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Weberson Fernandes Grizoste

São Paulo – 2017


Copyrigth © Weberson Fernandes Grizoste

Projeto gráfico: Editora Ixtlan

Diagramação: O autor

Revisão gráfica: Márcia Todeschini

Capa: Gabriel Polizello

Fotos de capa: o Autor. capa: em Boquete - Panamá;

no verso: Rio Margarida, Nova Alvorada, Comodoro-MT - Brasil.

Foto do autor: Josiane Cristina Grizoste

Grizoste, Weberson Fernandes

Margarida. São Paulo/SP Ed. Ixtlan, 2017. 78 p.

ISBN: 978-85-8197-544-3

1.Poesia 2. Título

CDD B869.1

Editora Ixtlan - CNPJ 11.042.574/0001-49 - I.E. 456166992117


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Federal 9.610/1998) é crime previsto no art. 184 do Código Penal.
Este riacho escondido no meu sertão cujas
águas fugiram-me, águas que sussurraram tão
fortes e os seus murmúrios jazem dormentes
nestas ínfimas páginas.
Ao Sturt

Porque tudo ficou sempre pela metade


Longe do rebulício deste mundo não lerás os meus versos
Porque deixei tudo sempre pela metade
7

SUMÁRIO

Serve de prefácio .................................................................... 09


Uma apreciação das poesias grizos-te-anas............................ 11
Cãozinho da boca afiada .............................................................................. 19
Alalia .......................................................................................................... 20
Karadeniz Tears .......................................................................................... 21
You ............................................................................................................. 22
Doubt .......................................................................................................... 23
What can I do? ............................................................................................ 24
Coimbra do meu coração............................................................................... 25
À margem esquerda do Mondego .................................................................. 26
Quando às vezes me ponho sozinho............................................................... 27
Recordações .................................................................................................. 28
Agulha no palheiro ...................................................................................... 29
Abelha jardineira ......................................................................................... 30
A moça e a enfermeira.................................................................................. 31
Esforço......................................................................................................... 32
Cemitério ..................................................................................................... 33
Doidivana .................................................................................................... 35
Aldrabona ................................................................................................... 36
Agônico........................................................................................................ 37
Despertar ..................................................................................................... 38
Mal acabado ................................................................................................ 39
Finitude ....................................................................................................... 40
Mulligrubs ................................................................................................... 41
Hoje fui uma casa vazia ............................................................................... 42
Entardecer ................................................................................................... 43
Arcano sombrio............................................................................................ 44
Enmimesmado ............................................................................................. 45
Solau à minha fortuna ................................................................................. 46
Fevereiro ...................................................................................................... 47
Marina ........................................................................................................ 48
8

Se só me dou, por um tempo me sustento .......................................................49


Mia prece .....................................................................................................50
Neotenia ......................................................................................................51
O teu olhar...................................................................................................52
O que tem nos teus olhos? .............................................................................53
Esses olhos negros .........................................................................................54
Jardim proibido ............................................................................................55
Margaridas dormentes ..................................................................................56
A lenda das duas margaridas .......................................................................57
Mãozinhas salgadas .....................................................................................58
Ânsia...........................................................................................................59
Vinte anos ...................................................................................................60
Gris à lua ....................................................................................................61
Lua magnética..............................................................................................62
A alma e o espírito que tenho .......................................................................63
Fadário ........................................................................................................65
Fado ............................................................................................................66
Falhas consecutivas .......................................................................................67
Se se mata de amor .......................................................................................69
Ódio.............................................................................................................70
Mero sem esmero ..........................................................................................71
Intolerância ..................................................................................................72
Erudição ......................................................................................................73
Uma tese ......................................................................................................74
Gentes ..........................................................................................................75
Por agora me despeço ....................................................................................76
Se a lira desgraça-se ......................................................................................77
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SERVE DE PREFÁCIO

Margarida é o terceiro livro do amigo matogrossense que


tanta falta me faz deste lado do Atlântico e a quem tenho a honra de
apelidar de irmão!
Os seus dois primeiros livros foram assinados sob a máscara
de um pseudónimo. À terceira, todavia, o autor decidiu-se por uma
publicação directa, assinando o seu nome de baptismo, Weberson
Fernandes Grizoste.
O desencontro amoroso e a saudade dessa Coimbra-mulher,
que os olhos deixa banhados de lágrimas, brotam continua e
persistentemente das suas laudas. Nota-se um certo crescimento
temático, sobretudo no que diz respeito à consciência e ao controlo
das emoções e ainda na exploração de novas formas de linguagem. O
sabor bem brasileiro, agridoce em si mesmo, mantém-se ao longo das
três obras. Os anos, as saudades e o ―viver‖ assoberbado de tantas
aventuras e desventuras por esse mundo fora vão ficando cravados e
marchetados nas suas palavras.
Diz-nos Weberson que “se tem, contudo, uma coisa que sei
fazer/ que sei realmente fazer, é caminhar”, e sem dúvida que
esperamos que esta caminhada prossiga sempre, iluminada pela
curiosidade e pelo desejo perene de ir mais além, características
grizostianas que mais aprecio e que são e serão sempre de louvar.

Ana Seiça Carvalho


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A epígrafe que introduz este livro é de fundamental


importância, a expressão “meu sertão” é, claramente, uma afirmação
identitária. Como amiga e leitora do autor, tal como a Doutora
Francisca, recuso-me a acreditar que seja o seu último caderno de
poesias.
O título Margarida “o rio que cortara a vila onde passei os
primeiros anos da minha infância”, a meu ver o nome deste rio
envolve a sua procura de raízes e de uma identificação, bem como a
sua relação com a natureza e a sua relação com o feminino (agente de
amor e de mudança no sujeito poético e no seu universo),
protagonistas da maioria dos poemas deste caderno e dos anteriores.
Um pouco por todos os poemas, o tempo é um fator de
desagregação, diretamente relacionado com o saudosismo que
perpassa os poemas. O sujeito poético sente-o nas palavras de cada
verso, daí afirmar: “deixei sempre tudo pela metade”. O passado é,
assim, uma personagem, passado esse associado às despedidas
morosas (de que também nos fala Jaracatiá): “quis o destino que
morosamente me despedisse” conforme ilustra este verso do poema
“Coimbra do meu coração” (p.25).
Num tom quase sempre confessional, a linguagem é de uma
conjugação perfeita de registos correntes (com expressões tanto
oriundas do Português Europeu como do Português do Brasil) com
registos mais cuidados aliados a uma imensa erudição e
conhecimento da Antiguidade Clássica. Além disso vislumbramos
nalguns poemas influências da lírica tradicional portuguesa, e de
poetas como Antero Quental e Luís Vaz de Camões, o que nos
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mostra que há mais portugalidade do que somente no ato de poetar


Coimbra.
É bem notória uma maior complexidade quer na
movimentação da linguagem, quer na profundidade de significados
que os poemas nos transmitem vindos de um sujeito poético sempre
perfeccionista, sempre exigente, sempre autocrítico, sempre em
trânsito: “se tem contudo uma coisa que sei fazer, que sei realmente
fazer, é caminhar” (poema “Por agora me despeço”, página 76).

