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O Diário do Vazio

“Os sofrimentos devem ser superados, e a única forma de superá-los é suportando-os”


-Carl Jung
(15/05/2020)
Meu coração queima, e queima e queima, é uma dor peculiar, que eu sequer sabia que era
possível de existir, eu sinto frio nos meus pulmões, é como se o ar fosse rarefeito, mas essa não é
uma dor fútil, não é uma dor desnecessária, porque, veja bem, eu sempre me culpei por meus
erros do passado, eu sempre me culpei por não ter sido capaz de amar Carlos como ele merecia
ser amado, por não ser capaz de amar o Jeff como ele merecia ser amado, esses sempre meus
principais bloqueios, agora, sofrendo a mesma dor, eu sinto que o Karma coletou seu débito
comigo, agora, eu me sinto livre novamente, portanto, essa dor é necessária, é ela que vai me
libertar de me tornar alguém que eu não quero ser, apesar de ter desejado ser esse alguém por
tanto tempo.

Não, da primeira vez que eu me privei do mundo foi com o coração cheio de raiva e
angústia, pelas pessoas, por mim, pelos meus pais, dessa vez não é por angústia, é para me livrar
dessa angústia, porque ainda que eu me sinta livre, ainda que eu me sinta aliviada, a dor ainda
existe, bem fundo no meu coração, como uma faca que goteja, mas não é meu sangue que caí, é
um veneno negro e cruel que por muito tempo corroeu minha alma, um veneno produzido por
mim mesma, deixe sangrar, deixe queimar, isso vai doer absurdamente, vai ser como ser queimada
de dentro pra fora, dia após dia, mas ao final, só sobrará a Hellem, uma Hellem que sempre quis
vir ao mundo, mas que estava se afogando, morrendo, ela não vai conseguir sair se eu não a deixar
sair sozinha, ela não vai sair sem dor, ela não vai sair se eu atrasar o processo, e essa pode ser sua
última chance de ver a luz, então, eu vou tentar. Eu tenho que tentar, porque, do contrário, meu
sonho estará perdido, porque eu estarei perdida.

Talvez me espere noutra esquina, porta secreta ou nova sina. No céu o sol vai se pondo,
deixando para trás seu flamejante rasto, que lentamente se funde com a fria escuridão da noite,
esfumando-se, fundindo-se, amando-se, uma lenta dança que forma uma tênue e transitória faixa
de céu roxo entre o calor do dia e frio que traz consigo a noite. As sombras dançam no chão,
prontas para tomar de assalto o mundo, mas ainda acuadas com a presença e imponência do grande
astro, que pouco a pouco dá lugar a sua pálida e serena companheira. As árvores tornam-se negras
até onde a vista alcança, a estrada agora aparenta mais longa e melancólica, convidativa aos
demônios, talvez eu mesma seja um deles, pois a noite sempre me atraiu, uma mórbida fascinação
acompanhada de um sombrio desespero tomam conta do meu peito. Mas no céu há uma luz. Uma
pequena luz que resiste às sombras, uma pequena luz que não treme, que não cessa, uma luz que
acompanhará o planeta noite adentro, e que não sumirá enquanto o sol não retornar. Já não há
mais laranja, ou roxo, ou estrada; na terra, só restam as sombras, mas aquela pequena luz
permanece, e permanecerá enquanto a noite durar, é tudo de que preciso, uma pequena luz para
atravessar a estrada na escuridão. Talvez me espere noutra esquina, porta secreta ou nova sina,
mas já não temo minhas sinas, pelo contrário, eu as aceito com a elegância que vem com os anos,
e com a resiliência lapidada após outros golpes passados, hoje sei que sinas são passageiras, e
mesmo a mais profunda escuridão, só precisa de uma pequena luz há milhares de quilômetros de
distância para quebrar seu encanto maligno.

