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CURITIBA
2022
AMANDA GIULIA SARTOR
CURITIBA
2022
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA P UBLICAÇÃO (CIP )
UNIVERS IDADE FEDERAL DO P ARANÁ
S IS TEMA DE BIBLIOTECAS – BIBLIOTECA
Bibliote cá ria : Fe rna nda Ema noé la Nogue ira Dia s CRB-9/1607
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PSICOLOGIA -
40001016067P0
TERMO DE APROVAÇÃO
Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do Programa de Pós-Graduação PSICOLOGIA da Universidade
Federal do Paraná foram convocados para realizar a arguição da dissertação de Mestrado de AMANDA GIULIA SARTOR
intitulada: "Somos viantes, construímos vias": Não binariedade, configurações subjetivas e identidade, sob orientação da
Profa. Dra. NORMA DA LUZ FERRARINI, que após terem inquirido a aluna e realizada a avaliação do trabalho, são de parecer pela
sua APROVAÇÃO no rito de defesa.
A outorga do título de mestra está sujeita à homologação pelo colegiado, ao atendimento de todas as indicações e correções
solicitadas pela banca e ao pleno atendimento das demandas regimentais do Programa de Pós-Graduação.
Assinatura Eletrônica
09/06/2022 11:02:05.0
NORMA DA LUZ FERRARINI
Presidente da Banca Examinadora
Assinatura Eletrônica
09/06/2022 15:56:25.0
JAQUELINE GOMES DE JESUS
Avaliador Externo (INSTITUTO FEDERAL DO RIO DE JANEIRO)
Assinatura Eletrônica
09/06/2022 19:50:45.0
DANIEL MAGALHÃES GOULART
Avaliador Externo (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA)
Agradeço à minha mãe, Ivone, que me ensina todo dia sobre o amor, sobre
importar-se com as pessoas, sobre acreditar em si e respeitar-se. Você é minha base,
mãe. Eu te amo e tenho muito orgulho disso. Obrigada pela companhia, pelos chás
quentinhos e pelos: “Vamo, Amanda! Levanta essa cabeça, você é poderosa!”
Ao meu pai, Paulo, que me ensina sobre determinação, foco e sobre atenção
aos detalhes e sensibilidade. Fico abismada com a quantidade de coisas que você
sabe, pai. Isso sempre me incentivou a estudar e a aprender cada vez mais. Obrigada,
amo você.
À minha irmã Elana, com quem dividi momentos de felicidade e angústia,
sempre de forma intensa. Saiba que suas músicas foram trilha sonora dos meus
estudos por muitas vezes. Obrigada por, mesmo longe, estar comigo. Te amo desde
sempre e para sempre.
À Lary, minha querida prima-irmã, que fez body doubling quando precisei,
fazendo-se fisicamente presente para me ajudar a produzir e a escrever esta
dissertação. Que me acolheu em sua casa com a presença ilustre da Amy, gatinha de
estimação – e comedora de tapetes - mais amorosa. Obrigada também pelas
comidinhas, filmes, ombros para chorar e caminhadas pela manhã. Ainda, nossos
“updates do caos” me faziam ficar diariamente mais tranquila, sabendo que poderia
compartilhar as situações caóticas e ser escutada com carinho.
À minha prima Mariana Sartor, doutoranda em Psicologia, por quem eu tenho
tanta admiração. Obrigada por me apresentar esta profissão linda, por estar sempre
disposta a trocar ideias, a pensar sobre a vida e a dar boas risadas. Fico muito feliz
que tenhamos nos aproximado nestes tempos.
Ao dindo Carlos, que sempre me instiga a desbravar o mundo, acolhendo-me
em sua casa no Rio de Janeiro - cidade tão importante para essa pesquisa - e me
levando para os rolês mais “diferentes” e divertidos. Você me inspira e me motiva ao
movimento. Ficar parada não faz parte do que eu sou e você me conhece.
Ao Gabs, por ser o respiro de poesia e compreensão de que precisei em
diversos momentos, por ter respeitado e acolhido os processos da vida que
acontecem simultaneamente à pesquisa. “Todos os dias olho no espelho e vejo o que
você transformou crescendo”. Esse poema você escreveu para mim, mas eu digo que
ela também vale do meu coração para o seu.
Angel, obrigada por ser presente, tanto no sentido de estar comigo e incentivar-
me constantemente quanto no de ter se tornado um presente embrulhado em carinho,
atenção e amorosidade.
À Gi, pelos áudios de encorajamento e animação, aos quais me voltei quando
a dificuldade em desenvolver a escrita batia à porta. Obrigada também por ser uma
teacher perfeita e estar disposta a me ajudar.
Ao André, por ter me auxiliado nas transcrições das dinâmicas conversacionais
com um olhar cuidadoso e sensível. Obrigada por acreditar em mim, pelas metáforas
que tanto conversam com o que entendo da vida, pela compreensão e acolhimento.
Obrigada aos meus amigos e amiga “pedaleiros”, “bicicleteiros”, Laís, Erik e
Hiago, que saíram comigo pelas ruas de Curitiba para mexer o corpo, tomar um ar e
ver o pôr do sol (quando ele quis aparecer). Hiago, também, por se mostrar tão
disponível quando precisei compartilhar angústias e desabafos. Erik, pelo olhar
atencioso e abraços quentinhos. Laís, por me auxiliar na reta final e torcer por mim.
Ao Andrey, por não ter hesitado em me enviar mensagem e, desde então, ter
possibilitado uma amizade sincera e profunda que quero comigo para a vida. Você é
muito especial. Obrigada pelos conselhos, pelo vôlei nas terças, por ouvir
reclamações, por reclamar junto, oferecer apoio e pelas conversas de horas que me
fazem muito bem.
Ao Adriano, por interessar-se pelas extensas explicações quando eu tinha
algum insight relacionado à pesquisa, por me impulsionar e incentivar de forma alegre
e animada a expor e compartilhar conhecimento. Você é inspiração.
À Fabi, minha psicoterapeuta, que me acompanha nesta caminhada um tanto
quanto caótica e me possibilitou, com sua escuta atenta e precisa, principalmente lidar
com questões pessoais difíceis ao mesmo tempo que eu precisava escrever esta
dissertação. Você foi essencial. Muito obrigada!
À querida professora Viviane Rodrigues que, em 2016, quando eu estava
irritada e desanimada com os posicionamentos preconceituosos de algumas pessoas,
incentivou-me a criar projetos e a pesquisar. “Foca no amor e na dignidade!” E foi isso
que levei na bagagem durante estes anos.
Também escrevo em memória do professor Luciano de Sampaio, que deixou
este plano em 2022, pouco tempo antes da finalização desta pesquisa. Cinco dias
antes de sua partida, ele me escreveu por uma rede social: “Você ainda tem o arquivo
do seu autorretrato sem presença dos tempos do IFPR? É uma imagem que eu
menciono com frequência em aula como criativa e cheia de significados imagéticos”.
Infelizmente, eu não vi essa mensagem a tempo. Ele me provocou a ser sempre
criativa e criadora de novas possibilidades dentro da fotografia. Isso se expandiu,
professor. Eu utilizo a criatividade na vida. Muito obrigada por ter me ensinado e
incentivado a desenvolver este lado. Que você seja luz onde quer que esteja.
não quero que digas mulher
não quero que digas homem
quero que digas o nome
que escolhi para
mim
Francisco Mallman
RESUMO
The non-binary gender identity is a subject that has become popular and promoted
debates mainly in the LGBTI+ community and, more specifically, in the trans
community. In the academic field of gender and sexuality diversity studies, the
productions that address the theme in a central way are recent. Considering the
assumptions of González Rey's Theory of Subjectivity, this research had the general
objective of understanding the subjective configurations of non-binarity of people who
self-identify as non-binary, through the Constructive-Interpretative Methodology,
supported by the principles of Qualitative Epistemology, which refer to the singularity
with epistemological status and the research with constructive-interpretative, singular
and dialogical character. Five people who self-identify as non-binary and participate in
a trans art collective took part in this research. Two individual conversational dynamics
and one group conversational dynamic were carried out. From concepts of Subjectivity
Theory and its relation with sexuality; Presentation of different conceptions of identity
and analysis of their proximity with the conception of identity proposed by Subjectivity
Theory; Dialog with different conceptions of gender, it was possible to broaden
understandings about non-binarity, along with the non-binary experiences presented.
Some pathways in the different non-binary life experiences are shared: The non-place;
The naming - non-binary or other - as identity and political place; Language with
possibilities of experimentation - neutral language, poetry, literature, art, corporeality -
, as an outlet for suffering and anguish and as a potent way of connections and
contacts; Gender transition processes that transcend an idea of starting and ending
point, but concern a contradictory process, among diverse emotions and tensions,
beyond biomedical nomenclatures and pathologizations. Therefore, a conception of
gender metamorphosis is proposed, which transcends the simple change of form or
essence. This gender metamorphosis is expressed in unique ways in the participants.
In the positioning of gender as an identity that locates it Metamorphosis as a careful
movement of identity. Metamorphosis as alchemy of self, as creation, study and
deepening of the possibilities of experiencing gender, beyond something categorical,
socially determined or constructed and constituted. Metamorphosis through
communication, spontaneity, and welcoming differences. Metamorphosis producing
ways, being a pathway (viantes) in search of a possible and plural world in its most
diverse singularities. What unites diversity is also difference itself. Finally, this research
does not conclude itself. It expands.
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 13
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 18
1. TEORIA DA SUBJETIVIDADE E SEXUALIDADE............................................................... 23
1.1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA DA SUBJETIVIDADE ........................................ 23
1.2 SEXUALIDADE E SUBJETIVIDADE ........................................................................................ 29
3. GÊNERO ........................................................................................................................ 43
4. NÃO BINARIEDADE: UMA BREVE APROXIMAÇÃO ......................................................... 50
5. PRINCÍPIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS ..................................................... 55
5.1 PARTICIPANTES ................................................................................................................. 60
5.2 O CENÁRIO SOCIAL DA PESQUISA....................................................................................... 61
5.3 INSTRUMENTOS ................................................................................................................ 62
5.3.1 MOMENTOS INFORMAIS ................................................................................................................. 63
APRESENTAÇÃO
As várias cores de Tuti formam um caleidoscópio que nem sempre é visto por
dentro. Isso só passa a acontecer quando Tuti se propõe a mostrar as cores
para o mundo, expondo suas opiniões, sua vivência, seu jeito singular de ser.
“Eu sempre quis ganhar o mundo”. Talvez eu não entenda por completo o
que isso quer dizer para Kafka, mas com certeza o mundo tem muito a ganhar
com a sua presença. Alguém que foi em busca do que acredita, mesmo que
fossem apresentadas dificuldades.
Bokoto, em suas próprias palavras, é “viante”. Constrói vias. Vias pela saúde
mental, pelo contato amável e pelo olhar atento com outres.
conjunta por meio do diálogo e a Psicologia brasileira tem muito a ganhar com
isso.
