados por esta escola, é enfatizada a inexistência da ins-
tituição social familiar entre os escravos, que seria impossibilitada pelo degra-
dante regime escravocrata existente no Brasil que objetificava os mesmos. Os
dois primeiros sociólogos citados publicaram, em 1960, o livro “Côr e Mobili-
dade Social em Florianópolis”, no qual há a seguinte passagem: “o matrimônio
e a família, em geral, não eram instituições reguladoras da atividade sexual e
procriadora do escravo” (CARDOSO; IANNI, 1960, p.128, citado por MOTTA,
1999).
Dando continuidade às suas reflexões sobre a sociedade escravocrata,
Fernando Henrique Cardoso publicou, em 1962, o livro “Capitalismo e Escravi-
dão no Brasil Meridional”, que analisou a condição do negro na sociedade es-
cravocrata no estado do Rio Grande do Sul, no qual enfatiza a condição do es-
cravo como uma “coisa”:

“Do ponto de vista jurídico é óbvio que, no sul como no resto do país, o
escravo era uma coisa, sujeita ao poder e à propriedade de outrem [...]
privado de todos os direitos. A reificação do escravo produzia-se objetiva e
subjetivamente. Por um lado, tornava-se uma peça cuja necessidade social
era criada e regulada pelo mecanismo econômico de produção. Por outro
lado, o escravo auto representava-se e era representado pelos homens livres

136
como um ser incapaz de ação autonômica” (CARDOSO, 2003, p. 161, citado
por MOREIRA; MATHEUS, 2010).

Os escravos também eram vistos como sujeitos passivos na história, inca-


pazes de agir por conta própria, como o apontado no seguinte trecho de Capi-
talismo e Escravidão no Brasil Meridional: “testemunhos mudos para uma
história para a qual não existem, senão como instrumento passivo (...) neste
sentido, a consciência do escravo apenas registrava e espalhava, passivamente,
os significados sociais que lhe eram impostos” (CARDOSO, 1977, p.125, citado
por MOREIRA; GARCIA, 2014, p.41).
Por sua vez, Florestan Fernandes em “A Integração do Negro na Sociedade
de Classes” assinala a inexistência da instituição familiar escrava, explicitada
no trecho a seguir:

“Não foi a família que se desintegrou, como instituição social, e em


consequência emergiram certas inconsistências na socialização os indivíduos;
mas a própria família que não se constituiu e não fez sentir seu influxo
psicossocial e sociocultural na modelação da personalidade básica, no
controle de comportamentos egoísticos ou anti-sociais e na criação de laços
de solidariedade moral. Comprova-se isso, historicamente, por uma simples
referência à política central na sociedade senhorial e escravocrata brasileira,
que sempre procurou impedir o florescimento da vida social organizada e da
família como instituição integrada no seio da população escrava”
(FERNANDES, 2008, p.182)

Ainda que a Escola Paulista de Sociologia não reconheça a existência da


instituição familiar escrava, a mesma teve como um dos seus legados a inter-
pretação crítica da escravidão, além da denúncia das deformidades e desuma-
nidades do sistema escravista e capitalista. Os autores da Escola Paulista fazi-
am oposição teórica à ideia de “escravidão branda” presente na obra de Gilber-
to Freyre, como pode ser observada no seguinte trecho do livro “Ordem e Pro-
gresso”, publicado no final da década de 1950:

“os escravos aqui no Brasil [...] não eram em geral maltratados nem viviam
pior do que a maioria de trabalhadores europeus” [...]. O escravo: “tanto ele
como a família eram geralmente alimentados à moda da roça. Ninguém sofria
fome, nem mulheres, nem crianças [...]. O escravo tinha um pequeno lote de
terra que cultivava para si e mais de um sabia aproveitá-lo tão bem que,
passados alguns anos, estava em condições de salientar-se mediante
dinheiro”. Se ele adoecia, “as despesas corriam por conta do senhor e desta
forma não lhe faltava nenhum dos cuidados pessoais”. Feita a abolição [...] os
“libertos incapazes de se guiar por si mesmos [...]. Seria preciso que tivessem
tutor” (FREYRE, 2003, pp. 868-869, citado por MELO, 2011, p.6).

137
Estudos alternativos sobre a família escrava começaram a ganhar força a
partir das análises que adotaram o enfoque metodológico da “Micro-História”,
sobretudo na obra de Edward Thompson, que enfatiza na sua produção a expe-
riência dos indivíduos, a consciência de pertencimento a determinados grupos
sociais e as ações dos agentes históricos (MOREIRA; MATHEUS, 2010)
Tais estudos sobre a família escrava foram incrementados com a utiliza-
ção de materiais empíricos como registros paroquiais, livros de batizados e
casamentos, inventários, censos demográficos, listas nominativas, entre outros
(FALCI, 2007, p.147).
Pesquisas a partir do rastreamento do nome do sujeito histórico em dife-
rentes fontes também são recorrentes (MOREIRA; MATHEUS, 2010).
A organização familiar e as limitações da escravidão foram analisadas por
Stuart Schwartz em “Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade
colonial 1550-1835”. Professor da Universidade de Yale, Schwartz pesquisa a
História do Brasil Colonial desde a década de 1970, analisando por mais de dez
anos diversas fontes primárias para a análise de três séculos de escravidão no
Brasil, resultando na publicação do importante livro em 1988, pela Companhia
das Letras. Tendo como principal referência a sociedade colonial baiana, o
livro enfatiza a condição do escravo como agente, consciente e produtor de sua
própria cultura. O autor critica a Escola Paulista de Sociologia e sua visão do
escravo em termos de “patologia social”, numa sociedade escravocrata “defor-
mada”. Schwartz assinala que os escravos constituíram família e contraíram
casamentos, criando “formas sociais e culturais que lhes proporcionassem
consolo e apoio naquele mundo hostil” (SCHWARTZ, 1988, p.310).
Para enfatizar essa ideia, o autor cita fontes primárias como o Manual do
Fazendeiro, escrito pelo senhor de escravos João Imbert. Em tal documento,
Imbert afirma que incentivava a formação de famílias escravas, vendo nas
mesmas um bom negócio pois ‘de todos os vínculos são os laços de família os
que mais fortemente prendem os homens a seus deveres’” (SCHWARTZ, 1988,
p.311).
Outras fontes utilizadas pelo autor correspondem aos documentos produ-
zidos pela Igreja Católica que faziam referências à instituição familiar escrava.
Seu Código de 1707, na seção “Constituições Primeiras”, estabelecia “um con-
junto de regras concernentes ao casamento entre escravos”. O mesmo docu-
mento assinalava que o sacramento do matrimônio não implicava a liberdade
para o cativo (SCHWARTZ, 1988, p.315) e que os senhores de escravos seriam
cobrados pela Igreja Católica pelo cumprimento das obrigações morais de bati-
zado e casamento de seus cativos (SCHWARTZ, 1988, p.316).
A partir da análise dos registros de nascimento, Schwartz constata a re-
corrente adoção do sobrenome dos senhores pelos escravos e ex-escravos.

138
Alguns senhores viam na adoção de seus sobrenomes pelos escravos como algo
gratificante e paternal (SCHWARTZ, 1988, p.327).
Nesse mesmo enfoque metodológico, outro autor norte-americano se de-
dica ao estudo da família e organização social escrava utilizando-se de fontes
primárias empíricas que fazem frente à tradição sociológica que negava a exis-
tência de casamentos e famílias de cativos no Brasil. Robert Slenes publica, no
final dos anos 1990, o livro “Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na
formação da Família Escrava”, que se debruça sobre a família escrava e suas
formas de organização no Sudeste do Brasil. A escravidão no Brasil é o seu
principal objeto de estudo, explicitado na sua Tese de Doutorado, defendida
em 1976 na Universidade de Stanford. O período histórico recortado pelo au-
tor no livro referido corresponde ao século XIX, constatando que as tradições
do continente africano se mantiveram entre os escravos no Brasil, e que os
mesmos eram integrados por laços de identidade e solidariedade, além de
familiares. Tais relações foram fundamentais como formas de resistência pe-
rante aos senhores, e os mesmos, por sua vez, incentivavam a formação de
famílias escravas como forma de evitar possíveis rebeliões:

“a família escrava- nuclear, extensa, intergeracional- contribuiu


decisivamente para a criação de uma comunidade escrava, dividida até certo
ponto pela política de incentivos dos senhores, que instaurava a competição
por recursos limitados, mas ainda assim unida em torno de experiências,
valores e memórias compartilhadas. Nesse sentido, a família minava
constantemente a hegemonia dos senhores, criando condições para a
subversão e a rebelião, por mais que parecesse reforçar seu domínio na
rotina cotidiana” (SLENES, 1999, p.48, citado por MOREIRA; GARCIA, 2014
p.42).

Os estudos sobre a família escrava no Brasil sob o enfoque empírico tam-


bém ganharam fôlego com a Tese de Doutorado em Economia de autoria de
José Flávio Motta, intitulada “Corpos escravos, vontades livres: estrutura da
posse de cativos e família escrava em um núcleo cafeeiro (Bananal, 1801-
1829), defendida em 1990 e publicada em 1999. Utilizando como método de
análise a demografia da escravidão, o autor constata que:

“ a família escrava, mesmo quando se mostrou fraca perante o poder dos


senhores, persistiu como uma instituição fortemente arraigada entre os
cativos, permitindo que, nela amparados, mantivessem-se sempre presentes
os elementos de uma ‘cultura escrava própria’(...) a família escrava (...) ter-se-
ia apresentado como uma instituição plenamente viável, apesar dos óbices ao
desenvolvimento postos pela própria escravidão. Em verdade, tanto da vista
dos escravos, como da perspectiva dos senhores, identificavam-se condições
propícias a esse desenvolvimento (...)” (MOTTA, 1999, pp.209-210)

139
Após tais problematizações sobre a família escrava no Brasil, propiciadas
pelo uso de novas metodologias impulsionadas pelos estudos empreendidos
pela Micro História, o olhar atento às fontes primárias revela a existência das
formas de organização familiar entre os escravos no Brasil. Estudos realizados
nos estados brasileiros corroboram para esta constatação, através dos materi-
ais empíricos. Paulo Moreira e Marcelo Matheus (2010) analisam o sistema
escravista brasileiro através do estudo das trajetórias de escravos, que incluem
formas de organização familiar, na região de Alegrete, localizado no Rio Grande
do Sul. Paulo Moreira, em coautoria com Natália Garcia (2014), analisam o
mesmo estado do Rio Grande do Sul estudado por Fernando Henrique Cardoso,
assinalando, através de fontes empíricas, a recorrência dos casamentos contra-
ídos entre os escravos, ao contrário das conclusões assinaladas pelo membro
da Escola Paulista de Sociologia. A família escrava é também analisada no esta-
do da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, indicados na bibliografia consultada.

Considerações Finais

Vistas as duas principais interpretações produzidas a respeito da família


escrava no Brasil, contatamos que a primeira negava a existência da organiza-
ção familiar escrava e dificultava, de algum modo, as problematizações a res-
peito do tema devido a isto. Já a segunda interpretação, à luz de fontes históri-
cas primárias, reabriu o debate sobre as formas de organização familiar escra-
va, com a recorrência de matrimônios, filhos, compadrio e relações com os
senhores de escravos comprovados pelas fontes históricas. Isto permite o dire-
cionamento do olhar às peculiaridades de diversas regiões do país, as possíveis
formas de resistência à escravidão que tais laços de solidariedade geravam,
entre outras. A categoria família escrava revela-se como um promissor campo
de estudo para os pesquisadores interessados no estudo da família e da escra-
vidão.

Curitiba, 27 de julho de 2016.


6ª sessão do curso de extensão “Família, política e parentesco no Brasil”
promovido pelo grupo de pesquisa NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses – UFPR)
Palestrante: Professora Mestra Natália Cristina Granato

Bibliografia

ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento (2010). A sociologia de Florestan Fernandes. IN: Tempo
Social, Revista de Sociologia da USP, v. 22, n. 1, pp.9-27. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ts/v22n1/v22n1a01.pdf . Acesso 13. Agosto. 2017
CARDOSO, Fernando Henrique (2003). Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na
sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. RJ: Civilização Brasileira.

140
CARDOSO, Fernando Henrique; IANNI, Octávio (1960). Côr e mobilidade social em Florianópolis:
aspectos das relações entre negros e brancos numa comunidade do Brasil Meridional. SP: Cia
Nacional do Livro.
FALCI, Miridan Britto (2007). Família escrava: antigas e novas reflexões.IN: CLIO – Revista de
Pesquisa Histórico, Recife, n.25, p.145-156. Disponível em
http://www.revista.ufpe.br/revistaclio/index.php/revista/article/view/599 . Acesso em
18.jun.2016.
FERNANDES, Florestan (2008). A Integração do Negro na Sociedade de Classes. Ensaio de Interpre-
tação Sociológica. Volume 1 ( O legado da “raça” branca). São Paulo: Globo.
MELO, Wanderson Fabio de (2011). A Interpretação de Fernando Henrique Cardoso sobre o Es-
cravo Sulino: o seu lugar nos estudos sobre o trabalhador cativo. Marx e o Marxismo 2011: teoria e
prática Universidade Federal Fluminense – Niterói – RJ – de 28/11/2011 a 01/12/2011. Disponí-
vel em: http://www.niepmarx.com.br/MManteriores/MM2011/TrabalhosPDF/AMC34F.pdf
Acesso em 18.jun.2016.
MOREIRA, Paulo; MATHEUS, Marcelo (2010). A microanálise como suporte teórico-metodológico
para o estudo do sistema escravista brasileiro a partir da reconstituição de trajetórias de escravos
(Alegrete, século XIX). IN: Revista Clio: Revista de pesquisa histórica, n.2, v.28.
MOREIRA, Paulo; GARCIA, Natália (2014). Negro não se casa: um balanço da historiografia sobre a
família escrava no Rio Grande do Sul. In: SCOTT, Ana Silvia Volpi et al. (orgs). História de família no
Brasil Meridional: temas e perspectivas. São Leopoldo: Oikos/UNISINOS.
MOTTA, José Flavio (1999). Corpos escravos vontades livres: posse de cativos e família escrava em
Bananal (1801-1829). São Paulo: FAPESP, Annablume.
SCHWARTZ, Stuart (1988). “A família escrava e as limitações da escravidão”. IN: Segredos internos.
Engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). SP: Companhia das Letras.
SLENES, Robert W. (1999). Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava – Brasil sudeste, século XIX. RJ: Nova Fronteira.

141
CAPÍTULO 8
CHERCHEZ LA FAMILLE! PROCURE A FAMÍLIA!

RICARDO COSTA DE OLIVEIRA

A FOTO DO ANO DE 2016: BRASÍLIA DIA 29 DE NOVEMBRO1.


Enquanto uns tomam bomba outros confraternizam dentro do congresso. Já passou da hora disso
acabar! Ninguém tem o direito de violentar manifestantes. Fonte: Mídia Ninja de 29/11/2016.
Foto de Gisele Arthur

A foto foi uma das imagens representativas do ano de 2016! Mordomias e


privilégios para a classe dominante, pau e choque nos trabalhadores e estudan-
tes. Champagne para a elite parlamentar e gás para a massa popular. Pão e
circo desde os romanos. Até o tom esverdeado das paredes e gramados nos
lembra a desgraça, que nem todos estão unidos pela Chape 2, ou ganham tanto
assim no meio de tantas desgraças existentes neste mundo... Escrevi em meu
facebook no dia de 29 de novembro de 2016.
Essa foto retrata a divisão dos poderes, a estrutura social: enquanto de um
lado temos a malta comendo canapés e tomando champagne, do outro lado
temos o movimento social recebendo gás lacrimogênio e balas de borracha.
Certamente essa é uma das imagens que sinalizam o ambiente do ano de 2016.
Observando-a devemos nos perguntar como podemos investigar esses parâ-
metros pela Sociologia. No fundo é a velha questão sociológica: quem somos?
De donde viemos? Como nos formamos enquanto sociedade?

1
Em 29 de Novembro de 2016, mais de 40 mil pessoas confluíram para a capital federal para realizar
uma megamanifestação em frente ao Congresso Nacional. Na ocasião, o Senado votava em primeiro
turno a aprovação da PEC 55, que congela os investimentos públicos em saúde, educação e previdência
social por 20 anos. Caravanas de todo o país chegaram a Brasília, com forte presença de estudantes
secundaristas e universitários, de professores e servidores técnico-administrativos, de sindicatos e movi-
mentos sociais, numa imensa congregação popular que exigia que sua voz fosse ouvida e sua indignação
reconhecida.
2
Referência ao acidente aéreo com a equipe de futebol Chapecoense ocorrido na Colômbia dia 29 de
novembro de 2016 deixando mais de 70 mortos e seis feridos. Disponível em
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/11/aviao-com-equipe-da-chapecoense-sofre-acidente-na-
colombia.html. Acesso 03.setembro.2017.

143
Além dessa foto também recomendo, pela dimensão estética e sociológica
o filme Aquarius3 que é um marco cultural do ano de 2016. Esse filme mostra a
dimensão do capitalismo familiar no Brasil, mostra a dimensão pela qual as
classes sociais se relacionam e interagem na formação brasileira. Aqui entra a
metodologia que foi o tema do nosso curso desse ano sobre as genealogias e as
tradições genealógicas no Brasil.
A genealogia é uma linguagem social que existe desde um passado muito
arcaico. No Brasil temos as três primeiras genealogias clássicas do século XVIII:

A genealogia de Borges da Fonseca cobrindo Pernambuco.


FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarquia Pernambu-
cana. 4 volumes. RJ: Biblioteca Nacional, 1935 [1748].

A genealogia de Frei Jaboatão cobrindo Bahia e Pernambuco.


JABOATÃO, Frei Antonio de Santa Maria. Catálogo Genealógico das Prin-
cipais Famílias que Procedem de Albuquerques e Cavalcantis em Per-
nambuco e Carumurus na Bahia. RJ: Instituto Histórico e Geográfico Brasilei-
ro,1889 [1768].

A genealogia de Pedro Taques de Almeida Paes Leme cobrindo as princi-


pais famílias de São Paulo como os Lara, os Prado, os Toledo Pizas, os Mesqui-
tas, os Penteados.
LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. A nobiliarquia paulistana: histó-
rica e genealogia das principais famílias de São Paulo. 3 volumes. 5ª edi-
ção. SP: Editora da USP, 1980 [1774].

São escritos do século XVIII elaborados por integrantes da elite colonial,


pela nossa primeira classe dominante colonial e, como toda genealogia, procu-
ram se fundamentar em documentos, mas também em construções e em for-
mas de invenções sociais desde a origem dessa primeira classe dominante
colonial brasileira. O interessante é que mesmo esses autores reconhecem
originalmente a miscigenação indígena presente nos fundadores da classe

3
Aquarius é um filme de Kleber Mendonça Filho. Estrelado por Sônia Braga, Humberto Carrão, Maeve
Jinkings e Irandhir Santos. Seu enredo gira em torno de Clara (Sônia Braga), uma viúva de 65 anos que é
a última moradora do edifício que dá título à obra, na orla da praia de Boa Viagem, no Recife. O filme
mostra o cotidiano da protagonista, sua relação com seus amigos e familiares, e a investida de uma
construtora que pretende comprar o prédio a todo custo para erguer um mais moderno no local. Assim,
temas como especulação imobiliária, passagem do tempo e memórias, a vida e sexualidade de
uma mulher na Terceira idade são abordados pelo filme. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/
cultura/aquarius-a-resistencia-e-um-lugar-solitario. Acesso 18.setembro.2017.

144
dominante brasileira, presente nas primeiras células que serão os grandes
troncos das linhagens do poder.
Na Bahia temos o Caramuru4, português que se relaciona com a mulher
indígena. É o famoso ventre nativo-africano que forma a população brasileira,
inclusive a classe dominante, essa primeira elite brasileira. Essa população que
foi composta pela violência, pelo genocídio, pelo massacre, pela cultura do
estupro, pela cultura do engodo, pelo tráfico escravocrata ameríndio e africa-
no, pelo contrabando e por todas as operações informalmente criminosas. Isso
quer dizer que qualquer escalada de poder, de riqueza, passa por aquilo que
Karl Marx denominou de acumulação primitiva na sua obra O Capital. Nossa
experiência colonial foi a primeira forma de saque, de roubo e de brutalidade
institucionalizada. É ela que forma as primeiras grandes riquezas, os primeiros
grandes patrimônios e os pilares civilizatórios.
O Brasil nasceu sob o signo da violência, da brutalidade e passou pelos
episódios dos heróis fundadores, como por exemplo, o Caramuru que falamos a
pouco. Ele era contrabandista? Ele era traficante? - Ele era aquele elemento ao
mesmo tempo bandido e que estava dentro do Estado organizando a socieda-
de. E ele é um dos nossos primeiros pais fundadores.
Da mesma maneira como vemos em Pernambuco as famílias no poder: a
família Albuquerque com uma grande miscigenação indígena, com as mulheres
tupi-guarani que é uma sociedade que tinha uma forte matrilocalidade. O ho-
mem casava, a mulher permanecia na aldeia, na unidade de povoamento. É um
processo que se acompanha em qualquer sociedade tupi, presente não só em
Pernambuco, mas também em São Paulo de Piratininga. Essa família Albu-
querque, depois também com a vinda de um fidalgo italiano de Florença, o
Filipe Cavalcanti5, se tem a gênese dessa que é uma das nossas mais antigas
famílias brasileiras: a Cavalcanti d’Albuquerque.
Estudando as famílias você tem o retrato ao longo de 500 anos de poder
no Brasil. O que significa esse conjunto de elementos? Na genealogia paulistana
temos o Pedro Taques trabalhando o João Ramalho. Tal como o Caramuru, é
marcado por aquela dialética entre o poder que ao mesmo tempo desconhece
limites, baseado em todas as atividades econômicas (a grande propriedade, o

4
Caramuru era Diogo Álvares Correia (1745-1557), um náufrago português que passou a vida entre os
Tupinambás e que facilitou o contato dos primeiros viajantes europeus com os povos nativos do Brasil.
5
Filipe Cavalcanti (Florença, séc. XVI – Olinda, antes 1614). Estabeleceu-se na capitania de Pernambu-
co como fidalgo de nobreza reconhecida. Tornou-se um poderoso senhor de engenho. Casou-se com
Catarina de Albuquerque, filha bastarda do governador Jerônimo de Albuquerque. Deste casamento
nasceram onze filhos que deram origem a família brasileira, os Cavalcanti d’Albuquerque. Consultar
BARATA, Carlos Eduardo de Almeida Barata e BUENO, Antonio Henrique da Cunha, “Cavalcanti”.
IN: Dicionário das Famílias Brasileiras, vol. I, S.P: [s.n.], [s.d.], p. 697-698 e AZEVEDO, J. Lúcio de.
“Viagens de um florentino a Portugal e à Índia (século XVI)”, IN: Novas Epanáforas: Estudos de Histó-
ria e Literatura. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1932, p. 105.

145
controle dos escravos, senhores de gente e de terras) e a bandidagem. Quando
associamos a elite política, o poder político e atividades informais e bandidas
estamos falando de uma novidade ou é uma essência própria da relação da
nossa classe dominante? Para você ser rico e poderoso passa por atividades
bandidas? O que a História e a Sociologia revelam? - Que toda grande fortuna,
todo grande poder tem uma acumulação primitiva e envolve o esbulho seja
agrário, seja mercantil, seja o tráfico, seja a escravidão, sejam os baixos salá-
rios, seja a fraude organizada, institucionalizada patrocinada de dentro do
Estado.
Então, os nossos heróis fundadores são os nossos melhores símbolos. Co-
mo eles tinham uma adaptabilidade, uma flexibilidade para organizar uma
estrutura social e econômica de poder e para a extração de recursos dos quais
a vida humana e social era sempre saqueada. Isso está em Caio Prado Júnior e
em outros autores como Raimundo Faoro (estamento a partir do Estado) 6.
Assim, essas primeiras genealogias do século XVIII são interessantes por-
que elas já colocam o enredo dos mais importantes grupos familiares em Sal-
vador, no Estado da Bahia. Em Olinda, depois em Recife, no Estado de Pernam-
buco. Em São Paulo de Piratininga, São Vicente e Santos, no complexo sul. E a
partir dessas estruturas familiares você tem o núcleo duro do poder da classe
dominante tradicional.
De São Paulo, as principais famílias dos bandeirantes estão todas na Nobi-
liarquia Paulistana que vai ser ampliada no final do século XIX e início do sécu-
lo XX pela obra de Luiz Gonzaga Silva Leme - Genealogia Paulistana com nove
volumes7 Publicada entre 1903 e 1905, essa obra tem cerca de 150 mil indiví-
duos listados, todos membros das mais relevantes famílias no povoamento
de São Paulo e do interior do Brasil, envolvidas nos mais diversos setores da
vida nacional, como o econômico (principalmente a agricultura) e o adminis-
trativo (todas as famílias contam com membros presentes em importantes
postos públicos, sejam burocráticos ou eletivos).
A Genealogia Paulistana engloba as famílias povoadoras de São Paulo de
Piratininga, do Sul do Brasil, de Minas Gerais, Do Centro-Oeste, dentre elas
temos: os Leme, Prado, Furquim, Almeida Castanho, Freitas, Cunha Gago, Dias,
Arruda Botelho, Afonso Gaya, Rendon, Moraes Antas, Fernandes Povoadores,
Pires, Camargos, Bueno da Ribeira, Godoi, Cubas, Quadros, Lara, Penteado,
Oliveira, Nogueira Cobra, Nogueira da Gama, Raposo Góis, Pedroso Barros,

6
PRADO JR, Caio. História econômica do Brasil. SP: Brasiliense, 1945
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo Editora, 1955.
7
Os 9 volumes da Genealogia Paulista estão disponíveis em https://archive.org/details/GenealogiaPaulist
ana. Acesso 18.setembro.2017.

146
Bicudo, Taques Pompeu, Toledo Piza, Siqueira, Borges de Cerqueira, Pais, Costa
Cabral e os Monteiro. Dessas famílias saíram os bandeirantes.
Toda a Genealogia Paulistana gira em torno do entrelaçamento destas fa-
mílias com o casal João Ramalho e Bartira. Há um interesse para a demografia,
para o censo populacional, pois essa classe dominante da elite paulista é aquela
que conquista, ocupa e coloniza todo o centro sul do Brasil. Saem de São Paulo
e fundam as vilas no Vale do Paraíba, Guarulhos, Sorocaba, Santana de Parnaí-
ba. Essas expedições bandeirantes vão para o sul onde hoje temos o Paraná,
Santa Catarina, Rio Grande do Sul, norte de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e
hoje também o Mato Grosso do Sul, de modo que aquela mais antiga e tradicio-
nal classe dominante do centro sul se forma com uma grande estrutura de
parentesco com antepassados em comum desde os séculos XVI e XVII.
Há também uma certa endogamia nesta inclusão da mestiçagem com as
mulheres indígenas, com as mulheres africanas, criando os valores, os estatu-
tos do antigo regime na forma do Estado colonial: as sesmarias, as vilas coloni-
ais, a grande propriedade, a igreja, os cartórios, et caterva. Você forma a desi-
gualdade social desprezando a educação, a falta de cidadania de que até hoje
somos herdeiros.
Da mesma maneira na Bahia com Caramuru. Os membros da sua família
vão ocupando o Recôncavo Baiano, entram no semiárido, no vale do Rio São
Francisco e vai-se estruturando o poder baiano. Em Pernambuco, através dos
membros da família Maranhão e vários outros presentes na genealogia de Bor-
ges da Fonseca. Tem-se também o trabalho do Frei Jaboatão que retoma Per-
nambuco e avança para Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão
demonstrando que se forma um complexo familiar. Esse é o primeiro olhar da
genealogia brasileira e daí vem a questão: como é a sociedade? Como podemos
entender quem somos? Quais as nossas origens? – Precisa-se sempre recorrer
à linguagem e a metodologia genealógica através de formas documentais, for-
ma de organização e de invenções genealógicas.
Hoje temos novas técnicas de pesquisa que garantem uma outra cientifici-
dade à genealogia que é a própria genealogia genética que coloca todo o olhar
na biologia molecular que confirma, retifica ou ratifica a genealogia documen-
tal e convencional. Com essa estrutura da família é que podemos entender o
Brasil do século XXI, do ano de 2016.
Como começamos com o filme Aquarius que retrata esse capitalismo fami-
liar destrutivo que existe no Brasil, podemos citar qualquer grande e notável
família no poder, como agora a família Vieira Lima e o caso Geddel que é um
exemplo típico, uma amostragem qualitativa do que é a nossa classe dominan-
te tradicional. Na literatura, qual é a primeira citação biográfica da trajetória

147
de Geddel Vieira Lima? Onde ele aparece pela primeira vez? - No livro da bio-
grafia de Renato Russo8, grande artista, músico e roqueiro. Uma pessoa que
também vinha de certa maneira desta elite de Brasília. Ele é, inclusive, de uma
família curitibana: Manfredini9. Era filho de um alto funcionário do Banco do
Brasil que tinha contatos internacionais. A sua mãe era pernambucana e tam-
bém tinha vários vínculos. Interessante essa família Manfredini: ao mesmo
tempo que é uma família da elite burocrática, Renato sentia-se de certa manei-
ra membro da periferia dessa alta elite burocrática em Brasília. Ele está dentro
dessa elite, mas se sentia um pouco excluído devido a vários fatores, não ape-
nas a questão cultural, comportamental e material, mas também pelos hábitos
desse tipo de família que é bem interessante.
Todas as crianças, adolescentes e jovens dessas famílias da elite burocrá-
tica de Brasília estudavam num dos colégios preferidos da cidade que era o
Colégio Marista, de ordem clerical da igreja católica, de educação da elite. Uma
escola na época considerada cara e disciplinada. E numa dessas turmas do
Marista estavam reunidos Renato Russo e Geddel Vieira Lima. Na escola quan-
do você se reúne em grupo para fazer um trabalho, quem trabalha? No caso
seria Renato Russo e os amigos e o Geddel, que chegava num Opala, já era me-
tido a playboy, adepto do “Eu posso tudo!”, “Eu faço tudo!” porque ele era filho
do deputado Afrísio Vieira Lima10, de uma família poderosa da ARENA, da oli-
garquia baiana. Geddel já queria “cotovelar” e mandar nos outros, mas bateu
de frente com Renato Russo que deixou a alcunha que até hoje traduz a expres-
são da alma de Geddel, o “Suíno”. Não pelo seu aspecto físico, não se deve ter
preconceito quanto a isso ou qualquer outro aspecto, mas ele recebeu esse
apelido pelo seu comportamento de sempre, de querer driblar, não querer
trabalhar, queria somente entrar no grupo para ganhar nota. Quer dizer, fa-
zendo a falcatrua, o dolo. Ele já falava no Colégio Marista que quando “cresces-
se” seria deputado, político. E o fato é que ele concretizou seu “sonho”.

8
MACEDO, Carlos. Renato Russo: o filho da revolução. SP: Editora Planeta, 2009.
9
Originários da Itália, os Manfredini chegaram pelo Porto de Paranaguá em 1877 e participaram da
construção da estrada de ferro no Estado. Renato Russo, cujo nome era Renato Manfredini Júnior (1960-
1996) era filho de Renato Manfredini (economista) e de Maria do Carmo Manfredini (professora de
inglês), primos de segundo grau, neto paterno de Alberto e Castorina Denebedito Manfredini, neto
materno de José Mariano e Leontine Manfredini de Oliveira. Consultar MANFREDINI D’ALMEIDA,
Noely. Famiglia Manfredini: da Itália para o Brasil (1877-2008). Curitiba: autores paranaenses, 2009.
10
Afrísio Vieira Lima (1929-2016). Formou-se em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Foi
eleito vereador de Itaquara entre 1963 e 1967, deputado estadual entre 1971 e 1975 e foi quatro vezes
deputado federal entre 1975 e 1983. Enquanto deputado estadual, ele presidiu a Assembleia Legislativa
da Bahia em 1974. Também assumiu diversos cargos durante a vida pública, como superintendente do
Centro Industrial de Aratu, secretário estadual de Segurança Pública da Bahia, além de ser superinten-
dente regional o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), diretor presidente da
Companhia das Docas do Estado da Bahia (Codeba) e presidente da Junta Comercial do Estado da Bahia
(Juceb). Disponível em http://atarde.uol.com.br/politica/noticias/1738491-morre-afrisio-vieira-lima-pai-
de-geddel-e-lucio-vieira-lima. Acesso 13.setembro.2017.

