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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

AMANDA GIULIA SARTOR

“SOMOS VIANTES, CONSTRUÍMOS VIAS”: NÃO BINARIEDADE,


CONFIGURAÇÕES SUBJETIVAS E IDENTIDADE

CURITIBA
2022
AMANDA GIULIA SARTOR

“SOMOS VIANTES, CONSTRUÍMOS VIAS”: NÃO BINARIEDADE,


CONFIGURAÇÕES SUBJETIVAS E IDENTIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia, Setor de Ciências Humanas
da Universidade Federal do Paraná, como exigência
para obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Profª Dr ª Norma da Luz Ferrarini

CURITIBA
2022
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA P UBLICAÇÃO (CIP )
UNIVERS IDADE FEDERAL DO P ARANÁ
S IS TEMA DE BIBLIOTECAS – BIBLIOTECA

S a rtor, Ama nda Giulia


“S omos via nte s , cons truímos via s ” : nã o bina rie da de ,
configura çõe s s ubje tiva s e ide ntida de . / Ama nda Giulia S a rtor. –
Curitiba , 2022.
1 re curs o on-line : P DF.

Me s tra do (Dis s e rta çã o) – Unive rs ida de Fe de ra l do P a ra ná ,


S e tor de Ciê ncia s Huma na s , P rogra ma de P ós -Gra dua çã o e m
P s icologia .
Orie nta dora : P rofª. Drª. Norma da Luz Fe rra rini.

1. Ide ntida de de gê ne ro. 2. Nã o bina rie da de . 3. S ubje tivida de .


I. Fe rra rini, Norma da Luz, 1957-. II. Unive rs ida de Fe de ra l do
P a ra ná . P rogra ma de P ós -Gra dua çã o e m P s icologia . III. Título.

Bibliote cá ria : Fe rna nda Ema noé la Nogue ira Dia s CRB-9/1607
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PSICOLOGIA -
40001016067P0

TERMO DE APROVAÇÃO

Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do Programa de Pós-Graduação PSICOLOGIA da Universidade
Federal do Paraná foram convocados para realizar a arguição da dissertação de Mestrado de AMANDA GIULIA SARTOR
intitulada: "Somos viantes, construímos vias": Não binariedade, configurações subjetivas e identidade, sob orientação da
Profa. Dra. NORMA DA LUZ FERRARINI, que após terem inquirido a aluna e realizada a avaliação do trabalho, são de parecer pela
sua APROVAÇÃO no rito de defesa.
A outorga do título de mestra está sujeita à homologação pelo colegiado, ao atendimento de todas as indicações e correções
solicitadas pela banca e ao pleno atendimento das demandas regimentais do Programa de Pós-Graduação.

CURITIBA, 06 de Junho de 2022.

Assinatura Eletrônica
09/06/2022 11:02:05.0
NORMA DA LUZ FERRARINI
Presidente da Banca Examinadora

Assinatura Eletrônica
09/06/2022 15:56:25.0
JAQUELINE GOMES DE JESUS
Avaliador Externo (INSTITUTO FEDERAL DO RIO DE JANEIRO)

Assinatura Eletrônica
09/06/2022 19:50:45.0
DANIEL MAGALHÃES GOULART
Avaliador Externo (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA)

Praça Santos Andrade, 50, 2o andar - CURITIBA - Paraná - Brasil


CEP 80060-010 - Tel: (41) 3310-2644 - E-mail: pgpsicologia@ufpr.br
Documento assinado eletronicamente de acordo com o disposto na legislação federal Decreto 8539 de 08 de outubro de 2015.
Gerado e autenticado pelo SIGA-UFPR, com a seguinte identificação única: 194095
Para autenticar este documento/assinatura, acesse https://www.prppg.ufpr.br/siga/visitante/autenticacaoassinaturas.jsp
e insira o codigo 194095
Dedico esta pesquisa a todas as pessoas
pesquisadoras de gênero e sexualidade que vão
contra a maré de normatividades e preconceitos
que tanto nos atrasam dentro e fora da
academia. Continuemos firmes!
AGRADECIMENTOS

Os agradecimentos na minha monografia, na finalização da graduação em


Psicologia, ocuparam pouco mais que meia página. Aqui a realidade é outra. Percebi
o quanto precisei dessas pessoas que citarei adiante e o quanto foram essenciais
para que eu pudesse caminhar para ser mestre em meio a uma pandemia que nunca
na vida cheguei a cogitar a possibilidade de viver. Sinceramente, não foi somente uma
vez que achei que não conseguiria. Foram vários – muitos, mesmo - tombos e
tropeços no meio do caminho. Não fiz isso sozinha e talvez, para mim, essa seja a
parte mais importante de todo o trabalho.
Antes de tudo, preciso agradecer às pessoas de quem não posso citar o nome
verdadeiro aqui, mas que tão sabiamente escolheram seus nomes fictícios. Amê,
Bokoto, Kafka, Luís Henrique e Tuti: vocês se propuseram a construir essa pesquisa
em conjunto comigo e eu sou tremendamente grata a isso. São parceires de
dissertação. Obrigada por encontrarem tempo e disposição, mesmo em meio ao caos,
acreditando na pesquisa e em mim. Esse trabalho é de vocês também. É coletivo, é
nosso.
“No meio disso tudo, tem uma coisa chamada vida”. Essas são palavras da
Prof.ª Dra. Norma da Luz Ferrarini, que pacientemente me orientou e me incentivou,
compreendendo meus diversos lugares, principalmente como acadêmica e artista.
Acolheu minhas limitações, pontuou minhas qualidades e incentivou-me a ir além.
Obrigada pela parceria e por sempre acreditar em mim, até quando eu mesma duvidei.
Agradeço à Prof.ª Dra. Jaqueline Gomes de Jesus, ao Prof. Dr. Daniel Goulart
e à Prof.ª Dra. Grazielle Tagliamento por aceitarem o convite para ser banca neste
trabalho de conclusão do mestrado. Obrigada por todos os apontamentos cuidadosos
e por me guiarem neste caminho profissional.
Agradeço também à CAPES, que possibilitou a continuidade da pesquisa em
meio a uma pandemia por meio da concessão de bolsa.
À Karollyne Nascimento, do Transgrupo Marcela Prado, que me acolheu
quando fui voluntária e estagiária no grupo, sempre com seu jeito querido e
carismático de ser. Obrigada pela oportunidade! Foi a partir dela que ampliei meu
olhar e pude realizar esta pesquisa.
Majo e Miguel, obrigada por terem compartilhado comigo suas vivências e, com
isso, inspirado parte da busca por pesquisar não binariedade na Psicologia. Que
vocês continuem conquistando sempre novos espaços!
Sara, Tati e Victor, por me auxiliarem quando eu não compreendia alguns
processos novos do mestrado. Adri e Fer, por serem mulheres pesquisadoras fortes
e potentes que me inspiram a continuar. Rafa, por sempre escutar carinhosamente os
debates, mesmo pesquisando uma área diferente e por me auxiliar nos momentos
finais da dissertação.
Lissa, por aceitar ler esta pesquisa com sua doçura e criticidade. Obrigada
pelos apontamentos e considerações.
Agradeço também aos lugares por onde viajei pelo Brasil, que me inspiraram
com seus mais diversos cenários e me trouxeram pontos de vista diferentes sobre
meu tema de pesquisa.

(Aqui é o momento em que meus olhos marejam).

Agradeço à minha mãe, Ivone, que me ensina todo dia sobre o amor, sobre
importar-se com as pessoas, sobre acreditar em si e respeitar-se. Você é minha base,
mãe. Eu te amo e tenho muito orgulho disso. Obrigada pela companhia, pelos chás
quentinhos e pelos: “Vamo, Amanda! Levanta essa cabeça, você é poderosa!”
Ao meu pai, Paulo, que me ensina sobre determinação, foco e sobre atenção
aos detalhes e sensibilidade. Fico abismada com a quantidade de coisas que você
sabe, pai. Isso sempre me incentivou a estudar e a aprender cada vez mais. Obrigada,
amo você.
À minha irmã Elana, com quem dividi momentos de felicidade e angústia,
sempre de forma intensa. Saiba que suas músicas foram trilha sonora dos meus
estudos por muitas vezes. Obrigada por, mesmo longe, estar comigo. Te amo desde
sempre e para sempre.
À Lary, minha querida prima-irmã, que fez body doubling quando precisei,
fazendo-se fisicamente presente para me ajudar a produzir e a escrever esta
dissertação. Que me acolheu em sua casa com a presença ilustre da Amy, gatinha de
estimação – e comedora de tapetes - mais amorosa. Obrigada também pelas
comidinhas, filmes, ombros para chorar e caminhadas pela manhã. Ainda, nossos
“updates do caos” me faziam ficar diariamente mais tranquila, sabendo que poderia
compartilhar as situações caóticas e ser escutada com carinho.
À minha prima Mariana Sartor, doutoranda em Psicologia, por quem eu tenho
tanta admiração. Obrigada por me apresentar esta profissão linda, por estar sempre
disposta a trocar ideias, a pensar sobre a vida e a dar boas risadas. Fico muito feliz
que tenhamos nos aproximado nestes tempos.
Ao dindo Carlos, que sempre me instiga a desbravar o mundo, acolhendo-me
em sua casa no Rio de Janeiro - cidade tão importante para essa pesquisa - e me
levando para os rolês mais “diferentes” e divertidos. Você me inspira e me motiva ao
movimento. Ficar parada não faz parte do que eu sou e você me conhece.
Ao Gabs, por ser o respiro de poesia e compreensão de que precisei em
diversos momentos, por ter respeitado e acolhido os processos da vida que
acontecem simultaneamente à pesquisa. “Todos os dias olho no espelho e vejo o que
você transformou crescendo”. Esse poema você escreveu para mim, mas eu digo que
ela também vale do meu coração para o seu.
Angel, obrigada por ser presente, tanto no sentido de estar comigo e incentivar-
me constantemente quanto no de ter se tornado um presente embrulhado em carinho,
atenção e amorosidade.
À Gi, pelos áudios de encorajamento e animação, aos quais me voltei quando
a dificuldade em desenvolver a escrita batia à porta. Obrigada também por ser uma
teacher perfeita e estar disposta a me ajudar.
Ao André, por ter me auxiliado nas transcrições das dinâmicas conversacionais
com um olhar cuidadoso e sensível. Obrigada por acreditar em mim, pelas metáforas
que tanto conversam com o que entendo da vida, pela compreensão e acolhimento.
Obrigada aos meus amigos e amiga “pedaleiros”, “bicicleteiros”, Laís, Erik e
Hiago, que saíram comigo pelas ruas de Curitiba para mexer o corpo, tomar um ar e
ver o pôr do sol (quando ele quis aparecer). Hiago, também, por se mostrar tão
disponível quando precisei compartilhar angústias e desabafos. Erik, pelo olhar
atencioso e abraços quentinhos. Laís, por me auxiliar na reta final e torcer por mim.
Ao Andrey, por não ter hesitado em me enviar mensagem e, desde então, ter
possibilitado uma amizade sincera e profunda que quero comigo para a vida. Você é
muito especial. Obrigada pelos conselhos, pelo vôlei nas terças, por ouvir
reclamações, por reclamar junto, oferecer apoio e pelas conversas de horas que me
fazem muito bem.
Ao Adriano, por interessar-se pelas extensas explicações quando eu tinha
algum insight relacionado à pesquisa, por me impulsionar e incentivar de forma alegre
e animada a expor e compartilhar conhecimento. Você é inspiração.
À Fabi, minha psicoterapeuta, que me acompanha nesta caminhada um tanto
quanto caótica e me possibilitou, com sua escuta atenta e precisa, principalmente lidar
com questões pessoais difíceis ao mesmo tempo que eu precisava escrever esta
dissertação. Você foi essencial. Muito obrigada!
À querida professora Viviane Rodrigues que, em 2016, quando eu estava
irritada e desanimada com os posicionamentos preconceituosos de algumas pessoas,
incentivou-me a criar projetos e a pesquisar. “Foca no amor e na dignidade!” E foi isso
que levei na bagagem durante estes anos.
Também escrevo em memória do professor Luciano de Sampaio, que deixou
este plano em 2022, pouco tempo antes da finalização desta pesquisa. Cinco dias
antes de sua partida, ele me escreveu por uma rede social: “Você ainda tem o arquivo
do seu autorretrato sem presença dos tempos do IFPR? É uma imagem que eu
menciono com frequência em aula como criativa e cheia de significados imagéticos”.
Infelizmente, eu não vi essa mensagem a tempo. Ele me provocou a ser sempre
criativa e criadora de novas possibilidades dentro da fotografia. Isso se expandiu,
professor. Eu utilizo a criatividade na vida. Muito obrigada por ter me ensinado e
incentivado a desenvolver este lado. Que você seja luz onde quer que esteja.
não quero que digas mulher
não quero que digas homem
quero que digas o nome
que escolhi para
mim

Francisco Mallman
RESUMO

A não binariedade é um assunto que tem se popularizado e promovido debates


principalmente no movimento LGBTI+ e, mais especificamente, no movimento trans.
No âmbito acadêmico dos estudos de diversidade de gênero e sexualidade são
recentes as produções que abarcam a temática de forma central. Tendo em vista os
pressupostos da Teoria da Subjetividade de González Rey, esta pesquisa teve como
objetivo geral compreender as configurações subjetivas da não binariedade de
pessoas que se autoidentificam como não binárias, por meio da Metodologia
Construtivo-interpretativa, apoiada nos princípios da Epistemologia Qualitativa, que se
referem à singularidade com status epistemológico e à pesquisa com caráter
construtivo-interpretativo, singular e dialógico. Participaram desta pesquisa cinco
pessoas que se autoidentificam como não binárias e participam de um coletivo
artístico trans. Foram realizadas duas dinâmicas conversacionais individuais e uma
dinâmica conversacional em grupo. A partir de conceitos da Teoria da Subjetividade
e sua relação com sexualidade; Apresentação de diferentes concepções de
identidade e análise de suas aproximações e distanciamentos da concepção de
identidade proposta pela Teoria da Subjetividade; Diálogo com diferentes concepções
de gênero, foi possível ampliar compreensões sobre não binariedade, juntamente às
vivências não binárias apresentadas. Algumas vias nas diferentes experiências de
vida não binárias são compartilhadas: O não lugar; A nomeação – não binária ou outra
– como identidade e lugar político; A língua e a linguagem com possibilidades de
experimentação - linguagem neutra, poesia, literatura, arte, corporeidade -, como
escoamento de sofrimentos e angústias e como potente via de conexões e contatos;
Processos de transição de gênero que transcendem uma ideia de ponto de partida e
chegada, mas dizem respeito a um processo contraditório, entre emoções e
tensionamentos diversos, para além de nomenclaturas biomédicas e patologizações.
É proposta, portanto, uma concepção de metamorfoses de gênero, que transcende a
simples mudança de forma ou de essência. Esta metamorfose de gênero se expressa
de forma singular nas pessoas participantes. Nos posicionamentos de gênero
enquanto uma identidade que lhes localiza Metamorfose como movimento cuidadoso
de identidade. Metamorfose como alquimia de si, como criação, estudo e
aprofundamento das possibilidades de vivenciar gênero, para além de algo
categórico, socialmente determinado ou construído e constituído. Metamorfose pela
comunicação, espontaneidade e acolhimento às diferenças. Metamorfose produzindo
vias, sendo “viantes” em busca de um mundo possível e plural em suas mais diversas
singularidades. O que une a diversidade também é a própria diferença. Por fim, esta
pesquisa não se conclui. Expande-se.

Palavras-chave: Não binariedade; Gênero; Subjetividade; Identidade; Psicologia.


ABSTRACT

The non-binary gender identity is a subject that has become popular and promoted
debates mainly in the LGBTI+ community and, more specifically, in the trans
community. In the academic field of gender and sexuality diversity studies, the
productions that address the theme in a central way are recent. Considering the
assumptions of González Rey's Theory of Subjectivity, this research had the general
objective of understanding the subjective configurations of non-binarity of people who
self-identify as non-binary, through the Constructive-Interpretative Methodology,
supported by the principles of Qualitative Epistemology, which refer to the singularity
with epistemological status and the research with constructive-interpretative, singular
and dialogical character. Five people who self-identify as non-binary and participate in
a trans art collective took part in this research. Two individual conversational dynamics
and one group conversational dynamic were carried out. From concepts of Subjectivity
Theory and its relation with sexuality; Presentation of different conceptions of identity
and analysis of their proximity with the conception of identity proposed by Subjectivity
Theory; Dialog with different conceptions of gender, it was possible to broaden
understandings about non-binarity, along with the non-binary experiences presented.
Some pathways in the different non-binary life experiences are shared: The non-place;
The naming - non-binary or other - as identity and political place; Language with
possibilities of experimentation - neutral language, poetry, literature, art, corporeality -
, as an outlet for suffering and anguish and as a potent way of connections and
contacts; Gender transition processes that transcend an idea of starting and ending
point, but concern a contradictory process, among diverse emotions and tensions,
beyond biomedical nomenclatures and pathologizations. Therefore, a conception of
gender metamorphosis is proposed, which transcends the simple change of form or
essence. This gender metamorphosis is expressed in unique ways in the participants.
In the positioning of gender as an identity that locates it Metamorphosis as a careful
movement of identity. Metamorphosis as alchemy of self, as creation, study and
deepening of the possibilities of experiencing gender, beyond something categorical,
socially determined or constructed and constituted. Metamorphosis through
communication, spontaneity, and welcoming differences. Metamorphosis producing
ways, being a pathway (viantes) in search of a possible and plural world in its most
diverse singularities. What unites diversity is also difference itself. Finally, this research
does not conclude itself. It expands.

Keywords: Non-binary identity; Gender; Subjectivity; Identity; Psychology.


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 13
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 18
1. TEORIA DA SUBJETIVIDADE E SEXUALIDADE............................................................... 23
1.1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA DA SUBJETIVIDADE ........................................ 23
1.2 SEXUALIDADE E SUBJETIVIDADE ........................................................................................ 29

2. IDENTIDADE(S): CONCEPÇÕES E DIFERENCIAÇÕES ......................................................... 32


2.1 IDENTIDADE COMO CONFIGURAÇÃO SUBJETIVA ................................................................ 38

3. GÊNERO ........................................................................................................................ 43
4. NÃO BINARIEDADE: UMA BREVE APROXIMAÇÃO ......................................................... 50
5. PRINCÍPIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS ..................................................... 55
5.1 PARTICIPANTES ................................................................................................................. 60
5.2 O CENÁRIO SOCIAL DA PESQUISA....................................................................................... 61
5.3 INSTRUMENTOS ................................................................................................................ 62
5.3.1 MOMENTOS INFORMAIS ................................................................................................................. 63

6. CONSTRUÇÃO DA INFORMAÇÃO ................................................................................... 64


6.1 VIVÊNCIAS NÃO BINÁRIAS ................................................................................................. 65
6.1.1 O MOVIMENTO: LUÍS HENRIQUE ..................................................................................................... 67
6.1.2 ALQUIMISTA DE SI: AMÊ .................................................................................................................. 96
6.1.3 CALEIDOSCÓPIO: TUTI ....................................................................................................................124
6.1.4 EM BUSCA DO MUNDO: KAFKA ......................................................................................................145
6.1.5 SER VIANTE: BOKOTO .....................................................................................................................171

6.2 VIAS COMPARTILHADAS .................................................................................................. 203


6.2.1 METAMORFOSES PARA ALÉM DA LAGARTA E A BORBOLETA ..........................................................205

7. PARA NÃO CONCLUIR ................................................................................................. 211


REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 215
APÊNDICE A - FORMULÁRIO ONLINE ............................................................................... 220
APÊNDICE B - MAPA COGNITIVO - Conversas com participantes ..................................... 221
ANEXO A – TCLE .............................................................................................................. 222
13

APRESENTAÇÃO

Começarei pelo fim.


No último encontro realizado em grupo em 2021, como forma de fazer parte do
que foi proposto, escrevi uma nota sobre o processo de pesquisa até aquele momento
e sobre a forma como cada pessoa me marcou.

Tudo bem ser uma nota

Minha escrita é a do desabafo. Essa é uma nota no meu notebook. Há anos


escrevo em cadernos para guardar memórias e sentimentos, para não
desacreditar de mim. É assim que escolhi, portanto, participar hoje. Um relato
do que me toca.

Iniciei a pesquisa com muitas idealizações de como seria, sem mesmo


imaginar que logo viria uma pandemia varrendo todos os sonhos que
salpiquei pelos diversos dias do ano.

Me surpreendi. Me surpreendi pelos encontros, pelas pessoas que tive a


honra de conhecer um pouco.

Um dia, em supervisão, comentei com minha orientadora: “Cada uma dessas


pessoas são um Universo. Dentro deste Universo tem uma galáxia, que tem
um planeta, que tem um continente, que tem um país, que tem um Estado,
que tem uma pequena cidade com uma lagoa. Esta lagoa tem alguns metros
nos quais me atrevo a entrar e sou apresentada. É fascinante. Um pedaço de
história, um resquício de existência compartilhada comigo. Me encanto
porque, mesmo sendo tão pouco, ainda faz parte deste grande todo que se
mantém, de alguma forma, em equilíbrio”.

Conheci o movimento de Luís Henrique. Um barco que navega em meio ao


mar turbulento, propondo-se a se (re)conhecer e a transformar aquilo que um
dia já lhe fez mal, para que outras pessoas possam experienciar um mar mais
calmo.

Vi Amê, um alquimista de si que, ao deter uma matéria bruta, a transforma,


experimenta, sente. Outras possibilidades de si vivenciadas não só
teatralmente, mas também no próprio corpo que acompanha o cotidiano.

As várias cores de Tuti formam um caleidoscópio que nem sempre é visto por
dentro. Isso só passa a acontecer quando Tuti se propõe a mostrar as cores
para o mundo, expondo suas opiniões, sua vivência, seu jeito singular de ser.

“Eu sempre quis ganhar o mundo”. Talvez eu não entenda por completo o
que isso quer dizer para Kafka, mas com certeza o mundo tem muito a ganhar
com a sua presença. Alguém que foi em busca do que acredita, mesmo que
fossem apresentadas dificuldades.

Bokoto, em suas próprias palavras, é “viante”. Constrói vias. Vias pela saúde
mental, pelo contato amável e pelo olhar atento com outres.

Sinto uma gratidão imensa pela participação e disponibilidade de vocês para


construir a linha guia desta pesquisa. Eu acredito muito na construção
14

conjunta por meio do diálogo e a Psicologia brasileira tem muito a ganhar com
isso.

Talvez isso seja mais que uma nota.

Esse é um bom resumo de tudo que a pesquisa e essas pessoas representam


para mim. Agora, quando já foi apresentada a intensidade, profundidade e
emocionabilidade que esta pesquisa envolve e na qual é envolvida, vamos aos
motivos pelos quais cheguei até aqui.
Meu contato com a pesquisa se deu no início da graduação. Apesar de ter
produzido um trabalho de conclusão de curso no Ensino Médio Técnico em Processos
Fotográficos, no Instituto Federal do Paraná (IFPR), ainda não se tratava de uma
pesquisa universitária. Acostumei-me com a forma, adequei-me a ela e conformei-me
com o fato de que a escrita científica precisaria ser fechada, séria, monótona e
rebuscada. Confesso que “desaprender” isso foi mais custoso do que aprender.
Com a escrita da monografia, nos anos finais da graduação em Psicologia na
UFPR, pude ser orientada pela Prof.ª Dra. Norma da Luz Ferrarini - minha então
orientadora de mestrado - e ela abriu-me um espaço que até então eu não havia
acessado por achar que não cabia. O que me surpreendeu é que realmente não cabe.
É preciso quebrar algumas barreiras e subverter algumas lógicas. A diferença é que,
por meio do incentivo e compreensão da professora Norma, eu pude acessar a (p)arte
que me faltava para, de fato, engajar-me em algo que fizesse sentido para mim
enquanto pesquisadora e enquanto artista.
Meu contato com o meio artístico vai da pintura, escultura e literatura até a
música, cinema, teatro e fotografia. Essa última sendo também uma de minhas
profissões. Perceber os detalhes e compartilhá-los está entre as coisas que mais
gosto de fazer. Sendo assim, espero que esta pesquisa, com a parceria das pessoas
participantes, ofereça um olhar atento aos detalhes, com menos respostas e mais
perguntas. Não é possível abandonar esta dimensão de minha identidade e, por isso,
aqui proponho uma escrita que também é poética e, nem por isso menos válida, nem
por isso menos crível. É uma escrita que pode ter cor, afinal, estamos falando da vida
em suas mais diversas metamorfoses.
Peço que guarde esta informação ou, como costumo dizer, “guarda na mão”,
que logo voltaremos a ela; mas, antes, comentarei sobre a aproximação com a
temática deste estudo.
15

Desde o início da graduação em Psicologia na Universidade Federal do Paraná


(UFPR) já me interessavam as questões sobre gênero e sexualidade. Recordo-me de
quando, em 2015, no segundo semestre do primeiro ano da graduação, para participar
do processo seletivo do Programa de Educação Tutorial - PET Psicologia, ainda sem
saber muito bem como funcionava, realizei meu primeiro projeto de pesquisa sobre a
cirurgia de mastectomia e a percepção dos homens trans sobre sua autoimagem.
Obviamente, eu não tinha muito aprofundamento e conhecimento naquele momento
e o projeto, mesmo que possibilitando minha aprovação no PET, não seguiu adiante
por não ter pessoas que me pudessem orientar dentro dessa temática. Neste
momento, fui para uma área totalmente diferente de pesquisa. Todavia, por conta do
interesse ainda permanecer, busquei disciplinas em outros cursos – Antropologia, com
a professora Fernanda Azeredo, e Ciências Sociais, com a professora Marlene
Tamanini - que abordassem o tema.
Em 2016, formei-me como Promotora Legal Popular (PLP), por meio de um
curso promovido pelo projeto de extensão do Departamento de Direito da UFPR, o
qual, por meio das bases do feminismo interseccional e da Educação Popular de
Paulo Freire, busca a formação de mulheres - cis, trans e travestis - com fins de
ampliar e aprofundar conhecimentos acerca de seus direitos, acesso à justiça e
combate à opressão e discriminação.
Ainda nos anos iniciais da graduação, procurei a professora Norma para
conversar sobre meus interesses de pesquisa e, em 2018, realizei uma oficina no
projeto de extensão coordenado por ela: O Ser e o Fazer na Universidade. A oficina,
intitulada O Corpo Grita, foi dividida em oito encontros com temas diversos
relacionados à sexualidade. Fui facilitadora juntamente à minha colega Adriane Mussi.
Essa oportunidade de colocar-me em um processo ativo dentro do espaço que ocupo
me fez crescer e interessar-me ainda mais pela temática de gênero e sexualidade,
abrindo portas para novas oficinas e produções.
Algumas dessas oficinas foram: Este corpo é meu, que abordou a temática da
sexualidade na adolescência; Laços, minha vida mudou, para migrantes, na qual
conversamos sobre relacionamentos e a vida no Brasil; Ela zela por nós e nós zelamos
por ela, para as mulheres trabalhadoras terceirizadas da limpeza da UFPR, oficinas
nas quais foram trabalhados diversos conteúdos relacionados às suas vidas por meio
de apresentações temáticas realizadas por profissionais de outras áreas além da
Psicologia. Ademais, foram realizadas parcerias com outros projetos, como a oficina
16

O corpo grita (2ª edição), realizada no Colégio Estadual Leôncio Correia e a parceria
com o projeto de cerâmica do Departamento de Artes da UFPR, com as oficinas Algo
a Dizer: Cerâmica e questões LGBTI+, nas quais foram elaboradas peças de cerâmica
ao mesmo tempo em que se discutiram questões sobre as vivências pessoais e
coletivas da comunidade LGBTI+.
Em 2018 fui também voluntária no Transgrupo Marcela Prado, em Curitiba, e
no ano seguinte, em 2019, tive a oportunidade de fazer um estágio em saúde neste
local, onde realizava atendimentos clínicos como parte dos requisitos da graduação
em Psicologia, supervisionada pela professora Joanneliese Freitas. Foi por meio do
contato e do atendimento a duas pessoas não binárias que percebi a falta de bases
na Psicologia sobre esta especificidade. Nesse momento, a presente pesquisa
começou a ser esboçada.
Quando pensei sobre o tema, enquanto pessoa cis, preocupei-me com o
histórico de pesquisas realizadas nesta área, que se voltam a perspectivas
medicalizantes e biologicistas quando se referem a identidades trans. Por que não
pesquiso sobre a cisgeneridade? Sobre a binariedade? Esse poderia ser um caminho,
porém, não daria conta do problema que se apresentava, que era justamente a
invisibilidade e falta de conhecimento produzido academicamente. Então, optei por
explicitar a questão da não binariedade e, por meio dela, também propor ligações com
as compreensões de binariedade, cisgeneridade e suas construções que, quando
ligadas a normativas e imposições sociais, causam sofrimento, marginalização,
preconceito e discriminação.
Com isso, considero importante deixar nítidos alguns pontos logo na
apresentação. Não se trata de “pesquisar pessoas não binárias”. Meu objeto de
pesquisa é a subjetividade, não são pessoas. Meu lugar enquanto psicóloga não é o
de legitimar nem validar nenhuma identidade. Não sou porta-voz do movimento não
binário e nem me proponho a sê-lo. Não se trata do que é “certo”, “errado”, “normal”
ou “anormal”.
Minha principal contribuição como pesquisadora está no conhecimento amplo
da área de sexualidade e gênero sob a perspectiva da Psicologia e por meio da Teoria
da Subjetividade, mas de forma alguma eu conseguiria realizar esta pesquisa sem a
parceria das pessoas que se dispuseram a participar e a trazer pontos importantes
para ampliar as compreensões sobre não binariedade e tantas outras dimensões que
17

a transcendem e a ela estão relacionadas. A escrita proposta aqui é viva, crítica e


compartilhada.
Aqui peço que pegue o que guardou na mão. A arte foi o aspecto que me ligou
diretamente às pessoas participantes. O vínculo criado pelo que chamei de “ponto de
contato” possibilitou, de fato, o envolvimento emocional e a conexão, principalmente
no que se refere à poesia e à compreensão sensível por meio de metáforas.
Por fim, há duas afirmações de que não abro mão e que guiam esta pesquisa:
A diversidade não é o problema. O conhecimento combate a ignorância e o
preconceito.
18

INTRODUÇÃO

A sexualidade é um conceito dinâmico e pode ser compreendida como um


aspecto amplo da vivência humana, formada por um complexo sistema biológico,
psicológico, cultural, social e histórico, abarcando os conceitos: identidade de gênero,
expressão de gênero, orientação sexual e sexo 1 (CIASCA; HERCOWITZ; LOPES
JUNIOR, 2021). De acordo com Maria de Fátima Araújo (2002), a sexualidade é uma
construção social que abrange os vários efeitos produzidos nos corpos, nas relações
sociais e comportamentos. O controle das práticas e comportamentos sexuais,
portanto, muda conforme também mudam as ideologias sociais.
O gênero e a sexualidade são vivenciados de diferentes formas por cada ser
humano. Uma comunidade que literalmente ergue a bandeira sobre esta pluralidade
e diversidade sexual e de gênero é o movimento LGBTI+ 2. A sigla com essas letras,
especificamente, é utilizada nesta pesquisa por eu concordar, enquanto
pesquisadora, com a padronização - relacionada aos lugares políticos – acordada na
conferência3 nacional realizada em 2019, na qual a letra “I” passou a integrar a sigla
representando pessoas Intersexo e o “+” como forma de incluir a diversidade de
gêneros e sexualidades. Também outras formas de nomeação são possíveis por meio
da inclusão de outras letras. No decorrer da pesquisa aparecerão essas formas por
terem sido utilizadas pelas pessoas participantes.
Esta pesquisa pretende dar enfoque maior a identidades de gênero que não
são conformes4 à lógica binária e, consequentemente, aos padrões binários
socialmente constituídos e que se autoidentificam desta forma, ou seja, pessoas não
binárias.
Recentemente, a discussão sobre não binariedade ganhou notoriedade
nacional principalmente em função de ações e debates nas redes sociais. Cabe

1
Para uma compreensão histórica acerca do sexo, indicamos a leitura: LAQUEUR, Thomas.
Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
2
LGBTI+ = Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Trans, Travestis e Intersexo. O “+” representa todas
as outras possibilidades que não estão descritas na sigla, como por exemplo, assexualidade (pessoas
que não sentem atração sexual ou a sentem de forma bem específica) e pansexualidade (atração por
pessoas independentemente do gênero com o qual elas se identificam ou não se identificam). A não
binariedade poderia já ser representada pelo T de pessoas trans, considerando a pluralidade de
identidades trans, porém, também podemos compreendê-la como sendo parte do “+”.
3
Ver: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/764-16-conferencia-movimentos-lgbti-
unificam-posicionamentos-e-reafirmam-a-defesa-do-sus
4
Durante as dinâmicas conversacionais foi comentado sobre o termo “gênero dissidente” também
como uma possibilidade de se nomear estas identidades. Entretanto, para melhor compreensão, foi
decidido neste momento mantê-las conforme constam no corpo do texto.
19

salientar que não significa que seja algo que surgiu na atualidade, mas sim, que se
popularizou recentemente. Tendo isso em vista, as identidades de gênero não binárias
são identidades trans - por não se identificarem com o gênero designado ao
nascimento - e têm suas especificidades. Uma pessoa pode se autoidentificar como
não binária somente ou também pode ser um termo “guarda-chuva”, que abrange, de
acordo com Saulo Vito Ciasca, Andrea Hercowitz e Ademir Lopes Junior (2021):
“agêneros, genderfuck, genderqueer, two-spirit5, neuter, neutrois, bigênero, trigênero,
gênero fluido, dentre outros” (p.15). Algumas pessoas também se identificam como
transmasculinos/es não binários/es ou transfemininas/es não binárias/es. A identidade
de gênero, segundo Ciasca, Hercowitz e Lopes Junior (2021) é algo próprio da
identificação de cada pessoa a partir de suas próprias referências. No caso desta
pesquisa, a pretensão é de partir de vivências singulares por meio de uma construção
dialógica e conjunta e não fazer uma espécie de categorização ou nomeação que
possa, mesmo sem intenção, reduzir a vivência e a experiência destas pessoas.
Aqui são trazidas algumas informações com o intuito de oferecer,
principalmente, um panorama social sobre violência, falta de dados e, por outro lado,
algumas ações de resistência na contramão de um cenário que não tem produzido
vida.
Dados de 2019, do Relatório do Grupo Gay da Bahia, apontaram para o caso
de suicídio6 de um casal não binário em São Paulo, na cidade de Ribeirão Pires. No
relatório é feita a relação entre esse caso e as diferentes formas de morte por
transfobia especificamente relacionadas ao suicídio.
No Dossiê7 de 2019 dos Assassinatos e da Violência contra pessoas Trans da
Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), demonstra-se dificuldade
na padronização de dados relacionados à identidade de gênero das vítimas, sendo
mulheres trans e travestis interpretadas como “gays afeminados” e homens trans
como “lésbicas masculinizadas”. Sendo assim, no caso de pessoas não binárias, o

5
Ver: BORGES, Dandriel Henrique da Silva. Indígenas trans? Da América do Norte à América do Sul,
um trajeto inicial de pesquisa. In: MORGADO, Morgan (Org.). A primavera não binárie: O
protagonismo trans não-binárie no fazer científico. Florianópolis, SC: Rocha Gráfica e Editora,
2021. (Selo Nyota).
6
Ver: http://www.frrrkguys.com.br/ares-soren-casal-trans-nao-binarie-morre-em-sao-paulo/
7
Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/01/dossic3aa-dos-assassinatos-e-da-
violc3aancia-contra-pessoas-trans-em-2019.pdf - Acessado em 07/06/2021
20

desafio é ainda maior, principalmente por falta de conhecimento/interesse sobre a


diversidade de gênero.
No Dossiê da ANTRA lançado em 2021 (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021), mas
que se refere ao ano de 2020, pontua-se ainda a invisibilidade de pessoas não
binárias e afirma-se que o contexto violento em que travestis, mulheres trans, homens
trans e pessoas não binárias vivem, decorre da discriminação e preconceito social
que excluem essa população, violando direitos humanos e comprometendo a sua
saúde física e psicológica. Altos índices de suicídio são identificados nesta população,
principalmente entre mulheres trans e travestis, apesar de ideações suicidas serem
mais apresentadas por homens trans e pessoas não binárias transmasculines.
Inclusive, as violências não ocorrem somente nos ambientes físicos, mas também em
ambientes virtuais.
Em 14 de julho de 2020, aconteceu a 1ª Semana Nacional do Orgulho e
Visibilidade Não-Binária8, idealizada por Lírio Negro9, artista não binárie10 e ativista
em Direitos Humanos. O evento foi realizado pela Coordenação da Área Não Binária
da Aliança Nacional LGBTI+ e Afiliades com a intenção de, além de dar visibilidade
ao tema, como o próprio nome sugere, promover conscientização e sensibilização
social.
Em algumas das lives11, pessoas que estavam promovendo os debates e
falando sobre o tema sofreram ataques relacionados ao uso de linguagem neutra 12,
por se identificarem como pessoas trans 13, e ainda comentários relacionados à sua
aparência física e expressão. Muitos destes ataques partiram, infelizmente, de
pessoas de dentro do próprio movimento LGBTI+. Vale salientar que as discussões

8
Nota Oficial da Aliança Nacional LGBTI+ de congratulações pelo dia 14 de julho, Dia Internacional do
Orgulho e Visibilidade Não-binária: https://aliancalgbti.org.br/2020/07/14/nota-oficial-da-alianca-
nacional-lgbti-de-congratulacoes-pelo-dia-14-de-julho-dia-internacional-do-orgulho-e-visibilidade-nao-
binaria/
9
Coordenador Titular da Área Não-Binária da Aliança Nacional LGBTI+, Coordenador Adjunto da
Aliança Nacional LGBTI no Estado de Alagoas e Coordenador do Coletivo O “Quê”, do Movimento
MCZ/AL.
10
A utilização da letra “e”, em “não binárie”, não denota gênero.
11
Exibições audiovisuais ao vivo no Facebook e Instagram.
12
Linguagem não binária/inclusiva/disruptiva é a utilizada para não demarcação de gênero em
determinadas palavras. Ver: https://diversitybbox.com/pt/manifesto-ile-para-uma-comunicacao-
radicalmente-inclusiva/. Algumas das pessoas participantes desta pesquisa também usam os
pronomes “elu/delu”, além da letra “e” como substituta de “a” ou “o” em algumas palavras que denotam
gênero.
13
“Pessoa trans” sendo compreendida aqui como aquela que não se identifica com o gênero que foi
designada ao nascimento. Não sendo relacionado necessariamente à vontade de realizar
procedimentos cirúrgicos ou hormonização.
21

dentro do movimento sobre essa temática têm se direcionado para aspectos reflexivos
importantes, como as diferenciações de classe social, raça/etnia e geração ao se
tratar da não binariedade, mas extrapolam seus objetivos quando se tornam violentas
e discriminatórias.
Já em 2021, foi criada a Articulação Brasileira Não-Binárie (ABRANB), o que é
citado por Bokoto14, participante desta pesquisa, como algo positivo e indicativo de
movimentação e organização entre pessoas não binárias brasileiras na luta por
direitos e na contramão de imposições normativas.
Tendo em vista os aspectos apresentados e considerando a atualidade e
urgência do tema, esta pesquisa propõe-se a contribuir com mais informações e
conhecimentos acerca de uma realidade com a qual pessoas estão se
autoidentificando. A aproximação da temática será feita a partir da Teoria da
Subjetividade, que terá seus conceitos e pressupostos explicados no decorrer da
pesquisa.
Abordar esse tema nos estudos de sexualidade partindo do campo da
Psicologia pode trazer às/aos psicólogas/es/os – porém, não somente - um olhar não
patologizante e não estigmatizante sobre as identidades e expressões de gênero não
binárias. De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2019, p. 206):

[...] importa afirmar e denunciar as malhas discursivas e enunciativas que


formam o tecido social da violência e do ódio para com as diferenças, isto é,
as condições que permitem que algumas existências sejam tidas como vidas
possíveis e outras como não legítimas.

A Psicologia, considerada como ciência e profissão que se propõe a não


discriminar as pessoas por suas identidades e expressões de gênero (CFP, 2011),
visa promover compreensões mais amplas acerca da sexualidade no combate ao
preconceito, por isso, o presente trabalho também pretende colaborar para esta
discussão e construção de conhecimento.
Como pessoas que se autoidentificam como não binárias compreendem a não
binariedade e quais as implicações nas trajetórias de suas vidas, tanto nos aspectos
individuais como sociais?
O objetivo geral desta pesquisa, portanto, é compreender as configurações
subjetivas da não binariedade de gênero de pessoas que se autoidentificam como não

14
Nome fictício.
22

binárias, analisando-as à luz da Teoria da Subjetividade, de Fernando González Rey.


E os objetivos específicos: Descrever conceitos e pressupostos da Teoria da
Subjetividade e relacioná-los à sexualidade; apresentar diferentes concepções e
respectivas fundamentações teóricas utilizadas na Psicologia Social Brasileira, e
analisar suas aproximações e distanciamentos da concepção de identidade proposta
pela Teoria da Subjetividade; dialogar com diferentes concepções de gênero e, a partir
daí, apresentar produções que discutem a não binariedade.
Optamos pela escolha da palavra “autoidentificam”, mesmo que possa soar
redundante, como forma de salientar a autodeterminação. Ou seja, a pessoa diz sobre
si mesma, autonomeia-se e se reconhece de uma forma específica. Neste caso,
enquanto pessoa não binária.

A estrutura desta pesquisa se inicia com a apresentação da Teoria da


Subjetividade e as aproximações dessa com a Sexualidade. Em seguida, no segundo
capítulo, são apresentadas concepções sobre identidade como categoria importante
para o desenvolvimento da pesquisa, e é enfatizada, em um subcapítulo, a
compreensão de identidade como configuração subjetiva. No terceiro capítulo é
explicado e ampliado o conceito de gênero, seguido, no quarto capítulo, pela
aproximação do tema deste trabalho, ou seja, não binariedade, por meio de uma
revisão de literatura. Apresentaremos, então, os princípios epistemológicos e
metodológicos que guiaram a pesquisa para seguir, no quinto capítulo, com a
construção da informação.

A construção da informação está organizada em dois momentos. No primeiro,


intitulado “Vivências Não Binárias”, são apresentadas as narrativas a partir de cada
uma das cinco pessoas participantes e, em seguida, são feitas aproximações dos
temas e reflexões em comum trazidos por essas pessoas participantes. Ainda, é
proposta uma perspectiva acerca das “metamorfoses de gênero”. Por fim, para não
concluir, provocamos ampliações e questionamentos sobre o que foi apresentado
nesta dissertação, além da indicação de possíveis temas para pesquisas futuras.
23

1. TEORIA DA SUBJETIVIDADE E SEXUALIDADE

Uma teoria viva mantém sua capacidade de crescer e desenvolver-se em


face de novos desafios, que, às vezes, nos assusta como pesquisadores, pois
ela transcende a nós mesmos, obrigando-nos a realizar novas produções
teóricas permanentemente (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017,
p.77).

Realizar pesquisas envolvendo seres humanos, por si só, não é uma tarefa
fácil. Envolve recortes de uma realidade complexa, escolhas e direcionamentos
teórico-metodológicos que sejam coerentes com a temática escolhida. O primeiro
recorte feito para a realização desta pesquisa é a compreensão da subjetividade a
partir do ponto de vista histórico-cultural na Teoria da Subjetividade.
O que é a subjetividade? Onde ela emerge? Como emerge? Como se constitui?
Qual sua importância para a pesquisa? Ainda, no que diz respeito a esta dissertação,
em relação à área dos estudos de gênero e sexualidade, que contribuições a
concepção de subjetividade pode oferecer?
Tendo em vista essas perguntas, serão apresentados nos subcapítulos que
seguem conceitos fundamentais para a compreensão da Teoria da Subjetividade e,
posteriormente, vias e conexões possíveis com a Sexualidade em sua amplitude
conceitual.

1.1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA DA SUBJETIVIDADE

Fernando González Rey (2004, 2005a, 2007a, GONZÁLEZ REY; MITJÁNS


MARTÍNEZ, 2017) desenvolve os fundamentos epistemológicos, metodológicos e
ontológicos da Teoria da Subjetividade elencando a subjetividade não só como macro
categoria, mas como próprio objeto de estudo da Psicologia. Com embasamento
crítico no materialismo histórico e dialético e na psicologia histórico-cultural, por meio
dessa teoria é proposta uma concepção histórica, cultural, dialética, dialógica,
sistêmica e complexa da subjetividade e, consequentemente, de sujeito, de social, de
psicológico e da relação não dicotômica entre indivíduo e sociedade. Sendo assim, a
subjetividade:

[...] é um sistema simbólico-emocional orientado à criação de uma realidade


peculiarmente humana, a cultura, da qual a própria subjetividade é a condição
de seu desenvolvimento e dentro da qual tem sua própria gênese,
24

socialmente institucionalizada e historicamente situada (GONZÁLEZ REY;


MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p.27).

Nesta perspectiva são tecidas críticas à compreensão ou mesmo o rechaço da


subjetividade nas abordagens psicológicas que se fundamentam tanto nos postulados
essencialistas e deterministas da modernidade quanto em perspectivas pós-
modernas.
Na modernidade, o racionalismo impõe a concepção individualista,
determinista, reificada e essencialista do fenômeno psicológico com noções de razão,
de eu, de individualidade, de um mundo interno ao ser humano – seja esse da ordem
metafísica - inata, a priori - seja determinado por causas sociais, ambientais e
externas. O paradigma cartesiano-newtoniano distancia-se cabalmente da
compreensão subjetiva dos processos psíquicos ao compreendê-los sob o viés
mecanicista, reducionista, associacionista, atomista e determinista, afastando os
psicólogos do tema da subjetividade.
Quanto às perspectivas pós-estruturalistas e pós-modernas, de acordo com
González Rey (2005a, 2007a, 2017), a realidade passa a ser uma metáfora discursiva.
Substituem a dimensão histórica constitutiva da psique por uma ordem simbólica
discursiva e a reificação da linguagem como campo da construção psicológica. Nas
psicologias discursivas e narrativas, o sujeito e as organizações sociais se
apresentam como fluxos discursivos nos quais o discurso tem poder determinante
sobre o sujeito. González Rey (2005a) não nega as representações sociais e
tampouco a dimensão discursiva da realidade social, uma vez que a linguagem
precede o sujeito como estruturação simbólica do social e porque o discurso “permite
dar sentido aos fluxos simbólicos que atravessam a vida social” (p. 142), mas tanto o
discurso quanto a linguagem não substituem outros processos de configuração
subjetiva das subjetividades sociais e das subjetividades individuais. O autor enfatiza
que a relação do ser humano com a realidade não se dá somente no nível simbólico,
mas no nível das emoções, o que se traduz na produção de sentidos subjetivos –
unidades simbólico-emocionais que configuram a subjetividade e o sujeito
(GONZÁLEZ REY, 2005a).
A importância da subjetividade para a pesquisa em Psicologia está relacionada
à possibilidade de acompanhar a complexidade, ambiguidade e contradição do mundo
humano. Revela a diversidade, as várias cores da humanidade que, se não forem
pensadas como possibilidade, são tratadas como anomalias ou doenças. De acordo
25

com González Rey (2007b), uma das características primordiais da subjetividade é


que ela tem a capacidade de subverter a ordem institucional e considerar a força
genuína da produção humana. A pesquisa da subjetividade pode ser comparada, até
certo ponto, com as produções literárias de romance:

Romance e pesquisa da subjetividade diferem não em seu espírito, mas nos


recursos usados para suas construções, embora cada uma dessas formas de
produzir conhecimento sobre a existência humana seja extremamente
relevante para outra (p.74).

A partir dessa comparação, que valoriza conhecimentos para além dos


científicos, também é possível pensar em uma aproximação metafórica com outras
formas de produção literária e outras formas de arte. A poesia, por exemplo, pode
manifestar inquietações de uma vida que não está exposta, mas presente nas
produções subjetivas do/a/e poeta que, com seus recursos expressivos, posiciona-se
sobre o mundo onde vive.
Alguns conceitos serão apresentados para a compreensão mais profunda da
subjetividade antes de pensá-la relacionada à sexualidade. Tais quais: sentidos
subjetivos, configurações subjetivas, sujeito e agente, subjetividade individual
e subjetividade social e um destaque também às emoções como um dos registros
mais importantes da subjetividade.
Os sentidos subjetivos podem ser compreendidos como “as unidades
simbólico-emocionais que definem a articulação entre pensamento e emoção,
imaginação e ação” (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p.43). Emergem
na própria experiência, nas tomadas de decisões sobre a realidade que se apresenta.
Não são nem positivos nem negativos, mas, sim, representam uma dimensão do sentir
que vai além do que se vive no momento. Diferem-se de representações sociais e
discursos hegemônicos na medida em que não podem ser explicados apenas pelas
construções sociais sobre uma determinada experiência. Um conhecimento preciso e
direto, que tende a ser uma busca da pesquisa mais tradicional, pode ser sobre muitas
coisas, mas não sobre sentidos subjetivos, visto que estes “estão presentes numa
multiplicidade sucessiva de instantes vivenciados no curso de uma experiência”
(GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p.140).
Em um fluxo contínuo, os sentidos subjetivos dão origem às configurações
subjetivas que, por sua vez, não são um simples resultado da soma de sentidos
26

subjetivos. A partir de seu caráter gerador, as configurações subjetivas produzem


“grupos convergentes de sentidos subjetivos que se expressam nos estados
subjetivos mais estáveis dos indivíduos no curso de uma experiência” (GONZÁLEZ
REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p.63). Para compreendê-las, é preciso
aprofundamento nos casos singulares por intermédio de um modelo teórico e de um
processo cuidadoso e dialógico que envolve as pessoas na pesquisa, abandonando
a ideia de “objetos de pesquisa” para possibilitar uma parceria 15 entre pesquisadora e
participantes.
Cabe ainda ressaltar que os sentidos subjetivos e as configurações subjetivas
não são gerados como um reflexo ou epifenômeno das realidades discursivas.
Entretanto, o estudo das configurações subjetivas permite conhecer o mundo social
caracterizado nos discursos, nas crenças, nos valores culturais e nas representações
sociais, como são vivenciados de forma singular e configurados subjetivamente.
Acerca das concepções de sujeito e agente, pode-se pensar nas ações frente
ao que se apresenta na realidade vivida. Diferem-se no quesito posicionamento em
relação às experiências. Porém, não se trata de juízo de valor, o que significa que ser
sujeito ou agente não está relacionado nem reduzido a algo positivo ou negativo. Na
construção da sua matriz teórica, González Rey enaltece a capacidade geradora da
psique e resgata a categoria sujeito com capacidade de subjetivação de sua
experiência, de sua vivência, onde sua ação e seus efeitos são constituintes de sua
própria subjetividade e não causas que aparecem como elementos externos de ação.
A categoria “sujeito” implica, necessariamente, participação e posicionamento
por meio do comprometimento com uma prática social que o transcenda, diante do
que tem de organizar sua expressão pessoal, implicando novas alternativas face a
uma complexidade crescente de vida e de mundo. Em 199716, o conceito de sujeito
centrava-se em apresentar os atributos de ser ativo, consciente, interativo e atual. Na
obra de 2017 (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017), após duas décadas de
evolução da teoria, apresenta-se a necessidade de compreender de outra forma a
pessoa ativa, com os atributos acima destacados, que passa a ser denominada
agente, enquanto sujeito, “além de ser ativo, gera alternativas, com base nos seus

15
Por escolha da pesquisadora, a palavra “parceria” foi aqui utilizada para se referir ao processo de
pesquisa construído em conjunto, com possibilidades de posicionamento crítico e modificações no
rumo da construção da informação por parte das pessoas que participam da pesquisa.
16
Ver: GONZÁLEZ REY, Fernando Luis. Epistemología Cualitativa y Subjetividad. São Paulo:
EDUC, 1997.
27

próprios processos de subjetivação, em relação ao espaço social normativo em que


está inserido” (GONZÁLEZ REY, 1997, p. 103 apud MITJÁNS MARTÍNEZ;
GOULART; TACCA; MORI, 2020, p. 21).
Segundo González Rey e Mitjáns Martínez (2017), a subjetividade integra-se
em dois diferentes níveis, definidos como subjetividade individual e subjetividade
social, por meio de uma relação dialética. Os dois são inter-relacionados em suas
configurações subjetivas e não são estáticos. A subjetividade individual diz respeito a
processos e formas de organização subjetiva dos indivíduos concretos, constituída
historicamente e de forma única, articulada a uma cultura e suas relações sociais.
Porém, não é individualista, uma vez que representa a configuração em nível subjetivo
do sistema de vida social do sujeito. Assim, a subjetividade é capaz de expressar, por
meio dos sentidos subjetivos, a diversidade de aspectos objetivos da vida social.
González Rey (2003) compreende que a subjetividade não é algo que aparece
somente no nível individual, mas que a própria cultura representa um sistema
subjetivo, gerador de subjetividade, a qual o autor denomina como subjetividade
social, considerando-a como uma macrocategoria teórica orientada para uma nova
representação do social: “O conceito de subjetividade social nos permite compreender
a dimensão subjetiva dos diferentes processos e instituições sociais” (GONZÁLEZ
REY, 2005a, p. 78). A subjetividade social pode manifestar-se por meio das
representações sociais, mitos, crenças, códigos morais, discursos, comportamentos
institucionalizados, organização social dos repertórios de resposta, linguagem, formas
habituais de pensamento, códigos emocionais de relação, sexualidade etc. Trata-se
de processos subjetivos da sociedade em que estão implícitos os processos de
relações de poder, as formas de organização socioeconômica, os códigos jurídicos,
as diferenças sociais, os processos de marginalização, os critérios de propriedades
etc. (GONZÁLEZ REY, 2005a). A expressão da subjetividade social é a síntese, em
nível simbólico e subjetivo, de aspectos objetivos que se articulam no funcionamento
social.
O sujeito é constituído pela subjetividade social e é constituinte dessa por meio
das suas ações dentro do tecido social em que atua. A subjetividade social antecede
a organização do sujeito psicológico concreto e está na gênese de toda subjetividade
individual. Por seu turno, o desenvolvimento do sujeito individual dá lugar a novos
processos de subjetividade social e a novas redes de relações sociais:
28

Os processos de subjetividade social e individual não mantêm uma relação


de externalidade, mas se expressam como momentos contraditórios que se
integram de forma tensa na constituição complexa da subjetividade humana,
que é inseparável da condição social do homem. (...) Esta condição de
integração e ruptura, de constituído e constituinte que caracteriza a relação
entre o sujeito individual e a subjetividade social, é um dos processos
característicos do desenvolvimento humano. (GONZÁLEZ REY, 2005a,
p.206-7).

Em síntese, as subjetividades social e individual fazem parte de um mesmo


sistema, expressam-se como momentos contraditórios e suas organizações
diferenciadas transformam-se em produções de sentido subjetivo, participando do
desenvolvimento do indivíduo e da sociedade. González Rey (2004) afirma o caráter
subversivo da subjetividade por sua irredutibilidade a fórmulas universais e por
configurar o germe da resistência, da mudança e o exercício da crítica como espaço
do desenvolvimento.
Cabe um destaque às emoções, por serem uma condição humana e um dos
registros mais importantes da subjetividade, pois os sentidos subjetivos são a unidade
simbólico-emocional da subjetividade. Há necessidade de transitar de uma
compreensão biológica para uma compreensão cultural e subjetiva, tanto da psique
quanto das emoções. As emoções, ao mesmo tempo, são estados de ativação
psíquica e fisiológica e são manifestações da subjetividade diante das complexidades
dos registros emocionais nas relações intersubjetivas. As emoções atribuem uma
qualidade à ação e à experiência social e definem a disponibilidade dos recursos
subjetivos para atuar (GONZÁLEZ REY, 2005a).
Nos marcos propostos por González Rey (2005a, p. 118), a construção teórica
da subjetividade e a produção das categorias para compreender a gênese e o
processo de funcionamento, organização e configuração da subjetividade na relação
dialética da subjetividade individual e subjetividade social como uma qualidade única,
impedem-nos de adotar um arcabouço classificatório, taxonômico, psicométrico e
comparativo a partir de traços universais e ahistóricos.
29

1.2 SEXUALIDADE E SUBJETIVIDADE

A subjetividade, os conceitos de sujeito, sentidos subjetivos, configurações


subjetivas, subjetividade individual e subjetividade social apresentam-se inovadores
para compreender a complexidade da sexualidade e do gênero (MEIRELES;
FERRARINI, 2020). González Rey e Mitjáns Martínez (2017) referem-se à
organização social da sexualidade, à sexualidade, como configuração complexa e
dinâmica, constituída na dialética individual e social com períodos de transformações
qualitativas profundas na subjetividade. Consideram o singular, a subjetividade, a
capacidade geradora da psique, o sujeito reflexivo na produção de sentidos subjetivos
e configurações subjetivas frente a vivências e significados diversos de sexualidade e
gênero. São caminhos alternativos para compreender-se a sexualidade, não como
resultado, sobremaneira, do interno, do instinto, do biológico, do hereditário, tampouco
como um determinismo do externo, da cultura ou de efeitos discursivos. Valoriza-se a
capacidade psíquica geradora de produzir alternativas frente à experiência vivida,
integrando emoção, fantasia, imaginação e operações intelectuais que escapam ao
controle racional e intencional com desdobramentos não preditivos, constituindo-se
“importante recurso de tensão, ruptura e resistência diante dos sistemas sociais
normativos” (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p. 33). Todavia, práticas
e relações repressivas originam e expressam-se em outros sistemas de relações
singulares dos indivíduos, tais como a vida conjugal, relacionamentos informais e
posicionamentos em relação ao gênero (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ,
2017, p. 82-83).
A sexualidade é um caminho possível para pesquisar as complexidades do ser
humano. Estudá-la por outras bases ontológicas e epistemológicas permite tornar
inteligível, complexa e singular a sexualidade humana, superando não só a ideia de
uma essência a priori da sexualidade e explicações lineares do biológico e do social,
mas também oferecendo uma possibilidade de explicar o fenômeno das diversidades
sexuais e de gêneros. Com isso, a sexualidade não deve ser buscada apenas como
um resultado do interno – instinto – ou do externo – cultura/discursos –
separadamente, mas na síntese contínua entre ambos (MEIRELES; FERRARINI,
2020).
Em sua tese de doutorado intitulada Educación, diversidade sexual y
subjetividade: uma aproximación cultural-histórica a la educación sexual escolar em
30

Cali-Colombia, orientada pelo professor Fernando González Rey, Jorge Eduardo


Moncayo Quevedo (2017) caracteriza a sexualidade como uma produção subjetiva
socialmente construída e culturalmente regulada, configurada na materialidade
singular do sujeito em suas vivências, ações, expressões, emoções e inter-relações
nos diversos espaços sociais em que transita e que o contextualizam.
Essa perspectiva permite, de acordo com Victor Meireles e Norma da Luz
Ferrarini (2020) o desenvolvimento de novos modelos teóricos e novas zonas de
inteligibilidade sobre sexualidade e gênero de forma diferenciada e própria da
psicologia diante da urgência em se discutir e contextualizar questões sobre a
diversidade sexual e de gênero quando indivíduos reivindicam a legitimação de suas
novas formas de ser, sentir, viver e existir, ao serem definidos com categorias
universais de modelos tradicionais normativos reguladores da sexualidade, resultando
em violências, mortes, sofrimentos, patologizações, discriminações, estigmatizações
e exclusões de direitos básicos e existência.
Moncayo Quevedo (2017) estabelece um extenso diálogo entre diferentes
autores e a obra de González Rey, com o intuito de mostrar o valor heurístico da
Teoria da Subjetividade no estudo da sexualidade humana, parte do pressuposto de
que a sexualidade é “una produción subjetiva resultado de la síntese contínua entre
lo personal y lo social.” (p. 25).
Para que a sexualidade seja compreendida como uma produção subjetiva, de
acordo com Moncayo Quevedo (2017), é preciso entendê-la também como
subjetivamente configurada, uma vez que existem diversos caminhos possíveis no
percurso de vida de cada pessoa. O autor ressalta que, na perspectiva da Teoria da
Subjetividade, a sexualidade é vista como um processo dinâmico e singular, que vai
além das representações sociais e das normas que regem a sociedade.
Moncayo Quevedo (2017) elenca cinco pontos sobre as possíveis
contribuições das categorias que sustentam a Teoria da Subjetividade para se pensar
a sexualidade, a diversidade sexual e a educação sexual. Essa última não se
aproxima da discussão da presente pesquisa, mas não deixa de ser importante.
O primeiro refere-se à explicação do vínculo dialético entre indivíduo e
sociedade por meio da categoria de subjetividade social. O segundo ponto diz respeito
à categoria de sentido subjetivo como forma de resgatar o lugar da singularidade, da
produção simbólico-emocional e do caráter sócio-historicamente situado e produzido
em todas as pessoas, indo além do discurso e da linguagem.
31

A identidade de gênero é considerada como algo estático no século XX, com


papéis de gênero bem definidos, em uma linearidade causalista de sexo-gênero-
orientação sexual que compreenderia homens com expressões e identidades
masculinas e mulheres com expressões e identidades femininas, ambos
heterossexuais17. O terceiro ponto trazido por Moncayo Quevedo (2017), em vista
disso, é que seria possível mostrar como essa relação é mais complexa por meio de
categorias que superam o estático e a fixidez, por exemplo, as configurações
subjetivas que podem auxiliar no entendimento de uma estabilidade e flexibilidade das
identidades de gênero.
O quarto ponto concerne à concepção de sujeito tal qual é capaz de refletir
sobre si – mas não somente – e produzir novos sentidos e, por meio deles, encontrar
caminhos criativos e alternativos. Por fim, o quinto ponto está relacionado à
possibilidade de pensar novos modelos teóricos que contribuam para a compreensão
da sexualidade para além de um ponto de vista biomédico ou sociológico que
entenderia a sexualidade como reflexo do externo. Nenhum desses, de acordo com
Moncayo Quevedo (2017), permite-nos explicar variações de comportamentos
sexuais e as singularidades destes que, inclusive, sobressaem o sexual. O autor
também afirma, neste ponto, que se busca superar uma ideia de ativismo que
atualmente domina os estudos sobre sexualidade e que deixe de lado a produção
teórica.
Para concluir, ressalta-se que, devido a um efeito neutralizador da sexualidade
quando vista de forma naturalmente dada, oculta-se sua historicidade, perde-se de
vista sua variabilidade cultural e sua dimensão política e subjetiva, além de
desconsiderar-se uma multiplicidade de manifestações e expressões (MONCAYO
QUEVEDO, 2017). Há que considerar a sexualidade em suas diversas expressões
para além da compreensão da diferença sexual e compreendê-la em sua diversidade,
ou seja, para além do binário, para além da dualidade.
Nesse sentido, a presente pesquisa pretende avançar através da compreensão
dos conceitos de identidade, gênero e não binariedade, que serão apresentados
nessa ordem.