O corpo grita (2ª edição), realizada no Colégio Estadual Leôncio Correia e a parceria
com o projeto de cerâmica do Departamento de Artes da UFPR, com as oficinas Algo
a Dizer: Cerâmica e questões LGBTI+, nas quais foram elaboradas peças de cerâmica
ao mesmo tempo em que se discutiram questões sobre as vivências pessoais e
coletivas da comunidade LGBTI+.
Em 2018 fui também voluntária no Transgrupo Marcela Prado, em Curitiba, e
no ano seguinte, em 2019, tive a oportunidade de fazer um estágio em saúde neste
local, onde realizava atendimentos clínicos como parte dos requisitos da graduação
em Psicologia, supervisionada pela professora Joanneliese Freitas. Foi por meio do
contato e do atendimento a duas pessoas não binárias que percebi a falta de bases
na Psicologia sobre esta especificidade. Nesse momento, a presente pesquisa
começou a ser esboçada.
Quando pensei sobre o tema, enquanto pessoa cis, preocupei-me com o
histórico de pesquisas realizadas nesta área, que se voltam a perspectivas
medicalizantes e biologicistas quando se referem a identidades trans. Por que não
pesquiso sobre a cisgeneridade? Sobre a binariedade? Esse poderia ser um caminho,
porém, não daria conta do problema que se apresentava, que era justamente a
invisibilidade e falta de conhecimento produzido academicamente. Então, optei por
explicitar a questão da não binariedade e, por meio dela, também propor ligações com
as compreensões de binariedade, cisgeneridade e suas construções que, quando
ligadas a normativas e imposições sociais, causam sofrimento, marginalização,
preconceito e discriminação.
Com isso, considero importante deixar nítidos alguns pontos logo na
apresentação. Não se trata de “pesquisar pessoas não binárias”. Meu objeto de
pesquisa é a subjetividade, não são pessoas. Meu lugar enquanto psicóloga não é o
de legitimar nem validar nenhuma identidade. Não sou porta-voz do movimento não
binário e nem me proponho a sê-lo. Não se trata do que é “certo”, “errado”, “normal”
ou “anormal”.
Minha principal contribuição como pesquisadora está no conhecimento amplo
da área de sexualidade e gênero sob a perspectiva da Psicologia e por meio da Teoria
da Subjetividade, mas de forma alguma eu conseguiria realizar esta pesquisa sem a
parceria das pessoas que se dispuseram a participar e a trazer pontos importantes
para ampliar as compreensões sobre não binariedade e tantas outras dimensões que
17
INTRODUÇÃO
1
Para uma compreensão histórica acerca do sexo, indicamos a leitura: LAQUEUR, Thomas.
Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
2
LGBTI+ = Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Trans, Travestis e Intersexo. O “+” representa todas
as outras possibilidades que não estão descritas na sigla, como por exemplo, assexualidade (pessoas
que não sentem atração sexual ou a sentem de forma bem específica) e pansexualidade (atração por
pessoas independentemente do gênero com o qual elas se identificam ou não se identificam). A não
binariedade poderia já ser representada pelo T de pessoas trans, considerando a pluralidade de
identidades trans, porém, também podemos compreendê-la como sendo parte do “+”.
3
Ver: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/764-16-conferencia-movimentos-lgbti-
unificam-posicionamentos-e-reafirmam-a-defesa-do-sus
4
Durante as dinâmicas conversacionais foi comentado sobre o termo “gênero dissidente” também
como uma possibilidade de se nomear estas identidades. Entretanto, para melhor compreensão, foi
decidido neste momento mantê-las conforme constam no corpo do texto.
19
salientar que não significa que seja algo que surgiu na atualidade, mas sim, que se
popularizou recentemente. Tendo isso em vista, as identidades de gênero não binárias
são identidades trans - por não se identificarem com o gênero designado ao
nascimento - e têm suas especificidades. Uma pessoa pode se autoidentificar como
não binária somente ou também pode ser um termo “guarda-chuva”, que abrange, de
acordo com Saulo Vito Ciasca, Andrea Hercowitz e Ademir Lopes Junior (2021):
“agêneros, genderfuck, genderqueer, two-spirit5, neuter, neutrois, bigênero, trigênero,
gênero fluido, dentre outros” (p.15). Algumas pessoas também se identificam como
transmasculinos/es não binários/es ou transfemininas/es não binárias/es. A identidade
de gênero, segundo Ciasca, Hercowitz e Lopes Junior (2021) é algo próprio da
identificação de cada pessoa a partir de suas próprias referências. No caso desta
pesquisa, a pretensão é de partir de vivências singulares por meio de uma construção
dialógica e conjunta e não fazer uma espécie de categorização ou nomeação que
possa, mesmo sem intenção, reduzir a vivência e a experiência destas pessoas.
Aqui são trazidas algumas informações com o intuito de oferecer,
principalmente, um panorama social sobre violência, falta de dados e, por outro lado,
algumas ações de resistência na contramão de um cenário que não tem produzido
vida.
Dados de 2019, do Relatório do Grupo Gay da Bahia, apontaram para o caso
de suicídio6 de um casal não binário em São Paulo, na cidade de Ribeirão Pires. No
relatório é feita a relação entre esse caso e as diferentes formas de morte por
transfobia especificamente relacionadas ao suicídio.
No Dossiê7 de 2019 dos Assassinatos e da Violência contra pessoas Trans da
Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), demonstra-se dificuldade
na padronização de dados relacionados à identidade de gênero das vítimas, sendo
mulheres trans e travestis interpretadas como “gays afeminados” e homens trans
como “lésbicas masculinizadas”. Sendo assim, no caso de pessoas não binárias, o
5
Ver: BORGES, Dandriel Henrique da Silva. Indígenas trans? Da América do Norte à América do Sul,
um trajeto inicial de pesquisa. In: MORGADO, Morgan (Org.). A primavera não binárie: O
protagonismo trans não-binárie no fazer científico. Florianópolis, SC: Rocha Gráfica e Editora,
2021. (Selo Nyota).
6
Ver: http://www.frrrkguys.com.br/ares-soren-casal-trans-nao-binarie-morre-em-sao-paulo/
7
Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/01/dossic3aa-dos-assassinatos-e-da-
violc3aancia-contra-pessoas-trans-em-2019.pdf - Acessado em 07/06/2021
20
8
Nota Oficial da Aliança Nacional LGBTI+ de congratulações pelo dia 14 de julho, Dia Internacional do
Orgulho e Visibilidade Não-binária: https://aliancalgbti.org.br/2020/07/14/nota-oficial-da-alianca-
nacional-lgbti-de-congratulacoes-pelo-dia-14-de-julho-dia-internacional-do-orgulho-e-visibilidade-nao-
binaria/
9
Coordenador Titular da Área Não-Binária da Aliança Nacional LGBTI+, Coordenador Adjunto da
Aliança Nacional LGBTI no Estado de Alagoas e Coordenador do Coletivo O “Quê”, do Movimento
MCZ/AL.
10
A utilização da letra “e”, em “não binárie”, não denota gênero.
11
Exibições audiovisuais ao vivo no Facebook e Instagram.
12
Linguagem não binária/inclusiva/disruptiva é a utilizada para não demarcação de gênero em
determinadas palavras. Ver: https://diversitybbox.com/pt/manifesto-ile-para-uma-comunicacao-
radicalmente-inclusiva/. Algumas das pessoas participantes desta pesquisa também usam os
pronomes “elu/delu”, além da letra “e” como substituta de “a” ou “o” em algumas palavras que denotam
gênero.
13
“Pessoa trans” sendo compreendida aqui como aquela que não se identifica com o gênero que foi
designada ao nascimento. Não sendo relacionado necessariamente à vontade de realizar
procedimentos cirúrgicos ou hormonização.
21
dentro do movimento sobre essa temática têm se direcionado para aspectos reflexivos
importantes, como as diferenciações de classe social, raça/etnia e geração ao se
tratar da não binariedade, mas extrapolam seus objetivos quando se tornam violentas
e discriminatórias.
Já em 2021, foi criada a Articulação Brasileira Não-Binárie (ABRANB), o que é
citado por Bokoto14, participante desta pesquisa, como algo positivo e indicativo de
movimentação e organização entre pessoas não binárias brasileiras na luta por
direitos e na contramão de imposições normativas.
Tendo em vista os aspectos apresentados e considerando a atualidade e
urgência do tema, esta pesquisa propõe-se a contribuir com mais informações e
conhecimentos acerca de uma realidade com a qual pessoas estão se
autoidentificando. A aproximação da temática será feita a partir da Teoria da
Subjetividade, que terá seus conceitos e pressupostos explicados no decorrer da
pesquisa.
Abordar esse tema nos estudos de sexualidade partindo do campo da
Psicologia pode trazer às/aos psicólogas/es/os – porém, não somente - um olhar não
patologizante e não estigmatizante sobre as identidades e expressões de gênero não
binárias. De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2019, p. 206):
14
Nome fictício.
22
Realizar pesquisas envolvendo seres humanos, por si só, não é uma tarefa
fácil. Envolve recortes de uma realidade complexa, escolhas e direcionamentos
teórico-metodológicos que sejam coerentes com a temática escolhida. O primeiro
recorte feito para a realização desta pesquisa é a compreensão da subjetividade a
partir do ponto de vista histórico-cultural na Teoria da Subjetividade.
O que é a subjetividade? Onde ela emerge? Como emerge? Como se constitui?
Qual sua importância para a pesquisa? Ainda, no que diz respeito a esta dissertação,
em relação à área dos estudos de gênero e sexualidade, que contribuições a
concepção de subjetividade pode oferecer?
Tendo em vista essas perguntas, serão apresentados nos subcapítulos que
seguem conceitos fundamentais para a compreensão da Teoria da Subjetividade e,
posteriormente, vias e conexões possíveis com a Sexualidade em sua amplitude
conceitual.
15
Por escolha da pesquisadora, a palavra “parceria” foi aqui utilizada para se referir ao processo de
pesquisa construído em conjunto, com possibilidades de posicionamento crítico e modificações no
rumo da construção da informação por parte das pessoas que participam da pesquisa.
16
Ver: GONZÁLEZ REY, Fernando Luis. Epistemología Cualitativa y Subjetividad. São Paulo:
EDUC, 1997.
27
17
Não é citado por Moncayo Quevedo, mas pode ser adicionada a essa linearidade também a
cisgeneridade.
32
18
Na apresentação do texto de Gonçalves Neto (2015), não se encontra nesta ordem de apresentação,
porém, para fins de organização deste capítulo, mantivemos Antônio da Costa Ciampa como último a
ser apresentado.
19
Ver: MEAD, George Herbert. Mente, self e sociedade. trad. Maria Silvia Mourão. Aparecida, SP:
Ideias & Letras, 2010.
33
20
Ver: GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. trad.
Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: LTC, 1988. Originalmente publicado em 1963.
34
una nem estática, mas que os indivíduos têm múltiplos selves, produtos do
reconhecimento cognitivo e/ou social do outro.