148
Há várias produções para entender esse movimento rock de Brasília – um
movimento cultural do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 – conforme
o filme “O sonho não acabou”11 que mostra aquela ilha burocrática que era
Brasília onde as hierarquias, os valores, as poções influenciavam. Ou seja, o
famoso traço de uma sociedade quase estamental “à la Raymundo Faoro”: você
sabe com quem está falando? E o Geddel Vieira Lima estava muito bem planta-
do, sendo um produto dessa classe dominante tradicional baiana e brasileira.
Basta observar o pai Afrísio, aplicando aquela metodologia de investigação de
trajetória social e política: quantos e quais cargos um indivíduo já exerceu na
sua vida? Quantos cargos o pai de Geddel exerceu na vida?
Tem também um tio de Geddel, o Jayme Vieira Lima 12 que também foi ve-
reador, deputado estadual, deputado federal constituinte, assessor no Tribunal
da Justiça, possuía várias conexões empresariais, várias posições dentro de
empresas, de cargos que geram muito dinheiro, muito prestígio, muita influên-
cia e muita importância.
Quem era o avô de Geddel? – Alfredo Luiz Vieira Lima13, desembargador,
presidente do Tribunal de Justiça da Bahia na década de 1950.
Como se sente um jovem que é filho e neto de desembargadores? Há al-
gum limite se ele fizer algo? Os jovens são frutos desse poder que tem um
ethos comportamental claramente configurado – se sentem empoderados.
Atropelam quem eles querem14, fazem o que eles querem15. A polícia tem medo
deles, sendo que deveria ser o contrário. Mas como não são todos iguais peran-

11
“O Sonho não Acabou”, um filme de 1982 dirigido por Sérgio Rezende. O elenco conta com Lauro
Corona, Miguel Falabella e Lucélia Santos. O filme retrará a rotina de um grupo de jovens de Brasília,
com seus sonhos, aspirações e desilusões. Após a opressão nos anos 1960, uma nova geração de jovens
na capital federal procura escaper do conformismo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=a
QQKMUhlh7k. Acesso 18.setembro.2017.
12
Sobre Jayme Vieira Lima (nascido em 1937) consultar PF prende tio do ministro Geddel Vieira Lima
disponível em http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1285973-tio-de-geddel-esta-entre-as-18-
pessoas-presas-em-operacao-da-pf. Acesso 18.setembro.2017.
13
Sobre Alfredo Luiz Vieira Lima consultar http://caviaresquerda.blogspot.com.br/2016/11/o-
funcionario-golpista-do-mes.html. Acesso 18.setembro.2017.
14
Como exemplo consultar Prisão de empresário que atropelou e matou agente do Detran é revogada:
Filho de magnata do ramo da indústria alimentícia, Rodolpho Carlos Silva, atropelou um agente do
Detran durante uma blitz da Lei Seca. Ele teve o pedido de prisão preventiva suspenso por desembarga-
dor amigo da família. Disponível em http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2017/01/22
/internas_polbraeco,567312/desembargador-revoga-prisao-de-magnata-que-atropelou-agente-do-
detran.shtml. Acesso 18.setembro.2017.
15
Analisar os casos de Rafael Braga e de Breno Fernando Solo Borges, filho da desembargadora Tânia
Garcia do Mato Grosso do Sul. Quando 9g de racismo pesam mais que 129 kg de maconha. Disponível
em http://justificando.cartacapital.com.br/2017/07/27/rafael-braga-e-breno-borges-quando-9g-de-
racismo-pesam-mais-que-129kg-demaconha/ e http://g1.globo.com/jornalnacional/noticia/2017/07/filho-
de-desembargadora-preso-por-trafico-de-drogas-e-solto-no-ms.html e Acesso 18.setembro.2017.
Abordagem nos Jardins tem que ser diferente do que na periferia, diz novo comandante da rota de São
Paulo. Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/24/abordagem-no-
jardins-e-na-periferia-tem-de-ser-diferente-diz-novo-comandante-da-rota.htm. Acesso 18.setembro.2017.

149
te a lei no Brasil a polícia quando entra em contato com esse setor social tem
medo pois sabe a rede de poder, a rede de posições que comandam. Geralmen-
te são famílias com grandes propriedades, como a Vieira Lima na Bahia com
quilômetros e quilômetros de terras. Casam com latifundiárias, quer dizer as
famílias ao mesmo tempo já têm a grande riqueza de latifúndio e ainda mono-
polizam as condições de exploração do campo. Como é a vida do trabalhador
rural na Bahia durante o século XX? - Não muito diferente da do século XXI:
exploração, escravidão, baixos salários, falta de recursos, não há educação e
nem saúde. Tem-se todo o massacre social do trabalhador rural patrocinado
por essa ordem dominante, por essas famílias que ao mesmo tempo estão em
Salvador, em cargos empresariais, em associações, em sociedades, nos tribu-
nais de justiças, no legislativo exercendo pressão sobre o executivo. Então é
aquela típica família do poder que só existe no Nordeste? E no Paraná?
Agora, com os resultados das eleições municipais de 2016, inicia-se uma
nova gestão em Curitiba – a de Rafael Greca que é da Família Macedo. Ele tam-
bém é apenas mais um exemplo de mérito? Nunca dependeu de ninguém? Ven-
ceu pelo próprio trabalho? Nunca dependeu da família? É verdade ou não?
O vice-prefeito eleito em Curitiba, o Eduardinho – Eduardo Pimentel Sla-
vieiro – é um rapaz que começa a sua dinâmica, entra no negócio da política
com um avô que foi ex-governador (Paulo Pimentel) e um pai que foi presiden-
te da Associação Comercial do Paraná (Claudio Slavieiro).
E quem vai ser o Secretário de Esporte, Lazer e Juventude do novo prefei-
to de Curitiba? – Marcello Richa (filho do governador Beto Richa) que tem um
dos mais “interessantes currículos da juventude paranaense”16. Veja o currícu-
lo Lattes dele, seu desempenho acadêmico notabilizado na comunidade aca-
dêmica – alguém está questionando sua capacidade? Ora, Beto Richa também é
parente de Rafael Greca de Macedo pelo lado materno, uma vez que sua mãe,
Arlete Vilela Richa, é tetraneta do Capitão Manoel Ribeiro de Macedo, impor-
tante tronco da família Macedo de Curitiba e do Paraná! Todos estão listados
na obra genealógica – Genealogia de Manoel Ribeiro de Macedo, de João Noel
Azevedo Macedo e Enólia Macedo Bacellar (1998).
Vemos como essa estrutura da Prefeitura de Curitiba se reproduz e é a
mesma estrutura tipológica e classificatória da classe dominante baiana, dos
Vieira Lima. No Paraná os Richa, Pimentel, Slavieiro e Macedo formam uma
unidade familiar que se reproduz e se perpetua na política dentro dos espaços
sociais. Aí aquela questão: pode a Sociologia mudar o mundo sozinha? Pode ou
não? - Na verdade o que a Sociologia faz é quase um trabalho de previsibilidade.

150
Temos o trabalho de Solange Fiuza16 sobre as famílias oligárquicas de
Guarapuava mostrando como eles são “bons e competentes”. Na verdade, che-
gamos lá e vemos: quem ganhou a eleição municipal de 2016 em Guarapuava?
– Cesar Augusto Carollo Silvestri Filho 17. Então, você tem uma previsibilidade
ou não? Da mesma maneira você vai ver o prefeito eleito em Ponta Grossa –
Marcelo Rangel18.
Vocês viram quando entrou o grupo progressista e iluminista lá no Con-
gresso Nacional uns dias atrás?19 Esse grupo que entrou ganhou alguma borra-
chada, alguma bomba de gás, algum cassetete ou não? Quem é que abriu a
“porteira” da Câmara dos Deputados para que esse grupo de 50 pessoas en-
trassem? Esse grupão de “patriotas” comandado pelo “grande patriota” que é
Jair Bolsonaro20.
O que Jair Bolsonaro já fez na vida além de politicagem e nepotismo? Além
de querer soltar bombas nos quartéis? Quantas leis e projetos o deputado fe-
deral Jair Bolsonaro já aprovou nesses mais de 20 anos de vida parlamentar?
Seu primeiro mandato é de 1990. Foi reeleito nas últimas eleições de 2014
para seu sexto mandato. Quantos projetos de leis de sua autoria ele teve apro-
vado nesse tempo? – NENHUM. Ele, Bolsonaro, com esse grupo de “patriotas”
saem gritando “Viva a revolução!” e infelizmente tem professor apoiando isso,
venha de onde venha! Mas sabe qual foi o deputado que abriu a porteira (de-
pois ele negou)? - Foi Marcelo Belinatti, o prefeito eleito de Londrina, da famí-
lia Belinatti.
Esse nosso tema, para terminar o ano de 2016 e para que nós não caímos
na depressão, nos fornece a previsibilidade: estudamos, investigamos e mos-

16
FIUZA, Solange Cristina Rodrigues (2016). Políticas sociais, famílias e poder em Guarapuava-PR.
Tese doutorado em Serviço Social e Política Social. Londrina: UEL.
17
Cesar Augusto Carollo Silvestri Filho, nascido em Guarapuava em 1980 é neto do ex-prefeito Moacyr
Júlio Silvestri. Foi vice-presidente da juventude do Partido Popular Socialista (PPS), assessor do presi-
dente nacional do partido, senador Roberto Freire, e advogado da executiva nacional. Em 2008, disputou
sua primeira eleição, aos 27 anos, para a prefeitura de Guarapuava, obtendo mais de 34 mil votos. Dois
anos depois, foi eleito deputado estadual, sendo o candidato mais votado em Guarapuava. Nas eleições
para prefeito de Guarapuava em 2012 foi o vitorioso. Em 2016 foi reeleito para o cargo com 60% dos
votos (FIUZA, 2016).
18
Marcelo Rangel Cruz de Oliveira nasceu em Ponta Grossa em 1970. Foi deputado estadual no Paraná,
eleito em 2006 e reeleito em 2010. Em 2012 concorreu à prefeitura de Ponta Grossa, sendo eleito no
segundo turno. É irmão do deputado federal Sandro Alex. Foi reeleito prefeito de Ponta Grossa no
segundo turno das eleições municipais de 2016.
19
Marcelo Rangel Cruz de Oliveira nasceu em Ponta Grossa em 1970. Foi deputado estadual no Paraná,
eleito em 2006 e reeleito em 2010. Em 2012 concorreu à prefeitura de Ponta Grossa, sendo eleito no
segundo turno. É irmão do deputado federal Sandro Alex. Foi reeleito prefeito de Ponta Grossa no
segundo turno das eleições municipais de 2016.
20 Grupo invade Câmara dos Deputados e pede intervenção militar: liberados, 40 manifestantes vão
responder por dano ao patrimônio público e também podem ser enquadrados na Lei de Segurança Naci-
onal. Disponível em http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2016/11/grupo-invade-camara-dos-
deputados-e-pede-intervencao-militar.html. Acesso 18.setembro.2017.

151
tramos o porquê, como e de que maneira, em que condições ocorre a prática
política em nosso país. Quem é que chega lá? Quem é que ganha as eleições? -
As famílias políticas de sempre!
Então explicamos como que controlando o Estado por dentro, a própria
força do Estado e a força da classe trabalhadora, a força popular eles se man-
têm no poder. Como que às vezes uma família da classe trabalhadora, com
ensino fundamental incompleto votou no Rafael Greca de Macedo? Quantas
famílias assim? Na verdade, eles têm uma consciência social do que representa
essa oligarquia familiar Macedo? Vejam o que foi a queda de braço entre a
candidatura Greca/Slavieiro x Leprevost/João Guilherme. Qual foi o braço mais
musculoso no sentido de dinheiro, recursos, comando hierárquico, tradições,
genealogias e poder estabelecido há séculos? Era o Leprevost ou o Macedinho?
Há uma disputa entre os grupos mais antigos de origem colonial, que vêm
do império (como a família Macedo) com a nova elite, a nova classe dominante
emergente, de origem imigrante (como o Leprevost). Nessas horas, a rede de
poder de famílias estabelecidas, tradicionais como a Família Macedo faz dife-
rença ou não? - Sim, faz diferença porque a sociedade é hierarquia, é obediên-
cia em quase todos os aspectos. Ela é status quo. Ela é inércia. Nós, na Sociolo-
gia e em outras áreas de conhecimento e artes é que somos subversivos. Mas,
saindo da nossa ilha, da academia, como é a base da sociedade da classe traba-
lhadora da periferia? Os funcionários subalternos: uma cozinheira, um jardi-
neiro, um operário metalúrgico, um operador de telemarketing? Eles tendem
ou não a obedecer ao comando patronal? - Sim, quase que “naturalmente”!
Quem são aqueles que questionam, desconfiam, são críticos e querem uma
forma de subversão e de mudança? – Uma pequena minoria. E na conjuntura
atual como essa que estamos vivendo que é de ataque e de consolidação da
visão conservadora, passamos à defensiva. Fica ainda mais fácil o trabalho
desses reacionários ou não?
Os professores, o que encontram em muitos dos alunos? Tem muitas for-
mas de domínio, formas de persuasão ideológica através de grandes aparelhos
ideológicos que marcam o cotidiano da classe trabalhadora que afinal também
é marcada por toda uma genealogia. Uma geração ou duas de obediência, de
subordinação, de subalternização. Aí na hora de votarem qual é o discurso que
é o mais ideológico e enganador, como se diz hoje, pós-verdade? O que é a
ideologia de Karl Marx, o que é a pós-verdade? No Dicionário da Oxford, pós-
verdade é aquela verdade trabalhada, aditivada, manipulada pelos interesses,
ou seja, aquele conjunto que Marx já colocava na Ideologia Alemã, em 1844.
O fato é que estamos terminando o ano de 2016 com toda essa movimen-
tação no Congresso Nacional, na Câmara dos Deputados onde mais da metade

152
dos deputados são de famílias políticas, grupos empresariais, grupos de poder
como as bancadas do Boi (latifundiária, do agronegócio) e da Bíblia (as igrejas
de negócios neopentecostais). O novo templo da Igreja Universal do Reino de
Deus em Curitiba é uma pequena capela, modesta? Afinal de contas eles preci-
sam levar o dinheiro como? Como eles transportam o dinheiro já que não gos-
tam de deixar rastros? Como gosta de trabalhar o próprio Edir Macedo? Gos-
tam de levar o dinheiro em transporte aéreo e não em carro forte. Na verdade,
a sociologia quer criticar e subverter, mas essa maneira dos pastores trabalha-
rem é apenas uma ponte com o divino. Quanto mais alto melhor, por isso do
heliporto. Esse templo é uma fortaleza para a militarização, guerreiros, gladia-
dores no altar. O Igreja Universal investiu mais de 414 milhões de reais nesse
novo templo na rua João Negrão, nas antigas instalações da fábrica do Matte
Leão.
A igreja neopentecostal é uma das instituições que mais importam e com-
pram armas no Brasil. Sabiam desse detalhe ou não? Eles têm, se necessário, se
tiverem problemas, toda uma polícia armada. Procurem ver, com quem traba-
lha com munição e armas como essas igrejas são uma das maiores consumido-
ras de seus produtos. Com qual objetivo? Eles pensam à médio e a longo prazo.
É uma fortaleza ou não? Qualquer um que entende de defesa sabe que essa
construção não é uma capela, um simples templo aberto. É uma estrutura feu-
dal, militarizada: se você está dentro, está protegido!
Ao se levantar a dinâmica das unidades familiares da classe dominante
também no Senado temos dois terços dos parlamentares oriundos de famílias
políticas. Os senadores tiveram um ano de 2016 positivo e feliz. Na verdade,
todas as famílias ligadas ao Michel Temer e ao PSDB tiveram um ano de 2016
feliz ou não? Todas as redes de nepotismo estão fechando o ano contentes ou
não? Com a PEC 55 aprovada vão aprovar todo o esbulho organizado 21.
Para que Geddel tivesse que cair, senão ele não cairia, o que aconteceu? É
um ministro que grava, e mesmo assim alguém acha que vai acontecer alguma
coisa com ele ou daqui algum tempo ele já vai se eleger como deputado, como
senador ou ter um cargo importante, seja no governo da Bahia, seja no governo
federal!22 Quando eles momentaneamente saem do poder, eles são atingidos

21
Proposta de Emenda à Constituição n° 55 (Câmara) e nº 241 (Senado), de 2016 - PEC DO TETO DOS
GASTOS PÚBLICOS que congela gastos sociais por 20 anos, foi aprovada em definitivo pelo Congres-
so em 13 de dezembro de 2016.
22
Geddel Vieira Lima teve prisão preventiva em 03 de julho de 2016. Dez dias depois deixa o presídio e
passa a cumprir prisão domiciliar em Salvador. Em 08 de setembro de 2017 volta para a prisão após a
apreensão de 51 milhões de reais num apartamento em Salvador. Disponivel em
https://www.brasil247.com/pt/247/bahia247/316220/%E2%80%98Bunker%E2%80%99-dos-R$-51-
milh%C3%B5es-foi-emprestado-a-irm%C3%A3o-de-Geddel-que-%C3%A9-deputado-diz-PF.html.
Acesso 18.setembro.2017.

153
pelo judiciário? Alguém que é neto de desembargador que foi presidente do
Tribunal de Justiça vai ser incomodado por algum outro desembargador? É
gente protegida, pois um presidente do Tribunal de Justiça faz quantos favores
em sua gestão? Quantos juízes promoveu com a sua caneta? Quantos favores
distribuiu? Daí algum juiz, que é o maior corporativismo, vai de alguma forma
incomodar a Família Vieira Lima?
É claro, como no filme Aquarius, eles queriam construir uma bela torre de
progresso, com o belo nome colonizado Edifício La Vue! E a família toda está
nessa empresa imobiliária: tem sobrinho, primo, o próprio Geddel dizem que
tem vários apartamentos, não só o dele pessoal com uma bela vista 23.
Então aquele mecanismo clássico que você compreende em todos os auto-
res desde Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro e no próprio Karl Marx: o que a
burguesia, a classe dominante faz dentro do aparelho de Estado? Para que
serve o IPHAN? Para que serve a AGU? Para atender a quem? – Para atender à
classe dominante e quando Marx coloca no “Manifesto do Partido Comunista” a
tese do comitê executivo ele estava “forçando a caneta”, a imaginação? Como
podemos avaliar o caso da Família Vieira Lima do Geddel? Quer dizer, é tama-
nho o poder da família Vieira Lima que ele torna o próprio presidente golpista
Michel Temer seu corretor de imóveis nesse episódio e a assessoria jurídica
desse corretor imobiliário era o Eliseu Padilha e a AGU, pois pensaram: “ah,
passa esse caso lá para a AGU que eles dão qualquer chicana!” Só que eles pe-
garam pela frente o Marcelo Calero, Ministro da Cultura, um cara orgânico do
PSDB, diplomata que também tem interesses, não há dúvidas. Calero não agiu
sozinho, estava junto com a gangue organizada do PSDB que vai disputar a
partir do ano que vem, 2017, a própria derrubada do Temer – O GOLPE DO
GOLPE nesse cenário em que Temer está ele vai ceder agora ou logo depois
para o PSDB, aí está o medo de Temer. Aqui estão todos os elementos da teoria
do nepotismo: a família. E quando é a família Vieira Lima estamos falando de
uma família antiga, poderosa, latifundiária, uma família de poder há várias
gerações.
Renato Russo já sentiu o tipo do Geddel querendo acotovelar desde os
tempos colegiais, depois todos os cargos nos bancos da Bahia – eles adoram

Consultar também Geddel rouba há 30 anos e aptidão para o crime é herança familiar. Disponível em
http://www.jornaldacidadeonline.com.br/noticias/6958/geddel-rouba-ha-30-anos-e-aptidao-para-o-crime-
e-heranca-familiar. Acesso 18.setembro.2017.
23
Por apartamento de R$ 2,6 mi, Geddel brigou com banqueiro e vereadores. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/11/1833719-por-apartamento-de-r-26-milhoes-geddel-brigou-
com-banqueiro-e-vereadores.shtml. Acesso 18.setembro.2017.
Dois pesos, duas medidas, dois apartamentos — o de Geddel e o de Lula. Disponível em
http://www.diariodocentrodomundo.com.br/dois-pesos-duas-medidas-dois-apartamentos-o-de-geddel-e-
o-de-lula-por-kiko-nogueira/. Acesso 18.setembro.2018.

154
esses cargos. Não é diferente do jovem Aécio Neves. Qual foi o primeiro em-
prego do Aécio como jovem rapaz trabalhador? Por onde ele começa? – Aos 25
anos, na diretoria da Caixa Econômica Federal quando o primo materno dele –
Francisco Dornelles, hoje vice-governador do Estado do Rio de Janeiro (mas
que está mais como governador devido ao estado de saúde de Luiz Fernando
Pezão) – era Ministro da Fazenda do governo de José Sarney. Ou seja, mais um
membro de família que está no esquema das formas de privatização do Estado,
de saque organizado, de comando e controle das políticas públicas para o
atendimento dos interesses desses grupos familiares.
E isso é diferente em cada município? Por exemplo, pensemos nas políti-
cas sociais, nos hospitais, nas verbas e as emendas para a região de Guarapua-
va. Como as pessoas utilizam os recursos do Estado? – Para o clientelismo elei-
toral. Já citamos o trabalho da Solange Fiuza. Tem agora o trabalho de douto-
rado de Natália Granato sobre as oligarquias paranaenses do século XX mos-
trando que “morrem os pais, mas restam os filhos”24.
No litoral do Paraná, quem ganhou a eleição para a prefeitura de Guaratu-
ba? – Roberto Justus. A família Justus é uma família que anda fazendo tanto
“por Guaratuba, pelo litoral e pelo palmito”! Afinal é uma família que está aí
com esse grande patrono que é o deputado estadual Nelson Justus, que já foi
presidente da ALEP. Até quando, com a série Diários Secretos aconteceu algu-
ma coisa com o Justus ou o Alexandre Maranhão Khury? Até hoje estão espe-
rando prescrever o processo25.
Até a cooperativa Livre.Jor encontra pequenas coisas interessantes: foram
pesquisar quanto a ALEP gasta de combustível por ano, agora com poucos
carros e o serviço terceirizado. Em 2015 foram gastos quase 1 milhão de reais
em combustível pela ALEP26. Pense: com um milhão de reais você pode ir daqui
até aonde? Uma frota de quantos milhares de carros gastaria isso em um ano?
Vai “rolar” alguma punição com esses poderes ou não?
Isso numa peneirada geral. E se olhar de uma maneira detalhada o que en-
contraremos? - Fraudes, falcatruas. Esse histórico de falcatrua institucional,

24
GRANATO, Natália. Organização políticas de contestação oligárquica no Paraná durante as décadas
de 1920 e 1930. Curitiba: projeto de doutorado do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR,
2017.
25
Série Diários Secretos é uma série de reportagens realizada em 2010 pela Gazeta do Povo e a RPC que
revelou um esquema de desvio de dinheiro da ALEP por meio de funcionários fantasmas. Para saber
mais consultar TABATCHEIK, Gabriel. Desvendando os Diários Secretos: uma análise do uso de cargos
em comissão da Assembleia Legislativa do Paraná (2006-2010). Curitiba: Dissertação de Mestrado em
Sociologia da UFPR, 2015. Disponível em REVISTA NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses) Curitiba,
v.2, n.1, p. 214-218, março 2016.
26
Consultar Acusada de descontrole com combustíveis, Alep promete mudanças. Disponível em
http://livre.jor.br/acusada-de-descontrole-com-combustiveis-alep-promete-mudancas/. Acesso
18.setembro.2017.

155
organizada, elogiada, meritocrática, familiar, passada de pai para filho, para
netos, ela vai compondo todo esse quadro que pesquisamos. Entendemos, de-
nunciamos, mas qual o impacto disso para a grande sociedade? A pesquisa da
Solange Fiuza mudou o voto em Guarapuava? Entendemos e observamos a
engrenagem, toda a radiografia das famílias, das instituições e dos poderes,
como eles existem sociologicamente, porém, contudo, todavia, no que resulta? -
Fica no mundo acadêmico, entre os pesquisadores e estudiosos. Para a grande
população, para o eleitorado, na hora de votar (ou até que chegue a contradi-
ção) votam em quem?
Como vimos nas eleições de 2016 todas as teorias do prefeito João Costa
Doria: homem que acorda cedo para trabalhar. A genealogia da família Doria
foi feita por Francisco Doria. De onde vem a genealogia do prefeito Doria? 27
Família medieval, de origem italiana, de Gênova. Depois vai para a Bahia. É
uma genealogia muito longeva, contínua, de grandes poderes empresariais,
sociais. O que o bom empresário Doria já produziu na vida? É um capitalismo
imaterial. Ele não tem uma empresa com uma mercadoria industrial. Ele não
tem um produto para uso de tecnologia. O que ele produz? - Lobby, bastidores
e modas. A revista dele na indústria gráfica Doria Editora, a revista Caviar Li-
festyle não era sobre alta moda? Na TV quando ele comprava e investia nos
horários nobres – tudo isso é um símbolo do empresariado da classe dominan-
te brasileira. Não é, longe disso, aquele papel de um capitão da indústria, aque-
le empresário schumpeteriano que investe na inovação, na tecnologia, nas
mudanças. Tudo isso é importado no Brasil. Agora mesmo, a propaganda do
Ministério da Ciência e Tecnologia com dois palhaços – temos uma propaganda
institucional como se fosse um jardim de infância.
É exatamente aquela questão da classe dominante brasileira cuja maior
atividade é o extrativismo estatal. Na verdade, é aquela questão: pode existir
livre mercado ou mercado privado complexo sem o Estado protegendo e ga-
rantindo a existência da livre iniciativa? São grupos que às vezes atacam o
Estado no seu discurso, mas pode existir mercado, livre iniciativa, livre empre-
endedorismo sem a proteção e benefícios estatais? E além do mais, onde essas
classes históricas e essas famílias vivem o tempo todo? - No Estado. A Família
Slavieiro, Pimentel, Richa, Macedo, Vieira Lima, todas no Estado. Quer dizer,
você vai no Instituto Liberal – onde estão todos os liberais brasileiros como
Eugênio Gudin e Roberto Campos? - Com cargos no Estado.
E quando vemos a grande mídia: quem é mais dependente das concessões,
dos favores e do clientelismo estatais? Para a Família Marinho, ela teve que

27
DORIA, Francisco Antonio. De Gênova ao Brasil, I: Costa Doria, Rocha Doria, Lucatelli Doria.
Bingen, 2002.

156
fazer qual escalada para chegar aonde está? - Teve que entrar no Estado, estar
dentro do Estado. Onde que estava Irineu Marinho e todos os Marinhos, ao
lado de quem? - Dos políticos, de cada presidente da república durante a dita-
dura. Anteriormente também tivemos Assis Chateaubriand28. Quer dizer, pode
existir mídia, no Brasil minimante longe do poder estatal? Aqui no Paraná a
Família Cunha Pereira, podemos estudá-la longe do Estado? Ela está o tempo
todo imbricada, com conexões, com fontes de apoio, com financiamentos. Seus
membros estão no Tribunal de Contas, Tribuna de Justiça e agora na Igreja
Opus Dei. Para autorizar as pérolas editoriais da Gazeta do Povo deve ser uma
família muito boa! Qual a forma como eles tratam os movimentos sociais, um
professor, um educador nos editoriais?
Essas famílias todas estão lá e o cara mais liberal é o mais dependente do
recurso estatal, das conexões, das transferências, por isso eles ficam comple-
tamente transtornados e alucinados com qualquer governo com um mínimo de
autonomia e um governo como o da Dilma e do Lula, governos empoderados,
reformistas que acenderam os sinais amarelo e vermelho do semáforo para
esses grupos. Por que tanto ódio, por que tanta vontade de derrubar a Dilma? E
a raiva programada e terceirizada para o Lula? Se formos observar, Lula preju-
dica qual tipo de empresário? Só com a taxa de juros que foram cortadas?
Mesmo publicidade e propaganda, para a grande empresa, mas mesmo assim
já foram suficientes para o golpe, para a desconstrução que mostra o caráter
dessa classe dominante brasileira. Em cada instância de poder que nós obser-
vamos e constatamos: agora mesmo o presidente da Câmara Rodrigo Maia é
família histórica ou não?
Família Maia – que ao mesmo tempo está no Rio de Janeiro, Rio Grande do
Norte e Paraíba. José Marciano Monteiro 29 estudou os Maia da Paraíba, o mes-
mo clã foi um braço para o Rio de Janeiro e outro permaneceu no Rio Grande
do Norte e na Paraíba. Da mesma maneira o Rodriguinho, filho de César Maia,
quando foi casar, casou com quem? Com a enteada de Moreira Franco. A cúpula
golpista também é uma grande família. Juntando os estamentos: Geddel, Men-
doncinha, a Família Calheiros são exemplos de famílias com muitas conexões
no poder. Família de Renan Calheiros, em Alagoas, tem muitas conexões. Então,
nos municípios pequenos as famílias que entram nas disputas partidárias têm
sucesso durante uma ou duas gerações, dominam um estado pequeno, pobre e

28
DORIA, Francisco Antonio. De Gênova ao Brasil, I: Costa Doria, Rocha Doria, Lucatelli Doria.
Bingen, 2002.
29
MONTEIRO, José Marciano. A política como negócio de família: os herdeiros e a força dos capitais
no jogo político das elites na Paraíba (1985-2015). Campina Grande/PB: Tese de Doutorado em Ciências
Sociais da UFCG, 2016.
MONTEIRO, José Marciano. A política como negócio de família: por uma sociologia das elites e do
poder familiar. SP: LiberArs, 2017.

157
dependente do governo federal, como Alagoas. O ex-presidente do senado é
uma das mais importantes oligarquias familiares que ainda hoje encontramos
no Nordeste. O filho de Renan Calheiros, Renan Filho é governador de Alagoas
e vale como exemplo do esquema pelo qual os membros das famílias históricas
são colocados no poder.
As genealogias servem para as análises sociológicas porque uma genealo-
gia já é uma rede social e política pela sua própria composição já que é um
diagrama. Se a gente pega no Paraná a genealogia paranaense do Francisco
Negrão30, seis volumes, aproximadamente 40 mil indivíduos listados, você tem
ao longo de toda a história do Paraná aquilo que ele denomina a antiga nobreza
da terra, a nobreza colonial ou nobreza rústica, escravocrata e extremamente
ignorante, mas que forma a base do poder latifundiário, das sesmarias, os ho-
mens bons das Câmaras Municipais. Formam também toda a estrutura de car-
tórios e depois do império os deputados provinciais, os deputados gerais, os
senadores31.
Com a república, é algo em torno de 3% da população os representantes
das elites. É uma coincidência que a nova série brasileira da Netflix se chame
3%. A série apresenta um mundo pós-apocalíptico, depois de diversas crises
que deixaram o planeta devastado. Num lugar não especificado do Brasil, a
maior parte da população sobrevivente mora no continente, um lugar miserá-
vel, decadente, onde falta tudo: água, comida, energia e outros recursos. Aos 20
anos de idade, todo cidadão tem direito de participar do Processo, uma seleção
que oferece a única chance de passar para o Maralto, onde tudo é abundante e
há oportunidades de uma vida digna. Mas somente 3% dos candidatos são
aprovados no Processo, que testa os limites dos participantes em provas físicas
e psicológicas, e os coloca diante de dilemas morais. De certa maneira é a reali-
dade do que a sociedade brasileira faz: é ou não é? A maioria da população fica
na exclusão, com muito maior vulnerabilidade, deterioração social e é uma
história da própria formação, é a dinâmica familiar. No Paraná, temos essa
genealogia paranaense para entender todas as nossas instituições. Aí você quer
entender Tribunal de Contas, Tribunal de Justiça, Associação Comercial do
Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná, os maiores salários, os
maiores créditos, as melhores falcatruas (você precisa herdar uma estrutura,
ter um bom pistolão para fazer uma boa falcatrua ou não?) nas áreas jurídica,

30
NEGRÃO, Francisco. Genealogia Paranaense. 6 volumes. Curitiba: Imprensa Oficial, 1928.
31
ALVES, Alessandro Cavassin. A província do Paraná (1853-1889): a classe política e a parentela no
governo. Curitiba: Doutorado em Sociologia UFPR, 2014.
ALVES, Alessandro Cavassin. A província do Paraná e sua Assembleia Legislativa (1853-1889). Curiti-
ba: Máquina de Escrever, 2015.

158
governamental, na polícia, nas áreas negociais – consulte a genealogia do Ne-
grão! Todos estão lá!
A genealogia faz um quadro: quem sobe (conforme vimos ao longo do cur-
so esse ano várias vezes)? O jovem político, ele filho e/ou neto de família histó-
rica tende a se casar com quem? Como o Moyses Lupion, de origem imigrante,
que foi engraxate, mas depois que ele se torna rico, podendo contar com o
apoio de Manoel Ribas, ele vai se casar com quem? - Com uma moça da classe
dominante tradicional, que está na genealogia paranaense do Negrão. Daí seus
filhos e netos já estão incluídos nas Famílias Guimarães, Ferreira do Amaral.
Temos mais vários exemplos no meu livro “Na Teia do Nepotismo”.
E da mesma maneira, cada uma dessas famílias do poder: Família Richa
entra para a genealogia de uma das famílias latifundiárias mais antigas de Mi-
nas Gerais – a Família Junqueira 32 – Fernanda Bernardi Vieira, esposa de Beto
Richa está na genealogia Junqueira. Essa família mineira tem milhares de
membros na classe dominante latifundiária e nas mais importantes atividades
econômicas do país. E agora a Família Richa faz parte dela, assim como o novo
secretário municipal do esporte, lazer e juventude de Curitiba, Marcello Richa.
Fernanda Bernardi Vieira casou com Carlos Alberto Richa em 28 de junho de
1986. O primeiro filho do casal, Marcello, nasceu em 13 de dezembro de 1986.
A genealogia é toda uma rede de parentesco: você vem quem é primo,
quem é tio e eles formam uma sociedade dominando a economia, as institui-
ções e as principais atividades. A genealogia já é uma rede em si: onde estão os
primos de Fernanda Richa? Onde estão os outros parentes? Com as respostas
vamos compondo o retrato sociológico de classe, pois uma andorinha sozinha
não faz verão. Temos que ter o que para formar uma classe social? Todo um
coletivo, todo um grupo formando essas unidades. E da mesma maneira todos
estão ligados à dependência estatal, ao extrativismo estatal, aos melhores car-
gos, as melhores funções, aos melhores créditos, as melhores formas de escola-
ridade, as melhores remunerações, as melhores oportunidades. Esse retrato é
feito a cada momento, a cada geração e ele se reproduz.
Para concluir é sempre aquilo: perguntem qual a estrutura familiar? Quem
é quem? Levantem biografia, trajetória, genealogia e daí entenderemos a di-
nâmica do poder social e político do Brasil e dos golpistas. Dá para compreen-
der o Geddel Vieira Lima sem todos esses atributos sociológicos ou não? Se não
entendemos que ele é de uma família que tem conexões com o latifúndio, com
o poder e o governo na Bahia, com o governo federal em Brasília, com todas as
redes empresariais não conseguiremos entender a dinâmica do próprio poder

32
BASTOS, Adelia Diniz Junqueira. Lendas e tradições da família Junqueira (1816-1966). [S.l.: s.n.]
MATTOS, José Americo Junqueira de. Família Junqueira: álbum de família. RJ: [s.e], 2004.
MATTOS, José Americo Junqueira de. Família Junqueira: sua história e sua genealogia. 5 volumes. RJ:
[s.e], 2004.