Rita Gomes
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UMA APRECIAÇÃO DAS POESIAS


GRIZOS-TE-ANAS

Francisca de Lourdes de Souza Louro

Ser convidada ou convocada por Weberson GRIZOSTE


que, acima de tudo, é um grande amigo, pedindo eu para apreciar,
“dizendo ele”, o seu último caderno de poesia, deixou-me um tanto
envaidecida e, como sou atolada no prazer de ousar, aceitei e, cá
estou a apresentar o convite.
Grizoste, como bem gosto de chamar o Amigo, já está
versado em outros livros: A Dimensão anti-épica de Virgílio e o indianismo
de Gonçalves Dias, 2011; Carrapicho, 2011; Jaracatiá, 2013. Neste
primeiro é a dissertação de Mestrado publicado em Coimbra-Portugal
com apoio da FCT. Acho que essa história de Gonçalves Dias, esse
amor pelo Indianismo do poeta maranhense, seduziu-o por deixar
impresso o retrato de sua vida e prometer criar uma espécie de gênesis
americano com linguagem harmoniosa e sentimental. P,18.
Carrapicho, o primeiro caderno traz a referência no título de
um tipo de erva daninha, tendo no prefácio a declaração o meu primeiro
caderno de poemas, em que fala de faces entristecidas, sorrisos
lamentosos, madrugadas vazias na solidão, lembranças de sonhos
desfeitos, desventuras fatais, das pedras encontradas pelo caminho e
de estradas, de sofrimentos de desejos e privações que a lira canta em
esforçoso desejo de benquerença em que o poeta se dá a conhecer por
inteiro publicando no mês de novembro, em Coimbra.
E neste primeiro tem a poesia O Trovador que o Eu lírico fala:
Velando a tua porta está o trovador / O frio da madrugada palpitando-lhe / o
orvalho noturno escorrendo pela face / Longe dali, um cântico anuncia o
alvorecer... .
O quadro exposto ao leitor tem uma representação visível, da
natureza de todas as coisas, de sua existência, do encadeamento que
as vincula e pelo que se comunicam não é diferente da sua
semelhança proposta pela linguagem. Vemos as palavras e vemos as
coisas nos versos que se fazem poesia. Por todo texto há uma
13

intenção, o jogo do signo e do similar verificável na tradição


poemática. Então, chamemos a hermenêutica que é esse conjunto de
conhecimento e de técnicas que permitem fazer falar os signos e descobrir seu
sentido como sugere Foucault, p.40 da obra As palavras e as coisas. Como se
percebe, nestes poucos versos editado e conferido no texto
Grizosteano, a erudição é o tesouro que o referencia e acompanha
pelos estudos sobre a Antiguidade de que se valerá sua poesia. Esta é
a diferença que faz destas um tesouro, pois sempre que se volta às
notações da natureza arcaica como é a Bíblia uma instituição de Deus.
O plano do livro é o amor e a saudade do lugar, lugar poético
que responde aos desejos do autor. Cada poema representa um
movimento da vida, da história e o recurso da representação desses
movimentos envolve o Tempo vivido sucessivo e entremeado de
múltiplas escolhas para uma nova relação. Escolheu-se uns poucos
versos de alguns movimentos, para mitigar nesse repertório, que sei
pedindo para sair do enclausuramento das páginas que um ou outro
leitor possa abri e apreciar, como sugestão e opção de leitura, se isto é
possível, aos leitores que possam ver a clara referência da saudade de
cá e, hoje, de lá, um tempo conimbrense, matogrossense; tempo de
estudos, experiências de vida tal qual viveu o senhor Gonçalves Dias.
O problema central e mais árduo continua sendo, evidentemente o da
interpretação. Perdoem os deslizes.
Coimbra do meu coração

O sofrimento de uma só despedida seria pouco/quis o destino que morosamente me


despedisse/primeiro vi mais que dezenas de amigos partirem/foram por termo ou
arrancados violentamente/até que me vi só com uns poucos que sobraram/os
quais fizeram-me chorar e tremer de amargura/não uma vez, lá voltei só pra re-
despedir e chorar.

Assim se delineia a poesia confessional nesse pontilhado de


desejos da grande rede de saber, porque as palavras recebem a tarefa
e o poder de tudo “representar” através do pensamento. No coração
da representação não se busca só desvelar o propósito enigmático que
está oculto sob o signo do prazer: e sim perceber se funciona
mesmo, em nós, esse sentimento de como em Gonçalves um dia
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lamentosamente se deu a conhecer no poema que diz “Minha terra


tem palmeiras onde canta o sabiá”?
Caminhando em direção desse segredo grizosteano e
gonçalvino tendo como certo a certeza de que a “saudade” foi um
tempo que não volta mais, nem com lembranças, nem com
fotografias, nem com narrativas poéticas, nem voltanto a mesma
Coimbra pois, até ela, não será como antes. Isso só se desenvolve na
ordem reflexiva do tempo passado, e da necessidade de dar-se a
conhecer pela dádiva de ter ido, ter sofrido, ter voltado. De ter
saboreado no tabuleiro a chávena de café e o pastel de natas/ambos lúgubres com
o luto do que partia sozinho,/ardendo em aflição, mas a carregar a sua capa
negra/herdada nos grãs-festins e nobilitadas exegeses./Dantes fraco, Coimbra foi
uma transfusão de sangue,/sangue que agora circula, todos os dias, no coração.
Nestes últimos versos, percebe-se pela ordem da descrição, a
repartição de parágrafos e até de módulos geométricos; como o
tabuleiro, a chávena, o pastel elementos de geometrias diversas
reproduzindo a planta da cidade, da saudade, do desejo de
reconfigurar na materialidade linguística a Coimbra do passado. “Os
signos podem mudar de aspecto, mas sua função permanece a
mesma, temos só de levantar suas novas máscaras como afirma
Eliade”.
Continuando a nostalgia do paraíso ou parafraseando
Bachelard com a poética do devaneio e, realçando as imagens
grizosteanas, vamos passear À margem esquerda do Mondego,
que tem uma porção essencial e imprescindível do homem e, isso se
chama imaginação, está imersa em pleno simbolismo português e
continua a viver para outros verem e sentirem o fascínio que é o
Mondego onde: Andei sempre em largos e apressados passos/sem sentir,
nunca, c’a paisagem fosse minha/aos ouvidos, quase sempre, tilintava/uma moda
que me lembrasse o Brasil/o Mondego, vezes calmo, vezes revolto –/até uma
víbora avistei naquelas ribas –/(….)Naquelas margens um anjo me fez
chorar/traído pelo destino, ardendo em amores/definitivo Coimbra tirara-me o
Mato Grosso (…).
Nesses versos temos a certeza de que a imaginação imita
modelos exemplares.
Imagens têm o poder e a missão de mostrar tudo o que rio na
consciência, nas lembranças. A confissão do choro é a ruína do herói
em Virgílio, os versos da Eneida, como aqui, o eu lírico fraqueja e vai
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ao inferno da saudade chorar a pátria minha Mato Grosso que um dia


o poeta abandonou e, a Coimbra, também abandonada e saudosa
como se vê no texto abaixo.

Fevereiro
Deixei Coimbra banhado em lágrimas/Em prantos abracei a melhor
amiga/Doía-me vê-la em desesperados carpidos/Senti, novamente, uma baita
raiva do destino/Parti, novamente, partido, desesperado./Com aquele acre na
boca avistei Mato Grosso/Ah! Meus amigos! Como doeu ver minha
terra!/Meus pais, minhas irmãs, sabendo que ia partir./E como uma desgraça
ou punição dos céus/Um anjo sorriu e meu peito ardeu em brasas.

O poeta esteve por tempos em estudos na Cidade de


Coimbra onde teve a oportunidade de perceber as diferenças entre
Brasil e Portugal. O lado saudosista foi amparado nas amizades que
ficaram e as que ora estiveram presentes, ora abandonadas e, em
outras, por mal entendidos ficaram atravessadas e engavetadas no
doloroso “deixa pra lá”. A confissão do avistar chegando e do deixar
para trás o avistado pela vida provisória de alguns anos na terra
portuguesa, foi tão quanto doloroso deixar Mato Grosso e depois
abandonar Coimbra, onde tinha estreitado laços de venturosa
existência. O retorno à casa de meu pai foi a aventura de reatar o
passado mal esclarecido, de lembranças, às vezes, mal entendidas pelo
acanhado saber infantil e juvenil.
Alguma coisa como, um querer passar a limpo a vida que
deixei e que não entendi, será neste retorno de acordar no recordar as
coisas adormecidas, que a idade cobra do espírito agoniado e inquieto
o desejo que não resistiu em repisar até o fundo da consciência o
porquê que fui e o porquê que voltei. Porém, como uma desgraça ou
punição dos céus/Um anjo sorriu e meu peito ardeu em brasas, viu o poeta, na
arqueologia da vida aberturas para o entendimento dos
acontecimentos.
As histórias se desenrolam quase que em série para todos os
seres, o importante é perceber um novo modo de ser, de entender e
de agir. No resgato do abraço, olho no olho e deixar “rolar”, como se
diz a troca dos quadros, já que as mudanças sempre são possíveis. A
Memória, é necessariamente infatigável em reconduzir o pensamento
à questão de saber o que é, para o pensamento ter continuidade na
16

história. Troca-se de país, de estado, de cidade, de rua por


necessidade. Essa mudança alicerça a experiência ao conhecimento,
assim é o homem, assim é o poeta.