17
Não é citado por Moncayo Quevedo, mas pode ser adicionada a essa linearidade também a
cisgeneridade.
32

2. IDENTIDADE(S): CONCEPÇÕES E DIFERENCIAÇÕES

Várias são as compreensões de identidade no campo da Psicologia. Nesta


pesquisa, compreendendo a relevância do conceito para as discussões que seguirão,
apresentaremos brevemente algumas concepções de identidade de autores influentes
na Psicologia Social brasileira trazidas por José Umbelino Gonçalves Neto (2015) em
sua dissertação de mestrado intitulada As identidades da ‘identidade’: sobre os
diferentes usos e significados do conceito ‘identidade’ na Psicologia Social com ênfase
à concepção de Identidade-Metamorfose-Emancipação, de Antônio da Costa Ciampa,
a qual compreendemos que se aproxima das discussões desta pesquisa
principalmente no que concerne a metamorfoses. Por fim, apresentaremos uma
concepção de identidade como configuração subjetiva a partir do que foi encontrado
sobre o conceito na Teoria da Subjetividade.
Gonçalves Neto (2015) classifica os modelos de identidade na Psicologia
Social da seguinte forma18: George Herbert Mead e Erving Goffman, modelo
interacionista; Jean-Claude Deschamps e Pascal Moliner, modelo
representacional/cognitivo de identidade; Paul Ricoeur e Antônio da Costa Ciampa,
modelo de identidade narrativa, descritos em tópicos a seguir, conforme nomeados
pelo autor:

George Herbert Mead: um modelo interacionista de Self


Filósofo norte-americano, George Herbert Mead19 (1863-1931) desenvolveu a
noção de self social em uma visão mais externalista que permitirá a psicólogos sociais
trabalharem a noção de identidade social.
Mead (Mind, Self and Society,1934, apud GONÇALVES NETO, 2015, p. 51-55)
parte da acepção de identity, identidade no sentido de igualdade, equivalência,
semelhança ou ainda unidade. Emprega identidade como self, algo idiossincrático e
desenvolvido quando a pessoa é capaz de assumir a atitude do outro em relação a si
mesma e que daria um senso de unidade psicológica. Essa idiossincrasia se faz nas
relações sociais. Para Mead, identidade trata das relações entre pessoas no sentido

18
Na apresentação do texto de Gonçalves Neto (2015), não se encontra nesta ordem de apresentação,
porém, para fins de organização deste capítulo, mantivemos Antônio da Costa Ciampa como último a
ser apresentado.
19
Ver: MEAD, George Herbert. Mente, self e sociedade. trad. Maria Silvia Mourão. Aparecida, SP:
Ideias & Letras, 2010.
33

do domínio de um indivíduo ou um grupo sobre outros grupos e do senso de


fraternidade e identidade de diferentes indivíduos do mesmo grupo, indicando a
igualdade de indivíduos ou unidade de um grupo, “senso de fraternidade” e “senso de
identidade”.
Diferentemente de uma concepção internalista, essencialista e
descontextualizada, como se fossem instâncias biológicas ou apenas psíquicas, Mead
emprega seus conceitos – self, pensamento, linguagem, socialização, subjetividade,
subjetivo (aquilo que pertence experimentalmente ao indivíduo e somente a ele é
acessível) – e concebe-os pela perspectiva de uma abordagem comportamental dos
fenômenos psicológicos, os quais denominou de Behaviorismo Social. Trata-se de
processos de interação entre indivíduos que ocorrem em situações concretas da vida
social por meio de observações e análises das ações recíprocas do ato social, das
atitudes e papéis sociais, comunidade e participação com outros. Essa proposta
inspirou os interacionistas simbólicos que focaram na relação indivíduo-sociedade,
como a microssociologia de Erving Goffman, em que a natureza do eu depende do
papel e das “apresentações de si” que a pessoa representa diante de outros em
interações face a face cotidianas.
Gonçalves Neto (2015, p. 55) elucida que o termo self de Mead deve ser
traduzido para o português como “Eu”, “Si mesmo”, “autoconsciência”, “experiência
de si”, “noção de si mesmo”, mas que, mesmo assim, self e identidade confundem-se
porque está implicada a questão da identidade pessoal – “o senso que um indivíduo
tem de si próprio a partir do que percebe de si e do que os outros percebem dele.”

Erving Goffman: um modelo interacionista de identidade


Erving Goffman20 (1963/1988 apud GONÇALVES NETO, 2015) desdobrou a
teoria de Mead no Interacionismo Simbólico e na Microssociologia. O Interacionismo
Simbólico dessencializa, externaliza e descentra a identidade/self, compreendendo-a
como produto da socialização, contingente, constituída e emergente das relações
sociais e contextos interacionais. A atuação do indivíduo em diferentes espaços de
convívio faz com que ele adote papéis correspondentes a cada contexto contingente
e socialmente situado. A perspectiva interacionista entende que a identidade não é

20
Ver: GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. trad.
Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: LTC, 1988. Originalmente publicado em 1963.
34

una nem estática, mas que os indivíduos têm múltiplos selves, produtos do
reconhecimento cognitivo e/ou social do outro.
Gonçalves Neto (2015, p 59-63) diferencia identidade de self na obra de
Goffman. Self seria um conceito subjetivo e reflexivo, referindo-se à autoconsciência,
experiência de si. Já identidade é um conceito mais elaborado. Goffman distingue
“identidade pessoal” – características mais singulares que permitem diferenciar um
indivíduo de outros e a combinação única de itens da sua história de vida relacionada
a uma certa singularidade e uma permanência no tempo – de “identidade social”, a
qual se expressa de dois modos: “Identidade social virtual” – características, atributos
e atitudes baseadas em preconcepções e normatizações, de certo modo gerenciadas
pelo indivíduo ao adequar-se às exigências de como ele deveria ser diante das
expectativas normativas dos outros, expressas por afirmativas, descrições,
ajuizamentos e valorações – e “identidade social real” – características que o indivíduo
efetivamente apresenta e prova possuir nas relações às quais de fato se vincula.
Em síntese, destaca-se o enfoque interacionista na concepção de identidade
de Goffman: “As identidade social e pessoal são parte, antes de mais nada, dos
interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade
está em questão.” (GOFFMAN, 1963/1988, p. 117 apud GONÇALVES NETO, 2015,
p. 63).
Cabe destacar que a obra de Goffman teve importantes consequências
políticas ao debruçar-se sobre os processos de estigmatização.

Jean-Claude Deschamps e Pascal Moliner: identidade num modelo


representacionista/cognitivo
Os psicólogos sociais europeus, Jean-Claude Deschamps (Universidade Paul-
Valéry de Montpellier, França) e Pascal Moliner21 (Universidade de Lausanne, Suíça),
autores da obra A identidade em Psicologia Social: Dos processos identitários às
representações sociais (2014), são apresentados por Gonçalves Neto (2015) como
representantes do modelo representacionista/cognitivo nos estudos de identidade.
Os autores partem de duas linhas de análise tradicionais da Psicologia Social.
Primeiramente, a tradição experimental norte-americana somada a recentes

21
Ver: DESCHAMPS, Jean-Caude.; MOLINER, Pascal. A identidade em Psicologia Social: dos
processos identitários às representações sociais. Trad. Lúcia M. Endlich Orth. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2009. (originalmente publicado em 2008)
35

contribuições europeias, em que defendem a complementariedade entre “identidade


pessoal” - sentimento de diferença em relação aos outros - e “identidade social” -
sentimento de semelhança com outros e certos grupos. A segunda trata da noção de
representação como forma de conhecimento e de estruturação relativamente estável
da identidade. Circunscrevem-na como: as representações identitárias formadas
sobre si próprio; as representações que os grupos sociais constroem uns sobre os
outros; e as representações sobre o mundo social mais amplo que os indivíduos e
grupos herdam ou constroem, impregnadas pela cultura e de acordo com a inserção
social e política.
Destacam-se os conceitos de indissociabilidade paradoxal de semelhança e de
diferença que a pessoa tem em relação aos outros para, assim, “experimentar um
sentimento de continuidade ou de fluidez do si-mesmo” (DESCHAMPS; MOLINER,
2008/2009, p. 28 apud GONÇALVES NETO, 2015, p. 91) e a complementariedade
entre identidade social e identidade pessoal. Aqui, os autores valem-se do conceito
de identidade social conforme descrito por Henri Tajfel (1919 -1982), psicólogo social
polonês, para quem essa concepção define o lugar particular que o indivíduo ocupa
na sociedade, o pertencimento e o relacionamento a certos grupos sociais e o
significado emocional e avaliativo sobre esta pertença. A partir disso, desenvolvem o
conceito de identidade pessoal como sendo da ordem das representações cognitivas,
representações produzidas pelo indivíduo de si mesmo.
Perguntamo-nos se não se incorre numa recursividade com poucas saídas,
reprodutivas e fortalecedoras de si mesmo, “em-si-mesmadas”, com poucas
possibilidades de transformações culturais e sociais no sentido de superar
estigmatizações e discriminações. E mais, Deschamps e Moliner (2008/2009)
destacam e validam a comparação entre as pessoas e grupos e chama-nos atenção
a afirmação de que o conjunto de crenças e saberes constituem uma rede de
significações partilhadas sobre o mundo social, compreendidas por eles como
representações identitárias, sendo essas “mais importantes do que a realidade
‘objetiva’ deste mundo” (DESCHAMPS; MOLINER, 2008/2009, p. 162, grifo dos
autores), o que, na nossa visão, não supera a dicotomia indivíduo-sociedade, interno-
externo, tão essencial para avançarmos na problemática da identidade.
36

Paul Ricoeur: o conceito de identidade narrativa


Paul Ricoeur22 (1913-2005), filósofo francês com fundamentais contribuições
para a fenomenologia e a hermenêutica, centra-se nos conceitos de significado,
subjetividade e identidade, não no sentido de igualdade absoluta.
Ricouer (1990/1991 apud GONÇALVES NETO, 2015) coloca a questão da
identidade na permanência no tempo, mesmo com as transformações identitárias,
como transformar-se sem deixar de ser o mesmo, na articulação permanência-
mudança, igualdade-diferença. Traz para o debate dois modos de permanência no
tempo, distintos, mas não excludentes; diferentes, mas não opostos: a dialética da
mesmidade (identidade-idem) e da ipseidade (identidade-ipse).
O conceito de Identidade-idem, mesmidade apresenta uma continuidade
ininterrupta; reconhece-se como o mesmo, o único e recorrente na estabilidade do
conjunto de atributos e hábitos identificadores em diferentes lugares e momentos na
multiplicidade de suas ocorrências.
Já a Identidade-ipse, ipseidade seria uma identidade narrativa, uma
singularidade proporcionada pela combinação única de suas características e sua
história. Refere-se ao sujeito na ação e no discurso. A identidade-ipse trata da
consideração de si mesmo como agente: “Quem sou eu?”. Identidade de agentes que
produzem acontecimentos estruturados por um fio narrativo que admite continuidade,
estabilidade somada a desvios próprios das ações e das vivências, considerando,
assim, a coesão na impermanência imanente à própria vida. Ou seja, para Ricouer
(1990/1991) o critério de identidade seria o narrativo.

Antonio da Costa Ciampa: um modelo de identidade narrativa


O psicólogo brasileiro Antônio da Costa Ciampa é apresentado por Gonçalves
Neto (2015) em duas fases: primeira fase – a identidade no modelo da teoria dos
papéis de Sarbin e Allen; e segunda fase – a identidade num modelo narrativo.
Em sua primeira fase, quando de sua dissertação de mestrado A identidade
social e suas relações com a ideologia, Ciampa (1977)23 trata da interferência e
expressão ideológica dominante nas características masculinas e femininas e

22
Ver: RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. trad. Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus,
1991. (originalmente publicado em 1990)
23
Ver: CIAMPA, Antônio da Costa. A identidade social e suas relações com a ideologia. Dissertação
(Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 1977.
37

contrapõe-se à concepção de identidade de Sarbin e Allen 24 (1968 apud


GONÇALVES NETO, 2015). Esses distinguem identidade de self, sendo identidade
uma parte do self que se apresenta no sentido de unidade e sendo self a experiência
de identidade, uma referência ao “eu”, uma unidade psicológica semelhante à
concepção de Mead. Trata-se de uma estrutura cognitiva, formada pela experiência
da pessoa em sua vida.
Ciampa desnaturaliza e supera uma compreensão determinista interacional de
identidade. Discorda de Sarbin e Allen (1968 apud GONÇALVES NETO, 2015) por se
restringirem ao conceito de identidade social, às relações com as outras pessoas, aos
papéis que o indivíduo desempenha nas suas posições sociais, às avaliações dos
outros sobre o desempenho e o envolvimento do indivíduo com esses papéis. Ciampa
acrescenta mais um elemento à noção de identidade. Quando se for estudar
identidades, deve-se analisar produções culturais, discursivas e ideológicas.
Gonçalves Neto (2015) distingue uma segunda fase da obra de Ciampa – a
identidade num modelo narrativo, a narrativa biográfica – apresentada em sua tese de
doutorado e livro intitulados A Estória do Severino e a História da Severina: Um Ensaio
de Psicologia Social (CIAMPA, 1987), em que, por meio da análise de narrativas numa
tentativa de a pessoa responder quem ela é, cunha o termo identidade como
metamorfose.
Interessante o alerta de Gonçalves Neto (2015, p. 107) sobre a afirmação de
Ciampa (1987) “identidade é metamorfose”. Diz ele, mais do que uma proposição
gramatical e conceitual, ser essa “uma afirmação com formato de proposição
empírica”. Identidade deve ser entendida como “metamorfose” e operada com o
sintagma conceitual identidade-metamorfose-emancipação.
A partir de algumas análises, no Encontro Nacional da Associação Brasileira
de Psicologia Social (ABRAPSO), em 1999, foi proposto por Ciampa o sintagma
Identidade-Metamorfose-Emancipação como uma forma de ampliar a ideia de
identidade-metamorfose.
O estudo da identidade, de acordo com Ciampa (2002), para além de uma
questão científica, trata-se de uma questão política, fundamentalmente. No prefácio
do livro de Ciampa, Silvia Lane (1987) destaca a amplitude da identidade como uma

24
Ver: SARBIN, Theodore.; ALLEN, Vernon. Role Theory. In: LINDZEY, Gardner.; ARONSON, Elliot.
The Handbook of Social Psychology. vol. 1, 2. ed. Massachusetts: Addison-Wesley Publishing
Company, 1968
38

questão política já pontuada por Ciampa, na medida em que nos questionamos em


que lugares, sendo nós mesmos, podemos nos recriar e transformar. A
(des)construção e (des)articulação das ideologias vigentes levam ao que José Alves
de Souza e Beatriz Oliveira Santos (2017) descrevem da seguinte forma:

Esses movimentos de uma vida humana caracterizam-se pelo poder de


negação das estruturas sociais e culturais, especialmente as estratégias de
dominação capitalista, que negam o universo de possibilidade do mundo,
restringindo o homem (sic) a viver com as alternativas tidas como possíveis,
corretas e permissíveis aos sujeitos (p. 5).

Ainda, as políticas de identidade, de acordo com Ciampa (2002), referem-se às


ideologias e ações de movimentos, grupos e coletividades, como por exemplo o
movimento LGBTI+, o movimento trans, o movimento feminista, religiões, entre outros.
Já as identidades políticas estão relacionadas ao que se desenvolve pela própria
pessoa por meio da autonomia. A conexão entre estas duas dimensões na direção da
emancipação ocorre por meio da comunicação.
Diante deste estudo, traremos identidade na perspectiva da Teoria da
Subjetividade de Fernando González Rey.

2.1 IDENTIDADE COMO CONFIGURAÇÃO SUBJETIVA

Após o exposto, apresentaremos uma perspectiva de identidade baseada na


Teoria da Subjetividade, tendo como pedra angular o caráter gerador, criativo e
subversivo da subjetividade, por sua irredutibilidade a fórmulas universais e
hegemônicas e por configurar o germe da resistência, da mudança e o exercício da
crítica como espaço do desenvolvimento (GONZÁLEZ REY, 2004).
González Rey de-substancializa a noção de identidade, supera a
representação clássica de identidade como uma entidade, como estática e imutável,
e não se apoia na dicotomia da igualdade X diferença e da permanência X mudança.
Não há como desatrelar o conceito de identidade das categorias de sujeito e
de subjetividade individual e subjetividade social. A identidade é uma categoria
necessariamente associada aos contextos de ação do sujeito e à sua capacidade de
subjetivação. (GONZÁLEZ REY, 2004, p. 159). A identidade é um dos processos de
produção de sentido subjetivo. (GONZÁLEZ REY, 2005b).
39

Na obra Sujeito e Subjetividade: uma aproximação histórico-cultural, González


Rey (2005a) refere-se à identidade como:

(...) um sistema de sentidos que se articula a partir das configurações


subjetivas historicamente constituídas na história de um sujeito concreto e
nas condições concretas dentro das quais ele atua neste momento (p. 263).

A confrontação entre o histórico e o atual traz a necessidade de o sujeito


reconhecer a si, delimitar seu espaço e encontrar congruência consigo mesmo na
situação que está enfrentando.

A identidade não é algo ordenado e definido de uma vez e por todas, é a


definição de um sentido subjetivo que pode aparecer de formas diversas e
em contextos diferentes, dependendo do jogo de sentidos comprometidos na
situação (GONZÁLEZ REY, 2005b, p. 264).

O sujeito produz complexas sínteses de sua experiência pessoal em suas


diferentes atividades, em diferentes espaços, em diferentes momentos, em relações
sociais, dentro da trama social em que atua e frente ao contexto imposto, ou seja, nas
subjetividades sociais dos espaços onde transita. Este movimento gera novas zonas
de significação e novas opções, não sendo essas simplesmente opções cognitivas
dentro das contingências imediatas em que atua, mas sim, “verdadeiros caminhos de
sentido que influenciam a própria identidade de quem os assume e que geram novos
espaços sociais que supõem novas relações e novos sistemas de ações e valores”
(GONZÁLEZ REY, 2005a, p. 237).
Além disso, conforme o autor, a participação em múltiplos espaços sociais é
uma expressão da capacidade de desenvolvimento da pessoa por estar
constantemente em contradição com as rígidas e autoritárias formas que pretendem
prescrever tudo, reduzindo a capacidade geradora e bloqueando a expressão criativa.
Uma das conceituações de identidade apresentadas por González Rey (2005a)
afirma que:
O sujeito (...) só tem razão de ser como momento de tensão, ruptura e
mudança. Como momento de desenvolvimento do homem singular diante do
conjunto desordenado e incoerente de situações que deve enfrentar dentro
da sociedade atual, pelas quais tem de manter a produção de sentidos como
condição de sua identidade. Ao falar de identidade, a assumimos como o
sentido de reconhecimento que o sujeito experimenta no curso irregular e
contraditório de suas próprias ações. A identidade não é uma formação
intrapsíquica, é um sentido que aparece de forma simultânea nas
configurações subjetivas do sujeito e nas emoções e significados produzidos
pela delimitação social de seu espaço de ações e relações (p. 230).
40

Na obra O social na psicologia e a psicologia social: a emergência do sujeito,


publicada em 2004, ao tratar do “papel do sujeito em sua natureza processual, em
seus direitos e em sua capacidade de ruptura” (p. 152), faz uma crítica aos processos
de despersonalização associados a certas formas de ordem social e refere-se à
identidade:

Essa crítica permite que resgatemos a categoria sujeito em um sentido


psicológico, sociológico, político, ético e moral, o que faz dessa categoria um
referencial inevitável para a psicologia social. Considero o sujeito – como
considero subjetividade – tanto em nível social como em nível individual,
como aquele indivíduo ou grupo que legitima seu valor, que é capaz de gerar
ações singulares e que mantém sua identidade através dos vários espaços
de contradições e confrontações que necessariamente caracterizam a vida
social. (GONZÁLEZ REY, 2004, p. 153).

A complexidade de vivências e processos simbólicos, o rumo de suas ações,


as decisões, as suas condições, as novas rotas de produção de sentidos, exigem
congruência e continuidade. Não obstante rupturas sejam produzidas no processo do
desenvolvimento humano, se essas não afetam a congruência e a familiaridade, se
não conseguem romper a identidade, o sujeito as vivenciará como continuidade de
algo que obteve em outro momento de sua vida, não tendo a sensação de
estranhamento.

A ruptura que prejudica a identidade não se produz pelo caráter objetivo de


uma experiência em si, e sim pela incapacidade que o sujeito terá de fazer
sentido diante dela e considerá-la como uma experiência que lhe pertence,
como uma experiência própria (GONZÁLEZ REY, 2004, p. 158).

Quando a pessoa se vê incapaz de produzir sentido sobre si mesma, de


produzir novos processos de subjetivação em sua condição atual, isso gera prejuízos,
afetando a saúde, física e mental:

A patologia deixa de ser uma entidade e se apresenta como a incapacidade


para produzir sentido, para produzir diferenciação, o que implica uma crise
de identidade e o desenvolvimento de uma emocionalidade patológica que
se define em forma de sintomas. O sujeito perde a capacidade de assumir
posições próprias diante das situações sociais que enfrenta, ou seja, perde a
capacidade de ação como sujeito, transformando-se em vítima das
circunstâncias. (GONZÁLEZ REY, 2004, p. 162).
41

O autor explicita a interconexão entre social, cultura e identidade. A


subjetividade individual e a subjetividade social configuram-se na unidade da
diversidade simbólica da vida humana organizada por sociedades culturais, “tanto na
configuração subjetiva das pessoas, como nos cenários sociais em que acontecem
suas práticas, sistemas de relações e que representam os espaços em que se forjam
as identidades.” (GONZÁLEZ REY, 2012, p. 182). E mais, “a cultura como uma
produção humana de natureza simbólica relacionada a uma identidade e com um
sistema de práticas específico a um grupo humano (GONZÁLEZ REY, 2013, p. 33).
González Rey (2005b), ao compreender identidade como configurações
subjetivas, situa-a na unidade simbólico-emocional constitutiva dos sentidos
subjetivos que, por sua vez, constituem a subjetividade. Esse princípio explicativo
desdobra-se em tantas outras explicações. O autor afirma que a identidade nos
integra emocionalmente nos espaços sociais. Emprega o termo “estender nossa
identidade” como a capacidade e a necessidade de produzirmos novos sentidos
subjetivos em novos contextos para não nos sentirmos mal e inadaptados, o que terá
consequências nocivas para o nosso desenvolvimento e saúde. Afirma a necessidade
de a pessoa ser reconhecida, porque esse é um importante elemento portador de
sentido de sua identidade, expressando sua força em desenvolver, manter e cultivar
seus próprios espaços.
Esta nova via de compreensão da identidade nos é muito valiosa para fazermos
uma discussão sobre sexualidade e gênero, e em especial, sobre configurações
subjetivas da não binariedade.
Ademais, a dimensão política de identidade trazida tanto por González Rey
quanto por Ciampa, leva-nos a outra questão de suma importância para esta
pesquisa: a identidade de gênero.
Acerca disso, de acordo com Jaqueline Gomes de Jesus (2015), a
cisgeneridade, enquanto identidade social, diz respeito às pessoas que se identificam
com o gênero designado socialmente, mas essa foi, e ainda é, uma categoria que
causa incômodos por parte de grupos pós-identitários – influenciados por teorias
Queer – e pessoas “não-trans” (cis) que não percebem que também têm uma
identidade de gênero, sendo detentoras de privilégios por conta disso. A autora ainda
aponta que a transgeneridade – ou trans, somente – mais do que uma forma de
denominar pessoas que não se identificam com o gênero que lhes foi imposto
socialmente, quando se tratava de uma categoria para denominar “o outro”, não se
42

pensava a construção social do gênero, que envolve todas as pessoas. Para Jesus
(2015), nomear identidades cis e trans, muito além de “aprisionar em categorias”,
como críticas que poderiam surgir, é uma forma política de humanização,
considerando-se o contexto atual e, também, arrisco-me a dizer, de despatologização,
por serem formas de se colocar no mundo, ao invés de “desvios da normalidade”.
No capítulo seguinte, portanto, oferecemos algumas vias de compreensão da
categoria gênero como forma de ampliar o debate e dar sustentação à construção da
informação desta pesquisa.
43

3. GÊNERO25

Gênero é um termo que recebe definições mais ou menos complexas, a


depender do que precisa ser explicado/explicitado ou aprofundado. De forma geral,
gênero trata-se de uma construção cultural, histórica e social do que se entende
enquanto homem e mulher, sendo masculino socialmente esperado para homens e
feminino socialmente esperado para mulheres. Nessas categorias, estão pré-
estabelecidos certos comportamentos e características. Um exemplo simples,
localizado no contexto brasileiro, é dizer que vestido é “roupa de mulher” e futebol ou
dirigir é “coisa de homem”. Jesus (2012), ao formular um guia técnico sobre pessoas
transexuais, travestis e demais transgêneros, oferece uma definição sucinta que serve
aos objetivos do guia. Ela afirma que “gênero se refere a formas de identificar e ser
identificada[e/o] como homem ou como mulher” (p.12).
Uma definição que se aproxima bastante da concepção adotada nesta
pesquisa é a seguinte, definida por Saulo Vito Ciasca, Andrea Hercowitz e Ademir
Lopes Junior:

Gênero é a dimensão social e histórica da construção e do entendimento dos


significados do masculino/masculinidade (homem) e do feminino/feminilidade
(mulher). Refere-se a papéis, comportamentos, atividades, atributos,
responsabilidades e oportunidades que uma determinada sociedade
considera apropriados para homens e mulheres. Gênero interage com, mas
se diferencia das categorias do sexo biológico. É um conceito utilizado para
pensar sobre a construção e controle dos corpos e das identidades, mas que
extrapola a experiência individual. Gênero é uma estrutura social que
organiza relações: a divisão do trabalho, a distribuição da riqueza e da
propriedade, o sistema político, a educação, a saúde, entre outras. A própria
linguagem, a forma como se pensa e vivencia o mundo e si mesmo estão
profundamente marcadas por distinções entre o gênero masculino e feminino,
que também orientam o modo como as pessoas agem e interagem, que
expectativas criam, como percebem a relação entre si e o outro (2021, p.13).

Miriam Adelman (2002) afirma que gênero se refere à construção histórica e


social, no ponto de vista ocidental, do “feminino” e “masculino” e de quem seriam
“mulheres” e “homens”, além das práticas sociais e representações construídas em
torno disso. A autora salienta a importância da contribuição das teorias feministas no
campo de estudo das relações de gênero, uma vez que trazem para o debate dos

25
Este capítulo se trata de uma adaptação do artigo “Diferença e Diversidade: Perspectivas
Transfeministas na Compreensão da Categoria ‘Gênero’”, sob autoria de Amanda Giulia Sartor e
Jaqueline Gomes de Jesus, publicado em 2022 na Brazilian Journal of Development. Pode ser
acessado através do link: https://www.brazilianjournals.com/index.php/BRJD/article/view/44282
44

fenômenos sociais a categoria gênero e compreendem-na como princípio


fundamental de organização social, definindo papéis e expectativas sociais.
No período em que os movimentos feministas europeus discutiam o sistema
sexo-gênero ligado diretamente à política e economia, Teresa de Lauretis (1994)
escreve o texto A Tecnologia do Gênero, trazendo compreensões sobre essa
discussão.
Gênero não é sexo. Este é um conhecimento popular e uma estrutura
conceitual que as cientistas sociais feministas denominaram como “sistema
sexo/gênero”, tratando-se de um sistema de representação e de uma construção
sociocultural que conferem significado a indivíduos na sociedade (LAURETIS, 1994).
No feminismo contemporâneo, a sexualidade feminina – assim como suas identidades
sexuais – passa a ser compreendida à parte do homem, diferente e autônoma.
Entretanto, para que o feminismo26 esteja ligado a uma prática de transformação
sociocultural, a ambiguidade do gênero precisa existir, “mesmo sabendo, enquanto
feministas, que não somos isso, e sim sujeitos históricos governados por relações
sociais reais, que incluem predominantemente o gênero” (ibid., 1994, p. 218). Esta
contradição seria, portanto, a condição da existência da teoria feminista.
Adelman (2002) descreve de forma sucinta, em quatro principais etapas, os
esforços dos estudos de gênero – não somente relacionados aos estudos feministas
– na academia na contemporaneidade:

Trata-se de (1) questionar as dicotomias segundo as quais “homens” e


“mulheres” são categorias estáveis definidas a partir de uma oposição binária
fundamental para (2) captar na sua pluralidade as formas históricas de
construção de masculinidades e feminilidades, (3) esclarecer seus vínculos
com formas de controle social, desigualdade e poder para (4) contribuir para
superá-las” (p.51)

De acordo com Lauretis (1994), gênero é um “produto e processo de um certo


número de tecnologias sociais ou aparatos biomédicos” (p.208) – compreendendo
tecnologias como um conjunto de saberes que modificam a realidade – e “representa
um indivíduo por meio de uma classe” (p.211); representa uma relação social.

26
Feminismo esse descrito anteriormente: ocidental e europeu. Compreende-se nesta pesquisa que
“o feminismo” não é um só, mas tem várias vertentes e linhas de pensamento que, inclusive, variam
pela localização geográfica. Sendo assim, a realidade latino-americana tende a ser diferente da
realidade europeia, por exemplo.
45

Ao escrever direcionada ao público das artes e do cinema, por mais que não
se restrinja a ele, Lauretis (1994) propõe-se a ir além das propostas teóricas de
Foucault relacionadas à tecnologia sexual que acabam, segundo a autora, por excluir
as considerações sobre o gênero. Na teoria de Foucault, a sexualidade seria idêntica
para todas as pessoas, sem a divisão feminino/masculino. Sendo assim, trata-se de
uma limitação que mantém, mesmo que não necessariamente de forma intencional, o
homem como sujeito universal e o masculino como neutro.

[...] negar o gênero significa, em primeiro lugar, negar as relações sociais de


gênero que constituem e validam a opressão sexual das mulheres; e, em
segundo lugar, negar o gênero significa permanecer "dentro da ideologia", de
uma ideologia que não coincidentemente embora não intencionalmente
reverte em benefício do sujeito do gênero masculino (LAURETIS, 1994,
p.223)

Ao conceituar e refletir sobre a categoria “gênero”, Lauretis (1994) apresenta


quatro principais proposições: (1) Gênero é uma representação, (2) a representação
do gênero é a sua construção, (3) a construção do gênero efetua-se constantemente
no mesmo ritmo que tempos passados como, por exemplo, na era vitoriana e (4) a
construção do gênero também se faz por sua desconstrução.
A segunda proposição de Lauretis (1994) é a de que a construção de gênero é
produto e processo tanto da representação quanto da autorrepresentação, porém, um
modelo de construção de gênero na diferença sexual terá suas limitações. A que
diferenças sexuais ela se refere neste momento? Seu texto indica para uma
construção binária – e também biologicista – de homem e mulher, como descrito no
trecho a seguir:

[o conceito de diferenças sexuais] confina o pensamento crítico feminista ao


arcabouço conceitual de uma oposição universal do sexo (a mulher como a
diferença do homem, com ambos universalizados: ou a mulher como
diferença pura e simples e, portanto, igualmente universalizada), o que torna
muito difícil, se não impossível, articular as diferenças entre mulheres e
Mulher, isto é, as diferenças entre as mulheres ou, talvez mais exatamente,
as diferenças nas mulheres (1994, p.207).

Gênero como diferença sexual, tratada como universal e a-histórica, na


perspectiva de Lauretis (1994), acaba por limitar o pensamento feminista, por mais
que também existam construções de gênero que subvertam a lógica heterossexual e
46

o discurso hegemônico, produzindo resistências localizadas. Ao que a autora se refere


como sendo no campo da subjetividade e da autorrepresentação.
Outra limitação do conceito de “diferenças sexuais”, segundo Lauretis (1994) é
a de que “ele tende a reacomodar ou recuperar o potencial epistemológico radical do
pensamento feminista sem sair dos limites da casa patriarcal” (p.207). Potencial
epistemológico radical entendido como a concepção de um ser humano “engendrado”,
constituído no gênero, para além das relações de sexo, mas também de raça e classe,
múltiplo e contraditório, não único e dividido.
Estar dentro dos limites da casa patriarcal seria, por exemplo, quando
perspectivas essencialistas que adotam abertamente posições mais conservadoras
valem-se de argumentos voltados à “natureza” de diferenças como algo dado
sociobiologicamente ou até numa perspectiva “feminista” de enaltecimento de
“virtudes femininas” (ADELMAN, 2002). Tal posicionamento pode ter consequências
que afetam a forma como encaramos a diversidade, uma vez que estão muito mais
focadas no que uma pessoa deve ser, do que naquilo que ela pode ser.
Algumas outras perspectivas que se diferem do pensamento essencialista e
conservador podem contribuir para esse debate, a exemplo de Judith Butler (2014),
que descreve gênero da seguinte forma:

[...] gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são


produzidas e naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato
através do qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados
(p. 253).

A partir do ponto trazido por Butler, a noção de gênero se expande para além
de comportamentos esperados de homens e mulheres, tornando-se uma categoria
potente de desnaturalização da lógica binária27. Ou seja, a partir do momento em que
surgem novas identidades de gênero, ao contrário de serem “não naturais” ou até
consideradas patológicas, são a expressão máxima de que é possível vivenciar a
sexualidade sem se encaixar na expectativa social de masculino e feminino, inclusive
sendo possível não se identificar com nenhuma das duas opções, com as duas ou
mesmo fluir entre elas, como no caso de pessoas não binárias.

27
Compreensão de que só haveria dois gêneros, sendo eles feminino e masculino, opostos e fixos.
47

Ao se referir à pluralidade de diferentes identidades, Berenice Bento (2011)


afirma:
O signo mulher não esgota a pluralidade de mulheres, da mesma forma que
ao falarmos de gays, lésbicas, travestis, transexuais sabemos que há uma
diversidade de experiências em cada um desses guarda-chuvas identitários
(p.80).

As contribuições dessas autoras podem levar-nos ao seguinte questionamento:


como seria, portanto, pensar gênero a partir de outros lugares? Aqui volto ao ponto
comentado anteriormente sobre os diferentes estudos de gênero e aos esforços
desses na superação de desigualdades, ou seja, a terceira e quarta etapas da citação
de Adelman (2002) localizada no início deste texto. Podemos avançar neste debate
se entendermos que as diferenças sexuais estariam calcadas em uma inteligibilidade
cisgênera. Nesse sentido, uma proposta teórico política que colocaria a cisgeneridade
e a identidade de gênero nesta “conta” seria o transfeminismo.
O pensamento transfeminista, relacionado diretamente às proposições e
reflexões do feminismo negro28, de acordo com Thiffany Odara (2020), seria uma
forma de subverter e recriar o pensamento teórico feminista a partir da compreensão
de identidade de gênero, confrontando a opressão de gênero. Outros marcadores,
como classe e raça, também seriam compreendidos como locais nos quais estamos
e a partir dos quais vivemos.

[...] o lugar social no qual as travestis e mulheres trans ocupam, dentro do


contexto social transfeminista, ecoa uma luta pela equidade de gênero, que
não só abarca o ser mulher, mas que, em certa medida, agrega a luta dos
homens trans entre outras reivindicações subversivas de gênero, uma vez
que esta luta imposta é pelo direito à vida e o direito a ser e de existir (ODARA,
2020, p.81).

Essas reivindicações subversivas de gênero citadas por Odara tensionam as


normas. De acordo com Sofia Favero, “[...] uma identidade que se ‘indaga’ seria uma
questão indesejável ao gênero - sempre seguro, sempre convicto, sempre resoluto
[...]” (2020, p.64). Neste sentido, Viviane Vergueiro Simakawa (2015) afirma que as
possibilidades oferecidas pela cisgeneridade 29 e heterossexualidade estão nas

28
Ver: hooks, bell. Feminist theory: From margin to center. Pluto Press, 2000.
29
Na linha coerente entre ’sexo’, ’gênero’, ’desejo’ e ’práticas sexuais’, portanto, a cisgeneridade se
localizaria nas relações e diálogos entre os dois primeiros pontos desta linha (englobando, via
cisnormatizações, possibilidades definitórias restritas para corpos e identificações, bem como
48

“‘decorrências normativas’ entre ‘sexo’ e ‘gênero’, nas supostas coerências pré-


discursivas, binárias e permanentes entre ‘macho+homem’ e ‘fêmea+mulher’” (p.57).
Isso é percebido, segundo a autora, a partir da definição de identidades de gênero
tidas como ininteligíveis e ofensivas à normatividade e, portanto, como não
decorrentes do sexo e nas quais o desejo não é consequente de gênero e sexo. Ou
seja, identidades para além da cisheteronorma.
Seria uma forma de desumanização, de acordo com Odara (2020), a negação
de corpos – e subjetividades – que não se enquadram no modelo cis e binário. É algo
para além das “resistências localizadas”, conforme Lauretis (1994) faz referência no
desenvolvimento de seu pensamento. Por esse motivo, a luta transfeminista se faz
tão necessária e urgente como uma prática alternativa que contemple as pluralidades
de gêneros existentes. Simakawa traz sua experiência pessoal como uma pessoa que
faz parte desta exclusão:

Ser tida como alguém ininteligível constitui-se no fundamento para violências


contra diversidades corporais que não se ajustam a estes cistemas [...]. Lutar
por diversidades é lutar contra binarismos eurocêntricos, contra a ideia de
que as pessoas pertençam a uma ou outra categoria mutuamente exclusiva
de gênero definida de formas objetivas e neutras (SIMAKAWA, 2015, p.65).

Pensando nessas ininteligibilidades, Sofia Gonçalvez Repolês e Erika Renata


Souza (2018) discutem as experiências não binárias que apresentam
questionamentos ao modelo feminino e masculino como opostos, rígidos,
complementares ou como possibilidades únicas de vivenciar o gênero. Pessoas que
não se identificam com o gênero designado ao nascimento, mas também não se
identificam com o que popularmente é chamado de “gênero oposto”. Podem também
se identificar parcialmente com essas categorias de mulher, homem, feminino e
masculino, “dentre outras infinidades de possibilidades de arranjos e expressões de
corporalidades e subjetividades [...] redefinindo e expandindo suas fronteiras” (ibid.
2018, p.8).
Enfrentar esses questionamentos de gênero não é uma tarefa fácil e exige
extensa discussão. Estamos em momentos de transformação e tensionamentos
(ADELMAN, 2002), ao mesmo tempo que surgem possibilidades de lidar com uma

regulações sobre expressões de gênero), enquanto a heterossexualidade se refere aos desejos e


práticas sexuais – em diálogos, evidentemente, com os processos de generificação das pessoas
(SIMAKAWA, 2015, p.57).
49

realidade que “abrace” a diversidade. Sofia Favero (2020), fazendo referência ao


processo psicoterapêutico, convida:

Não se apegue ao binário e entenda esse tipo de controvérsia como benéfica


para um tratamento, pois, se nos tornamos mais alguém que irá avaliar os
níveis de masculinidade e feminilidade, tornamo-nos cúmplices de uma
trajetória de agressões direcionadas a pessoas trans e travestis. Nossa
implicação, assim, para a surgir não quando dizemos “para mim você é
mulher”, mas quando compreendemos que ser uma mulher (ou não) é um
dado que diz muito pouco sobre quem está em nossa frente (p.19).

As perspectivas aqui citadas das pensadoras transfeministas trazem, além da


dimensão da cisgeneridade como um aspecto relevante a ser considerado nos
estudos de gênero, a possibilidade de uma compreensão desta categoria pautada na
diversidade. Naquilo que nos amplia e não reduz. Evidenciar isso coloca a categoria
gênero em outro patamar. Conforme Maura Âmbar (2021) afirma:

Dá-se, então, a necessidade urgente de descontruir a ideia de reduzir os


gêneros às identidades masculinas ou femininas, questionando os papéis
que determinado gênero deve ou não desempenhar, libertando inclusive a
ideia de obrigatoriedade de o gênero ser binário. Colocar o ser humano num
molde baseado em tradição faz dele um diminuto da espécie,
desconsiderando sua singularidade, tornando-o meramente formatado para
um ideal obsoleto construído em fundamentos religiosos e pouco científicos
(p. 94).

Seguimos, portanto, com uma breve aproximação da não binariedade a partir


da literatura, para depois a compreendermos nas vivências das pessoas participantes
desta pesquisa.
50

4. NÃO BINARIEDADE: UMA BREVE APROXIMAÇÃO

Esta pesquisa não se propõe a esgotar definições sobre não binariedade30,


mas sim compreender, a partir das vivências e produções subjetivas de pessoas que
se autoidentificam como não binárias, como uma possível forma de demarcar o
espaço que ocupam e como se sentem perante as normativas sociais relativas a
gênero. Ainda, por meio do contato com essas diferentes realidades, foram oferecidas
e produzidas reflexões fundamentais para refletir e rever categorias e conceitos - tanto
científicos quanto de senso comum - a respeito de sexualidade e gênero, mas também
de identidade, identidade de gênero e sobre a própria categoria de subjetividade.
Para compreender como a não binariedade é descrita na literatura, foi realizada
em 2020 uma busca nos bancos de dados científicos por meio de uma revisão
sistemática de literatura no Portal da CAPES, Scielo e LILACS. O termo “não binário”
obteve no total 33 artigos, um deles repetido, sendo apenas 15 relacionados ao tema.
Dentre esses, o artigo mais antigo é de 2010 e o mais recente de 2020 31. Somente a
partir das datas já é possível perceber quão atual é o tema no que concerne a
produções científicas brasileiras.
Os artigos encontrados tratam de diferentes perspectivas. Não binariedade
relacionada a expressões artísticas (FERREIRA, 2016; CÂNDIDO; SUZANO;
ASSIS, 2020); identidades políticas e direitos (CARVALHO, 2018; CAMPOS,
2016); corporeidade (DOS REIS, 2017; PORCHAT; OFSIANY, 2020; FLEURY;
ABDO, 2018; BARROS; LEMOS; AMBIEL, 2019); educação (CASTRO; DOS REIS,
2019; DOS REIS; PINHO, 2016; RODRIGUES, 2010) e mídias sociais (SOMAVIRA;
TOMAZETTI; MARTINS DO ROSÁRIO, 2018; HENN; DIAS, 2019).
As expressões artísticas, de acordo com Glauco Ferreira (2016), por meio de
imagens, performances e linguagens de artistas que desafiam a norma, possibilitam
uma reflexão sobre binariedade de gênero e sexualidade, questionando ao mesmo
tempo processos históricos de racialização e colonização brasileiros. O autor afirma

30
Na literatura também é encontrado o termo “não binarismo”, porém, nesta pesquisa foi feita uma
decisão conceitual, após conversar com participantes da pesquisa, em utilizar o termo “não
binariedade”, por não conter o sufixo “ismo”, que seria pejorativo, por sua vez, podendo remeter a uma
ideia de doença, transtorno ou problema.
31
Cabe destacar, que durante todo o processo de construção desta dissertação, observou-se um
crescimento exponencial de produção bibliográfica sobre a temática; entretanto não se ocupou em
refazer uma busca nos bancos de dados por ser necessário focar no processo conversacional,
interpretativo e construtivo de informações.
51

que Queer, em seus aspectos multidimensionais, pode ser interpretado como marco
de referência inicial que é logo “desconstruído”, gerando novas potencialidades e uma
nova conjunção possível de leituras críticas, sejam elas teóricas ou artísticas.
Ainda no que se refere à arte, mais especificamente à fotografia, Cássia
Cândido, Heloísa Suzano e Monique de Assis (2020) selecionaram para interpretação
duas imagens da exposição fotográfica Estética do Invisível intituladas Ensaio disfarce
para o fim do mundo e Meu corpo criação. Identificaram, a partir disso, a
representação de poder, resistência e transformação de corpos que não se submetem
aos processos identitários vigentes.
Sobre Identidades políticas e luta por direitos destacam-se os pontos
trazidos por Mario Carvalho (2018) por meio da observação do I Encontro Nacional de
Homens Trans. O autor constatou que o auge do debate se verificou no momento de
escolha da categoria “homens trans” para representar o coletivo. A disputa deu-se
entre a categoria “homens trans” e “não binários/es” (também aparecendo por vezes
como “transmasculinos”) que não se sentiam representados pela palavra homem.
Desses que se manifestaram contra a categoria inicialmente escolhida, a maioria era
de jovens (18 a 22 anos), de aparente classe média e que se utilizavam de termos em
inglês (queer, non-binary etc.) e interlocuções com autoras/es e termos dos estudos
acadêmicos de gênero (por exemplo o conceito de performatividade32 de Judith
Butler). A sugestão do grupo seria a palavra “transmasculino” para abarcar a
diversidade de vivências, porém, houve críticas. A réplica a essa ideia consistia em
afirmar que seria mais interessante, em termos políticos, operar com categorias já
existentes e inteligíveis para o poder público com a intenção de facilitar o processo de
conquista de direitos. Essas discussões, de acordo com o autor, poderiam ser vistas,
em um primeiro momento, como uma posição mais democrática/englobante versus
uma outra mais pragmática, porém, outros marcadores de diferença estavam
presentes. Além dos aspectos geracionais, eram observadas questões de raça e
classe social. Por fim, ficou decidido o uso de “homens trans” para interações
socioestatais e “transmasculinos” - em conjunto com “homens trans” - internamente,

32
Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou substância interna,
mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de ausências significantes, que sugerem,
mas nunca revelam, o princípio organizador da identidade como causa. Esses atos, gestos e atuações,
entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por
outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e
outros meios discursivos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não
tem status ontológico separado dos vários atos que constituem sua realidade. (BUTLER, 2017, p. 194).
52

em produções para o próprio grupo/movimento ou que não necessitem tanto desta


compreensão prévia das categorias.
No que se refere ao Direito, Ligia Campos (2016) propõe uma perspectiva mais
inclusiva para o reconhecimento jurídico da diversidade das identidades trans, uma
vez que o Direito possui caráter heteronormativo tanto no Brasil quanto na Alemanha,
que foram os países pesquisados por ela. Sendo assim, a autora considera que é
preciso questionar permanentemente a construção de categorias e seus conteúdos
para que a multidimensionalidade de subjetividades e pessoas seja reconhecida.
No que concerne à corporeidade, a partir de uma perspectiva pós-
estruturalista, Neilton dos Reis (2017) problematiza os atravessamentos entre as não
binariedades de gênero e os corpos, refletindo sobre a cobrança social de papéis de
gênero e os investimentos sobre os corpos (roupa, cabelo, tatuagens etc.) que se
referem a ser homem ou ser mulher. Esses investimentos, segundo o autor, quando
dizem respeito a pessoas que não se compreendem na norma binária, podem ser
mais elaborados e pensados como mudanças de registro civil, procedimentos
cirúrgicos e hormonização.
Os investimentos comentados por Reis (2017) podem depender também dos
discursos de diferentes áreas. Patricia Porchat e Maria Ofsiany (2020) comparam os
discursos do movimento transfeminista, da psicanálise e da medicina sobre corpos de
pessoas trans. Puderam observar que, na ordem respectiva em que foram
apresentados anteriormente, o discurso estava relacionado à autonomia,
subjetividade e saúde/doença. Na medicina, primordialmente, o caráter binário e
biológico é o foco, sem muitas reflexões acerca de outras possibilidades. As autoras
destacam a importância do diálogo entre diferentes perspectivas, prezando pela
interdisciplinaridade, evitando verdades únicas de áreas que se comportam muitas
vezes como porta-vozes das pessoas trans.
Quanto à saúde mental, Heloisa Fleury e Carmita Abdo (2018) trazem
contribuições sobre disforia de gênero, considerando-a presente em pessoas
transgêneras somente se for reportado sofrimento a respeito de sua própria condição.
As autoras apontam para uma prática profissional que esteja atenta aos estigmas
sociais e ao contexto no qual essa população vive, considerando a não binariedade
como possibilidade de identificação, além de prestar auxílio a estas pessoas para que
encontrem uma expressão de gênero confortável.
53

Em outra perspectiva sobre corporeidade relacionada à qualidade de vida e


satisfação com a imagem corporal de pessoas trans, Leonardo Barros, Carolina
Lemos e Rodolfo Ambiel (2019) realizaram uma pesquisa com 88 participantes, dos
quais seis se identificavam como não binários, e estes eram os que mais estavam
satisfeitos com seus corpos. Com isso, a pesquisa sugere que a ideia de liberdade de
poder constituir sua própria identidade, não restrita aos paradigmas sociais vigentes,
pode melhorar o nível da qualidade de vida.
No que concerne à educação, a pluralidade identitária pode ser pensada e
trabalhada nas escolas (DOS REIS; PINHO, 2016; CASTRO; DOS REIS, 2019).
Possibilidades de ensino nas ciências e biologia relativas a gênero e sexualidade
foram repensadas por Roney Castro e Neilton dos Reis (2019). Eles utilizaram como
ponto de partida para a reflexão uma pesquisa produzida anteriormente com
professoras de Ciências e Biologia sobre não binariedades de gênero. Os autores
concluíram que existe um desafio perante os cotidianos escolares e os processos
formativos docentes localizados em contextos heteronormativos, porém, é possível
questionar, aos poucos, o que se coloca como neutralidade científica em aspectos
biológicos e pensar formas de elaboração curricular que reiterem construções sociais,
culturais e históricas da heteronormatividade.
Ainda relacionado ao ensino de questões de gênero e sexualidade em sala de
aula, Gabriela Rodrigues (2010) propõe uma possibilidade. A autora sugere um
enfoque não binário que ultrapasse a fixidez das categorias, objetivando uma
construção educativa não hierarquizada. Ela considera o caráter arriscado destas
propostas, mas relembra o aspecto de descoberta presente na educação como um
espaço possível de repensar o próprio fazer.
Outro âmbito em que gênero e sexualidade podem ser amplamente discutidos,
para além de aspectos escolares ou acadêmicos, é o das mídias sociais. Nelas, é
possível acessar diversas contas de pessoas do mundo todo. Uma destas mídias com
alcance global é o Twitter. As pesquisadoras Mariana Somavira, Tainan Tomazetti e
Nísia Martins do Rosário (2018), por meio de Estudos Queer e teorizações de Deleuze
e Guatarri acerca da subjetividade, investigaram nesta plataforma publicações
marcadas com a hashtag #whatgenderqueerlookslike, ou seja, “como uma pessoa
não binária se parece”. As autoras concluíram que as pessoas não binárias que
puderam se manifestar provocaram tensionamentos na lógica social de
sexo/gênero/desejo.
54

Outra mídia social mundialmente conhecida é o Facebook. Ronaldo Henn e


Marlon Dias (2019) analisaram comentários em duas publicações nesta plataforma
acerca de um caso de crime envolvendo uma pessoa não binária e constataram que
os sentidos identificados, dentre eles o desejo de morte e deslegitimação de gênero,
intensificam processos de desumanização de corpos que não correspondem à
cisheteronormatividade.
A partir do que foi encontrado na literatura, pudemos acessar diferentes
debates que se relacionam à não binariedade e conhecer um pouco de como o campo
está sendo pesquisado no Brasil. Adiante, na construção da informação desta
pesquisa, poderemos ver que as diferentes esferas às quais a não binariedade está
relacionada na literatura também aparecem de diferentes formas nas narrativas das
pessoas participantes desta pesquisa, tomando rumos, expandindo, ampliando e
criando vias a partir de suas vivências.
55

5. PRINCÍPIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS

Esta pesquisa foi desenvolvida a partir dos pressupostos teórico-metodológicos


da Teoria da Subjetividade. Este capítulo, portanto, iniciará com uma sucinta
apresentação dos princípios da Epistemologia Qualitativa e da Metodologia
Construtivo-interpretativa que dão sustentação à teoria (MITJÁNS MARTÍNEZ;
GONZÁLEZ REY; VALDÉS PUENTES, 2019; GONZÁLEZ REY; MITJÁNS
MARTÍNEZ, 2017; GONZÁLEZ REY, 2005c), tal qual tem como objeto de estudo
essencialmente a subjetividade. Neste capítulo, apresentaremos os princípios da
Epistemologia Qualitativa e da Metodologia Construtivo-interpretativa. Importante
destacar que, para González Rey, trabalhar com pesquisa qualitativa não se trata de
uma opção metodológica, mas sim, de uma opção epistemológica, daí a adoção da
denominação Epistemologia Qualitativa (GONZÁLEZ REY, 2005b, 2017). Refere-se
aos saltos qualitativos provenientes do posicionamento ativo e criativo do pesquisador
em diálogo com os participantes da pesquisa, marcado pela expressão autêntica, pela
emocionalidade e pela reflexão crítica, de modo a permitir a emergência dos mesmos
como sujeitos e, assim, abrir novas vias de inteligibilidade e a configuração teórica
sobre o tema estudado (GOULART, 2020).

A Epistemologia Qualitativa proposta por González Rey e Mitjáns Martínez


(2017) é caracterizada por três principais princípios. O primeiro refere-se à
compreensão da singularidade com status epistemológico, uma vez que “o singular
não representava unicidade, mas informação diferenciada que se fundamenta no caso
específico que toma significado em um modelo teórico que o transcende” (GONZÁLEZ
REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p.28). Sendo assim, a informação sobre uma única
pessoa tem legitimidade a partir da consistência e continuidade da construção da
informação.
O segundo princípio, por sua vez, relaciona-se ao caráter construtivo-
interpretativo da pesquisa. O estudo da subjetividade requer do/a pesquisador/a
construções hipotéticas sobre uma realidade que não é explícita nas expressões
humanas – a subjetividade – e o processo de pesquisa, sendo teórico e interpretativo,
avança com as construções de indicadores que, ao se tornarem mais consistentes,
permitem o surgimento de hipóteses que darão rumo ao modelo teórico.
A pesquisa como um processo dialógico é o terceiro princípio da Epistemologia
Qualitativa. Este processo possibilita compreender as funções de pesquisador/a/e e
56

participante de uma forma mais ativa na construção da informação. São, portanto,


sujeitos e agentes neste processo, quebrando com a lógica de pesquisador/a/e-
objeto. Encarar o diálogo é também estar aberto/a/e às peculiaridades que aparecerão
no curso da pesquisa e nas quais não se havia pensado antes. Este é um princípio
que revela a não neutralidade do/a/e pesquisador/a/e, o que não significa, de forma
alguma, que tendo isso explicitado, a pesquisa tenha menos valor ou menor
confiabilidade.
O que tradicionalmente se compreende nas pesquisas científicas empírico-
instrumentais acerca da legitimidade do conhecimento é a relação direta desta com
evidências experimentais e resultados quantitativos observados a partir da estatística.
A questão que González Rey e Mitjáns Martínez (2017) pontuam é que este modo de
pesquisa possui limitações no que diz respeito aos significados produzidos.

[...] esses elementos quantitativos não irão ganhar significados pelas


correlações que possam ser definidas entre eles, mas dentro de um sistema
construtivo-interpretativo integrado por significados diferentes, com
procedências também diferentes, que só irão se configurar com o valor
explicativo no modelo teórico da pesquisa (p.105).

A subjetividade utilizada como referencial em pesquisa é representada por


construção constante (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017). Sendo assim,
para a realização desta pesquisa, a informação passa pelo processo de ser
compreendida conforme os passos da pesquisadora, o aprofundamento teórico e a
realização das dinâmicas conversacionais.
A construção da informação realiza-se processualmente por meio da
produção de dados e análise simultâneas, mediante comunicação ativa de
pesquisador/a/e-participante em um espaço conversacional (GONZÁLEZ REY,
2005a; GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017). Esse processo possibilita a
produção de sentidos subjetivos e novos campos de inteligibilidade durante a
pesquisa. Caracteriza-se essencialmente por seu caráter construtivo-interpretativo,
pois à medida que é realizada a pesquisa, também são realizadas interpretações,
sendo constantemente construídas novas conjecturas, novos indicadores e hipóteses
sobre o problema de pesquisa no processo de estudo, conforme a proposta da lógica
configuracional a qual implica, conforme Daniel Goulart (2020, p. 162):
57

(...) um caráter irregular, multidimensional e contraditório, no qual a


construção interpretativa não segue uma lógica externa à organização do
pensamento do pesquisador, seja ela cronológica, temática ou terminológica.
(...) Trata-se, portanto, de legitimar a lógica do pesquisador como substrato
elementar para a construção do modelo teórico resultante da pesquisa.

A partir da comunicação estabelecida entre pesquisador/a/e e participante,


em que ambos compõem um diálogo, não interessa somente o verbalizado, mas
também o silenciado e a apresentação afetiva da pessoa participante. Portanto, a
condução do espaço conversacional - ou dinâmica conversacional, conforme optamos
nesta pesquisa - ocorreu de forma atenta pela pesquisadora para não interromper a
linha de raciocínio de quem estava participando.
O importante, neste momento, não é coletar respostas prontas e objetivas,
mas, sim, encontrar meios de proporcionar um clima de conforto, segurança e
confiança para que quem participa possa expor suas reflexões e posicionar-se
ativamente sobre os assuntos que comentar. Dessa maneira, é possível utilizar e dar
continuidade ao desenvolvimento de uma teoria realmente articulada à pesquisa de
campo.
Além disso, na medida que a dinâmica conversacional ganha um rumo, as
perguntas podem ser reestruturadas e adequadas ao que se apresenta. Dessa
maneira, tanto pesquisador/a/e quanto participante caminham simultaneamente. Ao
mesmo tempo que a pessoa participante percebe a si por meio da fala, que reflete e
expressa sentimentos, emoções e compreensões a respeito de si, de suas vivências
e da própria temática, a pesquisadora pode repensar suas perguntas, seus objetivos
e seus instrumentos de pesquisa com o intuito de compreender mais profundamente
os sentidos e configurações subjetivas daquela pessoa a respeito da temática
pesquisada e, mais, a própria pesquisadora é capaz de, assim, produzir novos
sentidos subjetivos em relação ao objeto de estudo.
Em suma, no processo construtivo-interpretativo como tentativa de
compreender questões relacionadas à identidade e subjetividade de pessoas não
binárias, torna-se fundamental notar que não haverá apenas uma posterior análise de
dados, mas uma constante análise e produção de informações desde o início da
pesquisa.
58

Sendo assim, as hipóteses são construídas no decorrer da pesquisa, geradas


a partir dos indicadores elencados no processo de construção da informação por meio
de ação dialógica e teórica. O conhecimento possui, nesta perspectiva, caráter
construtivo-interpretativo, possibilitando um sistema teórico que seja confrontado
pelos fatos. Também legitima o singular como produção de conhecimento e
compreende que, nas ciências antropossociais, a pesquisa é sobretudo um processo
de comunicação e de diálogo.
A partir disso, é fundamental construir uma compreensão não orientada por
uma lógica pré-concebida, mas dirigida pelo processo reflexivo da pesquisadora
(GONZÁLEZ REY, 2005c). No caso da não binariedade relacionada à identidade e
subjetividade, significará identificar elementos de sentidos subjetivos que poderão ser
agrupados para a construção de indicadores, elencados no processo de construção
da informação por meio de ação dialógica e teórica.
As ideias, questões, suspeitas e reflexões iniciais que acompanham o
pesquisador são as chamadas conjecturas. As conjecturas abrem caminho para
significados mais consistentes sobre o tema e podem se tornar indicadores se forem
aprofundadas em construções interpretativas na pesquisa em campo (GOULART,
2020, P. 165). Já os indicadores são “o primeiro momento na abertura dos caminhos
hipotéticos sobre os quais a construção teórica avança” (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS
MARTÍNEZ, 2017, p. 111). Não são definições isoladas, mas recursos que
possibilitam uma construção teórica e que se amparam em diversos aspectos da
expressão de quem participa da pesquisa. Eles surgem a partir dos significados
construídos pela pesquisadora no contato com o que aparece no curso da pesquisa,
sendo percebidos por comportamentos, emoções, falas, posturas ou gestos que não
se encontram necessariamente tão explícitos (ibid., 2017).
Conforme emergem novos indicadores integrados ao significado aberto pelo
primeiro indicador, vão direcionando um caminho de pensamento e formulação de
hipóteses. Essas, por sua vez, diferem de pesquisas hipotético-dedutivas que buscam
comprovar hipóteses, mas representam “os caminhos nos quais o modelo teórico vai
ganhando capacidade explicativa” (ibid., 2017, p. 111). A pesquisa, portanto, tem um
caráter vivo e contínuo, que requer posicionamentos da pesquisadora frente às
informações que surgem, o que González Rey e Mitjáns Martínez (2017) definem
como “lógica configuracional”, a qual somente se torna explícita quando a pesquisa é
finalizada e o modelo teórico torna-se proposta de conhecimento.
59

O modelo teórico, por sua vez, é o resultado final da pesquisa, no qual são
produzidos indicadores, apresentadas hipóteses e feitas construções interpretativas
para produção de conhecimento acerca do que está sendo estudado.

Ao mesmo tempo em que o modelo teórico se configura no esteio para a


direção das construções interpretativas do pesquisador, ele é, precisamente,
o resultado principal da pesquisa nesse referencial. (...) Na construção do
modelo teórico, apreciações gerais sobre os sistemas de informação são
evitadas, de modo que a prioridade é dada ao trabalho com indicadores e
hipóteses articulado às ideias que o pesquisador vai construindo no decorrer
do processo construtivo-interpretativo (GOULART, 2020, p. 163).

Diante do exposto, apresentam-se os procedimentos metodológicos adotados


na pesquisa, tais como participantes, cenário social da pesquisa, instrumentos,
momentos formais e informais ocorridos, para então, no capítulo seguinte, apresentar-
se o processo da construção da informação.
Além disso, torna-se necessário discorrer brevemente sobre o cenário social
de pesquisa, o caráter dialógico da pesquisa e os espaços conversacionais.
O cenário social de pesquisa é o início do desenvolvimento do trabalho de
campo, no qual é feito o primeiro contato com o que se pretende estudar, promovendo-
se novas relações e aproximações que possibilitem um diálogo mais fluido e em uma
relação de confiança no futuro. O diálogo é algo produzido desde o início para que as
pessoas participantes da pesquisa se sintam confortáveis e possam expor suas
dúvidas e inquietações. Assim sendo, o caráter dialógico constitui-se nas
conversações ao longo da pesquisa e cria condições propícias para a manifestação
da subjetividade - aspecto tão essencial para a qualidade da informação neste tipo de
pesquisa, não somente de quem participa dela, mas também do/a/e próprio/a/e
pesquisador/a/e.

[...] a dialogicidade, como compreendida neste marco da teoria da


subjetividade, é um processo que envolve sempre os indivíduos como
agentes ativos em diálogo, o que caracteriza como produção subjetiva e não
como uma definição ontológica que reduz os processos humanos a
realidades dialógicas, omitindo a presença da subjetividade como produção
diferenciada dos sujeitos ou agentes em diálogo (GONZÁLEZ REY;
MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p.87).

O mundo simbólico da cultura é inseparável da subjetividade, mas, conforme


pontuado no trecho acima, por mais que atravesse estes aspectos, não se reduz ao
60

discurso, à linguagem ou ao texto. De acordo com González Rey e Mitjáns Martínez


(2017), essa perspectiva vai além da tradição hermenêutica, a qual compreende que
uma interpretação estaria sempre relacionada aos diversos sentidos de palavras em
um texto ou relacionada, mais propriamente, à linguagem.
A partir dessa explicação, os espaços conversacionais podem ser melhor
entendidos, uma vez que o diálogo ocorre por meio deles. São espaços abertos, não
necessariamente geograficamente localizados, nos quais a relação entre
pesquisador/a/e e participantes é mantida e fomentada, são “desenhos
comunicacionais não demarcados pelos artefatos de pesquisa” (GONZÁLEZ REY;
MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p.95). Ao longo da pesquisa, esses espaços permitem
que quem está participando posicione-se de forma ativa e criativa frente à pesquisa.
Na comunicação, segundo González Rey e Mitjáns Martínez (2017), emerge a
subjetividade e novos significados que podem ser tanto respaldados pela teoria, como
provocarão esta para modificar-se; sendo assim, a criatividade do/a/e pesquisador/a/e
será crucial para resolver estes tensionamentos. O que González Rey chama de
“artesanato de campo” (2017, p.138) é precisamente a resposta criativa do/a/e
pesquisador/a/e, que avança no sistema conversacional e condiz com o princípio
construtivo-interpretativo metodologicamente proposto. O desafio é possibilitar o
aprofundamento nas questões estudadas com a possibilidade de produzir novas
zonas de inteligibilidade e dar sequência a um processo de construção da informação.