Gonçalves Neto (2015, p 59-63) diferencia identidade de self na obra de
Goffman. Self seria um conceito subjetivo e reflexivo, referindo-se à autoconsciência,
experiência de si. Já identidade é um conceito mais elaborado. Goffman distingue
“identidade pessoal” – características mais singulares que permitem diferenciar um
indivíduo de outros e a combinação única de itens da sua história de vida relacionada
a uma certa singularidade e uma permanência no tempo – de “identidade social”, a
qual se expressa de dois modos: “Identidade social virtual” – características, atributos
e atitudes baseadas em preconcepções e normatizações, de certo modo gerenciadas
pelo indivíduo ao adequar-se às exigências de como ele deveria ser diante das
expectativas normativas dos outros, expressas por afirmativas, descrições,
ajuizamentos e valorações – e “identidade social real” – características que o indivíduo
efetivamente apresenta e prova possuir nas relações às quais de fato se vincula.
Em síntese, destaca-se o enfoque interacionista na concepção de identidade
de Goffman: “As identidade social e pessoal são parte, antes de mais nada, dos
interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade
está em questão.” (GOFFMAN, 1963/1988, p. 117 apud GONÇALVES NETO, 2015,
p. 63).
Cabe destacar que a obra de Goffman teve importantes consequências
políticas ao debruçar-se sobre os processos de estigmatização.
21
Ver: DESCHAMPS, Jean-Caude.; MOLINER, Pascal. A identidade em Psicologia Social: dos
processos identitários às representações sociais. Trad. Lúcia M. Endlich Orth. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2009. (originalmente publicado em 2008)
35
22
Ver: RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. trad. Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus,
1991. (originalmente publicado em 1990)
23
Ver: CIAMPA, Antônio da Costa. A identidade social e suas relações com a ideologia. Dissertação
(Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 1977.
37
24
Ver: SARBIN, Theodore.; ALLEN, Vernon. Role Theory. In: LINDZEY, Gardner.; ARONSON, Elliot.
The Handbook of Social Psychology. vol. 1, 2. ed. Massachusetts: Addison-Wesley Publishing
Company, 1968
38
pensava a construção social do gênero, que envolve todas as pessoas. Para Jesus
(2015), nomear identidades cis e trans, muito além de “aprisionar em categorias”,
como críticas que poderiam surgir, é uma forma política de humanização,
considerando-se o contexto atual e, também, arrisco-me a dizer, de despatologização,
por serem formas de se colocar no mundo, ao invés de “desvios da normalidade”.
No capítulo seguinte, portanto, oferecemos algumas vias de compreensão da
categoria gênero como forma de ampliar o debate e dar sustentação à construção da
informação desta pesquisa.
43
3. GÊNERO25
25
Este capítulo se trata de uma adaptação do artigo “Diferença e Diversidade: Perspectivas
Transfeministas na Compreensão da Categoria ‘Gênero’”, sob autoria de Amanda Giulia Sartor e
Jaqueline Gomes de Jesus, publicado em 2022 na Brazilian Journal of Development. Pode ser
acessado através do link: https://www.brazilianjournals.com/index.php/BRJD/article/view/44282
44
26
Feminismo esse descrito anteriormente: ocidental e europeu. Compreende-se nesta pesquisa que
“o feminismo” não é um só, mas tem várias vertentes e linhas de pensamento que, inclusive, variam
pela localização geográfica. Sendo assim, a realidade latino-americana tende a ser diferente da
realidade europeia, por exemplo.
45
Ao escrever direcionada ao público das artes e do cinema, por mais que não
se restrinja a ele, Lauretis (1994) propõe-se a ir além das propostas teóricas de
Foucault relacionadas à tecnologia sexual que acabam, segundo a autora, por excluir
as considerações sobre o gênero. Na teoria de Foucault, a sexualidade seria idêntica
para todas as pessoas, sem a divisão feminino/masculino. Sendo assim, trata-se de
uma limitação que mantém, mesmo que não necessariamente de forma intencional, o
homem como sujeito universal e o masculino como neutro.
A partir do ponto trazido por Butler, a noção de gênero se expande para além
de comportamentos esperados de homens e mulheres, tornando-se uma categoria
potente de desnaturalização da lógica binária27. Ou seja, a partir do momento em que
surgem novas identidades de gênero, ao contrário de serem “não naturais” ou até
consideradas patológicas, são a expressão máxima de que é possível vivenciar a
sexualidade sem se encaixar na expectativa social de masculino e feminino, inclusive
sendo possível não se identificar com nenhuma das duas opções, com as duas ou
mesmo fluir entre elas, como no caso de pessoas não binárias.
27
Compreensão de que só haveria dois gêneros, sendo eles feminino e masculino, opostos e fixos.
47
28
Ver: hooks, bell. Feminist theory: From margin to center. Pluto Press, 2000.
29
Na linha coerente entre ’sexo’, ’gênero’, ’desejo’ e ’práticas sexuais’, portanto, a cisgeneridade se
localizaria nas relações e diálogos entre os dois primeiros pontos desta linha (englobando, via
cisnormatizações, possibilidades definitórias restritas para corpos e identificações, bem como
48
30
Na literatura também é encontrado o termo “não binarismo”, porém, nesta pesquisa foi feita uma
decisão conceitual, após conversar com participantes da pesquisa, em utilizar o termo “não
binariedade”, por não conter o sufixo “ismo”, que seria pejorativo, por sua vez, podendo remeter a uma
ideia de doença, transtorno ou problema.
31
Cabe destacar, que durante todo o processo de construção desta dissertação, observou-se um
crescimento exponencial de produção bibliográfica sobre a temática; entretanto não se ocupou em
refazer uma busca nos bancos de dados por ser necessário focar no processo conversacional,
interpretativo e construtivo de informações.
51
que Queer, em seus aspectos multidimensionais, pode ser interpretado como marco
de referência inicial que é logo “desconstruído”, gerando novas potencialidades e uma
nova conjunção possível de leituras críticas, sejam elas teóricas ou artísticas.
Ainda no que se refere à arte, mais especificamente à fotografia, Cássia
Cândido, Heloísa Suzano e Monique de Assis (2020) selecionaram para interpretação
duas imagens da exposição fotográfica Estética do Invisível intituladas Ensaio disfarce
para o fim do mundo e Meu corpo criação. Identificaram, a partir disso, a
representação de poder, resistência e transformação de corpos que não se submetem
aos processos identitários vigentes.
Sobre Identidades políticas e luta por direitos destacam-se os pontos
trazidos por Mario Carvalho (2018) por meio da observação do I Encontro Nacional de
Homens Trans. O autor constatou que o auge do debate se verificou no momento de
escolha da categoria “homens trans” para representar o coletivo. A disputa deu-se
entre a categoria “homens trans” e “não binários/es” (também aparecendo por vezes
como “transmasculinos”) que não se sentiam representados pela palavra homem.
Desses que se manifestaram contra a categoria inicialmente escolhida, a maioria era
de jovens (18 a 22 anos), de aparente classe média e que se utilizavam de termos em
inglês (queer, non-binary etc.) e interlocuções com autoras/es e termos dos estudos
acadêmicos de gênero (por exemplo o conceito de performatividade32 de Judith
Butler). A sugestão do grupo seria a palavra “transmasculino” para abarcar a
diversidade de vivências, porém, houve críticas. A réplica a essa ideia consistia em
afirmar que seria mais interessante, em termos políticos, operar com categorias já
existentes e inteligíveis para o poder público com a intenção de facilitar o processo de
conquista de direitos. Essas discussões, de acordo com o autor, poderiam ser vistas,
em um primeiro momento, como uma posição mais democrática/englobante versus
uma outra mais pragmática, porém, outros marcadores de diferença estavam
presentes. Além dos aspectos geracionais, eram observadas questões de raça e
classe social. Por fim, ficou decidido o uso de “homens trans” para interações
socioestatais e “transmasculinos” - em conjunto com “homens trans” - internamente,
32
Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou substância interna,
mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de ausências significantes, que sugerem,
mas nunca revelam, o princípio organizador da identidade como causa. Esses atos, gestos e atuações,
entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por
outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e
outros meios discursivos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não
tem status ontológico separado dos vários atos que constituem sua realidade. (BUTLER, 2017, p. 194).
52
O modelo teórico, por sua vez, é o resultado final da pesquisa, no qual são
produzidos indicadores, apresentadas hipóteses e feitas construções interpretativas
para produção de conhecimento acerca do que está sendo estudado.
5.1 PARTICIPANTES
33
A utilização da letra “e” em “não binárie” não denota gênero feminino nem masculino, de acordo com
uma proposta da linguagem não binária/inclusiva. Ver: https://diversitybbox.com/pt/manifesto-ile-para-
uma-comunicacao-radicalmente-inclusiva/
61
34
Nomes fictícios.
62
5.3 INSTRUMENTOS
Cabe salientar que as perguntas do mapa cognitivo não tiveram foco na história
de vida e nem nas relações, porém, isso apareceu espontaneamente nas conversas
e a pesquisadora fez indagações a esse respeito.
As dinâmicas conversacionais foram gravadas e transcritas para auxiliar o
trabalho da pesquisadora mediante autorização prévia e estão mantidas em arquivos
protegidos, identificados por códigos. As informações produzidas são resguardadas,
considerando que essas podem dar detalhes muito precisos sobre a identidade de
quem participou, tendo em vista o compromisso ético diante do Código de Ética do
Profissional Psicólogo, bem como pelo compromisso firmado com a pessoa
participante no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) no Anexo A desta
pesquisa.
6. CONSTRUÇÃO DA INFORMAÇÃO
Luís Henrique, Amê, Tuti, Kafka e Bokoto. Cada uma dessas pessoas vivencia
de diferentes formas a não binariedade. Teremos acesso a recortes de suas vidas,
compreendendo, mesmo que inicialmente, as configurações subjetivas da não
binariedade de cada participante. Os próprios títulos, partindo de metáforas ou trechos
específicos de suas falas, já demonstram aspectos do desenvolvimento subjetivo de
cada uma dessas pessoas relacionados à não binariedade.
As discussões trazidas por cada participante são linhas guia para a pesquisa,
demonstrando a riqueza da singularidade na diversidade. A força do singular em
sujeitos que resistem às normativas gera novos sentidos e configurações subjetivas e
desenvolve novas práticas.
66
67
35
Pansexualidade: Atração sexual/romântica por pessoas independentemente de gênero.
68
36
“CAPS II: Atende prioritariamente pessoas em intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos
mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas e
outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida”.
Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/centros_atencao_psicossocial_unidades_acolhimento.pdf
37
Não especificamos por conta do anonimato.
69
exemplo o estudo, o que lhe permitiu permanecer durante um ano estudando em uma
escola particular no Ensino Médio. Em um momento, inclusive, chegaram a morar em
uma casa dada pela avó. O outro lado era dos pais de Luís, que não tinham dinheiro.