A lenda das duas margaridas

Uma margarida caiu da ribanceira/cresceu rodopiando pelas tranqueiras/por


regos, riachos, rios e até por mares/já viçosa mas marcada pelos safanões/outra
margarida, ao fim dos aluviões,/abalroou-a, e ambas ficaram ébrias./Antes que
um vento esperado passasse/por que vão o destino não se provasse/as margaridas
ébrias se foram beijar./Mas um menino colhia-lhes as pétalas/até que surgiu um
vento cor de opala/e separou-as em seivas e despedaçadas./

A memória sempre será instrumento de construção e


concretização, na escrita, de passagens escuras, sombreadas pelo
esquecimento e pela falta de registro. As personagens da história
poderão ter os nomes mudados, assim como os nomes das
localidades que também podem ser trocados dependendo da
vontade do autor. Mas este texto atará as pontas do real com o irreal;
da história com a literatura, transformando o discurso histórico em
discurso ficcional. Cria-se uma espécie de vertigem, quando da
tentativa do leitor em colocar certos pontos nos “is” e descobrir a
impossibilidade de tal ato. A prova apresentada pelo autor é a sua
própria trajetória de vida. O poeta esclarece o ensejo de publicar o
terceiro caderno dando-lhe este “nome Margarida, numa evidente
referência ao rio que cortava a vila onde passei os primeiros anos da
minha infância”. E como se percebe, há água em todas as ideias
poética, de rio e de lágrimas, todas correm nos rios chamados
memória e saudade.
O texto explicita, em momentos, nossa condição humana.
Primeiramente descreve como travessia o processo histórico que
contextualiza a condição humana no mundo atual. Em seguida,
desnuda a alma humana marcada pelo narcisismo exacerbado, fruto
de uma sociedade igualmente narcísica, permissiva e hedonista. O
trabalho aponta para a utopia como busca do homem pelo sentido da
vida, e o andarilho percorreu rios e, em lágrimas o abandono de si e
dos seus amores.
17

Marina é uma narrativa que comemora experiências


grizosteana pela Grécia, divertidademente adverte o leitor para ser
cauteloso na arte de conquistar cidade e amores. Marina das pernas
roliças e olhares brilhantes/de linguagens capciosas e sorriso comprado/fustigou-
me a cítara seus trejeitos petulantes/o engodo a que me meti e em mim
agravado./(…)Esta Marina das pernas roliças era uma mofina/Dos lábios
risonhos, porém tão medonhos/No vale Amazonas não há-de se encontrar.

Esse texto de Grizoste é marca da ironia por ter-se deixado


encantar pela beleza feminina. Marina das pernas roliças é o arquétipo da
sedução pelos atributos mais ousados e usados por libidinosas figuras
femininas em todas as nações, estados, cidades e ruas. É a própria
Messalina que usa e abusa da fraqueza masculina em não resistir aos
dotes sensuais. O sorriso capta o indivíduo ao prazer de gastar para
ter mais prazer, não nos esqueçamos de Ulisses sendo seduzido e
tragado às profundezas odisseianas, e até porque foi na Grécia que o
causo se deu e doeu na constatação de ter sido ludibriado por Marina.
Ainda rio muito dessa história não sei se bem ou mal contada.

“Uma tese” é um pedido de desculpas por ter sido resistente e


sobrevivido com persistente agonia a de ter sido aluno de um
professor que só apontava os errinhos do texto.

Pelos erros peço desculpas,/pelas gralhas peço perdão,/encontra-los


é coisa fácil,/
mas cometê-los é mole não.

E, por último, uma escolha que cai bem ao gosto das dimensões
Gonçalvinas.
Se se mata de amor

Se se mata de amor! – Não, não se mata,


Quando o amor é sofredor e só atina
O descontentamento de um contente;
Quando não suspeita mal e crê em tudo
18

Sem jamais se folgar com a injustiça


Sossegado tranquilo ao regaço da verdade,
Correspondido, nunca falha, nem se ufana.

Aqui, o poeta inspirador de dor, Gonçalves Dias, mostra-se no efeito


de Amar.

Se se morre de amor! — Não, não se morre,


Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve, e no que vê prazer alcança!
É preciso perceber que as duas poesias podem ser reflexo de
espelho. É preciso reconhecer essa diferença especular que só se
iguala no reflexo daquilo que se encontra no cerne das ideias. Pensa-
se ver na face das palavras o quão ardilosas são nesse enfrentamento
no descontentamento de ser uma frente a outra e não ser a mesma
ideia: Forma e fundo, ou uma metátese especular se assim possa –se
dizer. Como as imagens que se distinguem no fundo do espelho, é
possível que sejam de um emissário desse espaço evidente e
escondido. Há, no entanto, uma diferença de tempo, de pessoa, de
angustia, de sentido de ser e pensar a palavra comum em poesia, mas
o sentimento por ela expressa, esse sim, é um reflexo provável de
irrupção e, no espelho o que se pode constatar são as espécies de
realidades sólidas que chegam e se vão pela porta do passado. A
poesia é o reflexo de rostos ou silhuetas sentimentais ornamentadas
pela realidade e que cai, muitas vezes, no desvanecimento da
representação. A liberdade, enfim, dessa relação que se chama
“interpretação”, dá prazer ou desprazer, talvez ao poeta, de ter seu
texto mal interpretado, mal visto e compreendido, porque as
correntes que aprisionam a leitura interpretativa são esferas de dupla
relação: imagem e representação, de quem produz e de quem lê.
19

CÃOZINHO DA BOCA AFIADA

Vai cãozinho da boca afiada…


Vai dizer veneno dos dentes…
Essa dor que primeiro suportei
Essa ingrata incúria da vida
Que roeu guloso às melenas.
Vai uivar estrondoso aos ouvidos,
Larga medroso a turba ingrata,
Esta malta faz qu’os não durma,
Rompe-lhe os tímpanos sem pena
Põe-lhe raiva que é raiva que tenho
Qu’os teus dentes certeiros puseram.
E depois co’os dentes sangradores
Vinde à mim contente co’a ordem,
Dar-te-ei um ossinho tutanoso
Como paga do favor que mo fizeste.
Mas, vai meu cãozinho da boca afiada!...
20

ALALIA

Já vi coisa que duvidasse se me contasse


coisa que com desesperação enche o peito
só duma mísera lembrança, infeliz recordo,
açaimando mia alma, meus grunhidos álalos

Já vivi coisa que duvidasse se acreditásseis


que só em mi creio por los tê-los vivido, i só,
i mesmo assim descrente por mi sido capaz
de tamanha estultícia pio que era apanhado.

Oh feliz mordaça, que açoite mia língua seria


flagelo duns peitos bem pios, mas queridos
havia de ser, havia de torá-los em flamejo!

Mas com mil peitos torados e flamejando,


como eu havia de mi aturar? Maldito amor!
que por ele devia falar, i só por ele mi calo.
21

KARADENIZ TEARS
To A. A.

Go wind, go and light sweet sea my tears


give them to the black sea the black lines
and then return alone!

Oh Karadeniz some chance my ancestor


he left us an account outstanding?
dniesper waters, sweet mistake
oh prut how you cut my heart?
and in batumi drowned in the bath
rolling like unwise from rioni
lost midweek, absent in trabzon,
I’m Çarşamba I’m in midway
like a stone, all come and go, I stayed
Oh Karadeniz some chance my ancestor
he left us an account outstanding?