159
da classe dominante. Como agora, Rafael Greca de Macedo compondo seu se-
cretariado em Curitiba, o Silvestri em Guarapuava.
O Rafael Greca de Macedo é primo do Beto da Richa e da Rosangela Maria
Wolff de Quadros Moro, a esposa do juiz Sérgio Moro. Estão todos no livro da
Genealogia de Manoel Ribeiro de Macedo. Mais parentes e primos distantes na
Associação Comerical, no Tribunal de Justiça, na Universidade, no empresaria-
do e em diversas instituições de poder.
Como podemos entender a dinâmica do poder sem essa análise genealógi-
ca? É possível entender o Eduardo Pimentel Slavieiro sem a família? Como ele
chega a ser vice-prefeito? Qual o QI (quem indica) dele? Para entender o secre-
tário Marcello Richa? A Família Borghetti-Barros que agora entra na disputa. A
Família Massa/Ratinho? Para entender isso você precisa ter muita investigação
da dinâmica familiar que é a dinâmica que compõem a classe dominante, o
empresariado, a elite política e compõem todos os mecanismos de transmissão,
de reprodução e a própria gênesis e sentido da desigualdade social.
A desigualdade social no Brasil é uma desigualdade basicamente familiar.
Saiu pela primeira vez, em quase 15 anos, um estudo transgeracional feito pelo
IBGE33 quando ainda existia o Ministério do Desenvolvimento Social que foi
extinto, pois para o atual governo não serve de nada ficar levantando dados,
“coisas da sociedade”. O que esse estudo revelou?
- 70% dos filhos dos pais sem instrução tem qual destino social? – Conti-
nuam sem qualificação, sem instrução.
- 70% dos filhos com pais com educação com ensino superior reproduzem
a mesma situação – os filhos realizam o estudo superior.
O estudo também nos coloca a seguinte situação: quem ganha maiores sa-
lários: - os filhos que tem ensino médio completo e os pais com ensino superior
ou os filhos que tem ensino superior e os pais sem instrução? – Quem ganha
mais é o filho de ensino médio completo e dependente do pai com ensino supe-
rior completo do que o indivíduo com ensino superior completo, mas com pais
sem instrução. Isto quer dizer que é uma rede social que te garante, te protege,
te abriga, te oferece rendimento, patrimônios, etc. Isso indica que o “paitrocí-
nio” é decisivo na sociedade brasileira ou não? Não basta apenas você achar
que vai estudar sozinho, vai ter mérito sem depender de todas as redes de QI
(quem indica redes em qualquer espaço).
E aquele retrato da sociedade brasileira com o golpe e todas as suas for-
mas que já começa a aparecer. Afinal, esse ano depois de quase 12 anos é a
primeira vez que o salário mínimo caiu, houve redução salarial. O que vocês
acham que vai acontecer com o índice de Gini que é medido daqui um ano com

33
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD - principais aspectos da mobilidade sócio-
ocupacio-
nal da população brasileira. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/mobilidad
e_socio_ocupacional_2014/default.shtm. Acesso 18.setembro.2017.

160
essa crise? A desigualdade vai piorar, o jovem periférico, pobre, de baixa esco-
laridade vai sofrer mais. Pesquisas até mostram o aumento de milionários, mas
parecem ser especulações, teríamos que aprofundar.
Então é importante estudar na sociologia FAMÍLIA-PARENTESCO-
GENEALOGIA e entender essa classe histórica do Brasil, a dinâmica de luta de
classes, a dinâmica das disputas e como cada instituição é dominada por gru-
pos e interesses familiares: nas universidades, nos diferentes tribunais, nas
profissões liberais, nos escritórios jurídicos, nos consultórios médicos, na car-
reira da diplomacia, na cúpula histórica das Forças Armadas e de segurança.
Onde você vai o que é que você encontra? – FAMÍLIA.
Tudo isso forma uma nova “teoria do nepotismo” que está sendo desen-
volvida pelo grupo. As notas taquigráficas da Sessão do golpe político que afas-
tou a Presidenta legítima Dilma Rousseff, no domingo, 17 de abril de 2016 (Ata
da 91ª Sessão da Câmara dos Deputados, Deliberativa Extraordinária, Vesper-
tina, da 2ª Sessão Legislativa Ordinária, da 55ª Legislatura), presidida pelo
deputado Eduardo Cunha, depois afastado por graves denúncias, revelaram a
grande força do léxico “família” na fala dos deputados. O termo “família” apa-
receu 156 vezes, o termo “filho”, “filha” apareceu 144 vezes. Já o termo “demo-
cracia” foi falado 174 vezes! A própria análise de discurso dos deputados gol-
pistas revelou a grande força social e política das referências às famílias nas
mentalidades, discursos e imaginários dos representantes políticos na Câmara
dos Deputados.
Se na França34 eles já reconhecem que existem a relação família x política,
imagine uma sociedade colonial, escravista e atrasada como o Brasil. Aqui é
muito mais!

Curitiba, 14 de dezembro de 2016.


10ª Sessão do curso de extensão “Família,
parentescoe política no Brasil” promovido pelo grupo de
pesquisa NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses – UFPR)
Tema: A família como categoria de análise sociológica
Palestrante: Professor Doutor Ricardo Costa de Oliveira

Referências

BACELLAR, Enólia Macedo e MACEDO, João Noel Azevedo (1998). Genealogia de Manoel Ribeiro
de Macedo. Curitiba: Edição dos autores.

34
Consultar a revista Critique Internationale, Nº 73, Octobre-decémbre, 2016. Dossiê La fabrique de
l’hérédité em politique.
Ver “Também Você é de família, cidadão?” Disponível em
http://www.saibamais.jor.br/2017/09/17/voce-e-de-familia-cidadao/. Acesso 17.setembto.2017.

161
CAPÍTULO 9

CLASSES ABASTADAS:
A FAMÍLIA COMO ESTRATÉGIA DE PRESER-
VAÇÃO DA RIQUEZA

ANTONIO DAVID CATTANI

Em Brasília, no dia 10 de abril de 2017, o Conselho Administrativo de Re-


cursos Fiscais (CARF) decidiu favoravelmente ao Banco Itaú em um processo
que envolve R$ 25 bilhões em Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o
Lucro Líquido na fusão com o Unibanco, em 2008. Os conselheiros avaliaram
que não houve ganho de capital na operação e, portanto, não havia razões para
que a Receita cobre esses tributos. Foram cinco votos favoráveis ao Itaú e três
à Fazenda. Foram perdoados 25 bilhões de reais 1. Esse valor pode ser compa-
rado ao orçamento anual do Ministério da Educação. A LOA (lei de orçamento
anual) de janeiro de 2017 previu R$ 99,8 bilhões para o MEC 2. Ou seja, somen-
te a dívida de uma empresa corresponde a quase ¼ do orçamento do MEC. A
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional já informou que pretende recorrer da
decisão do “perdão”, mas sabemos que não vai dar em nada!
Considerando dívidas consolidadas e processos espúrios os montantes são
estratosféricos:

- sonegação em 2015: R$ 509.000.000.000,003


- dívida previdenciária em 2017: R$ 426.000.000.000,00 4
- contencioso no CARF: R$ 244.000.000.000,005

1
CARF decide a favor do Itaú em processo de R$ 25 bi de impostos. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/economia/carf-decide-favor-do-itau-em-processo-de-25-bi-de-impostos-
21186804#ixzz4thgIPHZz. Acesso 18.setembro.2017.
2
Orçamento do Ministerio da Educação Portal do MEC. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2017/nt02-2017-ministerio-da-educacao-
despesas-autorizadas-para-2017. Acesso 18.setembro.2017.
3
Por sonegação, país vai perder R$ 550 bilhões em 2015. Disponível em
http://www.redebrasilatual.com.br/economia/2015/10/sonegacao-fiscal-no-brasil-sera-oito-vezes-maior-
que-necessario-para-o-ajuste-fiscal-2341.html. Acesso 18.setembro.2017.
4
Reforma da Previdência ignora 426 bilhões devidos por empresas ao INSS. Disponível em
https://www.cartacapital.com.br/economia/reforma-da-previdencia-ignora-426-bilhoes-devidos-por-
empresas-ao-inss. Acesso 18.setembro.2017

163
A soma chega a quase um trilhão de reais! Recursos existentes em um país
rico, porém, apropriados pelas classes abastadas com maior capacidade con-
tributiva. Mais de 70% dessas dívidas e da sonegação é de responsabilidade
das grandes corporações e das grandes fortunas. Existe o honrado ditado po-
pular “Devo, não nego, pago quando puder”. Os multimilionários inverteram o
sentido e proclamam “Devo, não pago, nego enquanto puder”!
Existe uma tendência a considerar as empresas, as grandes corporações
como entidades ou instituições impessoais. Trata-se de um grande equívoco
que leva a ignorar o papel dos agentes econômicos, indivíduos de carne e osso,
com endereço, CPF e, sobretudo, titulares de polpudas contas bancárias e títu-
los de propriedade. Na maioria dos casos, as classes abastadas compostas por
pessoas personificando o capital têm uma identidade e uma unidade construí-
da por laços familiares. Quando falamos, por exemplo, do poderoso Itaú-
Unibanco, R$ 260 bilhões de ativos, falamos de famílias (Setúbal e Moreira
Salles), Roberto Setúbal, filho de Olavo Egydio Setúbal, neto de Paulo Setúbal,
tetraneto da Viscondessa de Campinas, do Visconde de Indaiatuba e do Barão
de Sousa Queirós, sobrinho-trineto do Marquês de Três Rios, da Baronesa de
Itapura e da Baronesa de Anhumas, sobrinho-tetraneto do Visconde de Ver-
gueiro, do Barão de Limeira e da Marquesa de Valença, e pentaneto do senador
Vergueiro, um dos mais influentes políticos do Império do Brasil. Pedro Morei-
ra Salles, banqueiro, filho de Walter Moreira Salles, embaixador, banqueiro, ex-
ministro da Fazenda e personagem influente na política e na economia por
décadas. Não mais do que três ou quatro indivíduos que reinam inconteste
sobre o destino da empresa, sendo eles responsáveis por decisões econômicas
e políticas afetando milhares de pessoas. A JBS é uma grande empresa regida
por estritos e impolutos princípios gerenciais? Não, ela é controlada por um
núcleo familiar integrado. É ele quem decide investimentos e a compra de polí-
ticos venais; é ele o responsável, por exemplo, pela transferência de recursos
corporativos para contas pessoais etc. O mesmo acontece nos outros conglo-
merados e corporações.
Esse aspecto é indispensável para compreendermos facetas importantes
da estrutura social no capitalismo contemporâneo. Por trás de qualquer mega-
corporação da economia mundial existe indivíduos. Se ocorrer um problema,
não é o “fulano de tal” que arcará com os custos. Eles serão repassados para a
corporação. Mas, quando se trata de ganhos, ocorre o contrário. Não é o Itaú-
Unibanco genérico que ganhou 25 bilhões de reais – quem ganhou foram seus
proprietários. São raras as corporações que têm o controle acionário repartido

5
Contencioso administrativo cresce em valores. Disponível em
https://www.ibetabc.com.br/categoria/notus/page/272/. Acesso 18.setembro.2017.

164
entre centenas ou mesmo milhares de indivíduos. Seja por meio da proprieda-
de direta ou pelo controle gerencial quem manda tem a possibilidade de usu-
fruir grande parte da riqueza de uma forma pessoal.
A Grendene é de uma família (Grendene Bartelle) que explora 25 mil tra-
balhadores, ou utilizando o costumeiro eufemismo “que emprega 25 mil cola-
boradores”. As suas empresas podem enfrentar turbulências no mercado, mas
o senhor Grendene tem, entre outras coisas, um iate ancorado no Porto de
Mônaco avaliado em 225 milhões de reais6. É a riqueza substantiva que se
materializa em bens e fruições prazerosas.
Quando se fala em corporações temos que pensar em indivíduos. Esses in-
divíduos não estão isolados, vivem em famílias regidas por estratégias de pre-
servação da riqueza.
De maneira esquemática, é possível destacar aspectos essenciais que ca-
racterizam as classes abastadas que são, também, as classes dominantes. A)
Segundo o professor Jessé Souza (A radiografia do golpe, 2016), seus compo-
nentes são membros ativos do mais importante partido político, o PDD, o Par-
tido do Dinheiro B) São historicamente conservadores e autoritários, nutrindo
aversão profunda à livre organização dos mais pobres e, em especial à sua
ascensão social. C) São atavicamente elitistas. Essas são características que
podem ser encontradas em muitos estudos sobre as classes dominantes em
vários países. Porém, os multimilionários brasileiros agregam outra caracterís-
tica importante: o incivismo fiscal quantificado nos dados apresentados na
primeira parte da minha apresentação.
Tentarei relacionar essas práticas com a questão da família, foco principal
desta publicação. Destacarei a seguir, três estratégias utilizadas para garantir a
não dispersão do patrimônio, o não pagamento de impostos e a unidade do clã.

Heranças e doações

A família como estratégia de conservação da riqueza está materializada


numa série de privilégios fiscais e tributários construídos ao longo de décadas.
O Brasil é um dos países com a menor taxação sobre heranças e doações no
mundo: o percentual máximo deste imposto estadual é 8%. Algumas unidades
da federação cobram menos: entre 4 e 5%. Fazendo doações para parentes ou
transmitindo patrimônio os multimilionários ou não pagam impostos ou pa-
gam em percentuais irrisórios. Muitos brasileiros, endinheirados ou não, têm
os Estados Unidos como o paradigma da liberdade, de eficiência e, sobretudo,

6
Empresário que fechou 18 fábricas na Bahia compra iate de R$224 milhões. Disponível em
https://jornaloexpresso.wordpress.com/2015/01/20/empresario-que-fechou-18-fabricas-na-bahia-compra-
iate-de-r224-milhoes/. Acesso 18.setembro.2017.

165
de não intervenção estatal nos negócios e na vida dos cidadãos. Os deslumbra-
dos com a potência norte-americana não sabem que a taxação na transmissão
de propriedade é de 40%. Em torno de 13.000 brasileiros possuem residên-
cias nos Estados Unidos, especialmente na Flórida. Esse total corresponde a
aproximadamente 10% dos multimilionários brasileiros 7. Em breve, eles se
defrontarão com uma taxação 350% maior daquela em vigor no Brasil. Como
indicam alguns exemplos do Gráfico 1 8, percentuais ainda maiores existem nos
principais países economicamente avançados.

Elaboração do autor

Historicamente, a taxação sobre grandes fortunas sempre foi muito baixa


e confirma a estratégia geral envolvendo multimilionários: rico não paga im-
posto, mesmo quando falece e seu patrimônio é transferido para os herdeiros.
O resultado é o surgimento de gerações e gerações de parasitas recebendo
fortunas sem pagar a mínima contribuição para a sociedade. Eventualmente, os
pais eram empreendedores tocando negócios com diligência. Nada garante que
filhos e netos sigam o mesmo caminho. Sem nenhum mérito além de ter nasci-
do em berço dourado podem viver de rendas pelo resto da vida. Essa é a pri-
meira estratégia de preservação da riqueza – garantir que o imposto de trans-
missão seja mínimo tornando possível consolidar o patrimônio do núcleo fami-
liar.

7
Receita identifica 2,1 mil brasileiros com imóveis em Miami não declarados. Disponível em
http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-07/receita-identifica-21-mil-brasileiros-com-
imoveis-em-miami-nao-declarados. Acesso 18.setembro.2017.
8
Em crise, estados elevam imposto sobre herança. Disponível em
https://oglobo.globo.com/economia/em-crise-estados-elevam-imposto-sobre-heranca-20950394. Acesso
18.setembro.2017.

166
Planejamento tributário e sucessório

A segunda estratégia de preservação da riqueza é o planejamento tributá-


rio e sucessório - prática social e estratégia exclusiva para os muito abastados.
Como fazer a transmissão de bens evitando pagar os 8% de impostos? Criando
uma holding familiar com estatuto empresarial específico. No Quadro 1 pode-
mos ver as vantagens tributárias e, também, a rapidez da tramitação compara-
tivamente ao tradicional inventário:

QUADRO 1 – Vantagens da holding familiar em relação aos inventários

EVENTOS HOLDING FAMILIAR INVENTÁRIO


Tributação de herança e doação 4% 4%
Tempo para criação ou tempo do inventá- 30 dias em média 5 anos em média
rio

Tributação dos rendimentos 12,00% 26,50%


Tributação da venda de bens e imóveis 5,80% 27,50%
Sucessão conforme novo Código Civil para Cônjuge NÃO é her- Cônjuge é her-
casamentos com comunhão parcial de bens deiro deiro
Fonte: Orsi & Barreto Consultoria Empresarial. Portal de auditoria.com.br9

Um inventário pode demorar vários anos. Prevendo a transmissão antes


do falecimento, em 30 dias a questão estará resolvida. Para os negócios isso é
extremamente importante. A redução dos impostos também é expressiva: 12%
no lugar de 27,5%, ou seja, menos da metade. A tributação na venda de bens e
imóveis é de 5,8% no lugar dos 27,5%. Outro aspecto prático envolve a suces-
são no caso de uma holding familiar: o cônjuge NÃO é herdeiro! Isso permite
uma flexibilidade muito grande. Não existem mais amarras complexas com
a(o) viúva(o) além de evitar problemas com eventuais amantes...
O professor Gonçalo Guimarães da COPPE-UFRJ10 criou uma satírica clas-
sificação para explicar a estrutura social brasileira a partir das respectivas
preocupações essenciais.

 Quem são os pobres? São aqueles preocupados com o que vão


comer hoje à noite, isso se conseguirem comer alguma coisa...

9
Disponível em http://www.orsibarreto.com.br/. Acesso 18.setembro.2017.
10
A COPPE da Universidade Federal do Rio de Janeiro é o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-
Graduação e Pesquisa de Engenharia. É considerado um dos maiores centros de ensino e pesquisa em
engenharia da América Latina.

167
 Quem pertencente à classe média baixa? Aqueles preocupados em
saber como vão sobreviver até o final do mês, como pagar escola,
aluguel, alimentação etc.
 Quem pertence à classe média? Aqueles preocupados em saber
onde irão passar as férias de verão, se trocam ou não de carro e
que reclamam o tempo todo da carga tributária.
 Quem pode ser classificado como classe média alta? Aqueles pre-
ocupados em saber se na próxima temporada irão a Londres ou
Nova York e se além de Miami comprarão uma residência em Portugal.
 Quem pertence à classe verdadeiramente rica? Aqueles preocu-
pados em como passar o patrimônio para os netos.

Vejam a gradação de situações: o imediatismo da fome para muitos e as


preocupações intergeracionais para uma minoria. O que comer hoje? Como
transmitir o patrimônio para as futuras gerações mantendo a unidade de clã?
E, sobretudo, evitando pagar qualquer tipo de imposto. Para isso, existe o pla-
nejamento tributário e sucessório feito por escritórios especializados e admi-
nistrados por advogados tributaristas e ex-superintendentes das receitas fede-
ral e estadual. Esses serviços pagos a preço de ouro fornecem assessoramento
às grandes fortunas evitando que as rixas familiares sejam superadas de modo
a preservar o patrimônio.

Fundações e paraísos fiscais

A novidade dos últimos dez anos é o uso de fundações e paraísos fiscais


por parte de multimilionários. As fortunas cresceram de maneira desmedida a
partir dos anos 1980. De lá para cá, houve a proliferação de novas empresas e a
acumulação de grandes fortunas em patamares jamais vistos. Precavidamente,
os multimilionários estão pensando como evitar qualquer redução nos privilé-
gios fiscais e tributários. Em 1989, o então senador Fernando Henrique Cardo-
so propôs a regulamentação de um tributo federal previsto na Constituição:
o imposto sobre grandes fortunas. Ao longo de quase três décadas a mesma
pauta foi apresentada no Congresso Nacional por pelo menos dez parlamenta-
res de vários partidos. O projeto mais recente (2017) é o da senadora Vanessa
Grazziotin. Nenhum deles chegou à votação e se algum chegar não passará. No
caso remoto de passar, mesmo com taxação simbólica de 0,5% ou 1% sobre
patrimônios pessoais, valerá o dístico histórico: imposto é coisa para pobre,
Rico não paga imposto!

168
Vejamos o caso das fundações familiares, variação das holdings familiares.
Uma das maiores empresas da região Sul é de propriedade de um eminente
liberal, financiador do Instituto Millenium, membro do Conselho de Desenvol-
vimento Econômico e do Fórum da Liberdade que organiza seminários identi-
ficados com os princípios políticos mais radicais do liberalismo. Essa empresa
é brasileira? Foi até determinado momento, agora não é mais. Para resolver o
problema sucessório - leia-se evitamento tributário -, foi criada uma fundação
com sede em Amsterdam. Os deslumbrados com a pujança e o empreendedo-
rismo desse personagem não sabem que empresa não tem mais a sede na regi-
ão se beneficiando das vantagens de um paraíso fiscal.
As fundações podem ter sede nacional, mas de modo geral elas estão re-
gistradas nos paraísos fiscais porque é lá que está e circula o dinheiro. Essa
referência permite desmistificar os noticiários econômicos: quando lemos que
o capital estrangeiro está regressando ao Brasil ou, ao contrário, que temeroso
das oscilações políticas está deixando o país devemos nos perguntar: trata-se
de fato de capital estrangeiro? Na verdade, trata-se de capitais brasileiros que
estão no exterior entrando e saindo do país à medida da variação da taxa de
câmbio, da taxa de juros e dos incentivos e isenções. Em 2001, Everardo Maci-
el, Secretário da Fazenda do governo de Fernando Henrique Cardoso num
momento de extrema franqueza deu com a “língua nos dentes” e falou que
brasileiros tinham algo em torno de 150 bilhões de reais no exterior. Vejam só,
o secretário da Receita Federal. Ninguém melhor do que ele para conhecer
essas informações! Em 2017, o Banco Central informou que havia identificado
a existência de 121 bilhões, desta vez de dólares, não correspondendo a inves-
timentos diretos feitos por empresas. Ou seja, trata-se de depósitos identifica-
dos de pessoas físicas em paraísos fiscais. Ao câmbio de setembro de 2017, isso
correspondia a 340 bilhões de reais!
Recentemente, foi aprovada a lei do repatriamento. 11 O dinheiro ilegal
guardado no exterior poderia voltar ao país bastando pagar uma multa e 15%
de imposto de renda. A estimativa era que fosse repatriada para o Brasil parte
dos recursos existentes em paraísos fiscais, algo em torno de 100 bilhões de
reais12. Não existem informações sobre quanto voltou de fato. De todo modo, o
que cabe destacar é o montante de dinheiro envolvido, riqueza brasileira ile-
galmente transferida para o exterior.

11
Lei do Repatriamento Lei Nº 13.254 de 13 de janeiro de 2016. Disponível em http://www.planalto.go
v.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/l13254.htm. Acesso 18.setembro.2017.
12
Lei de repatriação é oportunidade única, dizem especialistas.
Disponível em https://oglobo.globo.com/economia/lei-de-repatriacao-oportunidade-unica-dizem-
especialistas-20092145#ixzz4ti7VdcRB. Acesso 18.setembro.2017.

169
Não há dúvidas sobre o fato de as grandes empresas e as grandes fortunas
utilizarem paraísos fiscais. Parte substantiva da riqueza brasileira circula na
City of London (que é o paraíso dos paraísos fiscais), na Suíça, no Panamá e no
Caribe. As grandes fortunas têm contas nesses locais não em nome das empre-
sas oficiais, mas, de entidades jurídicas especiais (XyZ Participações, YXM In-
corporadora, etc.). Algumas vezes, no nome pessoal ou de “laranjas” e o “laran-
ja” mais confiável sempre é um membro da família.

Síntese

Por vários aspectos, podemos ver como a família tem um papel decisivo. A
lista abaixo relaciona algumas das mais conhecidas empresas familiares. Even-
tualmente, elas são administradas por executivos profissionais, mas o controle
efetivo está nas mãos do núcleo duro familiar, em alguns casos há mais de 100
anos. Outras são mais recentes e têm em torno de 40 anos. São elas:

JBS
ITAÚ-UNIBANCO
ODEBRECHT
GERDAU
CAMARGO CORREA
SADIA
TAM
GOL
ANDRADE GUTIERREZ
PORTO SEGURO
COSAN
VOTORANTIN

Todas elas estão listadas entre as 500 maiores empresas familiares do


mundo. São empresas familiares, com núcleos extremamente sólidos e tendo
poder destrutivo na política. Como demonstram René Dreifuss (1964: a con-
quista do Estado) e Jessé Souza (A radiografia do golpe), esses e outros grupos
poderosos tiveram influência decisiva em momentos cruciais da vida econômi-
ca e política, apoiando e financiando o golpe cívico-militar de 1964 e o golpe
político de 2016. Jamais apoiaram causas cívicas, ecológicas ou outras de inte-
resse coletivo. Vários deles estão envolvidos com práticas claramente crimino-
sas (sonegação, corrupção de agentes públicos, evasão de divisas, etc.). Porém,
essa dimensão bandida da economia é sempre ocultada pelos meios de comu-

170
nicação. Pelo contrário, esses personagens aparecem dignificados porque as
empresas da grande mídia - também empresas familiares – têm identidade de
classe com os envolvidos, são cúmplices da economia bandida, omitindo in-
formações sobre a utilização dos paraísos fiscais, sobre as grandes proprieda-
des no exterior e a evasão de divisas. Dedicam muito mais espaço à corrupção
que aos processos de sonegação apesar destes envolverem valores infinita-
mente maiores; falsificam os dados a respeito da carga tributária escondendo o
fato de que ela compromete 50% do orçamento dos mais pobres e menos de
1% dos realmente ricos.
A grande mídia é essencialmente controlada por famílias garantindo as-
sim, coesão e unidade:

GLOBO – Família Marinho. A soma dos patrimônios dos três irmãos repre-
senta a maior fortuna do Brasil.
ISTO É - Família Alzugaray
RBS – Família Sirotsky
FOLHA DE SÃO PAULO – Família Frias
JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO – Família Mesquita

Os componentes dessas famílias e mais algumas redes regionais (por


exemplo, Malucelli no Paraná) controlam rádios, emissores de TV, jornais,
revistas, sites especializados e outras formas de comunicação que forjam a
opinião pública, criam modas culturais e fomentam preconceitos e intolerân-
cia. Quantitativamente, eles não são mais do 0,001% da população adulta.
Comparações internacionais revelam que a grande mídia brasileira é a mais
concentrada do mundo. Em várias situações e veículos, trata-se de um verda-
deiro monopólio nefasto para a democracia.
Essas diversas dimensões levam a classificar o poder efetivo em termos de
uma plutocracia. Não se trata de um capitalismo puritano, austero, fracionado
em milhares de acionistas ou de empresas disputando lugar no regime da livre
concorrência. Como apontam os estudos dos colegas aqui presentes 13, são gru-
pos familiares, grupos poderosos com indispensáveis ramificações no Judiciário.
As questões sintetizadas nessa breve comunicação são desafiadoras, com-
plexas e, muitas vezes, inacessíveis. Os ricos se protegem e se escondem. A
ciência social parece ter o comportamento de um avestruz: em face do perigo
que representa se adentrar no mundo da riqueza extrema, esconde a cabeça ou
se protege na análise fácil sobre a população pobre. O pensamento social preci-
sa de audácia. Sobretudo a Sociologia. Ela foi criada num momento de grandes

13
Consultar os trabalhos de Ricardo Costa de Oliveira, José Marciano Monteiro e Igor Castal Grill.

171
transformações, na passagem do feudalismo para a economia capitalista,
quando o antigo regime desapareceu e surgiram novas classes sociais. Esses
últimos 30 anos marcam uma recomposição de classes com o alargamento da
brecha social entre vasta parte da população e as minorias endinheiradas.
Pouco conhecemos sobre essas últimas. Para compreender a dimensão relaci-
onal entre riqueza e pobreza precisamos abordar o conjunto da sociedade e
não o detalhe, o pontual e o aparente. Tendo a coragem de pensar grande po-
demos contribuir de maneira efetiva na construção de um país muito melhor,
muito mais justo e democrático.

Curitiba, 18 de maio de 2017


Palestra proferida no VIII Seminário Nacional
de Sociologia e Política da UFPR
(dados e referências atualizados em setembro de 2017)

Mesa redonda: Família e Classes Sociais


promovida pelo NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses da UFPR)

Referências

DREIFUSS, René Armand (1987). 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de
classe. 5ª edição. Petrópolis: Editora Vozes.

SOUZA, Jessé (2016). A radiografia do golpe. SP: Editora Leya.

Sugestão de leitura

Obras mais recentes de Antonio David Cattani:

A riqueza desmistificada (Marcavisual, 2014)


A sociedade justa e seus inimigos (Tomo Editorial, 2015)
Ricos, podres de ricos (Marcavisual/Tomo Editorial, 2017)

172
CAPÍTULO 10

“FAMÍLIAS”, PARTIDOS E POLÍTICA:


INTERDEPENDÊNCIAS ENTRE DOMÍNIOS NA
EDIFICAÇÃO DE “HERANÇAS POLÍTICAS” NO
RIO GRANDE DO SUL

IGOR GASTAL GRILL

“Heranças políticas” edificam-se e/ou são edificadas no trabalho coletivo


operado – sem necessariamente planejamentos, racionalizações e controles
dos resultados – por agentes envolvidos em múltiplas redes de relações sociais
(tecidas nas mais diversas bases de pertencimentos e interesses) e de princí-
pios de classificação (e divisão) fundados em variados sentidos compartilha-
dos, atribuídos e disputados. Assim, para delinear universos de pesquisa volta-
dos à investigação de configurações de luta e de estratégias de reprodução
política a partir dessas dimensões de análise, é preciso abranger a intersecção
de, no mínimo, dois tipos de vínculos, em dupla via, entre “família” e “política”:
os laços de parentesco (por consanguinidade ou por aliança) e investimentos
em cultivá-los; e as ligações políticas (assimétricas e simétricas) enunciadas
através de termos e vocabulários próprios do domínio familiar (PATRIAT,
1992; ABÉLÈS, 1992), configurando o que se entende por “linhagens”, “genea-
logias” e “dinastias” simbólicas. Essas foram as matrizes exploradas em estudo
sobre elos de parentescos entre políticos, os condicionantes da formação de
cadeias de líderes-seguidores e as lógicas das identificações partidárias no Rio
Grande do Sul (RS) (GRILL, 2003; 2008). As considerações que seguem se re-
portam a esse estudo, mas têm igualmente a pretensão de contribuir no debate
mais geral sobre os encaminhamentos analíticos mais eficazes à apreensão de
objetos de pesquisa deste tipo.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que na investigação das “heran-
ças políticas” em uma configuração regional específica, procurei, por um lado,
examinar os mecanismos de reprodução social (conquista, administração e

173
transmissão de recursos de poder) de “famílias” com um número significativo
de membros atuantes em domínios políticos, sobretudo ocupando cargos eleti-
vos, bem como seus alinhamentos partidários. E, por outro lado, esboçar as
teias de alianças entre protagonistas do jogo político, cujo (auto) reconheci-
mento estaria diretamente relacionado ao pertencimento a “linhagens políti-
cas”, particularmente estiveram (ou estão) associados à construção da crença
na existência de uma “genealogia trabalhista”. Desse modo, laços e inscrições
familiares, políticos e partidários são considerados como domínios 1 comple-
mentares, imbricados e interdependentes.
Nesta trilha, em segundo lugar, sublinho o empenho no sentido de perce-
ber os condicionantes de fabricação de “genealogias” (familiares, políticas,
simbólicas) e as modalidades de reconversão e apropriação desse recurso
social por protagonistas das batalhas políticas nas últimas décadas. Por conse-
guinte, foram observadas as lógicas que investem um agente como autorizado
a disputar, conquistar e ocupar posições de poder político em virtude de re-
presentar “tradições políticas” que interligam, por elos de sucessão e associa-
ção (verticais e horizontais), personagens de lutas eleitorais. Do mesmo modo,
procurei apreender como as apropriações e as estratégias de apresentação de
tais laços são reveladores de princípios de classificação e legitimação mais
gerais – evidenciando as próprias concepções de sociedade e de política em
pauta em determinadas condições históricas e sociais –, bem como se afirmam
como trunfos eleitoralmente eficazes (CORADINI, 2001).
Desta forma, o olhar foi direcionado às bases sociais, aos esforços por legi-
timar tais recursos como trunfos eleitorais e às representações e práticas mo-
bilizadas pelos agentes analisados, relacionando-os à dinâmica social e política
do Rio Grande do Sul. E isso significou abordar a pluralidade e multidimensio-
nalidade de significados e de atributos (detidos, rivalizados, consagrados, des-
qualificados, etc.), que compõem o universo de possibilidades de afirmação,
expressão e usos por parte dos agentes, e se traduzem em formas de inscrição
na história; de reconversões de recursos econômicos, culturais e políticos; de
maximização de relações sociais; e de filiações a facções, a redes políticas e a
partidos.
Na operacionalização da pesquisa, num primeiro momento, busquei a
identificação dos vínculos de parentesco entre candidatos a deputado estadual
e federal, que atuaram no período de 1982 a 2002. Com este mapeamento, foi
iniciada a exploração dos perfis das “famílias de políticos” presentes em com-
petições eleitorais no Rio Grande do Sul. Seguindo nesta direção, foi possível

1
Sobre a potencialidade de pensar a partir da ideia de domínios, ver Reis e Grill (2016).

174
perceber como a reconversão desses laços em recursos e trunfos políticos é
dependente e se ajusta a outros investimentos operados pelos agentes e a dis-
tintas lógicas de hierarquização social. E permitiu caracterizar a interface entre
a afirmação política de agentes advindos de segmentos sociais díspares (des-
cendentes de “famílias tradicionais”, de “imigrantes” e com “origem humilde”)
e a transmissão do patrimônio político no interior de redes de parentesco.
Sendo assim, a variedade de momentos de ingresso dessas “famílias” na
política, a diversidade de recursos e trunfos acionados e as estratégias agiliza-
das ao longo das gerações para se perpetuarem na arena eletiva – assim como
a maior ou menor durabilidade e persistência das mesmas de acordo com a
origem social, os padrões de carreira e os mecanismos de adesão –, possibilita-
ram tanto a compreensão das lógicas de sucessão familiar quanto os atributos
valorizados e mobilizados na competição eleitoral em diferentes configurações
históricas. Fez parte do material empírico coletado, a realização de quarenta e
seis (46) entrevistas em profundidade com membros de “famílias de políticos”,
e também a análise de memórias, biografias, matérias veiculadas na imprensa
e materiais de campanha dos ocupantes de cargos eletivos.
Adicionado a isso, uma série de recorrências que verifiquei apontou à re-
levância de enfocar, num segundo momento, os agentes postulantes de uma
associação/identificação com a “genealogia trabalhista”, seu emprego na luta
política e a emergência de processos de sucessão no seu interior, no Rio Gran-
de do Sul. Em especial, esta escolha pode ser justificada em virtude do corpus
de narrativas e do conjunto de agentes pertencentes a diversas siglas e dedica-
dos à sua produção, que formam um rico material empírico em quantidade de
fontes (biografias, memórias, livros, panfletos, homenagens públicas, utilização
em propagandas eleitorais, etc.). Além disso, os vínculos políticos que estrutu-
ram a construção de “herdeiros políticos” do “trabalhismo” abrangem um perí-
odo histórico que se estende desde a afirmação política de Getúlio Vargas no
início do século XX (descendente de estancieiros e militares), passando pela
ascensão de Alberto Pasqualini a partir da década de trinta (descendente de
imigrantes italianos), seguida pela fixação de uma série de lideranças e “famí-
lias de políticos” (com perfis sociais diversificados) e chegando aos agentes
engajados em pleitos e disputas recentes (vinculados por laços de parentesco e
por fidelidades pessoais aos ascendentes que militaram em períodos anteriores).
Nesse percurso histórico, redes de lealdades sedimentadas por bases soci-
ais de interconexão se sucederam e permitiram a absorção de novas “famílias
de políticos” e lideranças, bem como se expressaram e se renovaram em dife-
rentes legendas existentes no Rio Grande do Sul. Finalmente, foi possível per-
ceber, sob suas classificações mais genéricas e ideológicas, cadeias de líderes-

175
seguidores2, que interligam diversos níveis de disputa política e, inclusive,
diversas “famílias de políticos”.
O material reunido para o exame da construção e valorização do “legado
trabalhista” contou com 23 entrevistas em profundidade, realizadas com ocu-
pantes de cargos eletivos, que reivindicam o pertencimento à “tradição políti-
ca”, assim como com textos (artigos, livros, panfletos, etc.) voltados a reconsti-
tuir a “história do trabalhismo”, biografias escritas sobre os principais perso-
nagens ou ícones desta “corrente política” e outros materiais, que coletei em
periódicos, acerca dos eventos de homenagens aos líderes trabalhistas.
É claro que as duas formas, acima descritas, de apreender o universo de
relações em pauta se complementam, uma vez que as “sucessões familiares”
ocorrem sob alinhamentos políticos e partidários que vão possibilitando rear-
ranjos nas clivagens e nas redes de fidelidades. E a “genealogia trabalhista”
comporta processos de transmissão familiar e de articulação entre “famílias de
políticos” e redes que perpassam diferentes siglas e momentos históricos.
Acrescento ainda o fato de que o tratamento dos vínculos de parentesco tornou
possível a reconstituição dos processos de afirmação e reprodução de “famí-
lias” na política que se iniciam em diferentes “fases” da “história política” do
Rio Grande do Sul e que são marcadas por dinâmicas sociais, partidárias e
políticas distintas. Assim como, percorrendo as “transmissões políticas” ope-
radas e afirmadas entre as lideranças da “tradição trabalhista”, foi possível
investigar o ingresso em cena de diferentes agentes, recursos e segmentos
sociais, que se notabilizaram em funções políticas, e promoveram a transmis-
são da crença em um “legado” e a valorização ou a redefinição dos seus conteúdos.
A abordagem e os procedimentos de pesquisa adotados permitiram, en-
tão, conceber as “heranças políticas” como recurso de ingresso, como elemento
presente na invenção histórica da política, como gestão de habilidades herda-
das e como absorção de métodos novos compatíveis com as redefinições das
formas de fazer política. Quer dizer, orientaram no cotejamento de distintas
predisposições social e historicamente constituídas, propriedades de origens e
modos de estreia de indivíduos e “famílias”, portanto de formas de entradas na
política, e mecanismos de adaptação entre as características daqueles que de-
butam no jogo político e os condicionantes estruturais de exercício do métier e
da profissão política (OFFERLÉ, 1996). Logo, convergiram com a possibilidade
de compreender como os processos de construção, competição e manipulação
das “heranças” e “genealogias” abarcam (ou explicitam) dinâmicas de criação e

2
Utilizo essa noção inspirado em Carl Landé (1977) que a concebe com um tipo de teia egocentrada e
segmentada, que adquire capilaridade na vida social e influência em jogos de poder por meio de alianças
diádicas verticais, configurando cadeias de líderes-seguidores (que podem ser sublíderes e terem seus
próprios seguidores).

