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Conto de Horror

Aquilo que Não Sei

Kira Santos
10 de Abril de 2023
Despertar
Me sinto tonto, atordoado, como se aquelas velhas garrafas de whisky voltassem ao meu
organismo de uma única vez, mas ainda que pareça, não é uma ressaca, pelo menos eu acho
que não. Tento me levantar, mas sinto que meu corpo não está respondendo. Uma dor
excruciante percorre minha perna esquerda, e quando olho para ela, percebo que está fraturada.
O medo começa a me dominar, e a escuridão que me cerca parece ganhar vida própria.
Meus olhos demoram mais que o normal para se adaptarem à penumbra, mas finalmente vejo o
local onde me encontro: uma caverna.

Finalmente, consigo me levantar, a dor parece ser uma velha amiga, lembro dos tempos
no front, na guerra, mas não consigo lembrar quem sou eu. Ao meu redor noto alguns pertences
jogados em uma trilha que revelam escadas naturais, mas quando ando até elas um cheiro de
ferrugem ataca meus sentidos e minha espinha se enrijece quando minha mente identifica o
odor como sangue. tento subir as escadas, vagarosamente, a dor em minha perna ainda mostra
que estou muito ferido.
Ao chegar ao fim da escadaria vejo que o solo não é tão natural quanto eu esperava, na
verdade, beira ao oposto disso. Não sei explicar, mas algo nesse lugar me observa, espreitando
minha existência como se zombasse da minha ignorância.

Um altar. É isso que vejo no platô no fim da escada, um altar cheio de sangue e corpos
atirados e desfigurados ao redor, seja o que quer que tenha acontecido aqui, parece ter saído de
um conto sombrio, aterrorizante, mas pior, pior porque é real.

Mesmo receoso com tudo aquilo, minha mente parece aceitar bem aquela situação, me
sinto preocupado e com uma certa tensão, mas não sinto medo, não o medo que eu deveria
estar sentindo. finalmente enquanto olho algumas páginas rasgadas no chão e vasculho os
corpos minha voz sai: “hey… Alguém aí?", rouca e rasgada, como se o sangue ainda me afogasse.
sem resposta, mas aquela sensação de estar sendo observado não some. Acho nas páginas
jogadas ao chão escritas que não entendo, satânicas ou profanas se você preferir, mas o que me
chama mais a atenção são algumas paginas queimadas que parecem escritas em inglês, não
consigo ler mais que algumas palavras, mas juntando-as parece se referir a alguma criança, a um
ritual, a necessidade de proteger o filho. Um único nome entre as páginas desperta minha
mente: John. imediatamente lembro de meu amigo, John White e lágrimas escorrem sem
controle de minha face, começo a espalmar meus bolsos a procura de algo que nem ao menos
eu sei o que é. Minha mão para em um caderno, pequeno, sujo, amarrado por um pequeno
cordão. Um diário.
começo a ler enquanto junto o que posso e rastejo até o que parece ser a saída dessa maldita

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caverna. Entre os pertences, um revólver com apenas uma bala no tambor, uma carta destruída
com um endereço e um nome “Hanna Göldi White”, sei que não é a esposa de John, acho que é
sua mãe. As memórias em minha mente me lembram como disparar uma arma, como cuidar da
minha perna ferida, como estar atento aos perigos, me seduzem com uma vaga lembrança de
um amor, mas me amaldiçoam sem me revelar nada por completo. Acho que eu era médico ou
algo do tipo, pois não me preocupo muito com meu estado, sei que minhas memórias voltaram,
me foco em sair daquele lugar profano. finalmente vejo a saída.

Finalmente saio da caverna, mas o que vejo à minha frente só aumenta minha angústia.
Estou em um cemitério abandonado, cercado de lápides quebradas e mausoléus destruídos. O
ar é denso, e um cheiro pútrido se mistura com o cheiro de sangue e morte.