Aí a minha mãe ameaçou de botar ele [o pai] na justiça, a minha vó meio que
se colocou para cuidar de mim e dar toda assistência que meu pai teria que
dar. Então, acabou não faltando nada porque minha vó dava cesta básica,
pagava o colégio e era isso (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
Ele morava com a mãe. Depois foi morar perto da avó, em um bairro ainda na
cidade metropolitana, mas um pouco melhor. A avó pagou durante três anos um curso
de inglês para Luís, oportunidade a que poucas pessoas têm acesso, ele reconhece.
Na ida para o curso, tinha dinheiro para o lanche. Ele guardava para comprar coisas
para si. Conta que a avó de vez em quando lhe dava dinheiro.
Eu tava crescendo, queria comprar coisas para mim que às vezes não queria
pedir para minha mãe. Então a minha vó ia soltando. Tipo aquelas vós que
passam dinheiro na surdina. 50 reais por debaixo da mesa. Então, a minha
relação de classe era muito assim, mas eu tinha algumas brigas com a minha
vó. Por ela ter dinheiro, tinha alguns debates que ela fugia, mas eu gostava
de trazer, saca? (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021)
Os debates aos quais ele se refere eram principalmente sobre racismo, classe,
diversidade de gênero e diversidade sexual. Tais contextos fazem parte das
configurações de sua identidade. Comenta que a avó tinha comportamentos muito
racistas e não era algo velado, mas direto, como por exemplo, chamar de “macaco”
um trabalhador que foi realizar consertos em sua casa. Depois de muito tempo de isso
ter acontecido, dentre outros episódios, Luís conseguiu conversar de forma indireta
com sua avó que, apesar de tudo, ainda lhe escutava. “Eu falava: ‘Vó, você tem uma
vida estável aqui, tem acesso. Acho que tá na hora. E você enquanto mãe de santo...
Reflete aí’” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021). Ele comenta que levou essas discussões
para a avó porque pensa no coletivo e acredita que nenhuma pessoa mereça ser
maltratada. Também, como mãe de santo, Luís acredita que a avó tem uma
responsabilidade ainda maior de cuidar das pessoas. Aqui, podemos elencar um
indicador de acolhimento como fator essencial para sentir-se pertencente, uma
vez que existe a expectativa de acolhimento por líderes religiosos, mas depara-se com
contradições, como racismo, julgamentos e exclusão. Neste momento, Luís refere-se
à postura da avó, porém, poderemos ver adiante como isso também se relaciona a
70
como ele espera que outros líderes tenham abertura, empatia e acolham a
diversidade, seja ela de classe, raça ou gênero.
Era em momentos cotidianos que o neto abria um canal de diálogo com a avó.
Ele cita exemplos, como iniciar algum assunto enquanto estavam vendo uma ou outra
reportagem no Fantástico ou algo na TV a que tinham o costume de assistir juntos.
Luís percebia que os temas abordados pelos programas eram a possibilidade de falar
sobre assuntos que não necessariamente ele precisaria trazer por conta própria. “Olha
vó, isso tá acontecendo no mundo. Não sou só eu que tô te trazendo. É bom ficar
ligada” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
Ele lembra de um episódio que ocorreu no período do impeachment da ex-
presidenta Dilma Rousseff. O posicionamento político da avó era de esquerda, o que
Luís vê como uma vantagem, já que, segundo ele, se ela estivesse mais relacionada
à direita, a situação poderia ser pior para ele. Foi comentando sobre o impeachment
que, pela primeira vez, conseguiram conversar sobre as questões LGBTI+. O tema
debatido era “família tradicional”.
Aí eu sempre vou com muito humor… Acho que isso deixa as pessoas mais
abertas. No primeiro “meu voto é pela família” eu já soltei: “Ih vó, cadê o
discurso desse cara? Quem votou nesse cara que não sabe nem discursar?”
Aí eu perguntei se ela tava ligada nesse rolê da família. Minha vó falou que
não tava entendendo nada. Falei: “A galera tá usando esse discurso da
família pra falar que defende a família tradicional brasileira. A galera hétero”.
Aí ela ‘“O que que é isso? O que que é hétero?” Aí eu fui explicando o que
era orientação sexual. Ela ficou meio receosa no início, mas a família sempre
sabe (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
O receio da avó estava em achar que Luís Henrique falaria sobre si, mas ele
foi “trazendo de fora, pelas beiradas, devagarzinho” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
Ele desenvolveu formas de falar com a avó para que ela o entendesse e viu isso surtir
efeito. Conta que no dia seguinte à conversa que tiveram sobre família tradicional, ao
receber a tia de Luís em casa, a avó perguntou se ela havia visto a votação no dia
anterior. Ela, por sua vez, disse não ter visto.
[Avó:] “Tinha uns cabra meio esquisito dizendo que tavam votando pela
família”. Daí ela falou que eu disse que a galera tava defendendo a família
tradicional brasileira. Aí a minha tia: “Ué, mas não tá certo? De ter que
defender a família tradicional brasileira? É a nossa família mamãe”. E a minha
vó: “Num é a nossa família não”, aí eu: “Ihhh” (risos). Eu nem falei essa parte,
não sei da onde ela tirou isso. Minha tia já olhava para mim porque sabia que
eu que colocava esses papos na mesa (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
71
Sabia que eu não ia aguentar. Dou graças a Deus hoje de não ter ido, porque
se eu tivesse nesse processo de reconhecimento da minha orientação sexual
dentro de um colégio que na sua maioria eram pessoas que tinham dinheiro
e viam isso com outros olhos, sendo uma pessoa negra, o meu cabelo não é
liso, ia ser um choque muito grande. Dou graças a Deus por ter ido pro outro
colégio, mas pra minha vó o colégio público não dava em nada (LUÍS
HENRIQUE, DC2, 2021).
batia na mãe e isso era veementemente reprovado por Luís. Sua irmã por parte de
mãe e pai, de 21 anos, morava com a mãe. Ele a visitava de vez em quando e é com
quem mais conversa dentre os irmãos. Tem mais três irmãos e uma irmã por parte de
pai e todos tiveram filhos recentemente, portanto, Luís esteve mais em contato com
eles, principalmente por causa das crianças.
Após ter sido expulso de casa, morou durante um ano com o tio, pai de santo,
negro e gay, com quem Luís afirma conseguir ter um diálogo mais aberto e com quem
pôde se expressar por saber que havia maiores possibilidades de ser acolhido. Nesse
caso, portanto, havia a noção prévia de possibilidade maior de acolhimento por parte
de pessoas da comunidade LGBTI+. Por mais que o tio não tivesse tanta proximidade
com as questões trans, era parte da comunidade LGBTI+. Permaneceu lá até o
momento de terminar o último período da faculdade e depois foi morar com o pai.
Sente que a relação com o pai é melhor por haver diálogo. O pai escuta-o e busca
compreender o que Luís quer expressar. Ele conta que, desde a época em que se
entendia como mulher lésbica, a relação com o pai era muito boa; saíam juntos,
bebiam e conversavam. Conta que o pai já suspeitava, mas esperou que ele dissesse.
Foi um processo tranquilo e o pai defendeu-o diversas vezes quando a mãe queria
bater em Luís em razão disso.
Minha mãe nos surtos dela de querer me bater e ele: “Não, não vai encostar”
e me levava para a casa dele. De inclusive ele falar: “Pô, conheci uma garota
e acho que você vai gostar” (risos). Esse nível de intimidade. Até hoje a minha
relação com ele é boa. Não tão próxima como eu gostaria, mas a gente ainda
continua sendo bem amigos, de compartilhar coisas que acontecem aqui,
dele compartilhar coisas que acontecem lá. Ele é a única pessoa da minha
família mais direta que eu tenho mais contato e posso pedir ajuda (LUÍS
HENRIQUE, DC2, 2021).
Também morou um tempo com a tia, irmã de sua mãe. Ele conta que a mãe
não gosta muito por essa tia ser “rueira” e não ser da igreja. “Rueira” foi o termo que
Luís usou para descrever como a tia é uma pessoa que vive na rua, conversa com
todo mundo, bebe, ou seja, tudo que a mãe desaprova. Ele sente muito carinho pela
tia. Ela o chama pelo nome, se erra os pronomes logo pede desculpas e conserta.
Entretanto, a dinâmica de morar juntos não funcionou muito, então, logo que Luís
passou na residência, foi morar sozinho.
Todo esse percurso familiar e de possibilidades e impossibilidades de
habitação dizem do movimento. Movimento de reflexão sobre sexualidade e gênero
73
38
Androginia: Aparência que mistura aspectos considerados socialmente como femininos e
masculinos.
76
que é sobre isso, a não binariedade é estar bem consigo mesmo (LUÍS
HENRIQUE, DC1, 2021).
O “ponto zero”, como ele mesmo trata, é o primeiro contato que se torna
respeitoso quando não se faz pressuposições sobre quem ele é, mas se está aberto
a conhecê-lo. Perguntar o pronome pelo qual ele gostaria de ser chamado, para Luís,
ganha um caráter pedagógico na medida em que faz a outra pessoa questionar seus
pressupostos. Por meio da inversão de uma lógica que define se algo é feminino ou
masculino a partir da estética, é provocada uma reflexão. Ao mesmo tempo que, para
algumas pessoas, este exercício pedagógico não se aplica:
Se é uma pessoa que é próxima e que sabe que eu sou uma pessoa trans
não binária, eu vou deixar que me chame no feminino e isso não vai me afetar
de forma negativa, porque eu compreendo que aquela pessoa também
compreende o meu processo de construção e tudo mais, de transição (LUÍS
HENRIQUE, DC1, 2021).
Eu acho que foi isso, esse processo assim, foi meio que escadinha né, o
processo de escadinha de ter contato com o termo, de entender o que que é,
para se reconhecer ali dentro, né. E o não contato com o termo, mas como
termos próximos que condicionaram de alguma forma para me encaixar ali.
E a necessidade de se encaixar também... Tipo, que é bem construído
socialmente, né. Você precisa estar encaixado em alguma coisa para as
pessoas poderem te entender também (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021).
Encaixar-se em algum lugar. Essa foi mais uma – e talvez ainda seja – das
reflexões de Luís Henrique acerca da inteligibilidade social, ou seja, das pessoas
compreenderem minimamente quem ele é e como se reconhece. Ele acredita que
esta necessidade de se encaixar é construída socialmente e que algumas “caixinhas”
são inteligíveis, como por exemplo, compreender que pessoas trans estariam entre
ser mulheres ou homens, mas quando isso é questionado ou se “misturam” essas
definições, seriam “como E.T.s”, algo que não faria sentido. A partir disso, por vezes
ele se sente em um “não lugar”, um limbo do entendimento social.
Luís descreve este não lugar como uma impossibilidade de ser para além das
categorias homem e mulher, uma “não existência” que, para ser compreendida, faz-
se necessário repensar toda a construção em torno do que se entende por sexo e
gênero, principalmente. Porém, também é um olhar diferente para a própria vida e
como cada pessoa se coloca no mundo. Luís diz que a não binariedade é “repensar
realmente tudo” (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021) e, para isso, ele salienta que é preciso
disposição, o que nem todas as pessoas têm. Sendo assim, consideramos que as
configurações subjetivas de Luís relacionadas à não binariedade encontram-se
além do limbo e vazio entre sujeito e as normativas sociais, entre não binariedade
e cisheteronormatividade. Em lugar do não se sentir, do não pertencer, do não existir
e do não se compreender conforme a cisheteronormatividade, as configurações
subjetivas da não binariedade transcendem este lugar, não ficam em um suposto
limbo, mas expressam-se em sujeitos, em vias de subjetivações e ações concretas na
contramão do instituído e do rechaçado.