176
recriação, pela concorrência (entre ingressantes e deles com seus predecesso-
res), das regras e dos papéis próprios ao espaço político (PHELIPPEAU, 2002).

Das “famílias de políticos” à “genealogia trabalhista”: bases sociais e


lógicas de invenção das “tradições políticas” no Rio Grande do Sul

Todos os expedientes de pesquisa utilizados não seriam profícuos sem a


ruptura com um poderoso obstáculo que se interpõe aos pesquisadores que se
debruçam sobre o tema das “heranças políticas”: a tendência reificante de con-
siderar as diferentes “famílias de políticos” (simbolizadas por “nomes de famí-
lias”, por exemplo, “os Jobim”, “os Fetter”, “os Branco”...) e as “famílias políti-
cas” (sintetizadas em “ismos”, como “trabalhismo”) privilegiando fatores de
continuidade, de unidade, de coesão, de fusão e de orquestração, em detrimen-
to dos processos de aproximações/distanciamentos e dos sistemas de relações
que configuram fissões, divisões, disputas, enfim, conflitos pela definição das
fronteiras (ELIAS, 1999; BOURDIEU, 1994). Duas orientações foram fundamen-
tais para suplantar esse obstáculo.
Seguindo as proposições de Lacroix (1985), um dos maiores esforços re-
flexivos foi no sentido de distanciamento com relação aos enfoques que conce-
bem as “tradições políticas” como realizações observáveis ex post, a partir das
categorias ou dos discursos que as definiram, e de aproximação com uma pos-
tura mediante a qual são examinadas ex ante e no processo que adquiriram seu
“estatuto de realidade”. Ou seja, apliquei uma pesquisa regressiva para, na
sequência, efetivar uma “reconstituição progressiva”. Para tanto, foram siste-
matizadas as informações sobre origens sociais, itinerários e inserções sociais
dos agentes que procuraram se inscrever nas histórias das “famílias de políti-
cos” e do trabalhismo no Rio Grande do Sul.
Outro aspecto significativo, que deve ser grifado, diz respeito à pertinên-
cia de se atentar ao trabalho de fabricação de “tradições políticas”, com seus
mecanismos de demarcação, lutas e constrangimentos. Destaco, nomeadamen-
te, as proposições de Muxel-Douaire (1987) para apreender tais processos.
Segundo a autora, cumpre identificar: a(s) referência(s) mítica(s) ou o papel do
personagem fundador, a intermediação da memória nas gerações seguintes ou
dos “intermediários encarregados da transmissão da tradição” e a adesão à
evidência bem fundamentada explicitada pelo reconhecimento do “passado
comum”. Com base nessas coordenadas, examinei as estratégias de apresenta-
ção dos ascendentes no interior das “famílias de políticos” e da “genealogia
simbólica”, dos “fundadores” das “tradições políticas”, das características auto-
atribuídas e que conferem identidade e unidade às mesmas. Afora isso, procu-
rei localizar as categorias utilizadas para a construção de autoimagens de al-

177
guns agentes e visando a inscrição na história coletiva dos grupos (familiares e
políticos), conjugando a isso a mobilização de trunfos pessoais (escolarização,
ocupação, inserção, etc.) e o afinco no intuito de demonstrar a continuidade
com as gerações precedentes.
O cotejo de informações sobre origens sociais, trajetos individuais e sím-
bolos de identificação/distinção oportunizou identificar padrões de recruta-
mento de “elites políticas” e de constituição de patrimônios políticos disputa-
dos no Rio Grande do Sul. Para a análise dos dados e colaborando na identifica-
ção dos padrões, examinei as posições sociais de origem das “famílias” no perí-
odo precedente ao ingresso do primeiro político nas disputas eleitorais. Isso
significou localizar as atividades desempenhadas pelos ascendentes (princi-
palmente os pais) do primeiro político, situando também o período (década)
em que ele estreou nas competições eletivas. Somando a isso, correlacionei
informações sobre: ocupação; grau de escolarização; títulos escolares conquis-
tados e instituições de ensino pelas quais passaram; cargos e idade de ingresso
na carreira de postos públicos e eletivos; número de candidaturas; tempo de
carreira em cargos eletivos e administrativos; todas para o conjunto dos políti-
cos pertencentes às “famílias” investigadas. E ainda considerei, como dimensão
imprescindível de análise, as concepções acerca da política e aos trunfos dis-
poníveis à consagração da família e dos antepassados.
Ao longo do estudo, tanto no tratamento das “famílias de políticos” (que
revelou os itinerários de deslocamento no espaço social e político, os recursos
em jogo para a afirmação política e os alinhamentos estabelecidos) como no
exame da “genealogia trabalhista” (que revelou a articulação entre agentes e
“famílias” na construção de uma ordem genealógica política e simbólica), foi
possível desenhar um quadro histórico semelhante de rivalidades, alianças e
substituição de políticos dotados de características distintas. E, da mesma for-
ma, em ambos os momentos de análise, detectei correspondências relativa-
mente à convivência entre mecanismos de consagração de qualidades e em-
blemas dos antepassados, de exaltação e heroicização da figura do “fundador”
da “família de políticos” ou da “tradição política”, de enunciação dos predica-
dos comuns às diferentes gerações e de tenaz inscrição dos atuais políticos nos
códigos e valores fixados pelos ascendentes.
A constatação de tais regularidades, ponderadas em relação a suas distin-
ções mais robustas, assegurou a sistematização de três tipos de conexões entre
perfis e estratégias de reprodução familiar como vias de acesso a atividades
políticas: um que podemos definir como mais “tradicional”, uma espécie de
padrão clássico dos notáveis que se concebem como “vocacionados à coisa
pública”; o segundo traz a marca da ascensão social do grupo familiar de ori-

178
gem, no qual os investimentos são no sentido de acumular recursos com vistas
à afirmação e escalada social e política; e o terceiro explicita a diversificação
social, escolar e das “missões” conduzidas pelos agentes que forma um padrão
militante de atuação política.
De uma forma breve, podemos caracterizar o primeiro padrão a partir da
combinação de alguns traços marcantes. Trata-se majoritariamente de “famí-
lias de políticos” originárias da chamada “metade sul” do estado em questão,
com descendência portuguesa e açoriana, estabelecidas socialmente desde o
século XIX (ou antes), com ingresso na arena eletiva que data também no sécu-
lo XIX ou início do século XX e cuja posição social de origem, definida pela pro-
fissão do pai primeiro político, é entre estancieiros, militares e comerciantes
urbanos. Nos trajetos escolares os agentes geralmente realizam cursos como
direito, medicina e engenharia, sobretudo aqueles abrigados na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Suas carreiras políticas são marcadas pelo in-
gresso mediante cargos mais altos na hierarquia política e em idade mais
avançada, assim como pela menor profissionalização (mensurada pelo número
de candidaturas e tempo de mandatos eletivos). No que tange às estratégias de
consagração, há a valorização dos códigos do “mundo da estância” como “cora-
gem” e “valentia” e das imagens que mesclam as figuras do proprietário de
terras e do miliciano. Comumente exaltam as participações dos antepassados
nas lutas de facções políticas e militares que marcaram a história gaúcha. O
“fundador” é apresentado como alguém que encarna tais modelos de conduta,
com o acréscimo da formação escolar. Os políticos das diversas gerações são
caracterizados lançando mão de categorias como “vocação pública”, “espírito
público”, “doação”, “erudição”, entre outras.
O segundo padrão, fortemente associado a “famílias” de descendentes de
imigrantes, delineia igualmente determinadas recorrências. São “famílias de
políticos” com origem geográfica sobretudo na “metade norte” do estado, com
forte presença de descendentes de alemães (em maior número), italianos, sí-
rios e libaneses. Elas são caracterizadas pela presença de ascendentes ligados
ao comércio em zonas coloniais, estabelecendo o marco, na primeira metade
do século XX, para uma ascensão social considerável. Tal ascensão social é a
base para o ingresso no espaço de concorrência eleitoral, que ocorre em geral
entre os anos 1930 e 1950 do mesmo século. Os investimentos escolares, por
sua vez, concentram-se primordialmente em instituições católicas como a PUC
de Porto Alegre e em instituições comunitárias situadas no interior do estado,
mas reproduzem o padrão anterior de obtenção de determinados títulos (prin-
cipalmente nas faculdades de direito). Já as carreiras políticas iniciam preco-
cemente, via mandatos locais (em geral vereador ou prefeito) e sinalizam para

179
uma maior profissionalização (maior tempo de carreira, escalada gradual e
lenta entre os níveis e número elevado de exposição em pleitos eleitorais). No
tocante às modalidades de exaltação da “família” são destacados o “pioneiris-
mo”, “capacidade de trabalho” e o “empreendedorismo” dos antepassados, logo
a excepcionalidade e a exemplaridade dos mesmos diante das condições inici-
ais desfavoráveis típicas da imigração. O “fundador” é celebrado pela capaci-
dade de ter transformado ascensão social em ascensão política. A atuação dos
ocupantes de cargos eletivos é descrita com base em categorias como “atendi-
mento”, “trabalho comunitário”, “ligação com a comunidade”, etc.
Por fim, no terceiro padrão, o “militante”, prevalece a presença de políti-
cos cujas “famílias” têm origem, em maior número, na “metade norte”, porém
com inserção significativa também na “metade sul”. Os pais dos primeiros polí-
ticos na “família” exercem profissões como de pequeno agricultor, bancário,
pescador, metalúrgico, etc. Esses últimos estreiam eleitoralmente a partir dos
anos sessenta do século XX, via atuação militante no sindicalismo, no coopera-
tivismo, no movimento estudantil, no catolicismo de base, etc. Nesse caso, a
ascensão política precede a ascensão social, inclusive em muitos casos promo-
vendo-a. Os investimentos escolares são efetuados em instituição mais perifé-
ricas (com forte presença de instituições privadas da região metropolitana e
comunitárias no interior), e buscando títulos mais diversificados (ao lado do
direito aparecem outras formações como jornalismo, radialismo, licenciaturas,
etc.). As carreiras políticas, por seu turno, se aproximam em muito do segundo
itinerário, indicando a consolidação da profissionalização política. No que se
refere às formas de enaltecer os antepassados, essas se centram na ênfase na
“origem humilde” e “popular”. O “fundador” é ressaltado devido à superação
das adversidades originais, aspecto que é explicado pela biografia militante
exemplar. Com base nisso, a atuação dos protagonistas políticos das “famílias”
é retratada a partir de categorias como “missão”, “obstinação”, “predestina-
ção”, etc.

180
Quadro 1 – Perfis de família, reconversões e reproduções políticas

Padrões/ Ca- “Tradicional” “Imigrante” “Militante”


racterísticas

Perfil social dos Elites econômicas, políti- Comerciantes ligados ao Baixa extração social
ascendentes do cas e sociais estabelecidas processo de imigração ou origem humilde
primeiro político desde o século XIX (fazen- que ascenderam e torna- (Pequenos agriculto-
deiros, comerciantes, altos ram-se prósperos empre- res, pescadores,
funcionários públicos e sários. lavradores, metalúrgi-
militares). co, pedreiro etc.).

Período de
ingresso do Antes de 1930. Entre 1930-1970 (especi- Pós-1959 (especial-
primeiro político almente na redemocrati- mente nas três últimas
na arena eletiva zação iniciada em 1945). décadas).

Diversificação dos
Medicina, Direito e Enge- Medicina, Direito e Enge- títulos escolares
nharia, conquistados em nharia, obtidos em institui-
Formação esco- ções públicas, privadas
lar dos políticos instituições públicas Títulos conquistados em
(principalmente na capi- e comunitárias da
da “família” instituições públicas e capital, e públicas,
tal). comunitárias na capital. privadas e comunitá-
rias do interior.

Padrão de in-
gresso na carrei- Altos cargos eletivos ou Cargos eletivos locais Cargos eletivos locais
ra política administrativos

Padrão de in-
gresso na carrei- Deputação federal. Vereança e prefeitura. Vereança.
ra eletiva

Ênfase na vinculação com Ênfase nas condições Ênfase na “humildade”


o passado mítico de lutas adversas dos pioneiros que marca os “ante-
militares e políticas. imigrantes e no trajeto passados” do primeiro
Referências de síntese: excepcional ascendente político e na excepcio-
“vocação política” = ideia da família. nalidade do trajeto de
de possuírem uma “voca- Referências de síntese afirmação política.
ção” para a “coisa pública”, para justificar a “vocação Referências de síntese
Estratégias de pretensamente atestada
consagração do política” = “vocação” para para justificar a “voca-
por atributos naturaliza- o “empreendedorismo” e ção política” = “mis-
grupo familiar dos como: “formação”, para o “trabalho comuni- são”, “predestinação” e
“preparo”, “cultura”, tário”, atestada por atri- “obstinação”, atesta-
“erudição”, “conhecimen- butos naturalizados das pela “superação”
to”, “poder argumentati- como: via “engajamento” e
vo”, “tradição de estudo”. “capacidade de comu-
“capacidade de trabalho”,
“audácia”, “vivência nicação com as mas-
empresarial”. sas”.

Elaborado a partir de Grill (2008)

Em comum, como já foi indicado, observa-se a heroicização de antepassa-


dos e “fundadores” das “famílias de políticos” como “modelos de condutas”,
simultaneamente tomados como exemplos e como exceções, assim como os

181
esforços dos descendentes em se constituírem em continuadores e moderniza-
dores do “legado”. Os “herdeiros” procuram evidenciar a fidelidade aos pa-
drões de comportamento e aos valores, sem deixar de frisar a adaptação aos
novos condicionantes de luta política. Além disso, se mostram constrangidos
pela composição dos patrimônios políticos familiares, pela rotinização da me-
diação e pela “imagem” associada à “família”.
Abaixo, são apresentados três perfis de “herdeiros” e de “famílias de polí-
ticos” que correspondem aos padrões delineados acima.

Quadro 2: Herdeiros, características de suas famílias, carreiras e trunfos


acionados em entrevistas
Trunfos acionados
Principais em entrevistas para
Nome Características sociais da “família” cargos caracterizar familia-
ocupados res que ocuparam
cargos eletivos

É descendente de “grandes
proprietários” e de segmentos que se
destacaram ao longo dos séculos XVIII,
XIX e XX em carreiras cujo acesso era Deputado “possuía capacidade
muito raro, como na medicina, na federal, oratória”;
engenharia, na advocacia e em altas ministro da “aptidão para a escri-
Nelson patentes do exército. O avô, Walter justiça, ta”;
Jobim Jobim, era filho de funcionário público e ministro do “excelente tribuno de
formou-se em direito, em Porto Alegre. supremo júri”;
Na sequência, foi juiz, promotor e tribunal “dotado de saber jurí-
advogado em Santa Maria (região central federal, e dico”.
do RS). Elegeu-se deputado federal em ministro da
1935, foi secretário de estado e defesa.
governador do RS, entre 1946 e 1950,
além de embaixador do Brasil no
Uruguai. Um dos tios de Nélson Jobim, o
engenheiro e professor universitário
Walter Jobim Filho, ocupou cargos de
primeiro escalão junto aos poderes
executivos (estadual e federal). O pai, o
advogado Hélvio Jobim, elegeu-se
deputado estadual em 1958.

Neto do comerciante Valdemar Moesch, Vereador de “eram líderes comuni-


que foi conselheiro municipal em Lajea- Porto Alegre tários”;
Beto do (RS) e líder emancipacionista de e secretário “tinham vocação co-
Moesch Arroio do Meio. Filho do advogado municipal de munitária e de empre-
formado pela PUC de Porto Alegre, Guido meio ambi- endedores”;
Moesch, que casou com uma descenden- ente. “sempre fomos muito
te de italianos, filha e sobrinha de políti- religiosos e comunitá-
cos. Este último foi secretário geral da rios”.
prefeitura de Arroio do Meio, deputado
estadual (1975-1982) e deputado fede-
ral (1983-1986).

182
Filho do pescador (com curso técnico de Secretário “homem de coragem”;
mecânica marítima) e líder sindical da de governo “pessoa de iniciativa”;
categoria, Wilson Branco, que foi verea- da prefeitu- “tinha estilo político de
dor em Rio Grande (RS), deputado fede- ra (na gestão cultivar a proximidade
Janir ral e prefeito do mesmo município. de seu e governar de portas
Branco Estudou direito em faculdade particular primo), abertas”
de Porto Alegre e Engenharia de Alimen- deputado
tos na Fundação Universidade de Rio estadual e
Grande (FURG). Seu primo, empresário, prefeito.
foi prefeito na mesma cidade (2001-
2004 e 2009-2012), elegeu-se deputado
estadual em 2014 e já ocupou duas
secretarias no atual governo do estado
comandado por José Ivo Sartori.

Elaborado a partir de Grill (2008 e 2003)

A análise da “tradição trabalhista”, além de possibilitar perceber a repro-


dução no seu interior os perfis de “famílias”, de políticos e de modalidades de
legitimação das “heranças”, permitiu clarear esta diversidade social e de crité-
rios de atribuição da “excelência social” entre os ícones da “genealogia simbóli-
ca”, assim como apreender a lógica de consagração das referências míticas (os
“fundadores”), de transmissão da memória pelos personagens intermediários
(os “herdeiros”) e de adesão à crença na continuidade pelos seguidores dos
líderes de redes políticas em atividade na política gaúcha.
Centrando neste ponto, o estudo demonstrou como as “raízes” das consa-
grações genealógicas são buscadas (com variações e composições) no “positi-
vismo” e no “catolicismo”, logo nas lutas políticas e militares que remetem ao
final do século XIX e início do século XX e na identificação étnica, religiosa e
comunitária. Os dois “fundadores” do antigo PTB ou as suas “referências míti-
cas” (Vargas e Pasqualini) são modelos exemplares e complementares de casos
bem-sucedidos de duas das vias de acesso ao espaço político e de transmissão
do “legado” (os itinerários iniciam, respectivamente, em uma “família tradicio-
nal” de estancieiros e o outro em uma “família de imigrantes e comerciantes”).
Na geração seguinte, as disputas colocam em conflito agentes com perfis
diversificados. Entre as lideranças que se afirmaram como “herdeiros da tradi-
ção”, João Goulart e Leonel Brizola, observa-se a diferenciação quanto à posi-
ção social de origem (“tradicional” e “humilde”) e a importância do parentesco
“por aliança”. A simbiose destes códigos e a complementaridade entre os pa-
péis dos cunhados tiveram efeitos decisivos para a conquista da “hegemonia
interna” e para a perpetuação do “espólio”. Os adversários internos na concor-
rência pela ativação do “legado” nesta “geração de trabalhistas” (José Diogo
Brochado da Rocha, Fernando Ferrari, Sigfried Heuser e Pedro Simon, os dois

183
últimos também são cunhados) refletem igualmente a diversificação social das
elites políticas (um deles é descendente de “tradicional família” de político e
três deles são descendentes de imigrantes e comerciantes). Ver os perfis no
quadro que segue.

Quadro 3: Perfis das principais lideranças do trabalhismo no RS

Nome Características sociais Principais cargos ocupados

Filho de estancieiros na fronteira-oeste. As Deputado estadual, deputado federal,


João famílias Vargas e Goulart eram ligadas por secretário de interior e justiça, ministro do
Goulart laços de amizade e alianças econômicas e trabalho, presidente nacional do PTB, vice-
políticas em São Borja. João Goulart se presidente e presidente da República.
formou em Direito. Teria recebido das mãos
de Getúlio Vargas a Carta Testamento.

Filho de pequeno agricultor e tropeiro em Deputado estadual, secretário estadual de


Leonel Carazinho (norte do Rio Grande do Sul). obras públicas, deputado federal, prefeito
Brizola Formou-se em engenharia e casou com uma de Porto Alegre, governador do RS, depu-
das irmãs de João Goulart (tendo Getúlio tado federal pelo RJ; duas vezes governa-
Vargas como padrinho do casamento). dor do RJ e duas vezes candidato à presi-
dência da República pelo PDT. Foi o prin-
cipal líder dessa agremiação durante os
anos 1980 e 1990.

Seu avô era comerciante em Pelotas e o pai Intendente de Viamão e São Pedro do Sul,
José Diogo (militar) foi intendente de Porto Alegre, deputado federal, deputado estadual;
Brochado deputado estadual e deputado federal (era candidato a Governador pelo PSP em
da Rocha contemporâneo de Getúlio Vargas no PRR). oposição à chapa que tinha Pasqualini
Três dos seus irmãos foram deputados pelo como candidato a governador e João
RS. José Diogo fez carreira militar e se Goulart a senador.
formou em engenharia.

Filho de comerciante e descendente de Deputado estadual e deputado federal.


Fernando imigrantes italianos que foi prefeito em São Disputou com João Goulart a liderança
Ferrari Pedro do Sul. Formou-se em economia e fez nacional do PTB. Foi candidato à vice-
parte do círculo de relações pessoais de presidência da República e ao governo do
Alberto Pasqualini. Fortemente influenciado RS pela dissidência do PTB, o Movimento
pela formação no catolicismo. Trabalhista Renovador (MTR).

Proveniente de família de “descendentes de Deputado estadual, deputado federal,


Siegfried alemães” ligados ao comércio e às ativida- presidente do PTB e do MDB no RS. Lide-
Heuser des empresarias, formou-se em economia. rava a “linha mais branda” do PTB e era
considerado um seguidor ou discípulo de
Pasqualini.

Filho de imigrantes libaneses que se torna- Vereador, deputado estadual, senador,


Pedro ram prósperos comerciantes. Formou-se em governador do RS e novamente senador.
Simon direito, teve forte influência do catolicismo Presidente do MDB do RS durante a dita-
e conviveu na casa dos Pasqualini. Seu dura militar e principal quadro político do
cunhado, Sigfried Heuser, foi presidente do PMDB no estado. Liderou a permanência
PTB e do MDB. Com a cassação do último de políticos ligados ao trabalhismo no
durante o regime militar, Pedro Simon se partido com a redemocratização e criou
tornou a principal liderança do partido que uma cisão com Leonel Brizola e os adeptos
reunia os trabalhistas no estado. do PDT.
Elaborado a partir de Grill (2008)

184
Ao longo da segunda metade do século XX, entre todos eles nasceram riva-
lidades e alianças que fomentaram, pela disputa do “legado” e pela associação
com os ícones “fundadores”, a propagação da memória política da “tradição”.
Na chamada redemocratização do país, a identificação das redes de apoiadores
de Leonel Brizola e de Pedro Simon (localizados no PDT e no PMDB), retratam
igualmente as alianças verticais e a articulação de bases sociais diversificadas.
Os compromissos entre estes egos e seus seguidores, que administram igual-
mente cadeias de seguidores, evidenciaram a importância destas fidelidades
pessoais para os alinhamentos políticos estabelecidos e para a reinvenção da
“genealogia simbólica”.
A polarização em relação “tradição política” decorre de hostilidade e leal-
dades herdadas no período de atuação ainda no antigo PTB. Estes alinhamen-
tos guardam relação também com os perfis sociais das “famílias” dos quais os
agentes são originários, demonstrando uma tendência de vinculação ao PDT de
grupos familiares com gênese em segmentos mais “tradicionais” ou mais “po-
pulares” e de extração mais baixa, e de ligação ao PMDB de “famílias” mais
ligadas ao catolicismo e ao empreendedorismo comercial e local. Assim, há
igualmente uma associação maior com Getúlio Vargas e João Goulart dos se-
guidores de Leonel Brizola, e com Alberto Pasqualini dos aderentes à liderança
de Pedro Simon. Esta configuração de homologias se configura devido à identi-
ficação dos grupos familiares com o perfil dos ícones (e a percepção das suas
qualidades e atributos neles mesmos) e com a fidelidade aos egos das redes,
que já e posicionavam com base nesta divisão. Embora a referência aos dois
fundadores seja compartilhada e valorizada pelo conjunto dos casos.
Entre as lideranças do PDT nos anos oitenta e noventa estão: o advogado e
professor universitário Otávio Caruso Brochado da Rocha, o jornalista Getúlio
Dias e o advogado Pompeu de Mattos. Entre as “famílias de políticos” que esco-
lheram o PMDB na chamada redemocratização e possuem origem no antigo PTB,
estão os “descendentes” de Nicolau Pessoa de Brum e os de Paulo Mincarone.
Uma das mais significativas migrações do PMDB, particularmente quanto
aos reflexos na composição de forças na política gaúcha e de disputa pelo “es-
pólio trabalhista”, foi liderada por Sérgio Zambiasi para o PTB. Sua inscrição na
história da “família política” obedece aos padrões de legitimação encontrados
em outros perfis, lançando mão da “origem familiar”, da demonstração de leal-
dade e culto aos “ícones”, aos documentos e aos símbolos da genealogia simbó-
lica. Porém, sua afirmação política se deu a partir de um itinerário distinto. Seu
prestígio eleitoral inicial não guarda ligações diretas com o “trabalhismo” e
baseia-se fundamentalmente na sua atuação como radialista, mormente atra-
vés da veiculação de programas de rádio centrados na filantropia. Desta forma,

185
comandando um programa diário na rádio Farroupilha (uma das emissoras
com maior audiência no estado e alcance em quase todo o “território gaúcho”),
Zambiasi se elegeu deputado estadual em 1986 pelo PMDB com a expressiva
votação. Durante seu primeiro mandato, respaldado por uma enorme votação,
investiu na formação do Partido Trabalhista Brasileiro no estado.
O potencial eleitoral auxiliou no recrutamento de “quadros políticos” atra-
ídos pelas chances de eleição em uma legenda que (re) nascia por meio da
iniciativa de um “puxador de votos”. Todavia, outros fatores contribuíram para
a adesão de seguidores. Em primeiro lugar, a aliança com um deputado federal,
Paulo Mincarone, que possuía uma vinculação “familiar” e pessoal com a sigla
(o antigo PTB) e uma rede de apoiadores conquistada através dos mandatos de
deputado federal. Em segundo lugar, a identificação que buscou estabelecer
entre os “quadros políticos” por meio da junção entre filantropia e radialismo,
investindo no recrutamento para a legenda de lideranças ligadas às igrejas e
envolvidas em atividades em rádios locais como forma de atendimentos. Em
terceiro lugar, ao vincular-se ao PTB, foi capaz de promover uma série de ade-
sões de lideranças ligadas por “origem familiar” à sigla (oriundas predominan-
temente do PMDB e do PDT). Entre eles estão: o próprio ex-deputado federal
Paulo Mincarone e seu filho, o ex-deputado estadual Marcelo Mincarone; o ex-
deputado estadual Gleno Scherer, o seu irmão Glauco Scherer e o seu filho
Alfredo Scherer Neto.
A seguir, breves apresentações dos perfis sociais e políticos de lideranças
citadas e suas inscrições partidárias.

Quadro 4: Lideranças trabalhistas, perfis e opções partidárias

Nome Perfil social e político de membros da “famí- Principais cargos ocupados


lia”
É bisneto de comerciantes portugueses em Deputado federal e candidato
Pelotas, neto de um militar, que foi deputado a vice-governador pelo PDT,
estadual, deputado federal e intendente de em 1982.
Porto Alegre (contemporâneo de Getúlio Vargas
e pertencente ao Partido Republicano Rio-
grandense). O pai, advogado formado pela
Otávio B. da UFRGS e professor universitário, foi deputado
Rocha estadual, secretário de estado e primeiro-
ministro do governo do presidente João Goulart.
Um dos seus tios (que fez carreira militar) foi
deputado estadual e deputado federal; outro
(advogado igualmente formado na UFRGS) foi
deputado estadual. Um dos seus primos,
também formado em direito pela UFRGS, foi
vereador de Porto Alegre pelo PDT. Otávio
Brochado da Rocha foi advogado e professor
universitário.