Go wind, go and light sweet memories


give them to the black sea the black lines
and then return upset
like me.
22

YOU
To Olga
I really wanted you
when you told me about my song:
boys don’t cry
I went to my home
I was a little bit lost
Dios mio! After we were listening together purple rain
but I wasn’t lucky
Dios mio! I remember your blue eyes
get away get back get away
Dios mio! I remember when we were together in Lisbon
I was sad sad sad so sad
because we were waiting for a big bird
the bird that eats people
and with the belly full of people
and give up them far far way.
Today I just want to see your blue eyes…
and if God were my friend…
tomorrow again.
23

DOUBT

What I’m feeling is love,


but maybe it doesn’t matter
if you don’t consider my words;
is senseless, madness, frenzy
dream and desire like I do.
But, my darling
if I have sense, if I’m not crazy
and I’m not doing anything wrong
We do!
24

WHAT CAN I DO?

What can I do when you smile


and I feel that you want to stand by me;
but after that, when I talk with you,
you pretend that you don’t matter?
When I call to you with hope of talk
some fancy and lovely words
you didn’t receives my call
and after three hours tells me:
“Oh! Sorry I didn’t saw that?
Crazy! After that I’m so ugly inside
and I don’t want to see you again.
Why you didn’t grow like your legs?
Why you don’t be a real woman
and as soon can you throw me a stone
or pushes me of the rocks down?
Because if you’re really crazy
if you really just want hurt my heart
keep me off your eyes forever,
and stop playing with my heart if you don’t mean it.
25

COIMBRA DO MEU CORAÇÃO


Coimbra tem mais encanto na hora de despedida
Fernando M. Soares

À Ana Seiça

O sofrimento de uma só despedida seria pouco


quis o destino que morosamente me despedisse
primeiro vi mais que dezenas de amigos partirem
foram por termo ou arrancados violentamente
até que me vi só com uns poucos que sobraram
os quais fizeram-me chorar e tremer de amargura
não uma vez, lá voltei só pra re-despedir e chorar.

Agora um retrato devolve-me a dor e o desespero


no tabuleiro a chávena de café e o pastel de natas
ambos lúgubres com o luto do que partia sozinho,
ardendo em aflição, mas a carregar a sua capa negra
herdada nos grãs-festins e nobilitadas exegeses.
Dantes fraco, Coimbra foi uma transfusão de sangue,
sangue que agora circula, todos os dias, no coração.
26

À MARGEM ESQUERDA DO MONDEGO

À Rita Gomes

Andei sempre em largos e apressados passos


sem sentir, nunca, c’a paisagem fosse minha
aos ouvidos, quase sempre, tilintava
uma moda que me lembrasse o Brasil
o Mondego, vezes calmo, vezes revolto –
até uma víbora avistei naquelas ribas –
No cimo das casas como que amontoadas
a Faculdade, a Cabra soberana e pulcra
ao fundo as montanhas esverdeadas
carregadas de exaustores à espera de ventos
o cimo da Conchada me fazia aflito
a dizer-me que a vida estava a passar
e eu ali, ermo, distante da minha terra.
Naquelas margens um anjo me fez chorar
traído pelo destino, ardendo em amores
definitivo Coimbra tirara-me o Mato Grosso;
mas agora mostrava-me que aqueles seios
eram fidalgos demais para minha agrestia

Mas, hoje, um retrato avigorou que passara


os largos e apressados dois mil e tal passos
que, não eu, mas aquele Sol sorumbático fez.
E, se ainda não sinto que a terra fosse minha
uma dor tenaz arfa-me o peito em lágrimas,
ca se eu pertencesse àquela maldita margem.
27

QUANDO ÀS VEZES ME PONHO SOZINHO

– Donde vens, viajor?


– De longe venho.
– Que vistes?
– Muitas terras.
(Gonçalves Dias)

Quando às vezes me ponho sozinho


com mil pensamentos na cabeça
das coisas que meus olhos viram
e que nem desenhando vão entender

Coimbra vocifera na minha cabeça,


ardem meus olhos centelhas cruéis.
Ai! que a aflição que toma meu peito
E nenhum outro sentimento há-de curar.

Coimbra é um fardo que tenho nas costas


de coisa que o destino me deu sem pejo
fardel erudito que trago ao manicómio
e o louco, deveras, aqui ser, só eu.

Quando às vezes me ponho sozinho


com mil maneiras que meus olhos viram
com dez mil poesias e modas que auscultei
meu peito cru destila ardente dormência.
28

RECORDAÇÕES
Que negra sina ver-me assim
que sorte e vil degradante
ai que saudade eu sinto em mim
do meu viver de estudante.
Jose Galhardo

Ao amigo K.K. conhecido em Coimbra

Hoje senti saudades tuas


Mas a vida também exige que sejamos sensatos
e sendo sensato, com os olhos marejados,
com o coração ardendo em flor,
e a cabeça gritando tristezas
deixei-te ir... esquecido...
Esquecido de tantas coisas
coisas que fizemos juntos
e volta e meia, na parede do meu quarto
um anjo vem dizer-me
vem lembrar-me
que éramos felizes
Tanto éramos
que horas a felicidade vem cobrar-me
Que é que fiz que tirei-lhe todo o espaço
e mais, que dei lugar
a triste saudade.
29

AGULHA NO PALHEIRO

Como pode essa agulha sumir no palheiro?


Obstinado procuro
a agulha que me espeta
e nem assim acho.

Como pode ter no mundo agulhas sem fim?


E eu obstinado a querer
a agulha que me espeta
só porque foi a que perdi.
30

ABELHA JARDINEIRA
Ao amigo K.K. conhecido em Coimbra

Hoje vejo que tinhas, seguramente, razão


quando definias-me as flores do meu jardim
mostrastes-me alguns escóis que só perfumavam
e outras sem aroma tornavam mais belo o jardim
e algumas odoríficas e belas e aptas a culinária

Dentre elas vi uma flor saborosa, perfumada e bela


e houvera contente ter sido, se prudentemente,
o pólen à colmeia sulcasse com nula verecúndia
Não, insano e louco, cuidei-ma esfaimado, ilesa.

Agora, contudo, cheguei a um destes termos na vida


pois vi-a derretida no prato, derretido em centelhas.
31

A MOÇA E A ENFERMEIRA

Se eu fosse entendido (em duplo sentido) ainda assim não


resolveria
Agora olha só esse dedo de prosa: “a moça do trapézio morreu
com a doença da enfermeira”.
Num ataque de fúria quase matei o primeiro mensageiro.
O segundo não, tentei convencê-lo que mentia-me na cara
deslavada e grande.
Sem o alívio das últimas palavras, fui avisado, pego de surpresa
já depois do velório.

Ainda descrente, fui ao cemitério e entre muitas sepulturas


reconheci através do vidro embaçado os rostos tristonhos de
olhar longínquo dessas defuntas.
32

ESFORÇO

não foi um ledo engano este que me meti,


fui forçado pelo destino atroz; e já sabia, amigos,
que vão seria este esforço, que seria só agonia;
já lá no fundo essa dor avassaladora faiscava,
mas disfarcei sob olhares capciosos
que o meu sorriso era de total desespero.
Oh! que não posso me olhar no espelho,
porque seria capaz de dar-me surra ali mesmo.
A dor nem foi estender as mãos e voltar com elas vazias,
mas saber que as mãos que agora as sustinham,
sustinham também ingratidão e ria-se do meu esforço,
e ainda querendo que eu fosse obrigado manter a matraca
fechada
enquanto, sem tino, punha-se a regalia de quanto queria.
Dores, mágoas, esforço sem brio;
que Deus me castigue se fui covarde;
se fui, uma vez só, orgulhoso e fátuo!
Mas, não, são só novas cozeduras de um peito que não sara;
que juntam-se as de um outro anjo soberbo
que deita-se em meu regaço e ri-se
com a satisfação da minha insatisfação.
Mas eu, amigos, já vos disse,
sei disfarçar.
33