Em meio a tudo isso, encontro um carro carbonizado, e minha mente começa a clarear
um pouco. Lembro-me de ter entrado no local com John em busca de respostas sobre mistérios
sobrenaturais, mas algo terrível aconteceu. Um combate contra criaturas que eu chamo de
"Coisa-rato" e um incêndio que destruiu o carro são os únicos lapsos de memória que consigo
recuperar, verifico meu diário, confirmo minhas memórias e identifico meu nome: James Roadd.

Eu me sinto perdido e sozinho. Sinto a falta de algo profundo, uma paixão triste e lembro
de minha esposa e meu filho Joshua, de imediato acredito que preciso voltar a eles, que estão
em casa, provavelmente sem saber onde estou ou se estou vivo, mas assim que esse
pensamento vem a minha mente, uma pontada de dor me derruba, eu lembro do dia em que os
vi morrer durante a estadia no front. A dor é enorme e quase não consigo me mover, misturando
choro, sangue e todas as mazelas eu fico por um tempo indefinido caído chorando em uma
posição vergonhosa na lama do cemitério.

Mas a determinação que adquiri como ex-militar começa a se manifestar, e sei que tenho
que encontrar John e sair daqui antes que seja tarde demais. verifico a arma, o diário, os
pertences que achei na caverna e decido ir até o endereço na carta.

Aquela maldita sensação de estar sendo seguido não passa. Tento ignorar e chego até uma
estrada, após horas a exaustão começa a tomar conta do meu corpo e mente. Nessa altura, já
estou registrando tudo no diário, acreditando que se minha jornada chegar ao fim antes da hora,
o diário poderá dizer ao John o que aconteceu comigo.

Vejo um carro, todas minhas forças são para fazer sinal de pare e quase sou atropelado,
o carro dá uma leve derrapada e assim que para o jovem que conduz o veículo sai bufando e
gritando injúrias a minha pessoa, tento explicar, mas não tenho forças e sinto que vou desmaiar.
Acordo no carro com um sorriso jovial e atraente de uma mulher, ela deve ter seus vinte e
tantos anos, assim como o rapaz e pelas suas poucas roupas e movimentos que ela faz sempre
que toca o jovem, acredito que são um casal, querendo curtir o fervor dessa idade. tudo que

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consigo dizer é um “obrigado” que quase não sai, mas para minha surpresa algum ao meu lado
acalenta minha dor e calmamente me conforta dizendo que Deus está comigo e eu não
perecerei. Com a visão turva vejo um padre, bem vestido, sorrindo como se soubesse de algo
que eu não sei. Adormeço mais uma vez.

Quando recupero a consciência, percebo que estou deitado em uma maca com os pulsos
amarrados. A escuridão me envolve novamente, mas antes que eu possa tomar alguma atitude,
ouço a voz calma do padre me recepcionando. Minha mente corre pelo meu corpo buscando
algum recurso, mas percebo que estou completamente preso, todos pertences estão comigo,
exceto pelo fato de que meu diário parece ter sido retirado de mim. Nesse momento, olho para o
homem, que sorri em minha direção como uma saudação amigável.