186
Filho de comerciário e funcionário público Vereador pelo PTB nas déca-
Getúlio Dias (baixo escalão). Seu filho foi vereador de Pelo- das de cinquenta e sessenta,
tas pelo MDB e PDT, durante 1d2 anos. É jorna- foi deputado federal por três
lista, formado pela Universidade Católica de legislaturas pelo MDB e
Pelotas (UCPEL). candidato ao senado, em
1982, pelo PDT.
Neto de pequenos agricultores e filho do advo- Vereador, vice-prefeito e duas
gado formado na PUC de Porto Alegre, Romildo vezes prefeito de Osório, além
Bolzan, que foi vereador pelo antigo PTB, pre- de presidente estadual do
Romildo
feito de Osório, deputado estadual, pelo MDB e PDT.
Bolzan
Júnior pelo PDT, tendo sido secretário-geral deste
último partido no início dos anos 1980. O cu-
nhado Bolzan Jr., Vieira da Cunha, foi vereador,
deputado estadual e federal, pelo PDT, além de
presidente estadual da sigla.
Seu primo, o advogado formado pela UFRGS Foi vereador pelo PTB na
Jairo Brum, foi prefeito de Guaporé, deputado década de cinquenta. No
estadual e deputado federal. O Filho de Nicolau período do bipartidarismo,
Pessoa de Brum, Vilson Pessoa de Brum, se foi um dos aliados de Pedro
Nicolau elegeu vereador (em três oportunidades) pelo Simon e Siegfried Heuser na
Brum PMDB. Dois dos seus netos têm atuação eleito- condução do MDB.
ral. O cientista político formado pela Universi-
dade Luterana do Brasil (ULBRA), Edson Meu-
rer Brum, é deputado estadual desde 2005, e
Edvilson Meurer Brum foi prefeito, vereador e
vice-prefeito de Rio Pardo.
Neto de agricultores e filho de um líder coope- Prefeito de Canoas e foi
rativista em Passo Fundo que foi deputado deputado estadual pelo MDB
estadual pelo PTB (muito ligado a Alberto e pelo PMDB.
Pasqualini). Seu irmão, também agricultor e
Carlos líder cooperativista Darcílio Giacomazzi, foi
Giacomazzi deputado estadual entre os anos 1950 e 1960,
pelo PTB e MDB. Carlos Giacomazzi casou com a
filha de um empresário e passou a residir em
Canoas/RS (região metropolitana).
É filho de um “descendente de italianos” que se Foi deputado estadual e
formou em advocacia, conselheiro em Bento deputado federal pelo PTB.
Gonçalves (serra gaúcha), deputado estadual e Cassado pelo golpe militar
Paulo
Mincarone deputado federal, sempre pelo PTB (aliado de retomou sua participação
Alberto Pasqualini), ligado ao ramo da vinicul- pelo PMDB e se elegeu duas
tura. Dois dos seus irmãos foram vereadores no vezes deputado federal.
mesmo município, pelo PTB. Seu filho, o empre- Participou do (re)fundação
sário Marcelo Mincarone, foi deputado estadual do PTB, ao lado de Sérgio
pelo PTB, no início dos anos 1990. Zambiasi.
Neto de comerciante e filho do empresário Vice-prefeito de Venâncio
Alfredo Scherer, que foi 4 vezes prefeito de Aires e deputado estadual
Venâncio Aires, duas pelo PTB e duas pelo MDB. durante 4 mandatos
Gleno
Scherer Dois irmãos ocuparam cargos eletivos: o em-
presário Glauco Scherer, duas vezes prefeito da
mesma cidade, e o advogado Rogério Scherer,
que foi vereador.
Elaborado a partir de Grill (2008 e 2003)

187
A descrição das vinculações entre os personagens nestas redes que se te-
cem sucessivamente no interior da “tradição trabalhista”, redefinindo, inclusi-
ve, o conteúdo dos termos desta etiqueta e das suas frágeis fronteiras, os in-
térpretes e suas bases sociais, inseparavelmente dos rituais litúrgicos de cele-
bração dos fundadores e de reinvenção do passado, revela, mais uma vez, esta
estratégia de inscrição na história por meio da tentativa de fixar a associação
pessoal e a proximidade ou semelhança entre ascendentes e descendentes.
Nesse processo são consagrados e renovados, como no caso das “famílias de
políticos”, os valores e atributos que compõem os diferentes princípios de hie-
rarquização social que condicionam a entrada na política, a transmissão do
patrimônio e a legitimação dos “herdeiros”.

Considerações finais

O exame desses processos de sucessão permitiu, então, compreender co-


mo, em um cenário de transformações nas formas de recrutamento e de sele-
ção política e das linguagens e imagens valorizadas na arena eletiva, persiste
uma forma de ordenação das relações sociais sustentadas sobre o modelo da
“família” e do parentesco. Para tanto, contribuem a relevância dos códigos de
reciprocidade e a personificação do capital simbólico. A combinação desses
dois princípios estruturantes da disputa política torna eficaz eleitoralmente a
demonstração de proximidade entre ascendentes e descendentes no interior
das “famílias” e da “tradição trabalhista”, logo o uso do passado como trunfo
eleitoral. Contudo exige, também, a recriação do carisma nos “herdeiros”, isto
é, a reedição em um novo personagem e a reinvenção dos seus conteúdos. Ali-
ado a esses condicionantes é possível destacar ainda outro que é concepção da
política como mediação com três significados: 1) mediação entre passado,
presente e futuro; 2) entre a parte e o todo; 3) entre domínios sociais ou di-
mensões da vida social. A monopolização dessas funções por algumas “famí-
lias” ou por agentes ligados a um passado comum viabiliza a inscrição na histó-
ria das “comunidades”. Portanto faz desse pertencimento à “tradição” um re-
curso importante de afirmação política, transforma os “herdeiros” em “porta-
vozes” de identificações étnicas, religiosas, regionais, etc. e em intermediário
das localidades com os demais níveis da hierarquia política e da vida social.
Tais funções são disputadas por todos os agentes políticos. Todavia para eles
são pensadas como “naturalmente” acessíveis, para os demais políticos e para
os eleitores são vistas como uma submissão a um papel que deles se exige. Sem
dúvida, constituindo um sinal de distinção não negligenciável no jogo político.

188
Versão desse texto foi apresentada, em forma de conferência,
na mesa redonda intitulada “Família e classes
sociais”, realizada dia 18 de maio de 2017 no
VIII Seminário Nacional de Sociologia e Política, realizado em Curitiba e promovida
pelo NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses da UFPR)
Mantive o tom de relato de pesquisa neste capítulo.

Referências

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elites”. In: REIS, E. T. dos; GRILL, I. G. Estudos sobre elites políticas e culturais (V.2). Reflexões e
aplicações não canônicas. São Luís: EDUFMA.

189
CAPÍTULO 11

FAMÍLIAS POLÍTICAS E SEUS ESPECTROS NA


REPÚBLICA BRASILEIRA:
O CASO DOS MENDONÇA DE PERNAMBUCO
(1966-2016)

JOSÉ ADILSON FILHO1

Em Hamlet, obra monumental de William Shakespeare, vemos como a


aparição de um fantasma ajuda a desvendar a morte de um rei e os proble-
mas políticos de uma nação, mediante a conspiração de seus familiares e
membros da corte. Karl Marx, que tinha o escritor inglês na lista dos seus
autores preferidos, certamente fora influenciado por sua fantasmagoria,
como podemos ver em alguns dos seus trabalhos2 falando de conspirações,
golpes e revoluções entre as classes sociais na sociedade burguesa (Derri-
da:1996), a exemplo das lutas do proletariado, da força desconcertante da
ideologia comunista e da violência dos burgueses para manter sua ordem
social. No 18 Brumário de Luís Bonaparte (1997), Marx cita uma série de
fantasmas do passado que agem como um pesadelo sobre o cérebro dos
vivos, alguns deles, inclusive, instrumentalizados para inspirar e justificar
golpes de estado.
Podemos usar também essa mesma metáfora para interpretarmos par-
te substancial da nossa história imperial e republicana, já que os fantasmas
do passado, aqui, não cessam de espreitar e ofuscar o brilho do presente
como também os horizontes da nação. Ou seja, os mortos de algum modo
ainda con tinuam nos assombrando e moldando nossas consciências e ações.

1 Mestre em História pela UFPE (2002) e Doutor em Sociologia pela UFPB (2011). Atualmente

leciona na Universidade Estadual da Paraíba como professor de Teoria da História e Historiografia


Brasileira. Desenvolve estudos e pesquisas sobre Poder local e Cultura política no tempo presente, com
ênfase nas permanências políticas de famílias tradicionais.
2
A exemplo do Manifesto do Partido Comunista (1979) e de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte
(1997).

191
Essa presença fantasmagórica torna-se mais tangível e visível devido ao
fato de que certas estruturas econômicas e sociais bem como determinadas
práticas políticas, imaginários ou formas de comportamento e percepção da
realidade constituem-se como o corolário de uma longa história de mais de
quinhentos anos, cujos signos mais aparentes exprimem-se na forma de pro-
funda desigualdade, exclusão, marginalização e violência física e simbólica
sobre a maioria do seu povo. Trata-se de uma trama fundamentalmente verti-
calizada, pois, desde o inicio, tecida a partir de um longo processo de domina-
ção e segregação de classe, gênero e etnia. Embora seja necessário frisar que
tais antagonismos, vez por outra, se transformaram em relações eivadas de
ambiguidades devidas, sobretudo, às misturas entre temas e sujeitos diferen-
tes e desiguais, tornando assim sua leitura e compreensão mais complexa,
porque aparentemente “fora do lugar”(Schwharz,1997).
Estas heranças constituem-se, por assim dizer, em anátemas ainda não es-
conjurados pela sociedade brasileira. As marcas do passado estão fincadas em
todo território nacional e a despeito das latitudes e longitudes, as con- tinuida-
des do passado se apresentam tais quais espectros onipresentes e relu- zentes
a limitar à imaginação e à luta política e social dos seus habitantes, notadamen-
te daqueles que precisam mais do “progresso” do que da “ordem”.
Daí ser fundamental o diálogo com a escrita da história, uma vez que ela
nos ajuda a pensar em termos de duração tanto as permanências como as mu-
danças, ou seja, a refletir retrospectiva e dialeticamente nas tensões entre o
novo e o velho que marca o devir de qualquer sociedade moderna. Desejar a
democracia e a cidadania implica, conforme Sérgio Buarque de Hollanda
(1998), em romper com algumas destas raízes e personagens históricos.
Alguns destes espectros ou “mortos-vivos” há muito tempo estão enraiza-
dos na cultura histórica e política brasileiras, de tal maneira, que passam a
ocupar lugar destacado e decisivo dentro da organização e do funcionamento
da atual sociedade. Porém, paradoxalmente, muitas das mudanças significati-
vas ocorridas recentemente na república brasileira prescindiram do apoio
político de forças conservadoras ou mesmo reacionárias. Famílias e oligarquias
políticas tradicionais e poderosas de várias regiões do país, princi- palmente
daquelas localizadas nas paisagens do Norte/Nordeste foram fun- damentais
para garantir os votos que elegeram Lula e Dilma bem como a ma- nutenção da
governabilidade e do apoio aos programas sociais que melhorari- am significa-
tivamente as condições de vida de milhões de brasileiros. Foram elas também
que, numa ação unificada, ajudaram a derrubá-los do poder.
Tais famílias mediante golpes, alianças e conchavos têm estrategicamente
mantido a sua força e continuidade como velhos espectros da política regional
e nacional. Essa espectralidade opera num tempo bem distinto daquele dos
“coronéis”. Pois os descendentes ou não dos coronéis e oligarquias da “Repú-

192
blica Velha”, inscrevem sua história numa época e geografia bem mais dinâmi-
ca e confusa do que a dos seus antepassados. Vivemos sob o prisma de uma
“modernidade líquida” (Bauman:2000) cuja natureza desconstrucionista im-
põe a tais famílias certa sensibilidade para rever parte de seu repertório e de
considerar à necessidade de ampliação e diversificação dos seus capitais e
dispositivos como estratégia de sobrevivência e de reprodução da lógica fami-
liar.
A forma como operacionalizam seus capitais é o que lhe garante longevi-
dade diante de um processo acelerado de liquefação dos sólidos, aqui compre-
endido como práticas e representações sociais. E é por essa razão que tanto o
presente como o que projetamos como nosso horizonte de expectativas, isto é,
nossas utopias e projetos de nação mais justa e democrática, em certo grau, são
limitados pela força marcante destes espectros. Para termos certeza disso não
precisamos ir muito longe, basta observarmos sua presença visível e ostensiva
nas esferas legislativa, executiva e judiciária do país, seja em nível municipal,
estadual ou federal. Nelas veremos seus filhos e parentela ocupando posições
importantes na burocracia estatal – juízes, procuradores, delegados, desem-
bargadores, ministros etc – como demonstram os trabalhos de Monteiro
(2017) e Costa et al (2017) e também na rede privada como homens de negó-
cio, fazendeiros, industriais e comerciantes. Geralmente seus nomes e imagens
são consagrados ou monumentalizados em escolas, aeroptos, cidades, estádios
de futebol, ruas, avenidas, edifícios, pontes etc. A prática da nomeação fortalece
sua espectralidade no imaginário social mediante a construção e a sedimenta-
ção memórias e narrativas duradouras. Elas são consagradas como monumen-
tos tanto em vida como na morte.
Mas tais representações e consagrações advêm com a força do seu espec-
tro político presente nos mais variados lugares de poder. Pois além dos cargos
e funções que ocupam como prefeitos, deputados, governadores, ministros,
juízes, promotores são também proprietários de mídias (TVS, rádios, jornais,
carros de publicidade). Tudo isso, porém, tecido de maneira articulada para
tornar os sobrenomes de família sempre onipresentes na cena politica. Portan-
to, não devemos subestimar a capacidade e inteligência destas familias no que
tange a manutenção da sua espectralidade política.
Tal realidade alimenta-se das profundas desigualdades sociais e de uma
cultura autoritária e personalista que afeta não somente as famílias mais tradi-
cionais, mas, também, setores considerados modernos ou ilustrados como
empresários, jornalistas, intelectuais, sindicalistas, juristas ou políticos de es-
querda – uma vez que passam a agir em conformidade com determinadas prá-
ticas e representações típicas do mandonismo ou do coronelismo, outrora
dominantes nas relações de poder no Brasil do Império e da República Velha.

193
No entanto, tanto as famílias e grupos mais tradicionais e aquelas que se
aristocratizaram mais recentemente precisam mesclar suas ações com leves
pinceladas de modernidade. Sem uma boa dose de retórica, cinismo e da in-
corporação de algumas práticas modernas no âmbito das relações, ações e
discursos, dificilmente sua permanência e legitimidade estariam asseguradas.
Vale ressaltar, pois, que ao pensarmos na longevidade do poder destes espec-
tros familiares na vida social brasileira, faz-se necessário levar em considera-
ção sua capacidade para operar simultânea e criativamente com as contradi-
ções e as ambivalências do mundo social e político.
Neste artigo, buscaremos analisar o percurso e as estratégias políticas
usadas historicamente pela família Mendonça, a qual se encontra nacionalmen-
te representado pelo primogênito Mendonça Filho (deputado federal pelo
DEM-PE), um dos principais articuladores do golpe parlamentar que o elevou
ao cargo de Ministro da Educação do governo de Michel Temer.

A Família Mendonça:
um espectro que ainda re(luz) na política local e nacional

Em meados da década de 1960 - em plena Ditadura Militar - a família


Mendonça começa formalmente a sua trajetória política na cidade de Belo Jar-
dim (agreste central de Pernambuco). Ali constituirá seu principal reduto elei-
toral e através dele ampliará suas bases em tamanho e densidade suficientes
para mais tarde torna-la uma das principais forças políticas do estado.
A estreia de José Mendonça Bezerra (1938-2011), patriarca da família, na
política partidária, ocorreu durante a eleição para deputado estadual, em 1966,
pela ARENA (aliança renovadora nacional) – partido de sustentação do regime
militar. Por três vezes elegeu-se deputado estadual e durante mais de trinta
anos consecutivos atuou como deputado federal (1979-2010). Sendo que de
1966 a 1984, foi um aliado incondicional da Ditadura Militar, ao qual destinou
seu apoio às ações dos presidentes militares e a seus aliados no plano estadual,
tais quais os governadores Paulo Guerra, Moura Cavalcanti, Nilo Coelho, Marco
Maciel e Roberto Magalhães. Porém, seu time de oportunista fê-lo retirar a
fide- lidade ao regime que se esfacelava para apoiar Tancredo Neves, (candida-
to da oposição) contra Paulo Maluf, na eleição para presidente da república,
feita através do Colégio Eleitoral, em 1985. Aproveitando-se do clima de mu-
dança gerado com a crise do regime militar e das gigantescas mobilizações
populares capitaneadas pelo Movimento Diretas Já, em 1984, decide juntamen-
te com velhos aliados migrar para o PFL, uma dissidência do PDS.
Sob a atmosfera da Nova República, José Mendonça Bezerra procura se
revestir com a fachada de político liberal e mais comprometido com a ordem
democrática. Embora, na prática, o estilo personalista e autoritário se manti-

194
vesse intacto. Esse estilo não se traduziu na figura de um parlamentar afeito
aos debates na Câmara Federal. O aspecto mais forte da estratégia política da
“baraúna do agreste”3 - como também era chamado por seus correligionários -
consistia na sua capacidade para atuar nos bastidores negociando diretamente
verbas e obras para seus ‘domínios políticos’ ou fazendo lobby com ministros,
governadores ou executivos de estatais para aliados do setor empresarial, a
exemplo do seu cunhado Edson Mororó Moura, fundador das Fábricas de Bate-
rias Moura.
Os desafios dos novos tempos interpelava-o a ir além da mera sobrevi-
vência. Para isso, José Mendonça precisava renovar e ampliar seus capitais, o
que o levou a investir primeiramente no próprio núcleo familiar. Ou seja, pas-
sou a apostar suas fichas exclusivamente nos filhos, sobrinhos ou genros para
construir lideranças “puro sangue”, como forma de evitar que suas outras cria-
turas políticas adquirissem à condição de lideranças independentes, tal qual
Francisco Cintra Galvão, (criatura) que se transformaria no seu principal ad-
versário local.
A partir do final da década de 1980, as novas lideranças terão que advir
do núcleo doméstico, porém, revestidos com as máscaras e linguagens da re-
novação. Com a inserção na Constituição Federal de 1988 da idade mínima de
16 anos para se votar, as juventudes tornam-se peças fundamentais para a
manutenção de quaisquer grupos políticos e, neste caso, para as elites e famí-
lias tradicionais. Para dialogar com a juventude e tentar atrai-la para o grupo, o
patriarca investiu no seu primogênito, Mendonça Bezerra Filho, e no sobrinho
João Mendonça Jatobá. Ambos terão papel destacado na luta para desbancar a
hegemonia da família política de Francisco Cintra Galvão no município de Belo
Jardim, que já duravam 23 anos (1977-2000) e de ocupar melhor posição no
ranking das oligarquias dominantes do estado.
Essa caminhada sinuosa, mas perseverante, começou com a eleição de
Mendonça Filho, aos 20 anos para deputado estadual, em 1986, e depois com a
sua nomeação para secretário da agricultura do governo de Joaquim Francis-
co (PFL), em 1991. Mas foi durante as eleições nacionais e estaduais de 1994,
que o grupo expressou a força do seu capital político, pois elegera para a câma-
ra dos deputados o patriarca (Mendonção) e seu filho (Mendoncinha) e ainda
emplacou João Mendonça, o sobrinho, para seu primeiro mandato na Assem-
bleia Legislativa de Pernambuco.
Uma vez fortalecidos com a eleição dos três membros da familia e de ou-
tros aliados no plano estadual (vários deputados estaduais) e nacional como
Fernando Henrique Cardoso – que em 1994 participou de um comício em Belo

3
Uma espécie de árvore grande e frondosa, comum à região, que oferece sombra aos animais e seres
humanos. A imagem da árvore é usada como metáfora para ilustrar a força e o poder que o patriarca José
Mendonça exercia politicamente sobre seus correligionários.

195
Jardim. A partir daí passam a desenvolver ações mais ousadas, tendo o líder
como seu principal mentor e articulador. Desta atuação pragmática nascerá
uma aliança outrora impensável entre antigos aliados e inimigos do Regime
Militar, qual seja, entre Jarbas Vasconcelos (antigo líder do MDB) e Marco Ma-
ciel e Roberto Magalhães (velhos aliados da Ditadura militar). Tal aliança tor-
nou-se mais fácil depois do racha entre Miguel Arraes (PSB) e Jarbas Vasconce-
los na chamada Frente Popular (PMDB, PSB, PPS e PC do B).
A aliança feita à mesa farta de churrasco e bebidas na fazenda São José,
propriedade da família, demonstra como nossas elites, a despeito de algumas
máscaras modernas, resguardam um estilo aristocrático, pois a fazenda ainda é
um símbolo de poder em que se materializavam grandes acordos e negocia-
ções. A aliança se materializou com a indicação de Mendonça Filho para ser o
vice-governador na chapa encabeçada por Jarbas Vasconcelos nas eleições de
1998 e 2002, bem como da sua indicação como candidato a governador em
2006. Apesar da acachapante derrota para Eduardo Campos, a família teria a
oportunidade de governar Pernambuco por alguns meses em função da renún-
cia de Jarbas para disputar uma vaga ao senado.
Assim, ao contrário do que se poderia imaginar sociologicamente, foi du-
rante a Nova República (cenário teoricamente adverso a tais famílias) já que
marcado por aspirações modernas, que o clã logrou seus maiores êxitos políti-
cos e econômicos. Refiro-me, sobretudo, ao período que abarca os governos de
José Sarney (1985-1989), Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-
1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995- 1998, 1999-2002).
Contudo, tal evolução começou a declinar com a chegada dos governos de
Lula e Dilma Rousseff na esfera nacional e de Eduardo Campos, em Pernambu-
co. Como continuaram fiéis à aliança nacional com o PSDB, não havia outra
alternativa senão a de ficar na oposição. Sem participação efetiva nas duas
esferas, o grupo perdera o apoio de vários prefeitos, vereadores, deputados
estaduais, lideranças comunitárias, enfim, densidade eleitoral e poder de pres-
são, restando-lhes apenas a cidade de Belo Jardim e o apoio de alguns vereado-
res, empresários e segmentos da classe média local e estadual.
Com a morte do patriarca em 2011, a unidade familiar é dissolvida. No
ano seguinte, o sobrinho João Mendonça rompe com o grupo e derrota nas
eleições municipais de forma expressiva tanto o candidato dos Mendonça (a
prima Andréa Mendonça) como Dr. Maneco, aliado do grupo de Cintra Galvão.
O indesejável aconteceria, pois a criatura viraria criador, e com isso dividiria a
família em duas forças opostas na esfera local.
O conjunto dos fatos contribuiria ainda mais para a agonia do que havia
do núcleo original. Mendonça Filho, o herdeiro, se elegerá com muita dificul-
dade para a câmara federal nas eleições de 2014, sendo praticamente o único
representante da legenda no estado. E Augusto Coutinho, seu cunhado, seria

196
eleito primeiro suplente para a câmara dos deputados pelo SD, mas vindo de-
pois a ocupar a vaga. A eleição de Mendonça Filho como o único representante
do DEM no estado caracterizou-se como um exemplo da profunda crise vivida
pelas famílias políticas daquela legenda no estado, haja vista ter sido ela em
passado recente o abrigo das forças politicas mais poderosas do estado e da
região nordeste.

O “Coronel” e “Paizão”

Como dissemos anteriormente, o referido grupo familiar nasceu atrelado


ao regime militar, mas atingirá seu ápice durante a redemocratização do país.
Entre os anos de 1985 e 2006, o poder e influência dos Mendonça se expandi-
ram por territórios e paisagens bem maiores e densas, conquistadas a partir da
ampliação, diversificação e combinação dos capitais político, econômico, social
e cultural.
No âmbito das conexões sociais, desde cedo, buscaram construir relações
afetivas e politicas através de casamentos e amizades com atores representa-
tivos dos extratos superiores da elite pernambucana. O primeiro passo foi
dado ainda no início dos anos 1960, quando do casamento do patriarca José
Mendonça com Estefânia Moura, filha de Pedro Moura e irmã de Edson Moura,
o fundador das Baterias Moura. Esta aliança, marcada pela justaposição dos
interesses políticos e econômicos produzirá bons frutos. A partir dos anos
1990, as indústrias Moura ocuparão posição invejável no referido setor. É claro
que a empresa teve que passar por muitas mudanças e fazer investimentos em
tecnologia, gestão, qualificação da mão-de-obra, etc., mas parte deste capital
econômico, responsável pela aquisição de máquinas e expansão da área produ-
tiva adveio também das articulações de José Mendonça com governantes e
executivos de organismos estatais como a SUDENE, FINOR, BNDES e Banco do
Brasil. Pois, “sem apoios não se chegaria a tanto”, como reconheceu Edson
Moura em reportagem da Revista Exames (Ianques não, p. 71)
Mendonção, como era conhecido, expressava pensamentos e ações pró-
ximas aquilo que Sérgio Buarque de Hollanda (1998) definiu como caracterís-
ticas do “homem cordial” brasileiro. Seu estilo bonachão e autoritário rendeu-
lhe a fama de “coronel”, alguém que tanto acolhia e protegia como também
intimidava aliados e adversários. Dos aliados, em troca das benesses que lhes
oferecia, exigia o máximo de fidelidade. Aos considerados traidores ou trânsfu-
gas utilizava-se do mecanismo da violência simbólica, isto é, perseguições,
interdições ou humilhações públicas destes em festas, reuniões, entrevistas ou
comícios.
A despeito disso tudo, a fidelidade política aos Mendonça era bastante só-
lida, principalmente da classe média (médicos, professores universitários,

197
advogados, bancários, funcionários públicos, delegados, promotores e juízes) e
de empresários e fazendeiros da região. Parte substancial da adesão destes
segmentos ao grupo familiar está relacionada às velhas práticas do assistencia-
lismo, clientelismo, nepotismo e do lobbysmo. São muitos os exemplos de pes-
soas que, à deriva de qualquer meritocracia, ascenderam socialmente ocupan- do
funções de poder e de prestígio na sociedade local graças à “ajudinha” do clã.
Não podemos deixar de reconhecer que tal adesão contém um sentido
profundamente racional, porque se liga aos interesses de conservação ou de
ampliação do poder aquisitivo e do prestígio social de uma classe que se carac-
teriza por sua concepção conservadora e utilitarista, o que, por sua vez tende a
aprofundar-se à medida que sua ação se inscreve numa geografia traçada por
enormes desigualdades sociais, políticas e econômicas. Manter-se fiel ao grupo
familiar dominante significa estrategicamente reconhecer tudo aquilo que já
foi conquistado, e o que poderá vir a ser adquirido em termos de bens simbóli-
cos (homenagens, jantares, festas, viagens, etc) ou na forma de cargos e fun-
ções em empresas e órgãos públicos, entre outros.
Assim, o “coronel durão” se transforma num “paizão” de sorriso largo e
coração generoso para seus aliados da classe média, mas também para muitos
desvalidos e empobrecidos da cidade e região, que devotam sua fidelidade em
troca de pequenos benefícios materiais como cestas básicas, medicamentos,
material de construção, apoio jurídico, dinheiro ou de contratos provisórios
como professores do ensino fundamental e médio, vigilantes, merendeiras,
motoristas, auxiliares de secretarias, serviços gerais etc. em instituições públi-
cas municipais e estaduais. Vale ainda salientar que, entre estes, a forma de
adesão é marcada por uma forte cumplicidade que aparentemente oblitera a
exploração e o antagonismo de classe por um misto de paixão, dádiva e amiza-
de, típica do que caracteriza o poder simbólico (Bourdieu, 2001).
A soma dos desejos de prestígio e diferenciação dessa classe média com
as demandas econômicas das populações mais pobres das áreas urbanas e
rurais de cidades médias e pequenas do agreste pernambucano é o que histori-
camente define a fortuna política de famílias como a dos Mendonça. Ambas
são, pois, estratégicas para a sustentação e difusão do seu espectro familiar aos
mais próximos e longínquos sujeitos e lugares.
Em cada lugar, seja numa rua, vila, praça, campo de futebol ou escola, fa-
culdade, prefeitura, lojas, bancos, haverá alguém da classe média ou das cama-
das populares a defendê-los e a exaltá-los. Ao dependência de ambas as classes
sociais fortalece o conservadorismo e por extensão a força e hegemonia politi-
ca dos clãs.

Novos meios de aumentar a espectralidade familiar

198
As famílias tradicionais na sua luta pela sobrevivência como animals poli-
ticus precisam operar simultaneamente com as estratégias da imanência e da
transcendência, ou seja, personalizar ao máximo seus nomes e ações nas bases
políticas através do uso sistemático dos capitais disponíveis. Noutras palavras,
fazer-se o mais próximo e visceral possível dos aliados e eleitores mediante a
presença física com eles nas ruas, lares, sindicatos, bares, igrejas, campos de
futebol, clubes, sítios, Ou, indiretamente, por meio do protagonismo de fiéis
cabos eleitorais, lideranças comunitárias, vereadores, locutores de rádios, car-
ros de publicidade, jornalistas, entre outros, que agem em seu nome. Com isso, o
espectro dos Mendonça não cessa de aparecer e de brilhar no imaginário social.
Neste sentido, veremos estes ato participando de procissões, missas e cul-
tos r ligiosos cristãos (raramente em cultos afrodescendentes), deixando-se
fotografar com figuras míticas como Frei Damião para mais tarde transformar
em propaganda. Noutras situações fazendo alianças políticas com bispos, pa-
dres e pastores. A igreja Católica e praticamente todas as variações do campo
dito evangélico (tradicionais, pentecostais e neopentecostais) localizadas nas
pequenas e médias cidades têm historicamente se prestado a combater as
ideologias e partidos de esquerda e a apoiar os segmentos políticos mais con-
servadores e reacionários.
Os Mendonça compreenderam ainda cedo o significado de vincular sua
imagem a certas autoridades da Igreja Católica, a qual foi feita com relativo
sucesso em municípios de sua base eleitoral. Em Belo Jardim tinham como
aliado o padre José Miguel, em Pesqueira, sede da Diocese, mantinham boas
relações com o Bispo Dom Mariano, cuja presença fazia-se constante em even-
tos do grupo e, em Santa Cruz do Capibaribe tinham o apoio de Padre Zuzinha,
líder político e figura mitológica daquele município.
A invenção de festas foi outra das estratégias usadas para atingir a sensi-
bilidade de diversos segmentos da sociedade. O Jardim Cultural foi uma destas
festas criadas durante o apogeu do grupo familiar e que buscava conjugar as-
pectos da chamada cultura popular pernambucana (artesanato, frevo, mara-
catu, forró, coco de roda) com atrações musicais do circuito regional e nacional
de distintas tendências como sertanejo, pagode, pop rock e MPB.
Porém, antes mesmo da chegada destas festas, eles já haviam investido
em bandas de trios elétricos com vistas à espetacularizar seus comícios e ani-
versários. A velha prática do panem et circense constituiu-se numa das mais
eficientes estratégias para fazer o espectro familiar ressoar reluzente sobre as
cabeças de seus eleitores. E foram os corpos e as mentes dos jovens, justamen-
te por serem mais sensíveis aos apelos do novo e da novidade, que sentiram
com mais intensidade a influência destes espetáculos.
Até aí falamos, de certo modo, daquilo que caracteriza a imanência, ou se-
ja, o que faz com que o espectro se aproxime dos corpos das pessoas e seja

199
tocado e sentido por ele. A outra dimensão é a transcendência que aqui é con-
cebida como o que fica acima ou longe do contato físico e das possibilidades
materiais, sociais e culturais da maioria do povo.
Nas esferas local e regional, a família Mendonça se distingue dos demais
eleitores e correligionários tanto em função do poder político e econômico
como de suas conexões e amizades com desembargadores, juízes, empresários,
jornalistas, artistas, escritores, entre outros, que os levam a participar de cer-
tos lugares e a cultivar hábitos e valores bem acima do universo social e cultu-
ral da maioria daqueles que lhes legitimam politicamente. (Adilson Filho,
2009)
Para conserva-se superior e distante do ethos das camadas populares, tais
famílias precisam cultivar a prática da distinção (Elias:1994, Velho:2001,
Bourdieu:2001) por meio de comportamentos, consumo, linguagens, hábitos,
amizades, casamentos e lugares frequentados. Portanto, a exclusividade ou a
posse de tantos capitais e do acesso que eles permitem às coisas e aos seres
mais raros e desejados contribui para ampliar no plano simbólico as enormes
hierarquias e desigualdades de classe, ao incutir nos mais pobres sentimentos
de admiração, inferioridade e de resignação.
Os seus casamentos, por exemplo, aconteciam em lugares singulares pa-
ra sua consolidação no universo relacional das elites dominantes como tam-
bém para o desfrute e a admiração da classe média.
O casamento de Mendonça Filho com Taciana Vilaça, filha de Marcus Viní-
cius Vilaça, ex-ministro do Tribunal de Contas da União e membro da Academia
Brasileira de Letras, e, também, neta de Chico Heráclito, um dos últimos coro-
néis da chamada República Velha, foi um verdadeiro espetáculo de esnobismo.
Conforme Silva (2001), ele ocorreu na Oficina do artista pernambucano Fran-
cisco Brennand, em 1988, e contou com a oposição do arcebispo do Recife Dom
Cardoso, que não queria realizá-lo em lugar considerado por ele inadequado.
Ainda assim, o evento aconteceu sob os holofotes da imprensa recifense que o
divulgou de maneira sensacionalista. O “glamour” e a ostenta- ção se fizeram
presentes nos 160 padrinhos dos noivos, na reprodução de um cenário tipo
casa grandes e senzala e na presença de vários empresários, de- sembargado-
res, juízes, executivos de estatais, intelectuais e de lideranças regi- onais e na-
cionais. O mesmo se repetirá com Danilo Mendonça, outro filho do clã, que se
casara com Aline Corrêa, filha do então deputado federal Pedro Corrêa Neto,
em 1993, no Caxangá Golf Club, e que contou com presença do extrato domi-
nante da elite estadual e de figuras políticas como Paulo Maluf, Joaquim Fran-
cisco e Jarbas Vasconcelos, conforme reportagem do Diário de Pernambuco
(1993).

Crise e sobrevivência de um espectro familiar

200
Como já falamos, a pujança do grupo começaria a declinar com a chegada
dos governos de Lula e Dilma Rousseff na esfera nacional e de Eduardo Cam-
pos, em Pernambuco. Com a morte de Mendonção, em 2011, o sobrinho João
Mendonça Jatobá rompe com Mendonça Filho, rachando a até então sólida
unidade familiar.
O DEM como o próprio grupo Mendonça parecia condenado à extinção.
Porém, com o golpe parlamentar, ocorrido nos dias 17 de abril e 31 de agosto
de 2016, que colocou no poder Michel Temer, veremos o retorno de velhas
familias ao poder. Mendonça Filho (líder do DEM na Câmara dos Deputados),
por sua firme atuação golpista será contemplado com o Ministério da Educa-
ção.
Apesar de ser rechaçado violentamente pela comunidade acadêmica, o
primogênito dos Mendonça sabia que ali se encontrava os dispositivos “legais”
para manter viva ou mesmo consolidar a força do espectro familiar. E, de fato,
isso pode acontecer e vem sendo denunciado por seus opositores na imprensa
local e nacional. Trata-se de reuniões extraoficiais realizadas na emblemática
fazenda São José ou no seu escritório do Recife bem como no uso de aviões da
força área brasileira para fins políticos. O resultado disso tudo já pode ser sen-
tido, pois após a sua saída do ministério para concorrer às eleições de outubro
de 2018, vê-se que seu nome aparece bem cotado nas pesquisas de opinião
(Datafolha e Ibope, agosto de 2018) que o apontam como forte candidato a
uma das vagas para o senado. Através do uso político do Ministério da Educa-
ção, Mendonça Filho, não somente poderá se salvar politicamente do desgaste
promovido pelo golpe de 2016 a sua imagem como efetivamente poderá con-
tribuir para uma possível eleição de Vinícius Mendonça (seu filho de apenas 24
anos) e de seu cunhado Augusto Coutinho à câmara federal além de sua irmã
Andrèa Bezerra à assembleia estadual. Se isso acontecer o clã dos Mendonça
voltaria a ocupar novamente um papel destac como oligarquia no Estado de
Pernambuco.
Como analisamos noutros trabalhos (Adilson Filho: 2009, 2014), essas
famílias compreenderam que para sobreviver às intempéries da História era
necessário jogar com a mistura, ou seja, com velhas e novas práticas, muitas
das quais pouco republicanas, a exemplos do apoio aos golpes de 1964 e 2016,
para que sua imagem e poder não fossem tragadas pelos ventos e contradições
da vida moderna. E foi aproveitando-se de desigualdades históricas, de tradi-
ções e imaginários conservadores, porém, articulados à riqueza dos seus capi-
tais, os quais ampliados através de alianças e conexões com segmentos do
empresariado, do judiciário e da classe média, que o seu espectro familiar vem
se mantendo reluzente na história da sociedade brasileira.