78
Algo que ficou muito evidente na conversa com Luís foi o impacto da igreja
evangélica em seu processo de socialização e educação durante a adolescência. Foi
criado na igreja até aproximadamente os 16 anos de idade. Naquele período,
compreendia a si e era visto socialmente enquanto mulher negra cis lésbica periférica
evangélica, sendo o pai pastor e a mãe missionária. Por mais que na igreja Luís
tivesse boas experiências, também existia um processo, segundo ele, de sabotagem
dos próprios desejos, por considerar, por exemplo, que o fato de sentir atração por
meninas, reconhecendo-se também enquanto uma, seria, para a igreja, um pecado
abominável.
ambiente da igreja e aos papéis sociais por ela esperados. Inclusive, quando ele diz
que o pastor poderia tratar determinados assuntos privadamente, isso se conecta
tanto ao indicador de acolhimento como fator essencial para sentir-se
pertencente quanto ao indicador de diálogo como fator possibilitador de contato
e conexão. Uma vez que essa conexão fosse possível, talvez também a permanência
fosse maior em um local onde sentisse que poderia expressar-se, ser escutado e
acolhido.
Ele também sentia uma grande responsabilidade por ser filho do pastor e da
missionária. Aos 15 anos foi afastando-se da igreja, mas os pais ainda o levavam
contra sua vontade. Esse “afasta/retorna” durou até, mais ou menos, os 18 anos de
idade de Luís. Ele conta que, quando era levado à igreja, permanecia com expressão
fechada, sentado, sem falar com ninguém, demonstrando seu desconforto. Era
cobrado dele que desse exemplo a outros jovens. “Não queria nem estar ali, quanto
mais dar exemplo pras pessoas (risos)” (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021).
Foi por meio de tentativas e desilusões que Luís compreendeu que, por mais
que tenha vivido diversas experiências boas naquele ambiente com o grupo de jovens
e gostasse das relações que eram possíveis ali, ainda havia violência e aquele não
era um espaço acolhedor para ele ser quem é. A insegurança e o medo que atribuiu
a estar neste espaço e seguir os ritos da religião não eram sustentáveis. Precisou
afastar-se por um tempo, depois retornou, batizou-se e, segundo ele, esse foi um
momento de autossabotagem que não durou muito tempo. Não foi um processo fácil
e muito menos linear. Mesmo tentando permanecer e ver o ambiente por outros
pontos de vista, ainda o sentia como um espaço violento para si, com regras pelas
quais não valeria a pena moldar-se. “É ferir o outro, é violentar o outro e é contraditório
com a própria Bíblia” (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021). Tudo isso provocou vários
questionamentos e inseguranças: “Será que eu sou um corpo desejado? Será que eu
sou capaz de ser amado?” Para além disso, a insegurança tomou caminhos mais
generalizados, com questionamentos como: “Será que eu sou capaz de fazer uma
prova e passar?”.
(...) por mais que eu não esteja na igreja mais, essas coisas ainda me
atravessam, porque me construíram socialmente assim, né... E foram no
período da idade em que a gente realmente está ali construindo e
consolidando aquilo que a gente vai ser. Então por mais que eu não esteja
dentro desse ambiente mais, graças a Deus, ainda me atravessa assim.
Tomada de decisão, ver o mundo também. Acho que cristianismo molda
80
muito como a gente olha para algumas questões. Acho que, graças a Deus,
eu estou no processo de desconstruir todas essas coisas (LUÍS HENRIQUE,
DC1, 2021).
Neste período em que Luís Henrique afastou-se novamente da igreja, por mais
que não estivesse fisicamente no local, os afazeres de sua mãe traziam essa igreja
para dentro de casa porque, dessa maneira, ele ainda estaria em constante contato
com ela. Neste processo de aproximação e distanciamento da igreja, Luís também
frequentava um terreiro e, em um determinado momento, ele foi expulso de casa39 e
passou a morar com a avó - conforme comentado no início - falecida há
aproximadamente dois anos e meio e que era mãe de santo nesse terreiro. Ele afirma:
“(...) Acho que isso foi um ponto que pesou bastante assim, que eu sabia que tinha
toda uma construção do discurso que tinha dentro da igreja para que ela tomasse
essa decisão também, né” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021). De acordo com Luís, sua
mãe não compreendeu que o motivo de ele sair da igreja era por se sentir em um local
opressivo, por se sentir violentado. Para ela, a saída estava relacionada ao fato de ele
frequentar o terreiro.
O terreiro foi um local importante para Luís reconhecer-se em outros espaços
e permanecer em contato com a espiritualidade, que é algo valioso para ele. Apesar
de atualmente não frequentar mais o terreiro ao qual era conduzido pela avó - e no
qual a tia está à frente hoje - Luís reconhece que, principalmente no período em que
precisou de acolhimento após ter sido expulso de casa e, indiretamente, da igreja, ele
se sentiria mais sozinho se não tivesse buscado esse local e não sabe o que poderia
ter acontecido. Recentemente, passou a frequentar outro terreiro, mas também teve
algumas situações que lhe desagradaram. Ele conta que, na primeira vez em que foi
a uma “gira” nesse terreiro, sentiu-se feliz em constatar que havia um homem trans
presente. Ele “performava uma masculinidade” (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021) – o que
Luís não faz e nem pretende fazer. Apesar disso, uma das vontades de Luís era não
usar saia. Esse homem pediu para que não colocassem saia em Luís durante a
sessão. Isso fez com que Luís continuasse frequentando o terreiro por se sentir
39
“Quando os membros da família rejeitam, negam ou cortam laços com pessoas trans, isso pode ter
um efeito devastador em seu bem-estar e autoestima. Também pode impactar a estabilidade
educacional, econômica, patrimonial e habitacional. Muitas pessoas trans continuam a enfrentar
rejeição familiar e isolamento, incluindo sendo expulsas de suas casas ou sendo fisicamente feridas
por membros da família” (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021, p.38).
81
respeitado, porém, nas outras vezes em que o homem não estava, acabaram
colocando a saia nele.
Em uma dessas vezes, uma pessoa que o conhecia foi com ele à gira e
interferiu quando a situação se repetiu. O pai de santo não gostou. Quando Luís se
deu conta, já estava acontecendo um sermão sobre a situação; sobre ele.
(...) foi complicado, porque o discurso não foi um discurso de “me desculpa
se isso te afetou, se isso te violentou”, foi tipo: “Sinto muito que isso tenha te
violentado, mas é orientação da casa. Eu não tenho nada a ver com a sua
opção...”. Ainda usou opção, né. “Eu não tenho nada a ver com a tua opção,
com as tuas escolhas, com as escolhas de cada um” (LUÍS HENRIQUE, DC1,
2021).
Por mais que esse tenha sido um discurso para todas as pessoas presentes,
Luís percebeu que era para ele. O pai de santo ainda ressaltou que as regras existem
e precisam ser cumpridas no terreiro, porém, a justificativa que ele deu para Luís sobre
o uso de saia não fez muito sentido para ele. Seria uma forma de cobri-lo, contudo, a
roupa que ele estava já fazia essa função. Luís entende que é possível que, sobre
alguns temas, enquanto um homem cis de 60 anos, negro, o pai de santo não tenha
acesso, mas percebe que saber disso não o faz sentir-se menos mal. Somente faz
com que tenha uma melhor compreensão dos motivos pelos quais o outro pensa como
pensa. Então, ele precisou decidir, considerando tudo isso, o que faria para o seu
próprio bem-estar.
(...) mas é tenso esse rolê de regras, porque grupos têm regras e algumas
são regras que excluem pessoas né... Então, como balançar e mediar aquilo
que pode ser colocado e que vai ser entendido e que vai ser escutado? E
quando se retirar? Porque às vezes não vai ter abertura também (LUÍS
HENRIQUE, DC1, 2021).
têm acesso ao conhecimento e que, de acordo com o que foi expresso por Luís
Henrique, deveriam ter discernimento do que é importante pesquisar e compreender
na atuação dentro da saúde. Este indicador também é sustentado pelas informações
que seguem.
Luís conta, na segunda dinâmica conversacional, que teve crises de ansiedade
e estava com intenções de tirar licença médica para afastar-se do trabalho e cuidar
de si. Já estava há algum tempo sem ir trabalhar em virtude dessas questões. Ele já
sabia que poderia encontrar inconsistências e contradições, mesmo sendo um CAPS
de referência, mas não sabia que isso lhe impactaria a ponto de não conseguir mais
permanecer naquele ambiente. No início, estava disposto, mas conforme foi se
deparando com a realidade de que o básico não estava sendo feito, ele, enquanto
residente, não conseguia “dar conta” e nem se sentia responsável por trazer todas as
críticas. Inclusive, ao tentar expressar o descontentamento à preceptora e à tutora,
não conseguiu, porque as crises de ansiedade já se haviam iniciado. .
(...) a questão não é nem a galera não ter tato com pessoas trans, é não ter
tato com as pessoas em geral. Então, pra mim é muito, eu sou muito sensível.
Comigo é tudo na base do afeto e aí eu chego lá e a galera é meio endurecida.
Com os próprios usuários... Coisas muito doidas enquanto eu estava naquele
CAPS. O restante da equipe parece que já naturalizou isso e essas ações
não são tão visadas e vistas enquanto problema. Aí eu entrei como residente
e vi esses problemas, mas me vi sem um lugar para colocar essas questões
também, porque a galera já está no meio disso e tão meio que achando
natural e deixando o bagulho acontecer (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
(...) quando cheguei lá eram muitos profissionais sem tato, de xingar usuário,
proibir usuário de entrar na unidade. São coisas nítidas para qualquer pessoa
que tenha o mínimo de teoria da luta antimanicomial40 e que nitidamente
chegaria lá e falaria: “Isso tá errado, isso é um absurdo” (LUÍS HENRIQUE,
DC2, 2021).
A proposta é que a atuação seja planejada com a equipe ou pelo menos com
a preceptora, mas ele acabou tendo que encontrar sozinho sua função. Luís Henrique
propôs-se a atuar na área de convivência e, com sua formação como educador físico,
lidava com o corpo, levava oficinas de música, utilizava-se dessas ferramentas e
apropriou-se deste lugar. Percebeu, entretanto, que a equipe não compreendia sua
40
Ver: AMARANTE, Paulo; NUNES, Mônica de Oliveira. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por
uma sociedade sem manicômios. Ciência & saúde coletiva, v. 23, p. 2067-2074, 2018. / LÜCHMANN,
Lígia Helena Hahn; RODRIGUES, Jefferson. O movimento antimanicomial no Brasil. Ciência & Saúde
Coletiva, v. 12, p. 399-407, 2007. / GULJOR, Ana Paula; AMARANTE, Paulo. Movimentos sociais e
luta antimanicomial: contexto político, impasses e a agenda prioritária. Cadernos do CEAS: Revista
crítica de humanidades, n. 242, p. 635-656, 2018.