5.1 PARTICIPANTES

Participaram da pesquisa cinco pessoas com idades acima de 18 anos, que se


autoidentificam como não bináries33 e pertencem a um coletivo artístico trans. O
critério se deu por conveniência, uma vez que a pesquisadora já conhecia e
acompanhava o coletivo, sabendo que dele faziam parte pessoas que se
autoidentificam como não binárias. Todes são artistas e poetas e este foi um “ponto
de contato” - conforme mencionado na apresentação desta dissertação - entre

33
A utilização da letra “e” em “não binárie” não denota gênero feminino nem masculino, de acordo com
uma proposta da linguagem não binária/inclusiva. Ver: https://diversitybbox.com/pt/manifesto-ile-para-
uma-comunicacao-radicalmente-inclusiva/
61

pesquisadora e participantes. As características gerais de cada pessoa 34 foram


respondidas por elas em um formulário online, disponível no Apêndice A, e serão
apresentadas a partir do segundo parágrafo de cada subcapítulo referente a cada
pessoa participante. Ainda, no formulário foi disposta uma pergunta para saber se as
pessoas participantes possuem algum tipo de deficiência, para o caso da necessidade
de acessibilidade em algum sentido, entretanto, todas as respostas foram negativas.
A participação ocorreu de forma voluntária, sendo necessário ter acesso à internet
para a realização da dinâmica conversacional.

5.2 O CENÁRIO SOCIAL DA PESQUISA

Durante o desenvolvimento da pesquisa, encontramo-nos em um cenário


totalmente atípico de pandemia por conta do coronavírus. Sendo assim, as formas de
comunicação foram todas online. O contato foi feito por meio da rede social Instagram
com um coletivo de pessoas trans que se propõem a incentivar e expor a produção
artística e poética de artistas trans. A partir disso, foi divulgado o convite para o grupo
internamente e quem quisesse participar poderia manifestar interesse para a pessoa
que mediou este contato. Foram seguidos os preceitos e cuidados éticos
estabelecidos pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Setor de
Saúde (CEP/SD) da UFPR. Sendo assim, esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de
Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Setor de Ciências da Saúde da UFPR,
recebendo o número CAAE: 39735820.2.0000.0102 e o número do Parecer de
Aprovação: 4.421.726.
Para a realização da dinâmica conversacional e dialógica, bem como de todas
as etapas do presente estudo que envolveram reuniões, foi utilizada a plataforma
digital Google Meet, respeitando a garantia de anonimato, sigilo, privacidade e
confiabilidade.
Uma vez que o convite foi aceito, foi realizada uma pequena reunião coletiva
na qual foram explicados os objetivos da pesquisa - e as motivações para a sua
ocorrência - em uma conversa introdutória. Dúvidas foram elucidadas e, após a
reunião, foi enviado para cada participante o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido aprovado pelo CEP/SD/UFPR (ANEXO A), para que pudessem reler e

34
Nomes fictícios.
62

assinar, caso mantivessem o interesse na pesquisa. Felizmente, todas as cinco


pessoas decidiram participar. Para a proteção de suas identidades, foram escolhidos
nomes fictícios: Luís Henrique, Amê, Tuti, Kafka e Bokoto. Os critérios de inclusão
para participação foram: ter mais de 18 anos, autoidentificar-se enquanto pessoa não
binária, ter disponibilidade e interesse em participar da pesquisa. Além do mais, as
datas e horários que cada participante estaria disponível foram combinados
individualmente.

5.3 INSTRUMENTOS

Os instrumentos de pesquisa utilizados foram os seguintes:


● Dinâmica conversacional individual 1 (DC1): Com o intuito de conhecer
melhor as pessoas participantes, a conversa seguiu um rumo a partir do que
foi trazido, de forma a estabelecer vínculo e abrir caminhos para a
espontaneidade. Entretanto, um mapa cognitivo, disponível no Apêndice B, foi
elaborado em supervisão para conduzir, porém, não determinar, o andamento
do diálogo considerando o tempo previsto de 1h30 a 2 horas.
● Dinâmica conversacional individual 2 (DC2): Após a elaboração de algumas
conjecturas, tendo em vista o conteúdo trazido por cada participante, foram
realizados questionamentos com o intuito de aprofundar pontos específicos das
conversas sem perder de vista a livre expressão das pessoas participantes que
poderiam ir além das questões levadas pela pesquisadora.
● Dinâmica conversacional em grupo (DCG): Por saber que todes são artistas
e têm contato com poesia, durante as dinâmicas conversacionais individuais,
as pessoas participantes comentaram sobre participações em Slams, uma
batalha de poesias. A pesquisadora, portanto, inspirou-se nisso para propor
que o último encontro fosse uma espécie de Slam com o tema Identidade. Não
teria uma pontuação, como acontece originalmente nessas batalhas, mas, sim,
uma exposição de algo artístico produzido por si mesmo/a/e. Neste caso, a
forma de expressão artística não precisaria ser necessariamente poesia, mas
aquilo que sentissem que gostariam de compartilhar com as demais pessoas.
A pesquisadora também se propôs a fazer parte e escrever algo.
63

Cabe salientar que as perguntas do mapa cognitivo não tiveram foco na história
de vida e nem nas relações, porém, isso apareceu espontaneamente nas conversas
e a pesquisadora fez indagações a esse respeito.
As dinâmicas conversacionais foram gravadas e transcritas para auxiliar o
trabalho da pesquisadora mediante autorização prévia e estão mantidas em arquivos
protegidos, identificados por códigos. As informações produzidas são resguardadas,
considerando que essas podem dar detalhes muito precisos sobre a identidade de
quem participou, tendo em vista o compromisso ético diante do Código de Ética do
Profissional Psicólogo, bem como pelo compromisso firmado com a pessoa
participante no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) no Anexo A desta
pesquisa.

5.3.1 MOMENTOS INFORMAIS

Além dos encontros previamente combinados, também houve o que aqui


nomeamos de momentos informais, nos quais foram possíveis conexões,
estreitamento de laços, diálogos e ampliação da compreensão sobre temáticas
trazidas pelas pessoas participantes. Destacamos aqui os seguintes momentos:

● Conversas com Bokoto após as dinâmicas conversacionais sobre arte, poesia,


Psicologia, seriados e animes;
● Contribuições adicionais de Tuti por meio de áudios de WhatsApp acerca do
que havia pensado sobre diferentes assuntos durante as dinâmicas
conversacionais;
● Leitura do livro escrito por Amê e conversas relacionadas a isso;
● Pausas na seriedade de algum assunto nas dinâmicas conversacionais de
Kafka, relacionadas a seus diversos animais de estimação;
● Visita à exposição Nise da Silveira - A revolução pelo afeto no Centro Cultural
Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro, com Luís Henrique, quando era
possível visitar o museu utilizando máscara em decorrência da pandemia.

A unidade indissociável entre Teoria da Subjetividade, Epistemologia


Qualitativa e Metodologia Construtivo-interpretativa permite o processo da construção
da informação, o qual será apresentado a seguir.
64

6. CONSTRUÇÃO DA INFORMAÇÃO

Para serem apresentadas na pesquisa, foram reunidas as informações das


duas dinâmicas conversacionais realizadas individualmente com todas as pessoas
participantes, somadas à dinâmica conversacional em grupo realizada com três
participantes, pois Amê e Luís Henrique não puderam comparecer ao último encontro.
A partir disso, foi produzida para cada participante uma narrativa que possibilitou
conexões entre os temas conversados.
Foram feitas aquarelas com autoria da pesquisadora a partir de metáforas
pensadas sobre as vivências das pessoas participantes. As ilustrações estão
dispostas no início de cada subcapítulo.

Como forma de orientar o processo de interpretação e construção do modelo


teórico, foram desenvolvidos mapas mentais com o que nomeamos “categorias de
sentido”, através das quais apresentaram-se sentidos subjetivos, indicadores e
reflexões. Por meio deste processo criativo, os temas foram conectados ao longo da
narrativa de cada participante.
Durante as dinâmicas conversacionais isso não ocorreu de forma linear,
portanto, a construção do texto apresentado dependeu da organização e associação
dos assuntos pela pesquisadora. Não renunciamos à narrativa para que pudéssemos
manter, ainda com detalhes, a complexidade e a diversidade de cada experiência,
uma vez que se trata de um tema até este momento pouco pesquisado. Desse modo,
os indicadores foram construídos e sustentados ao longo da apresentação do texto,
formando a trilha interpretativa do que foi discutido nas dinâmicas conversacionais.
Além disso, é importante salientar que os indicadores não têm caráter classificatório,
mas explicativo. Ao final, foram compilados os indicadores e hipóteses elencados, não
como forma de “catalogar”, mas como uma forma didática de apresentação e
organização de ideias.
Serão apresentados vários trechos retirados das dinâmicas conversacionais
que auxiliam na construção das informações na pesquisa que, por sua vez, são uma
forma de reiterar a importância de algumas falas em primeira pessoa e reafirmar a
construção conjunta e a colaboração das pessoas participantes nesta pesquisa. As
reflexões acerca da não binariedade não seriam possíveis sem o compartilhamento
de saberes destas pessoas, a partir de suas experiências de vida e considerações
sobre o tema.
65

6.1 VIVÊNCIAS NÃO BINÁRIAS

“Há, de um lado, uma psicopatologia interessada em saber ‘você é uma


mulher?’ e uma perspectiva crítica interessada em questionar ‘o que é uma
mulher?’ em primeiro lugar” (FAVERO, 2020).

Luís Henrique, Amê, Tuti, Kafka e Bokoto. Cada uma dessas pessoas vivencia
de diferentes formas a não binariedade. Teremos acesso a recortes de suas vidas,
compreendendo, mesmo que inicialmente, as configurações subjetivas da não
binariedade de cada participante. Os próprios títulos, partindo de metáforas ou trechos
específicos de suas falas, já demonstram aspectos do desenvolvimento subjetivo de
cada uma dessas pessoas relacionados à não binariedade.

As discussões trazidas por cada participante são linhas guia para a pesquisa,
demonstrando a riqueza da singularidade na diversidade. A força do singular em
sujeitos que resistem às normativas gera novos sentidos e configurações subjetivas e
desenvolve novas práticas.
66
67

6.1.1 O MOVIMENTO: LUÍS HENRIQUE

Luís Henrique traz o movimento. O que atravessa sua história está em


constante balançar, como um barco que navega em meio ao mar turbulento.
Compreender sua identidade de gênero como trans não binário, gênero fluido ou até
como “anarquista de gênero” não é algo que foi sempre assim, mas tornou-se assim
por meio do constante questionamento de si mesmo dentro de diversas estruturas
que, se entendidas na metáfora que iniciou este parágrafo, poderiam ser o mar
turbulento ou até mesmo o próprio barco. Algumas delas são: raça, classe social,
política brasileira, religiosidade e espaços de militância. Esses lugares remetem à
subjetividade social e, em todos eles - não necessariamente localizados
geograficamente - Luís assume um posicionamento, faz escolhas, abre novas vias de
subjetivação a partir de constantes produções de sentidos e configurações subjetivas,
o que podemos considerar serem expressões de vivências, de aprendizagens, de
reflexões e de desenvolvimento de subjetividade, ou seja, de ser sujeito.
Luís Henrique, 24 anos, trans não binário, utiliza pronomes masculinos e é
pansexual35. Classe baixa, autodeclara-se preto, nasceu em uma cidade na região
metropolitana do Rio de Janeiro e hoje mora no Rio de Janeiro - RJ. Possui Pós-
Graduação incompleta (Residência em Saúde Mental), é técnico em administração,

35
Pansexualidade: Atração sexual/romântica por pessoas independentemente de gênero.
68

guia de turismo e formado em Educação Física (Licenciatura). Ele gostaria de ter


cursado História, porém, não foi uma escolha viável no momento da decisão de qual
curso faria. Sentia muita vontade de ir para área da educação, estar em contato com
pessoas e ter maior possibilidade de utilizar a criatividade de alguma forma. No
primeiro ano de Educação Física, acabou gostando do curso e percebendo que
poderia igualmente abarcar História em sua formação, mesmo que não de maneira
direta. Também, por gostar de esporte e exercício físico, sentiu que a graduação de
três anos foi realizada com tranquilidade. Uma maneira de aprender e praticar aquilo
de que gostava.
Durante a realização desta pesquisa, Luís trabalhou como residente em Saúde
Mental em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II36). Mora com a companheira.
É militante de um grupo relacionado à juventude e, dentro desse grupo, coordena um
coletivo de saúde. Além disso, é integrante do setor de diversidade sexual e de gênero
de outro coletivo37. Também faz parte de um grupo multiprofissional realizado para e
por pessoas trans, pensando a arte na saúde. Luís é poeta, Slammer, cantor,
compositor e musicista. Toca violão, percussão e outros instrumentos.
No decorrer das dinâmicas conversacionais, Luís comentou sobre fatores que
lhe atravessam. Dois que, para ele, são indissociáveis, são classe e raça. Luís é uma
pessoa preta, cresceu em uma comunidade na região metropolitana da capital Rio de
Janeiro, em uma família que não detinha muitos bens materiais e nem possuía boas
condições financeiras. A mãe de Luís, até onde ele sabe, nunca trabalhou de carteira
assinada, já o padrasto, sim. A mãe trabalha atualmente em um buffet e recebe
pagamento quando são realizados eventos.
Quando a mãe e o pai de Luís estavam juntos, moravam em uma casa no
quintal da avó materna, em um bairro melhor do que onde moram hoje. O pai de Luís
foi presente até os 4 anos, mas depois da separação, Luís nunca mais o viu. De
acordo com ele, questões relacionadas ao dinheiro sempre foram um problema.
Divide, com fins explicativos, em dois lados. O lado da avó que tinha mais dinheiro e
queria presentear Luís ou até cuidar de algumas questões da vida dele, como por

36
“CAPS II: Atende prioritariamente pessoas em intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos
mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas e
outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida”.
Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/centros_atencao_psicossocial_unidades_acolhimento.pdf
37
Não especificamos por conta do anonimato.
69

exemplo o estudo, o que lhe permitiu permanecer durante um ano estudando em uma
escola particular no Ensino Médio. Em um momento, inclusive, chegaram a morar em
uma casa dada pela avó. O outro lado era dos pais de Luís, que não tinham dinheiro.

Aí a minha mãe ameaçou de botar ele [o pai] na justiça, a minha vó meio que
se colocou para cuidar de mim e dar toda assistência que meu pai teria que
dar. Então, acabou não faltando nada porque minha vó dava cesta básica,
pagava o colégio e era isso (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).

Ele morava com a mãe. Depois foi morar perto da avó, em um bairro ainda na
cidade metropolitana, mas um pouco melhor. A avó pagou durante três anos um curso
de inglês para Luís, oportunidade a que poucas pessoas têm acesso, ele reconhece.
Na ida para o curso, tinha dinheiro para o lanche. Ele guardava para comprar coisas
para si. Conta que a avó de vez em quando lhe dava dinheiro.

Eu tava crescendo, queria comprar coisas para mim que às vezes não queria
pedir para minha mãe. Então a minha vó ia soltando. Tipo aquelas vós que
passam dinheiro na surdina. 50 reais por debaixo da mesa. Então, a minha
relação de classe era muito assim, mas eu tinha algumas brigas com a minha
vó. Por ela ter dinheiro, tinha alguns debates que ela fugia, mas eu gostava
de trazer, saca? (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021)

Os debates aos quais ele se refere eram principalmente sobre racismo, classe,
diversidade de gênero e diversidade sexual. Tais contextos fazem parte das
configurações de sua identidade. Comenta que a avó tinha comportamentos muito
racistas e não era algo velado, mas direto, como por exemplo, chamar de “macaco”
um trabalhador que foi realizar consertos em sua casa. Depois de muito tempo de isso
ter acontecido, dentre outros episódios, Luís conseguiu conversar de forma indireta
com sua avó que, apesar de tudo, ainda lhe escutava. “Eu falava: ‘Vó, você tem uma
vida estável aqui, tem acesso. Acho que tá na hora. E você enquanto mãe de santo...
Reflete aí’” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021). Ele comenta que levou essas discussões
para a avó porque pensa no coletivo e acredita que nenhuma pessoa mereça ser
maltratada. Também, como mãe de santo, Luís acredita que a avó tem uma
responsabilidade ainda maior de cuidar das pessoas. Aqui, podemos elencar um
indicador de acolhimento como fator essencial para sentir-se pertencente, uma
vez que existe a expectativa de acolhimento por líderes religiosos, mas depara-se com
contradições, como racismo, julgamentos e exclusão. Neste momento, Luís refere-se
à postura da avó, porém, poderemos ver adiante como isso também se relaciona a
70

como ele espera que outros líderes tenham abertura, empatia e acolham a
diversidade, seja ela de classe, raça ou gênero.
Era em momentos cotidianos que o neto abria um canal de diálogo com a avó.
Ele cita exemplos, como iniciar algum assunto enquanto estavam vendo uma ou outra
reportagem no Fantástico ou algo na TV a que tinham o costume de assistir juntos.
Luís percebia que os temas abordados pelos programas eram a possibilidade de falar
sobre assuntos que não necessariamente ele precisaria trazer por conta própria. “Olha
vó, isso tá acontecendo no mundo. Não sou só eu que tô te trazendo. É bom ficar
ligada” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
Ele lembra de um episódio que ocorreu no período do impeachment da ex-
presidenta Dilma Rousseff. O posicionamento político da avó era de esquerda, o que
Luís vê como uma vantagem, já que, segundo ele, se ela estivesse mais relacionada
à direita, a situação poderia ser pior para ele. Foi comentando sobre o impeachment
que, pela primeira vez, conseguiram conversar sobre as questões LGBTI+. O tema
debatido era “família tradicional”.

Aí eu sempre vou com muito humor… Acho que isso deixa as pessoas mais
abertas. No primeiro “meu voto é pela família” eu já soltei: “Ih vó, cadê o
discurso desse cara? Quem votou nesse cara que não sabe nem discursar?”
Aí eu perguntei se ela tava ligada nesse rolê da família. Minha vó falou que
não tava entendendo nada. Falei: “A galera tá usando esse discurso da
família pra falar que defende a família tradicional brasileira. A galera hétero”.
Aí ela ‘“O que que é isso? O que que é hétero?” Aí eu fui explicando o que
era orientação sexual. Ela ficou meio receosa no início, mas a família sempre
sabe (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).

O receio da avó estava em achar que Luís Henrique falaria sobre si, mas ele
foi “trazendo de fora, pelas beiradas, devagarzinho” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
Ele desenvolveu formas de falar com a avó para que ela o entendesse e viu isso surtir
efeito. Conta que no dia seguinte à conversa que tiveram sobre família tradicional, ao
receber a tia de Luís em casa, a avó perguntou se ela havia visto a votação no dia
anterior. Ela, por sua vez, disse não ter visto.

[Avó:] “Tinha uns cabra meio esquisito dizendo que tavam votando pela
família”. Daí ela falou que eu disse que a galera tava defendendo a família
tradicional brasileira. Aí a minha tia: “Ué, mas não tá certo? De ter que
defender a família tradicional brasileira? É a nossa família mamãe”. E a minha
vó: “Num é a nossa família não”, aí eu: “Ihhh” (risos). Eu nem falei essa parte,
não sei da onde ela tirou isso. Minha tia já olhava para mim porque sabia que
eu que colocava esses papos na mesa (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
71

A partir dos trechos apresentados, elencamos o indicador de


desenvolvimento de estratégias pedagógicas como abertura de vias para uma
existência inteligível em determinados espaços. Neste caso, considerando a
realidade de sua avó, Luís utiliza-se do humor e de aproximações indiretas para
alcançar a compreensão dela sobre assuntos que podem ser complexos. Isso se
articula com a aproximação e interesse de Luís Henrique em relação à educação.
Aqui, elaboram-se emoções do próprio Luís, ofertando aos demais o que espera para
si: afeto, cuidado, empatia e compreensão.
Luís afirma que não gostava de pedir muita coisa para a avó, mesmo que
estivesse precisando de coisas básicas, porque já sentia que ela lhe dava muito e ele
a incomodaria. Comprava uniforme, material escolar e outros gastos que acabavam
sendo, de acordo com as contas de Luís, mais de mil reais por mês. No colégio, ele
sentia um “choque de realidade”, porque convivia com pessoas que tinham outro estilo
de vida, outras condições sociais e financeiras, outros tipos de acesso, outra
disponibilidade de tempo e, com isso, ele percebeu que não era um lugar onde se
sentisse pertencente. Optou por mudar para uma escola pública. A avó quis colocá-lo
no colégio particular mais conceituado da época, mas Luís se negou.

Sabia que eu não ia aguentar. Dou graças a Deus hoje de não ter ido, porque
se eu tivesse nesse processo de reconhecimento da minha orientação sexual
dentro de um colégio que na sua maioria eram pessoas que tinham dinheiro
e viam isso com outros olhos, sendo uma pessoa negra, o meu cabelo não é
liso, ia ser um choque muito grande. Dou graças a Deus por ter ido pro outro
colégio, mas pra minha vó o colégio público não dava em nada (LUÍS
HENRIQUE, DC2, 2021).

Aqui elencamos um indicador da não neutralidade dos espaços de


pertencimento, sendo, portanto, importante para Luís a identificação com estes
espaços e a proximidade de vivências como um fator que possibilitaria trocas e
compreensões sobre a realidade vivida, favorecendo o desenvolvimento para além de
uma lógica formal de educação. Isto não foi compreendido pela avó de Luís, que ficou
descontente com sua escolha, mas respeitou-o.
Ainda sobre os relacionamentos com a família, Luís conta que a relação com a
mãe é um pouco conturbada, principalmente em decorrência dos ideais
conservadores diretamente relacionados à religião. Depois que a mãe o expulsou de
casa, passou a raramente conversar com ela, somente questões pontuais para saber
como ela estava. Nesta época, já se desentendia com o padrasto que, segundo ele,
72

batia na mãe e isso era veementemente reprovado por Luís. Sua irmã por parte de
mãe e pai, de 21 anos, morava com a mãe. Ele a visitava de vez em quando e é com
quem mais conversa dentre os irmãos. Tem mais três irmãos e uma irmã por parte de
pai e todos tiveram filhos recentemente, portanto, Luís esteve mais em contato com
eles, principalmente por causa das crianças.
Após ter sido expulso de casa, morou durante um ano com o tio, pai de santo,
negro e gay, com quem Luís afirma conseguir ter um diálogo mais aberto e com quem
pôde se expressar por saber que havia maiores possibilidades de ser acolhido. Nesse
caso, portanto, havia a noção prévia de possibilidade maior de acolhimento por parte
de pessoas da comunidade LGBTI+. Por mais que o tio não tivesse tanta proximidade
com as questões trans, era parte da comunidade LGBTI+. Permaneceu lá até o
momento de terminar o último período da faculdade e depois foi morar com o pai.
Sente que a relação com o pai é melhor por haver diálogo. O pai escuta-o e busca
compreender o que Luís quer expressar. Ele conta que, desde a época em que se
entendia como mulher lésbica, a relação com o pai era muito boa; saíam juntos,
bebiam e conversavam. Conta que o pai já suspeitava, mas esperou que ele dissesse.
Foi um processo tranquilo e o pai defendeu-o diversas vezes quando a mãe queria
bater em Luís em razão disso.

Minha mãe nos surtos dela de querer me bater e ele: “Não, não vai encostar”
e me levava para a casa dele. De inclusive ele falar: “Pô, conheci uma garota
e acho que você vai gostar” (risos). Esse nível de intimidade. Até hoje a minha
relação com ele é boa. Não tão próxima como eu gostaria, mas a gente ainda
continua sendo bem amigos, de compartilhar coisas que acontecem aqui,
dele compartilhar coisas que acontecem lá. Ele é a única pessoa da minha
família mais direta que eu tenho mais contato e posso pedir ajuda (LUÍS
HENRIQUE, DC2, 2021).

Também morou um tempo com a tia, irmã de sua mãe. Ele conta que a mãe
não gosta muito por essa tia ser “rueira” e não ser da igreja. “Rueira” foi o termo que
Luís usou para descrever como a tia é uma pessoa que vive na rua, conversa com
todo mundo, bebe, ou seja, tudo que a mãe desaprova. Ele sente muito carinho pela
tia. Ela o chama pelo nome, se erra os pronomes logo pede desculpas e conserta.
Entretanto, a dinâmica de morar juntos não funcionou muito, então, logo que Luís
passou na residência, foi morar sozinho.
Todo esse percurso familiar e de possibilidades e impossibilidades de
habitação dizem do movimento. Movimento de reflexão sobre sexualidade e gênero
73

na família e sobre a hegemonia da subjetividade social frente a outras possibilidades


de gênero. Foram elaboradas conjecturas a respeito de um acolhimento maior poder
advir de pessoas que também se identificam como LGBTI+, entretanto, com as
informações até aqui apresentadas, percebemos o indicador de diálogo como fator
possibilitador de contato e conexão.
Antes de Luís Henrique reconhecer-se enquanto uma pessoa não binária e
gênero fluido, passou por outras formas de se identificar durante sua vida. Ele pensou
e ainda pensa muito sobre si mesmo, como se sente e se vê. Faz parte de um
processo de configuração de sua identidade de gênero, orientação sexual e
expressão, que gera reflexões e questionamentos contínuos.
Na adolescência, identificava-se enquanto mulher lésbica e, depois de ter
contato com debates sobre transexualidade na Universidade, durante sua Iniciação
Científica, passou a compreender que havia outras formas de se colocar no mundo
para além da cisgeneridade. Com isso, o espaço acadêmico/universitário possibilitou
movimentações. Esse foi o mesmo período em que foi televisionada na Rede Globo
a novela A Força do Querer, dramaturgia que abordou a temática trans e que também
contribuiu para que Luís encontrasse explicações para como se sentia.
Luís passou, então, a refletir e, metaforicamente, construir um quebra-cabeça
com peças que faziam parte de sua história pessoal e as peças que foi encontrando
pelo caminho, na Universidade e ao assistir a novela. Algumas coisas “encaixavam”
e outras não. Enquanto ainda morava com a mãe, ele sabia que se sentia atraído por
meninas ao mesmo tempo que não se compreendia como uma mulher. Entendia que
fugir do padrão não o faria ser necessariamente homem ou uma pessoa não binária.
Elencamos, portanto, o indicador de sentidos subjetivos de insatisfação e
incômodo com padrões de gênero.
Já o processo de se reconhecer enquanto homem trans aconteceu para Luís
após o término da faculdade.

Eu fiquei esse processo inteiro de graduação me olhando, prestando atenção,


porque eu estava com receio de ser uma coisa que “ah, porque eu estou
estudando isso ou porque isso daqui faz sentido aqui no mínimo, ou sei lá,
pode ser que eu esteja sendo condicionado a tal coisa, então eu vou parar
um pouquinho e realmente rever aquilo que me atravessa, o que me
atravessa que faz sentido ser um homem trans” (LUÍS HENRIQUE, DC1,
2021).
74

Esse trecho demonstra um certo cuidado com as influências, percebendo se


era algo que fazia sentido para si ou se somente reproduzia-o sem pensar mais
profundamente sobre. Mostra-se sempre cauteloso, questionando se não estaria
sendo condicionado por discursos e saberes, o que seria uma outra forma de
submeter-se aos ditames cisheteronormativos.
Após a faculdade, Luís já tinha a compreensão de que não era uma pessoa cis
e, segundo ele, foi se encaixando no que lhe era conhecido até então. Ser um homem
trans parecia ser o que fazia sentido naquele momento, então, no final de 2018,
passou a identificar-se dessa forma e experimentou como se sentia com as pessoas
que estavam com ele chamando-o pelo nome que escolheu e com pronomes
masculinos. Depois, iniciou a hormonização com acompanhamento médico, mas após
ter mais contato com o que seria a não binariedade, passou a questionar-se
novamente. Informações, referências, influências, reprodução de estereótipos. Tudo
isso passava pelos pensamentos de Luís Henrique e fazia com que ele, novamente,
se mantivesse em movimento na busca por algo que contemplasse seu sentir.
Relacionado ao indicador de sentidos subjetivos de insatisfação e
incômodo com padrões de gênero, também elencamos o indicador de busca por
referências a partir do que sentia e dos questionamentos que lhe apareciam, tomando
cuidados para se respeitar e tomar decisões que considerasse pertinentes a seu
processo de identidade de gênero. Buscou essas referências de diferentes formas.
Com o tio que também é LGBTI+, na novela, na universidade e nos próprios
sentimentos quando relacionados ao contato com outras pessoas que já lhe
chamavam pelos pronomes masculinos. Ainda, podemos conectar essas informações
ao interesse de Luís pela área da educação, sendo essa possibilidade não somente
de transmissão de conhecimento, mas também busca, procura e indagação.
Resolveu, então, não dar sequência à hormonização, pensando que em algum
ponto haveria mudanças irreversíveis. Pensou sobre sua relação com o próprio corpo
e se a questão era de como se apresentava ao/no mundo ou como era visto pelas
pessoas. Ele ainda não se colocava enquanto uma pessoa não binária também por
entender que um homem trans não precisaria necessariamente realizar cirurgias ou
tratamento hormonal. Foi então que Luís deu-se conta de que o que o atravessava de
forma negativa eram os padrões. Isso desde o início do caminhar. Padrões de como
ser uma mulher em um ambiente cristão evangélico, como ser uma mulher lésbica,
como ser um homem trans dentro da comunidade trans. Essa outra informação
75

sustenta o indicador de sentidos subjetivos de insatisfação e incômodo com


padrões de gênero.
A partir das reflexões sobre esses padrões, Luís encontrou algumas formas de
identificação que fizeram sentido para ele. Uma delas é o gênero fluido, que está
abarcado pela não binariedade, por não se sentir nem completamente homem nem
completamente mulher, mas fluir entre essas possibilidades. Por mais que Luís tenha
se preocupado com questões de influências, mesmo assim, ao rever sua história,
encontra momentos em que foi influenciado por leituras de terceiros sobre quem ele
era. Alguém, segundo ele, que não “performava a feminilidade”, mas sim a
masculinidade e, por isso, seria um homem trans.
Quando Luís foi buscar referências sobre transexualidade, achou poucas
coisas sistematizadas e explicações sempre relacionadas à lógica binária. Com o
tempo, ele foi seguindo pessoas trans no Instagram e deparou-se com o termo
“andrógino38”, algo que também o influenciou, de certa forma, a pensar sobre
identidade e expressão de gênero. Passou a seguir também uma pessoa não binária
no Instagram e depois de ter contato com o termo, conheceu outra pessoa que se
identificava da mesma forma em um grupo de que fazia parte. Ele ficou curioso sobre
do que se tratava e foi buscar informações, conversou com esta pessoa e ela lhe
indicou leituras. Isso se relaciona com o indicador de busca por referências e levou-
nos a construir outro indicador de fluidez como via de superação dos padrões na
vida de Luís, uma vez que a lógica binária e cisheternormativa não se aplicaria a esta
maneira de vivenciar o gênero.
O encontro com esta fluidez também favoreceu o desenvolvimento subjetivo de
Luís Henrique em relação ao próprio corpo e a como se expressa. Ele afirma que se
reconhecer enquanto uma pessoa não binária foi algo que o deixou melhor com o
próprio corpo, com a aparência, por sentir que não precisava “performar” nada dentro
de padrões preestabelecidos. Para ele, a não binariedade é estar bem consigo
mesmo.
(...) eu acho que a não binariedade trouxe muito isso para mim, me
reconhecer enquanto uma pessoa trans não binária me deixou, inclusive,
muito melhor com meu corpo, porque, enfim, eu posso ser qualquer coisa, eu
posso ser o que eu quiser. Pô, se hoje eu acordar querendo colocar uma
roupa que é dita como masculina, eu vou colocar e eu estou bem com isso,
pronto. Eu não preciso performar uma coisa dentro de uma caixinha. Eu acho

38
Androginia: Aparência que mistura aspectos considerados socialmente como femininos e
masculinos.
76

que é sobre isso, a não binariedade é estar bem consigo mesmo (LUÍS
HENRIQUE, DC1, 2021).

O “ponto zero”, como ele mesmo trata, é o primeiro contato que se torna
respeitoso quando não se faz pressuposições sobre quem ele é, mas se está aberto
a conhecê-lo. Perguntar o pronome pelo qual ele gostaria de ser chamado, para Luís,
ganha um caráter pedagógico na medida em que faz a outra pessoa questionar seus
pressupostos. Por meio da inversão de uma lógica que define se algo é feminino ou
masculino a partir da estética, é provocada uma reflexão. Ao mesmo tempo que, para
algumas pessoas, este exercício pedagógico não se aplica:

Se é uma pessoa que é próxima e que sabe que eu sou uma pessoa trans
não binária, eu vou deixar que me chame no feminino e isso não vai me afetar
de forma negativa, porque eu compreendo que aquela pessoa também
compreende o meu processo de construção e tudo mais, de transição (LUÍS
HENRIQUE, DC1, 2021).

A partir disso, constata-se que as intervenções pedagógicas se direcionam às


pessoas que não compreendem o processo e que, por mais que sejam o ponto inicial
de contato, os pronomes de tratamento dependem do entendimento da realidade não
binária e da intencionalidade com a qual são utilizados. Em outro momento, na
segunda dinâmica conversacional, Luís comenta que, quando frequenta o terreiro, ele
faz questão de que o chamem no masculino porque sabe que as pessoas ainda não
entenderam a transexualidade. Isso se relaciona com o indicador de
desenvolvimento de estratégias pedagógicas como abertura de vias para uma
existência inteligível, tendo em vista que essas estratégias não precisam ser
utilizadas quando a existência já é inteligível nos locais. Em outras palavras, não é
necessário abrir espaço onde já se tem espaço.
Em 2019, ele passou a reconhecer-se enquanto pessoa não binária
transmasculina, mas atualmente, no momento da realização da pesquisa, já não se
vê enquanto transmasculino. Traz o termo “anarquista de gênero” como uma
possibilidade que pode fazer algum sentido em momentos futuros, em que primeiro
se destrói a estrutura que impõe o que as pessoas devem ser, para depois entender-
se dentro de todo o processo e conseguir construir a partir disso. Luís comenta que
fez um processo de “escadinha”, que seria passar de um contato com o termo “não
binariedade”, depois entender do que ela se trata e, por fim – mas não somente –
reconhecer-se assim. Nesse processo, também foi importante ver outras pessoas que
77

se identificavam como não binárias nas redes sociais, mais especificamente no


Instagram e também conhecê-las ao vivo. Todavia, Luís compreende que, mesmo
com este contato mais próximo, a não binariedade é algo ainda muito mais amplo e
cada pessoa vive isso de uma forma diferente. Isso se relaciona com o indicador de
busca por referências e, neste caso, o papel das mídias sociais têm impacto
significativo.

Eu acho que foi isso, esse processo assim, foi meio que escadinha né, o
processo de escadinha de ter contato com o termo, de entender o que que é,
para se reconhecer ali dentro, né. E o não contato com o termo, mas como
termos próximos que condicionaram de alguma forma para me encaixar ali.
E a necessidade de se encaixar também... Tipo, que é bem construído
socialmente, né. Você precisa estar encaixado em alguma coisa para as
pessoas poderem te entender também (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021).

Encaixar-se em algum lugar. Essa foi mais uma – e talvez ainda seja – das
reflexões de Luís Henrique acerca da inteligibilidade social, ou seja, das pessoas
compreenderem minimamente quem ele é e como se reconhece. Ele acredita que
esta necessidade de se encaixar é construída socialmente e que algumas “caixinhas”
são inteligíveis, como por exemplo, compreender que pessoas trans estariam entre
ser mulheres ou homens, mas quando isso é questionado ou se “misturam” essas
definições, seriam “como E.T.s”, algo que não faria sentido. A partir disso, por vezes
ele se sente em um “não lugar”, um limbo do entendimento social.
Luís descreve este não lugar como uma impossibilidade de ser para além das
categorias homem e mulher, uma “não existência” que, para ser compreendida, faz-
se necessário repensar toda a construção em torno do que se entende por sexo e
gênero, principalmente. Porém, também é um olhar diferente para a própria vida e
como cada pessoa se coloca no mundo. Luís diz que a não binariedade é “repensar
realmente tudo” (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021) e, para isso, ele salienta que é preciso
disposição, o que nem todas as pessoas têm. Sendo assim, consideramos que as
configurações subjetivas de Luís relacionadas à não binariedade encontram-se
além do limbo e vazio entre sujeito e as normativas sociais, entre não binariedade
e cisheteronormatividade. Em lugar do não se sentir, do não pertencer, do não existir
e do não se compreender conforme a cisheteronormatividade, as configurações
subjetivas da não binariedade transcendem este lugar, não ficam em um suposto
limbo, mas expressam-se em sujeitos, em vias de subjetivações e ações concretas na
contramão do instituído e do rechaçado.
78

Algo que ficou muito evidente na conversa com Luís foi o impacto da igreja
evangélica em seu processo de socialização e educação durante a adolescência. Foi
criado na igreja até aproximadamente os 16 anos de idade. Naquele período,
compreendia a si e era visto socialmente enquanto mulher negra cis lésbica periférica
evangélica, sendo o pai pastor e a mãe missionária. Por mais que na igreja Luís
tivesse boas experiências, também existia um processo, segundo ele, de sabotagem
dos próprios desejos, por considerar, por exemplo, que o fato de sentir atração por
meninas, reconhecendo-se também enquanto uma, seria, para a igreja, um pecado
abominável.

(...) E a gente já sabe que, enfim, o cristianismo reforça alguns muitos


preconceitos. Racismo, LGBTfobia… Então eu fui criado dentro desse
ambiente que me atravessa diretamente e também de alguma forma faz com
que eu construa minhas subjetividades dentro desses espaços, né. Então,
tipo, eu cresci sendo uma pessoa muito insegura. Eu estou trabalhando nisso
agora. Inseguro, com muito medo, sempre abaixando a cabeça pras pessoas,
porque enfim, você não pode rebater as pessoas, porque você tem que ser
sempre aquela pessoa dócil, tem que ser sempre aquela pessoa calma com
o espírito de Deus reinando sobre a sua cabeça e tudo mais (risos) (LUÍS
HENRIQUE, DC1, 2021).

Uma de suas memórias refere-se a cultos em que o pastor falava de forma


direcionada a Luís e seu namoro, na época, com uma menina da mesma igreja, não
como uma forma de resolver um problema, mas de expor para a comunidade.
Segundo ele, se o pastor levantasse a questão em um âmbito privado, diretamente
com as pessoas envolvidas - por mais que ainda considerasse algo errado este tipo
de intervenção - talvez ele tivesse permanecido mais tempo na igreja. Ademais, era
frustrante para Luís saber que os padrões exigidos pela igreja nunca seriam
alcançados e seguidos por ele.

(...) eu nunca performei a tal feminilidade como as pessoas gostam de trazer,


não é mesmo?! (risos) E aí dentro da igreja precisava, porque eu era da igreja
Assembleia (...) Você não pode usar a calça, você não pode usar nada que
você queira, na verdade né. Você tem que usar o que o pastor tá falando que
você tem que usar. Saia longa até o joelho. Eu odiava saia, sempre odiei.
Saia, não podia cortar cabelo, não podia nada. E isso foi meio que criando
um padrão daquilo que eu deveria ser e que eu sempre tive certeza de que
eu não ia seguir aquele padrão ali nunca, eu nunca iria chegar naquele
padrão (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021).

Os trechos apresentados relacionam-se ao indicador de sentidos subjetivos


de insatisfação e incômodo com padrões de gênero quando ele se refere ao
79

ambiente da igreja e aos papéis sociais por ela esperados. Inclusive, quando ele diz
que o pastor poderia tratar determinados assuntos privadamente, isso se conecta
tanto ao indicador de acolhimento como fator essencial para sentir-se
pertencente quanto ao indicador de diálogo como fator possibilitador de contato
e conexão. Uma vez que essa conexão fosse possível, talvez também a permanência
fosse maior em um local onde sentisse que poderia expressar-se, ser escutado e
acolhido.
Ele também sentia uma grande responsabilidade por ser filho do pastor e da
missionária. Aos 15 anos foi afastando-se da igreja, mas os pais ainda o levavam
contra sua vontade. Esse “afasta/retorna” durou até, mais ou menos, os 18 anos de
idade de Luís. Ele conta que, quando era levado à igreja, permanecia com expressão
fechada, sentado, sem falar com ninguém, demonstrando seu desconforto. Era
cobrado dele que desse exemplo a outros jovens. “Não queria nem estar ali, quanto
mais dar exemplo pras pessoas (risos)” (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021).
Foi por meio de tentativas e desilusões que Luís compreendeu que, por mais
que tenha vivido diversas experiências boas naquele ambiente com o grupo de jovens
e gostasse das relações que eram possíveis ali, ainda havia violência e aquele não
era um espaço acolhedor para ele ser quem é. A insegurança e o medo que atribuiu
a estar neste espaço e seguir os ritos da religião não eram sustentáveis. Precisou
afastar-se por um tempo, depois retornou, batizou-se e, segundo ele, esse foi um
momento de autossabotagem que não durou muito tempo. Não foi um processo fácil
e muito menos linear. Mesmo tentando permanecer e ver o ambiente por outros
pontos de vista, ainda o sentia como um espaço violento para si, com regras pelas
quais não valeria a pena moldar-se. “É ferir o outro, é violentar o outro e é contraditório
com a própria Bíblia” (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021). Tudo isso provocou vários
questionamentos e inseguranças: “Será que eu sou um corpo desejado? Será que eu
sou capaz de ser amado?” Para além disso, a insegurança tomou caminhos mais
generalizados, com questionamentos como: “Será que eu sou capaz de fazer uma
prova e passar?”.

(...) por mais que eu não esteja na igreja mais, essas coisas ainda me
atravessam, porque me construíram socialmente assim, né... E foram no
período da idade em que a gente realmente está ali construindo e
consolidando aquilo que a gente vai ser. Então por mais que eu não esteja
dentro desse ambiente mais, graças a Deus, ainda me atravessa assim.
Tomada de decisão, ver o mundo também. Acho que cristianismo molda
80

muito como a gente olha para algumas questões. Acho que, graças a Deus,
eu estou no processo de desconstruir todas essas coisas (LUÍS HENRIQUE,
DC1, 2021).

Neste período em que Luís Henrique afastou-se novamente da igreja, por mais
que não estivesse fisicamente no local, os afazeres de sua mãe traziam essa igreja
para dentro de casa porque, dessa maneira, ele ainda estaria em constante contato
com ela. Neste processo de aproximação e distanciamento da igreja, Luís também
frequentava um terreiro e, em um determinado momento, ele foi expulso de casa39 e
passou a morar com a avó - conforme comentado no início - falecida há
aproximadamente dois anos e meio e que era mãe de santo nesse terreiro. Ele afirma:
“(...) Acho que isso foi um ponto que pesou bastante assim, que eu sabia que tinha
toda uma construção do discurso que tinha dentro da igreja para que ela tomasse
essa decisão também, né” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021). De acordo com Luís, sua
mãe não compreendeu que o motivo de ele sair da igreja era por se sentir em um local
opressivo, por se sentir violentado. Para ela, a saída estava relacionada ao fato de ele
frequentar o terreiro.
O terreiro foi um local importante para Luís reconhecer-se em outros espaços
e permanecer em contato com a espiritualidade, que é algo valioso para ele. Apesar
de atualmente não frequentar mais o terreiro ao qual era conduzido pela avó - e no
qual a tia está à frente hoje - Luís reconhece que, principalmente no período em que
precisou de acolhimento após ter sido expulso de casa e, indiretamente, da igreja, ele
se sentiria mais sozinho se não tivesse buscado esse local e não sabe o que poderia
ter acontecido. Recentemente, passou a frequentar outro terreiro, mas também teve
algumas situações que lhe desagradaram. Ele conta que, na primeira vez em que foi
a uma “gira” nesse terreiro, sentiu-se feliz em constatar que havia um homem trans
presente. Ele “performava uma masculinidade” (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021) – o que
Luís não faz e nem pretende fazer. Apesar disso, uma das vontades de Luís era não
usar saia. Esse homem pediu para que não colocassem saia em Luís durante a
sessão. Isso fez com que Luís continuasse frequentando o terreiro por se sentir

39
“Quando os membros da família rejeitam, negam ou cortam laços com pessoas trans, isso pode ter
um efeito devastador em seu bem-estar e autoestima. Também pode impactar a estabilidade
educacional, econômica, patrimonial e habitacional. Muitas pessoas trans continuam a enfrentar
rejeição familiar e isolamento, incluindo sendo expulsas de suas casas ou sendo fisicamente feridas
por membros da família” (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021, p.38).
81

respeitado, porém, nas outras vezes em que o homem não estava, acabaram
colocando a saia nele.
Em uma dessas vezes, uma pessoa que o conhecia foi com ele à gira e
interferiu quando a situação se repetiu. O pai de santo não gostou. Quando Luís se
deu conta, já estava acontecendo um sermão sobre a situação; sobre ele.

(...) foi complicado, porque o discurso não foi um discurso de “me desculpa
se isso te afetou, se isso te violentou”, foi tipo: “Sinto muito que isso tenha te
violentado, mas é orientação da casa. Eu não tenho nada a ver com a sua
opção...”. Ainda usou opção, né. “Eu não tenho nada a ver com a tua opção,
com as tuas escolhas, com as escolhas de cada um” (LUÍS HENRIQUE, DC1,
2021).

Por mais que esse tenha sido um discurso para todas as pessoas presentes,
Luís percebeu que era para ele. O pai de santo ainda ressaltou que as regras existem
e precisam ser cumpridas no terreiro, porém, a justificativa que ele deu para Luís sobre
o uso de saia não fez muito sentido para ele. Seria uma forma de cobri-lo, contudo, a
roupa que ele estava já fazia essa função. Luís entende que é possível que, sobre
alguns temas, enquanto um homem cis de 60 anos, negro, o pai de santo não tenha
acesso, mas percebe que saber disso não o faz sentir-se menos mal. Somente faz
com que tenha uma melhor compreensão dos motivos pelos quais o outro pensa como
pensa. Então, ele precisou decidir, considerando tudo isso, o que faria para o seu
próprio bem-estar.

(...) mas é tenso esse rolê de regras, porque grupos têm regras e algumas
são regras que excluem pessoas né... Então, como balançar e mediar aquilo
que pode ser colocado e que vai ser entendido e que vai ser escutado? E
quando se retirar? Porque às vezes não vai ter abertura também (LUÍS
HENRIQUE, DC1, 2021).

A partir das experiências de Luís na passagem gradual da igreja para o terreiro,


pudemos perceber a relação com os seguintes indicadores já elencados: Indicador
de acolhimento como fator essencial para sentir-se pertencente, quando se
surpreendeu com o pai de santo chamando sua atenção e utilizando termos
inadequados; Indicador da não neutralidade dos espaços de pertencimento
quando o fator de relevância foi encontrar um homem trans no terreiro que pôde
incluir-lhe naquele espaço e o indicador de diálogo como fator possibilitador de
contato e conexão quando, neste caso, precisou afastar-se de onde percebeu não
ter abertura. Ainda, isso nos possibilitou chegar a um novo indicador de sentidos
82

subjetivos relacionados à identificação como fator relevante para permanência


nos espaços. Podemos perceber isso quando Luís escolhe a escola onde quer
estudar, quando namora uma menina da igreja - portanto, uma pessoa LGBTI+ - e
quando encontra uma pessoa trans no terreiro.
Constatam-se expressões de subjetividade individual e subjetividade social
trazidas nas lembranças, sentimentos, vivências e configurações simbólico-
emocionais. Atitudes do pastor e do pai de santo implicam em vivência emocional,
cognitiva, simbólica - pecado, punição, condenação de seu comportamento, de seu
sentir, de seu ser - que indicam não ser possível a Luís Henrique ser quem ele é,
quem ele quer ser, impondo-lhe limitações, exigindo-lhe adequação.
Luís conta que a experiência em trabalhar no CAPS, por mais que ele tenha
imaginado como seria, foi chocante em alguns pontos, principalmente no que diz
respeito à sensibilidade em relação às questões trans. As pessoas da equipe
chamavam-lhe pelo nome, mas erravam os pronomes e ele acabava “deixando
passar“ por falta de paciência para explicar todas as vezes em que isso acontecia.
Ele entende que, quando a pessoa não tem acesso aos debates, ele se dispõe
a explicar. Traz como exemplo a situação do pai, que vive em uma comunidade do
Rio. “Com ele eu vou ter paciência, vou sentar e explicar, porque ele não sabe nem
que esta possibilidade existe, então não vai pesquisar” (LUÍS HENRIQUE, DC2,
2021). Já a equipe do CAPS, segundo Luís, tem a responsabilidade de buscar esses
conhecimentos, não somente por tê-lo enquanto profissional trans na equipe, mas
porque a possibilidade de vir um usuário, usuárie ou usuária trans é grande.

Então vai esperar a demanda chegar pra pesquisar e procurar? Então o


primeiro acolhimento já vai ser um acolhimento sem tato, sem saber muitas
coisas e que pode produzir, inclusive, adoecimentos depois desse
acolhimento. Só vão procurar depois? Aí eu fico meio nessa. Não vou
desgastar a minha saúde mental para conversar com pessoas e explicar pra
pessoas que deveriam saber. Têm acesso, têm internet... Tempo eu não sei
porque a atuação em saúde mental é complicada, mas têm o mínimo de
acesso a essa informação (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).

Nesses momentos em que Luís fala da equipe do CAPS, demonstra grande


insatisfação e desapontamento. Por mais que ele tenha uma postura direcionada ao
compartilhamento de saberes e desenvolvimento de estratégias pedagógicas, é
elencado um indicador de cansaço e exaustão frente a situações em que precisa
explicar sobre si mesmo e sobre questões que considera básicas para pessoas que
83

têm acesso ao conhecimento e que, de acordo com o que foi expresso por Luís
Henrique, deveriam ter discernimento do que é importante pesquisar e compreender
na atuação dentro da saúde. Este indicador também é sustentado pelas informações
que seguem.
Luís conta, na segunda dinâmica conversacional, que teve crises de ansiedade
e estava com intenções de tirar licença médica para afastar-se do trabalho e cuidar
de si. Já estava há algum tempo sem ir trabalhar em virtude dessas questões. Ele já
sabia que poderia encontrar inconsistências e contradições, mesmo sendo um CAPS
de referência, mas não sabia que isso lhe impactaria a ponto de não conseguir mais
permanecer naquele ambiente. No início, estava disposto, mas conforme foi se
deparando com a realidade de que o básico não estava sendo feito, ele, enquanto
residente, não conseguia “dar conta” e nem se sentia responsável por trazer todas as
críticas. Inclusive, ao tentar expressar o descontentamento à preceptora e à tutora,
não conseguiu, porque as crises de ansiedade já se haviam iniciado. .

(...) a questão não é nem a galera não ter tato com pessoas trans, é não ter
tato com as pessoas em geral. Então, pra mim é muito, eu sou muito sensível.
Comigo é tudo na base do afeto e aí eu chego lá e a galera é meio endurecida.
Com os próprios usuários... Coisas muito doidas enquanto eu estava naquele
CAPS. O restante da equipe parece que já naturalizou isso e essas ações
não são tão visadas e vistas enquanto problema. Aí eu entrei como residente
e vi esses problemas, mas me vi sem um lugar para colocar essas questões
também, porque a galera já está no meio disso e tão meio que achando
natural e deixando o bagulho acontecer (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).

(...) quando cheguei lá eram muitos profissionais sem tato, de xingar usuário,
proibir usuário de entrar na unidade. São coisas nítidas para qualquer pessoa
que tenha o mínimo de teoria da luta antimanicomial40 e que nitidamente
chegaria lá e falaria: “Isso tá errado, isso é um absurdo” (LUÍS HENRIQUE,
DC2, 2021).

A proposta é que a atuação seja planejada com a equipe ou pelo menos com
a preceptora, mas ele acabou tendo que encontrar sozinho sua função. Luís Henrique
propôs-se a atuar na área de convivência e, com sua formação como educador físico,
lidava com o corpo, levava oficinas de música, utilizava-se dessas ferramentas e
apropriou-se deste lugar. Percebeu, entretanto, que a equipe não compreendia sua

40
Ver: AMARANTE, Paulo; NUNES, Mônica de Oliveira. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por
uma sociedade sem manicômios. Ciência & saúde coletiva, v. 23, p. 2067-2074, 2018. / LÜCHMANN,
Lígia Helena Hahn; RODRIGUES, Jefferson. O movimento antimanicomial no Brasil. Ciência & Saúde
Coletiva, v. 12, p. 399-407, 2007. / GULJOR, Ana Paula; AMARANTE, Paulo. Movimentos sociais e
luta antimanicomial: contexto político, impasses e a agenda prioritária. Cadernos do CEAS: Revista
crítica de humanidades, n. 242, p. 635-656, 2018.
84

função na unidade, nem o espaço da educação física na saúde mental, além de não
valorizar as oficinas. A equipe, segundo ele, via as oficinas como um lugar em que os
usuários vão para desenhar alguma coisa, pintam e saem. Não havia escuta,
observação. A escuta à qual Luís se refere diz respeito a entender de forma integral
a realidade do usuário. Ele via que as perguntas eram feitas a eles de forma muito
direta, entre quatro paredes, com encaminhamentos padrões e rasos. Isso se
relaciona ao indicador de cansaço e exaustão, além do adoecimento causado tanto
pela desvalorização profissional quanto pela exclusão e sentimento de não
pertencimento.

Aí teve uma reunião muito louca de preceptoria coletiva que isso ficou muito
nítido. A galera não estava conseguindo me enxergar e cobrou de eu não
estar fazendo nada. Eu fiquei: “Gente, como assim eu não estou fazendo
nada?” Aí eu nem retruquei, só deixei o bagulho acontecer. Não é que eu não
estou. Você que está ali na sua salinha sentado, no seu ar-condicionado
enquanto eu estou na área de convivência. Mas é isso, bateu e eu não
consegui mais voltar pro serviço depois dessa reunião (LUÍS HENRIQUE,
DC2, 2021).

Conforme já citado, um dos fatores que atravessa a vivência de Luís é a raça,


e ele percebeu o quanto as pessoas que trabalhavam com ele estavam atrasadas
quanto aos debates relacionados a esse tema. No dia em que ocorreu uma chacina
em uma comunidade no Rio de Janeiro, o CAPS não abriu. Em outro momento, isso
foi colocado em supervisão. O que chocou Luís foi que a supervisão não foi feita
porque algo relevante ocorrera no território e afetaria diretamente os usuários, mas
porque, no dia, o grupo responsável por avisar que o CAPS fecharia em função de o
território estar “em vermelho”, demorou para passar a informação.

E a supervisora foi puxando um pouco desse debate e a galera ficou meio


assustada como se tivesse falando essa informação pela primeira vez,
tivesse tendo um contato pela primeira vez, que pessoas negras sofrem com
a violência no território. Você tá numa unidade do CAPS no meio de uma
favela e você não sabe o mínimo sobre esse território, sobre a realidade das
pessoas que vivem ali e você se espanta como se fosse a primeira vez que
você tivesse acesso a isso. Fiquei perplexo. Da onde essas pessoas tão
falando? Onde essas pessoas moram? Será que não escutam rádio? Não
têm o senso mínimo. Esse é o cotidiano de pessoas negras e faveladas. É
com isso que as pessoas lidam. E a galera tava: “Meu deus, eu não sabia
que era tão assim”. E uma profissional que até trouxe: “Que diferença, lá em
casa a gente acena pro helicóptero, aqui a galera tem que ter medo”. Eu falei:
“Olha, olha! Vou te falar, tu nem precisava trazer isso. Se tu ficasse quieta eu
ia te dar mais valor aqui dentro, mas não precisava trazer isso”. E eu fiquei
“Mano...” Imagina falar sobre a transexualidade! Não tem como. Muito
absurdo, o que esperar dessa equipe, Jesus? (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021)
85

Esse trecho, assim como as informações trazidas sobre a experiência de Luís


no CAPS, associa-se ao indicador da não neutralidade dos espaços de
pertencimento, sendo que, neste local, as realidades das pessoas da equipe eram
bem distantes da realidade de Luís, bem como daquela das pessoas atendidas. Ainda,
é possível elencar outro indicador da relação intrínseca entre raça, classe e
gênero na constituição subjetiva de Luís Henrique. Isso pode ser observado tanto nos
trechos acima quanto em outras situações, como suas experiências na igreja, no
terreiro e também como os movimentos de identificação em relação a si mesmo, de
“escadinha”, de “quebra-cabeça”, com os quais Luís se depara durante a vida.
Luís não era a única pessoa que se indignava com essas questões. Ele conta
que compartilhava suas preocupações com outra residente do mesmo programa, a
qual estava inteirada do debate de raça. Ambos tentaram algumas vezes promover o
debate, mas a abertura era difícil. As pessoas tinham uma postura de conformidade
com a situação, muito mais do que um pensamento crítico ou até indignação.

Não tem como a gente não falar sobre violência no território e sobre racismo,
porque infelizmente as coisas estão ligadas. Numa supervisão, a gente
conseguiu colocar minimamente. Falar de privilégios, porque a gente viu que
era necessário, mas também foi a única vez que teve espaço pra colocar
(LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).

Em articulação com indicadores elencados de desenvolvimento de


estratégias pedagógicas como abertura de vias para uma existência inteligível,
acolhimento como fator essencial para sentir-se pertencente, da relação
intrínseca entre raça, classe e gênero, da não neutralidade dos espaços de
pertencimento e diálogo como fator possibilitador de contato e conexão,
chegamos à hipótese de que o silenciamento, o “não falar” e a não presença da
temática de gênero no processo educativo formal e informal, não presente na
formação profissional, leva à alienação em massa que transforma-se em abominação,
discriminação e violência. O que leva a uma paralisação de produções subjetivas na
subjetividade social e na subjetividade individual. A intolerância a pessoas LGBTI+, a
invisibilidade da diversidade de gênero e a falta da temática de gênero e sexualidade
(BONATO, 2019), mantêm a alienação e, portanto, o conformismo que vai na
contramão da crítica, da psique geradora de sentidos subjetivos.
Nese período, as crises de ansiedade foram se intensificando bastante a ponto
“de me paralisar, de não conseguir respirar, não conseguir falar, de um outro dia eu
86

ficar com muita dor muscular e não conseguir me mexer muito bem, porque o meu
músculo fica contraído durante a crise” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021). A ansiedade,
neste sentido, aparece como expressão de seu sofrimento, paralisando suas
atividades, emoções e reflexões. Paralisa sua capacidade de ser sujeito e produzir
novos sentidos subjetivos para a abertura de novas vias.
Atualmente, ele tem a possibilidade de ter atendimento psicológico e
psiquiátrico. Luís já fazia terapia, mas conta que relutou para começar, pois não queria
que fosse psicanalista nem pessoa cis. Entretanto, por indicação de uma ex-
companheira, ele foi a uma psicanalista, mulher, branca e cisgênero. Nesse momento,
ele tentou ir “desarmado”.

Cheguei lá e a gente já teve que esperar um tempo porque ela se atrasou.


Tudo bem, respira, vamos dar uma chance. Era um rolê muito padrão da
psicanálise. Tinham dois sofás, ela sentava em um e eu sentava em outro
numa sala meio escura e eu “ai Jesus Cristo”. Tudo bem, vou gastar toda
minha ficha nessa primeira vez aqui. Deixei ela doida, ela ficou: “Nossa, muita
coisa né”. Não deixei nem a “bixinha” falar. “É, essas foram só as coisas que
eu escolhi trazer” (risos), mas eu vi que ela não tinha muita afinidade com o
tema da transexualidade e isso me deixou meio “cabreiro”. Porque cara, isso
é o mínimo. E na época eu tava nesse processo de descobrimento. Nesse
início era muito importante que fosse alguém que tivesse afinidade com esse
tema, porque eu estava no processo de me reconhecer e se eu chego num
profissional que não tem o mínimo de afinidade, cara, isso pode inclusive
atrapalhar o meu processo de me reconhecer enquanto uma pessoa trans
(LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).

Esse trecho associa-se ao indicador de sentidos subjetivos relacionados à


identificação como fator relevante para permanência, o qual também se relaciona
aos momentos que seguem. Sendo assim, Luís buscou psicoterapia em grupo, em
um projeto para pessoas trans, por um valor social, antes do início da pandemia -
portanto, presencial - mas nas semanas anteriores à conversa com Luís, somente ele
estava frequentando-a, então, acabou sendo praticamente individual por um tempo. A
experiência diferiu bastante da anterior. O psicólogo, também trans, trabalha com
esquizoanálise41. Luís comenta que o ambiente lhe agradou muito mais do que a
experiência com a psicanalista.

De primeira eu já entrei no escritório e tinha uma estante cheia de livros


maneiros de Gestalt, falei: “Humm, tô gostando disso daqui”. Aí entrei, um
rolê completamente diferente, saca? Tinha sofá, obviamente, por ser
confortável de sentar, mas não era um rolê específico de você sentar em um
sofá e um psicólogo sentar em outro. Era num formato de rodinha. Eu já achei

41
Ver: https://cfp.revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/pesquisainterdisciplinar/article/view/186/pdf
87

muito mais interessante que um divã. Ele falou que podia sentar no chão,
onde eu me sentisse mais confortável. Tinha uns incensos espalhados, falei:
“Ai, é disso que eu precisava rapaziada”. O psicólogo era trans, então check
em todas as coisas que eu tava procurando (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).

Para Luís, esse foi o melhor cenário, visto que conseguia expressar-se, sentir-
se confortável, sem um clima endurecido. Eram utilizadas dinâmicas e, em alguns
momentos, o psicólogo, para dar início à psicoterapia do dia, trazia jogos de sensação,
humor e sentimentos. Isso fazia sentido para Luís porque ele estava em um momento
de sensibilidade - indicador de cansaço e exaustão – no qual sentia dificuldade em
expor pelo que estava passando somente com perguntas diretas. Nas dinâmicas, ele
apenas deixou fluir de acordo com o jogo trazido e sentiu que isso foi benéfico.

Nessa época eu tava tendo muitas crises de ansiedade por causa desse
processo da transexualidade. Tava com uma loucura lá em casa, na casa da
minha mãe. Eu guardava tudo para mim, não compartilhava com as outras
pessoas, ficava naquela pira de não ser uma pessoa útil e tal. E a terapia em
grupo é bom por isso, você compartilha as coisas que você tem, mas também
pode entrar nas histórias das pessoas que estão ali na terapia com você.
Então isso pra mim foi bem importante nesse início, que eu acho que se eu
tivesse numa terapia individual eu não ficaria por muito tempo. Talvez as
crises de ansiedade não parariam. Depois que eu comecei a terapia, as crises
diminuíram. Eu só tinha crises em momentos muito pontuais, se acontecesse
alguma coisa e aí desencadeava uma crise (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).

O contato com a Psicologia, para além da psicoterapia, também é por meio dos
estudos. Luís tem grande interesse pela área da saúde mental - no momento da
pesquisa, faz residência nessa área - e pela Psicologia Social. Afirmou que cursaria
Psicologia se dispusesse de tempo e dinheiro. Inclusive, interessou-se pela base
teórica desta pesquisa e pediu para conhecê-la um pouco mais durante nossas
conversas. Esse, portanto, foi um momento informal da pesquisa, no qual o
participante mostrou-se interessado e engajado.
Expusemos anteriormente que em um determinado momento da vida de Luís,
ele se deparou com dúvidas a respeito de ser um corpo desejado, se seria capaz de
ser amado. Na segunda dinâmica conversacional, portanto, a partir da elaboração de
conjecturas, foi perguntado se hoje em dia ele consegue responder a essas perguntas.
Luís afirma que hoje mais do que antes, porém, não está livre dos “tropeços no
caminho”. Sente que atualmente suas inseguranças estão muito mais relacionadas ao
trabalho, à produção e à criatividade.
88

A pergunta que vem na verdade é: “Será que eu estou sendo visto como uma
pessoa que está fazendo coisas?” Porque pra mim eu tenho feito, mas é isso.
Estou numa lógica doida, porque para esse sistema, se você não produz, vai
pro cantinho, fica tranquilinho e você não é visto como uma pessoa existente
no mundo. Essa é a lógica manicomial no mundo. Você não produz, você
está descartado. Mas em questão de ser desejado e amado, eu estou
tranquilo, não tem sido uma questão por agora, não (LUÍS HENRIQUE, DC2,
2021).