(16/05/2020)

A primeira vez que me apaixonei, ou supostamente me apaixonei, tinha onze anos, eu era
uma garota ainda menor, ainda mais idiota, e com nenhum atributo físico, seja em beleza, seja em
corpo, ele era o melhor amigo do meu irmão, sim, eu estava apaixonada por ele, lembro de não
forçar pensamentos, me lembro de quase morrer quando ele olhava pra mim, de passar mal todas
as vezes que me falavam nele. De admirar sua imagem por horas na minha cabeça, e aí veio
Carlos, um possível substituto ao amor que eu jamais teria, isso foi terrivelmente cruel com ele,
agora eu percebo, depois veio outro, e mais outro, apesar de eu não ter certeza de que eles eram
reais, não tenho certeza de mais nada, e finalmente o último, fui rejeitada muitas e muitas vezes
ao longo da minha vida, sempre atribuindo a rejeição a algum defeito meu, talvez isso fosse uma
espécie de mecanismo compensatório “Se eu fosse um pouco mais bonita, um pouco mais
inteligente, um pouco mais legal, quem sabe ele gostaria de mim”, isso tirava o peso do acaso,
era um conforto pra mim que eu teria uma chance se emagrecesse um pouco, se fosse um pouco
mais bonita, se me vestisse um pouco melhor. Não dessa vez, e provavelmente isso dói ainda
mais. Porque não há absolutamente nada de errado comigo, eu sou bonita, muito bonita, não sou
gorda, não sou chata, não sou idiota, dificilmente você vai achar alguém mais inteligente do que
eu e da minha idade, e com a minha aparência, talvez se procurar bastante, e isso é o pior, porque
não há nada para culpar, simplesmente o não pelo não, e não há nada que eu possa fazer, talvez,
no fundo seja isso o que me incomoda mais, a impotência, o fato de não ter absolutamente NADA
que eu possa fazer que vá me dar o que eu quero, porque não depende de mim em absoluto, as
coisas só são o que são, e não há nada que eu possa fazer para mudá-las, nada além de aceitar esse
sentimento de cabeça erguida e esperar que ele passe, dia após dia, paciente como uma velha
budista, e com o mínimo de dignidade, o que quer dizer, nenhuma mensagem de porquê, não
preciso de mais justificativas, é o que é, e não há eternidade. Paciência, porque nós merecemos
um doce epílogo, somos boas pessoas, e já sofremos o bastante. Coragem, meu querido coração,
coragem, foi necessário uma quantidade muito maior de coragem para se deixar levar, nós já
lutamos o bastante, apenas descanse agora, durma, prometo que tudo vai ter passado assim que o
sol nascer, assim que o sol nascer, seremos nós mesmas de novo. Eu prometo.

Numa cama, uma pequena criança geme e agoniza. Sua face está coberta de sujeira que
se transforma em lama com o suor que escorre de seu rosto. Em seu corpo diversas escoriações e
hematomas tingem seus pequenos membros alvos de vermelho, roxo, marrom e preto. A
atmosfera do ambiente é pesada, a respiração da criança é ofegante, o único resquício de calor
contra o frio cortante do ambiente, e entre gemidos de dor ela sussurra palavras de perdão
enquanto segura uma pequena massa disforme e vermelha em suas mãos machucadas como se
fosse seu único tesouro, ela pulsa lentamente, e a cada novo pulsar ela jorra um pouco de sangue
e a criança cansada geme mais alto, tornando as palavras de perdão quase numa oração por algo
além do que os olhos podem ver, um perdão de alguém que ela sequer sabe quem é, talvez o
próprio perdão.

-Perdão…. perdão…. por favor…. perdão… Médico…. perdão... eu preciso do médico…..

De repente, uma porta se abre, mas ela parece não perceber até que uma voz feminina
quebra o silêncio, antes apenas vencido pelas dores da própria criança na cama. Uma mulher entra
no quarto, com os olhos embaçados a criança apenas vê sua silhueta, e mal escuta as palavras que
saem de sua boca até que a mulher até que ela se sente na cama e toque sua testa com as mãos
frias, ou será que estaria a criança muito quente?

-Oh, minha querida… O que fizeram com você? - Sua voz estava embebida de compaixão e
preocupação. A criança não via nada além dos olhos castanhos e gentis da mulher fizeram soltar
um suspiro, alívio, dor e desapontamento se mesclaram naquela lufada de ar que saiu de sua boca,
não era ela que a criança esperava.

-Perdão… Perdão, por favor, eu peço perdão…. - A mulher sorriu, e a massa vermelha e
dilacerada se moveu um pouco mais com um barulho. A criança se remexeu desconfortável.

-Ora, mas o que é isto? - Com suas últimas forças a criança segurou a massa contra o seu peito,
protegendo-a da única forma que podia, morreria se alguém tocasse nela novamente.