CEMITÉRIO

Eu tenho uma perífrase de declaração da qual, hoje, ri-me da


falta de comoção pelo sentimento com que escrevi. Refleti um
breve momento e lembrei do tamanho do Cemitério que
fizeram em meu peito. Algumas pessoas adoeceram e
simplesmente morreram, outras cometeram suicídio. A maior
parte destas sepulturas são de defuntos desconhecidos, mas há
alguns memoráveis que ainda sinto falta do tempo em que
viviam: aquele ali da lousa azul, por exemplo, foi brutalmente
assassinado pela consorte que teve um ataque de fúria, quando
vi já até o tinham sepultado; aquela logo abaixo morreu de
morte misteriosa e instantânea, uma coisa realmente
inexplicável que até hoje não entendi; essa aqui do lado é a
mais recente, fiz-lhe uma sopa de macarrão de letrinhas e
morreu de má digestão. Enfim, não me lembro muito bem
onde, mas ali pra baixo tem uma defunta, coitada foi acometida
de cólera e gritava sem parar, definhou-se em dores até a
morte, senti uma pena desgraçada da infeliz. Bastava estes
defuntos, mas não. O coveiro lembrou-me que tinha duas
covas das quais eu já tinha conhecimento:
34

__ Uma é aquela pessoa que está morrendo por Alzheimer e já


tem um bom tempo seu Doutor; mas a cova mais antiga é
aquela senhora que delira, e de vez em quando fala coisa com
coisa, e não sabem dizer qual a doença, tá lembrado?
__Exatamente, morrem… e não morrem! «Respondi-lhe
desiludido»
__ E tem uma que pediu uma cova há poucos dias.
__Uma cova? «Perguntei-lhe estupefato».
__Isso seu Doutor, uma cova mesmo, não parecia estar
doente, falava o tempo inteiro sobre algo mal-entendido. Acho
que vai ser suicídio; né?

Dez minutos depois de sair do Cemitério descobri que a moça


do trapézio morreu com a doença da enfermeira.
35

DOIDIVANA

Não sabeis o que é a mágoa,


nem sabeis o que é o amor,
assenta-te aqui contar-te-ei
quão estimada foi mia dor:

Já comi com grandes dores


carnes cruas que me deram
já penei em tantos amores
na sazão de alguns invernos

Na sazão de alguns invernos


lábios lisonjeiros me fitaram
cri por Deus que eram bons
não tardou me enganaram.
36

ALDRABONA

São mentirosos os teus lábios


Eles mentem demasiadamente
Mentem até que não sabem mentir

Ontem mesmo eles mentiram


Falaram-me de amor e eu ri
Hoje eles soltaram uma verdade
Uma verdade cheia de mentira
Até parecia um balaio de gatos
Mas tem uma coisa, senhora,
Que tenho para vos dizer
Que não tem gente esperta
Que segure um balaio de gatos
E os teus gatos estão a aparecer
São até mais aquebrantados
Que o teu desespero em contê-los.
37

AGÔNICO

Que grave ultraje acaso fiz contra os céus


Que este fado arrasa-me constantemente
Como paga incúria ca se fora malévola
Dum herege nefando irremissível quiçá»?

Cá palpita ligeiro por uns olhos levianos


Dum anjo interdito desdenho à missão
Ermo em carpido ao desejo aldrabado
Rebenta no peito o anseio de só te ver.

Vergonha meu Deus’sa pudicícia imunda


Sá inibição horrenda, Sá vã ignorância
Basta o penar! Dói-te que assaz imploro!

S’agonia por uns olhos quiçá desassisados


Menina e moça, diz mia lira desconsolada
E meu amor morre sem rebentar outra vez.
38

DESPERTAR

Eu lá que tendo amado tanto,


Tendo crido bastante,
Vivido intensamente;
Acordei como de um sonho espertado
Pra dura realidade da vida
Numa triste venturada descrença…
39

MAL ACABADO

Mal pude crer quando mendiguei o teu olhar,


nem conseguias fitar-me nos olhos.
Saí dali com o coração partido,
com o desejo de ao menos ter deixado um pouco mais de mim
e com o sentimento de aquele momento tinha ficado apenas
comigo…
Nem foi o desgosto de te perder que me castigou,
porque lá dentro já suspeitava que a gente não iria muito
distante.
Mas foi o sentimento da repulsa, do abandono,
da náusea que você deve ter sentido de mim;
ou talvez porque eu não esperava que iria acabar tão
subitamente.

Nem a ideia de um suposto arrependimento seu aliviou-me o


peito.
40

FINITUDE

Eu sei sair quando sou solicitado,


fechar a porta atrás de mim
deixar a chave em local visível
pra entrar um novo curumim.

Não faço pia dos meus ganhos


deles não gabo, nem me orgulho,
que desta vida nada se leva
e somos dos vermes à sepultura.

E essa aflição que agora sinto


também ela há-de finar
se só desventura mias reservas
soube Deus em muitas variar.

Se a mia lira não destoa


sofre me o peito a soluçar;
e se os versos aqui entoa
sabe a dor em mi curar.

Mas sei sair se sou solicitado


inda que em ganidos medonhos
juro-te é melhor que os enganos
à lábios lisonjeiros me fitar.
41

MULLIGRUBS

Cólica

Foi o Amor de um jantar mal servido


de Risos misturados com Promessas
e uma sopinha de Pra sempre
e aquele tira gosto de Beijo
com aquele cálice de Despedida
que fez essa amalgamação aqui dentro

Lembrando o conselho da minha mãe


“cuidado, não misture, dá congestão!”
Sentei em um cantinho
fuçando o telefone
em vão
Vão por onde entrei e não saí
Umas reminiscências gritando
enquanto meu estômago combalia
Liguei o deque
um homem triste cantava coisas tristes
Triste, puxei a lira
e sorri, por que como já vos disse,
eu sei sorrir!

Até em dores.
42

HOJE FUI UMA CASA VAZIA


quem fugis? Extremum fato,
quod te alloquor, hoc est
Virgílio

A porta frontal está anosa, envergada e pêndula,


apinhada de escamas, tem o rodapé putrificado
As janelas dos festins panorâmicos e interiores
com arrimos oxidados, vidros partidos e embaciados
A sala-de-estar em pó e restevas, um sofá obumbrado
um porta-retratos de uma defunta de tredo destino, caído
uma tábua podre e solitária de um antigo atril
uma revista de modas e modos, sempre inútil
A latrina fedorentina de ricos azulejos ornada
já assistiu uma estrelinha desfolhada e divina,
agora dorme deslembrada diante de um espelho baço.
A alcova guarda um fantasma sob a escuridão
é um monstro assombroso que rói-se-lhe entre as paredes
descendo do teto com pedaços de forros podres
sob um piso onde a estrelinha desfolhada e divina
e uma porção contável de loucos amores pisaram,
infelizes, todas albardadas em ludíbrios da sorte
naquele vazio esmorecedor, gastado em tenebrosidade
sob o mesmo piso que ainda resta versos de Virgílio
um deles, se abanado, ainda pode ser lido com clareza.
A cozinha onde habita um armário e um fogão, anosos,
possui uma porta por onde entrou o monstro horrendo
antes segredosa, agora está envergada e pêndula
apinhada de escamas, e tem o rodapé putrificado.
43

ENTARDECER
Oh tarde, oh bela tarde, oh meus amores,
Mãe da meditação, meu doce encanto!
Gonçalves Dias

Oh centelha sonolenta nas copas das árvores,


fulva tal, invídia té dos cabelos mais doirados!
Oh campina cromada, oh bosque penumbroso,
e este burburinho das ruas, da gente andarilha,
rompendo, té que o manto sombrio cubra a terra.

Oh laceração que infeliz recobra mi o peito,


desventura dum vagabundo, feito o entardecer,
feito o anoitecer; nem uma e a ambas igualmente.
Oh que tortura, dilacera logo as fibras infelizes,
Que a tarde traz a noite, e a noite é irmã da morte.