Nos espaços coletivos de militância ele encontrou novas formas de encarar a


realidade e relacionar-se com as pessoas. “Não estou sozinho no mundo” (LUÍS
HENRIQUE, DC1, 2021) é o sentimento com o qual Luís se deparou ao adentrar estes
novos espaços de fortalecimento e troca com pessoas que compreendiam seu
processo. Trilhar um caminho sozinho torna-o mais longo. De acordo com Luís, por
mais que seja um movimento individual o de querer estudar sobre uma determinada
questão, a possibilidade ou a oportunidade de aprender em grupo torna o processo
mais rápido e mais estimulante, com pontos de vista diferentes, diversas visões de
mundo, pessoas de vários lugares contribuindo para um saber coletivo e, se aqui
pensarmos por um ponto de vista freiriano, um saber popular; educação popular 42. Ele
comenta sobre o contato que teve com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) por meio de um espaço de militância e o quanto o contato físico com uma
realidade debatida na teoria pode contribuir para ampliar a visão sobre a questão:

(...) ele [o grupo de militância] me dá a oportunidade de ter contato, por


exemplo, com a galera do MST, que é a galera do campo, que tem outra
perspectiva de construção, de realidade, de ambiente, de espaço, de relação
com o outro, de relação com a natureza, que por mais que a gente debata
isso [no grupo], estar perto é ter uma concepção muito maior daquele termo
que a gente tanto debate. Eu acho que a militância traz isso para além da
gente ficar na teoria e ter acesso a esse tema. É realmente ver na prática
como essas coisas interferem, como essas coisas nos atravessam de alguma
forma (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021).

Nestes novos movimentos de Luís em relação aos espaços de militância, é


possível remeter ao indicador de diálogo como fator possibilitador de contato e
conexão por meio do aprendizado e compartilhamento de saberes com diferentes
realidades. A partir disso, também surge um novo indicador da abertura de
caminhos por meio da coletividade, tais quais associam-se aos sentidos subjetivos
de afeto e sentidos subjetivos de pertencimento de grupos.

42
Ver: https://mst.org.br/2020/09/19/conheca-o-legado-da-educacao-popular-brasileira-de-paulo-
freire/
89

Tais indicadores, alinhados a outros anteriormente elencados de


desenvolvimento de estratégias pedagógicas como abertura de vias para uma
existência inteligível, não neutralidade dos espaços de pertencimento e da
relação intrínseca entre raça, classe e gênero, levam-nos à hipótese de que a
diversidade e educação - aprender e ensinar - torna-se possível quando relacionada
ao diálogo, quando as pessoas deste meio se identificam - raça, classe, gênero - e
quando a teoria é colocada em prática. Neste sentido, Luís, enquanto anarquista de
gênero, transita na direção de transgredir normativas e movimenta-se para educar,
acolher e tornar possível e compreendida a diversidade.
Com estes contatos e vivências, mais um movimento acontece em Luís e já
não é mais suficiente estar somente nos coletivos, nos movimentos sociais, mas
transcendê-los por meio de ações que gerem movimento das transformações sociais
nas causas pelas quais luta.

[...] eu acho que isso faz com que eu também continue vivo assim, entender
que há esperança de mudança e de transformação de realidade
minimamente, do que só ficar ali vendo que atravessa a gente de forma
negativa e ponto, paralisar a partir disso (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021).

Paralisar está longe do que Luís Henrique tem feito em sua trajetória de vida.
Ao falar sobre lugares em que ele poderia ser quem é, Luís comenta sobre três pontos
principais presentes nos diferentes espaços sociais: preconceitos, violência e
contradições. O primeiro, segundo ele, decorreria de uma construção social na qual o
preconceito é consolidado e, a partir dele, podem ocorrer diversos tipos de violência.
Contraditório, neste caso, é que em lugares nos quais existem maiores possibilidades,
como entre coletivos de pessoas trans ou até nos espaços de militância, outros tipos
de violências podem acontecer. Ao mesmo tempo que nesses locais as pessoas
tendem a ser mais abertas, de acordo com Luís, existe a possibilidade de repensar e
mudar, ou seja, produzir novos sentidos e configurações subjetivas nessas reflexões,
ações e transformações.
Sendo assim, espaços que seriam mais acolhedores não estão livres de
reproduzir preconceitos, mas dispõem de mais abertura para questionamentos. Isso,
portanto, possui relação com o indicador da abertura de caminhos por meio da
coletividade, mas também depende do diálogo como fator possibilitador de
contato e conexão. Somente por meio da compreensão gerada pelo diálogo é que o
90

desenvolvimento de estratégias pedagógicas pode abrir vias para uma


existência inteligível. Veremos adiante outros aspectos disso.
Luís conta que em determinados espaços chega com uma postura defensiva,
percebendo atentamente se algo vai “atravessá-lo” de forma negativa - indicador de
cansaço e exaustão. Ele comenta que, se sua existência não é vista ou legitimada
de alguma forma, não faz sentido estar construindo nenhuma outra coisa porque, uma
vez que ele não existe nesse local, ter que falar, posicionar-se ou realizar alguma
tarefa não têm razão de ser. Quando questionado, ele definiu “existência legitimada”
da seguinte forma:

É isso né... A gente vive numa sociedade. Sociedade é coletivo. Por mais que
você se veja e saiba que você existe, não dá pra você viver sozinho, né
(risos). Então, querendo ou não, faz parte da nossa construção querer que o
outro nos veja ou pelo menos tenha ciência que a gente exista, nem que
seja... Vai ser pesada essa frase, mas nem que seja pra, sei lá, nos violentar,
porque não dá para violentar aquilo que não existe. Nem que seja para isso
assim, sabe? (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021)

A temática da não binariedade é levada por Luís aos espaços onde ele sente
abertura. Aos poucos, tenta trazer para debate, seja por meio da
transexualidade/transgeneridade, seja por brechas dentro do feminismo ou
transfeminismo, seja por meio de suas redes sociais, o que se relaciona ao indicador
de desenvolvimento de estratégias pedagógicas como abertura de vias para
uma existência inteligível. Nesses momentos, por vezes, é questionado sobre a
materialidade da não binariedade como sendo algo pós-moderno e “sem sentido”.

E aí não dá né? Como que não tá dentro de uma materialidade se eu tô aqui


na tua frente agora nesse exato momento? (risos) Não faz sentido (risos). Eu
acho que é sobre isso, legitimar no sentido de humanizar né, porque se pra
você não existe, você não vai fazer nada sobre. Então as pessoas vão
continuar morrendo por se identificar desta forma, porque pra vocês não
existe. Eu acho que é legitimar nesse sentido assim, reconhecer a existência,
não de fato dar um alvará, mas vivemos em sociedade e para sobreviver e
viver a gente precisa que as pessoas pelo menos reconheçam que a gente
existe. Até para direitos, políticas públicas. Não dá pra fazer políticas públicas
e direitos para algo que não existe. A gente precisa minimamente reconhecer
a existência disso (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021).

O reconhecimento da existência citado por Luís é também algo que ele


ativamente busca no que elencamos como indicador de desenvolvimento de
estratégias pedagógicas como abertura de vias para uma existência inteligível.
Trata-se de uma postura ativa, contribuindo, por meio da educação, para a
91

transformação social que quer vivenciar e que possibilita não somente a sua
existência, mas também a de outras pessoas não binárias no mundo.
Na segunda dinâmica conversacional, Luís pontuou algumas mudanças que
ocorreram ao longo do ano conforme as pessoas foram tendo mais acesso a
discussões sobre não binariedade. Ele percebeu modificações em um dos grupos de
militância do qual faz parte e que não é voltado especificamente para as questões
trans. “(...) Antes não tinha tanta abertura e hoje já tem um pouco mais. Eu já vejo a
galera tentando usar pronomes neutros, por exemplo” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
A partir disso, foi perguntado se ele achava que o mês do orgulho não binárie,
comemorado em julho de 2021, contribuiu para isso. Ele considerou que sim. Disse
que foi convidado para estar em algumas mesas e falar sobre o movimento LGBTI+.
Entende isso como um sinal de maior abertura, uma vez que antes não era convidado
pelo receio que as pessoas organizadoras tinham de que ele trouxesse o debate da
não binariedade, pois a organização não tinha um posicionamento sobre a questão.
Ele percebeu que no momento há uma tranquilidade maior acerca disso.
Já na comunidade trans e fora dela, Luís percebe uma diferença geracional
quanto às discussões e compreensões sobre não binariedade, conforme aferido na
literatura utilizada para fundamentação teórica deste trabalho. Verifica, em sua
experiência de vida, que as pessoas mais jovens, além de terem mais abertura para
o tema, também têm mais acesso. Entretanto, frisa a importância da formação como
um fator tão relevante quanto a idade. Entende que as pessoas que estão na
universidade agora, provavelmente terão acesso a este debate na graduação e quem
já se formou, pode ter um pouco mais de relutância, um certo enrijecimento.
Além disso, Luís afirma que movimentos mais antigos, que iniciaram o
movimento que atualmente chamamos de LGBTI+ no Brasil, acabam tendo mais
resistência para falar sobre transexualidade/transgeneridade e não binariedade.
Houve, de acordo com Luís, uma invisibilização histórica dos corpos trans na luta
LGBTI+.

Historicamente a gente só tem registrado e contado que homens gays e


mulheres lésbicas sofriam antigamente, que estavam em luta na rua, mas
não contam que existiam corpos trans na época. Por mais que esse termo
não existisse antigamente, não eram corpos de gays e lésbicas, eram
pessoas trans e que não contam como era em Stonewall43. É muito esse rolê.

43
O documentário A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson (2017) disponível na Netflix, conta sobre a
vida da ativista e seu papel fundamental na Revolta de Stonewall.
92

Era essa galera que tava um pouco mais de frente, então rola isso de colocar
o G [gays] muito na frente. A galera não parece muito aberta pro debate (LUÍS
HENRIQUE, DC2, 2021).

Acho que esse processo de não entendimento tá muito ligado a um outro


movimento de formação de vida. Por exemplo, se você tá num movimento
que historicamente não coloca a questão trans em pauta, você vai ser forjado
nessa mentalidade, não vai ter abertura. Vai estar fechando a porta pra
qualquer coisa, pra além de não se colocar aberto, mas se você tá fora
desses espaços, você é uma pessoa com idade, acho que é muito mais fácil
você não ter essa resistência, do que alguém que tá no movimento há muito
tempo, que já formou sua mentalidade de outra forma (LUÍS HENRIQUE,
DC1, 2021).

Os trechos acima relacionam-se com o indicador da não neutralidade dos


espaços de pertencimento, tendo em vista a importância da questão trans ser
colocada em pauta e as lutas políticas se engajarem para que não contribuam com o
apagamento e invisibilização destas pessoas. Além disso, quando Luís fala sobre o G
ser colocado à frente, isso se associa ao indicador de sentidos subjetivos
relacionados à identificação como fator relevante para permanência, ou seja, não
faria sentido permanecer em um movimento de homens cis gays não se identificando
dessa forma. Ainda, neste caso especificamente, não haveria representatividade, já
que estariam propondo-se a representar uma comunidade inteira; a comunidade
LGBTI+.
Conforme fica evidente no que é abordado por Luís Henrique ao longo das
dinâmicas conversacionais, ele acredita na coletividade como possibilidade de
transformação social e ampliação de saberes e entendimentos acerca de outras
realidades para além da sua. Inclusive, este é um dos motivos pelos quais Luís se
propõe a falar sobre a não binariedade. Entende que a sua fala tem impacto e pode
ser que alguém que o escute, ao encontrar outra pessoa trans, possa ter mais cuidado
e atenção, pensando no que pode ou não ser adequado falar, ou ainda perguntar por
quais pronomes esta pessoa gostaria de ser chamada. Isso corresponde ao indicador
da abertura de caminhos por meio da coletividade. Para tanto, a utopia de Luís
para um mundo melhor é que as pessoas desapeguem um pouco da individualidade.

Quando eu falo “mundo” parece que a gente joga pro ar e deixa as coisas
acontecerem. Esquece que o mundo é feito de pessoas. Eu acho que a minha
utopia de um mundo melhor seria a gente olhando pra si, enquanto
indivíduos, mas olhando pra fora enquanto sujeitos, de uma forma que não
afete outros de forma negativa. Atualmente tem sido tenso... Cada um
olhando pro seu umbigo e cuidando de si sozinho e às vezes esquecendo
que tem uma pessoa que tá ali e também tá na merda, mas que se tivesse
93

junto, talvez se sentiria menos maluco sozinho (LUÍS HENRIQUE, DC2,


2021).

Isso tem relação direta com uma das funções que ele desempenha num dos
coletivos de que faz parte. É por meio da “mística do cuidado” que Luís faz espaços
fluírem, crescerem e tornarem-se vivos e pulsantes. É uma postura que ele adota
frente à vida. É o caminho artístico, poético e sensível, que liga debates sérios e
difíceis à esperança. Não uma esperança estática, mas em movimento. Esperança
consciente dos obstáculos que, ao mesmo tempo, “mantém o nosso coração quente
para continuar em luta” (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021). O momento de mística diz
respeito a uma dinâmica feita em todas as reuniões. Um momento de expressão que
pode ser realizado de diversas formas. Poema, música, vídeo, dança, dentre outras
possibilidades.

(...) a essência dessa dinâmica vai ser para colocar a gente pra cima, mesmo
que traga no seu contexto coisas que nos atravessam negativamente. O final
dela vai ser: “Como a gente caminha para continuar num coletivo
transformando isso?” E, aí, a mística do cuidado, eu acho, é ser é uma pessoa
que cuida de outras e cuida de si de uma forma mística e não de uma forma
endurecida (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021).

As configurações subjetivas da não binariedade em Luís Henrique expressam


o seu movimento por entre momentos e fases de sua vida e movimentos por diferentes
espaços e grupos pelos quais transita. O movimento de configuração de gênero em
Luís Henrique demonstra-se como processo histórico, não linear, contraditório, de
tensionamento e constante questionamento de si, desenvolvido frente a diferentes
instantes e diversas dimensões de sua vida e da realidade, por vezes denominadas
estruturas e aqui compreendidas como categorias e espaços sociais que constituem
a subjetividade individual e a subjetividade social.

Os indicadores aqui elencados foram:

● Acolhimento como fator essencial para sentir-se pertencente;


● Desenvolvimento de estratégias pedagógicas como abertura de vias para uma
existência inteligível;
● Não neutralidade dos espaços de pertencimento;
● Diálogo como fator possibilitador de contato e conexão;
● Sentidos subjetivos de insatisfação e incômodo com padrões de gênero;
● Busca por referências;
94

● Fluidez como via de superação dos padrões;


● Sentidos subjetivos relacionados à identificação como fator relevante para
permanência;
● Cansaço e exaustão;
● Relação intrínseca entre raça, classe e gênero;
● Abertura de caminhos por meio da coletividade.

Por meio da articulação destes indicadores, foi possível a elaboração das


seguintes hipóteses:

● O silenciamento, o “não falar” e a não presença da temática de gênero no


processo educativo formal e informal, não presente na formação profissional,
leva à alienação em massa, que se transforma em abominação, discriminação
e violência. Isso leva a uma paralisação de produções subjetivas na
subjetividade social e subjetividade individual. A intolerância a pessoas
LGBTI+, a invisibilidade da diversidade de gênero e a falta da temática de
gênero e sexualidade (BONATO, 2019), mantêm a alienação e, portanto, o
conformismo, que vai na contramão da crítica, da psique geradora de sentidos
subjetivos;
● A diversidade e educação - aprender e ensinar - torna-se possível quando
relacionada ao diálogo, quando as pessoas deste meio se identificam - raça,
classe, gênero - e quando a teoria é colocada em prática. Nesse sentido, Luís,
enquanto anarquista de gênero, transita na direção de transgredir normativas
e se movimenta para educar, acolher e tornar possível e compreendida a
diversidade.

Por fim, em acordo com Luís Henrique, destaca-se a essencialidade da


educação e da formação profissional em todas as áreas, na contemplação de temas
não só de sexualidade e gênero, mas também de raça, etnia, classe, entre outras, de
forma a promover a cultura na contramão da estigmatização, discriminação e do
preconceito.
95
96

6.1.2 ALQUIMISTA DE SI: AMÊ

Ao deter uma matéria bruta, o/a alquimista transforma e transmuta elementos


em busca de outros. Amê, como um alquimista de si, experimenta e experiencia os
efeitos dos afetos, em um constante vir a ser. Compreende a vida por meio de
metáforas e dramatizações. Encontra no teatro a possibilidade de recuperar a própria
humanidade.

Amê, 29 anos, transmasculine, utiliza pronomes masculinos, neutros e mais


raramente femininos. Bissexual/pansexual44, classe média e se autodeclara branco.
Nasceu em uma cidade metropolitana do Rio de Janeiro. No Rio Grande do Sul, já
morou em duas cidades. Atualmente, mora tanto no Rio de Janeiro – RJ, como em
uma cidade da região metropolitana do Rio. Possui Pós-Graduação incompleta em
Produção e Gestão Cultural. É bacharel em Direção Teatral. Já iniciou o curso de
Letras, mas percebeu que não tinha abertura para pesquisa. Também começou a se
sentir mal e ao mesmo tempo culpado por ter uma boa nota, mas não conseguir dar
continuidade. Pensa em voltar para Letras, mas em outra universidade que não aquela
onde iniciou o curso. Sente vontade de fazer uma segunda graduação em licenciatura,
mas não sabe se faria no curso de teatro, porque também já deixou para trás uma
outra licenciatura em teatro. Pensa em Belas Artes, licenciatura, mas ainda sem uma

44
As duas orientações sexuais o contemplam.
97

decisão concreta. Trabalha de forma autônoma como tatuador, escritor, ator, diretor
teatral e produtor cultural. Mora com sua parceira e três gatos. Além disso, faz parte
de coletivos de teatro, de artistas independentes e de poetas. Afirma, inclusive, que
sua vida é pautada por coletivos.

Em sua infância, em torno dos 9 ou 10 anos de idade, Amê reconhecia em si


uma intersecção entre o feminino e o masculino que eram socialmente apresentados
a ele. Afirma que reconhece a não binariedade antes mesmo de poder nomeá-la
dessa forma. Este foi um processo que precisou de acolhimento, pois ele passou por
situações de transfobia. As pessoas que ofereceram amparo foram principalmente as
pessoas trans.

(...) eu nunca me senti integralmente homem, nem integralmente mulher, mas


uma intersecção entre os dois, e não é muito no sentido de fluído, é uma ideia
de intersecção mesmo, um cruzamento assim… Aquele ponto da
encruzilhada ali que às vezes vai alternando. E aí eu comecei a me identificar
e a falar e chamava isso de gênero neutro. Isso quando eu tinha lá meus 14
anos (AMÊ, DC1, 2021).

Durante o período da adolescência, o qual Amê percebe ter sido um momento


em que sua sexualidade era debatida abertamente, ele não foi levado a sério quando
expressava que se identificava enquanto uma pessoa não binária. Conversava sobre
o assunto com um amigo trans que conheceu aos 18 anos e trocavam experiências.
Dizia ao amigo que não se identificava nem como homem nem como mulher, sem
saber exatamente o que era, porém, para ele não era algo a ser debatido nem provado
para ninguém, então, sentia-se tranquilo com a situação. Algum tempo depois, através
desse amigo, conheceu outro menino trans que falou para ele sobre não binariedade
e apresentou o blog “Transfeminismo”. A partir disso, Amê passou a ter contato com
o termo, identificando-se com seu significado.

A partir das informações sobre a infância e adolescência de Amê, elencamos


o indicador de transição de gênero contínua marcada por questionamentos,
encontros e desencontros, compreensões cognitivas e afetivas no contexto simbólico-
emocional vivenciado. Amê expressa a importância das emoções, da imaginação e
da fantasia no processo das experiências de vivências, o que corrobora a Teoria da
Subjetividade no processo de configuração subjetiva e de ser sujeito.
98

As pessoas com as quais convivia, dentro das próprias referências, viam-no


enquanto uma “mulher masculina lésbica”, mesmo que ele afirmasse ser
bissexual/pansexual. Ou seja, compreendiam as monossexualidades - hétero, lésbica,
gay - e expressões de gênero dentro da lógica binária - feminino ou masculino - e não
ampliavam esse ponto de vista quando se tratava de uma pessoa não monossexual
e não binária.

Mesmo com um lugar de ininteligibilidade destinado a ele por outras pessoas,


foi a partir desta compreensão de si que Amê passou a “se estudar” e perceber-se de
forma mais profunda, experimentando possibilidades de si mesmo que até então não
tinha acessado, na busca por compreender, além das suas próprias questões, como
funcionam diferentes construções sociais a respeito do gênero.

(...) eu sempre entendi minha masculinidade e minha feminilidade e minha


existência um pouco enquanto estudo. Eu sempre lidei comigo mesmo
enquanto um estudo de mim mesmo, tanto poético quanto filosófico, assim.
Eu gosto de me estudar e de fazer experiências comigo assim, com minha
vivência, experiências sociais…Também não sou muito doido nesse
sentido… Mas assim, de experimentar realmente essas máscaras sociais, de
entender como funcionam essas construções sociais (AMÊ, DC1, 2021).

Dentre essas experiências, estão personagens masculinos, femininos e


criaturas fantásticas agêneras - anjos, espíritos, demônios - interpretados no teatro,
por meio dos quais Amê tenciona, questiona e apreende formas de dramatizar um
roteiro escrito e pensado para essas diferentes personagens. Também foi esse um
dos principais motivos da aproximação e paixão pelo teatro. Ademais, ainda no meio
artístico, fez alguns experimentos de Drag King, vivenciando de forma performática o
gênero masculino.

Essas experiências e estudos de si, levam-nos ao indicador da arte com


potencial de experimentação de gênero, de sensações, expressões, vivências e
fantasias. Por meio da “licença poética”, abrem-se novas vias de subjetivação acerca
de si mesmo. A arte, o teatro e a poesia se tornam (a) vida.

Ele afirma que durante anos considerou-se como uma pessoa de “gênero
neutro” e que lidava com isso muito bem de forma privada - referindo-se ao seu íntimo,
vida pessoal, pensamentos - e definiu isso como uma “experiência de vivência” mais
do que uma “experiência social de vivência”. Na segunda dinâmica conversacional, a
99

partir de conjecturas elaboradas, foi possível compreender um pouco mais do que


Amê compreendia por esses termos que trouxe para a conversa.

(...) [Experiência social de vivência] É a forma como cada um de nós vai


experienciando essa vida em sociedade, numa sociedade que é basicamente
pautada por gênero. Porque a gente não pode fugir disso. Ela é pautada pelo
binarismo do masculino e do feminino. E isso desde antes da gente nascer.
Têm estruturas muito anteriores, até os nossos ancestrais. (...) Só vão se
aprimorando e tendo modificações referentes ao tempo histórico, mas a
estrutura é basicamente a mesma, basicamente uma estrutura patriarcal.
Então é essa sociedade que a gente vive. (...) Então gênero pra mim é essa
experiência social de vivência assim. É como a gente vai lidando com o que
nos é dado, com o que nascemos e como a gente se vê (AMÊ, DC2, 2021).

A leitura social trazida por Amê remete a algo que foi destacado durante as
dinâmicas conversacionais; o lugar político. Esse lugar, para ele, faz parte do
processo de identificar-se enquanto uma pessoa não binária. Isso nos leva ao
indicador de influência do social na determinação de um lugar político ocupado
por Amê.

(...) tudo isso já coexistia em mim antes de ter nome, ou antes de eu saber
um nome político pra isso, porque pra mim é nome político, e a minha relação
inclusive com a transmasculinidade, principalmente com as questões dos
homens trans, foi uma coisa muito política, foi um lugar político. Eu lembro
que uma das coisas que eu falei pra mim na época foi “eu tô me assumindo
enquanto lugar político” (AMÊ, DC1, 2021).

Quando Amê refere-se às “questões dos homens trans”, associa-as


principalmente à experiência que teve ao aproximar-se do Instituto Brasileiro de
Transmasculinidades (IBRAT), onde havia, por um lado, um certo estranhamento na
medida em que Amê não se encontrava totalmente nas identificações que os homens
trans afirmavam e discutiam. Por outro lado, percebia ser aquele um espaço de troca
de saberes mais tranquilo e saudável, com afeto e cumplicidade.

Ele aproximou-se do IBRAT logo depois de um acontecimento nas redes


sociais. Amê conta que, num certo dia em 2014, houve um conflito - que não será
detalhadamente descrito para preservar o anonimato - em que ele se sentiu afastado
e hostilizado pelas referências de pessoas não binárias com as quais compartilhava
experiências parecidas, afetos e apoio. Este desconforto perdurou por um tempo
porque algumas pessoas vinham perguntar sobre, e ele pedia a elas que
simplesmente “deixassem para lá”, por ter sido algo muito exaustivo. Ter sido
rechaçado nesse lugar, entre pessoas não binárias, foi uma questão afetivamente
100

grave para ele. “Eu pensei… Opa, as pessoas que se parecem comigo não me
aceitam, não me querem, falam que meu lugar não é aqui, então vou continuar
procurando esse outro lugar” (AMÊ, DC1, 2021). Ele diz ter feito, em meio a isso tudo,
um esforço pessoal pelo reconhecimento de uma identidade masculina.

O espaço encontrado no grupo de transmasculinidades e o afastamento


provocado pelo grupo de pessoas não binárias levam-nos ao indicador da busca por
locais em que possa ser e se apresentar como se reconhece, o que se associa a
outro indicador de sofrimento gerado pela exclusão por pares, ou seja, pessoas
que se identificam da mesma forma que ele. Amê demonstra com isso a necessidade
deste lugar de reconhecimento, aceitação, referência, respeito e dignidade por direito
humano. Isso teve um impacto direto na forma como pensou sua própria identidade,
ou seja, relaciona-se com o indicador de transição de gênero contínua bem como
com o indicador de influência do social na determinação de um lugar político
que, neste caso, influencia em direção a uma certa “adequação” ao masculino,
conforme veremos mais profundamente a seguir.

Por não sentir necessidade de desvincular-se do feminino como, por exemplo,


apagar fotos do passado no Facebook ou sentir incômodo ao ser chamado com
pronomes femininos, Amê sentiu uma certa pressão para que se encaixasse nesta
identidade masculina. Citou, durante a dinâmica conversacional, um relacionamento
que teve com um homem trans que entrou em seu Facebook e, sem autorização,
deletou as fotos antigas. Ao conversar com o namorado, afirmou:

(...) “eu gosto dessas fotos, são parte de mim, são quem eu fui e quem eu
estou vindo a ser”, porque pra mim, minha vida sempre foi processo, foi
escala de continuidade assim, foi processo de acontecimento. Não tem
muitas limitações. Passou a ter limitações por pressões sociais, que aí um
monte de pressão se acaba tendo que assumir nomes pra… identitários pra
estabelecer relações, e às vezes relações políticas. (...) Eu nunca tive essa
concepção fixa, sempre foi processo. É devir, é vir a ser, então tá vindo e se
mudar, mudou! (AMÊ, DC1, 2021)

Em relação à fixidez no que se refere à identidade, Amê lembra de uma leitura


que chamou sua atenção. No livro Um Apartamento em Urano, no qual são
apresentadas várias crônicas, o autor trata de alguns temas vinculados à sua vida
pessoal, à vivência trans e à vivência filosófica acadêmica. O artigo que chamou a
atenção de Amê foi a respeito da estrutura de construção de gênero que promove a
101

manutenção do poder patriarcal. A obsessão com a identidade fixa como um fator


para manter a sociedade de produção e consumo reproduz, portanto, vidas humanas
como mão de obra barata e consumidores em potencial. Um alimento capitalista no
qual as ideias precisam ser fixas – e, neste caso, a identidade também - para se criar
nichos de mercado e alimentar essa estrutura.

Em contato com João W. Nery, autor do livro Viagem Solitária - e referência de


ancestralidade transmasculina no Brasil - Amê relembra como sentiu-se ao ouvi-lo
conversar em uma reunião com meninos trans.

(...) ele falou uma coisa que é muito cruel (...) Eu sei que ele falou na melhor
das intenções do mundo, ele viveu para aquilo (...) Mas ele falou uma coisa
muito cruel pras pessoas masculinas em geral, porque ele… Sabe quando a
pessoa fala com aquele ar de autoridade meio messiânico? “Porque o seu
dever”… Ao mesmo tempo cheio de amor, sabe? Meio paternalista, não no
sentido negativo, mas entendendo que existem essas características. Ele
falava que nós homens trans e pessoas transmasculinas tínhamos o dever
de ensinar aos homens uma nova masculinidade. Gente, eu não tenho dever
nenhum… São 5 mil anos de história de patriarcado! Não dá, uma pessoa
sozinha não dá. Quinze “gato pingado” não dá. 80 mil gatos pingados talvez
dê, mas a gente não sabe se somos os 80 mil gatos pingados (...) e aí ele
sempre punha isso com ar de responsabilidade, porque ele realmente se
esforçou pra isso, pra construir a masculinidade dele, diferente dessa
masculinidade hegemônica (AMÊ, DC1, 2021).

Amê admira-o muito e reconhece que a masculinidade da qual falava João Nery
não estava pautada no falocentrismo nem na dominação masculina, patriarcalismo ou
paternalismo. Que na masculinidade também houvesse a presença de um “lado
feminino”, conforme João Nery se referia, com a ideia de que a socialização feminina
não precisaria ser deixada de lado naquilo que poderia ser benéfico a eles, como por
exemplo, a demonstração de afeto. De qualquer forma, Amê entende que algumas
responsabilidades tornam-se obrigações muito pesadas, dolorosas, desgastantes e
que “às vezes só ser pra si é maravilhoso!” (AMÊ, DC1, 2021). A forma como Amê
reage ao que foi dito por João Nery, e conforme lida com as nuances de sua
identidade, levam-nos ao indicador de estratégias de sobrevivência por meio de
experimentos de si, considerando a ideia de alquimista proposta no início, na
contramão do “não lugar” que lhe gera solidão.

(...) questões estruturais básicas, de direito ao trabalho, à vida, à segurança,


à integridade, saúde, educação, boa parte das pessoas não tá com esses
direitos tão assegurados assim, a gente não tem direitos assegurados. E aí
102

vai se juntando as interseccionalidades de cada pessoa, de cada vivência, de


cada experiência social, é muita coisa, às vezes só estar vivo tá lindo, é
maravilhoso (AMÊ, DC1, 2021).

O assunto masculinidade é do interesse de Amê desde muito cedo. Antes de


ler qualquer coisa sobre, já se interessava pelo tema e queria experimentar outras
masculinidades possíveis, para além daquelas com as quais tinha contato e que
reproduziam machismos e ideais patriarcais. Estudou sobre isso e foi seu tema de
TCC com o intuito de ser, posteriormente, também tema de mestrado. Contudo, ele
percebeu que esse processo passou a desgastá-lo emocionalmente e, para continuar
a estudar sobre, precisaria entender antes algumas coisas sobre si. O desgaste
relacionava-se ao entendimento de que algumas estruturas e conceitos se refletiam e
reproduziam-se nele próprio. Isso está relacionado ao indicador da busca por locais
em que possa ser e se apresentar como se reconhece, uma vez que procurou por
isso nos estudos na universidade e precisou “dar alguns passos para atrás” para
reconhecer-se, o que se conecta também ao indicador de transição de gênero
contínua e de estratégias de sobrevivência por meio de experimentos de si.

“As pessoas tentavam tirar minha humanidade” (AMÊ, DC1, 2021). Este lugar
político também é perpassado por transfobias. Em sua história de vida, Amê constata
preconceitos em diferentes cenários.

(...) as pessoas normalmente não são respeitosas, na maioria das vezes, elas
têm um estranhamento, uma exotificação, um questionamento não pertinente
da vivência da outra pessoa, e essas coisas foram muito presentes na
transição (AMÊ, DC1, 2021).

Em relação tanto a uma vivência transmasculina quanto aos princípios da


identificação enquanto uma pessoa não binária, os preconceitos estavam presentes.
A partir do momento em que se assumiu enquanto pessoa trans, teve sua humanidade
negada. As experiências de Amê com preconceitos e transfobias remetem-nos ao
indicador de sofrimento gerado pela exclusão, mas também pelo desrespeito e
desumanização.

(...) eu tinha passado a ou ser doente, ou ser louco, ou a ser, sei lá, uma
grande perversão, um grande pervertido nesse imaginário comum das
pessoas. Ou objeto sexual. Isso passa por vários lugares. (...) Ou também
uma desumanização num lugar que aceitar a desumanização seria provar
103

uma masculinidade para terceiros, nessas construções da masculinidade que


também é desumanizante com os próprios homens [cis e trans], porque é um
negócio ridículo (AMÊ, DC1, 2021).

Com as mudanças de cidade, Amê percebeu diferenças regionais no que diz


respeito ao acesso ao SUS, além dos diferentes tipos de machismo. No Rio Grande
do Sul conseguiu mudar os documentos, o que foi, de acordo com ele, bem mais difícil
no Rio de Janeiro, principalmente em função de a estrutura do SUS no Rio ser bem
precária. Lá, ficou meses esperando, enquanto no Rio Grande do Sul, conseguiu-o
em 48 horas. Amê reconhece pontos positivos na cidade maravilhosa, como por
exemplo, a força e a potência que ganham os movimentos sociais, embora a questão
de estrutura institucional seja insuficiente.

Por mais que o Rio Grande do Sul seja uma região predominantemente
conservadora, pela experiência de Amê, ele sofreu mais transfobia no Rio de Janeiro.
Foi refletindo sobre isso que ele chegou à diferenciação da construção dos machismos
nesses dois locais. Ele fala de machismos no plural por entender que estariam
relacionados à localidade, cultura, valores e história das pessoas residentes naquele
território, principalmente os homens cis.

(...) [O que homens cis] decidiram valorizar e utilizar como ferramenta de


dominação, a mulher, outros gêneros dissidentes, pessoas de sexualidades
diversas e corpos diversos, passando até pela questão das pessoas que são
surdas, cadeirantes, porque elas também sofrem exclusões. Esse jogo de
poder das relações (AMÊ, DC1, 2021).

De acordo com o que Amê pôde observar com relação à diferenciação dos
machismos, no Estado do Rio de Janeiro apresentava-se predominantemente o
machismo com caráter violento e predatório e, no Rio Grande do Sul, como algo mais
ligado à ideia de provedor e defensor da honra. O caráter violento do machismo é o
de combate, de “cair na porrada” com outros homens, matar, morrer, estar disposto à
briga, dominar situações pela força, também nas relações afetivo-sexuais.

(...) um predatorismo sexual também, uma virilidade exacerbada por uma


sexualidade fálica… E aí a gente tem as armas, fuzil, tem vários símbolos
sendo repetidos incessantemente dentro dos conflitos, e é realmente mais
conflituoso que o Rio Grande do Sul, nesse sentido de violência urbana, de
conflito, confronto entre relações de poder paralelo, tráfico, polícia, milícia,
104

exército. Essas coisas, tipo, são muito presentes, são muito pungentes e
marcam a vida cotidiana das pessoas e a formação delas enquanto indivíduos
(AMÊ, DC1, 2021).

Por mais que Amê não tenha falado em primeira pessoa sobre a marca
cotidiana na vida das pessoas, essa também é uma marca em sua própria vida.
Quando busca a possibilidade de viver “outras masculinidades possíveis”, está
referindo-se também a estas construções que não são benéficas nem para quem as
pratica e reproduz nem para quem convive com elas. Este, portanto, é um indicador
da busca pela superação da masculinidade hegemônica, tal qual está relacionada
ao machismo e construções que ele identifica como desumanizantes. Ao mesmo
tempo, ele não pretende representar nem ser exemplo de como vivenciar a
masculinidade, conforme vimos no trecho sobre a fala de João Nery.

Outro aspecto desta mesma questão é que o acesso a esta realidade violenta
e predatória não é vivenciado igualmente por todas as pessoas residentes no Rio de
Janeiro capital e municípios próximos. Amê compreende isso, mas também relembra
que os deslocamentos pela cidade dão uma dimensão geral de como estes processos
acontecem. Ele deu o exemplo de alguém que precisa ir ao trabalho e, mesmo
morando em alguma zona mais nobre do Rio, pode encontrar no caminho algum
tiroteio ou pegar um ônibus no qual entre alguém armado.

Já no Rio Grande do Sul, Amê observa o provedor vinculado à família, o macho,


protetor, conquistador, desbravador, detentor de posses materiais em prol da família
- desde que essa esteja em moldes tradicionais - da estrutura, alheio às relações
afetivas.

(...) é uma estrutura de coordenação, de desenvolvimento de sociedade,


dentro de um molde patriarcal, de reprodução de espécie, de reprodução de
costumes, de reprodução de moralidades e reprodução desse jogo de poder
e de gênero (AMÊ, DC1, 2021).

A partir disso e do posicionamento de Amê frente a essas questões,


relacionamos estas informações ao indicador da busca pela superação da
masculinidade hegemônica. Ainda, o reconhecimento de suas características faz
com que Amê averigue seu lugar social no Rio Grande do Sul e, portanto, sustenta o
indicador de influência do social na determinação de um lugar político. Sabe que
o fato de ser uma pessoa de pele clara e ter sobrenome estrangeiro garantiu-lhe certo
105

conforto, seguridade de direitos e integridade física. Ao trazer essa temática, Amê


relembra seu processo inicial de transição e afirma ser algo peculiar, por ter encarado
e passado por vários “armários”, o que pode ser associado ao indicador de transição
de gênero contínua.

Conversamos sobre os “armários” pelos quais Amê passou e,


metaforicamente, construímos um móvel bem mais complexo do que um armário. O
primeiro foi o “armário da cisgeneridade” que, segundo Amê, é o primeiro em que se
entra enquanto criança. O segundo, foi o “armário da heterossexualidade”, que foi o
que durou menos tempo entre todos. Praticamente uma gaveta. Amê entendia que
essa gaveta era mais para outras pessoas do que para si. Ele já sabia que não estava
na “gaveta da heterossexualidade” e, desde que teve entendimento disso, a estadia
na “gaveta” durou pouquíssimo.
Também existiu o que ele chamou de “caixinha homoafetiva” de identidade
lésbica, porém, foi algo triste para ele porque não sentia o “orgulho sapatão” como
outras pessoas, mesmo sendo lido em um determinado momento como mulher e
relacionando-se com uma mulher. Isso se conecta com o indicador da busca por
locais em que possa ser e se apresentar como se reconhece e também ao
indicador de sofrimento gerado pela exclusão. Foi uma caixinha em que tentaram
colocá-lo e que, por ser bissexual, ele entendia parecer como sendo uma orientação
sexual a negar a outra. Aqui, constitui-se um indicador da invisibilidade das
identidades de gênero e orientações sexuais fora da lógica binária e
monossexual45.
Outro “armário” foi o da feminilidade. Contou que, com 17 anos, foi feita uma
cirurgia de implante de silicone nos seus seios contra sua vontade. Mesmo ele
manifestando que não queria, o médico fez o procedimento por já ter combinado com
a mãe de Amê. Comentou que chegou a morder a mão do médico na anestesia e que
lutou inconsciente na maca na pré-anestesia.
Neste “armário da feminilidade”, Amê também tirou proveito de algumas coisas
que considera boas, mas depois de ter colocado o silicone, sentia que “os peitos
chegavam antes que seu rosto” nos lugares. Antes, com 15 para 16 anos, percebia
em si uma imagem masculina e isso também era percebido por outras pessoas, mas
depois do silicone, essa já não era mais uma realidade.

45
Monossexual: Atração sexual por um só gênero.
106

A masculinidade foi um “armarinho” para muitas situações e Amê relaciona isso


também à segurança, na medida em que percebe que tende a reproduzir alguns
estereótipos da masculinidade para evitar agressões gratuitas no meio da rua.

(...) então de alguma forma a masculinidade foi um armário, porque eu tinha


que reprimir parte de mim, pra estar dentro de um padrão de masculinidade
que eu não sofreria agressões, então por mais que tenha sido um processo
libertador, de um lado foi uma portinha ali (risos) (AMÊ, DC1, 2021).

A cirurgia realizada sem consentimento e o que isso provocou em Amê levam-


nos ao indicador da violência e desrespeito às suas vontades para adequação
aos padrões de gênero. Neste caso, a violência ocorreu de forma física.
Quando foi perguntado acerca de seu entendimento sobre gênero, Amê afirma
que tem feito algumas reflexões e ressalta a característica do gênero como sendo
uma estrutura de poder e de construção de identidade que também passa por
construções individuais.

É um dos mecanismos que, enquanto humanidade, a gente encontrou pra


definir grupos específicos e, a partir desses grupos, definir relações de poder.
Mas eu não entendo gênero só como isso porque pra mim seria uma visão
muito superficial que excluiria as subjetividades, então pra mim gênero
também está muito atrelado à autoidentificação (AMÊ, DC2, 2021).

A autoidentificação trazida por Amê no trecho selecionado tem relação com o


indicador de estratégias de sobrevivência por meio de experimentos de si, tendo
em vista a história de Amê e como ele, nestes processos de experimentação, tensiona
o gênero. Também compreende gênero como construção social, ou seja, como
feminino/masculino são estruturados socialmente por meio de comportamentos
esperados para homens e mulheres. Ele cita o que nomeia como “performances de
gênero”:

(...) Tem as performances de gênero que são como cada indivíduo vai
performar esses arquétipos e essas estruturas, que muitas vezes vêm de fora
pra dentro, mais do que de dentro pra fora, eu acho. E tem as relações de
dentro pra fora que pra mim passa muito pela autoidentificação. Não só das
performances, não só das estruturas, mas o que cada indivíduo entende
como sentir. Então não é uma coisa lógica, não é uma coisa racional, mas
como cada pessoa vai se autoidentificar em si mesma, a partir desses
estímulos, dessas referências e dessas próprias vivências assim. Então pra
mim, gênero está meio que conectado nesses três pontos (AMÊ, DC2, 2021).
107

Questionado sobre como diferencia “dentro/fora” em sua explicação, Amê


alega que isso vai além do público/privado:

(...) O que tá dentro da cabeça da pessoa, e aí isso é o “dentro”. É o que a


pessoa imagina, é o que a pessoa entende, é como ela se sente. E o “fora” é
o que ela expressa, como ela se expressa e quais são as leituras sociais que
os outros vão ter e que essa própria pessoa vai ter dadas as circunstâncias,
porque a pessoa precisa viver em sociedade, então tem que estar ali em
diálogo. As coisas não são fixas, elas são mutáveis, elas são fluidas, dadas
as circunstâncias. Pelo menos é assim que eu vejo um pouco (AMÊ, DC2,
2021).

Observa-se um desconforto e uma insatisfação intelectual em Amê ao reportar-


se às dimensões “dentro” e “fora” na elaboração do que seja gênero. Os sentidos
subjetivos aqui expressos são de extremo valor para a proposta de um modelo teórico
da não binariedade e de identidade de gênero. Amê relaciona gênero à subjetividade
e a autoidentificação, à identidade. Expressa a unidade dialética da subjetividade
social e da subjetividade individual como a impossibilidade de internalizar/dentro-
externalizar/fora, o que seja da pessoa e o que seja do social, o que sejam vivências
e o que sejam circunstâncias sociais a partir de uma classificação dicotômica. Defende
a autoidentificação de gênero não ser uma coisa lógica, racional. Diz de as coisas
referentes à autoidentificação não serem fixas, mas mutáveis, fluidas, dadas as
circunstâncias. Advém uma compreensão não determinista e não causalista de
gênero, mas circunscrita e, ao mesmo tempo, gerada pela própria pessoa em suas
próprias vivências, o que imagina, entende e sente. Aqui, Amê faz referência à
dimensão subjetiva de gênero e à autoidentificação como processos de metamorfose
de identidade, imbrincados com aspectos da subjetividade social (representações
sociais, normativas, estereótipos etc.) conservadora.
Já no que compreende sobre público/privado, mais especificamente, Amê
reitera que sempre estamos “em relação”, sendo vistos e julgados a partir do olhar de
outras pessoas, e isso faz com que o que se manifesta concretamente, segundo seu
ponto de vista, se torne público.

(...) Porque a subjetividade, ela é privada, mas ela se expressa de maneira


pública. A gente expressa a nós mesmos em sociedade (...) A gente não
consegue, eu acho, expressar a nossa subjetividade pra nós mesmos, 100%
só pra gente. A gente tá em relação (...) Principalmente gênero, a gente não
consegue expressar gênero só no âmbito privado, muito difícil. Porque
mesmo no âmbito privado, no âmbito íntimo, no espaço da nossa casa, (...) a
gente em algum momento está em relação com outra pessoa e eu não
consigo entender isso como uma relação privada, como um âmbito privado,
108

a partir do momento que tem o olhar do outro. Na minha cabeça tudo vira
público... Na minha cabeça tudo é meio público na real, mas é uma coisa
minha assim, não tenho muito embasamento pra dizer. Eu só tenho a
sensação de que tudo é meio público. E a única coisa privada é o que tá
dentro da minha cabeça e o que tá dentro da minha cabeça geralmente não
se manifesta no meu corpo, porque a partir do momento que tá no meu corpo,
tá físico, tá visível, é público (AMÊ, DC2, 2021).

As compreensões de Amê sobre o que é público e privado denotam a


influência do social na determinação de um lugar político, ou seja, o que está “em
relação” perpassa pelo olhar social e, consequentemente, denomina um lugar. Este
lugar, que é público, também se faz político na medida em que envolve as relações
de poder em meio à sociedade, a busca pelo direito de existir e ser reconhecide/o/a.

Amê é uma pessoa estudiosa, que se dedica a buscar informações sobre


conteúdos que lhe interessam, não se contentando com o superficial. Inclusive, já
publicou um livro de ficção histórica no qual reúne alguns dos temas que estuda e nos
quais se aprofunda. Em um momento informal da pesquisa, foi conversado sobre o
livro com a pesquisadora. Na segunda dinâmica conversacional, ele trouxe uma
metáfora que representa muito bem como funciona esta busca por conhecimento:

(...) são malhas de tecido, é um fiozinho que tá ali junto com outro que pra tu
desfiar algum tópico, tu tem que ir desfazendo essa roupa né? Tu tem que
transformar a roupa em retalho. Aí tu vai, puxa um fiozinho, aí acaba soltando
a costura da manga. Aí tu fica ali com aquela manga, tu vai estudando aquela
manga, procurando os fios que você quer e na minha cabeça é um pouco
isso (AMÊ, DC1, 2021).

Esse trecho, unido às informações sobre a busca de Amê por conhecimento,


relacionam-se com o indicador da arte com potencial de experimentação, sendo
que a literatura se abre para a escrita poética e reflexiva de si e de temas que
perpassam a vida de Amê. Destarte, corrobora também o indicador de estratégias
de sobrevivência por meio de experimentos de si.
Além da masculinidade, conforme citado anteriormente, desde 2012 ele
também começou a pesquisar por conta própria a linguagem neutra. Em 2014
começou a buscar, com mais afinco, ler mais e encontrar meios de falar de forma
neutra no português, que até então entende o masculino como neutro e isso é algo
que, segundo Amê, precisa ser questionado. Dessa época até hoje, Amê seguiu
outros caminhos e sentiu que se perdeu no meio da pesquisa. Quando se deu conta,
já existiam algumas formas como “ile” e “elu”. A segunda, já conhecia por participar
109

de um grupo em uma rede social com pessoas não binárias que discutiam essas
questões em 2013/14.

Eu uso o neutro, uso o “e”, tento usar o máximo possível, inclusive, como um
exercício de naturalização pra mim, porque o “e” ainda é difícil, ele não é tão
sonoro, tipo, “artiste”... Assim, adjetivamente é mais tranquilo. “Cansade”,
“faminte”, “entediade”, “apressade”, “animade”... Feliz é neutro por si só, mas,
pra conjugação verbal, pra algumas palavras ainda é difícil né... Artigo,
pronome… Sonoramente eu ainda tenho uma dificuldade pessoal, então
ainda tenho uma dificuldade de falar “ile”, “elu”. Consigo falar pros outros, pra
mim ainda prefiro falar no masculino por uma facilidade, por uma dinâmica de
linguagem (AMÊ, DC2, 2021).

Ao refletir sobre a popularização desta forma de linguagem e a necessidade de


repensar a gramática oficial para acontecer alguma modificação, Amê também
destaca que seria preciso normatizar, mas uma norma que possibilite variações, uma
espécie de “modelo guarda-chuva” do qual se desdobrem outros modelos.

Amê: Tem algumas coisas de gramática que precisam ser pensadas. Eu acho
legal pra se pensar. Se você conhecer pessoas não binárias que façam
Letras.

Pesquisadora: É, então, eu procurei, mas não encontrei...

Amê: Teria minhe migue, mas elu se matou...

Pesquisadora: Poxa, eu sinto muito...

Amê: Aí eu tenho outre amigue, mas elu largou a faculdade.


(AMÊ, DC2, 2021).

Em duas pequenas frases Amê traz duas características observadas com


frequência na população trans: suicídio e evasão universitária (BENEVIDES;
NOGUEIRA, 2021), quando não evasão escolar, que podem desdobrar-se na falta de
atenção à saúde mental dessa população e falta de políticas públicas de permanência
na universidade e nos meios educacionais formais.
A fluidez foi um ponto muito citado por Amê durante as dinâmicas
conversacionais. Ela aparece nas relações, no cotidiano, em sua vida enquanto
artista/ator/poeta/musicista. Neste caso, a fluidez não se relaciona somente com
gênero, mas também com as diversas experiências de vida e o movimento provocado
por elas.

Nos experimentos de outras possibilidades de si de forma fluida - indicador de


transição de gênero contínua - percebeu que alguns limites apareceram no
110

caminho, principalmente no que concerne às percepções e leituras de outras pessoas


na vida social, o que corrobora o indicador de influência do social na determinação
de um lugar político. Ele afirma que o limite se deu a partir do momento em que ele
teve “passabilidade cis46”, quando as pessoas não o reconheciam de imediato como
um corpo trans.

(...) a não ser que eu faça algum esforço pra me despir dessa imagem, desses
estereótipos masculinos, se as pessoas me veem assim, fisicamente, na rua,
com a cara que eu tenho, imediatamente não vão me associar com um corpo
trans. Me associam com um corpo cis masculino e aí depois quando eu falo
que eu sou trans as pessoas ficam em choque: “Ah, mas eu não acredito,
nossa!” (AMÊ, DC1, 2021).

Hoje em dia, Amê, ao pensar sobre um certo “parecer com”, compreende isso
em um lugar lúdico de “fazer cosplay”. Desde os 13 anos ele faz cosplay, que é
basicamente uma fantasia, uma interpretação na qual as pessoas fantasiam-se de
personagens fictícios, muito popular na cultura japonesa. Cabe salientar que não se
trata de deboche destes personagens, inclusive, a muitos se tem admiração. Trata-se
de “parecer” com eles, por meio de aproximações estéticas e gestuais. Segundo Amê,
ele faz cosplay de homem cis, de mulher cis e experimenta esses lugares, mas
reconhece, ao mesmo tempo, que o que é para ele uma diversão, para algumas
pessoas é um desejo. Diferencia, neste caso, da “autoimagem”, tendo em vista que
algumas mulheres trans e alguns homens trans conhecidos de Amê identificam-se
profundamente com a binariedade dentro dos padrões e expectativas de gênero -
estética, moda, comportamentos - e reconhecem a si dessa forma.

Também existe o lado da estratégia de sobrevivência como um mecanismo de


defesa contra violências, conforme já comentado anteriormente. Amê constata que a
passabilidade cis tem seu lado bom e seu lado ruim. De acordo com ele, para algumas
pessoas é exigência, para umas é desejo e, para outras, é estratégia e mecanismo de
defesa. O lado bom seria que a chance de ser agredido na rua diminui drasticamente.
Ele oferece também outro exemplo:

Me tranquiliza poder, por exemplo, ir num banheiro masculino em paz, que


ninguém vai ficar se engraçando comigo, ninguém vai tentar me agarrar,
ninguém vai tentar me agredir no banheiro. Eu vou entrar, se tiver cabine
melhor ainda. Eu vou entrar na cabine, vou fechar a cabine, vou fazer meu

46
Ser compreendido enquanto uma pessoa cisgênero, usualmente por sua aparência e/ou trejeitos.
111

xixi, vou sair, lavar minha mão, seguir minha vida em paz como se nada me
agredisse... Mentira, as coisas continuam me agredindo, mas pelo menos não
fisicamente e diretamente (AMÊ, DC2, 2021).

Não somente como estratégia de sobrevivência, a passabilidade cis, enquanto


estratégia, também proporciona, em certa medida, segurança na sociedade da forma
como está estruturada. Isso sustenta o indicador de estratégias de sobrevivência
por meio de experimentos de si que, neste caso, tem relação com a passabilidade
cis.

Pra mim ela é uma estratégia de segurança numa sociedade patriarcal,


machista, binária, conservadora, intolerante, intolerante religiosa, intolerante
com pessoas trans (...) Assim, eu quero estar vivo. Pra eu continuar criticando
o sistema, eu tenho que estar vivo. E se pra estar vivo ter uma barbinha ajuda,
não sou eu que vou reclamar, sabe? (AMÊ, DC2, 2021)

O lado ruim é a passabilidade cis precisar existir, ser necessária como


mecanismo de defesa, uma vez que “seria lindo se as pessoas trans e as pessoas em
geral pudessem ser o que elas são. Binárias, não binárias, trans, cis, pudessem
performar gênero da forma como elas quisessem” (AMÊ, DC2, 2021). Esta
passabilidade torna-se agressiva principalmente por não ser somente uma questão
estética de leitura social, mas o que define se alguém sofre ou não severas agressões
simplesmente por existir, o que se relaciona com o indicador da violência e
desrespeito às suas vontades para adequação aos padrões de gênero, que
também é sustentado pelo trecho a seguir, no qual Amê percebe na própria
comunidade trans alguns desacordos e conflitos:

Mas é muito foda, por exemplo, quando a própria comunidade trans critica
pessoas que têm a tal da passabilidade cis. Critica negativamente ou
hipervaloriza as pessoas que têm a tal da passabilidade. Isso acontece e isso
é negativo. Tanto pras pessoas que não desejam, porque tem as pessoas
que não desejam e não querem ser lidas enquanto cis. Pô, eu tenho o maior
orgulho dessas pessoas e eu tenho maior orgulho que elas consigam viver
assim encarando todos os desafios, encarando todos os riscos. Eu não
consigo. Eu tenho várias circunstâncias e vários medos que me fazem não
conseguir. Às vezes eu estou só a fim de sair com a minha minissaia na rua.
Eu penso 15 vezes antes de usar minha minissaia (…) que nem é tão mini
assim, ela vem só um pouquinho antes da coxa (risos). Eu fico pensando:
“Caralho... Eu vou sair na rua, mas eu vou sair na rua com medo”. Eu adoro
usar maquiagem e às vezes eu coloco uma roupa super bonita e penso
“queria usar maquiagem tal... pô, não vou usar” (AMÊ, DC2, 2021).
112

Uma outra desvantagem em relação à passabilidade é que, conforme Amê


reporta, existe uma falta de questionamento sobre a própria questão da passabilidade
em detrimento da culpabilização individual das pessoas. Ou seja, torna-se
responsabilidade pessoal algo que tem bases sociais e culturais marcadas pela
cisheternormatividade.

Existe uma hipervalorizarão por parte da comunidade trans e ao mesmo


tempo uma crítica ao individuo, e não por que que existe uma passabilidade
cis. Por que existe a necessidade? E por que que a gente trata como
passabilidade cis? O que que é isso? E por que é considerado bom? E por
que é ruim? Por que eu acho ruim? Porque eu acho ruim as pessoas terem
que se enquadrar em estereótipos de gênero para serem o que elas são. E
pra ter menos risco de morrer. E uma pessoa trans ter que se enquadrar em
estereótipos, muitas vezes uma pessoa não binárie é uma facada. É uma das
pequenas facadas que eu me dou todo dia, mas também não tem muito pra
onde eu correr (AMÊ, DC2, 2021).

Em outro momento, a leitura social atribuída a Amê era de mulher cis lésbica
“caminhoneira”, mesmo que ele não entendesse dessa forma.

(...) e era muito engraçado, porque eu não me via daquela forma, e dava…
meu “tilt” era que primeiro que eu não fico só com mulheres, eu me relaciono
com as pessoas que eu gosto, independente de gênero assim, sempre foi.
Segundo, eu acho que pra ser lésbica você tem que se identificar com mulher,
se identificar muito como mulher. Eu não sei se eu me identifico do jeito que
vocês tão me identificando, eu acho que a expectativa de vocês é diferente
de quem eu sou. Só que isso não era levado a sério, porque não existia, não
tinha nome pelo menos aonde eu convivia (AMÊ, DC1, 2021).

Amê traz várias expressões de sentidos subjetivos relacionados à


passabilidade, como estratégia de sobrevivência contra violências, mecanismo de
defesa e culpabilização individual de questões sociais. Essas reflexões e
considerações podem ser associadas aos indicadores de influência do social na
determinação de um lugar político, sofrimento gerado pela exclusão,
desrespeito às suas vontades para adequação aos padrões de gênero e ao
indicador de invisibilidade das identidades de gênero e orientações sexuais fora
da lógica binária e monossexual.
Ao comentar sobre uma experiência que teve em um grupo de homens trans
no WhatsApp, Amê relembra o sentimento de desconforto e estranhamento ao
perceber que naquele meio havia um modelo de masculinidade que ele não
considerava bom para ser reproduzido - indicador da busca pela superação da
masculinidade hegemônica - na medida em que existia uma certa competição
113

relacionada ao corpo e às modificações corporais, comparando, por exemplo, quem


tinha o maior clitóris, quase como uma comparação de quem tem o maior pênis, entre
homens cis. Também como uma forma de tentar encaixar-se e pertencer àquele lugar.
Ao mesmo tempo em que existia esse desconforto, o sentimento era ambíguo,
pois Amê também admirava a felicidade daqueles homens em relação a seus corpos,
já que isso afetava diretamente a autoestima deles.

(...) isso era bom, de ver assim… Pô, que bom que não tão, sei lá, se
mutilando, sofrendo em casa (...) mas, ao mesmo tempo eu ficava: “Gente é
sério? Vocês tão competindo?” E isso se reproduzia em muitos níveis. Essa
foi uma coisa que me marcou muito porque eu achei um episódio muito
curioso assim, que imageticamente foi muito curioso (AMÊ, DC1, 2021).

Ele também achava cômica a situação porque sentia que estava “vendo meus
primos conversando quando eles tinham 12 anos” (AMÊ, DC1, 2021). A justificativa
principal para esse comportamento, de acordo com o que foi observado por Amê, era
de que eles tinham um esforço em direção ao apagamento da vivência socialmente
lida que tiveram enquanto mulher e, sentindo raiva, achavam que para “matar” isso,
tinham que reproduzir o que entendiam socialmente que é ser homem. Machismo,
falocentrismo, dentro de uma lógica heteronormativa.
No que diz respeito à corporeidade na experiência pessoal de Amê,
diferentemente dos homens trans com os quais ele teve contato no grupo de
WhatsApp, o processo esteve/está muito mais relacionado ao experimento. Ele
comenta ter uma coleção de packers, que são pênis de silicone utilizados
majoritariamente por homens trans e pessoas transmasculinas, que Amê utilizou
como “objeto de estudo” por um tempo com o intuito de ter uma passabilidade cis
maior pelo medo de ser agredido e, como ele mesmo diz, nisso também existe a
vantagem de poder fazer xixi em pé.

(...) porque isso é uma sensação de liberdade única, de poder saber que eu
tô na rua, que não vou precisar me esconder entre dois carros, ver se tem
câmera no prédio pra abaixar rapidinho, porque eu tenho a sensação de que
se eu for no banheiro só vai ter mictório, porque ainda tem isso… Banheiro
masculino é uma coisa linda… Às vezes só tem mictório e fica na altura do
umbigo (AMÊ, DC1, 2021).
114

Amê fez o procedimento cirúrgico de mastectomia 47, porém, o problema para


ele relacionava-se ao silicone, não propriamente aos seios. Inclusive, ele não sabe se
faria a cirurgia se não tivesse silicone, porque não é algo que o incomodava
pessoalmente, mas “o risco de tomar porrada na rua me incomoda” (AMÊ, DC2, 2021).
Isso dependeria, portanto, da relação dele com o próprio corpo e com a sociedade.
A mastectomia, a barba e o packer aproximam Amê da leitura social de um
homem cisgênero. Quando ele decidiu fazer “tratamento 48 hormonal”, propôs-se a
experimentar a masculinidade “até o limite” (AMÊ, DC1, 2021) porque queria entender
como seria a experiência social, mesmo que não se reconhecesse plenamente nisso.
Pretendia, depois de ter esse reconhecimento social, desapegar da identidade
masculina e voltar à "coexistência de tudo” (AMÊ, DC1, 2021) socialmente. Contudo,
percebeu que, ao ocupar realmente este lugar da masculinidade no qual as pessoas
o viam enquanto homem, nos estereótipos do que é masculino, seja uma
masculinidade heterossexual ou homossexual, seu plano ficou mais difícil. Sair desse
caminho tornou-se complicado, uma vez que as estruturas sociais já impõem camadas
de funcionamento. À época em que Amê propôs-se a experienciar este limite, não
pensou como seriam as mudanças das camadas da estrutura social e das relações
entre ele e as demais pessoas e percebeu o quanto há de mudança somente ao se
tornar a ideia prática. O que sustenta os indicadores de transição de gênero
contínua e de influência do social na determinação de um lugar político.

Em relação à hormonização, sentia uma pressão sabendo que algumas


pessoas optam por passar por esse procedimento e outras não, mas no meio trans,
inclusive entre pessoas não binárias, ele sentia-se pressionado quanto à realização
de algum tipo de hormonização ou alteração física, independentemente das vontades
pessoais, o que se relaciona ao indicador da violência e desrespeito às suas
vontades para adequação aos padrões de gênero e ao indicador de sofrimento
gerado pela exclusão. Amê considera essas pressões cruéis e atualmente vê mais
e mais pessoas discutindo sobre a não necessidade de hormonização, a não
necessidade de mastectomia, sobre as aceitações das multiplicidades de
transmasculinidades, não somente na figura do homem trans, mas reconhecendo as

47
Mastectomia: Cirurgia de retirada de seios. Se difere da mamoplastia redutora, cirurgia com
possibilidade de ser realizada pelo SUS.
48
Algumas pessoas preferem chamar de “hormonização”, ao invés de “tratamento hormonal” ou
“hormonioterapia”, por não dar a ideia de algo patológico que necessita tratamento. No texto foi utilizado
“tratamento” por ter sido chamado dessa forma pelo participante.
115

não binariedades como legítimas dentro da transmasculinidade. Apesar de ser algo


bastante debatido, de acordo com Amê, ainda é recente. Com isso, associa-se o
indicador da busca por locais em que possa ser e se apresentar como se
reconhece e o indicador da busca pela superação da masculinidade
hegemônica.