-Não precisa ter medo de mim. - A mulher sussurrou acariciando os cabelos sujos e liguentos da
criança na cama que ainda se agarrava à massa com suas últimas forças, como se agarraria um
homem sedento a um copo de água. - Ora, pelo que vejo em suas mãos, andou brincando com
raposas. Essas cicatrizes estão horríveis, minha querida. - Os olhos da criança se encheram de
vergonha e lágrimas.

-Perdão… eu não devia…. eu fui idiota. - A mulher sorriu maternalmente e levantou-se da cama.
-Onde você vai? - A criança sussurrou desamparada. -Por favor… não vá embora, não quero
morrer sozinha….

De repente, uma luz de lareira se fez no ambiente, e aos poucos ele ficou aquecido pelo
fogo crepitante. Os músculos tensos e doloridos da criança relaxaram quando o ambiente foi
ficando aquecido e mais claro, um formigamento amigável tomou conta de seus sentidos. Alguns
minutos depois a mulher retornou com uma tigela de água quente e uma toalha limpa.
-Eu não vou a lugar algum. - Ela se sentou ao seu lado e usou a toalha para limpar as feridas da
criança.

-Eu fui idiota de brincar com raposas. - A mulher riu mais uma vez.

-Eu sei quem você é. E sei o que fez. - A criança desviou o olhar.

-Então sabe que entrei… ah… entrei em lugares que não deveria.

- Você, minha querida, saiu de batalhas nas quais minha covardia jamais me permitiria entrar, e
você saiu viva, você continua a ser você e por isso sofre, por se recusar a deixar essa pequena
chama de vida nas suas mãos ser consumida pela dor e amargura. Você não tem que pedir perdão
a ninguém.

-Mas….

-Eu sei que você esperava mãos diferentes das minhas cuidando de você, mãos mais habilidosas,
mãos de um médico de verdade. - Ela desviou o olhar do rosto da criança, seus olhos castanhos
perderam o brilho por um momento, a massa nas mãos da criança se apertou. Por fim a mulher
deu um sorriso amaro e continuou com a voz um pouco mais branda e menos confiante. - Sou
apenas uma alquimista, minha querida, muito experiente é verdade, alguns me chamam de
feiticeira, mas a verdade é que não faço feitiços, ou milagres, nem tenho experiência em cura,
mas cuidarei de você, minha criança. Agora descanse, você lutou bem e pelo tempo que pôde…
- A criança soltou um gemido terrível quando a água tocou um ferimento em seus braços que
começava a gangrenar - Calma, minha querida, isso vai doer um pouco, mas descanse, eu irei
cuidar de você, descanse, ainda temos muitas batalhas pela frente.

-Quem… - Ela tossiu terrivelmente, deixando sair de sua garganta algumas gotas de sangue. -
Quem é você? - Ela conseguiu perguntar com o pouco fôlego que conseguiu juntar com o pouco
ar que conseguiu reunir.

-Sou uma velha amiga, você não está mais sozinha. Agora durma, você já lutou o bastante. Eu
não vou a lugar algum. - E antes que a exaustão fechasse de vez suas pálpebras, os olhos da criança
encontraram novamente os da mulher, e dessa vez, ela conseguiu ver seu rosto, aquela não era
uma mulher desconhecida, ela teve certeza absoluta disso antes de ser tomada pela exaustão. A
mulher velou seus sonhos, e limpou suas feridas enquanto entoava uma triste canção sobre
guerreiros, batalhas e perdas. A pequena massa vermelha pulsava ao som da música, em uma
harmonia perfeita, em uma calmaria que ela jamais havia encontrado entre as raposas.

(20/05/2020)
A respiração e a combustão, ambas são a liberação de energia através da oxidação, em
ritmos diferentes, a primeira é obviamente mais lenta, a vida nada mais é do que o meio tempo
antes que nosso sangue suor e lágrimas, nossos ossos, nossos cabelos e nosso corpo de maneira
geral, se tornem pó, e não estou falando de maneira figurativa, “do pó ao pó” é algo bem literal,
na verdade. Memento Mori, lembra-te de que morrerás, lembre que todos os seus sofrimentos,
todas as suas alegrias, todo o amor e todo o ódio que seu pequeno coração de carne e cálcio foram
capazes de suportar, cada pressão que seus ossos suportaram, antes do colapso final e derradeiro,
tudo que você sentiu, tudo que você foi, está invariavelmente destinado a se tornar pó, porque,
mais uma vez, não há eternidade. A eternidade da carne é apenas uma doce ilusão que cientistas
loucos usam para enganar os tolos. A carne foi feita para decair e morrer e ser degradada de volta
à natureza, é assim que pagamos nossa dívida pela vida que nos foi dada, nossa matéria deve
retornar à terra e alimentar as demais formas de vida, é o ciclo a qual todos estamos fadados, a
companhia que todos teremos, o aperto de mão da morte ao final de nossos dias.