Oh cantiga, como se da vida despedindo, a natureza


enfurecida, calma como um leão da presa saciada;
oh que vida, uma feliz sazão se vai co’a triste tarde!
oh centelha sonolenta nas copas das árvores,
queimando a seiva, acrimonioso ardendo,
sá meditação que a lira sorumbática destoa,
co’a vista do horizonte, o astro rei «des»encarnando…
Mas amanhã, amanhã no romper da alva,
quem acenderá essas mias brasas dormentes?
44

ARCANO SOMBRIO

Tem um dia, um dia qualquer, que parece que o único


desocupado no mundo sou eu.
Nesse dia eu quero sair, encontrar-me com alguém, mas
justamente nesse dia todos os alguéns estão ocupados.
E mesmo que eu vá pelas ruas da cidade, mais teimoso que
destemido, voltarei para casa feito um boémio numa urbe sem
bares.
45

ENMIMESMADO

Dei-me e tanto mais Grizoste voltei


Que passei o dia enmimesmado
Co’as reminiscências ciciando em mi
E cá esse tempo arrefecido e chuvoso
Seguindo os dias tristonhos da mia terra
E os falsos gáudios de acolá do mar
Desvieram em mi co’enastrados pesares
Rebuliçando em ruminações sem fim
Já co’aquele dês-gosto de mêmore gosto
Cá nesse banquinho tantas vezes sentado
Cá traves vim sentar baloiçar as melenas
E tal como, tosadas, as grenhas falharam-me
Ca gris hoste, rude egresso, sen-ti turbilhar
Enastrados pesares, sen-ti me vi só-lidão
Tão crescido em mi, dêss’gosto que já tive.
46

SOLAU À MINHA FORTUNA

Que adianta despertares meu ânimo


se depois entre o meu olhar e o dele
não sabes o que mais queres pra vida

Senhora, eu bem quis saciar-me


no teu regaço as injúrias dessa vida,
num sono profundo e benquisto,
depois de uma noite de deleites;

Eu bem quis dar-te o que aprendi


nos safanões das minhas andanças,
que é feliz o homem que sabe ser,
e não o vil que procura no vácuo.

Senhora, se isso parecer-vos adeus


se romper-lhe uma pequena dor
então não delongues noutra cisma
por que já ouço o silvo do vapor.
47

FEVEREIRO

Deixei Coimbra banhado em lágrimas


Em prantos abracei a melhor amiga
Doía-me vê-la em desesperados carpidos
Senti, novamente, uma baita raiva do destino
Parti, novamente, partido, desesperado.

Com aquele acre na boca avistei Mato Grosso


Ah! Meus amigos! Como doeu ver minha terra!
Meus pais, minhas irmãs, sabendo que ia partir.
E como uma desgraça ou punição dos céus
Um anjo sorriu e meu peito ardeu em brasas.

Entre nãos e sins passei o mês mais curto


Acordado avistando as noites enluaradas
Caminhando com ela pelas ruas vermelhas.
Nesses dias nova desgraça caiu sob mi veloz
Desolado sentei e chorei copiosamente.

Meu peito ardendo sob bons auspícios


Imerso num desejo de não partir e ficar ali,
Com a minha terra e o anjo que encontrei
Entre nãos e sins o mês mais curto se foi,
E um golpe funesto fez-me partir sem adeus.
48

MARINA
Aos companheiros Rafael e Cristiane, Ricardo e Ligia

Marina das pernas roliças e olhares brilhantes


de linguagens capciosas e sorriso comprado
fustigou-me a cítara seus trejeitos petulantes
o engodo a que me meti e em mim agravado.

Foi ter os meus olhos do Dniepre afamado


os teus avistados, e o entusiasmo repentino,
repentino rebentou ao descobrir empanado
que o teu olhar era pérfido e não tão divino.

Sixty five, oh my God! Quem é que me acode.


Fogoso, a terra é de Ártemis, estou arruinado!
Onde é Greggy? Algures procura outro perdido.

Esta Marina das pernas roliças era uma mofina


Dos lábios risonhos, porém tão medonhos
No vale Amazonas não há-de se encontrar.
49

SE SÓ ME DOU, POR UM TEMPO ME SUSTENTO

Se só me dou, por um tempo me sustento,


Mas ao cabo deixo-a com mia aljava vazia
Tão vazia que não vais crer ser mia mesmo
Aí reside a amotinação da mi’alma obstinada
Aí a descrença que alguém saiba’m mi crescer
Mas como aquel’ milagrosa botija de azeite
Em mi ternura nova há-de surgir faiscante
E quiçá gasta-la-ei travez sá insistência infausta.
50

MIA PRECE

Co’as crinas eriçadas revel’s ao vento


não turbo o coração q'uma vez sem ilusão
pus-me andarilho das faustas fadigas
oh não fora o fado em mi ingrato e agravado
dessa vez rebenta qual centos sem contos
u’a nova falseando cuja toda vão saber
Mas, daria amigos, que é por certo vos digo
que esse erro impera e vive sem mia permissão
e se o fado a mi destina só rebentos de ilusão
mais mi atormenta co’estas mágoas
Ah fosse ele só de firme pedra mais valia que torrão
que se molha, nao enfraquece nem co’as vagas
que rebenta aos estrondos sob o espigão.
Mas quis Deus ca’se eu fora malévolo
que esta sina me servisse, cá coubesse mia prece
força fosse, se não, tira me o cálice.
51

NEOTENIA

São tantos olhos capciosos


mas não embrulham-me
que saído lá da fronteira
vaguei preclaros rincões
e nenhum prendeu-me.

Vingo q’agreste sangue hei


rasgo teu riso in mil nacas
co’as custas do meu peito
que se sofro desse jeito
amanhã vais tu chorar.

Se fado c’os céus destina


qu’aparta os pulcros risos
traz sem pena os pérfidos;
ah! pedomorfose ingrata
mia mãe não pod’a mi’afiar.
52

O TEU OLHAR

O teu olhar dizia-me qualquer coisa


e eu fiquei à espreita de entendê-lo,
deixei sua presença com um quê
de quem não sabia o que devia fazer.

O teu olhar tinha um quê de surpresa


uma carência qualquer parecia sair de lá,
um desejo contido pelas conveniências
que o mundo impôs-me sem piedade.

O teu olhar estava carregado de força


que os céus deram-mo à atormentar-me
zombando dos segredos que vi neles.

Bem sabia eu quando fui encontrar-te


tão feliz seria se não os visse tão belos,
mas mais triste se não os vísseis assim.
53

O QUE TEM NOS TEUS OLHOS?

Posso desenhar que te quero


desde que, ao menos, me tragas tintas para a caneta;
poderia dar-te um luzião de quatro costados
se o teu riso fosse além de um sorriso,
e morresse bem aqui nos meus lábios
que tantas vezes troçou do amor dos namorados.
Ai estes meus lábios troçadores
é bem capaz de sucumbir ao néctar dos teus,
porque, conforme um anjo, um homem se conquista pela boca.
Talvez seja, que dos meus lábios, já tivésseis conquistado
palavras de desejos ocultos no coração,
desse sentimento desenfreado que se disfarça,
isto é, se dos teus, menina, se dos teus,
um desejo de só me ver fosse saído sincero.

É que talvez, pra angústia do meu peito


e para o prazer da minha cítara
vi mal este sentimento nos teus olhos.
54

ESSES OLHOS NEGROS


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir; Gonçalves Dias

Quando uns olhos negros se fitam em mim


penetrantes como a espada de um guerreiro,
a vida, essa ingrata, me atravessa pela retina,
ruge em meu peito ca se fora o azo derradeiro.

Aqueles olhos negros brilhantes dum trapézio


dum anjo puro, curioso, estrangeiro e inocente
uivou forte em meu peito dilacerando a fibra
e morreu fininho num silêncio tão conveniente.

Diabo doutros olhos negros e traiçoeiros, fortes,


mas nem tão verdadeiros, interesseiros que eram,
doeu nas minhas vértebras e morreu incólume
Ó! que dádiva ter o fado me poupado este desaire.

Na terra dos mutuns, uns olhos negros me fitaram


me enrolaram como a escuridão embrulha a terra
mas o fado ingrato outra vez me forçava partir,
co’eles luzindo na tenebrosidade da minha alma.

Ai! Que triste estes seus olhos negros cintilantes


dum negro de vivo luzir como se fora de anjos
a luz que irradia e desobscurece o trono de Deus
e eu, sua imagem, distante do luzir dos seus olhos.