Outra reflexão feita durante as dinâmicas conversacionais foi acerca da


identidade política. O que Amê expõe sobre esse tema é dado, segundo ele, a partir
do que entende e sente. Para ele, identidade política está muito atrelada a um ser
social, a uma identidade dentro de um grupo. Uma identidade vinculada a grupos
políticos e de causas políticas, lutas políticas relacionadas, por exemplo, ao não
cumprimento de direitos ou à ausência desses direitos para determinadas populações.

Não é “eu Amê” que estou tendo esse direito exclusivamente negado, mas
“eu Amê enquanto uma pessoa transmasculine não binárie”, tenho esta gama
de direitos negados e tem série de direitos que eu deveria ter que nem
existem, que não são pensados. E nem uma série de deveres constitucionais
que não são pensados pra mim (AMÊ, DC2, 2021).

Esse trecho nos remete ao indicador de sofrimento gerado pela exclusão,


mas também ao indicador da invisibilidade das identidades de gênero e
orientações sexuais fora da lógica binária e monossexual. Ademais, para ele, a
identidade política está muito relacionada à questão do direito à vida e à necessidade
de luta por esse direito. Neste caso, ele refere-se aos grupos “minorizados”, conforme
nomeia, que não são minorias no sentido quantitativo ou de valor - por exemplo a
população LGBTI+ - mas que são diminuídas politicamente por uma estrutura vigente.
Amê também reflete sobre o quanto cada pessoa, nesta identidade política,
detém de representatividade social, porém, tem cautela com essa afirmação,
compreendendo que cada pessoa, dentro de um espectro, possui alguma identidade
política, já que a sociedade é pautada por hierarquias e relações de poder, o que
sustenta o indicador de influência do social na determinação de um lugar
político. A política, nesse sentido, nada mais é do que um jogo de poder para o
funcionamento do mundo. Ainda, a cautela que Amê tem ao falar sobre
representatividade social também diz respeito à relação individual de cada pessoa.
Cita, para ilustrar, um exemplo:

Eu sou uma pessoa que faço parte do grupo LGBT, mais especificamente na
sigla Trans. Então eu vou estar politicamente atrelado às vivências e a essa
116

identidade trans. À categoria transmasculino e à categoria não binárie. Vou


estar lutando pelos direitos majoritariamente e respondendo politicamente
pela população LGBT. (...) E respondendo não só como ativista, como
militante, mas também na minha vida pessoal. As minhas atitudes vão acabar
tendo essa leitura política nesse sentido. Mas eu vejo muita gente não
buscando entender de si, mas buscando acusar o outro e eu entendo
algumas acusações. Eu entendo as acusações históricas, as acusações
estruturantes (AMÊ, DC2, 2021).

Neste sentido, ele destaca como questão histórica e estruturante a branquitude


tal qual estrutura básica fundadora do racismo. Justamente por isso, compreende
ações do movimento preto e o movimento das negritudes quando são feitas críticas e
faladas “verdades na cara”. Fala-se sobre uma estrutura. Já em relação ao movimento
trans, do qual ele faz parte majoritariamente, afirma:

(...) eu entendo às vezes quando o movimento trans vem e aponta algumas


coisas pra cisgeneridade “cis”têmica das estruturas, da binariedade, mas eu
fico muito com a cautela de quando isso é individualizado. Cautela de pensar
o quanto isso não afasta indivíduos que, por identidades políticas parecidas,
mesmo que em algum ponto divergentes, não têm mais pautas políticas em
comum do que contrárias. Pensando num inimigo comum, vamos pensar no
patriarcado. Vamos pensar no patriarcado branco. O quanto que, por
exemplo, o movimento feminista não tem em comum com o movimento trans
nessa crítica do patriarcado? (...) Tá todo mundo querendo lutar contra o
patriarcado, o patriarcado branco europeu, sabe? Eu não tenho um
entendimento muito grande sobre essas identidades políticas. Eu tenho
essas reflexões que são com base em vivências. Inclusive, eu deveria estudar
mais sobre identidades políticas. Vou estudar mais para pensar mais a
respeito, porque eu penso pouco (AMÊ, DC2, 2021).

Outro aspecto relevante na vida de Amê, que também é espaço de estudos e


aprofundamentos, é o contato com a arte. Arte com potencial de experimentação.
Arte no amplo sentido. Teatro, poesia, música, literatura, tatuagem, dentre outras
possibilidades. A poesia foi o primeiro contato artístico com o qual Amê quis estreitar
laços, com que sentia afinidade e que pratica desde criança. Estava no campo da
técnica, do aprendizado, mas principalmente da expressão de si, sua autoexpressão.
Ele sente uma voz que lhe sussurra no silêncio e, ao mesmo tempo, sente-se como
um poeta que pensa e reflete o mundo:

(...) mas ele reflete sentindo, porque se põe no lugar das coisas, se põe no
lugar dos outros e tenta ouvir por exemplo a voz da tesoura… É porque eu tô
olhando pra tesoura agora (risos). A voz do lápis, a voz da caneta, a voz da
parede… É de quem ouve a voz das palavras, sabe? E ao mesmo tempo
ouve a voz interior, e quer contar… A poesia sempre passou desse lugar da
experiência do sentir e do sentir outrem, do sentir além. Eu fiquei muito tempo
117

com a poesia e foi um lugar onde eu pude trabalhar essas múltiplas vozes,
em paz, silêncio e solidão (AMÊ, DC1, 2021).

Foi esse lugar de silêncio e solidão que a poesia ocupou na vida de Amê; por
mais que, por um lado, ele quisesse ser lido, ter suas produções publicadas e sua
poesia reconhecida por outras pessoas, também havia o lado de ter isso para si como
um conforto, espaço em que poderia ser quem quisesse, experimentar o que
quisesse, arte com potencial de experimentação e como forma de pesquisa íntima
de si. Um lugar de “porto seguro”, possível a partir de aberturas concretas no sistema
hegemônico, na sociedade em seus micros e macros espaços. A poesia era a
possibilidade de “dar voz a essa multiplicidade de eus que eu sou” (AMÊ, DC1, 2021).
Foi quando Amê passou a competir em Slams, depois de muito assistir às
competições, que passou a recitar os poemas para as pessoas na rua e a perceber
nisso uma evolução profissional em relação à sua produção poética. Depois de 2014,
voltou à ativa um pouco mais tímido que o costume, colocando em suas criações
temas voltados às vivências trans e temas políticos. Foi aí que teve também a
oportunidade de conhecer outres poetas trans.

Neste corpo, “na carne”, também foi onde o teatro começou a ganhar espaço.
A experiência na pele, neste processo de constante construção, foi uma forma de
tornar mais tangíveis as coisas que imaginava na poesia.

(...) foi um pouco de tornar sonhos matéria, tornar essas coisas que eu
imaginava, tornar essas possibilidades de outros, que eu já sentia habitando
em mim e que eu já trabalhava em mim com a poesia, tornar isso tangível,
tornar isso carne, possibilidade, matéria, não só enquanto palavra (...) E muito
também no lugar de poder experimentar esses outros corpos, essas
possibilidades de masculinidades (AMÊ, DC1, 2021).

Os trechos e informações apresentadas associam-se aos indicadores de


busca pela superação da masculinidade hegemônica através de estratégias de
sobrevivência por meio de experimentos de si. Neste caso, experimentos
relacionados à corporeidade por meio de um contato sensível com o real. Também,
expor os poemas e adentrar no teatro remete à busca por locais em que possa ser
e se apresentar como se reconhece.
De acordo com Amê, ele sempre gostou de teatro, da ideia de apresentar-se,
da própria apresentação, do palco. Principalmente do palco. Ele conta que, quando
tinha apenas 5 anos de idade, na sacada de sua casa, tocava um pequeno violãozinho
118

de plástico querendo público. Na música, Amê tocava baixo em uma banda e pensa
hoje em dia em começar a estudar saxofone.
Ainda no que cabe ao teatro, inicialmente sua motivação veio por meio da
possibilidade de vivenciar papéis masculinos na atuação, porém, com o tempo, Amê
criou uma relação mais profunda com o teatro, indo além e encontrando também a
possibilidade de comunicação, de diálogo através dos sentidos, das ideias, vivências,
experiências e presença.

Para Amê, a presença se cria. Não está relacionada somente com a presença
física, mas também por vias outras como, por exemplo, duas pessoas que se veem
pela tela do celular ou conversando por videochamada. A pandemia mostrou muito
disso, de como nos adaptamos para, ainda assim, ter pessoas queridas presentes.
Uma hipótese surge nesse momento, tendo em vista que, na busca por locais
em que possa ser e se apresentar como se reconhece, Amê encontrou no teatro
a possibilidade de, por meio da corporeidade, da linguagem - não somente falada,
mas o que se expressa amplamente por gestos, sons e silêncios - e da presença,
vivenciar suas próprias metamorfoses onde possa ser visto, aclamado, reconhecido e
respeitado pelo papel representado, que não se trata somente de um personagem,
mas também de um, ou mais, dos vários eus que lhe compõem. Uma identidade
composta por experimentos, múltipla, diversa, poética e artística. A não binariedade,
portanto, mostra-se como caminho possível na concretização desta identidade.
Outro fator que aproxima Amê do teatro é a construção de atmosferas que
também corroboram a hipótese levantada.

(...) toda essa questão de construir atmosferas também me interessa muito


no teatro, de manipular atmosferas do ambiente, seja com luz, com energia,
com som, fumaça, cheiros… E sempre foi uma forma de expressão muito
profissional assim. Eu tinha na minha cabeça que eu ia conseguir me dar bem
profissionalmente numa carreira com o teatro. Era um negócio que com 18
anos eu botei na minha cabeça. Eu tava na faculdade de Letras (...) e eu
larguei no quinto semestre. (...) Ao mesmo tempo que eu fui encontrando o
teatro eu fui me encontrando, porque o teatro é a arte da relação, é a arte do
encontro (AMÊ, DC1, 2021).

Amê afirma que sempre foi uma pessoa muito solitária, até por conta do mundo
muito vasto, muito movimentado, e que, por meio do teatro e das relações, contatos,
encontros e presenças constantes proporcionados por ele, deparou-se com uma outra
realidade que sustenta a hipótese recém apresentada. “(...) Foi um processo muito
119

humanizante. O teatro foi um processo de me conhecer enquanto humano, foi de


recuperar minha humanidade de alguma forma” (AMÊ, DC1, 2021).
Por trabalhar com arte, Amê vive de projetos, ou seja, participa e produz
constantemente novas ideias e exercita sua criatividade nesse processo. Ainda, a arte
também é um lugar de estudo para Amê. Ele debruçou-se sobre o “terrorismo poético”
que, em diálogo com o Happening, que é uma forma de intervenção artística urbana,
seria também arte de rua com características de anonimato e surpresa. Não se trata
de algo agressivo, por mais que o nome tenha essa conotação. Amê deu o exemplo
de jogar flores de papel de cima de um prédio, em papel laminado, refletindo luz e
produzindo várias cores. Esta forma de arte também não está, de acordo com ele,
vinculada tanto à pessoa artista e, sendo assim, a obra fala por si.
Em um grupo de amigues, com cada pessoa pesquisando o que gostava no
teatro, foi criado um coletivo motivado pela vontade de fazer algo em conjunto, pelo
contato, pelo encontro, cada um com sua pesquisa de forma horizontal. Os lugares
físicos de encontro não importavam muito. Poderia ser na praça, na rua ou na escada
da universidade. O que importava era o encontro e a união do grupo. O objetivo era a
profissionalização e, conforme conta Amê, esse processo se deu de forma muito
rápida. Isso teve seu lado positivo, afinal, era algo que queriam, mas também um lado
negativo por sentir que “atropelaram” determinadas questões.
Alguns processos íntimos Amê sentiu que foram “atropelados”, uma vez que,
com uma dessas pessoas, além de trabalhar junto, Amê relaciona-se
amorosamente/romanticamente. A relação é muito intensa e ele e a parceira
magoaram-se afetivamente nessas “correrias”. O pessoal se misturava com o
profissional. Tentam colocar limites, porém, tudo acaba sendo um tanto quanto
“caótico e misturado”, nas palavras dele.
Tanto ele quanto ela possuem trabalhos independentes, além do teatro, que,
segundo Amê, ajudam a “dar um respiro”. Ele trabalha com tatuagem, literatura e
como ator. Ela faz faculdade de artes, faz figurinos, roupas e customização e está
começando a carreira como ilustradora e pintora. Amê, durante nossa conversa,
demonstra emocionalmente, por meio da fala animada e empolgada, o quanto se
orgulha dos passos dados pela parceira. Afirma que ela é uma pessoa muito dedicada
e talentosa, além de desenvolver-se muito rapidamente. Ele acompanha este
processo de evolução dela desde 2017 e percebe o tamanho do esforço investido.
120

A gente trabalha, se ama e vive. Faz tudo junto e é muito intenso. Eu não
acho ruim, mas é intenso. Tem dias que a gente “aaaa”, se dá uma xingada,
dá uns atritos, porque porra, teatro é uma doidera! Não tem como fazer teatro
em paz. Teatro é sempre muito intenso. Mexe com o corpo, com o emocional.
Aí como a gente atua, dirige, produz... Aí a gente mexe com financeiro,
recebe gente, faz tudo (AMÊ, DC2, 2021).

Ao final da segunda dinâmica conversacional, foi perguntado para Amê sobre


qual seria a utopia dele para um mundo melhor. Afirma, portanto, que seria um mundo
não capitalista, com algum tipo de organização política-econômica-social que ele não
sabe qual seria. No ponto de vista dele, não o determina como um sistema comunista
ou socialista, mas descreve-o como uma sociedade que não fosse dividida por
gêneros, em que as relações humanas não seriam pautadas nem estruturadas pelo
poder. Seriam pautadas em colaboração e igualdade. “Eu sei que isso é praticamente
impossível, mas que bom que é utópico. É uma utopia, porque eu posso sonhar”
(AMÊ, DC2, 2021). Seria uma sociedade colaborativa, marcada pela igualdade, não
no sentido hegemônico, mas de respeito mútuo às diferenças humanas, à liberdade
de ser. Ou seja, para que não houvesse sofrimento gerado pela exclusão.

Então seria uma sociedade sem gênero ou, que se tivesse gênero, não seria
algo imposto. Talvez não teria esse nome como tem hoje, mas seria como as
pessoas se identificam e isso não seria relevante. Seria uma sociedade em
que não tivesse as estruturas de poder econômico e que a economia girasse
em prol do bem comum, em prol da manutenção do planeta. Não existiria
relações de poder entre espécies, embora eu ache isso extremamente
utópico porque eu tenho pavor de barata e eu vou matar todas as baratas do
mundo (risos) e se eu não matar eu vou quase enfartar, porque quem vai
morrer vai ser eu... Mas seria com o máximo de respeito às espécies possível.
Em que o gatinho, o cachorrinho, o porquinho, o macaquinho, o besourinho
não fosse tão inferior em relação ao ser humano e que tivesse uma mínima
harmonia entre as formas de vida. E eu queria que o ser humano parasse de
se reconhecer enquanto a espécie predatória dominante, mas passasse a se
reconhecer como uma espécie onívora diferente, mas com importância
ecológica (AMÊ, DC2, 2021).

Esse trecho associa-se ao indicador da violência e desrespeito às suas


vontades para adequação aos padrões de gênero, uma vez que pensa um mundo
melhor sem essa imposição. Já a importância ecológica à qual Amê se refere, diz
respeito a uma responsabilidade ecológica maior que a que tem os outros animais,
mas reconhecendo, ao mesmo tempo, que somos a espécie que, nos moldes de vida
de hoje da sociedade capitalista, mais prejudica o ecossistema, principalmente pelo
poder de destruição. Sabendo deste “poder”, de acordo com Amê, “a gente tem a
responsabilidade em não matar todo mundo. Em não terminar de explodir o planeta,
121

não terminar de ferrar o sistema” (AMÊ, DC2, 2021). O antropocentrismo, segundo


ele, diz muito sobre o ser humano. No mundo utópico pensado por Amê, não
estaríamos em um mundo antropocêntrico.
Para este novo modelo de mundo, ele sugere um mundo “planetocêntrico” ou
até mesmo um mundo que não precisasse ser “cêntrico”. De forma resumida, como já
exposto, utopicamente seria um mundo não capitalista onde não existisse gênero,
nem relações de poder entre as espécies e que as relações humanas não fossem
pautadas em poder.

Em vez do conformismo de se adequar às normatividades, Amê continua a


buscar um lugar. Não só procurar, mas Amê o constrói, como o próprio processo de
suas experiências de vivências.

Os indicadores elencados foram:

● Transição de gênero contínua;


● Arte com potencial de experimentação;
● Influência do social na determinação de um lugar político;
● Busca por locais em que possa ser e apresentar-se como se reconhece;
● Sofrimento gerado pela exclusão;
● Estratégias de sobrevivência por meio de experimentos de si;
● Busca pela superação da masculinidade hegemônica;
● Violência e desrespeito às suas vontades para adequação aos padrões de
gênero;
● Invisibilidade das identidades de gênero e orientações sexuais fora da lógica
binária e monossexual.

Por meio da articulação destes indicadores, foi possível a elaboração da


seguinte hipótese:

● Amê encontrou no teatro a possibilidade de, por meio da corporeidade, da


linguagem - não somente falada, mas amplamente o que se expressa por
gestos, sons e silêncios - e da presença, vivenciar suas próprias metamorfoses
onde pode ser visto, aclamado, reconhecido e respeitado pelo papel
representado, que não somente trata-se de um personagem, mas também de
um, ou mais, dos vários eus que lhe compõem. Uma identidade composta por
122

experimentos, múltipla, diversa, poética e artística. A não binariedade,


portanto, mostra-se como caminho possível na concretização dessa
identidade.
Amê, alquimista de si, um estudioso por excelência - de si, das relações, da vida,
do mundo - numa confluência contínua da subjetividade social e subjetividade
individual. A arte, o alquimista, o estudioso, permitem esta transição contínua da
subjetividade social e subjetividade individual. Isso tem implicações grandiosas nas
configurações subjetivas da identidade, da identidade política, de projetos de vida, de
ser sujeito. Uma alquimia, de fato.
123
124

6.1.3 CALEIDOSCÓPIO: TUTI

O caleidoscópio é um instrumento óptico que contém pequenos fragmentos de


vidro colorido e, quando a luz reflete sobre eles, são criadas diferentes e belas
imagens simétricas e policromáticas. Cada movimento produz uma nova combinação.
Tuti, frui seus mais diversos lados, artista, diferenciade, criative, bem humorade,
acolhedore, de fácil integração. Intense e emocionade. Tece seu trabalho na forma de
redes de afeto, compõe músicas, poemas, apresentações em espaços públicos, redes
sociais, Slams e na Cena Ballroom. Tuti é diversidade e diversão! Digital influencer,
comunicadore, com seu bom humor, riso fácil, feliz com a vida e a existência,
acolhendo as diferenças, gosta de questionar, colocar-se, falar o que pensa. Esse seu
jeito de ser, de comunicar-se, de agregar, já se caracteriza, para nós, como sua forma
de estar no mundo.
Tuti, 31 anos, trans não binárie, utiliza pronomes neutros e masculinos 49,
demissexual50, classe baixa, autodeclara-se parde, nasceu em uma pequena cidade
do interior do Rio de Janeiro e hoje mora na cidade do Rio de Janeiro. Possui Ensino
Superior incompleto em Pedagogia, é técnique em artes cênicas e tem formação como

49
Neste capítulo utilizamos por vezes pronomes neutros e por vezes os masculinos.
50
Demissexual: Pessoa que sente atração sexual por outras somente após construir um vínculo
emocional. No caso de Tuti, isso independe de gênero.
125

Bombeire Civil. Trabalha como autônome, mora com o pai e participa de grupos
artísticos: Cena Ballroom e um grupo de artistas trans no Instagram.
Desde criança51, entre os 8 ou 9 anos, Tuti já questionava padrões de gênero 52
e via a si como diferente das outras crianças. Comentou sobre um episódio com sua
mãe que sempre, segundo Tuti, lidou com essas questões de forma tranquila e
acolhedora:

Eu estava numa loja e minha mãe falou “nossa, que vestido lindo, né?”, falei
“aham”. Aí eu vi uma parca, que na época era tipo um macacãozinho
masculino. “Mas isso é de menino” [fala da mãe]. Era do Seninha. Era
vermelho, azul e branco. Aí eu falei “onde tá escrito que é de menino? Isso é
roupa”. Sabe? Isso é roupa! Aí ela falou “Você quer? É, real… Bem que você
tá falando, é vermelho né?” “Tá e se fosse tudo azul?” [fala de Tuti criança].
É roupa, sabe? Desde criança eu tinha isso (TUTI, DC1, 2021).

Minha mãe sempre falou que já sabia para que que eu vim, “quando você
nasceu”, sabe? Minha mãe sempre foi de boa, sempre levou de boa, levando
as pessoas em volta a levar de boa (TUTI, DC1, 2021).

Podemos, a partir disso, construir o indicador de sentidos subjetivos


relacionados ao incômodo com padrões de gênero.
Tuti foi criade com um irmão e uma irmã. A expressão do irmão dentro dos
estereótipos de homossexualidade, segundo Tuti, já apontava desde a infância para
essa orientação sexual e as pessoas tinham seus palpites sobre isso. A irmã é lésbica
e Tuti percebia os comentários desagradáveis feitos pelas pessoas no entorno. Por
mais que Tuti tratasse muitos desses assuntos com tranquilidade desde a infância,
em alguns momentos isso não era recepcionado da mesma forma pelas pessoas com
as quais convivia. Ainda assim, o posicionamento de Tuti frente a isso era de empatia
e proteção às pessoas que estavam vulneráveis em alguma situação, inclusive, por
isso já ser parte de sua família e das pessoas por quem tem grande apreço, conforme
podemos observar nos trechos a seguir sobre a infância de Tuti:

[...] eu via que tava encaminhando pra aquilo [situação de


preconceito/discriminação], eu cortava o mal pela raiz de uma forma legal.
Sabe? “Mas pra quê? Pra que isso? Todo mundo brinca... Ele brinca comigo,
pronto, ele é do meu time. É isso aí. A gente é do mesmo time né?” Sabe? Aí
dava um baque e a pessoa ficava segura (TUTI, DC1, 2021).

51
Ver: FAVERO, Sofia. Crianças Trans: Infâncias possíveis. 1ª Edição. Editora Devires, Coleção
Saberes Trans, Abril/2021.
52
Papéis de gênero delimitados na sociedade em formas de se vestir, se comportar, sentir, se
expressar etc.
126

Eu acho que, tipo assim, eu sofri pouco na escola, porque querendo ou não
a gente sofre bullying (...) Tem gente tão tóxica nesse mundo, né? “A sua
irmã é assim, por que você é assim?” Eu falei: “Ela é assim e tem sorte de eu
ser assim pra ela ter apoio pra ser assim. Não é porque eu sou assim que ela
vai ser assim também”. Minha irmã tem muito mais personalidade do que eu
até (TUTI, DC1, 2021).

A partir disso, elencamos um indicador de acolhimento às diferenças, que


promove também o próprio bem-estar e torna possível ajudar a outras pessoas. A
isso, relaciona-se a contribuição de Tuti para que as pessoas compreendam e não
discriminem pessoas não cisheteronormativas, construindo uma rede de apoio, afeto
e aceitação.
O jeito diferente de Tuti se expressar era percebido também por aquelas
pessoas com as quais convivia, como o caso da tia que dizia que Tuti vê as coisas
“pelo lado bom da vida”. A tia ainda afirmava que “se fosse outra pessoa, às vezes ia
estar precisando de tratamento psicológico”. Tuti hoje entende o que ela queria dizer:

Mas é isso, hoje em dia, real eu entendo o que ela quis dizer. Que se eu
tivesse outra cabeça, outra frequência ali naquela época eu poderia ter algum
bloqueio, algum transtorno assim... de ansiedade, alguma coisa provocada
por não saber lidar53 na época com isso. Na época do meu desenvolvimento,
do meu crescimento, sabe? Quem sou eu no mundo, pra que que eu tô aqui,
sabe? (TUTI, DC1, 2021)

Em conjunto com o sentir acolhimento e compreensão da família, Tuti ampara-


se em explicações místicas e espirituais, o que nos leva a compreender essa
dimensão como indicador da sua forma de pensar, sentir e viver o gênero ou, neste
caso, sua fluidez. Em outras palavras, trata-se de um indicador de explicações
místicas e espirituais relacionadas à fluidez de gênero.

[Tia] “Você é um ser evoluído, você é atemporal para o lugar que você veio,
por isso que você sempre levou de boa”. Eu falei: “Ah meu signo, pisciano é
assim” Pisciano leva a vida tranquilo, não é porque eu sou um ser evoluído
não (...) Aí hoje eu dia eu fico assim: “Cara, será que foi bênção do universo?”
Eu nascer pisciane, né? Vendo as coisas pelo lado bom... fantasioso (TUTI,
DC1, 2021).

Em relação à espiritualidade, Tuti afirma que cresceu na igreja católica e depois


participou da igreja evangélica. Hoje, entende-se como agnóstico, porém, tem uma
perspectiva própria do que seria um ser superior:

53
É importante frisar aqui que se trata da história de Tuti e de seus meios para lidar com os preconceitos
e discriminações. Não se refere a uma realidade generalizável.
127

Eu falo em Deus, eu acredito em uma força universal, a gente dá o nome de


Deus porque acostumou a falar Deus, né, mas eu acredito numa força
benigna e numa força mais... não sei, enfim né. Não maligna, mas assim,
densa né. Não vamos dizer “maligna”. Essa força benigna, ela sempre me
guiou pra... “Vem cá, vem por esse caminho aqui”, sabe? Esse instinto meu.
“Vai pro Rio das Ostras” (...) Enfim, “faz isso, faz produção cultural, faz técnico
em Artes Cênicas. Lá você vai encontrar pessoas que te contemplam”, sabe?
(TUTI, DC1, 2021)

Em outro momento, na segunda dinâmica conversacional, Tuti traz uma crítica


aos dogmas religiosos na vida particular de pessoas LGBTQIA+54, sendo que, para
ele, “a informação salva vidas e o dogma religioso destrói”. Como forma de ilustrar
isso, conta sobre a experiência de duas amigas:

A pessoa fica frustrada, oprimida. A pessoa fica fazendo coisas por conta da
religião, pensando no que aquela comunidade, aquele grupo religioso vai
pensar (...) Eu tenho uma amiga que tá hoje com depressão e eu sei que é
por conta de dogma religioso. “Isso é do demônio, você não vai ser salva”. E
eu tenho uma amiga que está se privando da sexualidade, porque ela é
lésbica. Tá se privando por causa da família e da igreja (TUTI, DC2, 2021).

Também isso é compreendido por Tuti de forma mais ampla. No Brasil, um país
majoritariamente cristão, no qual a subjetividade social é marcada por ideais
conservadores em relação a gênero e sexualidade, Tuti critica a existência de uma
bancada evangélica.

Misturar o país que é laico com bancada de religião gente, dá nisso! O


primeiro erro tá aí, entendeu? Não é apontando pessoas... não vamos falar
de seres humanos não, porque aí tá óbvio (risos). O primeiro erro foi deixar
acontecer essa bancada evangélica no país laico, entendeu? Que
democracia é essa? Cadê a bancada indígena55? Cadê a bancada do
Candomblé? Cadê a bancada católica? Tinha que ter uma bancada pra tudo,
né? Não... Acho que não tinha que ter essa bancada, essa bancada
evangélica tinha que ser extinguida. Não tenho nada contra, entendeu? Pelo
contrário, fui criado na igreja católica e depois pela igreja evangélica,
entendeu? Tenho nada contra religião nenhuma, apesar de hoje em dia eu
ser uma pessoa agnóstica, mas... Não condiz com a Constituição, sabe? O
Brasil não tem estrutura para isso (TUTI, DC1, 2021).

Os sentidos subjetivos de Tuti referentes à espiritualidade e religiosidade,


todavia, não estão somente em um polo, afinal, ele ressignificou alguns aprendizados

54
Apesar de utilizar na pesquisa a sigla LGBTI+, conforme explicado na contextualização, aqui optou-
se pela sigla LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Trans e Travestis, pessoas Queer,
pessoas Intersexo, Assexuais e o + representando as demais possibilidades) respeitando o
posicionamento de Tuti, que utiliza a sigla dessa forma.
55
Em abril de 2019 foi lançada a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos
Indígenas. Ver mais em: http://frenteparlamentarindigena.com.br/
128

do âmbito religioso, encontrando o que fazia sentido para si. Inclusive, nesse aspecto
da vida de Tuti, também são feitos questionamentos em relação a gênero, como
veremos no trecho a seguir:

Eu acredito, para ficar mais fácil, em Deus, um ser superior evoluído, benigno
que é um pai ou mãe. Porque pra mim é agênero. Não sei por que esse
machismo imposto. Então é um ser superior evoluído, uma criatura
misericordiosa que todo mundo deveria acreditar nisso, porque se não vai
ficar todo mundo desesperado (...) Esse Deus e esse Jesus que a galera fala
é bem diferente do Jesus da Bíblia que eu li. Jesus era tão bom cara! (TUTI,
DC2, 2021)

Esse trecho sustenta o indicador de sentidos subjetivos relacionados ao


incômodo com padrões de gênero, uma vez que esses padrões se encontram em
diversos âmbitos, com destaque ao religioso e, portanto, seres não humanos - deuses,
entidades - não estariam fora do posicionamento crítico de Tuti em relação ao gênero,
o que também corrobora o indicador de explicações místicas e espirituais
relacionadas à fluidez de gênero.
Desses dizeres e dos vários caminhos, depreende-se, desde idade muito tenra,
a trama da configuração subjetiva de gênero e a questão existencial de uma luta pela
sobrevivência, pelo direito de ser, que tomam contornos no decorrer da existência.
“Eu sou ser humano” (TUTI, DC1, 2021).

Quando adolescente, a minha família achou que eu tinha orientação lésbica,


porque eu tinha figura de mulher cis (...) Porque uma coisa é a minha
construção de gênero como pessoa não binárie, outra coisa é como eu me
relaciono afetivamente (...) Eu sempre falei “eu sou ser humano”, porque eu
não sabia o que era ser não binárie, eu não vivia como sapatão, mulher
lésbica. Depois que eu cresci, saí, tive contato com outras culturas que eu fui
entender que orientação sexual é uma coisa e construção de gênero é outra
(TUTI, DC1, 2021).

Nessa época, a família de Tuti entendeu que sua orientação sexual era lésbica,
por mais que Tuti não se identificasse assim e, por conta disso, perguntaram-lhe se
gostaria de fazer acompanhamento psicológico. Ele concordou, porém, sem sentir
necessidade, apenas “por desencargo de consciência da minha família” (TUTI, DC1,
2021). O que Tuti entende por “construção de gênero” será descrito mais adiante. Por
um tempo, dizer-se “ser humano” já era suficiente para Tuti ao pensar sobre si e a
forma como se expressa. Porém, depois do contato com a não binariedade e fluidez
de gênero, entendendo o significado disso, passou a nomear-se assim.
129

Não tenho gênero. Não precisa ter gênero. Não binárie é justamente pra sair
desse padrão de gênero do masculino e do feminino. Por mais que alguns
não bináries prefiram performar alguma coisa neutra. Eu sou o não binárie
que às vezes está mais para o feminine, às vezes mais pro masculine. Eu
sou dessa fluidez de gênero. Eu gosto dessa fluidez de gênero (...) É olhar
no espelho e ver “sou eu". Sou eu, sabe? Não tô incomodado, tô de boas. É
se sentir bem, tanto visualmente no espelho, quanto esteticamente falando.
Essa aí sou eu, esse aí sou eu (TUTI, DC2, 2021).

Conectado ao indicador de sentidos subjetivos relacionados ao incômodo


com padrões de gênero, elencamos também o indicador de sentidos subjetivos
de conforto e bem-estar com a fluidez de gênero ligado à corporeidade e formas
de expressar-se. Mais, pudemos perceber que a nomeação do que se sentia em
relação à fluidez é importante, mas prévia. Ou seja, as vivências de fluidez de gênero
anteriores à sua nomeação como uma vivência não binária aparecem também nas
experiências da infância de Tuti, o que nos leva a pensar como a referência de uma
classificação remete a um lugar onde se possa existir.
Logo em seguida à primeira dinâmica conversacional, para complementar algo
que tinha dito durante a conversa por videochamada, Tuti enviou um áudio por
WhatsApp para a pesquisadora, o que para nós significou implicação e interesse na
pesquisa em um momento informal. Ele afirmava que era importante não considerar
a não binariedade como uma fase. É, em suas palavras, uma identidade diversa e
sensível. Diz que não é como a adolescência, na qual surgem modificações e em
seguida passa-se a uma próxima fase da vida. Ele sente que isso seria diminuir e
reduzir a não binariedade, algo ofensivo, “(...) porque é um momento no processo
identitário, embasado em orgulho e autoamor” (TUTI, 2021). Além disso, entende que
é possível que qualquer pessoa, em qualquer fase de sua vida, entenda-se como não
binárie e consiga atrelar a isso o seu papel político.
Tuti percebe, por meio de sua experiência de vida e do contato com as redes
sociais e grupos LGBTQIA+, uma diferença geracional no que diz respeito à
compreensão da não binariedade como identidade de gênero. Afirma que pessoas
mais novas, tanto cis quanto trans, tendem a ser menos intolerantes e interessar-se
mais. Querem aprender, por exemplo, sobre linguagem neutra, propondo-se a
escrever e falar dessa forma. Quando Tuti, publicamente, disse ser uma pessoa não
binárie, percebeu apoio de amigas, amigues e amigos que começaram a escrever no
neutro. Todavia, tem um palpite sobre os motivos de principalmente pessoas trans
mais velhas - o que no Brasil significa em torno de 35 anos, por ser a expectativa de
130

vida de pessoas trans no país (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021) – sentirem-se


incomodadas. O trecho a seguir relaciona-se ao indicador de acolhimento às
diferenças.

Mas eu entendo também, porque, sabe o que pode ser? As pessoas trans,
tanto homens quanto mulheres, sofreram muito. Tiveram que quebrar todo
esse tabu. A gente tem que respeitar quem veio antes né? Eles atacam, mas
vamos respeitar a luta deles, porque se não fossem eles a gente não estaria
aqui. Então sofreram muito com ataques, hormonização errônea... Porque
antes dos médicos, endócrinos, terem estudos sobre isso e trabalharem com
isso, quem começou com isso foram as próprias pessoas trans fazendo eles
mesmos de experiência. Então acho que ficam meio incomodados, tipo “se
não tem que fazer transição não é trans”. Eu tento entender o lado deles como
“eu tive tanto trabalho pra nada”, sabe? (TUTI, DC2, 2021)

Ao apresentar-se, Tuti afirma que a mudança de sua pequena cidade natal no


interior do estado para a cidade do Rio de Janeiro fez e faz toda diferença no seu
processo de vida no amplo sentido, permitindo novas vias de saberes, de fazeres e
de ser. Possibilitou, por exemplo, que ele fizesse produção cultural e o curso técnico
em Artes Cênicas. Conta que em sua cidade natal nunca sofreu discriminação, porém,
chamava a atenção das pessoas por comportar-se de forma diferente daquela como
se vivia no interior. “Eu pertencia ali, mas ali não me pertencia”, Tuti diz na primeira
dinâmica conversacional, logo depois de afirmar que era um lugar pequeno para ser
quem é, expressando sentidos subjetivos a respeito do seu sentimento contraditório
de pertencimento e não pertencimento àquele local.

E realmente, ali naquele lugar onde eu morava, ali com a cultura, ali no fim
do mundo onde Judas perdeu as botas e deixou elas com chulé (risos), eu
não ia me identificar. Falar: “Aqui tem alguém que me representa”, sabe? Me
contempla, pelo menos assim, pensa mais ou menos... Não tinha, porque ali
naquele lugar eu era o únique ser humano que pensava daquele jeito (TUTI,
DC1, 2021).

Neste lugar em que ele sente uma certa solidão por não encontrar pessoas ou
grupos que pensem de forma parecida ou complementar, a subjetividade social é
marcada pela lógica binária cisheternormativa e Tuti demonstra isso quando
reconhece que o contexto social é de desigualdade e falta de acesso ao
conhecimento. Neste caso em específico, conhecimento relacionado à diversidade de
gênero.

Eles falam “meio termo” [referindo-se a Tuti]. Não entendem, sabe? Mas
assim, não é culpa, é falta de cultura. E você sabe que não é “ruindade” (...)
131

Quando você explica a pessoa [diz] “ah, tô entendendo… Não é muito


complicado, é só os termos que você… As palavras, né?” (TUTI, DC1, 2021)

Enfatiza que em sua cidade natal falta cultura e educação para as pessoas
compreenderem sua “construção de gênero”, termo que Tuti emprega para fazer
referência ao seu próprio processo histórico e dialético de configuração de gênero
enquanto pessoa não binárie. Aponta-se, portanto, um indicador da mobilidade
entre locais - cidades, estados e regiões diversas - como possibilidade de ampliar
vivências, ou seja, a mobilidade que abre novas vias, perspectivas e possibilidades
de conhecimentos, interrelações, expressões e experiências no desenvolvimento do
que aqui denominamos configurações subjetivas da não binariedade de gênero.
Já em relação ao Rio de Janeiro, Tuti vê a metrópole global como um retrato
do país, onde muitas pessoas estão em situação de extrema pobreza, morando nas
ruas e onde a cultura - da qual também faz parte a arte - está esquecida. “A realidade
do Brasil hipócrita” (TUTI, DC1, 2021) diz ele, salientando que, o que o país mostra
como realidade para fora, na verdade esconde vários problemas estruturais. Segundo
Tuti, a luta para que a cultura não morra fica a cargo das minorias marginalizadas.

Até então, quem luta por isso? A minoria. A gente, sabe? As pessoas que já
são julgadas por ser quem são. Aí bota esse encargo em cima da gente
também, aí o que acontece? Demoniza, marginaliza. Ninguém vai querer
prestar atenção, porque eles já estão doutrinados a achar que a gente já está
afrontando por ser quem a gente é, que isso é errado, que isso é demoníaco,
que isso é contra Deus, sabe? Então como que a gente vai brigar pela cultura
e por arte, sendo que a gente tá brigando pra ter paz pra ser quem a gente
é? É difícil, é difícil. É isso aí que é ser Tuti (TUTI, DC1, 2021).

Apesar de tudo, é também neste Rio, com hipocrisia, pobreza, intolerância e


desigualdade, que Tuti diz ter sorte em morar.

Moro na comunidade, mas numa quitinete, num barraco, mas moro no Rio!
Sabe? Eu sou muito grato ao Universo, às energias. E assim, a gente tem
que reconhecer os privilégios quando a gente tem, sabe? São privilégios...
Todo mundo, tipo, tem a casa que mora do lado da praia, mas a gente sofreu
mundos e fundos pra comprar isso e dar uma qualidade de vida melhor para
todo mundo, sabe? (...) Se eu ficasse só no interior seria só mais uma
pessoa... “Apenas um rapaz Latino-Americano, sem dinheiro no bolso...”
[cantando] mas não sei, tudo tem um propósito (TUTI, DC1, 2021).

A conversa, o diálogo, a comunicação, a informação e a formação educativa e


cultural das pessoas em geral sobre gênero têm tomado lugar central na vida de Tuti
132

a partir das diversas atividades que desenvolve e grupos dos quais participa.
Atividades, relações e experiências com notórias implicações para o seu próprio
desenvolvimento e de outras pessoas, com vistas a que especialmente pessoas trans
não bináries possam viver, conviver e expressar-se de modo livre, autêntico e
confortável, na contramão de julgamentos e “cancelamentos”, da invisibilidade e não
permissividade, da discriminação e violência. Isso tem relação direta com o indicador
de acolhimento às diferenças, neste caso, por meio da educação. Quando
perguntado sobre o papel da informação, ele responde:

Salvar vidas. Simplesmente salvar vidas, porque a informação, quando ela é


levada para a pessoa que está deprimida, que não está enxergando ou sofre
opressão e não tá sabendo lidar com aquilo (...) quando ela [a informação]
chega na hora certa, ela é capaz de salvar uma vida. Assim como a
desinformação pode dizimar uma vida também. A informação errada, fake
news pode dizimar uma vida. Eu conheço várias pessoas, conhecia né, que
por falta de informação ou por dogmas religiosos, acabaram com a vida
porque não estavam entendendo quem eram. A pessoa era fora do padrão e
sentia que não era merecedora de estar aqui... Que isso gente! Pelo amor de
Deus!

Pesquisadora: E você acha que a informação já salvou a sua vida?

Nossa! Eu tô aqui (risos). Eu tô aqui falando com você... Eu tô aqui (TUTI,


DC2, 2021).

Tuti reconhece o que o acesso à informação fez por sua vida. Com esses
trechos, e considerando outros aspectos da vida de Tuti, como a infância, em que
mediava situações para que as pessoas não se constrangessem por serem diferentes
das demais, construímos a hipótese de que Tuti, por meio da comunicação e
formação educativa de outras pessoas, encontra vias de possibilitar sua própria
existência e também salvar outras vidas, seja literalmente, considerando as altas
taxas de suicídio entre a população LGBTQIA+, seja proporcionando um espaço
acolhedor em que possam ser elas mesmas.
Com o avanço da tecnologia e a possibilidade de acesso à internet, alguns
fenômenos sociais passaram a advir desse cenário. Alguns foram citados por Tuti
como: “cancelamento”, “ser emocionade” e digital influencers. O “cancelamento” diz
respeito à punição dada às pessoas que fazem algo considerado reprovável, como
por exemplo, emitir opiniões preconceituosas e, a partir disso, perder seguidores nas
redes sociais, perder patrocínios e ficar excluíde/o/a de diversos espaços. A ideia de
cancelamento é a de que, a partir desse momento, a pessoa não será escutada, mas
133

ignorada, colocada de lado, sem espaço para desculpas. Já ser uma “pessoa
emocionada”, no contexto atual dos relacionamentos, relaciona-se, de forma um tanto
pejorativa, a “se abrir” rápido demais e iludir-se com relacionamentos que podem ser
mais rasos e de curta duração. Estar “entregue” e ser levade/o/a pelas emoções, sem
muito discernimento. Entretanto, a linha é tênue entre a definição apresentada e
apenas sentir tudo mais intensamente.

(...) eu sempre fui muito emotivo, vou falar, muito visceral para as coisas e de
uns tempos para cá, você ser emocionade, você ser sentimental, você ser
humano, não ser uma máquina... As pessoas, enfim, tão meio que
marginalizando você ser emocionade. Você está com uma pessoa “pô, tem
um mês de namoro, tá emocionade”. “Tô sim, me encantei, me apaixonei,
nunca aconteceu isso com você não?” Sabe? (TUTI, DC1, 2021).

Digital influencers, conforme Amanda Medeiros Geraldini (2018) alega, são


pessoas que, para além de consumirem informações, também as produzem nas redes
sociais para um grande público que é mobilizado por suas ideias e posicionamentos.
A autora pontua que a confiança gerada e a interação contínua possibilitam que digital
influencers detenham um certo “poder” que pode transformar e alterar a opinião de
seguidores que o/a acompanham. Tuti se afirma como influenciadore e expressa
como se sente em relação às pessoas que lhe acompanham.

E nossa, e foi bom, porque tipo, além das pessoas que começarem a me
seguir, elas me orientaram também, muita coisa que não se conversava sobre
(…) Se eu tenho esse conhecimento que eu tenho, que eu passo para as
outras pessoas, foi porque as pessoas me passaram, sabe? Porque eu faço
o elo da corrente crescer, não “desemenda” (TUTI, DC1, 2021).

Esse apoio mútuo também é evidenciado quando Tuti demonstra o quanto a


troca com outras pessoas no Instagram lhe faz bem em momentos de fragilidade. “Às
vezes eu tô mal pra caramba e abro uma live no Instagram. Aí vêm as pessoas: ‘E aí
Tuti, saudade de você! Faz um personagem!’ Quando eu vejo, já passou toda aquela
preocupação minha” (TUTI, DC2, 2021).
É nesse cenário que Tuti, além de criar uma rede de apoio, também compartilha
conhecimento e traz novos pontos de vista para as pessoas que o seguem, o que
sustenta a hipótese apresentada. Essas seguidoras e seguidores, inclusive, por
gostarem e considerarem-nos relevantes, ampliam o alcance e a visibilidade dos
conteúdos.
134

Um monte de gente fala assim: “Cara, ainda bem que eu vi seus stories!
Minha mãe começou a ver seus stories e agora ela vê as coisas de outro
jeito”, sabe? Que aí você compartilha as coisas dos seus amigos, de outras
pessoas aí... Você traz informação (TUTI, DC1, 2021).

Por meio das redes, Tuti gosta de compartilhar conhecimento sobre cultura,
música e também sobre a Cena Ballroom56, um movimento coletivo artístico e de
militância de grande importância para ele e que o movimenta emocionalmente.
Inclusive, tem vontade de visitar as diferentes balls das regiões brasileiras. No
momento, participa no Rio de Janeiro, o que se relaciona ao indicador da mobilidade
entre locais como possibilidade de ampliar vivências. Durante as dinâmicas
conversacionais, as experiências neste grupo foram constantemente mencionadas e
entendemos, a partir disso, o indicador da Cena Ballroom como constituinte da
subjetividade individual de Tuti acerca da arte, gênero e expressão. Os trechos
a seguir corroboram esse indicador.

(...) a Ballroom fala sobre questões de gênero, sobre sexualidade, sobre


prevenção, entendeu? É uma forma de entretenimento que faz as pessoas
quererem aprender. (...) Não é uma coisa só didática não, sabe? É uma
parada que as pessoas olham, que as pessoas contemplam. (...) “Aquele
menine está vestido do jeito que ele quer e as pessoas estão aplaudindo”,
sabe? (...) “Nossa, caraca! Ganhou prize! Ah não! Eu posso fazer isso”, sabe?
“Ah não! Você pode sim, você deve. Vem cá, vem pro treino!” É isso, é
acolhimento (TUTI, DC1, 2021).

[Ao chegar na Cena Ballroom] Eles falam assim: “Ó, se você se reconhece
enquanto pessoa trans e quer fazer modificações ou tratamentos, não faça
isso sozinhe em casa. Busca psicólogo, busca endócrino. Sozinhe é
perigosíssimo pra sua saúde mental e física”. Depois que eu conheci a Cena
Ballroom, foi abrindo esse leque de construções de gênero para mim. Existem
vários espectros dentro da construção de gênero. Aí que eu fui vendo que era
ali que eu me encaixava, onde me sentia representade. Sou não binárie. Eu
ficava me achando um ET. Mas é isso, eu não sou diferente de ninguém não,
só não conseguia me achar (TUTI, DC2, 2021).

De certa forma, Tuti reflete a Cena Ballroom em suas ações. Propõe-se a ser
acolhimento, a promover entretenimento, a disseminar informações de forma lúdica e
a compartilhar arte. Foi ao conhecer a Cena Ballroom e a dança Vogue57 que Tuti
parou de sentir-se “esse E.T., extraterrestre” (TUTI, DC1, 2021). Encontrou pessoas

56
Ver: https://houseofraabe.alboompro.com/post/46681-culturaballroom
57
Dança com poses glamurosas inspiradas na revista Vogue. Em 1980, em Nova York, as minorias
marginalizadas de afro-americanos e latinos faziam as poses da dança em bailes (Ballroons). Em 1990,
Madonna lança a música Vogue e expande a visibilidade dessa cultura dos guetos nova-iorquinos. A
série Pose, da FX, retrata essa realidade. Também sobre a temática, na HBO Max é exibido o reality
show Legendary, de competição de Voguing.
135

que pensavam de maneira mais próxima ao que entendia sobre si mesme e sobre o
mundo. Entretanto, apesar de Tuti afirmar que a Cena Ballroom é um lugar de
acolhimento, houve um episódio em que isso foi colocado em questão ao perceber
que algumas discussões estavam acontecendo e as pessoas estavam
desentendendo-se. Ele avisou às mothers58 e fathers que pretendia deixar o grupo,
uma vez que o objetivo inicial não estava sendo cumprido e exigências desmedidas
em relação a como cada pessoa decidia expressar-se estavam sendo feitas, não
somente a pessoas não bináries, mas também a pessoas em início de transição.
Aquilo chateou Tuti profundamente e, depois de uma reflexão feita em grupo a esse
respeito, as pessoas que estavam fazendo esses apontamentos e exigências
perceberam como isso poderia ser prejudicial e mudaram de comportamento.
Outro ponto comentado nas dinâmicas conversacionais foi sobre transição.
Transicionar, para Tuti, é algo que se inicia a partir do momento em que a pessoa
passa a enxergar-se enquanto trans, o que pode, segundo ele, acontecer em qualquer
fase da vida. “Começa antes mesmo da primeira agulhada. Começa na mente. O
primeiro o processo da transição é mental, depois ele vai para o aspecto físico da
pessoa” (TUTI, DC1, 2021). Ele também diz que o aspecto físico é igualmente
variável. Nem sempre as pessoas querem ou podem realizar procedimentos cirúrgicos
ou hormonais. No caso de Tuti, ele afirma que a sua transição é feita durante a vida
inteira, constantemente. Elencamos aqui o indicador de transição de gênero
contínua, sustentado também pelos questionamentos que Tuti faz na infância e
adolescência, além de como refere-se a si mesmo ao olhar-se no espelho e
reconhecer-se enquanto pessoa não binária.
Algo que incomoda muito Tuti é o que ele chama de “passabilidade tóxica”,
quando são exigidos determinados procedimentos para alguém que está começando
a entender-se enquanto trans ou que não sente necessidade de modificações
corporais. Pontua, por exemplo, que cada pessoa carrega um fardo e está inserida
em um contexto e que determinadas exigências podem contribuir para a invalidação
de algumas identidades trans, principalmente não bináries.

Eu conheço muitas mulheres trans que me ajudaram muito, mas elas têm
isso: “Ai, Tuti, quando você vai começar a sua hormonização para eu te ver
de barba? Você vai ficar muito gostoso de barba”. Como se sem barba eu já

58
“(...) as pessoas na house são majoritariamente pessoas negras ou descendentes de indígenas ou
pessoas que tenham essas ancestralidades” (TUTI, DC1, 2021).
136

não fosse muito gostoso, pelo amor de Deus! (risos) Eu sou linde! Elas
querem me ver de barba, então ficam com essa passabilidade tóxica pra eu
ter essa vontade que elas têm de me ver de barba (TUTI, DC2, 2021).

(...) Por exemplo, uma mulher trans se descobrir trans agora. Algumas
mulheres trans vão começar a apontar: “Tira essa barba” e a pessoa às vezes
não tem dinheiro para fazer uma depilação a laser pra tirar a barba. Isso é
exigência de passabilidade tóxica. (TUTI, DC2, 2021).

Algumas pessoas, segundo ele, gostariam de hormonizar-se, mas por motivos


de saúde, não o fazem. No caso específico de Tuti, sua mãe e avó possuem
problemas hormonais, então ele prefere não se expor ao risco de possíveis
problemas. Além disso, sente que a distribuição de hormônios em seu corpo torna-o
uma pessoa mais “neutra” ou “fluida” naturalmente, com a presença de um pomo de
Adão e uma voz mais grave sem que tenha realizado procedimentos. Sendo assim,
não sente tanta necessidade de mudanças hormonais. O único fator que lhe
incomoda, desde que começou a desenvolver-se, são os seios e, no momento em
que esta pesquisa está sendo escrita, ele divulgou em suas redes uma vaquinha para
realizar a cirurgia de mastectomia. Tuti conta, inclusive, que já ficou esperando pelo
SUS por uma cirurgia para redução de seio, a mamoplastia redutora, mas a espera
foi muito longa, então, acabou desistindo. Isso está relacionado ao indicador de
transição de gênero contínua.
Foi perguntado também a Tuti se existiria uma forma de passabilidade “não
tóxica”. Ele respondeu que a passabilidade é algo que existe por haver pessoas trans
que, somente “de olhar”, poder-se-ia dizer que é uma pessoa cis. Ou seja, se uma
pessoa não quiser mencionar que é uma pessoa trans, é possível que outros
indivíduos não o saibam. O problema passa a existir quando essa passabilidade é
exigida ou feitos apontamentos para que as pessoas atinjam um determinado nível
que talvez não queiram ou não possam a depender da sua realidade, considerando
vontades, acesso à saúde e condições financeiras principalmente.
Tuti lembra-se do dia em que falou publicamente sobre ser uma pessoa não
binária. Foi após uma mini ball, depois de ter sido realizada, conforme o costume, uma
roda de conversa, falas sobre prevenção, orientações sobre gênero e sobre a história
do movimento. Quando foi aberto um momento para discutir-se sobre outras vertentes
e o assunto foi sobre pessoas trans na Cena Ballroom, Tuti se expressou:

E fui eu que falei! O pessoal fala assim: “Ah eu gosto de você, porque você
joga as pautas que ninguém tem coragem de jogar” (...) Aí foi ali que eu me
137

declarei como trans não binárie. Eu sou uma pessoa não binárie, só não sabia
nomear isso. Aí nesse dia eu joguei para o mundo, no dia da minha
nomeação. Tem 1 ano...1 ano ontem fez exatamente! Caraca! (TUTI, DC1,
2021)

Esse trecho remete a dois indicadores já elencados: indicador de vivências


de fluidez de gênero anteriores à sua nomeação como uma vivência não binária
e indicador da Cena Ballroom como constituinte da subjetividade individual de
Tuti acerca da arte, gênero e expressão, tendo em vista que, nesse espaço, sentiu-
se confortável e com coragem suficiente para conversar sobre sua identidade de
gênero.
Com isso, trazemos o indicador da importância das grupalidades e espaços
de acolhimento, tais quais sejam comunidades, coletivos, família e demais grupos
onde seja possível falar, aprender, conversar e ser contemplade/o/a em suas
vivências simbólico-emocionais. Tuti considera-se como uma pessoa de sorte por
sentir apoio e amor dentro de suas famílias, como ele mesmo as chama. A família
nuclear e a família Ballroom. Reconhece que essa não é a realidade para a maioria
das pessoas trans e salienta a importância da busca por lugares em que as pessoas
sintam-se contempladas.

E é por isso que as pessoas têm que procurar pessoas que, no caso da
comunidade, pessoas que te contemplam, para você não se sentir, como
fala? Marginalizado por ser quem você é, não sentir diferentão, um monstro.
Não é, a gente não é, não somos! Só somos fora do padrão, sabe? Que estão
acostumados, mas não quer dizer que ser fora do padrão é anormal. Não é
anormal, sabe? Enfim, eu brinco que a gente veio da colônia espiritual
diferente, aí a gente veio nos tempos diferentes, não sei, não se sabe (TUTI,
DC1, 2021).

Esse trecho remete ao indicador de explicações místicas e espirituais


relacionadas à fluidez de gênero e ao indicador de acolhimento às diferenças.
Ele sente que seu lado artístico foi o que mais o “abraçou” quando precisou. Percebe
que no meio artístico encontra mais liberdade para ser quem é e expressar-se. Ele
mesmo criou seu nome a partir da junção dos sobrenomes com o intuito de ser um
nome artístico e neutro. Depois, conforme as pessoas passaram a chamá-lo por ele,
percebeu o quanto gostava e manteve-o como nome social. Na dinâmica
conversacional em grupo, Tuti estava entusiasmade e radiante, pois logo buscaria sua
nova identidade. Durante a videochamada, foi buscar o papel para que pudéssemos
ver o requerimento e estava emocionade porque logo poderia assinar com seu nome.
138

Apesar disso, não se sente desconfortável com o nome de registro e, quando vai na
casa de familiares, eles ainda o chamam de Luana (nome fictício), mais um indicador
de sentidos subjetivos de conforto e bem-estar com a fluidez de gênero.
No lugar de comunicadore, Tuti enfatiza a importância da representatividade,
algo que ele considera faltar quando se trata de pessoas não binárias. Assumindo
essa falta, propõe-se a produzir conteúdo, tomar este lugar, construir novas vias e
expor publicamente sua identidade e opiniões como uma forma de mostrar que outras
pessoas como ele também podem chegar até ali, ou pelo menos percebê-lo como um
espaço possível de existência.

(...) e se tá faltando, vamos ser a representatividade, porque eu não quero


que essa nova geração sofra o que eu sofri. Sabe? Demore a se enxergar no
mundo, saber seu papel sociopolítico ali na comunidade que você pertence
ou no meio que você pertence (TUTI, DC2, 2021).

O que que eu fiz de bom para a humanidade? Não que todo mundo tenha
que ter esse encargo... O que que eu fiz? Fui gente boa pra todo mundo que
convivi, sabe? Entendeu? Tenho que passar o bem pra todo mundo que eu
convivi (TUTI, DC1, 2021).

No ato de acolher, Tuti expõe a si, a sua identidade, o seu ser. Um movimento
dialético concreto nas vias da subjetividade individual e social. A isso nomeamos como
indicador de acolhimento como via de expressão de si. Ao mesmo tempo que
reconhece a responsabilidade social envolvida no processo, tanto no sentido de fazer
algo bom que acrescente na vida de outras pessoas e na sua própria quanto entender
que as pessoas são em grande medida influenciadas por outres/os/as pelas quais
sentem-se representadas. Entende que, a partir do momento que alguém se propõe
a representar algo, deve considerar que possivelmente suas ideias e comportamentos
serão reproduzidos em escalas para além de seu próprio controle.

(...) Se você for uma pessoa tóxica, aquelas 11.000 pessoas que estavam no
seu Instagram vão ser tipo “Maria vai com as outras”. Você prega ali. Você é
um pastor e as ovelhinhas são seus seguidores. Então, se você quer melhorar
o mundo, começa a melhorar de dentro pra fora, porque as pessoas vão
pegar e te imitar. Real, as pessoas vão te imitar (TUTI, DC1, 2021).

“A gente veio para cá para evoluir e esquecemos de evoluir” (TUTI, DC1, 2021).
Tuti reconhece que essa evolução é alcançada por meio da responsabilidade social,
exercendo um papel político e reconhecendo-se enquanto parte da sociedade, com
139

possibilidades de contribuir para que ela se modifique. A utopia de Tuti para um mundo
melhor, inclusive, está relacionada à politização do movimento LGBTQIA+, para que
as pessoas aprendam sobre seus direitos e deveres. “Eu tenho que perguntar pra mim
qual é meu papel sociopolítico sendo uma pessoa trans não binária. O que que eu tô
fazendo por isso?” (TUTI, DCG, 2021). Em um determinado momento da primeira
dinâmica conversacional, ele pontua o que estamos vivendo neste período de
pandemia e demonstra vontade de deixar algo bom, uma espécie de legado para as
próximas gerações.

Se realmente tudo acabar, se não existir vacina, se no final todo mundo fosse
se findar, eu tenho mais uns 2 anos, 6 meses aí de passagem nesse planeta,
nesse plano... Qual que é a minha história que vai ficar para trás? As pessoas
vão conhecer que Tuti? O melhor lado de Tuti tá só para mim. Que egoísmo
é esse? E eu que tanto falo de compartilhar o que a gente sente... Não! Estou
sendo hipócrita comigo mesme, sabe? (TUTI, DC1, 2021)

Apesar de Tuti demonstrar tranquilidade e leveza ao falar sobre


representatividade e responsabilidade social/política, afirma que já sentiu medo ao
expressar quem é, além do medo da exposição, principalmente através de suas
músicas. É, inclusive, por meio delas que ele sente que consegue expressar-se. “Me
expressar de verdade é eu produzir as minhas músicas, eu escrever as minhas
músicas” (TUTI, DC1, 2021). Quando fizemos a dinâmica conversacional em grupo e
a proposta foi um Slam sobre identidade, Tuti apresentou-nos uma composição
própria. Ele pediu que ela não fosse disponibilizada na pesquisa. Era uma música
sobre o amor e a insanidade que ele provoca quando estamos apaixonades/os/as.
Tuti salientou, na ocasião, que pretendia refazer a música e deixá-la mais atual de
acordo com o que sente hoje, modificando a letra para linguagem neutra.

Então eu acho que de uns anos pra cá as pessoas tão com medo dessa
exposição também, esse medo do cancelamento né, com medo de expressar
o que são de verdade e isso acabou atingindo o meu lado artístico né...
Escrevo muito, componho muito, mas não boto para fora com medo do que
é que vão pensar e, caramba, sinceramente, ninguém me dá um real pra
comprar um pão. Entendeu? Tô nem aí. É isso agora, eu vou botar mesmo
pra fora, é isso, escutem. Eu tenho esse lado aqui (TUTI, DC1, 2021).

Com essas informações chegamos ao indicador do processo contraditório


de se expor e não se expor. Contradições das ações e emoções na subjetividade
individual e na subjetividade social. Age, expõe, expressa, mas há temor. Por meio
140

deste processo contraditório, Tuti alude ao medo de o que as pessoas vão pensar e,
mesmo tendo afirmado que não estaria “nem aí”, comentou durante as dinâmicas
conversacionais que, quando se deparou com a apreciação das pessoas em relação
às suas composições - e que eram dadas opiniões positivas mais ou menos parecidas
- ele sentiu que seria o momento de deixá-las públicas. Com isso, identificamos a
importância do feedback do público para que Tuti continue a expor cada vez mais as
suas canções. Ao mesmo tempo que sente também limitações no que diz respeito aos
equipamentos de que dispõe para gravação e reprodução audiovisual.
Tuti é artista. Ele acredita que a arte tem potencial de abrir debates, promover
cultura e disseminar pautas. Ao mesmo tempo que, na realidade brasileira, frisa as
dificuldades relacionadas à marginalização da arte e ao acesso no interior.

(...) A arte tem tudo pra isso! Não só pra essa pauta de gênero e sexualidade.
A arte tem o poder de salvar, mover montanhas, mover o mundo. Só que a
arte é marginalizada, então, como que as pessoas vão dar credibilidade a um
movimento marginalizado? Qualquer artista é marginalizado, infelizmente.
Porque existe esse preconceito cultural, pelo menos aqui no Brasil (...) Artista
é vagabundo, artista não quer nada da vida. Mal sabe o “corre” pra conseguir
um edital, pra conseguir dinheiro, pra conseguir se produzir para o edital.
Essas pessoas veem o artista quando já está estourado e aí pensa que é só
aquilo, por isso muitas pessoas não dão credibilidade (...) Normalmente os
artistas estão no subúrbio, na periferia, no interior. Eu, por exemplo, tive que
correr atrás de ter aula de canto, de dança, de teatro. É difícil ter acesso no
interior (TUTI, DC2, 2021).

Tuti percebeu, durante a pandemia, que somente de arte não conseguiria


manter-se financeiramente e foi aí que procurou o curso para ser Bombeire Civil,
considerando seu interesse pela área da saúde. Algo que também lhe interessou foi
o fato de que a empresa na qual ele fez o curso acompanha as gravações no Projac,
o centro de produção televisiva da Rede Globo. Então, mesmo que de forma indireta,
estaria inseride em um contexto artístico.
Uma hipótese é de que a forma afetuosa, bem-humorada, preocupada e
atenciosa com que Tuti lida com os relacionamentos desde a infância, com
acolhimento às diferenças - e sendo esse acolhimento via de expressão de si -
refletiria também nas profissões que exerce tanto como artista, influenciadore quanto
como Bombeire Civil, considerando que essa última profissão envolve, de acordo com
Tuti, a área de segurança do trabalho e também trabalho de socorrista, o que remete
ao cuidado e zelo. Ele se propõe a possibilitar espaços de acolhimento.
141

Outro exemplo da disponibilidade afetiva de Tuti deu-se durante a segunda


dinâmica conversacional, quando ele viajou para sua cidade natal para cuidar da mãe
que foi operada e precisava de auxílio. Mesmo assim, optou por manter a
videochamada que havíamos marcado e, para que fosse possível realizá-la,
interrompemos algumas vezes nossa conversa a fim de que Tuti pudesse prestar
ajuda, como levar sua mãe ao banheiro e arrumar a cama para que ela pudesse
descansar.
A forma como Tuti se comunica é bem particular, humorada e descontraída.
Pudemos perceber essas características presentes em sua infância, quando defendia
pessoas mais vulneráveis, quando comunicava-se com a família e mesmo
recentemente, conforme sua atividade nas redes como influenciadore. Isso ficou nítido
no próprio contato com a pesquisadora durante as dinâmicas conversacionais e com
as outras pessoas participantes, ao nos reunirmos em grupo. Um recorte do último
encontro foi feito para exemplificar o bom humor, acolhimento e alto astral de Tuti:

Adiciona a gente no Instagram Amanda [pesquisadora]! (risos) É isso, foi tudo


muito lindo, vocês falaram tudo. (...) A Amanda chegou com o maior jeitinho,
tipo aqueles cachorrinhos que você tá lá na praça, olhando os pombinhos,
olhando pro céu aí chega o cachorrinho: “Deixa eu entrar na sua vida?” Aí
você adota, leva pra casa. E chega, tipo: “Deixa eu fazer parte da sua vida
durante um ano” e é isso, segue a gente no Instagram, mantém contato,
vamos conversar! Quando você vier pro Rio, vamos tomar uma cerveja, tomar
um mate (risos) e é isso (TUTI, DCG, 2021).