Tudo isso é invariavelmente verdade, não importa sua opinião sobre isso, é a verdade do
universo, troca equivalente. Mas se todo esse destino mórbido é invariavelmente verdadeiro,
então, qual o sentido de tudo isso? Um cachorro não pensa nisso, ou um gato, ou mesmo as odiosas
e queridas raposas, então por quê? Por que nós? Acredito que quando fazemos essa pergunta, o
que realmente queremos saber é por que temos de lidar com esses níveis absurdos de dor? Por
que nós temos de nos importar? Por que nós, e não qualquer outro animal, temos que saber que
somos? Não questionamos nossa capacidade de amar até sentir a dor que vem desse sentimento,
não questionamos nossa capacidade de conhecer até estarmos frente a frente com o desconhecido
e tremendo dentro de nossos ossos. Meu ponto é, você não quer perder sua capacidade de amar,
só quer se livrar da dor de não ser correspondido. Mas elas estão tão intrinsecamente relacionadas,
tão profundamente unidas que seria impossível se livrar de uma, sem perder a outra. Você só
consegue aquilo pelo que paga, nem mais nem menos.

Mas por que estou falando disso? Nem eu sei, talvez eu esteja apenas tentando me
acalmar. O que é surpreendentemente difícil, minha cabeça é uma confusão incomparável, e eu
tento desesperadamente me tornar humana, me tornar algo que eu já sou. Uma alma não humana
jamais seria capaz de compreender as contradições emaranhadas no tecido da vida, muito menos
aceitá-las, e eu as aceito. A dor não significa que você não aceita a situação atual, nem significa
que algo mudará, ela só é o que é, a consequência da sua fé, da sua vontade de tentar algo novo,
que, por sorte, por azar ou por destino, acabou por não ter o resultado esperado, é a dor de uma
decepção, é horrível, mas é o preço a se pagar pelo seu coração. E seu coração, definitivamente,
vale essa dor, porque nada é mais maravilhoso do que um coração humano aberto para a vida e
disposto a vivê-la.
Veja bem, o fato é: Estou farta do século XXI. Tudo o que mais queria era poder seguir
para um embalsamamento de 200 anos na casa do Dr. Pormmenor como no conto de Edgar Allan
Poe. Estou farta deste século, estou farta de meus vícios, estou farta, farta, levem-me para um
lugar no tempo bem distante, quando todos os meus inimigos e ex-amantes estejam mortos e
enterrados, um ponto onde eu não seja ninguém, quando eu não saiba de nada, tão jovem quanto
uma criança de 220 anos poderia ser, e tão excitada para uma vida nova quanto é possível estar.
Estou farta dessas preocupações às quais me habituei, estou farta da minha cabeça, estou farta das
pessoas, ou da grande maioria delas. Estou farta, farta. Me embalssamem. Me mandem para um
futuro distante, e tirem de mim o fardo de estar viva nessa época turbulenta para meu pobre
coração.

(21/05/2020)

Nós agradecemos com gratidão

Quaisquer deuses que possam escutar

Que não há vida que sempre viva;

Que não há defunto que reviva;

Que o mais tortuoso rio à deriva

Sopre seguro para o mar.