À minha capa negra herdada de festins e exegeses


lá se vai esconder mais um dos meus segredos!
É o beijo dos seus ditosos lábios, quiçá só doutro,
que só deixaria de ser segredo se Deus nos unisse.
55

JARDIM PROIBIDO
Depois do terror que os meus olhos viram
Quando a minha estrelinha foi devorada
Sem dó nem piedade naquele escampado
Corri feito desvairado num pavor sem fim;

Coabitei com uma Solidão fina e exaltada


Naquele longo período da minha boémia
Comigo e só lembrando o terrível horror
Olhei para imensidão dos céus e chorei.

Já antes de aquela estrelinha ser devorada


Fui acordado dum sopor que me matava
Como um cego que vê a luz a prima vez
Um clarão forte embaraçou meus olhos

O alpendre enganador fatigou-me os braços


Soltei aquele fardo sem ver os risos imigos
Sai entre as bromélias, cactos e carrapichos
Ao carpido das flores de urtigas em mim.

Espetei as mãos com umas rosas coloridas


Esfomeado e esquecido comi um jaracatiá
Aquele jardim se fez imenso e eu caminhava
Sob encarares duns anjos gentis e faceiros…

Depois de arrancar à roupa uns carrapichos


Lançar sob as asas do vento uns carpidos
Vi uma imensa extensão de montes floridos
Eram margaridas daquela que abalroei ébria

Ah! Esse jardim quiçá devolvia-me o riso,


Se feroz o destino não mo proibisse entrar
Jardim proibido. Grã-desventura dos céus.
É mais um desaire pra minha cítara tilintar.
56

MARGARIDAS DORMENTES

As inquietações do coração são fracas se comparadas com um


instante em que eu só queria fazê-lo vulnerável diante da
plasticidade feminina.
Agora já é vulnerável.
Mas sem ter aprendido as ressonâncias do desespero, o meu
espírito obstinado continua a dar sinais de motricidade.
É grande dureza ter no peito, estancado, um aluvião de
sentimentos bons. Se só uma dessas pedras fossem removidas
as outras não suportariam o peso de tantas águas – jorrar-se-
iam para este escampado donde flores mimosas esperam
amotinadas e adormecidas por um novo reflorescimento.
Se uma só pessoa cismasse quão fácil é remover uma dessas
pedras a minha lira desbotoaria sons novos nunca dantes
entoados, e esse escampado transformar-se-ia num belo e
imenso jardim.
57

A LENDA DAS DUAS MARGARIDAS

Uma margarida caiu da ribanceira


cresceu rodopiando pelas tranqueiras
por regos, riachos, rios e até por mares
já viçosa mas marcada pelos safanões
outra margarida, ao fim dos aluviões,
abalroou-a, e ambas ficaram ébrias.

Antes que um vento esperado passasse


por que vão o destino não se provasse
as margaridas ébrias se foram beijar.
Mas um menino colhia-lhes as pétalas
até que surgiu um vento cor de opala
e separou-as em seivas e despedaçadas.
58

MÃOZINHAS SALGADAS

Quais vagas procelosas enroladas


rebentando em branca espuma
horrendo lacera zurzida escarpa
cujas centelhas precipitam-se;
assim ledas vagas dumas mãos
zurziram veloz em mi i imenso
pondo abaix’o peit’em centelhas.

À riba do imenso e doce mar


afamado por romper imensas
tais precipitar in-finito abismo
cuja voragem similar conheci
ao romper submerso à tormenta
dum mar pequenino e traiçoeiro
e suster nas mãozinhas salgadas.

Infaustos barbantes da cozedura


não cingiram dos sais o coração
antes rompeu-o morte simulada
cujo espertar pôs-o logo alento
barafustando-o co’as tormentas
viu-se té arriba da nívea espuma
pondo o carmim tanto olvidado.
59

ÂNSIA

Essa ânsia que sinto na garganta


é vontade, Senhora, de dizer que a amo,
mas talvez seja demasiadamente cedo
porque nutrindo dos mesmos nutrientes
a muda é bem mais frágil que a árvore...
60

VINTE ANOS
Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.
Menina e Moça - Machado de Assis

Vinte anos! Imerso em desilusão


Com o meu peito rasgado
Que hoje acha-se mais ensimesmado
Sob a própria laceração

Só agora ventura os céus reservava


Tua face tão meiga, tão bela
Que adequada à minha alma revela
Desejos que já nem sonhava

Vinte anos! São os anos que ela tem


Que estorvam minha ânsia
Pondo em prova minha ganância
De amá-la, mais que ninguém.
61

GRIS À LUA

A noite enfeitada é um gris que emana co’a lua prateada


por causa da penumbra essa gente fala mal porque vê mal
Eu ando vestido de gris entre as hostes, tecendo a rede
com um sorriso na cara pelos tristes serões dessa cidade
tendo ao lado seu riso de prata, e todo mundo vê, e fala.
62

LUA MAGNÉTICA
Ao amigo Quirino Arias Cedeño

Oh desgraça remembrança que tive


soou mia lira sorumbática e soturna
num grito esperançado de Lua briosa
de amar e morrer nessa brenha feliz.

E agora me acode u’a musa dos céus


qual vate era a Lua sua lira evocava?
o peito tremendo co’a lira recostada
sem gritos e cantos, emudecidos e só.

E uns negros cabelos du’a Lua de prata


banhando mi’alma sem tino me alegra
mias mãos tateando a cútis manhosa
C’os atos ardis, ébrio, mantém-se de pé.

Oh Lua senhora, fulgura que esgalha,


tormenta das penumbras da mia alma,
se pode tanto assim o gozo recambiar
não bulhes que mais mia alma sabe dar.
63

A ALMA E O ESPÍRITO QUE TENHO

Como é triste a minha vida,


como é triste o meu penar,
como é triste andar no mundo
qual fantasma – a tropeçar!
(Ausência – Gonçalves Dias)

Tenho a alma forte e o espírito fraco


esse obstinado, o outro apático
tanto que um vocifera e outro se cala
numa amargura sem fim

Esse já lutou como a gazela contra um leão


fugindo à presa
o outro deixou-se amarrar como Gulliver
na terra dos liliputianos

Esse inabalável atravessou as imensidões


orgulhoso e fátuo
o outro aquebrantou-se com as faces tristes
desolado té chorou

Esse soltou-se das amarras de um sepulcro


já frio e sem esperança
o outro vendo nos extremos a vida e a morte
dirigiu-se estóico em transe

Esse jamais soltou um canto de infelicidade


só de exasperação
o outro transformou gotas em aluviões densos
e dores em desesperos
64

Esse como soldado inabalável entre as hostes


acudiu o outro
o outro agora no regaço desse gemeu e chorou
com blasfémias aos céus

Ambos encontraram-se com a vergonha


esse altivo, o outro combalido
ambos ouviram com a mesma veemência
esse ponderou, o outro ressentiu-se.
65

FADÁRIO

Eu deixei lá na fronteira a mulher dos meus amores


mais formosa que as flores de sorriso sem igual
(Eulogio Cardoso; versão: Dino Franco)

Passei a vida aflito com as coisas nos arreios


aqui e acolá apeei em busca de prazeres
só encontrei tredos destinos, doidivanas,
por isso que, lisonjeado, parti todas as vezes.

Se agora, senhora, teus olhos veem-me partir


não bulhes, nem chores; não é teu o baldão
desventura nos seus olhos em vão procurar
se parto que neles fiança não pude encontrar

Forasteiro meus olhos já fitaram grã-venturas,


plangentes, o fado ingrato, forçado a partir
incontáveis desesperados carpidos sobrevivi
abatido estalando da lira as cordas agrestes.
66

FADO

O meu caminho é uma agrura sem fim


os céus recusam-me o perdão e a fortuna,
eis mia cruz: perder-me em loucos amores
de-va-gar, sen-ti-r as noites e só-frer as dores.
Todas vezes que o defunto no peito vibra
surge o deus e, sem dó, ordena-me partir.

Agora novo desaire fez tilintar mia lira


em vão barafustaram-me o coração
no meio das tormentas tremeu, e só;
vão rompeu os barbantes da cozedura,
e expulsou o carmesim pelas espumas
até brotar e esvair-se entre a tormenta.