201
Referências

ADILSON FILHO, José. 2009. A cidade Atravessada. Velhos e novos cenários na política belojardi-
nense (1966-2000). Recife: Comunigraf.
_____________2014. (Org.) Poder, Cultura e Educação em Pernambuco. Jundiaí: Paco Editorial.
BAUMAN, Zygmunt. (2000). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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DERRIDA, Jacques. 1996. Os espectros de Marx. Rio de Janeiro: Ed. Relume Rumará
ELIAS, Norbert. 2001. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras
OLIVEIRA, R. C. ; MONTEIRO, J. M. ; GOULART, M. H. H. S. ; VANALI, A. C. . Prosopografia familiar da Operação
Lava Jato e do ministério Temer. 2017. REVISTA NEP - Núcleo de Estudos Parananense da UFPR, v.3.p.1-28.
MONTEIRO, José Marciano. 2017. A Política como negócio de família. São Paulo: LiberArs.
MARX, Karl. 1997. O 18 Brumário de Luís Bonaparte e cartas a Kugelman. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
SILVA, Adalberto Jordão da. 2001. Belo Jardim: Personalidades da nossa terra. Recife: O autor.
SCHWARZ, Roberto. 1997. Ao vencedor às batatas. São Paulo:Duas Cidades
VELHO, Gilberto. 1994. Projeto e Metamoforse. Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar
Periódicos
Jornal Diário de Pernambuco: anos 1993, 1998, 2000 e 2001
Jornal do Commércio: anos 1999 e 2000
Informativo Notícias da Moura: anos 1997 e 1999.
Revista Exame: são Paulo, 20 de Outubro de 1999.

202
CAPÍTULO 12

A FORMAÇÃO DE GRUPOS POLÍTICOS NO


CEARÁ: O CASO DOS FERREIRA GOMES

REJANE VASCONCELOS ACCIOLY CARVALHO1


CLEYTON MONTE2

Introdução

Embora as descrições e análises da política estadual no Brasil, e mais


especificamente no Ceará sempre recorram à nomeação de “grupo político”,
não se atribui ao termo um estatuto teórico. Em que medida é possível
considerá-lo mera herança do padrão tradicional da política ou na verdade ele
comporta especificidades e flexibilidade que o ajustam ao padrão atual da
política? Essa questão norteia o presente capítulo.
O objetivo dessa pesquisa é verificar a presença, marcas e transformações
dos grupos políticos no Ceará. Seguimos um percurso histórico. Partindo da
composição dos grupos que dominaram o estado ao longo da ditadura militar,
liderados pelos coronéis César Cals, Adauto Bezerra e Virgílio Távora, passando
pelo predomínio do governador Tasso Jereissati e chegando, finalmente, ao
protagonismo do grupo dos Ferreira Gomes. Este último será analisado em
seus pormenores, destacando os vínculos familiares, base local, migrações
partidárias, discursos e lógica de atuação.

1 Doutora em Sociologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade

Federal do Ceará (UFC). Coordenadora do LEPEM (Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições
e Mídia).
2 Doutor em Sociologia. Pesquisador do LEPEM (Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e

Mídia). Coordenador do Grupo de Estudos sobre Análise de Conjuntura da UFC. Professor universitário
(Unichristus, Faculdade Cearense e FAMETRO). Membro do Conselho de Leitores do jornal O POVO.
Colunista de política dos jornais O POVO e SEGUNDA OPINIÃO.

203
De 2006 a 2016, o grupo dos Ferreira Gomes conseguiu consolidar-se
como a principal força política do Ceará. Esse feito se deu a partir de uma bem-
sucedida rede de alianças, integrada pela maioria dos deputados federais,
deputados estaduais, prefeitos e vereadores, além do apoio formal das grandes
forças partidárias do Estado, compondo uma articulação que produziu um dos
arranjos mais poderosos do Nordeste na atualidade. Esse aglomerado,
marcado pela heterogeneidade de lideranças e partidos, laços familiares, apoio
da gramática lulista e extremo pragmatismo, pode oferecer pistas importantes
sobre os desdobramentos de um grupo político na atualidade.
O presente capítulo divide-se em quatro partes. A primeira tem como foco
analisar teoricamente esse tipo de formação política. A segunda parte
acompanha os passos e marcas dos grupos políticos pós-1964. Em seguida, na
terceira parte, o grupo dos Ferreira Gomes torna-se objeto central da
investigação. Nas considerações finais, faz-se um apanhado dos pontos
analisados ao longo do capítulo e destaca-se a necessidade de pesquisas
futuras sobre o tema.

Grupo político: o que isto quer dizer?

A análise da política tradicional brasileira destaca suas raízes rurais na


elucidação das formas de controle sobre os eleitores. O poder econômico dos
proprietários de terra se convertia diretamente em controle político, ou seja, os
votos daqueles reconhecidos como “gente do coronel sicrano” não precisavam
ser conquistados, na medida em que considerados obrigação devida aos seus
donos. Aceitava-se o patrimonialismo, definido pela ausência de fronteiras
entre o público e privado, como condição “natural” da política. Do mesmo
modo o personalismo estaria na origem da política tradicional remetendo para
a noção correlata de “chefe político” atribuída aos que na esfera dos
municípios, de modo especial do interior, e na política estadual, detinham
“bases eleitorais” que lhes garantisse força política nas disputas eleitorais.
A expressão “chefe político” tem origem no contexto de sociedades
predominantemente rurais nas quais o domínio dos patrões se estendia de
forma direta sobre as relações sociais e políticas, justificando assim a
nomeação pejorativa de “currais eleitorais”. O poder de um chefe político é
avaliado por sua capacidade de controle de votos em um determinado
território, seja de forma única ou compartilhada e que são consideradas suas
“bases eleitorais”. A noção “bases eleitorais assume significados distintos
quando aplicada a diferentes tipos de eleições. Nas municipais reporta-se a
laços mais diretos estabelecidos entre candidatos e eleitores caucionados por
formas de atendimento de demandas econômicas ou troca de favores que
resultam em uma adesão relativamente estável traduzida em votos. Nas

204
eleições estaduais e federais, as relações dos candidatos com os eleitores na
conquista de votos são mediadas pelos chamados “chefes políticos” municipais,
que podem ser prefeitos, vereadores ou lideranças com influência sobre
segmentos do eleitorado. A origem familiar é uma característica invocada para
justificar a origem e o prestígio de chefes de grupos políticos.
No Brasil, as expressões chefes políticos, currais eleitorais e voto de
cabresto continuam a ser utilizadas mesmo quando a urbanização,
industrialização, mudanças na economia rural e ampliação da presença do
Estado alteraram significativamente formas anteriores de controle social e
político. Vale ressaltar que, apesar de não termos no Brasil eleições distritais,
deputados estaduais e federais consideram como suas “bases eleitorais” os
municípios ou regiões onde obtiveram significativa concentração de votos e
para as quais direcionam grande parte de suas atividades parlamentares na
busca de atender “pleitos” daqueles que considera representar mais
diretamente.3
Em síntese, os dados mencionados possibilitam algumas considerações
embrionárias sobre a noção de grupo político sejam feitas. A noção remete
para a política real, desde a instância de laços entre políticos e eleitores nas
“bases eleitorais municipais” até relações que se estabelecem com candidatos
ao parlamento e a cargos majoritários que buscam nos chefes políticos
municipais apóio para a constituição de redutos eleitorais que lhes garantam
votos necessários para serem eleitos.
A organização de um grupo político pressupõe a existência de um chefe
político com características pessoais de liderança e com possibilidades efetivas
de contatos políticos ao nível da política estadual ou nacional que tornem
plausíveis suas pretensões de agregar seguidores políticos. A noção de grupo
político permite o entendimento das características tradicionais da política
brasileira (patrimonialismo e personalismo) que se amoldam ás exigências da
modernização das relações políticas. A “política do favor” tende a assumir
formas menos explícitas e individualizadas de troca entre candidatos e
eleitores (caso da compra de voto por dinheiro) para converter-se em
distribuição preferencial de recursos públicos direcionados ás bases eleitorais
de grupos políticos.
As disputas ao nível municipal ou estadual são travadas principalmente
entre grupos políticos que se reconhecem como antagônicos em suas
pretensões de conquista de poder. A ligação de grupos políticos aos partidos
depende das oportunidades que são oferecidas às suas lideranças para
disputar cargos políticos que os fortaleçam face aos seus opositores. Os
partidos constituem-se a face institucional do jogo político, porém seu

3
Ver BEZERRA, 1999.

205
tamanho e importância nos Estados variam em função da força dos grupos
políticos que circunstancialmente neles se abrigam. A dimensão das coligações
partidárias firmadas por grupos políticos hegemônicos, que em determinados
casos incluem mais de 18 partidos, é indicativa das dificuldades postas á
formação de grupos políticos de oposição com capacidade significativa de
confrontação, o que contribui para acentuar o situacionismo.
O discurso político nas disputas municipais se moderniza com o uso de
formas de comunicação midiáticas e estratégias de marketing, mas o que se
pretende é menos transmitir um “projeto de gestão”, mas oferecer a
perspectiva de vitória da qual seus seguidores serão os principais
beneficiários. A adesão a grupos políticos é basicamente pragmática e não
implica em lealdade duradoura ou incondicional a seus chefes. O fenômeno da
“infidelidade” partidária, da migração partidária, da criação de novos partidos,
explica-se principalmente por interesses de chefes de grupos políticos na luta
por garantir ou expandir suas posições de poder. A hipótese proposta é que a
noção de grupo político ajusta-se à compreensão da política cearense em
diferentes contextos políticos não apenas do passado, mas da atualidade.

Grupos políticos na história cearense

Para a maior parte dos analistas, os parâmetros da política tradicional,


condensados no conceito de coronelismo, predominantes no Brasil durante a
chamada República Velha, tenderam a diluir-se, ou mesmo desaparecer face ao
avanço dos processos de urbanização e industrialização registrados a partir da
década de 30 do século XX quando o direito de voto foi estendido à grande
parte da população. A permanência da política tradicional é admitida
principalmente com marca de regiões que não acompanharam o
desenvolvimento nacional, caso do Nordeste, ou ainda quando se reconhece a
existência de mazelas de uma herança a serem reparadas por propostas de
reformas políticas. Entretanto, o clientelismo como “política do favor”, ou seja,
determinação do voto por relações assimétricas de poder, era “naturalizado”
como traço da política brasileira e somente mais recentemente, tem ganhado
destaque na mídia ao ser reconhecido como corrupção eleitoral sujeita a
sanções legalmente previstas.
Alguns exemplos da política cearense são ilustrativos disso. Mesmo com a
centralização política do período militar pós-1964, os grupos políticos
chefiados pelos coronéis Virgílio Távora, César Cals e os Irmãos Bezerra
dominaram a política estadual. Oficializada a divisão da ARENA em
sublegendas, o partidarismo amoldava-se às disputas entre os grupos políticos
existentes nos municípios. As disputas entre situação e oposição, aconteciam
com maior freqüência entre grupos políticos filiados ao mesmo partido, a

206
ARENA. Considerando que a escolha do governador não se fazia por voto
direto, mas por indicação do governo militar, quem ocupava o cargo cuidava de
organizar ou fortalecer seu grupo político nos municípios demonstrando sua
força com a eleição de um maior número possível de prefeitos, vereadores,
deputados federais e estaduais. Cada um dos três chefes de grupos políticos
vinculava-se a chefes políticos municipais que o apoiavam e eram por ele
apoiados. A lealdade ao chefe dificultava a fragmentação fortalecendo os laços
de coesão interna de um grupo político.
Com a redemocratização na década de 80 as posições dos grupos políticos
anteriores foram duramente atingidas. Candidato ao governo do Estado de
1986, o empresário Tasso Jereissati derrota o coronel Adauto Bezerra,
estigmatizado como representante das “forças do atraso”. Quais readaptações
acontecem com as forças políticas locais pós-redemocratização? A questão
posta é por demais ampla para ser aqui respondida, o que nos leva a destacar
apenas alguns aspectos no que se refere a organização de novos grupos
políticos. Tasso não construiu sua carreira política em bases municipais,
exatamente por seu início ter acontecido no retorno á democracia, momento de
inflexão da política nacional. Para conservar a hegemonia na política cearense
por mais de 20 anos dificilmente poderia dispensar a busca de apóio de chefes
políticos municipais.
A regra do adesismo não apenas permaneceu, mas se fortaleceu, ajudando
a entender os ciclos políticos de longa duração que se instalaram na política
cearense pós-redemocratização. A oposição passa a ser praticamente
inexistente, sugerindo que integrar o grupo político hegemônico é fator de
sobrevivência política na medida em que o atendimento de demandas políticas
das bases eleitorais depende cada vez mais de acesso a recursos e programas
governamentais. Perde importância o velho clientelismo feito com recursos
próprios.
Outro fator de diferenciação do Tassismo é que em sua origem ele se
apresentou como representante de uma associação empresarial, o CIC, e seu
discurso era o de modernização da política cearense. É pertinente considerar
que uma associação empresarial, que supostamente paira acima de
personalismos, seja compatível com a existência da forma tradicional de
funcionamento de grupos políticos? Embora alguns membros do CIC tenham
participado da equipe dos governos Tasso, essa não foi uma regra geral. É
inegável que o domínio personalizado persistia e se revela na denominação de
uma era política por quem a protagonizou: tassismo 4. Não dispomos de dados

4
O “governo das mudanças”, “tassismo” ou a “Era Tasso” foi o período de vinte anos, iniciado em 1987,
marcado pelo domínio político do ex-governador Tasso Jereissati no estado do Ceará. Os estudos sobre
esse período destacam o papel modernizante do grupo liderado por Tasso, a política de investimentos em
grandes obras, a racionalização da administração pública e a importância da mídia, mas também enfo-
cam: o distanciamento dos movimentos sociais, o descaso com os servidores públicos e o agravamento
da miséria (FARIAS, 2012; NOBRE, 2008; HEREDIA, 2008; ARRUDA, 2002).

207
suficientes sobre quais relações se estabeleceram entre o governo do Estado e
os grupos políticos municipais, que certamente não deixaram de existir,
embora as posições ocupadas tenham sido redefinidas no novo tabuleiro do
poder estadual.
Uma gestão mais centralizada nos moldes empresariais teria reduzido o
poder de chefias políticas locais? Por outro lado faltava a Tasso uma base
familiar a invocar como origem e legitimidade de sua liderança. Como já dito,
ele entrou na política estadual na posição de governador, sem uma carreira
política percorrida em cargos anteriores. Ao término do seu primeiro governo
em 1990, Ciro Ferreira Gomes elege-se como seu sucessor a ele cabendo a
tarefa de preservar o que ficou conhecido como “projeto mudancista”. Como
governador, Ciro não trabalhou para se tornar chefe de um grupo político
próprio, sua imagem manteve-se vinculada ao seu patrono, que retorna ao
governo em 1994 e é reeleito em 1998 (com vitórias em 1º turno),
configurando um ciclo político com longevidade e hegemonia nunca antes
alcançadas na política cearense.
Em 2002, Tasso elege-se para o senado e em uma disputa eleitoral muito
competitiva Lúcio Alcântara, candidato do seu partido, o PSDB, é eleito para o
governo do Estado. Entretanto, a conjuntura nacional com a eleição de Lula
para presidente, sinalizava para o declínio do tassismo, sem que outro grupo
político ganhasse visibilidade na política estadual. Lúcio Alcântara, de família
política de tradição desde antes de 1964, não se empenhou no decorrer de sua
gestão em construir um grupo político próprio e, por conseqüência, não se
fortaleceu na condição de chefe político estadual.
Em 2006, frustrado na pretensão de contar com o apoio de Tasso para sua
reeleição, Lúcio Alcântara percebe, tardiamente, que lhe faltavam bases
eleitorais próprias, ou seja, ele não angariara a seu favor os ganhos do
situacionismo e não lhe restava tempo nem legitimidade para se apresentar e
se reconhecido como candidato de oposição. Resultado inevitável: derrota para
Cid Ferreira Gomes, (irmão de Ciro) filiado ao PSB, que contava com o apóio
informal de Tasso e apresentava-se coligado ao PT e PMDB, forças políticas em
ascensão no cenário nacional.
A vitória de Cid ao governo do Estado oferece pistas sobre a ação dos
grupos políticos que transcenderia a dos partidos políticos, que funcionam
principalmente como siglas institucionais nos quais se abrigam em função de
interesses conjunturais. Não é a filiação a um determinado partido que marca
a identidade de um grupo político, mas o reconhecimento pessoal de quem
exerce sua chefia. Como implícito na própria nomeação dada pela mídia “os
irmãos Ferreira Gomes” passam a ser reconhecidos como chefes de um “grupo
político” estadual cuja gramática é determinada não por filiações partidárias,
mas pela capacidade de agregar seguidores que os apóiam e a quem retribuem
apoio político.

208
Os Ferreira Gomes: elementos constitutivos

A família Ferreira Gomes é de origem portuguesa, porquanto os capitães


Domingos Ferreira Gomes e Bernardino Ferreira Gomes são naturais de Leiria,
em Portugal. Os primeiros nomes do clã, que desembarcaram no porto de Aca-
raú, em 1790, tornaram-se, posteriormente, importantes proprietários de terra
e criadores de gado – atividades que a família acompanharia por muito tempo.
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, os Ferreira Gomes assumiram importantes
funções públicas em Sobral, tornando-se expoentes da política na zona Norte
cearense. Os primeiros prefeitos de Sobral, tão logo a República se instalou no
país, foram Vicente César Ferreira Gomes, em 1890, e o Tenente-Coronel José
Ferreira Gomes, logo em seguida, em 1892. Este último, bisavô de Cid, foi chefe
do Partido Conservador na região (ARRUDA, 2012; FIRMO, 2012).
Os laços familiares foram fundamentais no início da carreira dos irmãos
Ferreira Gomes. Ciro Gomes nasceu em Pindamonhangaba/SP (1957). For-
mou-se em Direito pela UFC. Mais velho dos irmãos, deu início à sua carreira
política como deputado estadual, em 1982, pelo PDS. Recebeu o incentivo do
pai, que já o via como continuador da tradição política da família, tendo-o indi-
cado procurador do município de Sobral na época da sua gestão como prefeito
(FIRMO, 2012). Ciro atende aos desejos do pai, já contando com experiência
em outras campanhas e com uma razoável formação jurídica, após tentar dis-
putar a vice-presidência da UNE, em 1979. Nesse período, a família integrava o
"grupo cesista", liderado pelo então governador César Cals.
Nas eleições de 1982, Ciro Gomes fica na suplência, mas assume quase to-
do o mandato, vindo a se eleger de fato em 1986, pelo PMDB, no mesmo ano
em que Tasso Jereissati e o grupo de empresários por ele liderado chegam ao
poder no Ceará. Nesse momento, Ciro se torna líder do primeiro governo das
mudanças e inicia uma relação duradoura com o governador Tasso Jereissati,
estabelecendo uma ligação que se tornaria determinante para a ascensão do
grupo de Sobral. Em 1988, Ciro é indicado para concorrer à prefeitura de For-
taleza, ao mesmo tempo em que o irmão Cid ingressava na vida partidária,
disputando o cargo de vice-prefeito de Sobral, na chapa do padre Zé Linhares.
Enquanto Ciro se consagrava prefeito de Fortaleza, numa das eleições mais
disputadas da história da capital cearense, Cid, por uma pequena margem de
votos, experimenta a sua primeira derrota para Zé do Prado, uma das princi-
pais lideranças de Sobral (FIRMO, 2012).
Cid Ferreira Gomes nasceu em Sobral/CE (1963). Formou-se em
Engenharia Civil pela UFC. Apesar de engenheiro, Cid nunca exerceu de fato a
profissão, pois logo após concluir a faculdade, passou a assessorar o irmão Ciro

209
Gomes, despontando como político potencial de uma tradicional família de
classe média cearense. Parafraseando Lasswell (1984), seu sonho parecia estar
voltado para a “direção dos homens”, não para a coordenação de obras,
fenômeno já observado nos tempos da faculdade, quando presidiu o Centro
Acadêmico de seu curso.
Após a derrota em Sobral, Cid foi convidado por Tasso Jereissati para ser
coordenador político regional do Estado do Ceará, constituindo-se um articu-
lador político do governo na região Norte. Na eleição seguinte, em 1990, já no
PSDB, Ciro candidatou-se, por indicação de Tasso, e se elegeu governador do
Ceará. Cid, por sua vez, iniciou a carreira de deputado estadual, tornando-se,
então, líder do PSDB no Legislativo estadual. De 1993 a 1995, assumiu a impor-
tante primeira secretaria do parlamento e, em 1996, aos 32 anos, no segundo
mandato de deputado, foi escolhido, por unanimidade, presidente do Legislati-
vo cearense. Contudo, para compreender a dinâmica do poder dos Ferreira
Gomes, deve-se atentar para a construção da hegemonia do grupo em Sobral.
Historicamente, os grupos políticos brasileiros, antes de conseguir esten-
der sua ação para um raio de influência maior, buscam garantir a hegemonia
sobre um município ou região, ocupando cargos de destaque e negociando seu
apoio eleitoral diretamente com os mandatários estaduais. Esse caminho tri-
lharam os Ferreira Gomes, que, desde meados da década de 1990, garantiam o
domínio ininterrupto sobre a cidade de Sobral, o município mais importante
do Norte cearense. Apesar de outros membros da família já terem ocupado o
Executivo municipal, Cid foi o primeiro a demarcar um espaço de independên-
cia para o grupo.
A campanha de Cid Gomes à prefeitura de Sobral em 1996, ao mesmo
tempo em que chamava a atenção para o valor da tradição de sua família, des-
tacando as ações de seu pai como prefeito e do irmão como governador e res-
saltando que faria Sobral voltar aos tempos gloriosos, colocava-se como repre-
sentante da política moderna, que iria revolucionar a administração da cidade,
assim como Tasso Jereissati e Ciro estavam fazendo no âmbito do estado. Acu-
sava seus adversários, Cândida Figueiredo e Marcos Prado, de legítimos repre-
sentantes do clientelismo político e de grupos políticos atrasados. Dessa forma,
Cid Gomes trazia para a sua campanha elementos do imaginário tradicional e
moderno na política (FREITAS, 2000). Sua coligação agregou lideranças da
esquerda, principalmente do PT, e correligionários do PSDB, fenômeno que
seria repetido futuramente ao administrar o estado.
Após vencer com 63% dos votos válidos, Cid Gomes iniciou a administra-
ção “Sobral no rumo certo”, contando com secretários do PT e do PSDB. Inau-
gurou uma era de grandes transformações, levando muitos moradores a afir-
marem que “Sobral é outra depois de Cid” (FERREIRA, 2013). Entre as ações de
suas duas gestões (1997-2004), destacam-se a instalação da fábrica gaúcha

210
GRENDENE, que chegou a empregar mais de 10.000 mil funcionários, a preser-
vação e o tombamento de prédios históricos, a implantação do Programa Saú-
de da Família, o planejamento urbano e a revitalização do rio Acaraú, a qualifi-
cação dos servidores públicos, o desenvolvimento do polo universitário, a mo-
dernização dos serviços públicos, a reforma do Beco do Cotovelo e, o que é
considerado pela população e membros do grupo como o maior legado de suas
gestões, a qualificação da educação, levando o município a figurar nos índices
nacionais como umas das melhores redes de ensino do país (FERREIRA, 2013).
Ao longo da década de 1990, os irmãos Ciro e Cid Gomes trilharam, apesar
da permanência sempre no mesmo partido, caminhos distintos (CARVALHO e
AQUINO, 2011). Ciro, o irmão mais velho, buscou construir uma carreira naci-
onal, não entrando em conflito com a liderança e planos de Tasso Jereissati no
Ceará. Chegou a disputar duas vezes a presidência da República (1998 e 2002)
e ocupar dois ministérios em períodos distintos. Cid, o mais novo, fez o cami-
nho inverso, articulou apoios no Legislativo cearense, elegeu-se, em 1995,
presidente da Assembleia, por unanimidade, e pavimentou, aos poucos, o ca-
minho que o levaria a concorrer e ganhar a prefeitura de Sobral. Orgulha-se de
ser um homem do interior, tendo sua vida inteira voltada para a política local
(ALCE, 05/04/14). Utilizando famosa tipologia de Weber (2009), os irmãos
demonstram ser lideranças que vivem da política e, até quando não estão ocu-
pando cargos públicos, envolvem-se em articulações partidárias. Utilizam as
redes sociais intensivamente.
Apesar de se apresentarem como políticos de classe média e defenderem
em seus discursos bandeiras progressistas como a transparência dos atos do
Estado, a modernização dos serviços públicos, o aumento dos investimentos
em educação e a redução da miséria, Ciro e Cid não conseguiram, ao longo de
suas carreiras, delinearem programa que servisse para pautar suas decisões.
Ao se comparar sua lógica de atuação com a do grupo do CIC, as diferenças são
enormes. No final da década de 1970, os empresários daquela entidade se reu-
niam para discutir com entidades da sociedade civil uma série de críticas ao
modelo econômico desenvolvido pelos governos militares, a necessidade de
revolucionar a administração pública cearense e o papel do Estado nesse pro-
cesso. Muitos pontos originados nos seminários do CIC foram incluídos nas
ações do primeiro governo Tasso.
A dinâmica do grupo dos Ferreira Gomes segue o caminho inverso. Os ri-
tuais de interação entre os membros ocorrem sempre em períodos pré-
eleitorais e/ou na movimentação que antecede a migração partidária. Não há
uma agenda de discussão com a sociedade civil e as ações são deliberadas na
cúpula e disseminadas nessas reuniões, que guardam um papel básico: o
pragmatismo eleitoral. O grupo dos Ferreira Gomes não se resume a um único

211
partido. Sua organização assemelha-se ao modelo metapartidário dos carlistas
na Bahia.
A influência dos Ferreira Gomes é percebida em várias agremiações. Os
casos do prefeito de Sobral, Veveu Arruda, e do governador Camilo Santana,
ambos filiados ao PT, evidenciam essa lealdade. Por questões metodológicas,
trata-se, aqui, exclusivamente dos partidos que receberam as principais lide-
ranças do grupo. Essas agremiações passaram a encarnar a lógica do grupo e
rapidamente percebem seu número de filiados crescer vertiginosamente. As
lideranças que, circunstancialmente, pertençam a partidos diferentes dos
abraçados pelos irmãos Ferreira Gomes, sofrem pressões vindas de outros
atores, obrigados a lidar diretamente com uma série de constrangimentos.
Assim, oportuno é assinalar a movimentação do grupo em seus principais par-
tidos.
No PDS, partido que substituiu a extinta Arena, a legenda oficial da dita-
dura militar, Ciro Gomes disputou, em 1982, uma vaga para deputado estadual.
Muito mais ligado ao grupo do governador César Cals. No final do mandato de
Gonzaga Mota, Ciro acompanhou o movimento liderado por Tasso Jereissati
dentro do CIC e começou a apoiar o projeto, iniciando uma parceria de longa
duração. Nas eleições de 1986, a política cearense passou por transformações
radicais em todos os setores, construindo uma verdadeira recomposição de
forças. Com um posicionamento bem mais destacado, Ciro, aos 29 anos, foi
escolhido para liderar o governo Tasso na Assembleia, num período de grande
tensão. Com o fortalecimento dos laços entre a família Ferreira Gomes e o go-
vernador, recebeu de Tasso o apoio decisivo para se tornar um político de
destaque, fato que o levaria à prefeitura de Fortaleza em 1988 e ao governo do
Estado em 1990.
No final da década de 1980, surgiu o PSDB, com um grupo de dissidentes
do PMDB, liderado por políticos de São Paulo, como Mário Covas e Fernando
Henrique Cardoso, e do Ceará, agrupando os jovens empresários já no poder.
Acompanhando os passos de Tasso Jereissati, Ciro Gomes e seus aliados migra-
ram para o PSDB em 1988. Exerceu papel de destaque nessa sigla, ocupando o
Ministério da Fazenda no governo Itamar Franco, em 1994. Em 1997, o grupo
trocou o PSDB pelo PPS, após uma série de ofensivas contra o presidente Fer-
nando Henrique Cardoso, que iam desde críticas à equipe de governo, passan-
do por polêmicas envolvendo os cortes de gastos até às privatizações e às rela-
ções internacionais.
No início dos anos 2000, já estava evidente que o mudancismo inaugura-
do por Tasso passava por um período de esgotamento eleitoral. Compreen-
dendo as circunstâncias locais e já se aproximando da lógica lulista, os Ferreira
Gomes começaram a construir uma trajetória de autonomia frente à liderança
de Tasso Jereissati. A partir de 2004, começavam a mostrar autonomia em

212
relação ao grupo de Tasso. Contudo, a relação com a direção nacional do parti-
do se tornou muito delicada, principalmente após o presidente da sigla, Rober-
to Freire, anunciar oposição ao governo Lula. Ocupando o Ministério da Inte-
gração Nacional, Ciro articula a ida do seu grupo, já contando com importantes
prefeituras, ainda em 2005, para o PSB, tradicional partido da esquerda brasi-
leira e um dos apoiadores tradicionais do PT.
O partido, apesar de sua tradição e inserção nos movimentos sociais, não
ocupava cargos de destaque no Estado. Com o ingresso dos Ferreira Gomes,
tornou-se, nos anos seguintes, uma das maiores forças políticas locais. Em
2006, com a chegada de Cid ao governo do Estado, o PSB disputou espaço com
o PSDB, partido ainda hegemônico no Legislativo e nas prefeituras do interior.
Diferente do apoio imediato concedido nos outros partidos, possibilitando uma
movimentação interna sem críticas, o PSB já possuía lideranças de destaque no
estado, a chamada ala histórica, cujo maior representante era o ex-deputado
federal Sérgio Novais.
Presidindo o PSB, Cid Gomes elevou, nas eleições de 2012, a sigla à condi-
ção de maior força partidária do estado, alcançando espaços em todas as regi-
ões e, principalmente, garantindo a prefeitura de Fortaleza. O partido já conta-
va com 40 prefeituras, 10 deputados estaduais e 4 federais, numa dimensão
ainda bem reduzida, se comparada com o peso do PSDB nos governos Tasso.
Em meados da década de 1990, os tucanos ocupavam sozinhos quase todas as
prefeituras e sua hegemonia parlamentar era bem maior, chegando a conquis-
tar, em 1994, 20 cadeiras na Assembleia Legislativa. Isso revelou que a expan-
são do partido do grupo aconteceu paralelamente ao crescimento de siglas
aliadas, expondo uma estratégia de compartilhamento de espaços. Assim, PT,
PMDB e PCdoB tiveram suas representações elevadas na última década.
Em 2013, o grupo deixa o PSB. O fator crucial que desencadeou a saída do
grupo foi de ordem nacional. Eduardo Campos, governador de Pernambuco e
presidente do PSB nacional, se movimentava por sua candidatura presidencial,
entregando os cargos do partido no governo federal. Na reunião da executiva
nacional para deliberar sobre a candidatura de Eduardo Campos e o rompi-
mento com o governo Dilma, Cid foi o único entre os delegados do partido que
votou contra a intenção do dirigente pernambucano. Eduardo Campos exigia a
união do partido em torno da sua candidatura.
A saída encontrada, após dias de discussão, consistiu na ida de todo o
grupo para o recém-criado PROS, sem lideranças expressivas e com bandeiras
ainda a ser definidas. Dessa forma, o grupo migrou em massa para o novo par-
tido, garantindo apoio à reeleição da presidente Dilma Rousseff, ampliando os
espaços em seu favor, passando a contar com lideranças de outros partidos,
mas também aumentando a dependência em relação a legendas da coligação
como o PT e o PMDB. A migração para o PROS foi expressiva: mais de 300 ve-

213
readores, 9 deputados estaduais e 5 deputados federais, passaram a fazer par-
te da nova agremiação, que rapidamente se tornava protagonista no estado. A
partir daquele momento, o PROS assumiu o comando de 66 das 184 prefeitu-
ras no Ceará.
Os estremecimentos com o novo partido se iniciaram na primeira semana
de filiação. As lideranças nacionais barganhavam a ocupação de um ministério
na reforma presidencial ocorrida em fevereiro de 2014. O principal nome a ser
indicado era o de Ciro Gomes, que não aceitou o convite e passou a questionar
publicamente a sanha do seu partido por cargos. Em entrevista ao programa
Roda Viva (30/09/14), Cid criticou uma das poucas bandeiras do partido – a
redução de impostos –, demonstrando a não identificação do grupo com a le-
genda que passara a abrigá-los.
Com as eleições de 2016 já bem próximas, o grupo visualizava as dificul-
dades de expansão em um partido com pouca estrutura, relevância e tempo de
exposição na TV. As discordâncias com a cúpula nacional do PROS se avoluma-
vam. Cid e Ciro Gomes criticavam a aproximação do partido com as estratégias
de Eduardo Cunha em confrontar o governo Dilma. Começavam as articulações
para as eleições de 2016. Diante do desgaste do lulismo e da intensa movimen-
tação de Ciro Gomes, cogitou-se, também, a articulação do grupo para uma
empreitada nacional em 2018.
A migração não seria o problema, tendo em vista o histórico de transfe-
rência dessas lideranças. A maior dificuldade encontrava-se na possibilidade
de essas lideranças perderem seus mandatos, preocupação que foi desfeita
com a aprovação da “janela partidária”5. Depois de sondar vários partidos,
acertaram a filiação em massa ao PDT. Em setembro de 2015, o PDT se tornou
a força mais importante da Assembleia Legislativa, com 12 deputados.