Não fui eu quem escreveu isso e ignoro de maneira indiscriminada quem quer que tenha
escrito, eu só busco com toda a força que ainda me resta jamais esquecer dessas palavras, porque
eu sempre me esqueço que a vida é finita, como não haveria de esquecer? Eu sou jovem, e ainda
que esse diário se chame o diário do vazio, isso é apenas uma mera formalidade. Eu quero mapear
meu vazio, conhecer cada um dos seus recantos, seus altos e baixos, seus vales sombrios e suas
campinas de estradas tortas e mal feitas, porque apesar do vazio parecer morbidamente igual a
verdade é que ele é diferente para todos, e portanto, é uma parte de todos, mas não quero viver no
vazio. Se não há vida que para sempre viva, eu quero viver a minha da maneira que mais me
agradar, de modo que ao fim dela eu não tente fugir da morte, mas a aceite como uma velha amiga,
alguém que me espera no fim do caminho para me levar para um outro lugar, ainda não sei qual,
mas um dia descobrirei. E quando esse dia chegar, quero ter vivido preenchida o bastante para
que ao fim de meus dias possa aceitar calmamente a flecha da ovelha, ao invés de ter de fugir em
desespero do lobo. Talvez esse seja o segredo para a paciência dos sábios, a vida é muito curta
para se descabelar por situações irreversíveis, para se debulhar em lágrimas por amores passados,
para se prender a sementes tardias de flores infecundas, é assim que se consegue paciência,
percebendo que cada momento nessa vida é especial, porque ela chegará ao fim. Esse foi o
presente de Iru Iluvatar a seus filhos mortais, um presente que os Elfos jamais poderão apreciar,
porque são como o vento no mundo, eles sempre estiveram e sempre estarão aqui. E o costume
quando não causa ódio, no mínimo leva ao desinteresse.

(22/05/2020)

É engraçado como sua mente sempre te leva a lugares que você nunca ia esperar se
encontrar, e de vez em quando, em raros momentos, depois de muito pensar, você chega às
respostas corretas. E ainda que eu sangrasse ouro puro por minhas feridas, ainda que todas as
minhas realizações resultassem nos mais belos diamantes lapidados, não seria o bastante, porque
o problema não está em mim. E saber disso foi como me livrar de uma sombra que me perseguiu
a vida inteira, a insuficiência, a desconexão comigo mesma, a fragmentação da minha
personalidade. Eu sempre tentei não ser eu, porque eu mesma nunca fui boa o bastante, eu nunca
era inteligente o bastante, boa cozinheira o bastante, bonita o bastante, educada o bastante, bem
vestida o bastante, eu sempre vivi a beira da loucura por isso, me jogando desesperada em
qualquer oportunidade de provar que eu sim era boa, e que eu merecia o amor das pessoas por ser
boa, mas eu sempre estive errada, porque eu nunca precisei disso, nunca. Eu não preciso provar
nada para ninguém, não preciso ser mais ninguém além de mim mesma, completamente eu
mesma. Meus sentimentos são importantes, eu não preciso mais mentir, nem pra mim nem pra
ninguém, porque eu sou eu.

Sim, eu gosto de usar preto, eu gosto de mostrar um pouco do meu corpo, eu sou bastante
vaidosa, e ferozmente determinada a atingir meus objetivos, ferozmente inteligente, determinada
a mudar o mundo e a viver nos meus próprios termos. Eu não preciso consertar a cabeça de
ninguém além da minha, e não preciso que ninguém me salve, eu salvo a mim mesma dessa vez,
porque só eu sei do que eu preciso, e, nesse momento, eu preciso ser quem eu quero ser, e lutar
pelo meu futuro, independente do que qualquer um possa pensar sobre isso, porque isso não é da
conta de ninguém.

Pare de procurar pessoas quebradas, pare de tentar salvar os outros, eu não sou psicóloga,
eu sou só eu, e é tudo que eu quero ser, nem mais nem menos, porque eu sou fantástica, e saber
disso me dá uma paz de espírito que eu jamais encontraria entre as raposas, porque eu não sou
uma raposa, estou bem mais para coruja, não acha?
(24/05/2020)

Ontem, eu voltei a sentir a pressão esmagar meu coração, eu ainda acho muito difícil de
aceitar a realidade, e vivo um pouco na fase da negação, a sensação é de que isso nunca vai
embora, talvez estejam certos quando dizem que só um amor pode curar outro, e talvez eu vá
viver nessa fase por anos, indo e voltando da dor, nunca em minha vida experienciei algo assim,
então isso explica as reações exageradas quando a dor efetivamente volta, com o tempo, as reações
serão amenizadas, ao menos é o que eu espero, eu só tenho que viver minha vida nesse meio
tempo, muito provavelmente a raposa jamais aceitará meu coração, e vai apenas usá-lo para
brincar eventualmente, não falo isso de maneira cruel, nós somos o que somos, e a raposa é o que
é, eu sou o que sou, e nós não somos nós, porque não há nós, ela nunca me amará, e essa é a
verdade que eu tenho que aceitar, dia após dia. Não é culpa dele, não é culpa de ninguém, só é o
que é e não poderia ser de outra forma.