Esse também é um exemplo do envolvimento emocional de Tuti com sua


participação na pesquisa e a criação de um vínculo estabelecido durante os contatos
que tivemos, o que se relaciona diretamente com a base teórico-metodológica aqui
proposta. Essa forma de comunicação, de acordo com a sua experiência de vida,
muda a percepção das pessoas em relação aos assuntos. E foi possível, enquanto
pesquisadora, também sentir, por meio do nosso contato, esta mudança de
percepção. Na segunda dinâmica conversacional foi feita uma pergunta sobre como
ele falaria sobre a não binariedade para alguém que não conhecesse sobre.
Respondeu:

Eu usaria desse tom de humor que eu tenho pra não fazer graça, mas pra
deixar a pessoa à vontade para eu entrar no assunto. E esse é meu jeito que
ri, faz piada e blá, blá, blá, faz a pessoa fantasiar na mente e entender. Porque
se eu chegar aqui e falar: “Não, porque é isso, você tem que me escutar e
bábábá”... Eu falo: “Gente, eu só sou gente”. Aí a pessoa já ri, isso traz
142

endorfina para o cérebro, que faz a pessoa prestar mais atenção naquilo que
você está falando e faz a empatia agir junto… Não sei que que é, só sei que
esse jeito dá certo. Não sei te explicar cientificamente, mas que dá certo, dá
certo (risos) (TUTI, DC2, 2021).

Esse trecho sustenta os indicadores de acolhimento como via de expressão de


si, conforto e bem-estar com a fluidez de gênero e vivências de fluidez de gênero
anteriores à sua nomeação como uma vivência não binária.
Tuti, olhar caleidoscópico, acolhedore, como em um jogo de espelhos
angulares, fluidos, diferentes vozes, diferentes olhares, diferentes contextos,
diferentes tempos, diferentes espaços, diferentes cenas, diferentes expressões,
reflete uma variedade de combinações que, ora se aproximam, ora se distanciam,
projetando o movimento de reflexão “sobre-vivências”, relações, sentimentos,
gêneros, se é que caleidoscópio requer gênero.

Os indicadores elencados foram:

● Sentidos subjetivos relacionados ao incômodo com padrões de gênero;


● Acolhimento às diferenças;
● Explicações místicas e espirituais relacionadas à fluidez de gênero;
● Sentidos subjetivos de conforto e bem-estar com a fluidez de gênero;
● Vivências de fluidez de gênero anteriores à sua nomeação como uma vivência
não binária;
● Mobilidade entre locais como possibilidade de ampliar vivências;
● Cena Ballroom como constituinte da subjetividade individual de Tuti acerca da
arte, gênero e expressão;
● Transição de gênero contínua;
● Importância das grupalidades e espaços de acolhimento;
● Acolhimento como via de expressão de si.

Por meio da articulação desses indicadores, foi possível a elaboração das


seguintes hipóteses:

● Tuti, por meio da comunicação e formação educativa de outras pessoas,


encontra vias de possibilitar sua própria existência e também salvar outras
vidas, seja literalmente, considerando as altas taxas de suicídio entre a
143

população LGBTQIA+, seja proporcionando um espaço acolhedor em que


possam ser elas mesmas;
● A forma afetuosa, bem-humorada, preocupada e atenciosa com que Tuti lida
com os relacionamentos desde a infância, com acolhimento às diferenças, e
sendo esse acolhimento via de expressão de si, reflete-se também nas
profissões que exerce tanto como artista, influenciadore quanto como
Bombeire Civil, considerando que essa última profissão envolve, de acordo
com Tuti, a área de segurança do trabalho e também trabalho de socorrista, o
que remete ao cuidado e zelo. Ele propõe-se a possibilitar espaços de
acolhimento.
144
145

6.1.4 EM BUSCA DO MUNDO: KAFKA

“Eu sempre quis ganhar o mundo”. Kafka diz isso colocando peso nas palavras,
emocionalmente implicado em um sonho que se relaciona com a liberdade, com a
possibilidade de explorar novos lugares, novas sensações, culturas, contatos,
conexões e realidades. Sua busca por vezes encontra dificuldades e obstáculos, mas
isso não o impede de - mesmo em alguns momentos não acreditando - tentar, testar
e se implicar no que quer conquistar.

Kafka, 24 anos, não binário transmasculino, utiliza pronomes neutros e


masculinos, demissexual, panromântico59 e não monogâmico60, classe baixa, não
soube autodeclarar-se em relação à raça/etnia. Nasceu em uma cidade de São Paulo
e criou-se em uma cidade na Paraíba. Desde 2016 mora no Rio de Janeiro - RJ com
o objetivo de estudar. Pretende permanecer na cidade e não tem intenção de retornar
à sua cidade natal. Possui Ensino Superior incompleto. Está cursando Defesa e
Gestão Estratégica Internacional e curso profissionalizante de doulagem. Trabalha
com bicos/freelances de formatação de textos, redator, entre outras coisas. Mora com
um amigo. É membro de um coletivo trans e faz parte da equipe de comunicação.

59
Atração romântica por pessoas, independente de gênero.
60
Não monogamia: outra forma de pensar e vivenciar os relacionamentos para além da monogamia.
Leitura sugerida sobre a temática: TAKAZAKI, Silmara; TAVARES, Jessica; NÚÑEZ, Geni. (orgs.) Não
Monogamia LGBT+: pensamento e artes livres. Rio de Janeiro: Ape’ku, 2020.
146

A infância de Kafka foi marcada pela sensação de ser diferente das outras
crianças. “Eu sempre fui uma pessoa diferentona. Sabe aquelas pessoas diferentes
que sofrem bullying na escola? Os estereótipos, assim. Eu sempre li, sempre gostei
de ler, essa coisa meio emo/gótico da coisa” (KAFKA, DC2, 2021). Quando mais novo,
pegava as roupas e pertences do irmão e a mãe brigava com ele por essa razão.
Ele morava em uma casa atrás da casa da avó - que também fez parte de sua
criação, juntamente à mãe - e ao lado do tio. Convivia com os primos, sendo a maioria
primos do que primas. Também tem uma tia que tem seis filhos homens e, ao observá-
los, Kafka percebia que queria crescer mais como eles do que da forma como as
primas cresciam. Nesse momento, Kafka ainda não havia passado pela puberdade e,
quando via esse momento chegando para os primos homens, sentia vontade de que
fosse assim com ele também. Ele queria ser igual aos meninos com os quais tinha
amizade, aos meninos da cidade. Entretanto, não totalmente parecido, uma vez que
os achava “muito héteros e machistas” (KAFKA, DC1, 2021). Queria a aparência.
No Ensino Médio, tinha mais amizade com gays e não conseguia, por mais que
tentasse, fazer parte do grupo das meninas lésbicas. Ele conta que era um tabu a
questão da orientação sexual e aquele era um momento de muitas dúvidas entre os/as
estudantes. Uma menina apaixonou-se por Kafka e, por não aceitar o sentimento, ele
acabou se afastando. Kafka diz que nunca teve liberdade para falar sobre o assunto.

Quando eu resolvi falar que eu era bi, aí um menino falou assim: “É... uma
bicha conhece a outra” (risos). (...) O Ensino Médio foi bem conturbado nesse
sentido. Eu andava mais com as pessoas mais estranhas, tipo rockeiras e
nerds e por muito tempo eu fiquei sozinho. Comecei a fazer amizade com
outras turmas, com pessoas mais “comuns” assim, porque eles se afastaram
de mim. Muitas vezes eu ficava só, tipo, lendo livro sozinho e tal (KAFKA,
DC1, 2021).

Onde morava, Kafka não encontrava muitas referências de pessoas como ele.
Atribui isso a estar em uma cidade pequena que, portanto, teria menos acesso ao
assunto. Quando via casais de lésbicas e gays - podendo também ser bissexuais ou
pansexuais - normalmente não era algo publicamente “assumido”. Por mais que as
pessoas soubessem, não se tocava no assunto.

E tinha um casal também que era assumido realmente porque tinha um


menino que era assumido, mas ele planejava ser padre, então ele falava que
até o seminário ele ia fazer as coisas e depois não. E que o namorado dele
tinha um irmão mais velho que era assumido já, casado com homem, então,
tipo assim, já era mais fácil se assumir, mas assim, tinha poucas referências.
147

Tinha uma moça que tinha uma academia, então ela era tipo a referência de
sapatona na cidade, porque ela era assumida, tinha uma academia, era, tipo,
“masculina”. (...) Eu lembro que passava por um bairro que tinha muita, tipo,
casa de prostituição (...) tinha umas travestis, mas eu não tinha amizade com
elas, e não tinha como acessar pra ter uma amizade com elas (KAFKA, DC1,
2021).

Com essas informações, chegamos ao indicador de aproximação estética


das masculinidades, uma vez que Kafka identifica-se com elementos que são
socialmente compreendidos como masculinos, mas desaprova e sente-se
desconfortável com reproduções de comportamentos machistas e homofóbicos que
acabam compondo uma socialização masculina. Além disso, também foi elencado o
indicador de sentidos subjetivos relacionados à solidão de sentir-se diferente,
neste caso, não somente no que tange ao gênero, mas também a seus gostos e
interesses.
A igreja católica também faz parte desse momento da vida de Kafka. Ele conta
que, no início, as pessoas achavam que ele não iria enturmar-se e que provavelmente
estava lá obrigado pelos pais, mas ele conta que, diferente disso, considerava-se uma
pessoa bem religiosa e fez várias amizades, inclusive pessoas LGBTI+, apesar de
não se falar sobre isso.

Eu era muito avançado em relação à minha família. Fui um dos primeiros a


ser mais desconstruído lá. Hoje em dia, com a internet está diferente. Eu era
mais pra frente, mas nem sempre eu fui assim. Quando eu descobri que
gostava de meninas e meninos, achava que era pecado. Eu sempre fui muito
católico. E foi uma longa desconstrução (KAFKA, DC2, 2021).

O “não falar sobre” a que Kafka faz referência algumas vezes, como acontecia
no colégio e na igreja, é, para nós, um indicador do silenciamento frente a
questões sobre identidade de gênero e orientação sexual, relacionado
diretamente ao tabu social e ao preconceito presentes na subjetividade social sobre
diversidade sexual e de gênero.
Um tempo depois, foi morar em São Paulo com as tias. Conta que elas eram
muito conservadoras e tinham medo de que, se algo acontecesse com Kafka, seria
responsabilidade delas. Neste sentido, naquele local ele sentia que não tinha
liberdade. Por outro lado, encontrava um espaço mais acolhedor e seguro ao
conversar com a prima, que atualmente tem uma namorada, mas não é “assumida”.
Além da prima, que é uma pessoa mais introspectiva e ficava mais em casa, Kafka
acabou não tendo muitos contatos. Fez amizade com as duas vizinhas, uma que não
148

saía de casa e somente saía com o namorado e outra que era muito nova. Com isso,
Kafka não costumava sair e passou a utilizar mais a internet para entreter-se e buscar
conhecimento.
O contato com a prima e com os grupos de que se aproximava no Ensino
Médio, leva-nos ao indicador de busca de acolhimento por grupos e pessoas
LGBTI+, sendo que, por meio da identificação com essas pessoas e grupos,
alcançaria maior liberdade, um desejo que aparece quando Kafka se expressa sobre
mudanças de cidade e pertencimento a grupos, além de sua vontade de vivenciar o
mundo, conforme veremos mais a seguir.
Kafka comentou que no Facebook tinha uma conta com o novo nome e seu
irmão a viu. “Eu lembro que o meu irmão viu uma vez e falou ‘Kafka’? Eu disse ‘sim’
e ele ‘então, tá’” (KAFKA, DC1, 2021). Ele conta que o irmão nunca foi muito engajado
em aprender sobre identidade de gênero ou orientação sexual, mas também nunca o
rejeitou nem falou nada para a mãe sobre o nome no Facebook. Kafka conta que teve
vários namoros virtuais porque na cidade onde morava não encontrava muitas
pessoas parecidas com ele e, além disso, era mais fácil de esconder dos pais e das
demais pessoas. Aqui, elencamos o indicador da internet como possibilidade de
vivenciar a identidade de gênero e orientação sexual. Quando se relacionou com
uma menina dessa forma, lembra de um episódio em que o irmão o provocara com o
intuito de ver a reação da mãe:

Eu tinha uma namorada online, virtual. Ela morava em Taiwan, gringa. Ela
era enfermeira. Aí o meu irmão falava: “Olha, tem um monte de foto dessa
enfermeira no celular”. E a minha mãe também era enfermeira (risos). Então,
era esse tipo de coisa que ele soltava e a minha mãe, tipo, “tudo bem". E aí
algumas coisas assim ela já ia aceitando. Uma vez eu fui sair com as minhas
amigas e a gente não precisava muito de dinheiro, porque a gente se juntava
e tal. Dessa vez, eu me arrumei muito, pedi dinheiro e ela me deu bastante
dinheiro, então ela sabia que tinha alguma coisa rolando. Então, com o
tempo, ela foi aceitando mais. Só que ela não queria que eu falasse pras
pessoas. Teve um dia que eu falei para ela, mas ela não queria que eu falasse
para as pessoas. Tudo bem, só se fosse escondido (KAFKA, DC2, 2021).

Esse trecho e a narrativa de Kafka sobre conseguir esconder determinadas


questões dos pais por meio da virtualidade, corroboram o indicador do
silenciamento frente a questões sobre identidade de gênero e orientação sexual.
Por mais que, conforme aponta, a sua mãe fosse gradualmente “aceitando”, o receio
dela estava relacionado ao medo de o que as pessoas poderiam falar, que tipos de
julgamentos fariam na cidade e o que diriam sobre a família, de acordo com Kafka.
149

Para ele, conversar sobre orientação sexual e identidade de gênero com a mãe foi um
processo bem mais gradual e dificultoso do que com seu pai. Por não ter uma relação
tão próxima e o pai morar longe, Kafka falou como ele antes sobre como sentia-se e
identificava-se. Ele comenta que o pai é uma pessoa “bem liberal” e que,
principalmente em função da distância e não proximidade/intimidade, caso o pai não
aceitasse de alguma forma, aquilo não o afetaria.
A primeira vez que beijou uma menina foi quando se mudou para o Rio de
Janeiro. Apesar de ter tido pequenos romances, nunca havia se relacionado dessa
forma com uma menina. Também foi no Rio que teve um relacionamento com uma
pessoa transfeminina. “Os homens trans têm muito disso, de ficar com uma menina e
acabar entrando na comunidade lésbica e aí, depois, se encontrar trans” (KAFKA,
DC2, 2021). Ele também afirma que: “A minha história na transmasculinidade é meio
enrolada, assim” (KAFKA, DC2, 2021). Conforme Kafka fala de seus movimentos de
descoberta, é possível perceber como questões de orientação sexual e identidade de
gênero entrelaçam-se e, por vezes, confundem-se.
No Rio, Kafka tinha uma conta no Instagram já com seu nome - o que sustenta
o indicador da internet como possibilidade de vivenciar a identidade de gênero
e orientação sexual - e existia a possibilidade de encontrar o Instagram das pessoas
por meio do número de celular. Nesse ínterim, sua tia encontrou-o e enviou uma
mensagem. Ele, por sua vez, sentiu-se desconfiado e disse que não usava mais
aquele user. Mesmo assim, a tia levou a questão ao grupo de WhatsApp da família e
mostrou o celular para a avó de Kafka.

Aí minha avó falou assim: “Não tô vendo nada demais aí”. Tipo: “Qual o
ponto? Nome de homem? Nada demais”. Ela aceitou que nem meu irmão.
Ainda fala algumas coisas assim, da idade, mas ela soube lidar mil vezes
melhor do que a minha mãe. Minha mãe ficou destruída. Aí minha mãe veio
me falar porque tinham falado pra ela. Eu falei que é isso mesmo, perguntei
se ela nunca desconfiou. Foi um processo bem doloroso nas duas vezes.
Quando eu falei que era bi e depois quando eu falei que era trans. E depois
foi repercutindo na família (KAFKA, DC2, 2021).

Diante desse cenário, Kafka sentiu como se houvesse sido “tirado do armário”.
Isso, na família, não aconteceu somente com ele. Também a prima de segundo grau
por parte de mãe, que namorava outra menina, teve que lidar em seu núcleo familiar
com a exposição e a não aceitação. A mãe dessa prima “(...) queria matar a namorada
da menina, não lembro bem se é namorada ou esposa. Ficaram bastante tempo no
150

relacionamento, mas a mãe não aceitou” (KAFKA, DC2, 2021). Hoje em dia, ele não
tem mais contato com a prima e não sabe para onde a história se direcionou. Outra
prima de Kafka, bissexual, indignou-se com o que estava acontecendo e disse para
ele que tiraria do Facebook todas as pessoas que não o aceitaram na família, o que
corrobora o indicador de busca de acolhimento por grupos e pessoas LGBTI+.
Frente aos questionamentos e ideias equivocadas de sua mãe sobre as
questões trans, Kafka procurou oferecer recursos para que ela pudesse compreendê-
lo melhor. Deu a ela um livro sobre questões LGBTI+ e mostrou alguns vídeos pois
sabia que, mesmo tendo posturas conservadoras, sua mãe é, ao mesmo tempo, uma
pessoa aberta ao diálogo. Já seu irmão, perante esse contexto, passou a chamar
Kafka não mais pelo nome de registro, mas por um apelido que criou, além de ainda
utilizar os pronomes femininos. Kafka diz que o irmão tenta “respeitar um pouco do
jeito dele” (KAFKA, DC2, 2021).
A avó buscou conversar com Kafka e disse-lhe que teve um irmão que foi criado
pela irmã, como se fosse um sobrinho e irmão ao mesmo tempo - ele já é falecido e
Kafka conheceu-o quando era adolescente. A avó contou-lhe que esse tio era gay e
poliamorista61. Ele era casado com dois homens e havia adotado um menino. Para
Kafka, é um grande exemplo LGBTI+ na família. Ele afirma que sabe que alguns
primos e primas são LGBTI+, mas não se fala muito sobre o assunto, o que se conecta
ao indicador do silenciamento frente a questões sobre identidade de gênero e
orientação sexual.
Hoje em dia, Kafka namora uma pessoa não binária que se identifica com o
gênero neutro ou masculino, mas foi designada como homem ao nascer,
diferentemente de Kafka. Então, para a família dele, o relacionamento é com um
homem cis. A partir disso, a avó entendeu que Kafka havia deixado de ser trans.
“Umas coisas assim que eles ficam confusos” (KAFKA, DC2, 2021). Confusões como
essas são reflexo da lógica cisheteronormativa, uma vez que é esperado que as
relações sejam sempre heterossexuais. Então, neste caso, se Kafka mantém um

61
“O poliamor, ou seja, muitos amores, como modo de vida defende a possibilidade de estar envolvido
em relações íntimas e profundas com várias pessoas ao mesmo tempo, no mesmo nível de importância.
No poliamor uma pessoa pode amar seu parceiro fixo e amar também pessoas com quem tem
relacionamentos extraconjugais ou até mesmo ter relacionamentos amorosos múltiplos em que há
sentimento de amor recíproco entre todas as partes envolvidas” (LINS, 2017, p. 166). LINS, Regina
Navarro. Novas formas de amar. Editora Planeta do Brasil, 2017.
151

relacionamento com um homem - na leitura feita pela avó – consequentemente ele


precisaria ser uma mulher para que faça sentido nessa lógica.
Quando Kafka refere-se à sua orientação sexual, sente que se aproxima mais
da pansexualidade por sentir-se atraído por pessoas, independentemente do gênero.
Afirma que, caso ele não fosse uma pessoa não binária, talvez se sentisse mais
confortável com o termo “bi”.

Não é porque eu acho que as pessoas bis sejam transfóbicas nem nada, acho
que elas podem se relacionar e sentir atração por pessoas não binárias
também, mas o termo em si me incomoda, porque fica parecendo que são
dois, também. Então eu, Kafka, não me sinto confortável e prefiro o termo
pan, que é “todos” (KAFKA, DC2, 2021).

Kafka também se identifica como demissexual, não sentindo atração por


pessoas que não conhece ou com quem tenha alguma relação estabelecida. Na
época em que passou a compreender-se assim, envolvia-se mais na militância em
relação à orientação sexual e sexualidade no geral. Hoje em dia, isso é algo privado
e que ele não sente necessidade de expor. Em relação à assexualidade, atualmente
ele não se sente mais dessa forma.
“Eu sempre quis ganhar o mundo” (KAFKA, DC1, 2021). Essa foi a frase que
iniciou o texto sobre Kafka e que faz parte de sua construção subjetiva. Dizia isso para
sua mãe e ela, inclusive, sabia que em algum momento ele sairia de casa em busca
desse sonho. Ele comenta que se sentia muito preso e superprotegido. Além disso, o
fato de morar em uma cidade pequena limitava-o, uma vez que ele não tinha acesso
à capital, por exemplo, como outras pessoas que conhecia.
Frente a isso, pensava em cursar Turismo, que era o que conhecia até então.
Sua mãe falou-lhe sobre Relações Internacionais e ele gostou, mas era muito difícil
passar no vestibular. Segundo Kafka, a faculdade mais fácil para entrar era na
Paraíba, mas ele sentia vontade de ir para uma instituição em Brasília por ser essa,
de acordo com ele, a melhor que havia. Contudo era, ao mesmo tempo, a mais
concorrida. Antes de conhecer Relações Internacionais, Kafka tentou cursar Letras,
motivado pelo gosto em escrever. Inscreveu-se em Letras na Paraíba, mas meio ano
antes de ir para a faculdade, começou a pesquisar um pouco mais e conheceu o curso
de Defesa e Gestão Estratégica Internacional. Tentou como cotista pelo Sistema de
Seleção Unificada (SISU), mas sem muitas esperanças. No dia seguinte à inscrição,
152

ele estava em primeiro lugar. Quando acabou o processo, estava em segundo. Ficou
boquiaberto e lembra de quando contou para a mãe.

(...) lembro muito bem da cena, minha mãe na sala vendo novela, eu no
computador. Eu falei: “Passei na UFRJ, vou pro Rio de Janeiro!” E ela “Não,
lá é muito perigoso” e não sei o que, mas aí ela já, tipo, falou que era uma
oportunidade em mil e que eu tinha que ir sim. Aí foi! Vaquinha online,
inclusive as pessoas que procuram calouros me conheceram pela vaquinha
que eu tava fazendo. Uma menina acessou minha vaquinha e, tipo, me
botaram no grupo de calouros (KAFKA, DC1, 2021).

Nessa época, ele já sabia que era trans e lembra de ter conversado
privadamente pela internet com um menino com quem fez amizade. Disse a ele que
era uma pessoa trans e que não pôde fazer o nome social por ainda não ser assumido.
Iria fazer a matrícula com uma procuração. O menino disse a ele, então, que fariam
de tudo para que seu nome de registro não fosse descoberto.

Na época, eu tinha muito problema com meu nome antigo, mas acredito que
mais pela... Você vai passando por situações de transfobia, descobrindo que
o mundo é transfóbico, e como tem uma binariedade muito rígida e você
começa a ter disforia com seu nome (KAFKA, DC1, 2021).

“Eu vim morar no Rio e fiquei independente”. Kafka conta na segunda dinâmica
conversacional que a mudança para o Rio de Janeiro lhe trouxe, além da
independência, a liberdade. Com isso, e outras informações relacionadas à vontade
de Kafka explorar o mundo, elencamos o indicador de “ganhar o mundo” como
forma de conquistar a liberdade para ser e se expressar como é. Em comparação
à cidade onde morava na Paraíba, de acordo com ele, o Rio de Janeiro tem uma
questão de maior violência física, enquanto na cidade pequena a violência estava
mais relacionada ao âmbito psicológico, principalmente por todas as pessoas se
conhecerem e questões de gênero e sexualidade serem um tabu. Não somente esses
temas, mas falava-se muito sobre a vida uns dos outros e isso era um fator incômodo
para Kafka. Não sentia que conseguiria viver em paz assim.

Aqui no Rio já foi mais tranquilo, porque eu já cheguei já sendo eu. Não
precisava criar coragem para me assumir para pessoas que eu já tinha
alguma relação. Se a pessoa não quisesse, ela já não se aproximava, sabe?
Outro contexto (KAFKA, DC2, 2021).
153

Isso foi crucial para que ele demonstrasse para a família que faria as próprias
escolhas, já era adulto e poderia sustentar-se sozinho.

A minha família viu que eles não podem mandar em mim. A minha mãe não
queria que eu fizesse transição hormonal, mas aí ela chegou à conclusão de
que ela não poderia mandar em mim porque eu já sou adulto e que me
sustentava sozinho, morava fora. (...) Não me arrependo de não ter me
assumido antes porque, por mais que eu tenha passado muito tempo
morando lá com disforia e querendo ser eu mesmo sem conseguir, eu não
sei como seria. Muitas pessoas são expulsas de casa. Então eu vim pro Rio
e me assumi aqui, eu posso fazer o que eu quiser agora (KAFKA, DC2, 2021).

Em decorrência do que Kafka fala sobre disforia no trecho acima, foi


perguntado se ele acha que a disforia depende do contato com outras pessoas. Ele
afirma que, ao levar em consideração diferentes realidades trans, entende que, para
muitas pessoas, não, inclusive por algumas expressarem a transgeneridade já desde
crianças. Para ele, especificamente:

(...) é tudo social e na base da transfobia, porque senão era eu e eu mesmo


e o máximo que poderia acontecer seria eu sentir vontade de mudar alguma
coisa, mas não de uma forma negativa. A questão de se sentir mal é só
quando vem dos outros, mesmo. Casos de transfobia ou de não ter a
passabilidade, aí você fica querendo ter passabilidade (KAFKA, DC2, 2021).

Esse trecho e o que Kafka expressa antes, sobre a relação com seu nome de
registro, levou-nos ao indicador de sentidos subjetivos relacionados à disforia
ligados ao preconceito e transfobia na história de vida de Kafka. De acordo com
ele, as pessoas fazem diferentes leituras a partir de suas próprias referências e,
portanto, ao pensar sobre passabilidade, entende que se trata de fluidez no que diz
respeito a essas diversas interpretações. Quando a questão é sobre si mesmo,
percebe que existe uma variação grande de como cada pessoa enxerga e define-o.

Por exemplo, quando eu saio na rua com máscara, roupas masculinas e tal,
no meu ponto de vista não teria nada ou quase nada que fizesse alguém me
ler enquanto mulher, mas as pessoas liam. E às vezes, antes da pandemia,
as pessoas liam como homem, então é muito confuso. Antes de transicionar,
algumas pessoas já falavam que eu tinha uma aparência andrógina. Acho
que é uma coisa muito fluida. Então, às vezes eu sou lido como gay ou viado,
quando tô com o meu namorado. Antes, quando eu andava de mãos dadas
com as minhas amigas, me viam como lésbica. As pessoas sempre me veem
como algo diferente (KAFKA, DC2, 2021).
154

“Eu acho que é uma coisa muito individual, pode ser fluida pras pessoas, acho
que pode mudar de acordo com o caminhar da pessoa” (KAFKA, DC1, 2021). De
acordo com o ponto de vista de Kafka, o gênero é individual, fluido e mutável. Trata-
se do que compreendemos como indicador de construção contínua de identidade
de gênero. A distinção de “cis/trans”, para ele, é uma questão política. Entretanto,
afirma que em relação aos estereótipos de gênero, acredita que nem as pessoas cis
conseguem, de fato, responder totalmente.

Então eu acho que existe o gênero individual, né, tipo essa questão de como
a gente se apresenta socialmente, como a gente constrói nossa identidade
né, e que isso vai entrar com tudo da sua vida, porque gênero tá em tudo. E
existe também aquele gênero imposto, aquele estereótipo, aquela ilusão de
gênero que a sociedade tem, que acha que, tipo, só existe homem e mulher,
mas aí é uma viagem do conservadorismo (KAFKA, DC1, 2021).

O conservadorismo a que Kafka alude é o conservadorismo religioso. Durante


a infância e adolescência, ele comenta que era “muito católico” e achava que tudo era
pecado. Ele conta que, quando pequeno, fez o catecismo por vontade própria. Sua
mãe não frequentava muito a igreja, nem o irmão, que hoje em dia é ateu. Somente
ele tinha o hábito de ir. A avó não tem uma religião definida, porém, acredita em Deus,
igualmente ao pai de Kafka. Ele tem uma irmã por parte de pai que conheceu quando
morou em São Paulo. Ela é testemunha de Jeová. As outras pessoas da família são,
em sua maioria, católicas e algumas evangélicas.
Ainda na adolescência não conseguiu terminar a “crisma” por ter-se tornado
ateísta. Conta que começou a questionar-se e “(...) ver muita coisa na internet. Veio
um boom dos ateus no YouTube” (KAFKA, DC1, 2021). Não soube dizer se a questão
LGBTI+ influenciou de alguma forma porque via principalmente gays e lésbicas
também fazendo parte da igreja, mas sem se assumir, o que se relaciona ao indicador
do silenciamento frente a questões sobre identidade de gênero e orientação
sexual. Contudo, o que mais o levou a aproximar-se do ateísmo foram as pesquisas
em Antropologia que fez, percebendo que não existe uma verdade absoluta.
Contudo, ainda se sentiu curioso sobre outras religiões e, nessa época, buscou
conhecê-las. Fez o estudo da bíblia pelo viés das testemunhas de Jeová, foi a
algumas reuniões e afirma que gostava da participação popular que acontecia naquele
ambiente. Segundo ele, as pessoas comentavam, respondiam, interagiam. Isso é algo
de que sente falta nas missas católicas. Entretanto, não gostou da rigidez e discordava
155

de muitas coisas. Com isso, foi também conhecer, juntamente às amigas, algumas
igrejas evangélicas. Ele gostava bastante. Em outro momento, também foi a um centro
espírita e gostou, mas depois parou de frequentá-lo.
“Eu conheci muitas religiões e comecei a não acreditar e há muito tempo não
sentia mais questão de emoções de presença de Deus” (KAFKA, DC1, 2021). Já
quando passou a morar no Rio de Janeiro, não tinha muito contato com a igreja porque
seu foco principal era a universidade. Chamaram-no para ir a uma igreja, mas ele
recusou. Depois, conheceu o atual namorado que o levou a uma reunião sobre
questões LGBTI+ no centro espírita frequentado por ele.

E aí eu falei: “Meu Deus, não tem conservadorismo!” Tipo, aí eu lembro que


a coordenadora perguntou se eu gostei, eu falei que gostei e tal, aí me chocou
porque tinha um assunto interessante assim. Comecei a fazer amizade com
os amigos dele, comecei a gostar e comecei a rever meus conceitos, porque
eu não acreditava mais em coisas espirituais (...) Aí demorou também pra eu
acreditar em Deus. Eu ainda não digo que eu sou 100% crente disso e eu
descobri que outras pessoas, outros jovens de lá também. Que é muito difícil
acreditar em Deus, por ser abstrato, mas a gente consegue acreditar mais
nos espíritos porque a gente tá vendo e meus amigos eram tudo médium
também, aí Deus é mais difícil (KAFKA, DC1, 2021).

Kafka comenta que a religião espírita é conservadora, porque, segundo ele,


todo cristianismo o é. Todavia, a casa espírita da qual faz parte é menos
conservadora. Os jovens têm autonomia, existe espaço para a conversa, para o
diálogo e são debatidos temas de interesse, como questões sociais, feminismo, raça,
acessibilidade etc.

Então, pra mim, foi muito bom porque eu me encontrei ali. Não sei se eu
tivesse conhecido uma casa kardecista conservadora se eu seria espírita
hoje, porque eu já tinha me desligado do conservadorismo, sabe? E eu não
queria isso pra minha vida mais, sendo que eu nem acreditava mais em Deus,
sabe? Hoje em dia a religião ocupa um lugar muito bom para mim, mas tem
sempre tretas né, porque muita gente fala mal de religião, que LGBT não
pode ter religião. Apesar de eu saber que tem muita coisa para mudar, tem
que mudar de dentro também, não é só falando mal que vai mudar. Tá
progredindo. Um dia vai (KAFKA, DC2, 2021).

Por mais que, por vezes, houvesse uma relação conflituosa acerca das
religiões, principalmente no que se relaciona a posicionamentos conservadores
concernentes à diversidade, Kafka demonstra que a religiosidade tem um papel
importante em sua vida. Isso nos levou a elencar o indicador da religiosidade como
geradora de sentidos subjetivos sobre a existência de Kafka e o lugar que ocupa
156

no mundo, uma vez que, mesmo ao tornar-se ateísta, buscou formas de se aproximar
de diferentes religiões. Inclusive, já na infância e adolescência, aproximou-se da igreja
por conta própria. Ainda, diferenciamos de espiritualidade, uma vez que esta não se
relacionaria necessariamente a religiões e, no caso de Kafka, a religião aparece como
um fator relevante.
Em relação à corporeidade, outro assunto conversado nas dinâmicas
conversacionais, quando pequeno, Kafka não queria ter órgão genital. Sabia que não
existia essa possibilidade, mas se tivesse como escolher, queria nascer sem os dois.
Não sentia ódio. Era uma vontade de ser neutro. Isso, para ele, também é algo que
fez com que percebesse que sua identidade de gênero não era de homem trans.
Depois que conheceu o feminismo, seu primeiro contato com a militância, passou a
perceber a questão com outros olhos e a enxergar seu corpo de outra forma. “Comecei
a me empoderar e eu falei: ‘Eu acho que gosto de ter vagina’. Hoje em dia eu gosto.
Mas também, se eu pudesse escolher a próxima reencarnação, não teria nada”
(KAFKA, DC1, 2021). Isso se relaciona ao indicador de construção contínua de
identidade de gênero, que se complexifica na medida em que Kafka questiona-se e
acessa outras possibilidades de pensar sobre a corporeidade, tanto em sua dimensão
subjetiva como - em contradição - à objetividade do corpo em termos físicos,
anatômicos, fisiológicos e hormonais. Nesse sentido, atualmente ele tem se
interessado pelas questões de direito reprodutivo, tanto que faz curso de doulagem.
Outro aspecto é demonstrado no trecho que se segue:

A menstruação, por exemplo, eu sempre odiei. Antes de descobrir ser trans


eu já odiava. Anos atrás, quando eu já sabia que era trans, eu passei a ter
um outro olhar. Mas na época que eu não era trans, mas já conhecia o
feminismo, eu comecei a ver que tinha um poder ali. Tipo aquela música: “My
pussy é o poder” (risos). Aí eu me descobri trans, não binário e fui fazendo
parte de grupos feministas transinclusivos, então acho que eu já tinha um
outro olhar sobre o corpo e ajudou muito na questão da disforia, porque era
conversado muita coisa sobre corpo e aceitação, por mais que às vezes não
fossem as mesmas coisas porque, querendo ou não, mulheres cis também
têm muitas disforias causadas por outras coisas da sociedade. Então, sempre
foi uma coisa de comunidade pra mim (KAFKA, DC2, 2021).

As comunidades e grupalidades são um fator de suma importância na vida de


Kafka. Ele percebeu, inclusive, o quanto a pandemia impactou isso, deixando as
pessoas mais carentes de afeto e contato. Antes, ele acabava permanecendo por
bastante no próprio curso na universidade e não se expandia muito, não ia para
coletivos. Atualmente, coordena um coletivo de artistas cujo intuito é ser
157

representativo e inclusivo - e do qual todas as pessoas participantes desta pesquisa


fazem parte. Ele percebe o impacto disso em sua vida. “Eu acho muito importante
porque, senão, você não consegue lidar nos espaços que você é minoria” (KAFKA,
DC2, 2021), o que corrobora o indicador de busca de acolhimento por grupos e
pessoas LGBTI+.
Em relação a esse coletivo, Kafka percebe o quanto ele foi importante para
reunir pessoas que encontram um lugar onde se identificam, onde podem acessar
arte, poesia, falar sobre suas próprias vivências, e isso em contato com pessoas do
Brasil inteiro. Salienta que pessoas que são do interior, assim como ele, começam a
fazer esses contatos e animam-se. Por mais que hoje não estejam muito ativos no
Instagram, têm um grupo de WhatsApp no qual frequentemente surgem conversas ou
alguma pessoa precisa de ajuda e o grupo serve como rede de apoio. Isso se conecta
ao indicador da internet como possibilidade de vivenciar a identidade de gênero
e orientação sexual e vai além, levando-nos a um novo indicador da virtualidade
como espaço possível de ampliação de contatos, redes de apoio e
conhecimentos. Esse indicador sustenta-se também quando ele comenta sobre a
internet ter proporcionado acesso a conhecimentos na cidade interiorana onde
morava.
Ao falar de grupalidades, Kafka também traz o recorte de classe e o preconceito
relacionado à inferiorização de pessoas de classe baixa, como se fossem ignorantes
ou mais preconceituosas.

(...) aqui no Rio tem essa questão da Baixada Fluminense que é tipo região
metropolitana. São umas cidades mais marginalizadas, mas são pessoas
incríveis dispostas a estudar e aprender. Claro que vai ter uma outra falando
de ideologia de gênero (risos), acontece, mas eu nunca sofri transfobia. As
pessoas sempre me respeitaram. Não tem desculpa por ser um lugar mais
marginalizado. Eu acho que as pessoas olham muito pras cidades menores,
favela, lugares como a baixada e acham que vai ser um lugar mais
preconceituoso, mas não necessariamente. Eu acho que é muito das
pessoas mesmo. Já fiz uma matéria sobre pessoas trans nas favelas e
geralmente o relato é de que as pessoas procuram entender, respeitam e
têm uma comunidade. Os vizinhos se conhecem e tal. Não é porque é favela
que as pessoas vão ser escrotas. Então é muito individual, vai da criação
que ela teve, do caráter dela (KAFKA, DC2, 2021).

Para além das diferenciações de classe social, Kafka percebe também


diferenças geracionais quando o assunto é a não binariedade. Afirma que esse é um
tema que está sendo discutido com mais frequência e visibilidade no momento. Ele
158

considera que as posturas das pessoas mais velhas no movimento geralmente têm
relação com o que elas vivenciaram em suas épocas de início de descoberta de si, de
militância e de construção dentro dos movimentos.

(...) teve uma vez no grupo do WhatsApp que surgiu uma polêmica sobre não
binariedade, aí a médica levou isso pro pessoal, pra gente na roda. Aí o
pessoal que era não binário falou, eu falei e tal. E tinha uma mulher mais
velha que falou que na época dela só tinha travesti, depois que vieram as
mulheres trans, depois homens trans e agora a não binariedade. Ela mostrou
essa visão de pessoa mais velha dentro da comunidade trans e são coisas
que vão surgindo, que ela viu como uma coisa boa, que pra gente jovem é
para levantar mesmo a bandeira. E eu vi que é exatamente isso, de você ver
que antigamente nem a palavra transgênero, transexual era usada. Era só
travestis ou gays, depois que veio bi. É uma coisa gradual que vai vir nos
debates e é sempre bom a gente tentar mostrar que não é uma coisa de
agora. Em outras culturas, indígenas por exemplo, já tinham outros gêneros
fora do padrão homem e mulher, mas que realmente a luta política está se
consolidando mais agora e realmente tem pessoas mais jovens, mas também
porque na comunidade trans as pessoas são mais jovens, porque tem a
questão da expectativa de vida. (KAFKA, DC2, 2021).

Outro ponto importante durante as dinâmicas conversacionais foi o quanto ficou


nítido como a virtualidade fez e faz parte da vida de Kafka. A internet, para ele, é um
lugar de muitas possibilidades, tem potencial de facilitar os contatos, conectar e unir
pessoas que estão fisicamente distantes. Ainda mais tratando-se da comunidade não
binária e assexual porque, de acordo com ele, costuma-se ter menos pessoas que se
identificam assim nos lugares e, com a possibilidade das participações virtuais, é
possível ocupar mais espaços, o que sustenta o indicador da virtualidade como
espaço possível de ampliação de contatos, redes de apoio e conhecimentos.
Ao mesmo tempo, Kafka percebe algumas diferenças em relação ao ambiente
virtual e o ao vivo quando se trata de preconceito e transfobia. Ele comenta que na
internet as coisas ganham proporções muito grandes, que podem fugir ao controle.
Ele exemplifica:

(...) na pandemia, antes, a gente podia estar em espaços com mais pessoas,
mas agora, como o contato é mais íntimo, se eu vou na casa das pessoas, lá
não tem muita gente, só quem mora lá. Então, às vezes é até mais fácil de
lidar porque [você] se sente mais seguro porque você está conversando com
uma só pessoa. Na internet você não sabe quem vai aparecer, da onde vai
sair um monte de comentário de hater e tal. Então, acho que tem essa
diferença. Às vezes você abre a internet, parece que as pessoas tiraram o
dia para falar mal de não binariedade. As pessoas nunca conviveram com
alguém não binário (KAFKA, DC2, 2021).
159

Foi por meio da internet que Kafka conheceu mais sobre a comunidade
LGBTI+, sobre o feminismo, em que entrou em contato com a possibilidade de
diversidade de gêneros e com o termo “não binariedade”.

Eu tava no Facebook e eu vi uma página que falava que não era só homem
ou mulher, mas que existia vários gêneros. Aí, de começo, tomei um susto:
“Como assim? Como assim, gente? Mas outros gêneros?” Nunca ouvi falar
disso, aí comecei a pesquisar mais sobre e aí foi que eu descobri a não
binariedade, porque eu já sabia sobre homem trans porque, querendo ou não,
tinha um pouco. Eu lembro que tinha só um canal do YouTube e eu vi uma
matéria de um cara que tinha feito um financiamento coletivo pra cirurgia dele
de tirar as mamas e aí eu fiquei fascinado naquilo e procurei as redes sociais
dele. E tipo, gente! Aí comecei a pesquisar sobre, mas eu vi os vídeos desses
meninos e eram dois meninos com canal no YouTube, chamado “Cavalo
Marinho”. Eu via os vídeos deles, mas eu não conseguia me identificar
totalmente como um homem trans e eu ficava pensando, tipo: “Meu Deus,
quando que eu vou me tornar um homem de verdade?” Essa era a frase. Eu
pensava e conversava com Deus (...). Achava que uma hora eu ia realmente
me tornar um homem, que era tipo uma fase pra, tipo, ser binário, mas aí
depois eu descobri essas pessoas e a não binariedade (KAFKA, DC1, 2021).

O trecho apresentado relaciona-se aos indicadores da virtualidade como


espaço possível de ampliação de contatos, redes de apoio e conhecimentos,
conforme ele busca na internet aquilo que lhe chamou a atenção; indicador de
aproximação estética das masculinidades, quando ficou fascinado vendo a
possibilidade encontrada por uma pessoa que queria realizar a cirurgia de
mastectomia; indicador de construção contínua de identidade de gênero, quando
são percebidas as diferenciações em relação aos homens trans. Ainda, destaca-se
nessa construção contínua, a relação com a espiritualidade e a busca por “se tornar”
homem que cessou quando a não binariedade aparece como possibilidade.
O que corrobora o indicador da virtualidade como espaço possível de
ampliação de contatos, redes de apoio e conhecimentos e de busca de
acolhimento por grupos e pessoas LGBTI+ é que, nessa época, durante a
adolescência, ele acessava o Canal das Bee62 e conheceu o blog de uma mulher
assexual. Também entrou em diferentes grupos e criou, com novas amizades, um
grupo no WhatsApp com pessoas assexuais. Nesse grupo, conversavam sobre
gênero e faziam questionamentos relacionados a isso. As pessoas no grupo que se
perguntavam sobre gênero começaram a perceber que não se identificavam com a

62
Descrição no Facebook do Canal das Bee: “Não só um canal contra a homofobia. Um canal contra
o preconceito. Um canal a favor da diversão, do riso e de viver a vida do jeito que você quiser. E
principalmente, sendo quem você é!” Slogan: “Porque uma abelha só não produz nenhum mel”. Link
do canal: youtube.com/canaldasbee
160

binariedade. Kafka era uma dessas pessoas e com elas fez um novo grupo, no qual
passaram a descobrir-se juntes. Dentre essas pessoas, uma manteve o nome
socialmente considerado feminino, mas hoje utiliza pronomes masculinos. Já outro
saiu do grupo por identificar-se enquanto homem cis. Foi nesse momento que Kafka
escolheu seu nome junto a uma amiga que passou a ser, de acordo com ele, sua
madrinha. “Construímos esta identidade juntos” (KAFKA, DC1, 2021). Hoje em dia
não tem mais tanto contato com essas pessoas, mas afirma que foram importantes
pois ajudaram-no a descobrir-se e a encontrar-se.
Identidade, para Kafka, tem a ver com algo íntimo e individual ao mesmo tempo,
em como cada pessoa identifica-se com o mundo. Isso ele afirmou na segunda
dinâmica conversacional e disse ainda que acha difícil definir o que é identidade. Já
um tempo depois, durante a dinâmica conversacional em grupo, foi perguntado por
que é difícil falar sobre identidade. Kafka posicionou-se dizendo que é difícil por ser
algo muito individual, mas também coletivo. Ele comenta estar aprendendo isso
porque o namorado estuda Psicologia. Conta que achava que a Psicologia concernia
a questões individuais por tê-la comparado a seu curso, Relações Internacionais.

(...) meu curso é sobre coletividade. Sempre achei Psicologia o contrário.


Vendo outras perspectivas, tenho aberto a minha mente. Por exemplo, o SUS
é muito coletivo. Não dá pra falar que é só individual ou só coletivo, sabe?
Muito complexo. Então, talvez na coletividade a gente consiga ter um nome
para isso. Não binariedade, trans, homem, mulher… mas é tão individual ao
mesmo tempo que, como você vai definir? Se até pra própria pessoa é fluido.
Acho que isso talvez seja uma dificuldade (KAFKA, DCG, 2021).

Além disso, ele também reflete sobre as questões pessoais, de que para
algumas pessoas possa existir dificuldade em se falar sobre isso. Para ele, não ocupa
um lugar de dor. Afirma que sofre com a transfobia, mas que tem ferramentas que
permitem a ele encarar essa realidade, tais quais: “(...) Faço terapia, minha família me
aceita, a família do meu namorado me aceita” (KAFKA, DCG, 2021). A partir disso,
ele entende que já conseguiu construir muitas coisas, ao mesmo tempo que “sente
preguiça” em falar repetidamente sobre algumas questões. Com o tempo, passou a
ficar mais seletivo.

Eu seleciono muito as coisas que valem a pena. Por exemplo, essa pesquisa
vale muito a pena, tipo, falar sobre isso. Foi uma experiência incrível que eu
não imaginei que ia ser assim. Mas por exemplo, na faculdade, não vale muito
a pena porque as pessoas já pressupõem que eu vou falar sobre isso. Por
exemplo, quando eu fui fazer meu TCC, falei com um menino e ele: “Não, pra
161

você, porque é de tal forma…” Já pressupondo que eu ia falar sobre gênero.


Eu fiquei: “Mas eu nunca falei pra você que ia falar sobre gênero. Eu queria
falar sobre outra coisa”. Inclusive não queria falar sobre o meu TCC porque
as pessoas já pressupõem desde o começo que eu vou falar sobre gênero.
Então, são algumas escolhas, algumas lutas. Às vezes é um lugar de
preguiça, de cansaço de falar sobre. Eu escolho muito bem minhas lutas.
Então, essa é mais a minha dificuldade do que falar das minhas dores e
vivências (KAFKA, DCG, 2021).

“Eu acho que só estar vivo enquanto pessoa marginalizada já é político, já é


militância” (KAFKA, DCG, 2021). Ao pensar a identidade com viés político, Kafka
entende que é possível usar a identidade como uma questão de luta, mas para que
isso seja possível, de acordo com ele, é preciso ter algo definido, um “rótulo”.
Pessoalmente, Kafka expressa que é transmasculine por ser essa uma identidade
política, segundo ele, mais fácil de explicar e mais consolidada. Não precisa o tempo
todo explicar qual o seu gênero, além de perceber que essa é uma luta que já existe
no Brasil e reúne diversas pautas da diversidade de gênero, com caminhos em
comum.

Por exemplo, lá fora, nos Estados Unidos, a gente vê às vezes as pessoas


se assumindo como Queer. No Brasil a gente não vê muito isso. Quando as
pessoas se assumem, principalmente famosas, sempre tem um rótulo ali,
uma identidade que acho muito característico do Brasil. A gente não tem
muito uma palavra que una tudo e que abarque tudo que se você diga: “Eu
sou LGBT+” as pessoas vão saber o que você é ali. Então acho que tem muito
isso na realidade brasileira (KAFKA, DC2, 2021).

Sobre as diferenças entre Estados Unidos e Brasil63, Kafka comenta que


recentemente descobriu que nos EUA é mais comum que a não binariedade seja vista
como “coisa de mulher cis querendo aparecer” ou mulher cis “sapatão”. No Brasil, ele
percebe a diferença das pessoas vendo a não binariedade como “macho de saia”,
“gay muito afeminado”, “homem gay que quer se mostrar”. São diferentes pontos de
vista e diferentes construções sobre a não binariedade envolvendo invalidações e
preconceitos.

A gente é invalidado porque acham que não binariedade é uma coisa de


pessoa que foi designado como homem ao nascimento. Aí, o que é a gente
nesse meio, né? Então, como lá acho que deva ser ao contrário, de ter uma
invisibilização de pessoas designadas como homens. Então é essa cultura,
tem esses vários fatores. Pra mudar isso só lutando mesmo. (...) Eu sou
otimista, acho que tende a melhorar isso, mas se não partir da gente,
realmente não vai partir dos outros não (KAFKA, DCG, 2021).

63
Sobre essa discussão, indicamos a leitura do livro Pensamento Feminista hoje: Sexualidades no
sul global. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
162

Apesar da postura engajada de Kafka sobre as mudanças que quer ver no


mundo, ele afirma que já falou muito sobre gênero em suas redes sociais e hoje pensa
em desistir disso por ser muito cansativo. Todavia, percebe que seus esforços não
foram em vão porque algumas pessoas entenderam o que ele trazia e, o que importa,
para Kafka, é a evolução. Ele vê a língua como algo vivo e mutável.

Você vê isso desde muito tempo e até mudanças importantes, por exemplo,
às vezes mudanças mais longas. Ninguém fala “vós” ou “vosmecê” hoje em
dia, então as coisas mudam. Tanto quanto coisas assim, a curto prazo, tipo,
a linguagem da geração Z já não é mais a minha. Eles falam cringe (risos).
Essas coisas que a gente vê hoje em dia. Os adolescentes falando e tal. A
língua muda muito rápido e essa é só mais uma das mudanças, só que existe
uma repulsa muito grande por isso por conta da transfobia e binarismo
(KAFKA, DC2, 2021).

A linguagem neutra Kafka percebe ser utilizada na internet e, para ele, o maior
problema é a dificuldade de usar os pronomes neutros. Ele conta que suas amizades
utilizam masculino ou feminino para facilitar. Kafka acredita que “às vezes, na nossa
individualidade, falta uma questão política também, de aprender a inserir mais no
nosso dia a dia” (KAFKA, DC1, 2021).
Outra questão presente na vida de Kafka é sua relação com a arte. Iniciou-se
na adolescência, quando ele começou a escrever de forma artística. Sente que é algo
que o salvou muitas vezes, mas tem medo de que comece a ter relação com dinheiro
e ocupe um espaço de obrigação em sua vida, tornando-se monótono. Ele comenta
sobre o coletivo artístico para pessoas trans que coordena e afirma ser algo de que
gosta muito, mas fica receoso quando percebe que isso pode vir a ser uma obrigação
em algum momento.

Eu ainda escrevo, mas a faculdade tirou meu hábito de escrever tanto. A


poesia aparece muito no momento em que eu tô precisando, sabe? Tipo, tô
com uma coisa muito na minha cabeça e sai. Desabafo e sai. É mais um
desabafo mesmo, não é aquilo de: “Agora estou inspirado pra escrever”.
Inclusive, sinto muito falta disso na minha adolescência. Acho que hoje em
dia ocupa esse lugar de desabafo (KAFKA, DC2, 2021).

Sobre outras formas de arte, Kafka contou na dinâmica conversacional em


grupo que, apesar de estar envolvido em muitas coisas e ser uma pessoa bastante
atarefada, pensa em fazer algumas obras relacionadas a ser trans e está em busca
de ferramentas para tornar isso possível. Diz ter algumas ideias sobre questões
163

nordestinas, mas percebe que, até por conta da “fetichização da transgeneridade” e


gênero, ele entende que as questões trans podem ter maior visibilidade e interesse,
além de quê, é também nesses momentos que ele conquista espaços.
O amigo com o qual Kafka mora atualmente também é artista e incentiva-o a
colocar isso em prática. Ele conta que às vezes participa de Slams e que esse amigo
também se apresentou algumas vezes. Além da poesia, o desenho também faz parte
das expressões artísticas de Kafka. Ele gosta do abstrato. Portanto, elencamos o
indicador da arte como um lugar de conforto e refúgio. Surgiu, para ele, como
uma forma de lidar com a ansiedade. “Se eu tiver bem, as pessoas não vão me ver
escrevendo” (KAFKA, DC2, 2021). No último encontro em grupo, Kafka apresentou o
seguinte poema, escrito por ele:

1
Só mais um
Só mais um número
Mas sem dado, sem pesquisa, sem estatística
Só mais um pra ser chamado de uma
Só mais um que tem medo de andar nas ruas
Seja de noite, seja de dia
Só mais um que vai ser chamado
De viado ou de puta
Só mais um que vai ser perseguido
Pelo fato de não ter falo
Que vai ter que esconder o peito
Em dobro
Só mais um manchando o chão da cozinha
Da igreja, da escola
De casa pra escola, da escola pra casa
Com o sangue invisível, esmagado
Só mais um
Só mais um zero

(KAFKA, DCG, 2021)

Por meio dessa expressão artística, percebemos conexões com alguns dos
indicadores elencados: indicador de sentidos subjetivos relacionados à solidão
de sentir-se diferente e a relação disso com a exclusão e invisibilidade - “sangue
invisível” - além da violência em diversos níveis; indicador do silenciamento frente
a questões sobre identidade de gênero e orientação sexual; indicador de
sentidos subjetivos relacionados à disforia ligados ao preconceito e transfobia
no ato de esconder o peito e a perseguição por não ter um falo. Além disso, demarca
lugares como a escola, a igreja e a casa, que fizeram parte de seu desenvolvimento
e constituem-no enquanto ser humano.
164

Já acerca das outras produções apresentadas, Kafka fez algumas anotações


sobre cada uma delas. Sobre Bokoto, salientou a beleza da abstração ao falar sobre
o rio. Discorre que uma de suas dificuldades de escrita relaciona-se a isso. Hoje em
dia, percebe que o que escreve está muito mais ligado a fatos e verdades, sem tanta
abstração. “Uma coisa mais pura”, segundo ele. Já sobre o “não lugar", também
trazido por Bokoto, Kafka comenta que isso o levou a pensar sobre não binariedade
e saúde, desumanização e lutas políticas.

Eu me identifico como transmasculino não só pela luta política de tipo...


Transmasculino é um termo que tá tendo pra englobar ultimamente pessoas
NB que foram designadas mulher ao nascer. Mas também porque eu gosto
muito do masculino. Do neutro e do masculino. E que, pra mim, é mais fácil
não se impor enquanto não binário e só entregar um documento masculino e
é isso. Foda-se. E o quanto isso também me invisibiliza, mas enfim, vários
rolês (KAFKA, DC2, 2021).

Construímos aqui uma hipótese de que o silenciamento frente a questões


sobre identidade de gênero e orientação sexual acaba sendo reproduzido por
Kafka até certa medida, tratando-se nesse caso de identidade de gênero quando opta
por posicionar-se enquanto transmasculino sem mencionar a não binariedade. Nisso
estaria a relação com a solidão de sentir-se diferente, uma vez que diz respeito a
um desconforto a ser evitado, da segurança frente a diversos tipos de violências, além
de um certo cansaço conectado ao fato de se fazer referência - quando fala nas redes
sociais sobre gênero ou quando buscava acolhimento por grupos e pessoas
LGBTI+ na adolescência - em um lugar político ainda em construção; a não
binariedade.
Em relação ao que foi levado por Tuti, o que chamou a atenção de Kafka foram
os “atravessamentos”. “Atravessamentos mesmo sem querer” (KAFKA, DC2, 2021) e,
por mais que as pessoas desconstruam suas ideias, de acordo com Kafka, fazemos
parte desse sistema que incentiva o preconceito e a discriminação. Ele percebe, por
exemplo, os “atravessamentos” de raça e gênero por relacionar-se romanticamente
com uma pessoa negra retinta não binária designada homem ao nascer. Kafka
comenta que, nesse sentido, “transcentrar” está ajudando-lhe, porém, é no cotidiano,
e por meio das vivências, que percebe o desafio de direcionar seus afetos.

Até eu falei esses dias: “Não vou mais ficar com cis”, aí daqui a pouco vai e
beijo uma boca de cis (risos). Impossível (risos), mas o quanto é muito
diferente flertar com pessoas trans. Esses dias falei com um crush meu que
165

é trans. Nem sei se ele dá bola pra mim, mas a gente conversou muito e é
outra coisa, o papo é outra coisa. A gente nem precisa estar falando sobre
questões trans, mas é uma outra visão sobre se relacionar, principalmente
com homens cis. Eu fico muito mais com pessoas masculinas que femininas
(...). Eu fiquei esses tempos com um casal, um homem cis e uma mulher cis
e o quanto era muito mais confortável estar com a mulher cis, mas é isso, não
tem muito pra onde fugir, às vezes você gosta da pessoa (KAFKA, DCG,
2021).

Já a respeito do que foi exposto pela pesquisadora, Kafka comentou que


também escreveu em notas no computador e disse que gosta de escrever assim por
ser prático. Além disso, aproveitou para trazer um debate sobre a pesquisa ser feita
por uma pessoa cis. Falou sobre essa discussão ter sido realizada no Twitter. Ainda,
deu um feedback sobre como se sentiu com a pesquisa.

Esses dias no Twitter... Twitter né, problematizações... Tava tendo umas


pessoas defendendo e outras criticando pesquisas sobre gênero e pessoas
trans e tal. E uma coisa que me irrita é o twitter ser 8 ou 80. Eu fiz algumas
críticas e as pessoas ficaram: “Nossa, você tá errado, você é contra”. Eu sou
criticado justamente por eu ter muitas pessoas “cis-aliadas” (risos). É isso, se
você criticar uma coisa, sempre as pessoas vão achar que você tá 100%
contra essa ideia. Tem pesquisas que realmente são problemáticas, assim
como tem pesquisas problemáticas em várias áreas exotificando minorias.
Sempre vai ter. A gente tá acostumado. Agora tem a oportunidade de ter
algumas que não são escrotas, porque né, democratizou mais a educação. E
aí eu lembro quando tu mandou mensagem... Até legal falar isso no
encerramento. Tu mandou mensagem no [grupo de artistas trans] e Bokoto
super defendendo: “Vamos fazer” e tal. Eu lembro que algumas pessoas
criticaram, mas a gente topou. Foi muito legal! E não dá pra saber realmente.
Você foi uma pessoa muito legal. Tem gente que já chega sendo escroto, daí
você já sabe no que vai dar. Mas realmente não dava pra saber se ia ser legal
e acabou, tipo, sendo muito legal! Foi muito melhor do que a gente poderia
esperar. A gente já vai com baixa expectativa por conta desses históricos. Eu
sei que a academia é muito cansativa, mas se você quiser continuar nesse
ramo vai fazer muito bem porque precisamos de bons pesquisadores,
precisamos melhorar as coisas. Eu já me conformei. Se eu vou conseguir
terminar minhas pesquisas, não sei (KAFKA, DCG, 2021).

Antes da pesquisa, Kafka teve alguns contatos com a Psicologia. Ele conta
que, quando criança, a mãe considerava-o muito “rebelde” e, por isso, a família
buscou atendimento psicológico para ele. Já na adolescência, no Ensino Médio, voltou
à psicoterapia por estar sofrendo bullying. “Eu precisava superar aquilo e ia pra falar
sobre aquilo”, diz Kafka na segunda dinâmica conversacional. Já quando estava na
universidade, pediu atendimento psicológico para iniciar a hormonização, entretanto,
foi informado de que o atendimento não era necessário para este fim e que lá também
não faziam transição hormonal. Mas, mesmo assim, seria oferecido atendimento caso
166

ele quisesse. Ele aceitou em decorrência, principalmente, da ansiedade e por


suspeitar que também tinha depressão.
O atendimento na universidade era feito por estagiários/as/es. Ele começou
com uma psicóloga de quem gostou bastante, mas logo acabou o estágio e ele passou
a ser atendido por outras pessoas. Na época, Kafka estava iniciando a transição
hormonal e então encontrou o psicólogo que lhe atende hoje em dia. Ele fez mestrado
sobre questões de gênero e também é nordestino, motivo pelo qual Kafka encontrou
identificação. O atendimento é particular, com valor social. De 2018 a 2021, Kafka
teve acompanhamento psiquiátrico e tomou medicamentos quando teve o diagnóstico
de ansiedade e depressão. Ele não chegou a ter crises de ansiedade, mas considera
que leva uma “vida ansiosa”.

Eu não conseguia mais pagar psiquiatra, mas onde eu fazia a transição


hormonal os médicos receitavam ansiolítico. Só que eu não consegui um
psiquiatra especialista pelo SUS. Depois, comecei com uma psiquiatra que
era do hospital emergencial, mas ela fazia a gambiarra de atender a gente.
Foi quando eu decidi parar o remédio de ansiedade. Antes, eu tinha parado
a hormonização também. Acho que não foi só o remédio que me ajudou
muito, mas eu comecei em uma religião, tenho grupos de apoio no Rio, eu
tenho um namoro saudável e estável. Ele me apresentou para a família dele
e a família dele é um tipo uma segunda família para mim no Rio. Eu tenho
animais que me ajudam, então várias coisas vão me ajudando. Eu não me
arrependo de ter tomado remédio, mas hoje em dia eu considero que eu estou
muito melhor sem. Afetou muito a minha libido. Efeitos colaterais. Isso foi uma
coisa que me marcou muito, mas foi bom, eu precisei (KAFKA, DC2, 2021).

Em alguns momentos já apresentados, Kafka fala sobre transição/transicionar.