Considerações finais

Em linhas gerais, buscou-se, ao longo deste capítulo, fazer uma exploração


teórica e empírica sobre o conceito de grupo político. Os dados mencionados
possibilitam algumas considerações embrionárias, remetendo: a política real, a
existência de um chefe político com liderança consolidada e relações verticais e
horizontais, ao entendimento das características tradicionais da política
brasileira, associadas à modernização das relações políticas, aos partidos como
força secundária, ao uso das formas de comunicação e estratégias de

3
A Emenda Constitucional nº 91 de 2016, popularmente conhecida como “Janela Partidária”, alterou a
Constituição Federal para estabelecer a possibilidade, excepcional e por período determinado, de desfili-
ação partidária, sem prejuízo do mandato. Em 2015, ela aconteceu entre 19/02 e 19/03 e teve a movi-
mentação de 71 deputados.

214
marketing, ao adesismo e conflito com grupos políticos antagônicos. A partir
de grupos situados no Ceará, considerando suas particularidades e os
diferentes contextos históricos, podemos verificar as nuances e atualidade
desse arranjo de poder. A análise do funcionamento do grupo dos Ferreira
Gomes possibilitou uma reflexão in loco dos elementos abordados no capítulo.
A liderança do grupo é exercida por Ciro e Cid Ferreira Gomes – e entre
eles partilhada – que apresentam trajetórias distintas, mas centralizam as
decisões, mantendo o grupo coeso. A maioria de seus membros passou por
uma socialização em famílias políticas. São oriundos da classe média urbana,
políticos profissionais e apresentam um discurso moderno e midiatizado. Não
possuem um projeto político definido. Ganharam autonomia do tassismo a
partir de 2004, quando começaram a traçar suas próprias estratégias. Com a
chegada de Cid Gomes ao governo em 2006, o grupo expandiu
consideravelmente o seu número de membros e, paulatinamente, se tornou
hegemônico na política cearense. Não há exclusividade de domínio, pois
compartilharam espaços com partidos aliados. Passaram por várias siglas,
revelando grande pragmatismo e obtendo sucesso ao subordinar as ações do
grupo à lógica nacional.
Enganam-se quem acredita que esse modelo não tem sentido na
modernidade. Sua lógica já não se assenta na compra de votos ou no curral
eleitoral, contudo, seus líderes souberam se adaptar aos tempos da
redemocratização, sem abandonar o personalismo, a informalidade e a lógica
das redes que percorre esses arranjos. É válido destacar que a categoria de
grupo necessita de um maior aprofundamento teórico e metodológico e que
sua ação pode ser perfeitamente percebida na esfera municipal e em outros
estados brasileiros. Nesse sentido, estudos comparativos e interdisciplinares
seriam muito bem vindos. Ao finalizar essa empreitada, fica a noção de que,
para além da esfera institucionalizada dos partidos políticos, os grupos
ganham destaque na política real e sua formação, atos e decisões não podem
passar despercebidos aos olhos dos estudiosos da política.

Referências

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218
CAPÍTULO 13

O PODER DAS FAMÍLIAS E AS


FAMÍLIAS DO PODER

JOSÉ MARCIANO MONTEIRO1

O poder das famílias a que me refiro está vinculado às famílias do poder.


Estas são as famílias que possuem o poder de decisão a partir da posição que
ocupam no espaço social. Refiro-me as famílias que constituem, no Brasil, o
poder econômico, político, jurídico e midiático. (OLIVEIRA, 2012; MONTEIRO,
2016). Estas que formam o que denominamos de classe dominante. São famí-
lias que detém o poder de decisão e de influência sobre os rumos tomados no
mundo social, a partir das duas principais instituições modernas: estado e
mercado. Se trata de uma configuração de poder que se estabelece por aqueles
que estão bem posicionadas nas principais instituições e instâncias de decisões
da sociedade, quer seja no estado ou no mercado. Famílias que, historicamente,
estiveram posicionadas nos melhores (e bem pagos) cargos da “república”2. Os
poderes de tais famílias se materializam em pessoas com nomes e sobrenomes.
As famílias do poder ocupam posições estratégicas no estado e no mercado por
possuírem volumes expressivos de capitais (econômico e político-familiar
fundamentalmente). Estes capitais, acumulados tem possibilitado o exercício
do controle numa variedade de instituições.

1 Doutor em Ciências Sociais e Professor Adjunto I da Universidade Federal de Campina Grande –


UFCG. Coordenador do Mestrado em Sociologia em Rede Nacional – PROFSOCIO/UFCG/CDSA.
Coordenador e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Elites, Famílias e Desigualdades (NEFA-
DE/CNPq). Pesquisador do Grupo Antropologia da Politica, Cultura Midiática e Praticas Politicas.
Pesquisador do Núcleo de Estudos Paranaense (NEP/CNPq). Atua e tem estudado problemáticas
relacionadas as Elites e Familismo; Genealogia e Poder; Poder Local e Processos de Dominação;
Democracia e Desigualdades. E autor do Livro: A Politica como Negócio de Família: para uma
sociologia politica das elites e do poder politico familiar, publicado pela Editora LiberArs, São
Paulo, 2016. Além de contribuir com vários artigos para livros publicados no país.
2 A palavra “república” está entre aspas devido ao padrão nepótico pelo qual esta tem se construí-

do, afastando, assim, o sentido de bem comum, tendo em vista o caráter privatista e de privilégios
pelos quais poucas famílias se apropriam das instâncias e instituições políticas no Brasil.

219
No dia 17 de abril de 20163, por exemplo, se tornou visível o poder que
tais famílias exercem, a centralidade que elas assumem no parlamento e o
poder de decisão que possuem. Poder que se expressou na retirada de uma
presidente legítima, eleita pelo voto popular, mas que, por não compactuar
com os interesses dos grupos familiares dominantes, foi destituída do cargo,
por meio de uma articulação entre as poderosas famílias que compõem o
grande capital (as que perfazem 0,01 %, correspondendo aos super ricos) e as
que por elas foram significativamente financiadas. Ou seja, estas que também
se situam no topo da riqueza do país, controlando regionalmente os meios de
produção simbólica de dominação, perfazendo a denominada grande mídia,
que, atrelada a agentes bem posicionados no poder judiciário, pautam a agenda
e a construção social da “opinião pública”.
Noutros termos, parte significativa dos pertencentes àqueles que perfa-
zem o extrato de até 1% mais rico da sociedade construíram e legitimaram a
narrativa do golpe de 2016, sob o consenso da ampla maioria da classe média.
Esta que, em relação à maioria dos brasileiros que sobrevivem da renda exclu-
siva do trabalho e dos benefícios sociais, ainda ocupam uma posição privilegi-
ada numa sociedade desigual como a brasileira. A classe média que, não sendo
dona dos meios de produção, se encontra na fração de 1 % mais ricos do país,
foi às ruas com a “cabeça feita” e os cérebros dominados pela narrativa de que
a corrupção é o principal problema do Brasil e que tal fenômeno, decorria,
portanto, de um partido. O ódio de classe tornou-se, nesse sentido, as lunetas
pelas quais a classe média fez a leitura dos escândalos de corrupção. Não con-
seguindo, assim, visualizar que existe uma fatia muito pequena da sociedade
de famílias poderosas que ditam as agendas e camuflam a corrupção substan-
tiva que alimenta o sistema financeiro, por meio de juros e sonegação de im-
postos, muitas vezes legalizada e amparada pelo poder judiciário.
As manifestações, por exemplo, a favor do impedimento da presidente
Dilma Roussef, no auge do protesto, de acordo com pesquisa do Data Folha
eram significativamente compostas por pessoas brancas e com a faixa salarial
entre 5 e 20 salários mínimos4, o que as situam muito distantes dos milhões de
brasileiros que sobrevivem do trabalho e da venda deste em troca de salário
mínimo. Não perceberam que o principal problema do Brasil ainda continua
sendo a abissal desigualdade de renda e de acesso aos bens e serviços presta-
dos pelo Estado e que, a lógica dos privilégios para a alta casta do sistema judi-

3 Processo de Impeachment Dilma. Disponível em http://g1.globo.com/politica/processo-de-

impeachment-de-dilma/noticia/2016/04/camara-aprova- prosseguimento-do-processo-de-
impeachment-no-senado.html. Acesso 29. Setembro. 2017.
4O perfil dos manifestantes na avenida paulista. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/03/1749640-protesto-cresce-mas-manifestante-
mantem-perfil-de-alta-renda.shtml. Acesso 30. Setembro. 2017

220
ciário, do legislativo e do executivo, ainda constitui um óbice à democracia e a
construção de uma sociedade justa e igualitária pautada em valores republica-
nos em sua acepção histórica.
Dito em poucas palavras, as famílias do poder são aquelas posicionadas
no topo da pirâmide; as que recebem os melhores salários da república, além
de outros expressivos auxílios que lhes garantem se constituir na classe abas-
tada e, por consequência, aquela que sobrevive dos privilégios produzidos pelo
estado e de rendas oriundas do capital. Estes grupos familiares e os pertencen-
tes à classe política dominante, muito dificilmente conseguiriam se reproduzir
e se manteriam no poder sem a magia que se estabelece pela crença difundida
na superioridade moral e na ideologia do mérito incorporada à classe média,
que tem permitido o consenso e a legitimação das práticas de usurpação da
riqueza nacional, por meio de um sistema fortemente ideológico de dominação,
mantido pelos que perfazem os 0,01%, alicerçado na ideologia do mérito e da
concorrência entre os indivíduos.
O último relatório da organização Não-Governamental britânica Oxfam
destaca que seis bilionários mais ricos do país detêm a mesma riqueza e o pa-
trimônio correspondente aos 100 milhões de brasileiros mais pobres. O ran-
king da “Forbes 2017”5, por sua vez, apresentam os três irmãos, herdeiros de
Roberto Marinho – dono das organizações Globo, parceira do Golpe de 1964 e
arquiteta midiática do golpe de 2016 – João Roberto Marinho, Roberto Irineu
Marinho e José Roberto Marinho, com uma fortuna de 10,76 bilhões de reais,
cada, o que os colocam entre as seis maiores fortunas do país. Soma-se, a isso, o
entendimento da Suprema Corte do país – STF, que acabou com o teto consti-
tucional e liberou os supersalários6 para aqueles que acumulam dois empregos
públicos, tornando, assim, o céu o limite.
Esta decisão é tomada pela maioria do Supremo Tribunal Federal - STF
num contexto de profunda crise econômica, política e institucional, em que
milhões de pessoas adentraram as estatísticas do desemprego, e que as dispu-
tas entre os poderes, que constituem a frágil “república” brasileira, se tornam
visíveis. Somam-se a isso, as denúncias de corrupção, envolvendo todos os
poderes da “república” (incluindo o Judiciário e o Ministério Público), que pas-
sam a ser escandalizados por envolvimento de alguns operadores do sistema
judiciário (Juízes, desembargadores e promotores) por receberem quantias
que ultrapassam os limites do teto constitucional, como foi o caso, por exem-
plo, do Juiz Mirko Vincenzo Giannotte, titular da 6ª Vara de Sinop, em que seu

5Os brasileiros mais ricos de 2017. Disponível em https://exame.abril.com.br/negocios/estes-

sao-os-brasileiros-mais-ricos-de-2017-segundo-a-forbes/ Acesso. 29. Setembro. 2017.


6STF permite salário acima do teto constitucional. Disponível em
https://g1.globo.com/politica/noticia/stf-permite-salario-acima-do-teto-constitucional-em-caso-
de-acumulo-de-cargos.ghtml Acesso. 29.setembro.2017.

221
contracheque bateu em R$ 503.928,79 no mês de julho7. Isto num país em que,
aproximadamente, 13,5 milhões de brasileiros encontravam-se na situação de
desempregados8. Nesse sentido, o que há em comum entre tais agentes, per-
tencentes a tais famílias do poder? O que há em comum com esta fração de até
1% mais ricos? A que família pertencem? Quais são os sobrenomes? O que os
unem em termos de disposições e comportamentos? A que estrato da socieda-
de pertencem? Que lugares frequentam? O que consomem?
Estas questões nos ajudam a pensar as estratégias de reprodução dos pri-
vilégios por aqueles que ocupam posições privilegiadas nas instituições públi-
cas e privadas no país, através da família, bem como nos ajuda a identificar
objetivamente as famílias que formam a classe dominante no Brasil.
Este texto, portanto, pretende 1) Identificar as “elites” que constituem a
classe dominante no país; 2) Tecer alguns apontamentos sobre como a classe
dominante se reproduz e mantém os privilégios no Brasil; e 3) Exemplificar
estruturas de poder a partir das famílias do poder, tendo como recurso meto-
dológico à genealogia; e, por último, nas considerações finais, destacar o pro-
cesso de oligarquização que vem ocorrendo no país.

1. “ELITES” que formam a classe dominante no Brasil

No Brasil a classe dominante se constitui e se materializa, de forma rela-


cional, por meio de quatro “elites”: 1) “elite” do capital econômico – aquela que
majoritariamente dita às regras da economia e do mercado, por meio da apro-
priação do estado e da riqueza nacional; 2) “elite” política (parlamentar e exe-
cutiva) – a que historicamente mantem relação com a “elite” do capital econô-
mico e atua com esta e, em certo sentido, também para esta, muitas vezes, no
interior do congresso nacional, via aprovação de projetos Lei, que lhes benefi-
ciem; 3) “elite” da grande mídia (concessão estatal)– nacionalmente controlada
por pouco mais de cinco famílias – e que exercem enorme poder no que tange a
fabricação da “opinião pública” e na produção de agendas para o parlamento e
setores do judiciário. Trata-se de poderosos grupos familiares, que atuam na
relação e com os agentes das poderosas famílias situadas nas principais insti-
tuições do mercado e da política regional. A “elite” da grande mídia constrói
diuturnamente percepções e concepções de mundo que legitimam práticas e
interesses da classe dominante; e 4) “elite” de toga – que, historicamente, legi-
tima a prática (da elite do capital econômico e da elite política), construindo

7Corregedoria suspende salário de juiz que recebeu mais de R$ 500 mil. Disponível em

http://odia.ig.com.br/brasil/2017-08-16/corregedoria-suspende-salario-de-juiz-que-recebeu-
mais-de-r-500-mil.html. Acesso 30.Setembro. 2017.
8Desemprego fica em 13,7 mihões. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia

/desemprego-fica-em-137-no-1-trimestre-de-2017.ghtml Acesso. 29. Setembro.2017.

222
pela narrativa jurídica o véu da legalidade, práticas injustas, porém legais,
diante do sistema de tributação que privilegia consumo em detrimento da
herança, lucros e dividendos e das grandes fortunas.
Estas “elites” formam a classe dominante (em sua fração política e eco-
nômica) no país. A classe que detém o controle do maior quantum de capital
econômico e riqueza nacional, constituídas pelas famílias dos banqueiros, do-
nos da mídia, donos das grandes extensões de terras – do agronegócio –, das
grandes empreiteiras e de outras grandes empresas de exportação. Empresas
controladas por famílias, como é o caso da JBS, empresa do setor alimentício,
que tinha a frente de seus negócios, até bem pouco tempo os irmãos Wesley
Batista e Joesley Batista, filhos daquele que traz as iniciais da empresa José
Batista Sobrinho9, que recentemente assumiu o comando dos negócios, pós os
filhos serem “presos, indiciados pela polícia federal pelos crimes de manipula-
ção de mercado e uso indevido de informação privilegiada, com o agravante de
abuso de poder de controle e administração”10.
As famílias do poder, quase sempre, agem de forma orgânica e em rede.
Seus interesses de classe se coadunam quando os privilégios são postos em
questão. O movimento por elas realizado se dá no sentido da proteção dos
privilégios. Isto se torna mais perceptível quando parlamentares tentam em-
placar projetos-lei que inviabilizem, por exemplo, privilégios do poder judiciá-
rio. E vice-versa. Os interesses que permeiam as ações dos indivíduos perten-
centes a estas “elites” se coadunam legitimando a “elite de rapina” que por
meio da “taxa de juros drenam nossas riquezas, numa verdadeira rapinagem
sem que tal ação seja considerada crime ou tipificada como corrupção” (SOU-
ZA, 2016, p. 113).
Os estudos de pesquisadores como Hoffmann (1998), Cattani & Oliveira
(2012), Piketty (2013), Medeiros, Souza & Castro (2015) e Souza (2016), tem
destacado a brutal concentração de renda no topo da pirâmide. Todavia, não
tem levado em consideração, ainda, a variável família, como central às análises.
As análises, quase sempre, se concentram na unidade “indivíduo”. Isto, em
grande medida, devido aos dados disponibilizados pela Receita serem catalo-
gados a partir das informações da Tabela de Imposto de Renda, por meio do
CPF de cada individuo. Tenho como hipótese que se agruparmos as declara-
ções a partir da unidade contida no grupo familiar, das famílias do poder, te-
remos uma concentração de renda ainda mais gritante. As pesquisas realizadas

9 Saiba quem é Wesley Batista, um dos donos da JBS, preso pela PF. Disponível em

http://veja.abril.com.br/politica/saiba-quem-e-wesley-batista-um-dos-donos-da-jbs-preso-pela-
pf/ Acesso. 30. Setembro. 2017.
10 Joesley e Wesley Batista são indiciados pela PF por suspeita de crime financeiro. Disponí-

vel em http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-09/joesley-e-wesley-batista-sao-
indiciados-pela-pf-por-suspeita-de-crime. Acesso. 01.outubro.2017.

223
por Canêdo (1997), Oliveira (2001, 2012, 2015), Goulart (2014), Monteiro
(2016), Vanalli (2013), nesse sentido, tem contribuído para desvendar a con-
centração histórica de poder político e econômico das famílias do poder.
Estas pesquisas se complementam ao denunciar as formas de concentra-
ção de poder e riqueza, ao tempo que apontam para a construção de uma
agenda de pesquisa que tome a reconstrução genealógica destas famílias. As-
sim, o entendimento da configuração destas quatro “elites” – que formam a
classe dominante no país – e a reprodução dos privilégios, perpassam, em
grande sentido, pelas estratégias desenvolvidas por estas famílias do poder, no
que tange às relações que estabelecem historicamente com o estado e o mer-
cado.

2. FAMÍLIA, REPRODUÇÃO DE CLASSE E PRIVILÉGIOS NO BRASIL

A família como unidade de análise produz e reproduz algumas estratégias


que podem ser apontadas para a reprodução dos privilégios. O mapeamento
das posições dos indivíduos pertencentes às famílias do poder no aparelho de
estado e nas empresas do mercado sinaliza para a constituição de uma rede
muito bem articulada de poder e riqueza. As estratégias de reprodução e per-
manência – de geração a geração – de herdeiros das famílias do poder em car-
gos na alta burocracia e no controle de cargos das grandes empresas do mer-
cado constituem práticas fundamentais para a manutenção e ampliação dos
diversos tipos de capitais construídos, acumulados e transmitido pelo grupo
familiar. Soma-se a isso, algumas lógicas e práticas que são desenvolvidas pelas
famílias do poder que tem possibilitado, mesmo em sociedades democráticas,
garantir a permanência de privilegiados grupos familiares – ao longo da histó-
ria – ocupando os principais postos e acumulando riqueza e poder, impossibili-
tando a ascensão daqueles que são desprovidos dos capitais em disputas. Tra-
ta-se de estratégia utilizada pela classe dominante e que, portanto, tem permi-
tido a manutenção, permanência, transmissão e reprodução do poder, a partir
das famílias do poder, são elas:

a) A lógica familiar da empresa – Grandes empresas poderosas


famílias. O que tem permitido a concentração de riqueza e poder sobre
controle de poucos indivíduos. Como exemplo tem-se, no Brasil, as
famílias: Odebrecht, Marinho, Setúbal, Moreira Salles, Batista
Sobrinho, Gerdau, Camargo Correia, Andrade Gutierres, Diniz, Moraes,
Malucelli, dentre outras.

a) A lógica do nepotismo – Familiares atuando em diversas instituições


e garantindo o acesso a informações privilegiadas nos altos poderes da
“república”. Trata-se de uma lógica em que os indivíduos atuam por

224
meio de uma teia de relações, ou mesmo, redes de relações nepóticas,
que se instauram a partir do parentesco. Indivíduos que atuam, por
assim dizer, por meio de posições estratégicas ocupadas na alta
burocracia estatal e em cargos eletivos. Além do nome de família o que
há em comum é o habitus de classe a que pertence;

b) A lógica do matrimônio – A importância que assumem os eventos,


jantares, viagens, congressos, dentre outros. Pessoas pertencentes à
mesma classe e grupos econômicos, frequentam os mesmos espaços, e,
por conseguinte, casam-se, quase sempre, entre si, ou seja, com
indivíduos pertencentes ao mesmo universo e da mesma origem e
posição social, o que tem permitido ao unir-se pelo matrimônio, unir-
se os patrimônios;

c) Sucessão patrimonial e a lógica da herança entre os ricos – Lógica


essencial para a transmissão da riqueza e do poder de uma geração a
outra. Heranças materiais e simbólicas são transmitidas pelo grupo
familiar. O destino dos herdeiros das famílias do poder são traçados no
“berço”. O destino vem do berço, a origem social como condição para o
acúmulo de riqueza. Nascer em uma destas famílias do poder é saber
que não é o “mérito” que lhes garantirá a ascensão. Esta é uma
condição dada ao nascer, já nasce ascendido, destinado a ocupar
posições estratégicas e de comando, quebrando, assim, todas as falsas
ilusões de que a condição para se tornar rico é pelo trabalho e pelo
“mérito”;

d) Escolarização das elites – A escola funciona como um dos locus


estratégico de construção, transmissão e reprodução dos valores das
classes e das frações de classes. Os filhos das elites escolarizam-se em
espaços construídos especificamente para eles – nas denominadas
escolas de elites e para as elites, ou seja, para os eleitos,
aprioristicamente falando. Nestes espaços, reforçam-se e constroem-
se habitus de classe, as matrizes de percepções e ações que orientam o
agir dos indivíduos pertencentes às famílias do poder, além de
construir redes duráveis de relações – amizades, sociedades
empresarias – que ultrapassam o espaço escolar.

e) Evasão fiscal e Redução de alíquotas fiscais aplicadas a pessoas


jurídicas – Grandes empresas e conglomerados maximizam seus
lucros pagando menos impostos. Fazem isso, usando paraísos fiscais
ou fazendo com que os países concorram uns com os outros na oferta
de incentivos e isenções fiscais e de alíquotas tributárias mais baixas 11;

11Uma economia para os 99% Disponível em https://www.oxfam.org.br/sites/default/files

/economia_para_99-relatorio_completo.pdf. Acesso. 01.outubro.2017.

225
f) Sonegação de Impostos e Compras de parlamentares: Pagar o
mínimo possível em impostos é uma estratégia fundamental daqueles
que formam a classe dominante. Para esses fins, usam uma rede global
secreta de paraísos fiscais ativamente, como revelado pelos chamados
Panama Papers e outras fontes. Os países competem para atrair os
super-ricos, vendendo sua soberania. Muitos dos super-ricos também
usam seu poder, influência e relações para influenciar círculos
políticos e garantir que as regras os favoreçam. Os bilionários do Brasil
fazem lobby para reduzir impostos.12

É, nesse sentido, e por este sentido, que o espírito e corpus de família se


tornam essenciais para a realização de ações e práticas que favorecem a con-
centração de poder político e riqueza. As pesquisas sobre famílias do poder
desenvolvidas por (Oliveira, 2001; Monteiro, 2016, Vanalli, 2014, Goullart,
2014) tem destacado como agentes pertencentes a tais famílias atuam em va-
riadas instituições por meio de uma consistente teia de nepotismo (OLIVEIRA,
2012) muito bem articulada que perpassam pelas quatro “elites” destacadas,
formando, assim, um corpus orgânico da classe dominante no país.
A concentração de poder e riqueza perpassam por grupos que possuem
disposições interiorizadas muito próximas; saberes e práticas (código de lin-
guagem restrito) que permitem acessar as instituições do estado e do mercado,
por meio de práticas, muitas vezes, ilícitas, mas que, mascaradas e legitimadas
pela linguagem jurídica, transformam-se em práticas lícitas.
Atuar nas instituições do estado e do mercado, pertencendo entre a fatia
de 1% a 0,01 mais ricos do país, permite, a partir da posição que os sujeitos
ocupam, ter acesso restrito a bens produzidos socialmente, que, muito dificil-
mente, as classes pobres terão. O espaço de formação destas elites – a exemplo
das escolas – são completamente diferentes das escolas, em que se forma a
maioria dos brasileiros oriundo das classes populares. Tem-se, assim, uma
formação voltada para os valores da classe dominante. Controlam e internali-
zam, sobretudo, códigos específicos do grupo. Inserem-se em espaços de soci-
abilidades, a partir da posição social, típicos da classe a que pertence. Cons-
troem redes duráveis de relações, participando de eventos, festividades, via-
gens, congressos, feiras de negócios típicos da condição oportunizada pela
classe na qual estão inseridos. O que fortalece a construção de laços que refor-
çam os vínculos e permitem, por assim dizer, a construção das relações de
conhecimento e reconhecimento, que alimentaram a construção social dos
casamentos entre os indivíduos pertencentes ao estrato social.13

12Uma economia para os 99% Disponível em https://www.oxfam.org.br/sites/default/files

/economia_para_99-relatorio_completo.pdf. Acesso. 01.outubro.2017.


13 Esta classe dominante a que nos referimos, segundo o economista, Marc Morgan Milá, em entre-

vista a Folha de São Paulo, refere-se objetivamente ao grupo de indivíduos que formam 1% mais

226
Estes indivíduos pertencem às famílias do poder, situados no conjunto
que formam estatisticamente 1% mais rico do país. São indivíduos que, de
acordo com a posição social que ocupam no espaço social, estudam e comparti-
lham valores e percepções de mundo aproximadas. Possuem tempo livre para
se dedicar aos denominados “cursos de elites”, que, se anteriormente se res-
tringia aos cursos de medicina e direito, atualmente passam também pelos
cursos de administração e economia, além dos MBA, cursos que darão susten-
táculos, para prosseguirem administrando os negócios da família. E, no caso
específico de direito, para ocuparem os melhores cargos na alta burocracia
estatal (órgãos de controle do Estado e no poder Judiciário). O que leva, muitas
vezes, a crer que esta inserção se deve ao “mérito”, como se aqueles – a maioria
dos brasileiros – que dividem seu tempo entre o trabalho e o estudo – não
conseguissem alcançar tais postos em decorrência do demérito. (CATTANI,
2012). Assim, não atentam que, além das condições materiais e objetivas de
existência, acessar cargos, da alta burocracia estatal, requer tempo e uma rede
de relações extremamente sólida, requer, especificamente, o uso do capital
familiar, econômico e cultural, além, claro, da aquisição de outros capitais es-
pecíficos. Algo que se torna difícil para aqueles oriundos das classes populares.
Esta lógica dominante, em tempos neoliberais, camufla a profunda desi-
gualdade de acesso e de oportunidade, produzida socialmente, numa socieda-
de, conforme salienta Jessé Souza (2016, p. 119), em que “70% das pessoas não
possuem privilégios de qualquer espécie”. A lógica histórica montada e cons-
truída pela classe dominante (constituída por essas quatro “elites”) é uma
lógica de reprodução dos privilégios, por meio de estratégias montadas pelas
famílias do poder, que atuam no mercado, drenando nossas riquezas e a força
de trabalho de milhões de brasileiros. Estas quatro “elites” agem permeadas
por valores e práticas que tem permito a prevalência da lógica dos privilégios
sobre a lógica do direito e do acesso igualitário normativamente aos bens soci-
almente produzidos. O “nascer” torna-se uma condição, senão a condição, por
excelência, para o “destino”. Um “destino” que se define ao nascer, um destino
que vem de berço.
No legislativo, por exemplo, as votações, quase sempre, são para benefici-
ar, os interesses daqueles que “financiaram suas campanhas eleitorais”, ou
seja, a “elite” política em prol da “elite” do capital. Para isso, até bem pouco
tempo, agentes da “elite” de toga, tinham o entendimento e passaram a argu-

ricos. Este grupo tem cerca de 1,4 milhão de pessoas, com renda anual a partir de R$ 287 mil; e ao
grupo que corresponde a 0,1% mais rico reúne 140 mil pessoas com renda mínima de R$ 1,4
milhão. A brutal concentração se expressa quando se observa que a renda média anual de toda a
população é de R$ 35 mil. O que demonstra a alta concentração do capital em poucos indivíduos,
conforme: Desigualdade no Brasil é escolha política, diz economista. Disponível em
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/09/1921236-desigualdade-no-brasil-e-escolha-
politica-diz-economista.shtml. Acesso. 03.Outubro.2017.

227
mentar que o financiamento das campanhas se realizavam por meio de “doa-
ções” legais. Como se as “doações” não alterassem, mesmo dentro da legalida-
de, as disputas, tornando-as desiguais, para aqueles que concorriam sem o
recebimento delas. A “elite” de toga que aceitou durante muito tempo as “doa-
ções” como legal e justa é a mesma que, por meio de alguns de seus operado-
res, fecha as portas para os pobres e abre janelas, concedendo habeas corpus,
para os privilegiados que a este poder recorre, quando pertencentes às famí-
lias do poder, num ritual de exclusão/discriminação, segundo a fronteira de
classe, de rendimentos e de saber. Estas fronteiras de ação têm transformado o
sistema judiciário brasileiro, no mundo prático, em um sistema seletivo e pro-
motor, muitas vezes, de injustiça. Tem se configurado em um sistema propor-
cionalmente mais caro para os mais pobres, quanto ao acesso e, contraditoria-
mente, um dos mais caros do mundo quanto à manutenção das regalias e privi-
légios da “elite” de toga. No executivo e midiático, portanto, seguem os padrões
de controle da representação político-familiar e da seletividade da notícia, que,
ao invés, de formar, deforma pela parcialidade e a forma distorcida pela qual
difundem as informações.
Assim, a análise sobre a classe dominante, perpassa pelo mapeamento das
famílias do poder. A identificação, com os nomes, sobrenomes, CPF, patrimônio
e renda dos agentes. Ou seja, perpassa pela resposta às quatro questões, fun-
damentalmente: Quem são? Como vivem? Como construíram o patrimônio? E
como mandam (como operam a dominação)? Tais questões para serem res-
pondidas necessitam do recurso à história e a genealogia, como recurso capaz
de desvendar e compreender períodos de longa duração de atuação da classe
dominante. Isto se dá por meio do levantamento dos “nomes” e dos “sobreno-
mes” dos indivíduos pertencentes às famílias do poder, reconstruindo genea-
logias e diagrama de parentesco pelos quais possam dar visibilidade as estru-
turas de poder acumuladas e construídas no decorrer da história pelas famílias
do poder.
O recurso à genealogia, conforme destaca Oliveira (2012), é uma ferra-
menta metodológica essencial para mapear e identificar as redes de poder que
são construídas pelas famílias pertencentes à classe dominante. Permite visua-
lizar como as redes de atuação da classe dominante se dão no âmbito das insti-
tuições ditas republicanas (legislativo, judiciário, executivo), bem como nas
instituições de controle (TCU, TCE, Ministério Público, dentre outras) forman-
do, assim, uma complexa teia de nepotismo, que tem se tornado mais visível a
partir dos diversos escândalos de corrupção envolvendo inúmeras famílias do
poder, pertencentes à classe dominante.
A perspectiva analítica que tenho destacado é que identificar pelo nome,
sobrenome, desvendando patrimônio e renda do grupo familiar, transforma o
estudo sobre classe dominante muito mais concreto e objetivo. Ou seja, é se

228
perguntar sobre as origens do grupo familiar? Como construiu o patrimônio?
Que relações, quais atividades, desenvolveram, desenvolvem e/ou mantêm
com o aparelho de estado e com as grandes empresas do mercado e da mídia?
Quais orçamentos controlam? E quais cargos ocupam e há quanto tempo? Res-
ponder estas questões, mapeando e identificando nomes e sobrenomes é dar
carne e osso aos agentes das famílias do poder que formam a classe dominante
no país. A não identificação dos nomes e sobrenomes, dos agentes que detém o
maior quantum de capital, conduz a pensar as instituições modernas (estado e
mercado, por exemplo) como transcendências secularizadas, que agem por si
e per si, como se não tivessem agentes com nomes e sobrenomes, CPF e RG,
seres de carne e osso, operacionalizando e decidindo sobre os rumos destas
instituições.
A chave de compreensão da classe dominante por meio do mapeamento
das famílias, com nome e sobrenome, permite-nos sair das transcendências
secularizadas, que tem se tornado o mercado e o estado em tempos neolibe-
rais. Instituições que têm sido reificadas como entidades quase que “metafísi-
cas”, que se sabe da sua existência, mas não sendo possível visualizá-las, por
meio da complexa rede de relações que se estabelecem pelos que controlam
significativamente a riqueza e o poder. Estado e mercado são instituições que
se materializam em práticas realizadas por pessoas de carne e osso. Mapear
as famílias do poder é também identificar as pessoas que ditam as regras do
mercado e do estado. É identificar a dimensão material e simbólica do poder a
partir do peso do capital que os agentes possuem.
A genealogia, nesse sentido, tem permitido a reconstrução das redes de
atuação desses grupos, das famílias do poder que formam a classe dominante
no país. A genealogia dá-nos o caminho para identificar, com nome, sobreno-
me, quem são os indivíduos que constituem esta fração de a até 1% da popula-
ção que detém o controle das principais instituições. Com o auxílio da estatísti-
ca é possível, por outro lado, dar visibilidade ao volume de capital, recursos e
patrimônio destes indivíduos. Este é o desafio de uma sociologia que se pre-
tende crítica e capaz de desvendar os processos de dominação e a lógica de
reprodução das desigualdades na sociedade brasileira: construir um campo de
pesquisa sobre as famílias históricas pertencentes à classe dominante, dando
visibilidade à concentração de poder e riqueza e, por consequência, denunciando
a reprodução das desigualdades históricas decorrentes da concentração.
Com isso, a genealogia – como recurso metodológico – afasta-nos de uma
compreensão abstrata e, muitas vezes, a-histórica das ações desenvolvidas e
impulsionadas pelas famílias do poder na sociedade. Permite assim, atrelada a
outros recursos (estatística, análise do discurso, pesquisa documental, método
histórico-dialético, etnografia) entender como se dá a reprodução social da
classe dominante em longo período de duração, reconstruindo as redes e as

229
estruturas de poder político e econômico (Conforme tentarei exemplificar no
tópico 3). E, assim, desvendar os sistemas de dominação construídos pela clas-
se dominante, sem cair na abstração de falar em classe, estado e mercado, como
instituições “impessoais” que operam sem sujeitos.
Estes recursos nos auxiliam a pensar os indivíduos, as famílias que per-
tencem e, por consequência, a classe na qual estão situados e posicionados,
mensurando e medindo o peso dos variados capitais acumulados pelos agen-
tes. Com isso, foge-se da falsa aparência – repetida e reproduzida por nossa
linguagem – de que as instituições agem. As instituições não agem sozinhas.
Indivíduos de carne e osso fazem, agem e ditam regras e comportamentos das
instituições. Poucos e privilegiados indivíduos de carne e osso tem conduzido
os destinos de milhões de outros indivíduos, ao ocupar posições estratégicas
no aparelho de estado e no mercado, nas diversas instituições de controle da
frágil “república brasileira”.