Então, que seja o que é, junte os pedaços quebrados e comece de novo, seja você, quem
você realmente nasceu pra ser, e vista quem você é como uma armadura, para que ninguém nunca
possa usar isso contra você.

(25/05/2020)

Às vezes, tudo o que eu queria era abrir meu corpo com um bisturi e arrancar para fora
todos esses órgãos. Arrancar de mim essa dor estúpida, mas essa dor só é estúpida porque eu sou
estúpida, dizem que as coisas se parecem com seus donos, e é mais do que verdade, o tipo de dor
que sinto é reflexo do tipo de pessoa que eu sou, ela é a prova de que estou viva, é a prova de que
meus sentimentos foram e são reais, a prova de que eu posso sentir, essa foi a prova pela qual eu
tanto implorei, e ela veio até mim, talvez de uma forma bastante dolorosa, porém, ela veio, bem
como eu pedi. Eu sou humana, eu sinto, eu sou real, meus sentimentos são reais, e por isso, e
somente por isso, vale a pena sentir quanta dor for necessária.

É lógico, porém anti-intuitivo, como a própria biologia. Literalmente tudo que acontece
em sistemas biológicos é inesperado (não impossível, mas inesperado), se a gente considerar só a
química e a física. Por isso que eu gosto tanto disso. A vida vive nas brechas das leis universais
da natureza, mantendo o desequilíbrio interno do sistema por tempo o bastante para que você
possa se reproduzir depois entrar em equilíbrio com o meio, equilíbrio é literalmente a morte.
Todo mundo é, literalmente, a uma chance em mais de um bilhão, não deveríamos estar aqui, não
deveríamos ter nada disso, nem a capacidade de pensar da forma que a gente pensa. Porque isso
não importa. A complexidade e funcionalidade dos sistemas independe do conhecimento do
sistema de si mesmo. E ainda assim, aqui estamos nós, contra todas as possibilidades, aquele um
em um bilhão. Se isso não é lindo, eu perdi o sentido da palavra beleza em algum momento.

(26/05/2020)

Percebi que tenho um gosto demasiado por dar aulas, eu me divirto muito mais do que
deveria, em parte, porque adoro falar, falo demais, falo pelos cotovelos, esse diário é a prova mais
irrefutável disso, o segundo motivo, é que adoro que os outros aprendam, adoro que eles
entendam, adoro que as pessoas possam saber algo que não sabiam antes, adoro ver o interesse
das pessoas por aprender coisas sobre a biologia. Acho que serei uma boa professora universitária.

(27/05/2020)

Por toda a minha vida, fui levada a crer, por mim mesma, que eu deveria escolher entre
ser bonita ou inteligente, ser uma boa aluna, ou alguém que gostava de jogos, livros ou conversas
bobas com amigos. Isso me esvaziou de muitas coisas. Há consequências nesse pensamento que
eu jamais serei capaz de desfazer, porque eu não tenho mais idade para desfazê-las. Hoje eu
percebo que essa escolha é completamente irracional. Veja bem, eu sou um ser humano real, não
um box de opções, minha personalidade é fragmentada como a de todas as pessoas, e eu posso ter
gostos diferentes que me tirem da centralidade de um espectro específico. Mais especificamente
o espectro do gênio.

Sempre quis ser vista como inteligente acima de todas as coisas, o desejo não apenas de
ser, mas de parecer inteligente moveu minha vida por muitos anos, não julgo a mim mesma por
fazer essas escolhas, ou por achar que elas existiam. Na adolescência estamos todos desesperados
para provar quem nós somos. São os hormônios. Mas, com o tempo, devemos sair dessa fase, os
hormônios de assentam, e percebemos que não precisamos provar nada para ninguém. Isso quer
dizer que sim, eu quero provar que sou inteligente, mas para mim mesma.

As pessoas confundem o amor dos outros com o amor próprio que lhes falta em seu
coração. Não mais. Eu não preciso desse tipo de amor dos outros, porque esse tipo de amor só
pode vir de mim para mim, e qualquer outra forma dele será um pálido reflexo, uma sombra,
quando tudo que eu quero é a luz e paz em mim mesma. Não mais. Quando nada, eu me amo, e
eu me respeito. Quando nada, eu ainda sou eu, essa pessoa partida, machucada, remendada,
curada, lavada e suja, luz e trevas, anjo e demônio. Quando nada, eu ainda sou Hellem, ainda sou
eu, e isso, ah querida, isso é uma grande coisa.