Logo a seguir, num mergulho forçado


fui buscá-lo entre as afogueadas águas
para cozê-lo em resistentes barbantes,
inda co’a agulha na mão, o deus surgiu
co’a ordem repetida e sempre esperada,
mal cosi e novamente par-ti ao acaso.
67

FALHAS CONSECUTIVAS

É a quinta ocasião, falhei outra vez!


E ainda sinto latejar a dor do fracasso
lacerando a honra com esta vergonha
cortando a voz à lira esse erro crasso.

Outra vez vi o meu orgulho queixoso


ser ferido co’ a lança desse fantasma
vergonha, meu Deus, que grosseria,
varão brioso nada vale se ermo pasma.

Na primeira feita abatido e tristonho


os desígnios que tive, não executei,
baloicei as melenas, não me agradava,
mas vergonha infausta, nisso alcancei.

Duas vezes, impiedoso ardeu essa dor


constrangido por um desejo forçoso,
duas vezes vi falhar meu débil ensejo,
aos auspícios do passado vergonhoso

Noutra ocasião não arrisquei intrépido,


era falha certa a marcar-me o cérebro.
Mas dessa vez foi ingratidão dos céus
a quinta vergonha a dar-me no focinho.

Dói-me o peito, nem foi o fado que tive


ter à força fugir aos teus olhos tredos,
mas foi o brio duma esperança falhada
da vergonha não cumprir infaustos ledos.
68

Ser escárnio dos teus lábios traiçoeiros


desditoso mofa o meu juízo ele mesmo
não pode proibir teus risos troçadores,
nem medir tal vergonha por ai a esmo.

Quando vi nos teus olhos o tal fantasma


já sabia, troçaria outra vez o meu destino;
foi golpe fatal, jorrou à seiva da vergonha,
que agora mofa o meu brio em desatino.
69

SE SE MATA DE AMOR

Se se mata de amor! – Não, não se mata,


Quando o amor é sofredor e só atina
O descontentamento de um contente;
Quando não suspeita mal e crê em tudo
Sem jamais se folgar com a injustiça
Sossegado tranquilo ao regaço da verdade,
Correspondido, nunca falha, nem se ufana.

Se se mata de amor! – Sim, se mata,


Quando as labaredas da paixão medram
E as chamas do amor subtraem-se em ódio
Mas nenhum vence a paixão fermentada
Alimentada pelo descaso e a renúncia
Da parte que não amou sem medida.
O amante cego e desvairado vê fatal
Seu desazo em sobreviver a metamorfose
Cresce então grã-dor muda e afiada
Cega-lhe as perspectivas e num golpe fatal
O amor não cede ao ódio a metamorfose
E a paixão enceguece o infeliz amante
Que desfere e mata sem pejo a amada.
70

ÓDIO

O ódio é fogo destruidor que nasce fininho


Arrebenta pungente sob imensa extensão
Arde imponente sob auspícios ingratos
Té exaurir-se e morrer fininho como nasceu.

O ódio é água avassaladora que precipita do céu


Gotícula à gotícula té formar aluviões espessos
Deslizar sob a terra como monstro horroroso
Sulcando té as mais tártaras raízes inda com vigor

O ódio é injúria sofrida sob desejo extremado


Que grave repete ignorando o gemido do aflito
Té matar sadio afeto e fazer-lhe de esterco
pra nascer ingrato e rude onde operou o amor.

O ódio é cegueira e só um prodígio horrendo cura


Ele transforma gente fraca em gigante apavorado
Corre à cabeça uma raiva do mundo e té dos céus
Té o dragão adormecer no peito co’a seiva irado.

O ódio consome até a fé mais crente no mundo


Dilacera sem pejo como o fogo a mata frondosa
Deixando soerguida e erma só nós mesmos
Com os vermes roendo felizes o nosso cérebro.

O ódio quando cresce indómito é chaga mortal


Destrói a sapiência e faz empubescer a loucura
Passa a possuir o coração de quem foi posse
Co’as rédeas nas mãos humilha o vil domado.

Dói mais que a morte, grita mais que a paixão


Sofre mais que o amor, é mais forte que o sismo
E o melhor que se lhe faça é deixar que medroso
Caia exânime co’as forças que possuía ao nascer.
71

MERO SEM ESMERO

Sabe se, quando se sabe


e digo-vos, suspeitei desde o princípio
não é coisa que se orgulha saber
mas ao menos tiramos a dor da injustiça
e metemos lá a dor da consciência,
mas se eu fizesse um poema hoje...
um poeminha que fosse
com uma linha pequena que fosse
o verso mais nobre seria:
Doutor, que baita falta de educação!
72

INTOLERÂNCIA

A intolerância é alucinada certeza


que arreiga e sucumbe a própria razão
instruída em infância ca se fora de veras
corrompe a piedade e a insensatez atina

A intolerância nem é descrença maldita


mas cegueira e opróbrio ca se fora dom
outorgado pela natureza é cousa divina
tal c’o cego ufana-se que olhos não vêem
o cego insiste que a paisagem é mentira
que a cegueira encerra deveras a salvação
e que aquele que diz enxergar é alucinado
um pobre coitado que não sabe enxergar
sem os dons congênitos daquele que apalpa
buscando a vereda do mundo sem indagar.
por aí se vê muita gente de olhos fechados
crente que assim sabem melhor enxergar.
73

ERUDIÇÃO

Instruir-se é partir na direção do infinito,


feito um astronauta no desmedido cosmo
longe co’a vista nos estalos da noite eterna
nas rajadas mia terra era só um brilho a mais
tão exígua como cintilavam outras cercanas
até esvaírem-se ao além do alcance dos olhos
marejados olhos, de saudades e dores tufosos
na escuridão infinda longe das amadas vistas,
em desgraça e padecimento mia voz ecoou
ignorada, um carpido de esconjurada erudição.
Uma doença mortífera acometeu-me as carnes
morri co’as partes putrificadas espedaçando
ninguém viu onde sepultaram-me os restos
mas viram co’a alvura solar surgir mia alma
fui tido por cético em mia terra, de lá expulso,
assim não seria se pudessem ver tal luzência
que queimou mia carne fritando as medulas
que mais almejei desconhecer a juventude,
se fui feliz deveras no ardor da adolescência.
Mas o meu sacrifício foi obra do fado atroz
sabe-se lá por que razão a inquietude da alma!
Invejo a ignorância, julguem-me se quiserem!
Invejo a fé e a descrença, a idiota admiração
que sentem, os néscios, diante da sapiência.
74

UMA TESE

Pelos erros peço desculpas,


pelas gralhas peço perdão,
encontra-los é coisa fácil,
mas cometê-los é mole não.
75

GENTES

Tem Gente que é só mais uma Gente que passa pela Gente;
e tem Gente que parece nem ser Gente;
e tem Gente que é Agente da Gente;
e tem Gente que é Gente da Gente;
e tem Gente que é a Gente;
ainda tem a Gente,
gente
76

POR AGORA ME DESPEÇO

Me despeço, e não será cantando


mas se retardo o canto
é porque um riso em hora assim não sei dar
se tem, contudo, uma coisa que sei fazer
que sei realmente fazer, é caminhar.
77

SE A LIRA DESGRAÇA-SE
Yo no soy más que un poeta,
Sin outro bien que mi lira.
Zorilla

Eis o que tenho, ó Donzela,


Só harpa, alaúde e lira;
Gonçalves Dias

Amar e não ser correspondido é fortuna


quando a lira soa sorumbática e taciturna
aí desgraça-se o poeta com mil desgraças
procela qual se fora mar imenso u’a taça.

Desaire é prender o peito a u’a senhora


logo a lira definha-se, não ruge, nem soa,
o casamento é inconciliável com a poesia
diga lá Homero, Virgílio, Gonçalves Dias

Mas quer desgraça fatal é não soar a lira


quando aquela que incute coito e amor
aparta-se e deixa-nos dores sem carmes
c’a lira co’as cordas torcidas, quebradas.

Seja lá o Parnaso e as linfas da Castália


plácidas ribas do Mondego e Margarida
o fragor do Amazonas, fartem-me musas
e afastem de mi’ aquelas qu’assolam liras.
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