3. NOME E SOBRENOME: EXEMPLOS DE FAMÍLIAS DO PODER E O


PODER DAS FAMÍLIAS.

No dia 17 de abril de 201614 se tornou visível à centralidade que as famí-


lias dominantes ocupam no parlamento. Viu-se como as famílias históricas,
pertencentes à classe dominante, realizam as tomadas de decisões no país, por
meio de suas ações/votações no parlamento. Uma rede de televisão – conces-
são pública – controlada por uma poderosa família do poder realizou a cober-
tura da espetacularização do Golpe de 2016. Em nome da “família”, parlamen-
tares pertencentes às tradicionais famílias do poder, realizaram a ruptura. Em
nome da manutenção dos privilégios e da construção de uma agenda que bene-
ficiassem as famílias de banqueiros, (representados pela FEBRABAN), de in-
dustriais (representados pela FIESP) de aglomerados midiáticos, da “elite de
toga” e das oligarquias políticas, realizaram a ruptura, tendo como justificativa
a mesma narrativa que conduziu o país ao Golpe de 1964: o combate à corrup-
ção.
Os parlamentares pertencentes às tradicionais oligarquias e, muitos
deles, financiados pela oligarquia dos “donos do capital” (que se concentram
em poucas famílias: Marinho – organizações globo; Safra – Banco Safra; Morei-
ra Salles – Banco Itaú-Unibanco, dentre outras15) proferiram a palavra “famí-

14Câmara aprova processo de impeachment de Dilma. Disponível em


http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2016/04/camara-
aprova- prosseguimento-do-processo-de-impeachment-no-senado.html. Acesso. 24. Setembro.
2017.
15 Os 10 homens mais ricos do Brasil. Disponível em http://top10mais.org/top-10-homens-

mais-ricos-do-brasil/ Acesso. 07.Outubro.2017.

230
lia” por 151 vezes, quando somada a outras palavras vinculadas a este univer-
so semântico – irmão, neto, pai, filho, mãe, avô – ultrapassaram 233 nas notas
taquigráficas16. Isto talvez não significasse muita coisa se:

1) a unidade colonizadora do país não fosse à família patriarcal, esta


que se constituiu em uma configuração de dominação sobre a
égide do sistema escravocrata, em que o privilégio e a violência,
tornaram-se práticas legitimadoras das ações desenvolvidas
pelas famílias do poder.

2) a grande mídia no Brasil não fosse controlada por


aproximadamente 9 (nove) famílias, que detém o controle de
aproximadamente 70% das informações: 1) Marinho (Globo); 2)
Abravanel (SBT); 3) Civita (Abril); 4) Frias (Folha); 5) Macedo
(Record); 6) Mesquita (O Estado de S.Paulo); 7) Saad (Band); 8)
Levy (Gazeta); e 9) Nascimento Brito (Jornal do Brasil) 17;

3) seis indivíduos não concentrassem a riqueza que a metade da


população do país mais pobre, ou seja, o equivalente a 100
milhões de brasileiros, são eles: Jorge Paulo Lemann (AB Inbev),
Joseph Safra (Banco Safra), Marcel Hermmann Telles (AB Inbev),
Carlos Alberto Sicupira (AB Inbev), Eduardo Saverin (Facebook) e
Ermirio Pereira de Moraes (Grupo Votorantim)18;

4) a política e o Congresso não fosse um Negócio de família;

Levantamento da Revista Congresso em Foco (2017) destacou que dos


513 deputados e dos 81 senadores, 319 deputados, o que corresponde a 62% e
59 senadores, o que corresponde a 73%, têm laços de sangue com outros polí-
ticos. Há, segundo o levantamento, parlamentares com sobrenomes associados
nacionalmente à política, como Maia, Calheiros, Cunha Lima, Caiado, Barbalho,
Richa, Sarney e Magalhães. Estas são algumas das famílias do Brasil que, em
seus estados de atuação, controlam as principais instâncias de poder - prefei-
turas, cartórios, câmara de vereador, tribunais de contas, assembleias legislati-
vas estaduais, executivo estadual, câmara dos deputados, senado, cargos no
sistema de justiça, dentre outras. Nesse sentido, investigar o parlamento ou
qualquer instituição da “república” brasileira, sem a variável família, muito

16 https://conteudo.imguol.com.br/blogs/52/files/2016/04/integra-impeach-17Abr.pdf
17 As 9 famílias donas da mídia no Brasil. Disponível em
http://saraiva13.blogspot.com.br/2014/02/as-9-familias-donas-da-midia-no-brasil.html. Acesso.
13. Outubro. 2017.
18 Seis brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade da população mais pobre.

Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/22/politica/1506096531_079176.html.
Acesso. 12.Outubro.2017.

231
dificilmente entenderá, a lógica de dominação e distribuição de desigualdades
que são resultados da concentração de poder e riqueza no país.
Passados um ano após o Golpe de 2016, o presidente ilegítimo – Michel
Temer – reúne Ministros e os representantes do senado e da câmara dos depu-
tados para uma solenidade de “avaliação” do seu governo. Ao seu lado direito,
o vice-presidente do senado, que passou a ocupar a cadeira de presidente, à
época, o senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), substituindo o presidente
Eunício Oliveira (PMDB). E, ao seu lado esquerdo, o presidente da câmara dos
deputados, o deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ). A simples foto, na figu-
ra 01, não revela, a princípio, o poder que estas duas famílias possuem. Os
representantes Rodrigo Maia e Cássio Cunha Lima, na mídia, muitas vezes, são
apresentados como “jovens idealizadores da política nacional”. O recurso à
genealogia, para tanto, possibilita compreendê-los situados na teia de nepotis-
mo (OLIVEIRA, 2012) pela qual se perpetuam no poder.
A foto da figura 1 é emblemática. Muitos dos parlamentares que estão na
foto, compõem a lista daqueles que constitui um Congresso significativamente
corrupto19. Este que justificou a retirada da presidente Dilma Rousseff pelas
ditas “pedaladas fiscais”, mas garante a permanência de Michel Temer na pre-
sidência, embora denunciado pela Procuradoria Geral da República por vários
crimes, dentre outros o crime de corrupção passiva 20. As pedaladas fiscais
configuravam-se em prática realizada por vários presidentes, e que, a partir da
primeira mulher presidente, é transformada em crime. Na foto da figura 1, os
três que se encontram no centro da imagem (representando o poder executivo,
o presidente ilegítimo Michel Temer no centro; Cássio Cunha Lima – represen-
tando o senado, ao lado direito de Michel Temer; e Rodrigo Maia, ao lado es-
querdo do presidente ilegítimo) foram indiciados por práticas de corrupção.
Tanto o representante do senado como o representante da câmara dos depu-
tados, pertencem às tradicionais oligarquias políticas do Brasil.
A foto da figura 1 esconde as linhagens, o poder, a riqueza e os cargos que
os familiares destes parlamentares possuem. Esconde o poder destas famílias
do poder. Esconde o poder das oligarquias. O poder que tais famílias perten-
centes à classe dominante no Brasil possuem. Esconde a teia de nepotismo na
qual estão situados. A genealogia, por sua vez, evidencia. O diagrama de paren-
tesco permite visualizar a rede de poder e riqueza na qual os agentes estão
inseridos. Com isso, dá-se visibilidade aquilo que não está revelado na imagem.

19 Congresso corrupto salva temer e deixa o brasil governado pelo crime. Disponível em
https://www.brasil247.com/pt/247/brasilia247/309645/Congresso-corrupto-salva-Temer-e-
deixa-o-Brasil-governado-pelo-crime.htm. Acesso. 13.Outubro.2017.
20 Procurador-geral da República denuncia Temer por corrupção passiva. Disponível em

https://extra.globo.com/noticias/brasil/procurador-geral-da-republica-denuncia-temer-por-
corrupcao-passiva-21522676.html. Acesso. 13.Outubro.2017.

232
Aquilo que não está tão perceptível, dito, mas que, pela imagem, já sinaliza
posições estratégicas de poder por parte dos agentes que nela se encontram.

FIGURA 1 – Reunião Ministerial – Balanço de um ano do governo Golpista Michel Temer.

Fonte: Disponível em: http://www.jb.com.br/media/fotos/2017/05/12/627w/em-reuniao-


ministerial-michel-temer-faz-balanco-de-um-ano-de-governo.jpg Acesso. 07.Outubro.2017.

Se pela imagem não é possível traduzir a rede de poder construída pelo


parlamentar Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) e pelo parlamentar Rodrigo Maia
(DEM-RJ). Através do diagrama de parentesco é possível visualizar e represen-
tar a historicidade do poder e os cargos ocupados pelos parlamentares perten-
centes às tradicionais famílias do poder. A título de ilustração, tendo como
recurso metodológico a genealogia, apresentam-se, nas Figuras 2, 3, 4 e 5, os
diagramas de parentesco referente à família Cunha Lima e a Família Maia. Este
recurso, para tanto, pode ser usado com qualquer outra família do poder, per-
tencente à classe dominante no país, e com isso identificar a força política e/ou
econômica que possuem, a partir dos cargos e das posições que ocupam no
aparelho de Estado (nas mais diversas instituições da república – legislativo;
judiciário, executivo, TCU, TCE, Ministério Público, dentre outras) e no merca-
do (empresas, escritórios de advocacia, faculdades particulares, dentre outras)
A figura 2 (abaixo) apresenta o diagrama de parentesco da família Cunha
Lima. A família Cunha Lima tem como reduto eleitoral Campina Grande. Muni-
cípio situado no interior da Paraíba. Mas exerce poder e influência para além
do Estado. Trata-se de uma das famílias do poder (oligarquia) no estado da
Paraíba, que tem inserção e exerce controle sobre o segundo maior orçamento

233
público do Estado: o orçamento do município de Campina Grande. Este muni-
cípio é governado por Romero Rodrigues (PSDB), primo do Senador Cássio
Cunha Lima (PSDB). Romero Rodrigues, por assim dizer, é o prefeito do maior
colégio eleitoral do interior do estado, bem como o maior orçamento público
do estado, ficando atrás apenas para o orçamento da capital do estado, João
Pessoa. Além disso, a família, nesta cidade, também controla o maior e único
cartório de registro de bens e imóveis do município.
O cartório é “propriedade” da família Cunha Lima, um dos seus proprietá-
rios foi o tio do senador, o ex-senador Ivandro Cunha Lima. Este que é irmão
do ex-senador e ex-governador Ronaldo Cunha Lima, pai do senador Cássio
Cunha Lima, conforme é possível visualizar no diagrama de parentesco (figura
2). Além do cartório, expande-se o poder da família Cunha Lima nas nomeações
e inserções de familiares do senador Cássio Cunha Lima no Tribunal de Contas
do estado. Fernando Catão, tio do senador Cássio Cunha Lima, pela linha ma-
terna e Artur Paredes Cunha Lima, primo do senador pela linha paterna, são
dois conselheiros deste órgão de controle das contas públicas no Estado.
O diagrama de parentesco, da figura 2, nesse sentido, é uma representa-
ção “gráfica” do poder de uma das famílias do poder. O poder construído no
decorrer de um processo histórico, na relação que esta família passou a estabe-
lecer com o Estado. Demonstra os principais cargos da alta burocracia estatal
(quer seja eletivo ou não) ocupados pela família Cunha Lima. Algo que por si já
demonstra o peso que exerce esta família nas decisões das várias instituições
do Estado.
A família Cunha Lima (figura 2) construiu ao longo dos últimos setenta
anos uma estrutura de poder político, por meio da rede de parentes e da pa-
rentela, que tem permitido não só se manter como controlar e se reproduzir
em diversas instâncias estratégicas da ação política no Estado. O controle na
década de 1980, por meio do agente político Ronaldo Cunha Lima, do principal
município do estado – Campina Grande – e a representação no senado do seu
irmão Ivandro Cunha Lima, possibilitou o fortalecimento do grupo familiar
que, desde 1935, já possuía relações políticas no estado e controle sobre alguns
municípios na região do Brejo e do Curimataú.
A estrutura de poder político e econômico montada pelo grupo Cunha Li-
ma na prefeitura do segundo maior colégio eleitoral e no executivo estadual,
quando à época teve pai e filho, respectivamente, a frente destes poderes pos-
sibilitou construir uma rede de agentes vinculados ao grupo familiar que vão
do legislativo municipal à câmara federal e ao senado, perpassando pelos prin-
cipais órgãos de controle do estado como o Tribunal de Contas, no qual a famí-
lia tem dois representantes Fernando Rodrigues Catão e Artur Paredes da Cu-
nha Lima, conforme já destacado. O primeiro é tio do atual senador da repúbli-
ca e primeiro vice-presidente do senado, Cássio Cunha Lima (PSDB); e o se-
gundo, primo legítimo de seu pai Ronaldo Cunha Lima.

234
Figura 2: Diagrama de Parentesco Político da Família Cunha Lima (1870-2015)

Fonte: MONTEIRO, 2016.

As estratégias matrimoniais estabelecidas com as famílias do poder tam-


bém se tornam visíveis. A família Cunha Lima possui entroncamento com as
tradicionais famílias que administraram o município de Campina Grande na
década de 1950, o que potencializou o capital político do grupo, ao tempo que
também ampliou o capital econômico. O senador Ivandro Cunha Lima casou-se
com Walnyza Borborema Cunha Lima, pertencente à família do ex-prefeito
Vergniaud Borborema Wanderley que governou Campina Grande de 1935-
1938 e de 1940-1945. O senador Cássio Cunha Lima, por exemplo, foi casado
com Silvia Almeida, neta de um ex-prefeito da cidade e sobrinha de um ex-
deputado estadual, respectivamente Elpídio de Almeida e Orlando Almeida.
Nesse sentido, pela linha materna, o mais novo herdeiro da família Cunha
Lima, o deputado federal Pedro Cunha Lima (PSDB) é bisneto do ex-prefeito de
Campina Grande Elpídio de Almeida (1947-1951; 1955-1959), pertencente a
tradicional família de José Américo de Almeida (ex-governador, ex-ministro de
Estado e ex-senador e membro da Academia Brasileira de Letras) e pela linha
paterna neto do ex-governador e ex-senador Ronaldo Cunha Lima e sobrinho-
neto do ex-senador Ivandro Cunha Lima. O tio de Silvia Cunha Lima, Orlando
Almeida, pai do ex-deputado estadual, Guilherme Almeida, foi o vice-prefeito
de Ronaldo Cunha Lima em 1969, quando este foi cassado. Orlando Almeida,

235
por sua vez, casou-se com Iara Figueiredo, filha do ex-governador e ex-senador
da Paraíba Argemiro de Figueiredo, tio-avô do atual Ministro do Tribunal de
Contas da União – Vital do Rêgo Filho21. Este que, por sua vez é irmão do depu-
tado federal, pela Paraíba, Veneziano Vital do Rêgo Segundo Neto, e filho de
Nilda Gondim, atual suplente do senador José Targino Maranhão e filha do ex-
governador Pedro Gondim (RÊGO, 2008).
Por meio do diagrama (figura 2) vê-se a estrutura de poder deste grupo
familiar. A família Cunha Lima se apresenta como uma das mais poderosas
famílias no estado em termos de inserção de agentes na máquina pública ocu-
pando cargos estratégicos na alta burocracia estatal. Na Assembleia Legislativa
Estadual apresenta dois familiares (Bruno Cunha Lima e Artur Cunha Lima
Filho) e um na Câmara Federal (Pedro Cunha Lima, filho do senador). Soma-se
a isso o fato de ter constituído agentes que historicamente estão alinhados à
família através da parentela. Tovar Correia Lima, deputado estadual, casado
com a filha de um dos conselheiros do Tribunal de Contas, Fernando Rodrigues
Catão, tio do senador. O deputado federal Rômulo Gouveia, o deputado esta-
dual Manoel Ludgério e o vereador João Dantas; além do conselheiro do Tribu-
nal de Contas, Fábio Nogueira. Agentes estes que estão em cargos de represen-
tação nacional estadual e municipal, respectivamente; bem como em órgãos de
controle, o que só amplia o poder e a influência desta família.
Nesta mesma esteira de poder, e sendo uma família, ainda mais poderosa,
se encontra a família Maia, da qual advém o presidente da Câmara Rodrigo
Maia (DEM). A figura 3 é a representação gráfica, por meio do diagrama, da
Família Maia. Os diagramas, correspondentes as Figuras 3, 4 3 5, representam,
o poderio e os ramos desta poderosa oligarquia nordestina, que se expandiu
para outras regiões e estados do país. Trata-se de uma oligarquia que, sendo
constituída em Catolé do Rocha, Paraíba, ultrapassaram as fronteiras deste
estado, expandindo-se através dos diversos ramos parentais. Teruya (2002),
em sua tese, destaca o poderio desta família tomando como análise em seu
estudo um século de poder. Por meio de uma pesquisa minuciosa sobre os
inventários, a pesquisadora demonstra como a herança foi transmitida de ge-
ração a geração aos seus agentes. O diagrama (figura 3), por exemplo, apresen-
ta-nos os ramos desta poderosa família: Lobo Maia, Maia Saldanha, Fernandes
Maia, Vasconcelos Maia, Ferreira Maia, Agripino Maia, Rosado Maia, Maia Suas-
suna e Mariz-Maia.

21 A família Rêgo se configura em outra tradicional família do poder. Oligarquia que disputa a

prefeitura e os principais cargos da república com a família Cunha Lima e a Família Ribeiro. Estas
três são as principais famílias do poder que, atualmente, disputam espaços políticos na Paraíba a
partir do exercício do poder político de Campina Grande. Ou seja, tomando este município como o
principal reduto eleitoral dos grupos familiares. Para um maior aprofundamento ver: MONTEIRO,
2016.

236
Figura 3: Diagrama da família Maia. Os diversos ramos da Família. (1710-1820)

Fonte: TERUYA Apud Monteiro, 2016.

Esta poderosa família expandiu seu poderio e sua influência política para
vários estados do Brasil. Os ramos Rosado Maia e Agripino Maia são extrema-
mente influentes nas decisões no estado do Rio Grande do Norte. Na Paraíba,
os Mariz-Maia, na década de 1990, do século passado, chegaram a ocupar o
governo do Estado da Paraíba, com o herdeiro Antônio Mariz. Atualmente, no
Estado, quem herda o sobrenome e o peso político desta família é o deputado
estadual e presidente da Assembleia Legislativa do estado, Gervásio Maia, co-
nhecido como “Gervazinho” (PSB). A família Maia é, portanto, uma das famílias
do poder no Brasil. Família que, historicamente, possuem indivíduos nas diver-
sas instâncias de poder das principais instituições da “república” e que, portan-
to, exerce influência e controle sobre vários orçamentos públicos em estados
da federação, com destaque os estados da Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio de
Janeiro e, recentemente, o orçamento da Câmara dos Deputados. É, portanto, o
Rio de Janeiro, estado em que Rodrigo Maia foi eleito deputado federal, tendo
seu pai, César Maia, como um dos braços da sua candidatura, juntamente com o
seu sogro Moreia Franco, deputado federal e ministro do governo Temer.
É da geração dos coronéis (Figura 4) que emergiram dois herdeiros que
se tornaram governadores nos estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte,
bem como do Estado do Rio de Janeiro: João Agripino III, o seu irmão Américo
Maia e o seu primo César Maia. A estrutura de poder montada por esta família,
herdeira dos coronéis, ultrapassou as fronteiras territoriais do estado da Para-
íba e continua até a atualidade inserindo agentes nas principais casas legislati-
vas da “república”, chegando, conforme é possível visualizar (na Figura 1),

237
Rodrigo Maia, a ocupar o cargo de presidente da câmara federal e, na ausência
do presidente Michel Temer, a ocupar a cadeira da presidência da “república”.
O domínio que esta família exerceu no período imperial e no período “re-
publicano” fica configurado no poder que exerciam sobre a terra. Família e
terra. Poder e latifúndio. Sobre o latifúndio e a posse de várias fazendas mos-
tra-se sobre qual poder a família passou a se construir uma das oligarquias
mais poderosas do país. Os diagramas (Figuras 2, 3 e 4) representam e de-
monstra como parte significativa dos membros destas famílias possuíam fa-
zendas e eram donos de grandes propriedades. Além disso, uma quantidade
enorme de indivíduos ocupou e continua a ocupar cargos eletivos de prefeito,
deputado estadual, deputado federal, senadores. Além de conselheiros em
Tribunais de Contas, Ministros de Estados, Diplomatas, dentre outros cargos da
alta burocracia estatal.

Figura 4: Diagrama da família Maia. Três gerações de coronéis. (1830-1940)

Fonte: TERUYA Apud Monteiro, 2016.

Embora, na Paraíba, esta família tenha perdido espaço, vê-se que em esta-
dos como Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro ainda continuam “representan-
do a população” nas duas casas de maior poder e representação da “república”.
José Agripino Maia e Felipe Maia, pai e filho, senador e deputado federal, res-
pectivamente, são exemplos da força do capital econômico e político familiar
desta família do poder. Trata-se, portanto, de uma das famílias do poder e de
poder. É uma família que se constituiu na relação direta, e umbilical com o
Estado. Família em que seus agentes ocuparam e ocupam os principais cargos

238
da máquina pública, bem como recebem os melhores salários e “privilégios”
proporcionados. Trata-se de uma “família histórica do poder” que se reproduz
politicamente há mais de séculos e que construiu uma rede duradoura de po-
der e dominação. E que as estratégias matrimoniais se tornaram essenciais,
conforme salienta Teruya (2002) no entrelaçamento entre agentes pertencen-
tes aos diversos ramos e com outras famílias do poder.
A família Maia, na Paraíba, por exemplo, como mencionado, tem como
herdeiro o atual deputado estadual (provável candidato a uma vaga de depu-
tado federal), Gervásio Agripino Maia, neto do ex-governador João Agripino III
e bisneto de João Agripino II e Angelina Mariz Maia. Família Maia-Mariz é uma
das famílias tradicionais do estado, possuindo agentes nos mais variados car-
gos da alta burocracia estatal, atuando no ramo empresarial e em escritórios
de advocacias, além de procuradorias e outros cargos vinculados à área jurídi-
ca.
Gervásio Agripino Maia é herdeiro da família Maia e da tradicional família
Mariz. Na verdade, trata-se da mesma família. O casamento de João Agripino II
com Angelina Mariz é um dos exemplos das estratégias da classe dominante,
conforme destacado acima. Pelo matrimônio amplia-se e reproduz o patrimô-
nio. Para se ter noção do poder desta família: em apenas um período de oito
décadas, apenas no estado da Paraíba, esta família teve três governadores: José
Marques da Silva Mariz, em 1935, na condição de Interventor; três décadas
após, em 1966, seu primo João Agripino III; e, em 1995, Antônio Marques da
Silva Mariz.

Figura 5: Diagrama entroncamento da família Mariz-Maia. (1890-2015)

Fonte: TERUYA Apud Monteiro, 2016.

239
A estrutura de poder montada por esta família pode ser percebida através
das instâncias de poder que os agentes ocuparam e ocupam. José Marques da
Silva Mariz, além de interventor foi deputado estadual e conselheiro do Tribu-
nal de Contas no estado. João Agripino III foi deputado federal, governador,
senador, ministro de estado e ministro do Tribunal de Contas da União. Antô-
nio Mariz, além de prefeito de Sousa e secretário de educação no governo de
João Agripino III, também foi deputado federal, senador e governador do Esta-
do.
Rodrigo Maia (DEM-RJ), portanto, é o símbolo-mor da crescente oligar-
quização da política no Brasil. Sua chegada à presidência da república, quando
se ausentara o presidente Michel Temer, simbolizou o que há de mais atrasado,
em termos político, em nosso país. Simbolizou a chegada de alguém que sem-
pre desprezou o esforço pelo estudo, mas que demonstra na prática a regra de
que para ser representante político no Brasil, precisa-se, fundamentalmente,
de dois distintivos: o capital econômico e/ou o capital político familiar. Estes
estruturam as disputas políticas no país.
Em torno de Rodrigo Maia reúne-se o pertencimento a uma família do po-
der e o poder de uma família. Rodrigo Maia, como já mencionado, é filho de
César Maia, ex-prefeito do Rio de Janeiro, primo do senador José Agripino
Maia, presidente nacional do Democrata - DEM e do Ministro do STJ Antônio
Herman de Vasconcellos Benjamin. Agripino Maia é pai do deputado federal
Felipe Maia (DEM-RN) e primo da também deputada federal Zenaide Maia (PR-
RN), que é irmã do ex-deputado federal Joao Maia (PR-RN) e primos do depu-
tado distrital, ex-diretor geral do senado, Agaciel Maia (PTC-DF). Rodrigo Maia
é casado com a enteada de Moreira Franco, o “angorá”, condenado 22 e indiciado
por diversos crimes, ex-governador do Rio de Janeiro, Ministro Chefe da Secre-
tária-geral da presidência no governo de Michel Temer. Rodrigo Maia é casado
com Patrícia Vasconcellos, filha de Clara Maria Vasconcellos Moreira Franco,
segunda mulher de Moreira Franco. Clara Maria Vasconcellos Torres é filha do
falecido politico e Senador fluminense Joao Batista de Vasconcellos Torres.

4. BREVES CONSIDERAÇÕES

Tomar como objeto sociológico o controle e o domínio das instituições


do estado e do mercado por poucas e privilegiadas famílias (famílias do poder)
é um dos elementos essenciais para compreender a desigualdade no país. O
fenômeno da oligarquização é a configuração pela qual se encontra estrutura-
da a lógica da dominação política no Brasil pela classe dominante. Seis em cada

22Moreira Franco condenado a devolver 2 milhões para o Estado do Rio. Disponível em:

http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,moreira-franco-e-condenado-a-devolver-r-2-
milhoes-para-o-estado-do-rio,70001921528. Acesso. 06.Outubro.2017.

240
dez parlamentares tem parentes na política 23. Isto tem contribuído, dentre
outras variáveis, para a concentração de poder e riqueza e pouca oxigenação
do poder político. Os diagramas deixam evidente esta concentração. Há, em
curso, o fortalecimento do fenômeno da oligarquização do poder político e do
poder econômico e midiático no país. Tais oligarquizações tem se constituído
por famílias, com nomes e sobrenome, que se construíram na relação umbilical
entre as instituições do estado e mercado, e ocupam os principais cargos da
alta burocracia estatal, cargos eletivos e os melhores postos no mercado. São
elas que têm, em parcerias com interesses de poderosos grupos externos, dita-
do os rumos da economia e os destinos de milhões de brasileiros.
A oligarquização é um fenômeno crescente e se constitui a partir daqueles
que estão situados e perfazem os privilegiados agentes pertencentes às famí-
lias situadas em até 1% da população mais rica do país. Estas são, portanto, as
famílias do poder e dos privilégios. Em grande sentido formam as quatro “eli-
tes” que constituem a classe dominante no país. Classe esta composta por famí-
lias de: banqueiros, midiocratas, grandes empreiteiros, grandes proprietários
rurais e urbanos, rentistas, altos funcionários públicos, administradores, exe-
cutivos e burocratas do sistema privado e agora, centralmente, no sistema
judicial, por alguns tipos de magistrados, juízes, procuradores, jornalistas,
comunicadores e marqueteiros, com altíssimas remunerações.
Esta estrutura montada e arquitetada da classe dominante se constitui pe-
las poucas e privilegiadas famílias do poder. As que acumulam riqueza e poder
e que transmitem, por meio de diversos mecanismos, com especial destaque a
herança. Famílias com grandes fortunas que, atuando em parceria – quando
não são a proprietária dos meios de comunicação em seus estados – produz a
ideologia dominante, que é legitimada pela lógica de que a riqueza advém do
“mérito” e do “esforço individual”. Estes tidos como naturais, o que tem permi-
tido e possibilitado, a legitimação e a reprodução perversa das desigualdades
em nosso país. Os mecanismos do aparelho de estado, sustentada pelo arca-
bouço jurídico e alicerçada pela mídia, tem servido para reforçar as dimensões
ideológicas, e permitido o funcionamento e a reprodução dos privilégios em
escala nacional. O Estado brasileiro é modelado de tal forma que a atividade
do poder público – desde a elaboração das leis até a definição e execução das
políticas públicas, é moldado para atender os interesses da classe dominante
(interesses privados) e só de forma residual os interesses coletivos da maioria.

23Congresso um negócio de família. Disponível em http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/


congresso -um negocio-de-familia-seis-em-cada-dez-parlamentares-tem-parentes-na-politica/
Acesso. 29. Setembro. 2017.

241
Curitiba, 18 de maio de 2017.
Palestra proferida no VII Seminário
Nacional de Sociologia e Política da UFPR
(dados e referências atualizados em setembro de 2017)

Mesa redonda: Família e Classes Sociais


promovida pelo NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses da UFPR)

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243
SOBRE OS AUTORES

Alessandro Cavassin Alves


Professor do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE); da
Faculdade São Basílio Magno (FASBAM); e da Secretaria de Estado da Educa-
ção do Paraná (SEED-PR).
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Atua na linha de pesquisa: Sociedade e Estado, instituições e poder político,
família e genealogias.
Grupo de pesquisa: membro do Grupo NEP-UFPR (Núcleo de Estudos Parana-
enses) do CNPq.

Antonio David Cattani


Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
UFRGS.
Doutor em Economia e Desenvolvimento pela Université de Paris Panthéon-
Sorbonne.
Pós-doutorado na Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales (França).
Atua na linha de pesquisa Sociologia do Trabalho, Sindicalismo, Desigualdades
socioeconômicas, Riqueza e Desigualdade.
Pesquisador nível 1-A do CNPq.

Cleyton Monte
Doutor em Sociologia. Professor da Faculdade Cearense e do Unichristus. Pes-
quisador do LEPEM. E-mail: cleytonvmonte@gmail.com

Fernando Marcelino Pereira


Graduado 2009 em Relações Internacionais pela UNICURITIBA.
Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Atua na linha de pesquisa Sociedade e Estado, instituições e poder político,
família e genealogias.

245
Grupo de pesquisa: membro do Grupo NEP-UFPR (Núcleo de Estudos Parana-
enses) do CNPq.

Igor Gastal Grill


Professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), com estágio na École des Hautes Études en Sciences
Sociales (EHESS/FR).
Atua na linha de pesquisa: Relações de poder: elites, participação política e
políticas públicas. Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Elites Políti-
cas e Culturais (LEEPOC). Bolsista Produtividade do CNPq – nível 2.

José Adilson Filho


Possui graduação em História pela Faculdade de Formação de Belo Jardim
(1993), mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco
(2002) e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba
(2011). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual da Paraíba e
professor de história da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Caruaru.

José Marciano Monteiro


Professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Socio-
logia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG). Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG).
Atua na linha de pesquisa: Educação, Escola e Sociedade. Grupo de pesquisa:
Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Elites, Famílias e Desigualdades e
membro do NEP-UFPR (Núcleo de Estudos Paranaenses) do CNPq.

Mônica Helena Harrich Silva Goulart


Professora Adjunta da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
(UFPR).
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

246
Pós-doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Linha de pesquisa: Instituições, poder e cidadania.
Membro do Núcleo de Estudo Paranaenses (NEP-UFPR) e Vice-coordenadora
do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI-UTFPR).

Natália Cristina Granato


Professora do Quadro Próprio do Magistério da Secretaria de Educação do
Paraná.
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Atua na linha de pesquisa: Sociedade e Estado, instituições e poder político,
família e genealogias.
Grupo de pesquisa: membro Grupo NEP-UFPR (Núcleo de Estudos Paranaen-
ses) do CNPq.

Rejane Vasconcelos Accioly Carvalho


Doutora em Sociologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociolo-
gia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coordenadora do LEPEM (Labora-
tório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia). E-mail: rejanecarva-
lho@terra.com.br

Ricardo Costa de Oliveira


Professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
UFPR.
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).
Master of Science in Urban Development Planning - University College of Lon-
don.
Doutor em Sociologia pela Universidade de Campinas (UNICAMP).
Atua na linha de pesquisa Sociedade e Estado, instituições e poder político,
família e genealogias.
Grupo de pesquisa: membro e coordenadora do Grupo NEP-UFPR (Núcleo de
Estudos Paranaenses) do CNPq.

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