Coisas que Odeio no Walter

1- Aquela droga de sotaque vindo não sei de onde todas as vezes que ele fala o nome do
cachorro dele;

2- A irritante aura de sabe tudo que ele exala todas as vezes que abre a porcaria daquela boca
miserável;

3- A ansiedade que ele me faz sentir todas as vezes que para de me responder;

4- A insistente vontade que ele me faz ter de conversar;

5- Aquele sorriso miserável que me deixa envergonhada;

6- Aquela maldita facilidade de fazer meu coração acelerar por qualquer droga de motivo;

7- A dor que eu tenho que me fazer sentir cravando as unhas em mim mesma todas as vezes que
meu coração acelera, porque só uma dor pode distrair da outra, e a dor física é sempre preferível
à qualquer dor sentimental;

8- Mas acima de tudo, acima de todas as coisas, eu odeio o Walter por ele ser ele. Porque ele
não sente o mesmo por mim. Deus, como eu o odeio!

(28/05/2020)

Eu não posso parar até que o mundo inteiro saiba meu nome. Eu devo ser incrível a um
ponto que isso não é mais uma opção para mim, a falha não é uma opção, perecer e não ser
lembrada não é uma opção. É o que me resta. E se há amor nesse mundo, e querida há amor nesse
mundo, não há obstáculo insuperável. Porque eu vivo por isso, eu amo isso. É minha cocaína.

(31/05/2020)

Não há nada mais seu do que sua dor e seu conhecimento, porque essas são duas coisas
que nada nem ninguém pode tirar de você, a não ser no caso que você perca suas memórias, mas,
em última instância, as memórias são o que mantém o barco o mesmo, ainda que todas as suas
células sejam trocadas no mínimo anualmente, suas memórias se mantém, elas fazem de você
quem você, porque elas guardam todo seu conhecimento e suas dores. Felicidades são
praticamente as mesmas para qualquer ser humano, o que nos diferencia são nossas dores porque
as dores são uma expressão daquilo com que nos importamos, só dói porque você se importa, só
dói porque é real, só dói porque você é você e vai continuar a doer enquanto você for você, é mais
um fardo para carregar, mais um dentre tantos outros, mais um que você vai aprender a suportar
com o tempo e com a experiência, não tema, não tema os fardos, não tema as dores, não se
esconda, não se feche para fugir, o preço a se pagar por isso é bem mais caro do que o preço por
suportar. Suporte essa dor, apenas mais um pouco, minha querida, apenas mais um pouco, isso
vai passar na hora certa, é seu batismo por fogo, depois disso, depois que a dor sumir, você vai se
agradecer por ter passado por ela imaculada, sem ódio no coração, sem raiva, por continuar a ser
você, porque você é uma boa pessoa. Isso vai passar, e nesse pequeno momento de sanidade, eu
quero te pedir que aguente, são os últimos 200m de uma corrida longa e exaustiva, mas, ah droga!
São só 200m! E já chegamos tão longe… Não podemos desistir agora, ou iremos nos deitar na
cama a noite e nos arrepender por desistir tão perto do final. Você corre 200m até de olhos
fechados, então feche os olhos e mantenha os pés na estrada, tudo vai ter acabado antes que
perceba, eu juro. Se concentre na música e termine o que você começou, acredite, vai se agradecer
por isso mais tarde. <3

(04/06/2020)

Como Proceder Experimentos com Raposas (Regras)

1- A raposa não deve saber a não ser que seja estritamente necessário.

2- A raposa só deve ser chamada pessoalmente

3- A Bia tem que saber, logo. Joana não, nunca, se possível.

4- Se a raposa se demonstrar esquiva o experimento deve ser parado imediatamente e o


resultado será aceito como negativo.

5- Se ela não demonstrar nada antes de ser chamada o experimento deve ser parado
imediatamente, e assumimos que o resultado é negativo.

6- Se a raposa fizer qualquer objeção a proximidade o resultado é negativo.

7- Se os olhos da raposa parecerem estranhos, o resultado é negativo.

8- Se o resultado for negativo, este diário estará encerrado.

9- O experimento deve ser conduzido o quanto antes, mas não no primeiro dia.

(06/06/2020)
Um bom cientista deve sempre ter em mente: um resultado negativo é melhor do que
resultado algum. Esse é o fim da história, o fim do diário. O resultado foi negativo, o experimento
está encerrado. Podemos seguir em frente.

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