84
função na unidade, nem o espaço da educação física na saúde mental, além de não
valorizar as oficinas. A equipe, segundo ele, via as oficinas como um lugar em que os
usuários vão para desenhar alguma coisa, pintam e saem. Não havia escuta,
observação. A escuta à qual Luís se refere diz respeito a entender de forma integral
a realidade do usuário. Ele via que as perguntas eram feitas a eles de forma muito
direta, entre quatro paredes, com encaminhamentos padrões e rasos. Isso se
relaciona ao indicador de cansaço e exaustão, além do adoecimento causado tanto
pela desvalorização profissional quanto pela exclusão e sentimento de não
pertencimento.
Aí teve uma reunião muito louca de preceptoria coletiva que isso ficou muito
nítido. A galera não estava conseguindo me enxergar e cobrou de eu não
estar fazendo nada. Eu fiquei: “Gente, como assim eu não estou fazendo
nada?” Aí eu nem retruquei, só deixei o bagulho acontecer. Não é que eu não
estou. Você que está ali na sua salinha sentado, no seu ar-condicionado
enquanto eu estou na área de convivência. Mas é isso, bateu e eu não
consegui mais voltar pro serviço depois dessa reunião (LUÍS HENRIQUE,
DC2, 2021).
Não tem como a gente não falar sobre violência no território e sobre racismo,
porque infelizmente as coisas estão ligadas. Numa supervisão, a gente
conseguiu colocar minimamente. Falar de privilégios, porque a gente viu que
era necessário, mas também foi a única vez que teve espaço pra colocar
(LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
ficar com muita dor muscular e não conseguir me mexer muito bem, porque o meu
músculo fica contraído durante a crise” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021). A ansiedade,
neste sentido, aparece como expressão de seu sofrimento, paralisando suas
atividades, emoções e reflexões. Paralisa sua capacidade de ser sujeito e produzir
novos sentidos subjetivos para a abertura de novas vias.
Atualmente, ele tem a possibilidade de ter atendimento psicológico e
psiquiátrico. Luís já fazia terapia, mas conta que relutou para começar, pois não queria
que fosse psicanalista nem pessoa cis. Entretanto, por indicação de uma ex-
companheira, ele foi a uma psicanalista, mulher, branca e cisgênero. Nesse momento,
ele tentou ir “desarmado”.
41
Ver: https://cfp.revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/pesquisainterdisciplinar/article/view/186/pdf
87
muito mais interessante que um divã. Ele falou que podia sentar no chão,
onde eu me sentisse mais confortável. Tinha uns incensos espalhados, falei:
“Ai, é disso que eu precisava rapaziada”. O psicólogo era trans, então check
em todas as coisas que eu tava procurando (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
Para Luís, esse foi o melhor cenário, visto que conseguia expressar-se, sentir-
se confortável, sem um clima endurecido. Eram utilizadas dinâmicas e, em alguns
momentos, o psicólogo, para dar início à psicoterapia do dia, trazia jogos de sensação,
humor e sentimentos. Isso fazia sentido para Luís porque ele estava em um momento
de sensibilidade - indicador de cansaço e exaustão – no qual sentia dificuldade em
expor pelo que estava passando somente com perguntas diretas. Nas dinâmicas, ele
apenas deixou fluir de acordo com o jogo trazido e sentiu que isso foi benéfico.
Nessa época eu tava tendo muitas crises de ansiedade por causa desse
processo da transexualidade. Tava com uma loucura lá em casa, na casa da
minha mãe. Eu guardava tudo para mim, não compartilhava com as outras
pessoas, ficava naquela pira de não ser uma pessoa útil e tal. E a terapia em
grupo é bom por isso, você compartilha as coisas que você tem, mas também
pode entrar nas histórias das pessoas que estão ali na terapia com você.
Então isso pra mim foi bem importante nesse início, que eu acho que se eu
tivesse numa terapia individual eu não ficaria por muito tempo. Talvez as
crises de ansiedade não parariam. Depois que eu comecei a terapia, as crises
diminuíram. Eu só tinha crises em momentos muito pontuais, se acontecesse
alguma coisa e aí desencadeava uma crise (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
O contato com a Psicologia, para além da psicoterapia, também é por meio dos
estudos. Luís tem grande interesse pela área da saúde mental - no momento da
pesquisa, faz residência nessa área - e pela Psicologia Social. Afirmou que cursaria
Psicologia se dispusesse de tempo e dinheiro. Inclusive, interessou-se pela base
teórica desta pesquisa e pediu para conhecê-la um pouco mais durante nossas
conversas. Esse, portanto, foi um momento informal da pesquisa, no qual o
participante mostrou-se interessado e engajado.
Expusemos anteriormente que em um determinado momento da vida de Luís,
ele se deparou com dúvidas a respeito de ser um corpo desejado, se seria capaz de
ser amado. Na segunda dinâmica conversacional, portanto, a partir da elaboração de
conjecturas, foi perguntado se hoje em dia ele consegue responder a essas perguntas.
Luís afirma que hoje mais do que antes, porém, não está livre dos “tropeços no
caminho”. Sente que atualmente suas inseguranças estão muito mais relacionadas ao
trabalho, à produção e à criatividade.
88
A pergunta que vem na verdade é: “Será que eu estou sendo visto como uma
pessoa que está fazendo coisas?” Porque pra mim eu tenho feito, mas é isso.
Estou numa lógica doida, porque para esse sistema, se você não produz, vai
pro cantinho, fica tranquilinho e você não é visto como uma pessoa existente
no mundo. Essa é a lógica manicomial no mundo. Você não produz, você
está descartado. Mas em questão de ser desejado e amado, eu estou
tranquilo, não tem sido uma questão por agora, não (LUÍS HENRIQUE, DC2,
2021).
42
Ver: https://mst.org.br/2020/09/19/conheca-o-legado-da-educacao-popular-brasileira-de-paulo-
freire/
89
[...] eu acho que isso faz com que eu também continue vivo assim, entender
que há esperança de mudança e de transformação de realidade
minimamente, do que só ficar ali vendo que atravessa a gente de forma
negativa e ponto, paralisar a partir disso (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021).
Paralisar está longe do que Luís Henrique tem feito em sua trajetória de vida.
Ao falar sobre lugares em que ele poderia ser quem é, Luís comenta sobre três pontos
principais presentes nos diferentes espaços sociais: preconceitos, violência e
contradições. O primeiro, segundo ele, decorreria de uma construção social na qual o
preconceito é consolidado e, a partir dele, podem ocorrer diversos tipos de violência.
Contraditório, neste caso, é que em lugares nos quais existem maiores possibilidades,
como entre coletivos de pessoas trans ou até nos espaços de militância, outros tipos
de violências podem acontecer. Ao mesmo tempo que nesses locais as pessoas
tendem a ser mais abertas, de acordo com Luís, existe a possibilidade de repensar e
mudar, ou seja, produzir novos sentidos e configurações subjetivas nessas reflexões,
ações e transformações.
Sendo assim, espaços que seriam mais acolhedores não estão livres de
reproduzir preconceitos, mas dispõem de mais abertura para questionamentos. Isso,
portanto, possui relação com o indicador da abertura de caminhos por meio da
coletividade, mas também depende do diálogo como fator possibilitador de
contato e conexão. Somente por meio da compreensão gerada pelo diálogo é que o
90
É isso né... A gente vive numa sociedade. Sociedade é coletivo. Por mais que
você se veja e saiba que você existe, não dá pra você viver sozinho, né
(risos). Então, querendo ou não, faz parte da nossa construção querer que o
outro nos veja ou pelo menos tenha ciência que a gente exista, nem que
seja... Vai ser pesada essa frase, mas nem que seja pra, sei lá, nos violentar,
porque não dá para violentar aquilo que não existe. Nem que seja para isso
assim, sabe? (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021)
A temática da não binariedade é levada por Luís aos espaços onde ele sente
abertura. Aos poucos, tenta trazer para debate, seja por meio da
transexualidade/transgeneridade, seja por brechas dentro do feminismo ou
transfeminismo, seja por meio de suas redes sociais, o que se relaciona ao indicador
de desenvolvimento de estratégias pedagógicas como abertura de vias para
uma existência inteligível. Nesses momentos, por vezes, é questionado sobre a
materialidade da não binariedade como sendo algo pós-moderno e “sem sentido”.
transformação social que quer vivenciar e que possibilita não somente a sua
existência, mas também a de outras pessoas não binárias no mundo.
Na segunda dinâmica conversacional, Luís pontuou algumas mudanças que
ocorreram ao longo do ano conforme as pessoas foram tendo mais acesso a
discussões sobre não binariedade. Ele percebeu modificações em um dos grupos de
militância do qual faz parte e que não é voltado especificamente para as questões
trans. “(...) Antes não tinha tanta abertura e hoje já tem um pouco mais. Eu já vejo a
galera tentando usar pronomes neutros, por exemplo” (LUÍS HENRIQUE, DC2, 2021).
A partir disso, foi perguntado se ele achava que o mês do orgulho não binárie,
comemorado em julho de 2021, contribuiu para isso. Ele considerou que sim. Disse
que foi convidado para estar em algumas mesas e falar sobre o movimento LGBTI+.
Entende isso como um sinal de maior abertura, uma vez que antes não era convidado
pelo receio que as pessoas organizadoras tinham de que ele trouxesse o debate da
não binariedade, pois a organização não tinha um posicionamento sobre a questão.
Ele percebeu que no momento há uma tranquilidade maior acerca disso.
Já na comunidade trans e fora dela, Luís percebe uma diferença geracional
quanto às discussões e compreensões sobre não binariedade, conforme aferido na
literatura utilizada para fundamentação teórica deste trabalho. Verifica, em sua
experiência de vida, que as pessoas mais jovens, além de terem mais abertura para
o tema, também têm mais acesso. Entretanto, frisa a importância da formação como
um fator tão relevante quanto a idade. Entende que as pessoas que estão na
universidade agora, provavelmente terão acesso a este debate na graduação e quem
já se formou, pode ter um pouco mais de relutância, um certo enrijecimento.
Além disso, Luís afirma que movimentos mais antigos, que iniciaram o
movimento que atualmente chamamos de LGBTI+ no Brasil, acabam tendo mais
resistência para falar sobre transexualidade/transgeneridade e não binariedade.
Houve, de acordo com Luís, uma invisibilização histórica dos corpos trans na luta
LGBTI+.
43
O documentário A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson (2017) disponível na Netflix, conta sobre a
vida da ativista e seu papel fundamental na Revolta de Stonewall.
92
Era essa galera que tava um pouco mais de frente, então rola isso de colocar
o G [gays] muito na frente. A galera não parece muito aberta pro debate (LUÍS
HENRIQUE, DC2, 2021).