Neste sentido, ele entende que somente o fato de se descobrir já se trata de uma
transição. Autodescoberta. A partir dela, segundo Kafka, já se torna possível mudar
as coisas em si. Ele percebe, em sua história de vida, que transicionou quando iniciou
a jornada da sua identidade, de assumir-se, às vezes mudar o guarda-roupa e,
consequentemente, a forma como se apresenta para o mundo. “Primeiro você quer
ser muito masculino, você descobre que não necessariamente você precisa ser. Uma
eterna transição” (KAFKA, DC1, 2021). Outro âmbito é o da transição hormonal. No
caso de Kafka, ele iniciou-a em 2018, ao mesmo tempo que começou a tomar a
medicação para ansiedade.

Aí tem a transição hormonal, que a gente tenta não chamar de “tratamento”


[ou “terapia”] hormonal porque as pessoas acham patologizante. Eu não vejo
problema na palavra “terapia”, porque terapia é maravilhosa, mas muita gente
não gosta, então eu acabo chamando de transição hormonal ou
167

hormonização. Aí, quando eu boto hormonal junto, é a questão de hormônios,


testosterona e tal (KAFKA, DC2, 2021).

As questões sobre transição corroboram o indicador de construção contínua


de identidade de gênero. Ainda, em relação ao processo de transição hormonal,
Kafka buscou algumas alternativas no serviço público, mas não conseguiu e passou
para o atendimento particular. Com isso, foi atendido por um psiquiatra que também
é trans. Por segurança, ele não queria fazer nada por conta própria como várias
pessoas conhecidas que não tinham outras condições. Normalmente, segundo ele, os
serviços públicos são bastante demorados. Kafka considera que demorou para iniciá-
lo porque, antes, precisou da psicoterapia para se aceitar e era algo que queria fazer
por si, não por outras pessoas ou para ter passabilidade. Ele conta como percebeu as
mudanças no Rio acerca dessa questão.

Depois, eu passei a ir em um outro ambulatório, porque começaram a surgir


ambulatórios no Rio. Começaram os médicos da família a se juntarem e
fazerem. A minha médica, inclusive, de onde eu comecei, ela tinha um filho
trans, aí foi muito isso dos médicos mesmo, porque o Estado não dá. Tinha
um grupo de conversa e as consultas. Usei [testosterona] durante 1 ano e 4
meses. Eu tava tomando e do nada eu voltei a menstruar. Só que eu não
estava com dores absurdas ou como se tivesse acontecido alguma coisa
comigo. Eu voltei a menstruar sem cólica e [a menstruação] regulada, coisa
que nunca tinha acontecido comigo. Antes eu morria de cólica e sentia muita
dor. Não sei cientificamente o que era isso, porque não tem muitos estudos
sobre pessoas trans (KAFKA, DC2, 2021).

Um dos pontos que Kafka passou a questionar conforme fez uso da


testosterona foi se havia nele vontade de engravidar. Desde muito cedo não era uma
vontade, visto que ele a percebia como algo muito relacionado ao feminino e, ao
mesmo tempo, desde criança já dizia que gostaria de adotar. Neste sentido, quando
a médica lhe perguntava sobre o assunto por causa da possibilidade de a testosterona
deixá-lo infértil, ele sentia-se tranquilo porque, ainda assim, a adoção seria possível.
Todavia, quando entrou em contato com histórias de pessoas trans engravidando,
passou a pensar novamente sobre isso a partir de outro ponto de vista e outras
vontades.

(...) Aí eu comecei a conhecer histórias de pessoas trans engravidando (...).


Aí eu parei para não ficar infértil, pra engravidar. Aí veio uma pandemia no
meio disso. Não sei quando eu vou engravidar. Além de ser uma pessoa em
grupo de risco, eu demorei mais a me formar, não sei como vai ser o futuro
do Brasil em questão de emprego. Então, eu tô nesse limbo. Não sei se eu
volto a fazer a transição porque, quando eu tava na quarentena, era mais ok,
168

porque eu não via pessoas e não tinha transfobia. Agora que as coisas estão
um pouco voltando, eu tenho sentido mais disforia, que eu não tinha mais
antes, e aí eu tô pensando o que eu faço, porque agora como eu tô pra me
formar, eu sempre pensei que eu queria ser muito independente, ter uma
grande carreira. E ter um filho, querendo ou não, atrapalha. Porque fazer
mestrado, fazer doutorado, procurar emprego que você trabalhe viajando,
Relações Internacionais, que é meu curso, não sei se é uma boa ideia ter um
filho agora. Então ainda tô na dúvida de voltar a usar T [testosterona] ou não
(KAFKA, DC2, 2021).

Quando perguntado sobre o que ele acha que seria interessante as pessoas
saberem sobre gênero e não binariedade, aquilo que a sociedade precisa
desenvolver, Kafka responde que a primeira coisa que lhe vem à cabeça é que
identidade de gênero e orientação sexual são coisas distintas. Ele incomoda-se com
as pressuposições nesse sentido, principalmente que partam de uma ideia binarista e
cisheteronormativa.

Nasci menina, aí vai ser homem pra ficar com mulheres, só que você não
precisa ser homem pra ficar com mulheres e você também não vai ser homem
por conta que você fica. (...) Ah, vamos supor que eu estivesse com uma
mulher namorando: “Ah, então você, tipo, enfrenta essa questão de fazer
hormonização, cirurgia, mudar nome, tudo por conta de que você gosta de
mulher?” Não faz sentido, não sei, tipo, você gosta da pessoa porque você
gosta da pessoa, por ela, por você mesmo, sabe? Não tem a ver com o seu
corpo. E aí acho que isso tá muito arraigado na binariedade. De você só ter
uma opção, que se você vai transicionar você vai ser trans ou homem ou
mulher e só hétero, sabe? Então, as pessoas acham que você ser
transmasculino é ser uma lésbica muito masculina, você ser transfeminina é
uma gay muito afeminada e aí isso é muito ruim. (...) As pessoas acham que
você vai transicionar e você vai ser totalmente só homem, e não é assim
(KAFKA, DC1, 2021).

Com isso, está relacionada também a utopia de Kafka para um mundo melhor.
Para ele, um mundo melhor seria aquele onde as pessoas soubessem o que é gênero
e sexualidade, onde tivessem acesso a essas informações, entendessem que se trata
de uma questão social e que a biologia não é totalmente determinante. Com essa
compreensão, Kafka acredita que o preconceito não existiria. O conhecimento,
portanto, combateria a ignorância.
Os indicadores aqui elencados foram:

● Aproximação estética das masculinidades;


● Sentidos subjetivos relacionados à solidão de sentir-se diferente;
● Silenciamento frente a questões sobre identidade de gênero e orientação
sexual;
● Busca de acolhimento por grupos e pessoas LGBTI+;
169

● Internet como possibilidade de vivenciar a identidade de gênero e orientação


sexual;
● “Ganhar o mundo” como forma de conquistar a liberdade para ser e expressar-
se como é;
● Sentidos subjetivos relacionados à disforia ligados ao preconceito e à
transfobia;
● Construção contínua de identidade de gênero;
● Religiosidade como geradora de sentidos subjetivos sobre a existência;
● Virtualidade como espaço possível de ampliação de contatos, redes de apoio
e conhecimentos;
● Arte como um lugar de conforto e refúgio.

Por meio da articulação desses indicadores, foi possível a elaboração da


seguinte hipótese:

● O silenciamento frente a questões sobre identidade de gênero e orientação


sexual acaba sendo reproduzido por Kafka até certa medida, tratando-se nesse
caso de identidade de gênero quando opta por posicionar-se enquanto
transmasculino sem mencionar a não binariedade. Nisso estaria a relação com
a solidão de sentir-se diferente, uma vez que se trata de um desconforto a ser
evitado, além de um certo cansaço conectado ao fato de se fazer referência -
quando fala nas redes sociais sobre gênero ou quando buscava acolhimento
por grupos e pessoas LGBTI+ na adolescência - em um lugar político ainda em
construção: a não binariedade.

Por fim entre binariedades e não binariedades, entre aproximações estéticas e


distanciamentos de refúgios solitários e silenciamentos, Kafka busca o mundo, abre o
mundo, ganha o mundo. Kafka encontra o mundo na arte, Kafka encontra-se nos
desabafos da poesia. Enreda-se com altivez política na virtualidade das subjetividades
e das objetividades possíveis. E torna possível, também, esta dissertação.
170
171

6.1.5 SER VIANTE: BOKOTO

Bokoto foi quem inspirou o título dessa pesquisa com sua perspectiva crítica,
afetuosa e sensível sobre a vida. “Desviantes são as pessoas que impõem. Sistemas
que impõem essa normatividade compulsória [principalmente] pela violência. Nós
somos “viantes”, construímos vias” (BOKOTO, DC2, 2021). Bokoto constrói vias a
partir das grupalidades, do afeto, da preocupação/atuação social, do posicionamento
político, da militância, da Psicologia e da arte. São também criadas vias a partir do
que Bokoto reflete sobre identidade, corporeidade, trans e cisgeneridade e
colonialidade. Ainda, com seus poemas alcança a resposta de “qual o lugar da arte
para você?” com mais precisão do que qualquer outra explicação extensamente
elaborada.

Bokoto, 25 anos, trans não binárie em aproximação com as


transmasculinidades, utiliza pronomes neutros 64 e masculinos, pansexual, classe
média, autodeclara-se “branque”65. Nasceu no Rio de Janeiro - RJ e mora atualmente
na mesma cidade. Possui Ensino Superior incompleto em Psicologia. Além da
formação acadêmico-escolar, realizou cursos de promoção à cidadania e histórico de

64
Foram utilizados os pronomes “elu/delu”, conforme Bokoto refere a si mesme.
65
Pessoa branca. “Branque” foi escrito na linguagem neutra por Bokoto na resposta do formulário.
172

lutas por direitos das populações LGBTIA+66. Atualmente, faz um curso de formação
política para a mobilização por direitos das populações travestis, trans, trans não
bináries e gênero dissidentes67.

Quando Bokoto era criança, tinha dificuldade em entender o que separava as


pessoas em dois. Não entendia, porque não via tanta diferença. Depois, compreendeu
que o nome disso era gênero, que as pessoas chamavam de gênero. Sendo assim,
vinha em primeiro lugar o questionamento sobre o que é gênero e quanto mais elu
crescia, mais foi sentindo um desconforto ao perceber que isso acompanha todas as
pessoas de diferentes formas pelas vidas. No período da adolescência, Bokoto
passou a elaborar perguntas mais complexas.

(...) “cara, isso é tão frágil, gênero é tão frágil!” Ao mesmo tempo que é uma
fantasia, uma ficção hiper materializada. De forma nenhuma ela é banal. Ela
tem efeitos muito reais, mas isso aqui é tão “mexível”, sabe? O que antes
parecia um prédio de concreto, começou a parecer uma amoeba, saca? Aí
depois eu comecei a ter raiva, porque aqueles afetos se relacionavam com
quem eu era de fato e eu ainda não sabia, só tinha algumas pistas. Então, no
final das contas, gênero para mim hoje é um campo de disputa. Eu acho que
eu definiria assim. É um território de disputa. Eu não sei se eu consigo definir,
não sei se está muito aéreo, mas acho que é um campo de disputa e
tensionamentos (BOKOTO, DC2, 2021).

Esse trecho levou-nos ao indicador da impermanência do gênero, que


também, enquanto “território de disputa”, relaciona-se ao poder, ao saber e ao
domínio. Ademais, dado que não conseguisse dividir os gêneros que socialmente se
apresentavam, nunca foi uma questão ou um momento de descoberta de suas
aberturas afetivo-sexuais porque elu não entendia uma determinada pessoa como
sendo do sexo oposto ou uma pessoa do mesmo sexo. Lembra que, na adolescência,
não utilizava a palavra “gênero”, então seriam divisões por sexo. Justamente por isso,
Bokoto também se sentia socialmente “devagar”, com dificuldades em lidar com
ambientes sociais, com situações que não faziam sentido para elu. Quando passou a
conhecer pessoas trans, encontrou mais explicações para seus questionamentos e
desconfortos.

66
Outra possibilidade de nomear o movimento trazida por Bokoto na resposta ao formulário de
informações gerais das pessoas participantes. LGBTIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Trans
e Travestis, pessoas Intersexo, Assexuais e demais possibilidades).
67
Bokoto traz a definição de pessoas “gênero dissidentes” durante as dinâmicas conversacionais e
isso será exposto no texto.
173

Na primeira dinâmica conversacional, foi perguntado quais são os pronomes


de Bokoto e qual a importância que elu percebe nessa pergunta. Disse que prefere
pronomes neutros e masculinos, então aqui utilizamos “elu/delu” - por estar em
conformidade à forma como Bokoto referiu-se em diferentes momentos - e em
algumas situações pontuais, o masculino. Além disso, prefere que isso seja
perguntado a inferido, levando-nos ao indicador da não inferência de gênero como
porta de entrada para uma relação.

(...) porque se tem uma coisa que eu me entendendo enquanto não binárie
me ajudou a entender e a minha visão de mundo é que não dá para você
assumir o gênero de ninguém, ninguém mesmo, ninguém no mundo dá pra
você assumir o gênero. Por nenhuma característica, nenhuma questão. É
simplesmente por autodeclaração mesmo que a gente constrói as relações.
Então o que eu busco sempre fazer é prestar uma atenção ali, principalmente
quando eu estou conhecendo a pessoa, né. Não conheço os pronomes, aí eu
presto uma atenção em como ela está se referenciando, né, se ela coloca
algumas pistas de como ela se vê e, se não, aí eu pergunto. Então, se a
pessoa não me pergunta isso pode estar acontecendo ou a pessoa pode
estar só assumindo algum gênero, né, e pronomes para mim (BOKOTO, DC1,
2021).

De acordo com o que foi constatado por Bokoto, 2020 foi o ano em que a
linguagem neutra passou a entrar em um debate social para além da comunidade
trans. Conforme torna-se mais popular, também aparecem as represálias e deboches,
mas Bokoto considera que também existem vias sendo criadas com mais maturidade
e amadurecimento para falar-se do assunto. Os referenciais estão em construção.
A linguagem neutra, para Bokoto, ocupa principalmente um lugar de
experimento pessoal. Como pensar uma linguagem sem pronomes? Como pensar
numa língua não generificada? Esses eram alguns dos questionamentos delu. Nesse
experimento pessoal, elu se propôs a referir-se a si mesme e a outras pessoas em
uma linguagem não generificada. Reformulava as frases de forma que não colocava
seu gênero ou de outras pessoas nas frases. Comenta que era um processo
trabalhoso e nem sempre conseguia.
Outro assunto trazido nas dinâmicas conversacionais diz respeito aos lugares
em que Bokoto considera conseguir ser elu mesme. Afirma que são limitados.
Coletivas68 trans ou gênero dissidentes, grupos de psicólogues trans e grupos de

68
Bokoto se refere a “coletivo” no feminino. É uma maneira de utilizar a palavra com o “feminino
disruptivo”, ou seja, transformar a palavra como forma de questionar sua construção. Outro exemplo
utilizado por Bokoto durante as dinâmicas conversacionais é “corpa” ao invés de “corpo”.
174

artistas trans. Em grupos de transmasculinidades sente que consegue “ser”, mas não
em totalidade, por ser um lugar principalmente de homens trans e elu não se percebe
nem se apresenta assim. “E aí essas pessoas são 99,9% trans ou gênero dissidentes,
as pessoas com as quais eu consigo ser eu” (BOKOTO, DC2, 2021). Elencamos aqui
o indicador de sentidos subjetivos de pertencimento e acolhimento em grupos
em que se encontram pessoas gênero dissidentes.
Bokoto aproxima-se, no que tange à espiritualidade, das religiões afroindígenas
brasileiras nas quais os orixás não têm gênero, apesar de, segundo elu, alguns
terreiros não deixarem de ser discriminatórios. Bokoto estava realizando uma
pesquisa e constatou que são nessas religiões que se depara com mais pessoas
gênero dissidentes, conseguindo encontrar um espaço para si e sentindo acolhimento.
Onde são respeitadas e conseguem, de acordo com elu, trabalhar a sua
individualidade.
Ainda sobre os lugares que Bokoto ocupa, antes da pandemia sentia-se mais
tranquile quando alugava um quarto na região metropolitana do Rio de Janeiro junto
a homens cis héteros, em razão das condições financeiras do momento e por ser um
local perto da faculdade, no alto de um morro, com várias plantas. Um lugar que lhe
agradava em diferentes aspectos. O espaço da faculdade era onde Bokoto sentia que
conseguia impor-se, porém, com a pandemia e o ensino à distância, passou a lidar
com novas questões.

(...) não tinha mais convivência, comer junto, bandejão, enfim. Então, no
espaço de aula tinham professores que já me conheciam, me respeitavam,
outres que não. Aí, processo chato né, porque assim, pode dizer o que for,
mas quando você abre o microfone para falar, é uma chuva de pronomes
errados. (...) Nunca foi um espaço dado, mas limitou as possibilidades de eu
me colocar com totalidade. Isso me deixou na merda por um tempo, mas
depois eu pensei: “Ah, sempre foi assim, vai sempre ser isso mesmo”.
Continuei participando. Às vezes eu corrigia, às vezes eu só cagava. Às
vezes algumas pessoas corrigiam, o que era muito bom (BOKOTO, DC2,
2021).

Esse trecho corrobora o indicador da não inferência de gênero como porta


de entrada para uma relação e também nos levou a um novo indicador de cansaço
e desânimo onde se vê conformado com uma realidade que lhe dificulta a
existência. Bokoto conta que sua orientadora deu aula na Universidade. Ela é uma
mulher trans e a experiência de Bokoto e de outres amigues trans que também
estavam nessa aula, segundo elu, foi incrível. “Eu pude conhecer como eu conseguiria
175

estar num espaço acadêmico se as coisas fossem diferentes” (BOKOTO, DC2, 2021).
Isso se relaciona ao indicador de sentidos subjetivos de pertencimento e
acolhimento em grupos em que se encontram pessoas gênero dissidentes.
Quando começou a pandemia, Bokoto pretendia mudar-se, porém, os planos
precisaram ser modificados e elu ficou na casa dos pais no Rio de Janeiro. Na casa
moram Bokoto, o pai, a mãe, o irmão de 19 anos e os avós. Esses últimos estão
morando lá temporariamente porque a sua casa, no momento da conversa com
Bokoto, estava em obras. A convivência com a família trouxe memórias e sensações
da adolescência. Bokoto afirma que nesse momento “travou” e sentiu-se novamente
“embotade”.

Eu percebi que é uma repetição que eu faço de ficar até meio lesado. Meio
fora do mundo porque é um mundo que eu não consigo viver e chega uma
hora que a força pra se opor e pra lutar, não sei se esgota, se não está tendo
reenergização. Só falando com pessoas trans pela internet e eu nem sou uma
pessoa muito do virtual, saca? Então tá sendo, esses dois anos, tá sendo um
período muito difícil (BOKOTO, DC2, 2021).

Esse trecho relaciona-se ao indicador de cansaço e desânimo onde se vê


conformado com uma realidade que lhe dificulta a existência, assim como as
informações que seguem. Elu conta que conseguiu conversar com os pais. Antes,
pretendia iniciar hormonização e, quando houvesse modificações mais aparentes,
diria aos pais que é uma pessoa trans. Sentiu que morando fora e não estando com
eles todos os dias, conseguiu expor, porém, não compreenderam muito bem.

(...) e aí de novo cai nesse lugar da experiência não binária. Ficam me


perguntando: “Então você é homem agora? Você quer tirar os peitos e ter
barba?” E aí eu respondo pra eles: “Não, não sou um homem e não sei se eu
quero fazer qualquer uma dessas coisas”. Sobre os meus peitos eu já me
decidi, mas é muito esse lugar de não estar no imaginário deles, sabe? Antes
de trazer o nome não binário eu fui trazendo outras coisas. “Olha, eu não me
identifico com ser homem ou ser mulher”. Fui explicando. Tive mais de uma
conversa, foi muito dolorido. Dolorido pra eles também. Eu tinha muito medo
dessas conversas (BOKOTO, DC2, 2021).

O pai de Bokoto começou aos poucos a falar pronomes neutros, a mãe não.
Chamam-no de “Bokoto” e não mais o nome de registro. Elu entende que aconteceram
alguns avanços neste sentido, “mas eu ainda estou nesse lugar de incógnita. Ainda tô
nesse lugar de esquisito, aberração” (BOKOTO, DC2, 2021). O irmão mais novo faz
176

piadas com a situação, porém, houve mudanças quando ele teve contato com uma
menina trans nos jogos online que tem costume de jogar.
Ele foi super respeitoso com a menina, pensava que ela era trans. Ela foi lá
e falou pra ele. Estão super migues. Eu vi meu irmão começar a chegar em
mim e falar, tipo, me perguntar: “Quais são seus pronomes?” Ainda fazendo
piada, mas ao mesmo tempo meio sério, então ele começou a ser provocado
por isso, não respeita ainda, mas quando ele fala com outras pessoas ele se
refere a mim como “irmão”, por exemplo. Dá aquela explosão de felicidade
assim (BOKOTO, DC2, 2021).

Com a explosão de felicidade de Bokoto, vemos a relação com o irmão sendo


construída, o que se conecta ao indicador da não inferência de gênero como porta
de entrada para uma relação, mas também vai além, tratando-se do respeito por
como Bokoto quer ser chamade. Com esse cenário na família, também elencamos o
indicador de reclusão em um lugar não inteligível, por mais que Bokoto identifique
esforços por parte de seu pai e irmão em algum nível.
Outro espaço onde consegue ser elu mesme é o próprio quarto. Principalmente
durante a pandemia, esse foi um local em que Bokoto passou grande parte do tempo.
O isolamento causado pelo momento foi espacial e também de evitamento de
interações quando precisava sair de casa. O quarto tornou-se um espaço de
expressão e expansão. Acerca disso, ele comentou sobre a dinâmica conversacional:
“(...) Ter esse tipo de conversa, que não é uma conversa que eu teria com muitas
outras pessoas. Nem se fosse uma conversa mais cotidiana. Geralmente eu venho
pra cá” (BOKOTO, DC2, 2021).
Ao pensar sobre gênero e estudar sobre o tema, Bokoto produz sentidos
subjetivos sobre gênero. Elu afirma que gênero “produz mundo”, em contradição com
o “não lugar”, na medida que transcende a ideia de divisão feminino/masculino,
homem/mulher. Ressalta, inclusive, que a construção de gênero para pessoas
brancas e não brancas é diferente, uma vez que, historicamente, a partir de um ponto
de vista colonial, a racialização das pessoas em função de suas características étnico-
raciais também as coloca ligadas à animalização - macho/fêmea - ou simplesmente a
objetos sem gênero. Bokoto passou a atentar-se a essas questões a partir do contato
com pessoas e de suas vivências, mas depois, ao pesquisar, foi percebendo as raízes
profundas e os projetos seculares ligados ao gênero.

(...) o gênero passa muito por aí, ele é um discurso colonial, é uma produção
colonial. Como é uma produção colonial ele tem intenções, ele tá ligado a
políticas, projetos de tecnologias para que o discurso seja enraizado nas
177

pessoas, nos processos de subjetivação, nas sociedades e, ao mesmo


tempo, eu acho que o gênero, nesse sentido, tem diferentes vetorizações pra
diferentes pessoas. E eu digo isso com base no quê? Principalmente
características étnico-raciais, que também são atribuídas pelo discurso
colonial, que racializa as pessoas (BOKOTO, DC2, 2021).

Não é possível falar de gênero como uma coisa só. De acordo com Bokoto,
trata-se de uma multiplicidade, tanto de discursos de controle, construção e produção,
como também de vivências, não somente gênero dissidentes. A gênero dissidência
para Bokoto, diz respeito à ampliação da compreensão de gênero, principalmente
quando se trata de diferentes culturas. Elu traz essa reflexão para indicar que é
possível que, por exemplo, pessoas que seriam compreendidas como cisgênero em
uma determinada sociedade não se reconheçam assim e muito menos tenham uma
construção a partir da ideia de cisgeneridade. Tal ideia, inclusive, está diretamente
relacionada a uma construção branca e colonial.

Só aqui no Brasil, diversas etnias indígenas69 trazem que isso simplesmente


não faz sentido. Não faz sentido dizer que aquela pessoa... “heteronomear”
aquela pessoa cis ou como trans. E às vezes aquela pessoa diz: “Cara, isso
não faz sentido para mim a partir dos meus referenciais” e ao mesmo tempo
eu não me reconheço nessa normatividade, não me reconheço nesse sentido
que seria lido nessa sociedade generalista e supremacista branca, cisgênera
e tal... E heterocompulsória. Seria lida como uma pessoa cisgênero. Não é
do mesmo universo colocar essa pessoa como pessoa cisgênero, né
(BOKOTO, DC2, 2021).

Essas diferentes compreensões corroboram o indicador da impermanência


do gênero. Mais, os marcadores sociais são diversos e, para além das questões
étnico-raciais, Bokoto igualmente destaca que gênero também não é a mesma coisa
para pessoas com deficiência e sem deficiência, para pessoas de regiões e territórios
diferentes. Não é a mesma coisa para pessoas endossexuais 70 e intersexo71. Sobre
esse último ponto, Bokoto traz a questão do dimorfismo sexual:

(...) até pelos meus estudos, eu tenho visto como o gênero, como a gente
entende ele, essa constelação de dimorfismo sexual, de dividir entre homem
e mulher a partir da genitália... E aí a gente tem pessoas que efetivamente,
materialmente, inclusive, [que] contradizem essas leis biológicas, né, que são

69
Leitura complementar: FERNANDES, Rosa Maria Castilhos; DOMINGOS, Angélica. (Orgs.)
Políticas indigenistas: contribuições para afirmação e defesa dos direitos indígenas. Porto
Alegre: Editora da UFRGS/CEGOV ABEU (1ª edição), 2020.
70
“Endossexo: pessoa cujo corpo tem uma conformação gonodal, cromossômica, genital, e fenotípica
de acordo com a convenção social do que é estipulado como sexo feminino ou masculino”. (CIASCA;
HERCOWITZ; LOPES JUNIOR, GLOSSÁRIO, 2021)
71
Para mais informações: Associação Brasileira Intersexo (ABRAI) - https://abrai.org.br
178

colocadas pra definir o gênero, por exemplo pessoas Intersexo. São muito
apagadas, inclusive o apagamento delas é estratégico para manter essa ideia
de gênero. Então eu acho muito importante, porque também é uma luta muito
apagada, de como que a gente tem vários registros de cirurgias que estão
sendo feitas em bebês intersexo para construir uma genitália que caiba nesse
dimorfismo, pra realmente apagar a multiplicidade, a diversidade (BOKOTO,
DC2, 2021).

Isso se relaciona com o indicador da impermanência do gênero na medida


que, pela impossibilidade de as normativas classificatórias abarcarem a diferença e a
diversidade, são apagadas realidades, existências, pessoas, vias, pluralidades e a
possibilidade de ser sujeito.
Ao manifestar-se sobre o que entende por gênero, Bokoto afirma que é preciso
falar em pluralidade. Quando se refere à singularidade, elu está referindo-se ao
gênero como norma, ao mesmo tempo que esse mesmo gênero é mexido, modificado
e transformado, existindo em uma pluralidade, com possibilidades diversas de se ver
e articular o que se entende por isso.

É mais sobre o que a gente faz com essas ideias de gênero do que
necessariamente o gênero abrir vias, né (...) Eu acho que consigo afirmar que
não existe pessoa que não crie rachaduras, sabe? Nas ideias de gênero,
mesmo que seja na sua intimidade. Eu realmente acho, porque é uma norma
tão engessada, cristalizada e ridícula (risos) e ela se pretende ser... E aí eu
vou usar a palavra trans, né, transcultural, transcendente. Ela se pretende a
ser tão irrestrita, mas ela se materializa diferentemente com aqueles
marcadores que a gente falou e tal [classe, raça, gênero], que cara, eu acho
que em certa medida, geral faz isso, de criar uma via pra conseguir existir,
porque sobreviver só da norma eu nem sei se é possível, sabe? (BOKOTO,
DC2, 2021)

Gênero também se trata de um campo de imposição e normatização, no ponto


de vista de Bokoto. Entretanto, é possível “mexer” nele e criar a partir dele. Criar vias.
As “mexidas” de Bokoto no gênero, e nas ideias dele advindas, envolvem afeto e
emocionabilidade.
O afeto, para Bokoto, é seu guia. A confusão que fazia com as palavras
“efetivamente” e “afetivamente” em um certo momento da vida, passou a ser, agora,
proposital, integrada em seus textos, principalmente quando escreve sobre si. Efetivar
e “afetivar”, quando se trata de suas vivências, é a mesma coisa, “porque quando eu
não podia ser eu e me abraçar, me cuidar e me acolher, eu não conseguia estar em
relações” (BOKOTO, DC2, 2021). Sem afeto, não produz efeito.
179

A criatividade de Bokoto como sujeito expressa-se a todo momento em


sentidos subjetivos que nos levam ao indicador de “afetivar” como abertura de
vias para si e para as demais pessoas gênero dissidentes, como movimento,
ação, atividade, efetivação, efetuação e ativação.
Nesta jornada, sendo guiade pelo afeto, precisou prestar atenção ao que
sentia, principalmente durante a infância e no seu final. Já na adolescência, isso
ocorreu quando foi necessário recuar para não se deixar ser “engolide” pela norma.
“Eu acho que é uma experiência, que é o que a norma quer proporcionar pra gente
mesmo, da gente retirar a nós mesmes do jogo” (BOKOTO, DC2, 2021). Bokoto presta
atenção ao que sente desde a infância e retira-se do jogo normativo na adolescência.
Não renuncia a ser sujeito refletindo, posicionando-se, resistindo e abrindo novas vias.
O indicador da impermanência do gênero é sustentado pelo trecho que segue.

(...) O gênero também faz isso com a gente, a normativa de gênero né. Ele
cria a noção de que, para você pertencer a uma coletividade, uma
comunidade, você tem que seguir a normativa, porque se você não reproduzir
aquilo que a sua genitália indicou que você é, e se você não se vestir de tal
forma e fazer tais coisas e reproduzir certos papéis sociais, você não vai se
integrar. E aí não só pra pessoas gênero dissidentes, mas pra pessoas não
hétero, que também entram nesse diálogo de não corresponder a uma série
de paradas da norma, uma série de mandatos (BOKOTO, DC2, 2021).

A partir dos afetos, das aproximações, dos recuos e incômodos causados por
normativas impostas, Bokoto começa a “mexer” novamente nesta estrutura. Estar
atento aos afetos torna-se imperativo porque sente que é a única coisa a fazer quando
já estava em um processo de adoecimento. Elu traz uma metáfora sobre um
submarino para exemplificar todos esses sentimentos conturbados e, ao mesmo
tempo, libertadores, que produzem o movimento dialético, contraditório, de
tensionamento, sempre em diálogo, construindo vias criativas de configurações
subjetivas de identidade, subjetividade e atividade:

(...) então era “ou vai ou racha”. Ou melhor, era “vai e racha”, porque começou
a rachar. Eu escrevi essa imagem no TCC. Essa imagem de eu começando
a ver que eu precisava mexer nesse rolê de gênero e tal. A imagem que me
veio assim foi de eu estando em um submarino, sozinhe em um primeiro
momento, mas depois eu fui descobrir que eu não tava sozinho. Ali numa
parte do submarino que eu tô sozinhe, começa a rachar as paredes do
submarino e a água começa a entrar e eu vou tentando tapar com o meu
próprio corpo. Tentando fazer meu próprio corpo de barreira. E essa missão
é impossível por definição, saca? Porque era uma parada de outra dimensão
que meu corpo real não ia dar conta de parar, né. Então essa água vai
entrando e na medida que vai entrando eu não consigo parar todas as
180

rachaduras. Eu vou percebendo que a água é muito mais confortável e


gostosa. Eu tenho uma sensação de casa e acolhimento do meu lugar do que
o próprio submarino. Então também vem no sentido de ceder aos meus
afetos, ao que eles estão me indicando. E o que eles estavam indicando? De
que tentar corresponder à normativa de gênero tava me adoecendo, tava me
fazendo me jogar só pro escanteio, me jogar pro fundo da caixinha e jogar
tudo de mim junto (BOKOTO, DC2, 2021).

Esse foi um momento em que se sentia prestes a morrer, distanciava-se do


próprio corpo e sentia-se fora dele. Elu carregava, quase que literalmente, imposições
nas costas. Não existia uma relação entre si mesme com seu corpo e seu gênero.
Elencamos, com isso, o indicador das fissuras e rachaduras como novas vias de
subjetivação, igualmente sustentado por quando Bokoto refere-se a gênero e afirma
que “não existe pessoa que não crie rachaduras” (BOKOTO, DC2, 2021) nas ideias
de gênero.
Para voltar a atentar-se a seus afetos, elu precisou realizar um movimento, até
certo ponto forçado e dificultoso, de retornar à terapia. Foi então para a terapia
corporal em busca de auxílio. Com isso, passou a observar-se e a compreender-se
melhor, sobretudo corporalmente.

(...) mexer com gênero e mexer com as normativas me viabilizou primeiro ser
eu, de fato. E esse “ser eu”, acho que a gente não precisa... Eu não reivindico
isso para mim mais, porque tava me adoecendo reivindicar, mas acho que a
gente não precisa, enquanto pessoas, reivindicar: “Isso aqui sou eu” e ter um
“eu” super estruturado, consolidado, sólido. É o que de fato te proporciona a
sensação de “eu”, sabe? Quando eu parei de reivindicar isso para mim, foi
super assim, e tem super relação de eu me entender enquanto uma pessoa
não binária porque, tipo, eu me entender enquanto pessoa não binária, pra
mim, envolve uma fluidez de como eu estou me entendendo também, sabe?
Envolve uma não fixação com o que que eu estou entendendo sobre mim o
que que eu estou querendo para mim. Envolve ter uma sensação de
movimento, de liberdade. Então acho que mexer com o gênero me viabilizou
eu poder ser eu. Poder criar uma saúde para mim, porque eu não podia criar
um campo de saúde para mim, porque nada era possível. Parecia que eu
tava sempre sem ferramentas, sem referencial e sem um corpo pra fazer
qualquer articulação (BOKOTO, DC2, 2021).

Sem ferramentas, sem referencial e sem um corpo. Foi buscando e


encontrando essas três coisas que Bokoto pôde trazer tantas dimensões de sua
vivência para esta pesquisa, demarcando os passos na busca constante de si. Hoje,
elu conecta-se a pessoas, está em relações, é referência para outres, conhece mais
sobre seu corpo e produz saúde não somente para si, mas para as pessoas que
atende no campo da Psicologia.
181

A experiência de gênero, para Bokoto, é um dos grandes “atravessadores” de


como nos relacionamos com o mundo, como o interpretamos e como o vemos e
sentimos. A partir do momento que essa relação é conturbada, o relacionamento com
o mundo, por consequência, é abalado de maneira idêntica. Construímos, portanto, a
hipótese, sustentada principalmente pelos indicadores da impermanência do
gênero e das fissuras e rachaduras como novas vias de subjetivação, de que o
gênero - em sua ampla compreensão - permite subverter a noção de “eu” estruturado,
interno, “meu”. Nesse sentido, os conceitos da Teoria da Subjetividade de sujeito,
subjetividade individual, subjetividade social e identidade como configuração subjetiva
são importantes, uma vez que oferecem aporte para superação do subjetivismo.
De acordo com González Rey e Mitjáns Martínez (2017), a concepção de
subjetividade distancia-se radicalmente de uma visão subjetivista, mentalista,
idealista, metafísica, individualista, intrapsíquica e essencialista. Contrapõe-se tanto
à concepção de subjetividade como princípio universal e a-histórico, na perspectiva
de um desenvolvimento progressivo, ordenado, linear quanto à concepção
determinista. A subjetividade não se internaliza, não é algo que vem de “fora” e que
aparece “dentro”. É uma qualidade especificamente humana e um processo cultural,
histórico e social. O autor e a autora conduzem-nos a uma representação da psique
em uma nova dimensão complexa, sistêmica, dialógica e dialética, superando a ideia
de uma natureza humana inerente ao indivíduo (FERRARINI, 2020).
Acerca dessa questão, Bokoto comenta a respeito de uma imagem exibida na
mídia com certa frequência, de pessoas gênero dissidentes frente a um espelho e, de
alguma forma, não gostando do que veem. Essa cena, para elu, acaba sendo caricata,
uma vez que reduz experiências gênero dissidentes ao sofrimento e, por outro lado,
um pouco mais sutil, possui um viés mandatório, quase como um pré-requisito para
alguém que se reconhece fora da norma e dos padrões. Ao mesmo tempo que elu
compreende ser parte de algumas vivências, é uma imagem romantizada, não
representativa, que nem serve de ajuda. Tornou-se tão repetida que, por vezes, elu já
se viu reproduzindo-a sem mesmo dar-se conta.

(...) E aí começar a produzir essa cena na vida, sabe? E o trabalho que a


gente tem que fazer para nos desamarrar dessas caricaturas que nos
adoecem é gigante. E esse é só um exemplo. E eu tinha essa cena do
espelho minha, que não era uma cena de eu estar sofrendo, mas era uma
cena que eu olhava pro espelho e eu via uma pessoa, mas eu estava tão
distanciade dos meus afetos, que eu não sentia necessariamente, assim,
182

nada. Estava embotade, sabe? Aquela palavra em inglês numb [tradução:


entorpecido], sabe? Embotado mesmo, sabe? Ficava assim na frente do
espelho. Cara, eu estou vendo uma pessoa na frente do espelho, mas eu não
consigo relacionar essa pessoa que eu to vendo com esse “eu” que eu nem
conseguia delimitar. Então era uma bagunça, sabe? Era uma bagunça que
me adoecia cada vez mais (BOKOTO, DC2, 2021).

Com isso, associado aos indicadores de cansaço e desânimo onde se vê


conformado com uma realidade que lhe dificulta a existência e ao indicador de
reclusão em um lugar não inteligível, elencamos o indicador de imposições
normativas como geradoras de sofrimento, o que se conecta do mesmo modo ao
que foi exposto por Bokoto sobre ter que seguir determinadas normas para pertencer
a uma coletividade. Na dinâmica conversacional em grupo, Bokoto trouxe suas
considerações sobre identidade após apresentar um poema, que será reproduzido
aqui mais adiante. Elu reflete sobre como a identidade é algo que busca resumir. Além
disso, ao pensar em saberes localizados, Bokoto questiona por quem ou “quens” a
noção de identidade foi constituída e consolidada. Identidade, para elu, é viva,
complexa e variável. Diferentes grupalidades e diferentes tempos talvez tenham,
portanto, mais palavras e expressões para significar identidade.
Identidade não binária, conforme Bokoto salienta, já traz há certo tempo a ideia
de ser um termo “guarda-chuva”, usado para abarcar diferentes formas de se entender
não binárie. Elu pensa, neste sentido, em um viés político dos nomes e categorias.
Categorias políticas que embasam lutas e viabilizam a conquista de direitos de cuja
construção fazem parte. Além disso, também a importância do reconhecimento
enquanto pessoas e cidadãs.

A gente não é nada ingênuo e sabe o quanto tudo isso é extremamente


limitado. Fico pensando... Eu me coloco enquanto pessoa não binária
transmasculina e isso é uma certa forma de tentar mapear politicamente
minha existência, minha expressão, me juntar com pessoas, como a gente tá
junte hoje. A gente somente se juntou a partir dessa categoria identitária.
Enfim, lutar e coletivizar, mas o quanto que também a gente fica tanto na luta
política e se criam padrões ao redor da identidade que acaba se voltando
contra nós também (BOKOTO, DCG, 2021).

Aqui elencamos, portanto, com as próprias palavras de Bokoto, o indicador da


identidade como mapeamento político da existência, que também se relaciona
com o que foi trazido pelas demais pessoas participantes desta pesquisa. Ademais,
o “voltar contra nós” a que Bokoto se refere, é explicado em seguida, quando
questiona como essas categorias identitárias podem ser progressivamente
183

capturadas pela lógica colonial cis, hétero e branca, em um processo de redução e


criação de padrões até que a complexidade e multiplicidade já não façam mais
sentido, o que se conecta ao indicador de reclusão em um lugar não inteligível.

E como a gente vê isso? Por exemplo, a ideia de uma pessoa não binária
sendo incorporada, sendo colocada enquanto corpo branco, magro, sem
deficiência, com grana... Tem muito dessa visão das pessoas da gringa e
como que, em vários sentidos, isso se joga contra nós. Eu tenho me debatido
que nem um peixe fora d’água com essa questão de identidade. Não vou
deixar a luta política, porque ela me compõe e vivendo a gente já está sendo
uma luta política, mas o quanto que também é isso, ter que sustentar: “Eu
sou uma pessoa não binária” e ter que lutar também pela sua existência e
também de outras pessoas. Quantas vezes a gente, infelizmente, é a única
pessoa NB em um espaço e carrega esse peso todo e você também não
poder se expressar de outras formas, sabe? Você ser limitade a aquilo ali.
Enfim, tentando também não se sufocar com esses códigos todos que são
criados, até mesmo sobre algo que é tão variável e complexo quanto a não
binariedade (BOKOTO, DCG, 2021).

Esse trecho relaciona-se com a hipótese elaborada em Kafka, de que o


silenciamento frente a questões sobre identidade de gênero e orientação sexual
é reproduzido por Kafka, em certa medida, quando se opta em posicionar-se enquanto
transmasculino sem mencionar a não binariedade. Aqui, Bokoto traz a dimensão do
“peso” e limitação de se ocupar um espaço em que sua existência precisa ser
sustentada sem que seja sufocada, o que se relaciona ao indicador de imposições
normativas como geradoras de sofrimento.
Incógnita é uma palavra que Bokoto trouxe de formas diferentes durante as
dinâmicas conversacionais. Em um primeiro momento, elu cita a dificuldade em
relacionar-se amorosa e afetivamente com as pessoas pelo fato de elas interpretarem
como algo estranho, “alienígena”, a forma como elu faz misturas de roupas e símbolos
que seriam socialmente atribuídos a um determinado gênero - indicador das fissuras
e rachaduras como novas vias de subjetivação. Bokoto traz o exemplo de usar
bermuda grande, blusa bem comprida e solta, ao mesmo tempo que quer usar
maquiagem e unhas postiças. Reconhece que é possível encontrar pessoas para as
quais elu não seria uma incógnita. Provavelmente, segundo Bokoto, pessoas também
gênero dissidentes, o que corrobora o indicador de sentidos subjetivos de
pertencimento e acolhimento em grupos de pessoas gênero dissidentes.
Outro uso da palavra incógnita foi feito quando Bokoto declara que uma
premissa para si mesme é a de que não sabe o gênero das pessoas. Tem esse
pensamento desde o momento em que sai na rua até estar conversando com alguém.
184

Não presume nada sobre a pessoa e esta seria para elu uma incógnita até que, por
meio da troca, esta pessoa se apresente. Neste caso, tratar como uma incógnita seria
um lugar de respeito à autodeterminação e compreensão de que é por meio da relação
que se conhece outra pessoa. Não se trata, portanto, de duvidar da pessoa, mas da
classificação normativa de gênero.
Outro sentido para “incógnita” esteve relacionado a um lugar ocupado por
pessoas não bináries como sendo fora do imaginário, fora do que se entende
enquanto gênero, fora da cisheteronormatividade e da lógica binária. Não está em um
campo de possibilidades, o que sustenta o indicador de reclusão em um lugar não
inteligível. De acordo com Bokoto, não se tem um equivalente normativo para como
elu se identifica, nem um caminho para espelhar-se. Sentiu isso com a família, que
mesmo fazendo alguns esforços pontuais, não o compreendem bem. “É como se
viesse na frente do nosso corpo uma grande marca de interrogação, que inclusive vai
nos marcando até fora de um campo de pessoa” (BOKOTO, DC2, 2021).

Eu acho que, assim, a experiência de ser ou estar incógnita, ela vem muito
na relação, no laço social, principalmente num laço social cishetero branco
normativo. A ideia de você ser uma incógnita parte daí. Nesse imaginário
cisheterobranco, não existe uma possibilidade de vida que seja assim. Se
aparece algo assim é uma falha da natureza, uma aberração, um monstro,
uma parada absurda (BOKOTO, DC2, 2021).

Entretanto, em alguns locais onde existe abertura, apoio e segurança para se


criar e ampliar um imaginário de que a existência de pessoas não bináries é possível,
em que se tem uma multiplicidade de possibilidades do existir e relacionar-se com o
gênero, onde essa pessoa e a forma como se identifica não são vistas como
aberração, então o lugar de incógnita se desloca e elas são, portanto, vistas como
possibilidades de existir. Isso se associa ao indicador das fissuras e rachaduras
como novas vias de subjetivação e ao indicador de sentidos subjetivos de
pertencimento e acolhimento em grupos de pessoas gênero dissidentes.

(...) Em diversos lugares, inclusive no Brasil, em certas comunidades, em


certos espaços, aquela experiência que a gente coloca como não binárie,
trans, não vai ser uma incógnita, vai ser um lugar que existe. Ela vai ser um
lugar que tem a sua dinâmica já inserida. Não precisa necessariamente
romper para que exista. Ela já é uma possibilidade (BOKOTO, DC2, 2021).

(...) Eu acho que é uma experiência ruim ser uma incógnita quando você não
está com uma base pra se sustentar em segurança. Esse é um lado da
experiência. Eu não sinto mais ele hoje, mas nos últimos anos eu acho que
185

pende pro lado ruim da experiência, quando a gente não tem uma
comunidade, quando a gente não tem segurança e apoio, porque no final das
contas, é você... Eu não lembro, eu já vi isso muitas vezes. Acho que muitas
travestis falam disso, você se veste pra guerra. Você se vestindo como você
quer ir enfrentando esses códigos e normativas, você está se vestindo para
a guerra. Ao mesmo tempo você tá se vestindo porque você quer, porque
aquilo traz saúde (BOKOTO, DC2, 2021).

“Eu não te digo o que eu sou, eu te digo o que eu não sou, que é binárie (...) O
que eu sou, só na relação que dá pra gente desenrolar” (BOKOTO, DC1, 2021). Os
trechos apresentados relacionam-se com o indicador da identidade como
mapeamento político da existência e também com o indicador da não inferência
de gênero como porta de entrada para uma relação.
“A dissidência vai existir se existir uma norma”. Essa é a afirmação feita por
Bokoto na segunda dinâmica conversacional. Essa dissidência é construída
historicamente como um “não lugar”, trazida em um lugar de “problemática, faltante,
no lugar de distorção de algo” (BOKOTO, DC2, 2021), o que sustenta o indicador de
reclusão em um lugar não inteligível. Hoje em dia, Bokoto gosta do termo “não
binárie”, encontra-se e reconhece-se nele, mas ao mesmo tempo entende ser um
nome que envolve a negação de algo, da normatividade. Elu salienta uma forma de
construir vias para se pensar sobre isso - indicador das fissuras e rachaduras como
novas vias de subjetivação - trazendo o exemplo de ume amigue indígena que utiliza
o termo “kontrabynárye” como outra possibilidade de nomeação e escrita. Ainda,
quando elu sugere o termo “gênero viantes”, pensa no sentido de afirmação de um
lugar, além da negação da norma. Para elu, não é preciso somente fazer referência a
essa norma. É possível construir, apesar e além dela.
São feitas críticas à não binariedade, segundo Bokoto, como sendo uma
existência que colocaria a existência binária como errada, a ser superada, que
pessoas trans binárias estariam reforçando os estereótipos de gênero que remontam
a cisgeneridade, que a não binariedade estaria afirmando o caminho de uma real
transição ou que é preciso desapegar-se de qualquer referência de gênero.
Entretanto, de acordo com elu, interpretar a não binariedade dessa forma seria
enxergá-la - e às pessoas que assim se identificam – através de uma lógica colonial.
O pensamento colonial, conforme descreve Bokoto, é o de um grupo que se
afirma na medida em que outro deve ser destruído, entrando no âmbito do ataque, da
guerra, como se fossem grupos opostos, com focos diferentes, lutando por diferentes
coisas e que não poderiam fazer uma caminhada compartilhada. Sem a possibilidade
186

de coexistência. Chama-lhe a atenção quando, até no próprio meio trans, as pessoas


não binárias podem ser vistas como ameaças, “a gente ser visto enquanto um
elemento que tá questionando um modo de vida de pessoas trans binárias” (BOKOTO,
DC1, 2021). As diferenças geracionais são notadas por Bokoto neste processo,
considerando também a expectativa de vida da população trans.

(...) a gente não tem muitas pessoas trans mais velhas, sequer vivas. Se a
gente pensar na expectativa de vida de uma pessoa trans, é 35 [anos]. Então,
tipo assim, uma pessoa trans mais velha é uma pessoa trans com 29 anos,
28 já, né. (...) Eu vejo muita dificuldade de lidar, nessa questão geracional,
lidar com pessoas não binárias, mas também lidar com a flexibilização das
conversas sobre referenciais de gênero, sobre estereótipos de gênero que
gerações mais novas estão fazendo, né. Em que a gente vai estar pautando
que nada te define enquanto trans a não ser você se sentir trans. Não vai ser
qualquer outra questão, muito menos vai ser a realização de qualquer
procedimento dentro daquele protocolo, né, que seria o necessário para ser
trans, que era o que era entendido muito como necessário, inclusive
(BOKOTO, DC1, 2021).

Quando existe o posicionamento contra a obrigatoriedade, a compulsoriedade,


mesmo, de se realizar determinados procedimentos, de acordo com Bokoto, isso
também pode gerar um grande desconforto a nível pessoal, a nível de construção de
subjetividade, para algumas pessoas. É possível que, inclusive, essas se afastem da
militância por aquele se tornar um lugar em que são “remexidos” muitos assuntos. É
preciso ter cautela por se tratar de uma complexidade que vai além de querer ou não
querer fazer modificações corporais ou ser chamade/o/a por algum pronome. O que
nos remete aos indicadores de imposições normativas como geradoras de
sofrimento e identidade como mapeamento político da existência.

Quando a gente tá pautando, né, que: “Não, você não precisa ter um corpo
assim, assim, assado, você não precisa fazer isso ou aquilo”, começa a se
tornar insustentável para diversas pessoas estarem nessa discussão, até. Ou
por terem passado por esses procedimentos ou por quererem passar. Enfim,
é um ponto complicado porque é um movimento que não tem tempo da gente
não pautar a existência de todo um grupo em cima do auto ódio e da
necessidade de se remodelar em qualquer sentido, não só fisicamente, mas
de você ter que readequar uma mentalidade ou qualquer coisa assim, de ter
que se adestrar (BOKOTO, DC1, 2021).

Sobre isso, Bokoto também se remete à “passabilidade cis” como sendo um


termo controverso, uma vez que não se trata somente de “passar como uma pessoa
cis” pelos lugares. Elu considera útil, por vezes, o uso na conversa e no discurso para
187

se pensar em determinadas questões, porém, entende que existem limites. Para


exemplificar, contou um fato que ocorreu com sua professora.

(...) eu tive uma professora, mulher trans. Ela fez a cirurgia de redesignação
e também fez e faz uso de hormônios, também colocou prótese, silicone e aí,
nessa lógica de passabilidade, ela seria o suprassumo da passabilidade. (...)
E aí ela contou de uma vez que ela foi num date [tradução livre: encontro] e
o cara falou pra ela: “Eu sei que você é homem”. Ela já se preparou pro pior.
Aí o cara era dentista e falou que pela arcada dentária dela, ele conseguia
identificar que era uma arcada dentária que não era de uma mulher. Então,
sabe assim? A cisheterobranconormatividade vai num nível... Bizarro
(BOKOTO, DC2, 2021).

A luta construída, de acordo com elu, é uma luta pela saúde, pela
sustentabilidade, pela prosperidade - indicador da identidade como mapeamento
político da existência – porque, quanto menos compulsoriedade puder fazer parte
dessa construção, maiores passos podem ser dados. Elu acredita que a discussão
sobre não binariedade não se trata de tirar lugares de discussões da transgeneridade
de forma geral, conforme são feitas algumas críticas. Os debates sociais, de acordo
com Bokoto, não precisam funcionar dessa forma. As pessoas estão existindo e
diferentes pautas são discutidas em paralelo sem que uma apague ou se sobressaia
à outra.
Na dinâmica conversacional em grupo, Tuti, outre participante, comentou sobre
os ataques serem motivados pelo medo que as pessoas têm de ser quem são. Bokoto,
na ocasião, discordou de Tuti e colocou seu ponto de vista sobre o assunto. Pontuou
justamente a questão dos marcadores sociais, os quais vão fazer com que cada
pessoa tenha uma experiência de vida diferente que vai requerer diferentes ações.
Tais quais em busca, por vezes, de segurança. Não se trata de quem quebra mais
padrões. Elu comenta, como forma de exemplificar, que em alguns lugares sabe que
se colocar enquanto uma pessoa não binária pode ser complicado - indicador de
cansaço e desânimo onde se vê conformado com uma realidade que lhe dificulta
a existência e indicador de reclusão em um lugar não inteligível – então,
denomina-se trans ou, no máximo, transmasculine.
A estrutura social na qual vivemos, segundo Bokoto, tem como uma de suas
principais ferramentas o apagamento dos próprios rastros e, como em um “faz de
conta”, expõe determinadas questões como se fossem “naturais” ou fossem “sempre
assim”. Inclusive, isso pode aproximar-se da falácia do apelo à tradição, comumente
utilizada em nossa sociedade e que ocorre quando se afirma que algo, por ter sido
188

sempre de uma mesma maneira, deve permanecer assim e não ser mudado. O
problema principal nesse tipo de argumento é que a repetição de algo ao longo do
tempo não é diretamente proporcional à sua qualidade. Quando se trata
especificamente de gênero, não há referência somente ao que foi repetido, mas
também ao que foi apagado e invisibilizado.

Então, quando veem vidas, quando veem corpos, quando veem pessoas
expor isso, é dar um “tilt” no mecanismo da coisa mesmo, né. Então, é por
isso que também dá tanto problema, né? Porque às vezes a pessoa que vai
estar lhe fazendo uma represália e tudo e, até, sei lá, eu olho pro ódio dessa
forma assim também, de como que mexeu numa coisa estrutural mesmo.
Quando aparece uma mulher trans ali e aparece um cara que se diz cidadão
de bem, pai de família, vai e mata aquela mulher trans. É porque aquilo
mexeu numa questão estrutural nele, na vida dele em sociedade, tipo: “Não,
isso aqui é uma aberração”, porque cara, mulher e homem…” Cis, né? “Só
existe homem e mulher e a vida funciona assim” (BOKOTO, DC1, 2021).

Quando localizada essa questão no Brasil, Bokoto salienta a realidade de que


aqui há uma grande porcentagem da população trans trabalhando como profissionais
do sexo, de que esse é o país que mais consome pornografia trans e, ao mesmo
tempo, o país que mais mata pessoas trans no mundo. Elu questiona:

Que dinâmica é essa? Uma dinâmica muito específica, né? Onde a coisa tá
ali acontecendo, estão consumindo, né, mas tudo na surdina, né? Qual que
é o problema da exposição? O que que a exposição carrega, né? (...) “Olha
só como eu odeio tanto isso aqui. Eu sou capaz de matar na frente de vocês
todos” (BOKOTO, DC1, 2021).

Por um tempo durante a vida de Bokoto, entre os 21 e 22 anos, elu achava,


muito influenciado pela subjetividade social acerca das identidades de gênero - e por
situações reais expostas em noticiários e mídias sociais - que pessoas gênero
dissidentes, pessoas não binárias, trans e travestis só morriam. Bokoto cita Isadora
Ravena, travesti multiartista, arte-educadora, performer, que fez um trabalho com
outras travestis multiartistas chamado Travestis alimentam todo dia ao meio-dia72, no
qual produz uma crítica aos jornais sensacionalistas.

72
“Travestis alimentam todo dia ao meio-dia”. Proposição: Isadora Ravena, Georgia Vitrilis, Sarah
Nastroyanni e Júnior Meireles. Direção: Isadora Ravena. Criação e Performance: Caironi, Georgia
Vitrilis, Janine Aigle, Júnior Meireles, Larissa Olinda, Lucas Dilacerda, Lucas Pontes, Melindra Lindra,
Rayshinshuan, Isadora Ravena, Sarah Nastroyanni e Urutau. Disponível em:
https://vimeo.com/414811278
189

Então, desde criança eu assisti na TV a matança, a caçada de pessoas


gênero dissidentes, travestis, negras, indígenas, não brancas sendo
assassinadas, e esse assassinato com requinte de crueldade, que se repetia
semanalmente, às vezes mais de uma vez na semana, sendo colocado como
uma atitude heroica. Então, eu achava que a gente só morria. Eu não sabia
que a gente andava pela cidade, que a gente estava na faculdade, eu não
sabia que a gente estava tentando se inserir no mercado de trabalho, em
outros lugares que não no mercado informal, que não na prostituição ou até
reivindicando, fazendo uma luta dentro da prostituição para conseguir direitos
pra categorias de trabalhadores sexuais. Eu não sabia que a gente vivia
(BOKOTO, DC2, 2021).

(...) “ser trans é isso aqui, então se você não se vê nesse quadradinho muito
estreito do que é ser trans, então você é sei lá o quê, mas foda-se, você não
é trans”. É que gera muito sofrimento, isso gera muito, muito sofrimento,
então, por isso que volta naquele papo, né, de visibilidade, da gente se ver,
né... E aí um amigo escreveu até um texto no [grupo de artistas trans] e ele
fala sobre a real possibilidade da gente se ver, né. A gente se ver com
segurança, a gente não se ver só em manchete de jornal que tá usando o
nome morto da pessoa pra falar que ela foi assassinada, que uma pessoa
trans foi assassinada (BOKOTO, DC1, 2021).

Sem saber que havia vida, Bokoto sentia-se impossibilitade de pensar gênero
para além do lugar normativo. Sair disso seria encarar um “não lugar que incluía a
morte” (BOKOTO, DC2, 2021). Morte subjetiva e morte material/física. O que se
relaciona ao indicador de imposições normativas como geradoras de sofrimento.
Foi por aumentar suas redes de contato, conhecendo pessoas trans e travestis – e
pessoas trans não binárias um pouco mais tarde - que Bokoto passou a encontrar na
coletividade a fertilização, conforme elu se refere, do imaginário que estava morto,
além de si mesme também se sentir morrendo.
“Acho que a relação, a troca, é um componente fundamental”, diz Bokoto na
segunda dinâmica conversacional sobre um dos assuntos que mais ganhou destaque
nas conversas que tivemos: grupalidades.

(...) enquanto estratégia de marginalizar as nossas vidas e nos matar, o


isolamento e a exclusão são principais elementos, né. Uma pessoa ali, uma
pessoa trans, sendo sempre colocada nesse lugar onde ela vai ter que se
isolar ou vai ser isolada, né. Então, só o movimento da gente se juntar numa
grupalidade, por essa ou aquela movimentação assim, né, já é um cabo de
força que a gente começa... que a gente constrói pra gente, porque aí a gente
começa a ter referenciais. Você passa a não estar mais só (BOKOTO, DC2,
2021).

O trecho apresentado, assim como as informações acerca das grupalidades,


sustentam o indicador das fissuras e rachaduras como novas vias de
subjetivação e o indicador de sentidos subjetivos de pertencimento e
acolhimento em grupos de pessoas gênero dissidentes. Isso também nos leva a
190

um novo indicador de grupalidades como redes de apoio importantes para a


existência, oferecendo suporte, possibilitando afetos e efeitos, conforme supracitado
por Bokoto.
É revolucionária, de acordo com Bokoto, a possibilidade de relações de afeto
entre pessoas trans. “Caramba, a gente também é digne de ter espaço, de criar saúde
pra gente, de ser amade, de amar, de também odiar. Enfim, de poder acessar nossos
afetos” (BOKOTO, DC1, 2021). É por meio dessas grupalidades que elu considera
alcançar o entendimento de que, nesses grupos, algumas coisas são possíveis de
superar. Como viver uma vida dupla, esconder-se ou reprimir de alguma forma,
sempre intocade. Trata-se de uma “transrevolução”.
Nesses encontros com outras pessoas trans, Bokoto sentiu que vários
aspectos de si foram “desbloqueados”. Não somente sentimentos e afetos, mas
também memórias, coisas que não se encaixavam antes e pelas quais elu somente
passou ou vivenciou. Por intermédio de uma pessoa conhecia outras e, assim, foi
conhecendo novos grupos, eventos e diversas realidades.

E nesses espaços eu podia encontrar não só outras pessoas trans, mas


outras narrativas trans. Outras narrativas de vida porque aquele primeiro
grupo de pessoas trans com quem eu tive, tinha narrativas também muito...
que não batiam muito comigo, até porque seguiam até uma certa (...)
linearidade do que é ser trans, né, daquela narrativa trans mais endurecida,
né. “Eu odeio meu corpo, aí eu quero fazer mastectomia, eu quero usar
packer73, eu quero usar binder74, aí eu quero fazer hormonização”. E aí essas
pessoas até me interpelavam assim, tipo: “Ah, você é ‘pré T?” Tipo, pré
hormonização. “Ah, quando é que você vai fazer sua mastec?” Mastectomia,
né, de retirada dos seios e tal. E iam fazendo perguntas assim, que passava
por uma socialização trans. Já era coisa demais pra mim, então esse grupo
passou a não fazer sentido depois de um tempo (BOKOTO, DC1, 2021).

Foi por meio das grupalidades e de circular por elas que Bokoto percebeu que
era possível uma certa mobilidade, encontrar um espaço que lhe faça sentido sem
precisar deixar o movimento trans. O que se relaciona com o indicador das fissuras
e rachaduras como novas vias de subjetivação, uma vez que as grupalidades,
nesse sentido, permitem a fluidez e o fluxo da água - em referência à metáfora do
submarino trazida por Bokoto - transitarem sem a preocupação de tapar com corpo e
ideias as rachaduras feitas pela força da normatividade.

73
Packer: Pênis de silicone, utilizado para criar volume e/ou urinar.
74
Binder: “Bandagem” (tradução livre) utilizada no peito para o achatamento dos seios e aparência
mais “reta”.
191

Entretanto, salienta a dificuldade que encontrou de ter grupalidades não


binárias, por não terem ainda - em 2021 - um movimento social, muito menos um
movimento unificado. Por outro lado, percebe muitas movimentações independentes
de pessoas que conhece e também considera a organização que está sendo
construída em 2021 chamada Articulação Brasileira Não-Binárie - ABRANB75.

Afinal, quem quer ficar isolade, sozinhe e na merda, sabe? Porque essa
coletividade também envolve você conseguir ser amade, amar, envolve você
conseguir ter uma casa, saúde emocional, tudo na vida (risos). Então quem
é que quer ficar sozinho? (BOKOTO, DC2, 2021)

“A gente constrói utopias no meio das distopias todas, mas a gente se reúne
um pouco pra construir utopias mesmo” (BOKOTO, DC1, 2021). O que nos remete ao
indicador da identidade como mapeamento político da existência. A utopia de
Bokoto para um mundo melhor começa no presente, a partir do que já está sendo feito
por meio de resistência e exposição para o mundo do que se vê e sente. Uma utopia
que passa por alguns lugares. Por uma possibilidade de ganhar mais espaço e
respeito, por todas as vidas poderem estar seguras e acolhidas nos espaços, por
existir a possibilidade de se estar em espaços que hoje são legitimados, de tomadas
de decisão, de construção de trabalho. Além disso, uma utopia que passa pelos
marcadores sociais de poder que estão nas pessoas. A branquitude olhando para si,
a cisgeneridade olhando para si, a transgeneridade olhando para si e revendo suas
próprias bases, para o que se tem construído no mundo.
Outro lugar pelo qual essa utopia passaria seria por um cenário em que todos
conseguissem ver as guerras que estão existindo e que fossem capazes de encarar,
de fato, o que falta para que todas as pessoas sejam consideradas simplesmente
gente; ser humano. Com isso e com os trechos a seguir, o indicador das fissuras e
rachaduras como novas vias de subjetivação sustenta-se.