- Olá filho - ele diz de maneira cínica - Não achei que você fosse voltar de lá, felizmente
encontrei você.
- Padre, não entendo, eu não… - Eu não conseguia articular uma palavra enquanto
contemplava a cena horripilante à minha frente. O padre, com um sorriso sinistro no
rosto, olhava para mim como se soubesse que eu acabara de descobrir seu terrível
segredo. Atrás dele, o casal de jovens mutilados estava preso em uma espécie de
púlpito, formando uma cruz diabólica com seus corpos grotescamente costurados. Seus
olhos suplicavam por ajuda enquanto seus corpos sangravam e se debatiam em agonia.
De repente, tomado pelo meu instinto de sobrevivência gritei em desespero enquanto
tentava encontrar uma maneira de escapar daquele lugar amaldiçoado. Mas o padre não
me deixaria sair tão facilmente. Ele começou a se aproximar, ainda sorrindo, enquanto eu
sentia meu coração bater cada vez mais rápido. Eu sabia que teria que lutar pela minha
vida se quisesse sair vivo daquele inferno. Lembrei-me de John, de sua fé, sabia que o
homem em frente a mim não era um homem de Deus e enquanto tentava lembrar de
alguma oração, fiquei calmo arquitetando uma fuga e trincando os dentes falei:
- Você, você nos levou aquela caverna. - encarei sua face sinistra em busca de alguma
reação, mas apenas aquele sorriso cínico e aterrorizante.
- Templo. Aquela “caverna” era um templo filho, um local sagrado para Deus. - A calma
em suas palavras era nojenta, debocha da veracidade da vida enquanto o som dos
jovens pregados no fundo da sala orquestraram o horror daquilo tudo reforçando a
profanação de tudo.
- Templo, certamente não temos o mesmo Deus. - minha voz agora é calma, estou
sutilmente tentando soltar minha mão da faixa que a prende na maca. - O que você
queria com John e eu? - continuo calmo e ferozmente.
- John era especial, você foi um imprevisto, mas resolverei isso - por um instante minha
voz vacila ao perceber que ele se refere a John no passado, algo cruel acontecerá com
meu amigo e o mesmo aconteceria comigo se eu não escapasse dali.

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- Você tem um tipo de alma estranha, senhor Roadd, a dor não lhe derruba, pelo contrário,
parece lhe mover. Meu senhor gostará dessa oferenda. - ele fala se aproximando com a
lâmina retirada de uma bandeja ao lado dele, mas meus pensamentos ficam repetindo
“mais perto”, “mais um pouco…’ “mais um pouco…”
- Eu prometo que a dor será rápida e exorbitante, como morrer mil vezes e eu me
deliciarei com seu sofrimento - ele se inclina para fazer o primeiro corte, “mais um pouco”
eu penso enquanto grito de dor com a lâmina rasgando meu peito. “Agora!”
- Que tal isso desgraçado! - grito enquanto o estrondo do disparo do revólver preenche a
sala. O homem cai para trás.
- Ma-m-m-mas… - Me solto enquanto ele balbucia incoerências.

Desço da maca e pego a faca andando até ele segurando-o pelo colarinho, a bala atingiu o
pâncreas, lembranças da minha formação como médico e a boa mira tornam o disparo
extremamente letal, tenho menos de um minuto para minha resposta:

- John está vivo? - digo firme e sério.


- A criança está com Deus. - responde enquanto a vida se esvai.

Belas últimas palavras de um desgraçado. Não há muito o que eu possa fazer além de
acabar com o sofrimento do casal, eles não tem salvação e em choro os mato. Não sei bem onde
estou, parece uma ala hospitalar e quando saio se revela ser a escola de cadetes onde trabalhei
por um tempo. Imediatamente olho o diário e vejo que a mãe de John deveria estar aqui, tento
me mover pelos corredores atrás dela, mas tudo que vejo são cadetes mortos, empalados e sem
seus olhos, como se tivessem vivenciado algo que seu corpo não aguentou, finalmente chego
até o refeitório, último lugar onde a mãe de John havia ficado, a maldita sensação de espreita
continua e o lugar ostenta apenas mortos, repetições de uma chacina profana e macabra.

Sigo até a saída pensando que o endereço na carta que encontrei na caverna pode me
levar até Hanna. enquanto sigo andando, mantenho-me escrevendo, desisto de encontrar
alguém vivo e quando chego a porta avisto um carro. graças a Deus, penso enquanto cambaleio
até o carro.

A porta está destrancada, painel acusa tanque cheio e as chaves na ignição me dão
esperança que vou viver para descobrir o que não sei. Dou partida no carro e ouço uma voz no
banco de trás:

- Belo tiro filho.

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