Quando eu falo “mundo” parece que a gente joga pro ar e deixa as coisas
acontecerem. Esquece que o mundo é feito de pessoas. Eu acho que a minha
utopia de um mundo melhor seria a gente olhando pra si, enquanto
indivíduos, mas olhando pra fora enquanto sujeitos, de uma forma que não
afete outros de forma negativa. Atualmente tem sido tenso... Cada um
olhando pro seu umbigo e cuidando de si sozinho e às vezes esquecendo
que tem uma pessoa que tá ali e também tá na merda, mas que se tivesse
93
Isso tem relação direta com uma das funções que ele desempenha num dos
coletivos de que faz parte. É por meio da “mística do cuidado” que Luís faz espaços
fluírem, crescerem e tornarem-se vivos e pulsantes. É uma postura que ele adota
frente à vida. É o caminho artístico, poético e sensível, que liga debates sérios e
difíceis à esperança. Não uma esperança estática, mas em movimento. Esperança
consciente dos obstáculos que, ao mesmo tempo, “mantém o nosso coração quente
para continuar em luta” (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021). O momento de mística diz
respeito a uma dinâmica feita em todas as reuniões. Um momento de expressão que
pode ser realizado de diversas formas. Poema, música, vídeo, dança, dentre outras
possibilidades.
(...) a essência dessa dinâmica vai ser para colocar a gente pra cima, mesmo
que traga no seu contexto coisas que nos atravessam negativamente. O final
dela vai ser: “Como a gente caminha para continuar num coletivo
transformando isso?” E, aí, a mística do cuidado, eu acho, é ser é uma pessoa
que cuida de outras e cuida de si de uma forma mística e não de uma forma
endurecida (LUÍS HENRIQUE, DC1, 2021).
44
As duas orientações sexuais o contemplam.
97
decisão concreta. Trabalha de forma autônoma como tatuador, escritor, ator, diretor
teatral e produtor cultural. Mora com sua parceira e três gatos. Além disso, faz parte
de coletivos de teatro, de artistas independentes e de poetas. Afirma, inclusive, que
sua vida é pautada por coletivos.
Ele afirma que durante anos considerou-se como uma pessoa de “gênero
neutro” e que lidava com isso muito bem de forma privada - referindo-se ao seu íntimo,
vida pessoal, pensamentos - e definiu isso como uma “experiência de vivência” mais
do que uma “experiência social de vivência”. Na segunda dinâmica conversacional, a
99
A leitura social trazida por Amê remete a algo que foi destacado durante as
dinâmicas conversacionais; o lugar político. Esse lugar, para ele, faz parte do
processo de identificar-se enquanto uma pessoa não binária. Isso nos leva ao
indicador de influência do social na determinação de um lugar político ocupado
por Amê.
(...) tudo isso já coexistia em mim antes de ter nome, ou antes de eu saber
um nome político pra isso, porque pra mim é nome político, e a minha relação
inclusive com a transmasculinidade, principalmente com as questões dos
homens trans, foi uma coisa muito política, foi um lugar político. Eu lembro
que uma das coisas que eu falei pra mim na época foi “eu tô me assumindo
enquanto lugar político” (AMÊ, DC1, 2021).
grave para ele. “Eu pensei… Opa, as pessoas que se parecem comigo não me
aceitam, não me querem, falam que meu lugar não é aqui, então vou continuar
procurando esse outro lugar” (AMÊ, DC1, 2021). Ele diz ter feito, em meio a isso tudo,
um esforço pessoal pelo reconhecimento de uma identidade masculina.
(...) “eu gosto dessas fotos, são parte de mim, são quem eu fui e quem eu
estou vindo a ser”, porque pra mim, minha vida sempre foi processo, foi
escala de continuidade assim, foi processo de acontecimento. Não tem
muitas limitações. Passou a ter limitações por pressões sociais, que aí um
monte de pressão se acaba tendo que assumir nomes pra… identitários pra
estabelecer relações, e às vezes relações políticas. (...) Eu nunca tive essa
concepção fixa, sempre foi processo. É devir, é vir a ser, então tá vindo e se
mudar, mudou! (AMÊ, DC1, 2021)
(...) ele falou uma coisa que é muito cruel (...) Eu sei que ele falou na melhor
das intenções do mundo, ele viveu para aquilo (...) Mas ele falou uma coisa
muito cruel pras pessoas masculinas em geral, porque ele… Sabe quando a
pessoa fala com aquele ar de autoridade meio messiânico? “Porque o seu
dever”… Ao mesmo tempo cheio de amor, sabe? Meio paternalista, não no
sentido negativo, mas entendendo que existem essas características. Ele
falava que nós homens trans e pessoas transmasculinas tínhamos o dever
de ensinar aos homens uma nova masculinidade. Gente, eu não tenho dever
nenhum… São 5 mil anos de história de patriarcado! Não dá, uma pessoa
sozinha não dá. Quinze “gato pingado” não dá. 80 mil gatos pingados talvez
dê, mas a gente não sabe se somos os 80 mil gatos pingados (...) e aí ele
sempre punha isso com ar de responsabilidade, porque ele realmente se
esforçou pra isso, pra construir a masculinidade dele, diferente dessa
masculinidade hegemônica (AMÊ, DC1, 2021).
Amê admira-o muito e reconhece que a masculinidade da qual falava João Nery
não estava pautada no falocentrismo nem na dominação masculina, patriarcalismo ou
paternalismo. Que na masculinidade também houvesse a presença de um “lado
feminino”, conforme João Nery se referia, com a ideia de que a socialização feminina
não precisaria ser deixada de lado naquilo que poderia ser benéfico a eles, como por
exemplo, a demonstração de afeto. De qualquer forma, Amê entende que algumas
responsabilidades tornam-se obrigações muito pesadas, dolorosas, desgastantes e
que “às vezes só ser pra si é maravilhoso!” (AMÊ, DC1, 2021). A forma como Amê
reage ao que foi dito por João Nery, e conforme lida com as nuances de sua
identidade, levam-nos ao indicador de estratégias de sobrevivência por meio de
experimentos de si, considerando a ideia de alquimista proposta no início, na
contramão do “não lugar” que lhe gera solidão.
“As pessoas tentavam tirar minha humanidade” (AMÊ, DC1, 2021). Este lugar
político também é perpassado por transfobias. Em sua história de vida, Amê constata
preconceitos em diferentes cenários.
(...) as pessoas normalmente não são respeitosas, na maioria das vezes, elas
têm um estranhamento, uma exotificação, um questionamento não pertinente
da vivência da outra pessoa, e essas coisas foram muito presentes na
transição (AMÊ, DC1, 2021).
(...) eu tinha passado a ou ser doente, ou ser louco, ou a ser, sei lá, uma
grande perversão, um grande pervertido nesse imaginário comum das
pessoas. Ou objeto sexual. Isso passa por vários lugares. (...) Ou também
uma desumanização num lugar que aceitar a desumanização seria provar
103
Por mais que o Rio Grande do Sul seja uma região predominantemente
conservadora, pela experiência de Amê, ele sofreu mais transfobia no Rio de Janeiro.
Foi refletindo sobre isso que ele chegou à diferenciação da construção dos machismos
nesses dois locais. Ele fala de machismos no plural por entender que estariam
relacionados à localidade, cultura, valores e história das pessoas residentes naquele
território, principalmente os homens cis.
De acordo com o que Amê pôde observar com relação à diferenciação dos
machismos, no Estado do Rio de Janeiro apresentava-se predominantemente o
machismo com caráter violento e predatório e, no Rio Grande do Sul, como algo mais
ligado à ideia de provedor e defensor da honra. O caráter violento do machismo é o
de combate, de “cair na porrada” com outros homens, matar, morrer, estar disposto à
briga, dominar situações pela força, também nas relações afetivo-sexuais.
exército. Essas coisas, tipo, são muito presentes, são muito pungentes e
marcam a vida cotidiana das pessoas e a formação delas enquanto indivíduos
(AMÊ, DC1, 2021).
Por mais que Amê não tenha falado em primeira pessoa sobre a marca
cotidiana na vida das pessoas, essa também é uma marca em sua própria vida.
Quando busca a possibilidade de viver “outras masculinidades possíveis”, está
referindo-se também a estas construções que não são benéficas nem para quem as
pratica e reproduz nem para quem convive com elas. Este, portanto, é um indicador
da busca pela superação da masculinidade hegemônica, tal qual está relacionada
ao machismo e construções que ele identifica como desumanizantes. Ao mesmo
tempo, ele não pretende representar nem ser exemplo de como vivenciar a
masculinidade, conforme vimos no trecho sobre a fala de João Nery.
Outro aspecto desta mesma questão é que o acesso a esta realidade violenta
e predatória não é vivenciado igualmente por todas as pessoas residentes no Rio de
Janeiro capital e municípios próximos. Amê compreende isso, mas também relembra
que os deslocamentos pela cidade dão uma dimensão geral de como estes processos
acontecem. Ele deu o exemplo de alguém que precisa ir ao trabalho e, mesmo
morando em alguma zona mais nobre do Rio, pode encontrar no caminho algum
tiroteio ou pegar um ônibus no qual entre alguém armado.
45
Monossexual: Atração sexual por um só gênero.
106
(...) Tem as performances de gênero que são como cada indivíduo vai
performar esses arquétipos e essas estruturas, que muitas vezes vêm de fora
pra dentro, mais do que de dentro pra fora, eu acho. E tem as relações de
dentro pra fora que pra mim passa muito pela autoidentificação. Não só das
performances, não só das estruturas, mas o que cada indivíduo entende
como sentir. Então não é uma coisa lógica, não é uma coisa racional, mas
como cada pessoa vai se autoidentificar em si mesma, a partir desses
estímulos, dessas referências e dessas próprias vivências assim. Então pra
mim, gênero está meio que conectado nesses três pontos (AMÊ, DC2, 2021).
107
a partir do momento que tem o olhar do outro. Na minha cabeça tudo vira
público... Na minha cabeça tudo é meio público na real, mas é uma coisa
minha assim, não tenho muito embasamento pra dizer. Eu só tenho a
sensação de que tudo é meio público. E a única coisa privada é o que tá
dentro da minha cabeça e o que tá dentro da minha cabeça geralmente não
se manifesta no meu corpo, porque a partir do momento que tá no meu corpo,
tá físico, tá visível, é público (AMÊ, DC2, 2021).
(...) são malhas de tecido, é um fiozinho que tá ali junto com outro que pra tu
desfiar algum tópico, tu tem que ir desfazendo essa roupa né? Tu tem que
transformar a roupa em retalho. Aí tu vai, puxa um fiozinho, aí acaba soltando
a costura da manga. Aí tu fica ali com aquela manga, tu vai estudando aquela
manga, procurando os fios que você quer e na minha cabeça é um pouco
isso (AMÊ, DC1, 2021).
de um grupo em uma rede social com pessoas não binárias que discutiam essas
questões em 2013/14.