Ser considerado humano real, assim, nas suas diferenças, não num mundo
que busque ideais igualitários, porque isso não existe assim, mas nas suas
diferenças, sendo reconhecidos como gente. Acho que essa utopia também
passaria por, até por uma vangloriação assim. Isso existe? (risos) Enfim,
vangloriar as produções das vidas dissidentes, assim, sabe? Que já tão
rolando, a galera já está produzindo, já está lançando, não só em arte, não
só em texto acadêmico, não só em... Várias coisas, mas, tipo, isso ser
vangloriado, isso não ser só escorraçado ou ser tratado como algo assim...
Extraordinário, fora desse mundo. Não! Está neste mundo e precisa ser

75
Mais informações: facebook.com/abranb
192

celebrado, sabe? Que vozes trans, por exemplo, sejam vangloriadas, sejam
ouvidas, sejam consideradas. Que a gente saia do subterrâneo, sabe?
(BOKOTO, DC1, 2021)

Esse trecho está ligado diretamente ao indicador da identidade como


mapeamento político da existência. Outro aspecto da vivência de gênero para
Bokoto é a corporeidade. “Mas é tão bonito, por que você…” Essa é uma frase comum
e uma das primeiras reações que elu escuta ao falar sobre modificações corporais,
“(...) porque parte disso, desse discurso de que você precisa se odiar, de que precisa
ter alguma coisa errada sobre você” (BOKOTO, DC1, 2021). Na experiência de vida
de Bokoto, quando não são empurrados os procedimentos - cirurgias, hormonização
- ficam impedindo/segurando-o para que não os faça. De acordo com ele, são dois
posicionamentos muito problemáticos, uma vez que não existe lugar de escolha, o
que corrobora o indicador de imposições normativas como geradoras de
sofrimento.
A discussão sobre corporeidade tem se intensificado nos esportes, como no
caso da jogadora de vôlei Tifanny Abreu 76, que envolveu opiniões diversas,
preconceito e exclusão por parte de atletas e treinadoras/es cis. Um debate de nível
social que explicita a forma de funcionamento de uma sociedade que extrapola as
preocupações sobre um corpo ser capaz de competir com outro e adentra,
novamente, no discurso biomédico e patologizante.
A aproximação com a não binariedade e referências a esta possibilidade de se
identificar possibilitaram, para Bokoto, uma relação mais saudável com o próprio corpo
ou, como elu tem utilizado a palavra de outra forma, com a própria “corpa”.

Antes parecia que o meu corpo eram peças de quebra-cabeça, mas que
quando se juntavam ficavam sempre tremidas. Eu ficava tipo, parece que tem
um monte de gente recortada e colada aqui. Eu me senti um Frankenstein,
saca? E não que eu não me sinta mais. O meu TCC é muito sobre
monstruosidade, vem muito essa imagem do Frankenstein inclusive. Não
acho que ela diminui qualquer coisa, não acho que, tipo: “Ah, uma experiência
Frankenstein é uma experiência merda” ou ruim, só por ela ser uma
experiência misturada, mas eu comecei a ver fora desse lugar. Me ver, me
sentir fora desse lugar de: “Caralho, nada está fazendo sentido. Eu não sei
nem como me relacionar com esse corpo aqui. Quero fugir desse corpo aqui”.
E como é que você foge? (BOKOTO, DC2, 2021)

76
Ver: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/04/21/tiffany-abreu.htm
193

O que Bokoto entende por corporeidade, somado a quando falou sobre sentir-
se uma incógnita e trazendo ainda a mistura de vestimentas que seriam consideradas
femininas ou masculinas - bermuda grande, blusa bem comprida e solta, maquiagem
e unhas postiças – levam-nos ao indicador da corporeidade como via de
expressão de gênero. A ideia de incógnita difere da “monstruosidade” trazida por
Bokoto no trecho acima, tendo em vista que existe um lugar demarcado, mesmo que
de monstro, que se relaciona às “misturas” nas expressões de gênero.
Neste processo de entendimento de si, Bokoto também precisou encarar o que
efetivamente gostaria de mudar e o que não queria. Para isso, precisou entender as
normativas criadas pelo que elu chama de “branco-cistema-mundo”, que seriam as
expectativas de o que as pessoas trans, gênero dissidentes, teriam de fazer com o
próprio corpo. Ultimamente, tem se visto a partir de uma relação. A relação de si
consigo mesmo, de si com seu próprio corpo.

Não me relaciono com a minha genitália como ela está. Agora eu tô usando
testosterona e tal, e tá mudando e eu tô falando: “Cara, é isso aqui. É isso
aqui mesmo”. Pra mim, é como se eu estivesse mais cedo com isso aqui ou
era para eu alcançar isso aqui. Então me possibilitou ter essa relação com o
meu corpo e com o mundo (BOKOTO, DC2, 2021).

Nos momentos em que Bokoto pensa sobre corpo/corpa, traz também a


perspectiva crítica advinda da leitura de produções de pessoas negras e não brancas,
uma vez que tratar determinados grupos como “corpos” pode ser também uma forma
de inferiorização, apagamento das subjetividades individuais ou até sexualização e
objetificação. Um exemplo cotidiano é como nos referimos a alguém quando essa
pessoa vem a falecer: “o corpo está sendo velado”.

(...) hoje falo de pessoas não brancas porque no Brasil temos todas a essa
problemática da miscigenação. Não é fácil se declarar racialmente no Brasil,
conferir sua identidade racial. Mas também para não apagar, colocando
nessa dicotomia branques e negres. Branquitude e negritude, quando só no
nosso território que tem uma variedade imensa. Mas essas produções
começaram a atentar como que pessoas não brancas são muito mais
referidas enquanto corpos do que enquanto pessoas. Essa palavra “corpo”
veio dessa tradição colonial de colocar as pessoas não brancas só enquanto
corpo, sem subjetividade, sem história, sem narrativa, só um corpo pra ser
usado. (...) Se as melhores notícias que a gente têm são sobre pessoas não
brancas mortas, a palavra que a gente mais vê se remetendo a essas
pessoas é “corpos”, e aí dessas produções falando pra se atentar e subverter
isso, não falar só de corpos (BOKOTO, DC2, 2021).
194

Em um determinado momento, Bokoto estava próxime das terapias corporais


e isso chamava muito sua atenção de forma positiva. Porém, com o tempo, passou a
perceber que principalmente pessoas brancas faziam uma certa relação positiva com
falar sobre corpo, em contrapartida, produções de pessoas não brancas traziam para
o debate o cuidado ao se falar disso, considerando a história, cultura e o social.
Outro aspecto trazido por elu, e que se refere a algo que o movimenta neste
desenvolvimento de si, é o interesse por estilo pessoal na moda. Um mundo possível
para se expressar que, antes, para Bokoto, dizia respeito a algo pensado somente
para o conforto e, ao mesmo tempo, um esconderijo para o próprio corpo. Com isso,
e com o trecho a seguir, sustenta-se o indicador da corporeidade como via de
expressão de gênero.

Mexendo com gênero nessa vivência não binária, eu tô passando agora por
um rolê de finalmente ganhar espaço, ter saúde e confiança de querer usar
coisas muito diferentes. Até algumas paradas assim com uns decotes, sabe?
Tipo, super peito pra fora, até querer usar um binder, uma roupa nesses
signos assim masculino e feminino. Pegar as extremidades assim e também
misturar essas coisas. E isso me traz medo não só por sair na rua e medo de
represálias, até porque acontece isso de uns olhares, falarem umas paradas
de mau gosto. E tem, inclusive, aí eu não acho que isso seja de uma
experiência específica, mas quando você vai misturando algumas paradas
que saem dos códigos sociais de gênero binário, você vai virando uma
incógnita (BOKOTO, DC2, 2021).

Com essas experimentações, Bokoto traz novamente a ideia de incógnita, o


que se conecta ao indicador de reclusão em um lugar não inteligível. O medo de
sair na rua como indicador de imposições normativas como geradoras de
sofrimento e, conforme aborda, quando mistura as extremidades, isso se associa ao
indicador das fissuras e rachaduras como novas vias de subjetivação.
Logo que Bokoto se apresenta, já fala sobre os grupos dos quais faz parte.
Está em um movimento social de pessoas transmasculinas, participa de um grupo de
WhatsApp para compartilhar dicas, saberes, experiências e também o utiliza como um
espaço de acolhimento, o que sustenta o indicador de grupalidades como redes
de apoio. O endócrino com o qual se consulta hoje em dia foi por indicação de
pessoas do grupo. Coordena um grupo de artistas “transvestigêneres”, que inclui
pessoas trans e travestis. O objetivo é fortalecer e impulsionar as artes feitas por essas
pessoas, além de formar uma rede de contatos. Também faz parte de um grupo de
psicólogas, psicólogos e psicólogues trans. Além disso, faz parte da construção de
um projeto para homens trans e pessoas transmasculines com foco na saúde integral.
195

Isso corrobora o indicador de sentidos subjetivos de pertencimento e


acolhimento em grupos de pessoas gênero dissidentes sendo que, neste
momento, por saber da importância desses grupos, Bokoto também os viabiliza.

(...) a gente tá meio construindo, provocando a saúde institucional a ver as


nossas demandas, ver o que a gente tá precisando, né, porque muitas
vezes, fica só a pessoa indo lá sozinha, pelo corre, e muitas vezes a pessoa
nem vai porque são ambientes hostis, ambientes onde a gente é humilhade,
violentade, e tal, e aí a gente tá nesse trabalho também de, com a saúde
em si, né, de adentrar enquanto projeto assim (BOKOTO, DC1, 2021).

Dentro da área da saúde, o contato com a Resolução Nº 1, de 29 de janeiro de


2018, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), foi de suma importância para Bokoto
porque é um documento no qual a Psicologia, enquanto ciência e profissão, assume
um compromisso com o combate à transfobia e com a transformação de um cenário
no qual a Psicologia teria um papel de validação e permissão da independência de
pessoas trans no que concerne à realização de alguns procedimentos.

E aí também foi muito crucial, para mim, ver um documento oficial falando
sobre... Ah, não é essa palavra que eu quero usar, mas assim, a supremacia
mesmo da autodeclaração, né. Que o posicionamento da pessoa é soberano
sobre qualquer outra questão, sobre qualquer posicionamento do
profissional. E isso bateu na minha vida, assim, inclusive, enquanto pessoa
trans, também de uma forma muito louca (...), porque foi uma outra relação
que eu comecei a construir com a saúde também, em que... cara, a gente
está tendo algum respaldo, algum apoio (BOKOTO, DC1, 2021).

A supremacia da autodeclaração à qual Bokoto se refere trata-se do Art. 7º da


Resolução supracitada. Onde está escrito:

Art. 7º: As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não


exercerão qualquer ação que favoreça a patologização das pessoas
transexuais e travestis. Parágrafo único: As psicólogas e os psicólogos, na
sua prática profissional, reconhecerão e legitimarão a autodeterminação das
pessoas transexuais e travestis em relação às suas identidades de gênero
(CFP, 2018).

Bokoto também ressalta que não é uma luta começando “do zero”, porque
existem pessoas trans nos Conselhos Regionais e no Conselho Federal. Ou seja, já
existem pessoas trabalhando para que hoje tenhamos, por exemplo, acesso a essa
resolução. Com isso, elu ressalta a importância da equipe da área de saúde neste
lugar profissional ocupado por corpos - conforme elu nomeia - que em geral destoam
do perfil profissional da área, normalmente constituído por pessoas cis, supostamente
196

heterossexuais, brancas e com marcadores sociais que diferem usualmente das


pessoas que frequentam, enquanto usuárias, o sistema de saúde.

(...) Então, a gente acaba atuando também como agente de equidade, né?
Então o nosso corpo estar presente ali é não só ir abrindo aquele próprio
espaço para entrar em relação com pessoas, agora pegando como exemplo
pessoas trans, né, mas dá pra gente fazer isso com qualquer experiência
dissidente da norma, né. (...) Do quando que a gente estar presente lá,
começa a abrir pra um relacionamento conosco enquanto seres humanos
complexos, né, que estão para aquém e para além de qualquer protocolagem
das nossas vidas. A gente ainda tá brigando, a gente ainda tá lutando para
ser reconhecide enquanto gente, para vir para o básico, né... Pra gente não
ser nem tratade como uma monstruosidade ou uma vida excêntrica... Não!
Que a gente come, caga, bebe como todo mundo, que a gente tem todo tipo
de conversa, de demanda e que, enfim, vai começando um trabalho de
humanização ali também. Se reverbera não só para o espaço em equipe, mas
também pro dia a dia do serviço (BOKOTO, DC1, 2021).

Sobre a ocupação desses espaços, Bokoto conta sobre uma experiência que
teve em um espaço no Rio de Janeiro que ainda é regido pela lógica manicomial. Elu
passou duas vezes por esse lugar com trabalhos diferentes. Enquanto estava lá,
encontrou duas pessoas que, após várias conversas e maior aproximação, elu
percebeu como pessoas trans, “mas que o serviço via como, no máximo: ‘Ah, um
viadinho’ ou via como uma ‘sapatona’” (BOKOTO, DC1, 2021). E tratava-se de
internação dividida por gênero - subjetividade hegemônica nos espaços de saúde -
então, as pessoas estavam alocadas ali com a interpretação social de gênero e
estavam, naquele momento, com a saúde mental muito comprometida. A equipe, de
acordo com Bokoto, não entendia as expressões de gênero enquanto expressões que
apontavam para uma transgeneridade. Além disso, não havia nenhuma pessoa trans
na equipe multiprofissional.

Daí eu comecei a tocar essa ideia com a equipe, no dia a dia ali, indo aos
pouquinhos, né, até que chegou num ponto em que uma dessas pessoas
conseguiu dizer para mim, um desses usuários chegou e conseguiu dizer que
não se identificava... Enfim, que se identificava enquanto uma mulher trans e
não queria continuar na internação masculina, por exemplo, e aí toda uma luta
com a equipe para falar: “Olha, mas essa pessoa tá trocando isso comigo, essa
pessoa tá me passando isso e já tá expressivamente colocando que não pode
estar neste espaço porque não condiz com a vivência dela”. E aí era tomada
como delírio, era tomado como isso aquilo, todas as nomenclaturas (BOKOTO,
DC1, 2021).

As nomenclaturas referidas são as nomenclaturas biomédicas. Para Bokoto,


servem somente para violentar e, mesmo que seja falado sobre um certo avanço nos
197

manuais diagnósticos como o CID ou DSM, pela transexualidade ou transgeneridade


não serem mais classificadas como distúrbios de saúde ou distúrbios psiquiátricos,
ainda assim, acaba sendo uma alocação mínima que retira de um enquadramento
(“Transtorno de Identidade de Gênero”) e destina a outro (“Disforia de Gênero”), mas
ainda enquanto transtorno ou distúrbio. Apesar disso, o que também deve ser
percebido, conforme Bokoto salienta, é como isso tudo é utilizado na prática
profissional e se estes discursos estão presentes no direcionamento - ou falta dele -
e criação de políticas públicas e políticas de Estado.

Para pessoas trans, o tratamento vai continuar a ser aquele que está já
endurecido, calcificado, sobre essas vidas, né. Então, é um trabalho que
ainda vai ser muito extenso, extensivo e intensivo, né. No dia a dia dos
dispositivos, porque na prática mesmo, o quadro não mudou tanto e
pensando mais assim, no SUS. (...) Uma das primeiras coisas, elementos,
acontecimentos assim que me aproximaram da transgeneridade, (...) [foi que]
há três anos atrás, três anos e meio eu nem sabia que pessoas trans eram
pessoas, que existiam, que andavam por aí, sabe? Eu não sabia da
existência. Eu tinha aquele repertório violento e opressor. Eu tinha algum
repertório, principalmente sobre mulheres trans e travestis e aquele repertório
que a gente conhece né, que é só pra, na verdade, violentar as nossas vidas.
Não tinha ideia que tinham homens trans, transmasculines, não bináries,
então foi todo um tempo pra eu saber que existia e que se podia ser, né
(BOKOTO, DC1, 2021).

Entre 2017 e 2018, a partir do contato com uma colega e o namorado dela, que
é um homem trans, Bokoto passou a pensar sobre o lugar ocupado pela Psicologia
quando se trata de questões de gênero. Percebeu, ao pesquisar, que não havia
espaço na formação para esses temas, nem na graduação nem na pós-graduação.

(...) e a gente não tinha nada para falar sequer sobre gênero, sequer pra falar
qualquer questão de gênero, quiçá falar em pessoas trans existindo, um lugar
referencial da Psicologia nessa relação. Eu fiquei: “Cara, isso é um
problema”. Aquilo foi alarmante para mim (...) e por mais que a Psicologia não
estivesse naquele momento reconhecendo pessoas trans como pessoas, e
tal, e reconhecendo o seu lugar nessa relação, tinha que, no mínimo: “Tá,
pessoas trans estão aí e a Psicologia tá numa posição de validação dessa
estrutura biomédica e protocolar”. Então, as pessoas têm que ter isso na
graduação. (...) Nem essa parte que é patológica não dão, imagina discutir
as pessoas trans enquanto pessoas, sabe? É um pouco maior ainda, mas
naquela época, eu tava tipo: “Caralho, a gente não tá olhando nem para um
laudo”, sabe? Então isso me deu uma estalada também e isso é uma
problemática que a gente está enfrentando ainda, enquanto pessoas que
estão na formação (BOKOTO, DC1, 2021).

Ao mesmo tempo que Bokoto compreende ser necessário ter espaços para
falar dos temas em questão, também entende que, se vidas fossem realmente
198

reconhecidas enquanto vidas, elas já estariam presentes nesses aprendizados


praticamente em todas as disciplinas. O ideal seria não precisarmos de disciplinas
específicas, por exemplo, para falar sobre questões étnico-raciais. Estaria presente
em todas as discussões porque simplesmente é um fator que faz parte da sociedade
e afeta diretamente as pessoas que dela fazem parte. Entretanto, a realidade nos
cursos de graduação - em Psicologia, neste caso - não é assim (BONATO, 2019).
Bokoto evidencia que existem problemas estruturais nos cursos e linhas teóricas neles
ensinadas. Comenta sobre uma experiência que teve em uma aula de Piaget, sobre
desenvolvimento infantil:

(...) aí a gente tava vendo um vídeo e no final do vídeo era a pessoa falando,
né: “Ah, mas isso aqui se aplica… A gente fez isso aqui com essas crianças,
com essa demografia e aí isso meio que se aplica só a essas crianças”. A
gente ficava meio que se perguntando: “Tá, mas o que que eu vou fazer aqui
no Brasil nessa abordagem, com crianças não brancas e que não têm… que
têm estruturas familiares diferentes ou crianças que foram criadas em
estruturas familiares diferentes?” Tem questões que é realmente voltar na
base, né? E aí eu acho que pensar um caminho em que escuta é
interessante. Cara, é o pulo do gato e é o mais necessário assim. Mas o
interessante é pensar a partir da diferença, sabe? Não só de pensar uma
escuta para pessoas trans, mas que escuta é essa que não acolhe nenhuma
diferença? (BOKOTO, DC1, 2021)

“Que escuta é essa que não acolhe nenhuma diferença?” Repetimos aqui essa
pergunta tão importante. Esse também é um questionamento feito por Sofia Favero
(2020), que, ao se referir à clínica, propõe uma via de enfrentamento:

(...) pensar uma terapia “pajubada” é justamente o momento de reafirmar um


abrasileiramento da clínica. Convido-lhe a responder negativamente aos
chamados da nosologia, da gramática psicopatológica, de um frio e
engessado consultório, distante, pretensamente neutro, pálido. Reaja comigo
às atualizações da colonização, aos modos como a tradição médica cria
consequências econômicas e carnais às travestis e pessoas trans (FAVERO,
p.20, 2020).

Como uma pessoa diferente do padrão vai ser acolhida por profissionais da
Psicologia? Como a escuta está sendo pensada? Para quais corpos? Quais vidas?
Existe um “sujeito universal” a quem essa escuta é pensada durante toda uma
graduação em Psicologia? São essas outras as inquietações trazidas por Bokoto. A
partir das informações que trouxemos sobre a ligação de Bokoto com a Psicologia,
elencamos o indicador da Psicologia como possibilidade de ampliar
199

compreensões sobre gênero e diversidade, seja a nível de compreensões


individuais ou ao pensar sobre saúde mental de forma mais ampla.
A proposta para a dinâmica conversacional em grupo, conforme já exposto, foi
fazermos uma espécie de Slam e, para isso, Bokoto leu um de seus poemas 77. Acerca
disso, elencamos o indicador da arte como via de livre produção e expressão de
sentidos subjetivos relativos a seu lugar no mundo e o que percebe sobre ele. Aqui,
portanto, compreendemos a arte como configuração subjetiva da identidade que
permite “produzir mundo”. Para elu, trata-se de uma visão das pessoas enquanto não
bináries adentrando um limbo. O que não significa não ter nenhuma referência porque,
segundo elu, estão construindo-as enquanto vivem. Percebe como um lugar solitário
e um tanto “esvaziado”.

vejo a parte mansa de um rio


as águas, como o céu, parecem rasas e profundas na mesma intensidade
caminhar ou afundar nele parece questão de assumir uma coisa ou outra
talvez mesmo afundar um pé, enquanto o outro permanece numa superfície
porque se assume ambas as naturezas ao mesmo tempo
possíveis, passíveis de acontecer
talvez aí aconteça uma terceira natureza, ou algo
que é apenas um mais-de-dois
talvez aí também se faça uma caminhada
desalinhada, arranhando, desdobrando o tecido do que sonhamos pra nós
e queimando os planos que nos fizeram

os contratos que nunca assinamos


queimam como fogo na água
mostrando a parte inflamável disso tudo
a parte inflamável disso tudo
a parte que sentíamos,
ancorada em medo e sonho

continuamos movendo-nos e talvez


um tanto brasa, um tanto encanto
nosso movimento mesmo fazendo
ondas na água
se esbarrando e fazendo encontro
tímido e forte…

(BOKOTO, DCG, 2021)

Com isso, formulamos a hipótese de que o limbo com o qual se depara


enquanto pessoa não binárie, por vezes, aparece como reclusão em um lugar não
inteligível, mas é também um lugar que carrega vida, prosperidade e abundância,
que elu transmuta em água no poema. Por meio das fissuras e rachaduras, criam-

77
Foi pedido a Bokoto o arquivo do poema após o encontro e aqui apresentamos conforme estava
escrito em respeito à autoria e sua liberdade artística/poética.
200

se novas vias de subjetivação, embora seja, ao mesmo tempo, um “não lugar”,


constantemente invisibilizado, invadido e esvaziado por imposições normativas que
geram sofrimento. Uma forma de ir na contramão dessas imposições é por meio das
grupalidades que se mostram como redes de apoio, conseguindo assim chegar ao
pertencimento e acolhimento em grupos de pessoas gênero dissidentes que
compreendem seus processos.
Na primeira dinâmica conversacional foi perguntado a Bokoto, ao final do
diálogo, qual era o lugar da arte em tudo aquilo que havíamos conversado. Sua
resposta surpreendeu. Sentiu vontade de responder com arte. Leu um poema. Isso
se associa ao indicador da arte como via de livre expressão de sentidos
subjetivos. Em seguida, sentiu-se confortável para compartilhar mais um, dessa vez
sobre cuidado. Explicou que o primeiro se referia ao ambiente das ruas, das “correrias”
do cotidiano e dos problemas enfrentados. Já o segundo relaciona-se a um momento
durante a pandemia, um próximo passo. Promoveu, com isso, uma troca sincera e
sensível entre artistas; entre participante e pesquisadora.

Branco-Cisnobyl
Em frente onde escrevo a carta que [incompreensível] a pele, carta aos
mundos que se vão, depois um espelho que faz tamanho com a minha mão
aberta, que levo na bolsa pondo na cara da rua mesmo sem querer. Em que
caixinha cê vai tentar me espremer? Pra eu caber na noção rasa que cê tem
de gente válida. Esse pacote que diz, que cada pira que eu dou, cada abismo
que eu crio asa é pira falha? Te enxerga que tu vai ver, tem muito mais
debaixo desse teu tapete que tu entope de qualquer noia pobre, só pra ver
se engole. Revolução que não passa na tua Smart TV. É bebê, a gente não
veio só para ficar, a gente veio pra se mover e pra mobilizar. Cês acharam
mesmo que iam se safar? Eu conheço um pique diferente, uma gente do fim
do mundo, cria e criadora dos fins do mundo. [Incompreensível] viva com
essa coisa de ser... só coisa. Elas caminham, correm com as ruínas se
alongam no caos, maratonam na Chernobyl que é o dia a dia ciscêntrico,
entre o silêncio e as sementes, que só amanhã pra ver no que vão dar, mas
valem de hoje pela nossa força e sutileza que movimentam. Cada passo
fazendo afronta ao binômio ausência-saturação que eles nos espremem
achando que vamos pular fora. É que, olha meu irmão, a gente já é o fora,
criando dentro, criando fora. Acorda! Desviantes são eles, nós somos viantes,
criamos vias. Viabilizamos as rachaduras junto dos mundos que o tal fardo
do homem branco fardado até hoje tenta exterminar. [Incompreensível] isso
tá levando o mundo à loucura, isso tá uma loucura em corpo. Isso! O meu
corpo! Uma loucura, muitas, várias... Cria... Crua... Cura... Cru atravessa a
encruzilhada nada crua. É a caminhada das coisas noturneiras fazendo beira,
fazendo esquina. Cada curva que acentua... A palavra é sorrateira, como a
Linn, quando diz que é mais cobra do que a pele que fica pra trás da própria
quebrada. Isso... Nada disso... Enlouquecer na medida em que o peito faz
curva com o vendaval. Se nutrir de boa comida e carinho. Mudar-se... Plantar-
se... Tomar seu tempo, tomar sua dose do que quer que te crie saúde. Viver...
com insistência que causa espanto. Com nosso canto reconhecer o canto de
mais traças que traçarão a queda dessa merda genocida toda. Ser o próprio
201

convite, em forma de subversão, pra que o mundo experimente os outros de


si mesmo (BOKOTO, DC1, 2021).

Parar um pouco... Parar um pouco e mesmo rouco fazer uma oração pra mim,
pra nós. Pra nós respirar fundo pra continuar, pra que a palavra do amar não
se embole no corpo inteiro sem encontrar lugar. Para que faça seus caminhos
e seus carinhos permitam com arrepiar até o mais doído de nós. Que seja
bem cuidado o mais doído de nós. Que seja recebido em abraço e assim dê
espaço para florescer desatando os nós do adoecimento e do passado. Que
os nossos laços sejam pontes pra chegar mais perto, e mesmo nesses corres
incertos nós tem um canto ou colo de paz. Uma vela acesa para afastar os
males mentais e chamar pra perto os guias espirituais que acompanham
nossos passos, nossas versas, nossos processos. Que sempre tenhamos
acesso àquela parte que se esconde, para onde vão todos os amores que
eles tentaram banir de nós, mas que volta e meia brotam na tua voz e me
fazem lembrar que a gente não anda só. Enquanto eu não piso no mar... Ah,
enquanto eu não piso no mar eu te vejo e te canto de longe... e mando pelo
vento amor pros nossos nós… (BOKOTO, DC1, 2021)

Por meio da poesia, Bokoto sintetiza a vida. Encontra as “partes que se


escondem” ou que foram escondidas por exclusões e preconceitos. Suas palavras
emocionam. Emocionaram-me durante as dinâmicas conversacionais, durante as
leituras das transcrições e neste exato momento em que essas palavras estão sendo
digitadas. Esta pesquisa tem emoções, tem vida e está pulsando.

Os indicadores aqui elencados foram:

● Impermanência do gênero;
● Não inferência de gênero como porta de entrada para uma relação;
● Sentidos subjetivos de pertencimento e acolhimento em grupos de pessoas
gênero dissidentes;
● Cansaço e desânimo onde se vê conformado com uma realidade que lhe
dificulta a existência;
● Reclusão em um lugar não inteligível;
● Fissuras e rachaduras como novas vias de subjetivação;
● Imposições normativas como geradoras de sofrimento;
● Identidade como mapeamento político da existência;
● Grupalidades como redes de apoio;
● Corporeidade como via de expressão de gênero;
● Arte como via de livre produção e expressão de sentidos subjetivos.
202

Por meio da articulação destes indicadores, foi possível a elaboração das


seguintes hipóteses:

x O gênero - em sua ampla compreensão - permite subverter a noção de “eu”


estruturado, interno, “meu”. Nesse sentido, os conceitos da Teoria da
Subjetividade de sujeito, subjetividade individual, subjetividade social e
identidade como configuração subjetiva são importantes, uma vez que
oferecem aporte para superação do subjetivismo.
● O limbo com o qual se depara enquanto pessoa não binárie, por vezes aparece
como reclusão em um lugar não inteligível, mas é também um lugar que
carrega vida, prosperidade e abundância, que elu transmuta em água no
poema. Por meio das fissuras e rachaduras criam-se novas vias de
subjetivação, embora seja ao mesmo tempo um “não lugar”, constantemente
invisibilizado, invadido e esvaziado por imposições normativas que geram
sofrimento. Uma forma de ir na contramão dessas imposições é por meio das
grupalidades que se mostram como redes de apoio, conseguindo assim chegar
ao pertencimento e acolhimento em grupos de pessoas gênero dissidentes que
compreendem seus processos.
203

6.2 VIAS COMPARTILHADAS

Algumas vias são compartilhadas nas diferentes experiências de vida descritas


nesta pesquisa e, portanto, este capítulo é dedicado a destacá-las, associando a
artigos do livro A Primavera Não-Binárie: O protagonismo trans não-binárie no fazer
científico, organizado por Morgan Morgado e publicado em 2021. Com isso,
pretendemos complementar a discussão e abrir novos caminhos e questionamentos
acerca da temática.

Não lugar, limbo, incógnita, invisibilidade, invalidação e não reconhecimento.


Uma luta diária de conquista, pertencimento e aceitação em diferentes lugares. Tais
quais, que se encontram para além de físicos. Também são virtuais, como vimos em
Tuti e Kafka, e são igualmente parte de dinâmicas cotidianas de inclusão/exclusão.
Ainda, nesses lugares que ao mesmo tempo invisibilizam, mas podem, do mesmo
modo, ser locais de acolhimento, as religiões que marcam as histórias de Luís
Henrique, Tuti e Kafka.

“Tudo que impede vida, impede que tenhamos uma identidade humana”
(CIAMPA, 1987, p.36). Acerca disso, Tuty Veloso Coura Guimarães (2021) afirma:

Ao sujeito trans, não obstante, é imposto um local de negação onde se


configura uma solidão que se desenvolve de modo que o outro lhe nega a
convivência, estabelecendo uma relação conflituosa em vários âmbitos, como
nas relações amorosas, de parentesco, das organizações entre muitos
outros. Dessa forma, uma vivência de segregação social que lhe atribui um
espaço de abjeção (p.192).

O que nos leva para a próxima via compartilhada, a nomeação como


identidade e lugar político. Nomear, mesmo que seja pela negação, diz respeito a
uma referência. O lugar político, também relacionado à militância, pode ser a “simples”
existência, conforme trazido por Kafka e Amê. Uma identidade política, como a de
“anarquista de gênero”, trazida por Luís Henrique. Além disso, utilizando a metáfora
do espelho de Bokoto, identidade não se trata de refletir-se em espelhos; trata-se de
atravessá-los, como referências que promovem sentidos subjetivos e configurações
subjetivas nos cruzamentos das subjetividades individuais e das subjetividades
sociais.
204

Esse modo de existir é, sobretudo, uma prática política que visa subverter o
padrão existente. A desconstrução é feita nas ações, na existência.
(Re)existindo é que se faz revolução. A mudança surge quando o sujeito se
faz revolucionário. (FREIRE; CHAGAS; GOMES, 2021, p. 32)

“Como (re)existir se não nos colocamos como uma identidade?” questiona Ale
Mujica Rodriguez (2021, p. 42). Não se trata, entretanto, de tornar igual. Dandriel
Henrique da Silva, ao realizar uma análise historiográfica acerca de identidades
indígenas trans, afirma “Nunca somos iguais. Mas somos sempre dissidentes. Nossa
existência é uma dissidência” (2021, p. 92). O que vai de encontro ao que foi trazido
por Bokoto e Amê sobre “pessoas gênero dissidentes” nas dinâmicas
conversacionais. Para que essas sejam existências inteligíveis, é preciso subverter a
lógica colonial branca cisheteronormativa.

Imagino que essa seja a principal dificuldade de registrar um gênero não


binário: somos pessoas que vivem em uma racionalidade que diz não ao
binarismo sexual e seus efeitos científicos, econômicos, arquitetônicos,
biológicos, psicológicos; e, ao mesmo tempo, precisamos usar da linguagem
binária para negá-lo (BONASSI, 2021, p. 70).

Esse trecho de Brune Camillo Bonassi (2021) leva-nos à próxima via. A língua
e a linguagem com possibilidades de experimentação. Aqui, não estamos
somente trazendo a ideia da linguagem neutra, mas da poesia, da literatura, da arte
que, ao mesmo tempo que pode servir de escoamento de determinados sofrimentos
e angústias, também se mostra como potente via de conexões e contatos conforme
vimos nos poemas de Bokoto, de Kafka, na teatralidade de Amê, na mística do
cuidado de Luís Henrique e na música de Tuti.

Além dessas linguagens, também a linguagem do/no corpo, conforme Amê


experimenta no teatro e nas alquimias de si. A corporeidade como via de expressão,
com a qual Luís Henrique se sente bem. Corpos diferentes, com leituras sociais
diferentes, que não têm uma estética específica. De acordo com Abbi Sampaio de
Lima e Rozana Ferreira Chagas e Adriano Lopes Gomes (2021):

A não-binariedade denuncia esse paradigma de gênero e sexualidade pois


ela traz uma carga nova no discurso de (re)significação da experiência de
gênero, da vida em coletividade, do reconhecer no outro o espaço, o poder
que o outro detém sobre o próprio corpo (p.32).

Outra questão necessária é considerar o corpo e a corporeidade como uma


categoria histórica, não apenas em sua complexa dimensão biológica e suas
205

subdimensões, mas nas suas inter-relações: psicológicas, culturais, sociais, étnico-


raciais, de classe, de gênero, geracional; inter-relações científicas em distintas áreas
do saber e do fazer profissional, filosóficas, religiosas, éticas e morais.

Ademais, todas as pessoas participantes são LGBTI+ também por sua


orientação sexual e pudemos perceber as vias que se intercruzam entre identidade
de gênero e orientação sexual nas experiências de vida. Uma vez que se trata de algo
que ocorre simultaneamente, possui conexões e movimenta emocionalmente.

Por meio das vivências apresentadas nesta pesquisa, pudemos, da mesma


maneira, perceber processos de transição de gênero que transcendem uma ideia de
ponto de partida e chegada, mas dizem respeito a um processo contraditório, entre
emoções e tensionamentos diversos. Para além de nomenclaturas biomédicas e
patologizações. Com isso, e com as relações estabelecidas nesta pesquisa, propomos
a concepção de metamorfose de gênero, apresentada a seguir.

6.2.1 METAMORFOSES PARA ALÉM DA LAGARTA E A BORBOLETA

(...) mais do que uma simples concepção abstrata, é vivermos privilegiando a


permanência e a estabilidade, e patologizando a crise e a contradição, a
mudança e a transformação. Assim, como que estancamos o movimento,
escamoteamos a contradição, impedimos a superação dialética.
Identidade é movimento, é desenvolvimento do concreto.
Identidade é metamorfose
(CIAMPA, 2004, p. 74).

Esta parte da pesquisa foi escrita em memória do professor Antônio da Costa


Ciampa, falecido no dia 29 de março de 2022. Uma grande perda, um enorme legado.
Obrigada, professor.
Era uma vez, uma feia e triste lagarta. Ela passava sua vida comendo as
plantas, vagando sem rumo. Olhava o céu e pensava quão grandioso seria poder se
misturar com ele. Um certo dia, a lagarta se recolheu e, em volta de si, construiu
muros; construiu um casulo. Lá ficou. Permaneceu em silêncio, buscando sua
essência. O tempo, seu amigo, auxiliou na transformação. Um belo dia, em que o Sol
brilhava forte, as nuvens pareciam algodão doce e o céu era de um azul intenso e
vibrante, o casulo se abriu e de lá saiu uma graciosa borboleta. A metamorfose
aconteceu! As asas se abriram como leques e, como num passe de mágica, a
borboleta se juntou ao céu, assim como um dia tanto quis.
206

Essa é uma história com a qual você provavelmente teve contato quando
criança em algum conto infantil ou desenho animado. Isso pode, inclusive, ter lhe feito
respeitar mais os casulos e não mexer neles, sabendo que tinham borboletas sendo
formadas ali dentro. Porém, essa não é uma história representativa quando se trata
de gênero. Ou o que aqui propusemos chamar de metamorfoses de gênero. Um dos
motivos pelos quais não é representativa, é porque os juízos de valor sobre a lagarta
e a borboleta são muito demarcados. Como se o fato de ser uma lagarta - e aqui estou
considerando que já entendemos essa história como metáfora - significasse ter uma
vida infeliz e, por outro lado, ser uma borboleta representasse a felicidade, a
completude. “Sair do casulo”, quase como um “sair do armário”, seria finalmente
encontrar uma “forma” que fosse condizente com aquilo que estava na essência, até
então, não fisicamente observável.
Com o intuito de buscar produções atuais acerca de identidade e
metamorfoses, entramos em contato via e-mail com o Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Identidade Metamorfose (NEPIM) da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Perguntamos sobre a existência de trabalhos realizados pelo núcleo
que envolvessem a população LGBTI+, mais especificamente, a população trans e,
apesar de nos ser informado que o Núcleo não possui nenhuma produção própria,
foram indicadas algumas produções parceiras. Dentre elas, destacamos:

● Inserção laboral de travestis e transexuais na cidade de São Paulo, sob


a autoria de Chinaira Raiazac Faria Santana (2017). Mestrado em
Psicologia Social na PUC-SP;
● Resistência trans: Práticas sociais na construção da cidadania de
travestis e transexuais na cidade do Recife, sob a autoria de Cristiane
Prudenciano de Souza (2018). Mestrado em Ciências Sociais na PUC-
SP;

A concepção de metamorfose para Santana (2017) está associada ao


movimento e à mudança, uma vez que afirma que as transgeneridades e
travestilidades “rompem com as formas sexistas e essencialistas fundadas desde sua
existência embrionária, a fim de construir seus processos de socialização a partir da
metamorfose de quem são e de uma identidade não dada” (p.56). Já na dissertação
de Souza (2018), quando a metamorfose é citada, está atrelada principalmente à
207

corporeidade e estética corporal por meio das modificações físicas, sejam cirúrgicas
ou não, como forma de vivenciar o gênero.
Outra leitura indicada pelo NEPIM foi da coletânea intitulada Metamorfoses do
Mundo Contemporâneo, que contém dois textos acerca de metamorfoses do/de
gênero, fundamentados na compreensão de identidade proposta por Ciampa (2004).
Tais quais: “Metamorfoses do gênero: Apontamentos sobre corpos, identidades e
sexualidades”, sob autoria de Carla Cristina Garcia (2021) e A vulnerabilidade social
da pessoa LGBTQIA+ e as metamorfoses de gênero do mundo contemporâneo, sob
a autoria de Maura Âmbar (2021). Entretanto, ambas autoras não discorrem sobre o
que seria o conceito “metamorfose do gênero” ou “metamorfose de gênero” ao longo
de seus textos.
Garcia (2021) traz, logo no início de seu capítulo, quatro principais crenças
relacionadas à sexualidade e ao gênero que, segundo ela, têm respaldo na Filosofia,
Medicina, Direito e religiões ocidentais. Tais quais:

1. Existem apenas dois sexos: masculino e feminino.


2. As relações sexuais têm como propósito natural a procriação.
3. A família é uma unidade nuclear composta por mãe (mulher), pai (homem)
e filhos.
4. A heterossexualidade é a única orientação sexual natural.
(GARCIA, 2021, p. 128)

Esses pontos são posteriormente discutidos pela autora, explicitando as


mudanças de concepções ao longo do tempo, o que coloca em questão as crenças
apresentadas e explicita o quanto podem ser reprodutoras de preconceitos e
discriminações. Sendo assim, concluímos que as metamorfoses a que Garcia (2021)
se refere, relacionam-se principalmente às mudanças e construções ao longo da
história acerca de gênero. Pensamos também que, neste caso, poderia ser pensado
em “metamorfoses da sexualidade” ou “metamorfoses do sexo”, além de gênero.
Já o capítulo escrito por Maura Âmbar (2021) diz respeito à vulnerabilidade
social relacionada à violência, suicídio, família, trabalho, entre outras esferas.
Selecionamos, portanto, um trecho no qual podemos ter acesso a como a autora situa
a concepção de gênero, adicionando a questão da cisgeneridade, o que pode também
ser complementar às crenças trazidas por Garcia (2021).

Diante do olhar do gênero como mera construção social, perde-se


completamente esse “cabresto social”, proporcionando liberdade para quem
208

seria tido como sexo frágil, filho invertido, aberração sexual ou qualquer um
que destoasse da cis-heteronormatividade. Assim, coloca-se em risco o
império construído pelo patriarcado, que sempre se beneficiou com o lugar
de destaque e privilégios na sociedade machista e sexista em que vivemos,
tratando o modelo de gênero binário como algo natural e imutável. Uma
construção que se perpetua em nossa história, mas que o próprio ser humano
vem mostrando em sua vivência e autoconhecimento o quanto ela precisa ser
desconstruída (ÂMBAR, 2021, p. 95).

Portanto, o que propomos aqui está conectado às concepções de metamorfose


de/do gênero encontradas em Santana (2017), Souza (2018), Garcia (2021) e Âmbar
(2021), juntamente às vivências apresentadas nesta dissertação.
Curiosamente, uma das pessoas participantes da pesquisa escolheu o nome
fictício “Kafka”, nome esse do escritor praguense Franz Kafka, que escreveu ao longo
de 20 dias sua mais longa e mais célebre novela em 1912, aos 29 anos de idade. “A
Metamorfose”78 traz a história de Gregório - ou Gregor, em algumas traduções - que
em um determinado dia acordou e percebeu que seu corpo havia mudado. Era agora
um grande inseto em tamanho humano. Conforme a própria obra narra, tratava-se de
um corpo antinatural e ahistórico. É interessante perceber, portanto, como cada
membro da família - pai, mãe e irmã - age em busca de um comportamento adequado
ao que se passava. Em meio a problemas cotidianos, como pensar em como se
vestiria, sairia da cama ou iria ao trabalho, Gregório também lidava com o fato de ter
agora um tipo diferente de relação com a família que, com o decorrer do tempo, foi
ajustando-se à nova realidade e deixando, cada vez mais, Gregório isolado.
Nessa história um tanto quanto grotesca, surreal, angustiante e, ao mesmo
tempo, com elementos tão nítidos da vida social e política do autor, a metamorfose
não é somente do corpo de Gregório, mas de todo o contexto em que ele se encontra,
das relações - consigo e com outras pessoas - e dos espaços negados e
impossibilitados. Essa metamorfose, reiteramos, transcende a simples mudança de
forma.
Em Kafka, agora nos referindo ao participante da pesquisa, a metamorfose de
gênero apresenta-se em seus posicionamentos enquanto transmasculino e pessoa
trans não binária, na medida em que essa(s) identidade(s) diz(em) sobre um lugar
ocupado por ele, que pode, em certa medida, ser incompreendido em contextos que
gerem violência e sofrimento. Já em outros, caracteriza-se como liberdade e fluidez.

78
Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=16641
209

Sentir-se diferente em grupos onde sente-se acolhido não é um problema, já a


diferença como fator de exclusão, sim. Mais, as metamorfoses acontecem na busca
do mundo, sendo diferentes as experiências e possibilidades de expansão das
vivências de gênero em cada local que visita e habita.
Em Luís Henrique, a metamorfose de gênero é por nós compreendida como
este movimento cuidadoso - em referência à mística do cuidado - de identidade,
aproximações e distanciamentos com o que sente, a partir do que vivencia em cada
possibilidade de si. Esse movimento, indissociável da metamorfose, realiza-se
também no afastamento daquilo que lhe paralisa, compreendendo que, para
transgredir determinadas normativas, é preciso também estar atento à sua própria
saúde, com a possibilidade de buscar forças nas grupalidades e nos afetos
proporcionados por relações que promovam vida, para aí sim retornar à uma prática
que promova educação, saúde e atenção à diversidade, seja ela de gênero, classe,
raça ou etnia.
Em Amê, a metamorfose de gênero acontece por meio das alquimias de si, de
suas experiências teatrais, artísticas, corporais, emocionais, como criação, estudo e
aprofundamento das possibilidades de vivenciar gênero para além de algo categórico,
socialmente determinado ou construído e constituído. Muito além da lagarta e da
borboleta, Amê, por meio de sua “multiplicidade de eus”, dá corpo a personagens no
palco da vida.
Em Tuti, a metamorfose de gênero se faz pela comunicação, pelo bom humor,
espontaneidade e acolhimento às diferenças em si mesme e abrindo espaço para
outres. Encontra seus “lados”, suas cores caleidoscópicas nas profissões que exerce,
em seu potencial enquanto artista e por meio da Cena Ballroom.
Em Bokoto, a metamorfose de gênero parte do questionamento constante das
próprias incógnitas, do posicionamento e enfrentamento às normativas impostas, seja
por meio do contato consigo e com o que sente na solitude em seu quarto, seja em
espaços de trabalho na saúde mental ou nas grupalidades, pelo afeto, no contato com
pessoas gênero dissidentes. Por meio da poesia, aprofunda e mergulha em
possibilidades “para além”, na construção de outras vi(d)as possíveis.
Por fim, compreendemos que o que une a diversidade é também a própria
diferença. Por meio das potencialidades nos contatos, superações de imposições
normativas, atuações político-sociais e expressões artísticas, cada participante, cada
parceire de pesquisa, cada poeta, cada artista, revela-se e metamorfoseia-se no
210

movimento de experimentações e alquimias de si, nas formas e cores diversas de


seus próprios caleidoscópios, produzindo vias, sendo “viantes” em busca de um
mundo possível e plural em suas mais diversas singularidades.
211

7. PARA NÃO CONCLUIR

O título propositalmente leva à abertura. Não concluir para expandir. A


diversidade também é feita disso.
Temos ciência da incompletude desta pesquisa por diferentes vias. Uma delas,
construir vias de diálogos com diferentes autoras e autores clássicos e
contemporâneos dos estudos de sexualidade e gênero, em articulação com a Teoria
da Subjetividade. Trazer ao palco da pesquisa e ao cenário do mundo acadêmico
cinco pessoas que se autoidentificam como não bináries, compartilhando generosa e
instigantemente, episódios de suas vidas marcadas pela singularidade, em
contraposição a imperativas normatividades, discriminações e estigmatizações,
descortinam-se promissoras vias em aberto que ainda exigem aprofundamento
reflexivo e novas produções subjetivas no encontro da teoria e dos espaços
conversacionais configurados por participantes, pesquisadora, pessoas, agentes,
sujeitos, histórias e vidas.
A tríade consubstanciada pela Epistemologia Qualitativa, a Metodologia
Construtivo-interpretativa e a Teoria da Subjetividade, na via da lógica configuracional,
transgride modelos teóricos que pretendam abarcar a diversidade e as divergências
de sexualidades e gêneros, em vias únicas explicativas, mesmo quando se
apresentam em perspectivas históricas, temporais e culturais. O estudo de casos
singulares, em espaços dialógicos pautados pela relação ética entre pesquisador e
participante da pesquisa, e o caráter construtivo-interpretativo da pesquisa, são os
três pilares da Epistemologia Qualitativa, os quais abrem novas vias para o estudo da
subjetividade na compreensão da teoria e metodologia aqui adotadas.
A Teoria da Subjetividade tem como objeto de estudo a subjetividade. A Teoria
da Subjetividade considera a complexidade, a criatividade, o caráter gerador da
subjetividade, capaz de produzir alternativas e novas vias de inteligibilidade e de ação,
frente às experiências vividas. Valoriza as singularidades, as subversões a
imperativos normativos que impedem a emergência de agentes e sujeitos em seus
desenvolvimentos subjetivos. As categorias sujeito e subjetividade, sentidos
subjetivos simbólico-emocionais e configurações subjetivas, alicerces da Teoria da
Subjetividade, proporcionam novas vias de inteligibilidade sobre facetas, muitas vezes
inexpressíveis, de sexualidade e de gênero que constituem sobremaneira as
subjetividades individuais e as subjetividades sociais. No caso desta pesquisa,
212

viabilidades para novas inteligibilidades sobre sexualidades, não binariedade,


identidades de gênero e metamorfoses de gênero enquanto configurações subjetivas
individuais e sociais.
Um modelo teórico ainda se faz necessário diante das produções elaboradas.
Propõe-se um modelo teórico ancorado na unidade simbólico-emocional subjetiva
sexualidade-gênero, configurada na relação complexa dialética e histórica da
subjetividade individual e subjetividade social e amparada na compreensão da
subjetividade como qualidade da objetividade. Um modelo teórico por certo não
acabado, apenas esboçado, aberto às singularidades e a novas produções subjetivas.
A contribuição específica da pesquisa no âmbito do legado de González Rey e da
aproximação da Teoria da Subjetividade e sexualidade é de adentrar em um tema
relativamente novo, compreendendo as ramificações temáticas que podem advir
disso, além da possibilidade de se ter um novo olhar sobre as questões da não
binariedade e perceber o quão complexas e plurais as experiências de identidade de
gênero podem ser. Com isso, contribuímos para a despatologização da diversidade,
muito menos na direção de categorizar e diagnosticar e muito mais na direção de
ampliar e expandir as experiências humanas. O mundo que estamos construindo
abarca as diferenças? Acreditamos que, por mais que seja árduo o processo, por meio
do conhecimento são quebrados preconceitos e barreiras.

Destacou-se também a categoria da identidade como configuração subjetiva,


identidade como processo de produção de sentido subjetivo para além de marcas
identitárias dicotômicas de igualdade-diferença, permanência-mudança, metafísica-
determinista, como central para abrir vias de inteligibilidade sobre a não binariedade
e demais gênero dissidências. Apesar de serem cinco pessoas participantes,
apresentam-se pontos de convergência de suas configurações subjetivas, de suas
identidades na não binariedade que apresentamos aqui como configurações
subjetivas de suas identidades.
Antes de mais nada, diante de padrões de gênero, expressam-se sentidos
subjetivos simbólico-emocionais de sofrimento, dor, cansaço, exaustão, desânimo,
insatisfação, incômodo, desrespeito, reclusão, solidão, configuradas nas vias da
exclusão, da discriminação-estigmatização-preconceito-não aceitação e da violência.
Atentam para uma dimensão qualitativa para além da padronização binária
cisheteronormativa.
213

As configurações subjetivas de suas ações buscam e criam vias de estratégias


de sobrevivência, de acolhimento, de pertencimento, de referências, de contato e
conexão. Pessoas e locais com acolhimento às diferenças e à diversidade, com os
quais e nos quais possam ser e apresentar-se como se reconhecem, como existências
inteligíveis e legitimadas e como via de expressão de si. Para além de nomenclaturas
biomédicas, patologizações e designações morais e sociais.
A grupalidade e as coletividades LGBTI+, fortalecidas por recursos da internet,
ampliam possibilidades e qualidades dessas vivências, transitam em relações
intrínsecas entre raça, classe e gênero, e visibilizam pessoas, identidades de gênero
e orientações sexuais fora da lógica binária. A virtualidade é um espaço possível de
ampliação de contatos, redes de apoio, de conhecimentos, de mobilidade. De ser, de
saber, de agir e de existir.
A arte, em diferentes formas aqui anunciadas pelas pessoas participantes, na
poesia, na literatura e no teatro, por exemplo, apresenta-se como estratégia de
sobrevivência, de movimento, de transição, de transgressão. Experimentação de si,
na estética do corpo, da linguagem, da expressão e da produção. Arte como um lugar
de conforto e refúgio, mas também de luta e posicionamento.
Faz-se referência à fluidez de gênero, à transição de gênero contínua, à
construção contínua de identidade de gênero, à impermanência do gênero.
Desconstruções de identidades fixas, imutáveis, binárias, vivenciadas por pessoas
com o direito de ser e de existir. Em contrapartida, compreendem a identificação como
fator relevante para a determinação de um lugar político ainda em construção: a não
binariedade. O direito à nomeação como identidade e lugar político. Nomear, mesmo
que seja pela negação, diz respeito a uma referência. Identidade como mapeamento
político da existência.
Entretanto, diante da complexidade e amplitude da identidade, da identidade
de gênero e da não binariedade, na contramão dessas trajetórias de vida e de
produções subjetivas temos o silenciamento, a invisibilidade e a condenação da
diversidade de gênero e sexualidade trazendo paralisação de produções subjetivas
nas subjetividades sociais e subjetividades individuais.
Também, pela volatilidade, fluidez e atualidade do tema, com muitas das
pessoas teóricas vivas, produzindo e repensando suas próprias teorias, existe uma
dificuldade e limitação na pesquisa porque torna-se difícil saber onde parar e sobre
quais questões debruçar-se. Para tanto, novas produções a respeito são viáveis e
214

necessárias a partir desta, tais como: configurações subjetivas individuais e sociais


da não binariedade; a Teoria da Subjetividade como via de riqueza a ser explorada na
ação cultural e histórica constitutiva do humano de produções subjetivas, de sua
subjetividade, fazendo-se agente e sujeito de configurações subjetivas individuais e
sociais de sexualidades e gêneros; a Teoria da Subjetividade com olhar para a
diversidade frente a normatividades e subjetividades que controlam, não toleram,
excluem, confinam, aprisionam, escravizam, adoecem, matam, assassinam pessoas
não bináries e pessoas que não se identificam com a cisheteronormatividade.

Ainda, pesquisas nas áreas da saúde que pensem mais profundamente sobre
as próprias bases que excluem a diversidade; pesquisas na Biologia que ofereçam
uma visão mais ampla de sexualidade e gênero, considerando, inclusive, a não fixidez
do termo “biológico” como sinônimo de “válido” e “natural”; pesquisas que se
aprofundem na questão da colonialidade, branquitude e questões étnico-raciais
relacionadas à identidade de gênero; pesquisas historiográficas, antropológicas e
sociológicas, que contextualizem as premissas de gênero das quais partem para fazer
afirmações sobre outras realidades e épocas; pesquisas sobre a relação entre
lesbianidades e transmasculinidades; pesquisas sobre identidade de gênero e
pessoas com deficiência; pesquisas no âmbito jurídico e pesquisas sobre linguagem
relacionadas à não binariedade.

A lista poderia estender-se muito, mas também deixo para que a própria leitura
desta dissertação promova a abertura para outras possibilidades, afinal, este é apenas
um mergulho em uma pequena lagoa, em alguns metros nos quais me atrevi a
adentrar.
215

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metamorfose-emancipação e sua relação com o construto mundo da vida. Psicologia
& Sociedade, v. 29, 2017.
220

APÊNDICE A - FORMULÁRIO ONLINE


INFORMAÇÕES GERAIS
Oi, querides!
Estas são algumas informações importantes para que eu possa fazer uma discussão
interseccional na pesquisa, considerando aspectos como gênero, classe, raça/etnia,
dentre outros
* Obrigatório
1. Nome *
2. Idade *
3. Qual a sua identidade de gênero? (Ex.: trans não binárie, transmasculine etc)*
4. Qual a sua orientação sexual? *
5. Classe social *
6. Como você se autodeclara em relação a raça/etnia? *
7. Você possui alguma deficiência? Se sim, qual? *
8. Onde nasceu? *
9. Onde já morou? Onde mora hoje? *
10. Qual é o seu nível de escolaridade? *
Marcar apenas uma alternativa
Ensino Fundamental incompleto
Ensino Fundamental completo
Ensino Médio incompleto
Ensino Médio completo
Ensino Superior incompleto
Ensino Superior completo
Pós-graduação incompleta
Pós-graduação completa
Outro:
11. Você tem alguma formação? Em quê? *
12. Você trabalha atualmente? Em quê? *
13. Você mora com alguém? Se sim, com quem? *
14. O próximo encontro que faremos provavelmente será em grupo, com todes
que estão participando da pesquisa. Para isso, gostaria que você sugerisse
temas para conversarmos em conjunto (: Sinta-se à vontade para escrever aqui
ou me mandar pelo WhatsWpp.
221

APÊNDICE B - MAPA COGNITIVO - Conversas com participantes

● Quais são seus pronomes?


● Qual a importância de perguntar os pronomes?
● Você já teve contato com a Psicologia de alguma forma?
● Você tem alguma profissão? Qual? Que atividades você exerce?
● Que lugares sociais você ocupa? *
● Envolvimento com movimentos sociais
● Tem algum lugar que você sonha em ocupar?
● Como a sociedade ajuda/atrapalha nesse processo?
● Em que lugares (ou formas de se expressar) você pode ser quem você é?
● Como você entende gênero? Qual a sua perspectiva sobre isso?
● Como foi para você se descobrir/entender uma pessoa não binária?
● Qual a sua utopia para um mundo melhor?
● Me diga três coisas que precisamos construir, enquanto sociedade, para
chegar mais perto disso

*Por serem pessoas que se aproximam de algum tipo de arte, é possível perguntar
sobre isso conforme a conversa fluir.
222

ANEXO A – TCLE

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Nós, professora Norma da Luz Ferrarini e mestranda Amanda Giulia Sartor, do


Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná, estamos
convidando você, pessoa que se autodefine como não binária, a participar de um estudo
intitulado “Não binarismo: Configurações subjetivas e Identidade”. Esta pesquisa se propõe a
contribuir com mais informações e conhecimentos científicos acerca de pessoas que se
identificam e se autodefinem como não binárias com o intuito de promover conscientização e
sensibilização social na contramão da discriminação e da estigmatização dessa população.
Abordar este tema nos estudos de sexualidade a partir do campo da Psicologia trará à
sociedade e aos profissionais, em especial às psicólogas e aos psicólogos, um olhar não
patologizante e não estigmatizante sobre as identidades e expressões de gênero não binárias.
Benefícios para a população estudada podem ser desde compreender a Psicologia como
aliada no enfrentamento às discriminações, não patologização das identidades e apoio à
Diversidade Sexual e de Gênero, conforme determinação do Conselho Federal de Psicologia,
como também um espaço seguro para a pessoa participante da pesquisa expressar como se
sente em relação a suas vivências. Para a sociedade como um todo, o benefício está na
compreensão mais ampla de uma realidade que tem cada vez mais se apresentado como
possibilidade de experienciar a sexualidade e o gênero para além da lógica binária.
a) O objetivo desta pesquisa é compreender as configurações subjetivas de pessoas que se
autodefinem não binárias à luz da Teoria da Subjetividade de Fernando González Rey.
b) Caso você concorde em participar da pesquisa, será necessário participar de uma
entrevista que será realizada virtualmente por Google Meet ou Skype. Caso você não tenha
acesso a nenhuma destas plataformas, é possível verificar conosco outras possibilidades.
Serão feitas perguntas abertas sobre a sua vivência enquanto pessoa não binária, não
existindo respostas certas ou erradas.
c) Para tanto você deverá acessar o link da reunião virtual na data e horário combinados para
realizarmos a entrevista, o que levará aproximadamente uma hora.
d) É possível que você experimente algum desconforto, principalmente relacionado a
lembranças, memórias ou vivências.
e) Alguns riscos relacionados ao estudo podem relembrar algum momento desconfortável ou
constrangedor de seu passado. Também, é possível que você não queira alguma pergunta.
Para minimizar estes riscos, tomaremos algumas providências:
1. Garantir que você compreenda como será a entrevista antes do início;
2. Você pode desistir a qualquer momento, sem que precise justificar nada;
3. As informações serão sigilosas e será criado um nome fictício para lhe designar na
pesquisa;
4. Caso sinta necessidade de acolhimento psicológico, a pesquisadora colaboradora,
Amanda Giulia Sartor (CRP 08/31387) será encarregada. Se não for suficiente,
poderemos te encaminhar para o Centro de Assessoria em Pesquisa em Psicologia e
Educação (CEAPPE) do Setor de Ciências Humanas da UFPR.
f) Os benefícios esperados com essa pesquisa são oferecer um espaço seguro para que você
possa se expressar livremente sobre suas vivências e também para que possa compreender
a Psicologia como aliada no enfrentamento às discriminações, não patologização das
identidades e apoio à Diversidade Sexual e de Gênero.
223

g) As pesquisadoras Norma da Luz Ferrarini e Amanda Giulia Sartor, responsáveis por este
estudo poderão ser localizados por e-mail, considerando as medidas de segurança por conta
da pandemia do novo coronavírus - normadaluzf@gmail.com e amanda.g.sartor@gmail.com.
Caso ocorra o retorno às atividades presenciais, as pesquisadoras poderão ser encontradas
no Centro de Assessoria e Pesquisa em Psicologia e Educação da UFPR, telefone (41) 3310-
2840, situado na Praça Santos Andrade, 50, subsolo, Centro, Curitiba – PR, nas quartas e
quintas-feiras das 14h às 17h para esclarecer eventuais dúvidas que você possa ter e
fornecer-lhe as informações que queira, antes, durante ou depois de encerrado o estudo, em
qualquer horário e a qualquer momento.
h) A sua participação neste estudo é voluntária e se você não quiser mais fazer parte da
pesquisa poderá desistir a qualquer momento e solicitar que lhe devolvam este Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido assinado.
i) O material obtido – transcrição da entrevista – será utilizado unicamente para essa pesquisa
e o arquivo será destruído/descartado ao término do estudo, dentro de 5 anos.
j) Para que a sua identidade seja preservada e mantida sua confidencialidade, na
pesquisa serão utilizados nomes fictícios, ficando a seu critério se quer ou não decidir qual
será o seu.
k) Você terá a garantia de que quando esta pesquisa for publicada, não aparecerá seu nome.
l) As despesas necessárias para a realização da pesquisa são as relacionadas a seu acesso
à internet para realização da entrevista virtualmente. Você não receberá qualquer valor em
dinheiro pela sua participação.
m) Caso existam dúvidas sobre seus direitos como participante de pesquisa, você pode
contatar também o Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CEP/SD) do Setor de
Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná, pelo e-mail cometica.saude@ufpr.br
e/ou telefone (41) 3360-7259, das 08:30h às 11:00h e das 14:00h.às 16:00h. O Comitê de
Ética em Pesquisa é um órgão colegiado multi e transdisciplinar, independente, que existe
nas instituições que realizam pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil e foi criado com
o objetivo de proteger os participantes de pesquisa, em sua integridade e dignidade, e
assegurar que as pesquisas sejam desenvolvidas dentro de padrões éticos (Resolução nº
466/12 Conselho Nacional de Saúde).

Eu, ________________________________ li esse Termo de Consentimento e compreendi a


natureza e o objetivo do estudo do qual concordei em participar. A explicação que recebi
menciona os riscos e benefícios. Eu entendi que sou livre para interromper minha participação
a qualquer momento sem justificar minha decisão e sem qualquer prejuízo para mim.
Eu concordo, voluntariamente, em participar deste estudo.

[Local]________________, ___ de ___________ de ______

_________________________________________________________
[Assinatura do Participante de Pesquisa ou Responsável Legal]
224

Eu declaro ter apresentado o estudo, explicado seus objetivos, natureza, riscos e benefícios
e ter respondido da melhor forma possível às questões formuladas.

_____________________________________________
[Assinatura do Pesquisador Responsável ou quem aplicou o TCLE]

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Setor de
Ciências da Saúde da UFPR, recebendo o número CAAE: 39735820.2.0000.0102 e o número do
Parecer de Aprovação: 4.421.726.

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