Eu uso o neutro, uso o “e”, tento usar o máximo possível, inclusive, como um
exercício de naturalização pra mim, porque o “e” ainda é difícil, ele não é tão
sonoro, tipo, “artiste”... Assim, adjetivamente é mais tranquilo. “Cansade”,
“faminte”, “entediade”, “apressade”, “animade”... Feliz é neutro por si só, mas,
pra conjugação verbal, pra algumas palavras ainda é difícil né... Artigo,
pronome… Sonoramente eu ainda tenho uma dificuldade pessoal, então
ainda tenho uma dificuldade de falar “ile”, “elu”. Consigo falar pros outros, pra
mim ainda prefiro falar no masculino por uma facilidade, por uma dinâmica de
linguagem (AMÊ, DC2, 2021).
Amê: Tem algumas coisas de gramática que precisam ser pensadas. Eu acho
legal pra se pensar. Se você conhecer pessoas não binárias que façam
Letras.
(...) a não ser que eu faça algum esforço pra me despir dessa imagem, desses
estereótipos masculinos, se as pessoas me veem assim, fisicamente, na rua,
com a cara que eu tenho, imediatamente não vão me associar com um corpo
trans. Me associam com um corpo cis masculino e aí depois quando eu falo
que eu sou trans as pessoas ficam em choque: “Ah, mas eu não acredito,
nossa!” (AMÊ, DC1, 2021).
Hoje em dia, Amê, ao pensar sobre um certo “parecer com”, compreende isso
em um lugar lúdico de “fazer cosplay”. Desde os 13 anos ele faz cosplay, que é
basicamente uma fantasia, uma interpretação na qual as pessoas fantasiam-se de
personagens fictícios, muito popular na cultura japonesa. Cabe salientar que não se
trata de deboche destes personagens, inclusive, a muitos se tem admiração. Trata-se
de “parecer” com eles, por meio de aproximações estéticas e gestuais. Segundo Amê,
ele faz cosplay de homem cis, de mulher cis e experimenta esses lugares, mas
reconhece, ao mesmo tempo, que o que é para ele uma diversão, para algumas
pessoas é um desejo. Diferencia, neste caso, da “autoimagem”, tendo em vista que
algumas mulheres trans e alguns homens trans conhecidos de Amê identificam-se
profundamente com a binariedade dentro dos padrões e expectativas de gênero -
estética, moda, comportamentos - e reconhecem a si dessa forma.
46
Ser compreendido enquanto uma pessoa cisgênero, usualmente por sua aparência e/ou trejeitos.
111
xixi, vou sair, lavar minha mão, seguir minha vida em paz como se nada me
agredisse... Mentira, as coisas continuam me agredindo, mas pelo menos não
fisicamente e diretamente (AMÊ, DC2, 2021).
Mas é muito foda, por exemplo, quando a própria comunidade trans critica
pessoas que têm a tal da passabilidade cis. Critica negativamente ou
hipervaloriza as pessoas que têm a tal da passabilidade. Isso acontece e isso
é negativo. Tanto pras pessoas que não desejam, porque tem as pessoas
que não desejam e não querem ser lidas enquanto cis. Pô, eu tenho o maior
orgulho dessas pessoas e eu tenho maior orgulho que elas consigam viver
assim encarando todos os desafios, encarando todos os riscos. Eu não
consigo. Eu tenho várias circunstâncias e vários medos que me fazem não
conseguir. Às vezes eu estou só a fim de sair com a minha minissaia na rua.
Eu penso 15 vezes antes de usar minha minissaia (…) que nem é tão mini
assim, ela vem só um pouquinho antes da coxa (risos). Eu fico pensando:
“Caralho... Eu vou sair na rua, mas eu vou sair na rua com medo”. Eu adoro
usar maquiagem e às vezes eu coloco uma roupa super bonita e penso
“queria usar maquiagem tal... pô, não vou usar” (AMÊ, DC2, 2021).
112
Em outro momento, a leitura social atribuída a Amê era de mulher cis lésbica
“caminhoneira”, mesmo que ele não entendesse dessa forma.
(...) e era muito engraçado, porque eu não me via daquela forma, e dava…
meu “tilt” era que primeiro que eu não fico só com mulheres, eu me relaciono
com as pessoas que eu gosto, independente de gênero assim, sempre foi.
Segundo, eu acho que pra ser lésbica você tem que se identificar com mulher,
se identificar muito como mulher. Eu não sei se eu me identifico do jeito que
vocês tão me identificando, eu acho que a expectativa de vocês é diferente
de quem eu sou. Só que isso não era levado a sério, porque não existia, não
tinha nome pelo menos aonde eu convivia (AMÊ, DC1, 2021).
(...) isso era bom, de ver assim… Pô, que bom que não tão, sei lá, se
mutilando, sofrendo em casa (...) mas, ao mesmo tempo eu ficava: “Gente é
sério? Vocês tão competindo?” E isso se reproduzia em muitos níveis. Essa
foi uma coisa que me marcou muito porque eu achei um episódio muito
curioso assim, que imageticamente foi muito curioso (AMÊ, DC1, 2021).
Ele também achava cômica a situação porque sentia que estava “vendo meus
primos conversando quando eles tinham 12 anos” (AMÊ, DC1, 2021). A justificativa
principal para esse comportamento, de acordo com o que foi observado por Amê, era
de que eles tinham um esforço em direção ao apagamento da vivência socialmente
lida que tiveram enquanto mulher e, sentindo raiva, achavam que para “matar” isso,
tinham que reproduzir o que entendiam socialmente que é ser homem. Machismo,
falocentrismo, dentro de uma lógica heteronormativa.
No que diz respeito à corporeidade na experiência pessoal de Amê,
diferentemente dos homens trans com os quais ele teve contato no grupo de
WhatsApp, o processo esteve/está muito mais relacionado ao experimento. Ele
comenta ter uma coleção de packers, que são pênis de silicone utilizados
majoritariamente por homens trans e pessoas transmasculinas, que Amê utilizou
como “objeto de estudo” por um tempo com o intuito de ter uma passabilidade cis
maior pelo medo de ser agredido e, como ele mesmo diz, nisso também existe a
vantagem de poder fazer xixi em pé.
(...) porque isso é uma sensação de liberdade única, de poder saber que eu
tô na rua, que não vou precisar me esconder entre dois carros, ver se tem
câmera no prédio pra abaixar rapidinho, porque eu tenho a sensação de que
se eu for no banheiro só vai ter mictório, porque ainda tem isso… Banheiro
masculino é uma coisa linda… Às vezes só tem mictório e fica na altura do
umbigo (AMÊ, DC1, 2021).
114
47
Mastectomia: Cirurgia de retirada de seios. Se difere da mamoplastia redutora, cirurgia com
possibilidade de ser realizada pelo SUS.
48
Algumas pessoas preferem chamar de “hormonização”, ao invés de “tratamento hormonal” ou
“hormonioterapia”, por não dar a ideia de algo patológico que necessita tratamento. No texto foi utilizado
“tratamento” por ter sido chamado dessa forma pelo participante.
115
Não é “eu Amê” que estou tendo esse direito exclusivamente negado, mas
“eu Amê enquanto uma pessoa transmasculine não binárie”, tenho esta gama
de direitos negados e tem série de direitos que eu deveria ter que nem
existem, que não são pensados. E nem uma série de deveres constitucionais
que não são pensados pra mim (AMÊ, DC2, 2021).
Eu sou uma pessoa que faço parte do grupo LGBT, mais especificamente na
sigla Trans. Então eu vou estar politicamente atrelado às vivências e a essa
116
(...) mas ele reflete sentindo, porque se põe no lugar das coisas, se põe no
lugar dos outros e tenta ouvir por exemplo a voz da tesoura… É porque eu tô
olhando pra tesoura agora (risos). A voz do lápis, a voz da caneta, a voz da
parede… É de quem ouve a voz das palavras, sabe? E ao mesmo tempo
ouve a voz interior, e quer contar… A poesia sempre passou desse lugar da
experiência do sentir e do sentir outrem, do sentir além. Eu fiquei muito tempo
117
com a poesia e foi um lugar onde eu pude trabalhar essas múltiplas vozes,
em paz, silêncio e solidão (AMÊ, DC1, 2021).
Foi esse lugar de silêncio e solidão que a poesia ocupou na vida de Amê; por
mais que, por um lado, ele quisesse ser lido, ter suas produções publicadas e sua
poesia reconhecida por outras pessoas, também havia o lado de ter isso para si como
um conforto, espaço em que poderia ser quem quisesse, experimentar o que
quisesse, arte com potencial de experimentação e como forma de pesquisa íntima
de si. Um lugar de “porto seguro”, possível a partir de aberturas concretas no sistema
hegemônico, na sociedade em seus micros e macros espaços. A poesia era a
possibilidade de “dar voz a essa multiplicidade de eus que eu sou” (AMÊ, DC1, 2021).
Foi quando Amê passou a competir em Slams, depois de muito assistir às
competições, que passou a recitar os poemas para as pessoas na rua e a perceber
nisso uma evolução profissional em relação à sua produção poética. Depois de 2014,
voltou à ativa um pouco mais tímido que o costume, colocando em suas criações
temas voltados às vivências trans e temas políticos. Foi aí que teve também a
oportunidade de conhecer outres poetas trans.
Neste corpo, “na carne”, também foi onde o teatro começou a ganhar espaço.
A experiência na pele, neste processo de constante construção, foi uma forma de
tornar mais tangíveis as coisas que imaginava na poesia.
(...) foi um pouco de tornar sonhos matéria, tornar essas coisas que eu
imaginava, tornar essas possibilidades de outros, que eu já sentia habitando
em mim e que eu já trabalhava em mim com a poesia, tornar isso tangível,
tornar isso carne, possibilidade, matéria, não só enquanto palavra (...) E muito
também no lugar de poder experimentar esses outros corpos, essas
possibilidades de masculinidades (AMÊ, DC1, 2021).
de plástico querendo público. Na música, Amê tocava baixo em uma banda e pensa
hoje em dia em começar a estudar saxofone.
Ainda no que cabe ao teatro, inicialmente sua motivação veio por meio da
possibilidade de vivenciar papéis masculinos na atuação, porém, com o tempo, Amê
criou uma relação mais profunda com o teatro, indo além e encontrando também a
possibilidade de comunicação, de diálogo através dos sentidos, das ideias, vivências,
experiências e presença.
Para Amê, a presença se cria. Não está relacionada somente com a presença
física, mas também por vias outras como, por exemplo, duas pessoas que se veem
pela tela do celular ou conversando por videochamada. A pandemia mostrou muito
disso, de como nos adaptamos para, ainda assim, ter pessoas queridas presentes.
Uma hipótese surge nesse momento, tendo em vista que, na busca por locais
em que possa ser e se apresentar como se reconhece, Amê encontrou no teatro
a possibilidade de, por meio da corporeidade, da linguagem - não somente falada,
mas o que se expressa amplamente por gestos, sons e silêncios - e da presença,
vivenciar suas próprias metamorfoses onde possa ser visto, aclamado, reconhecido e
respeitado pelo papel representado, que não se trata somente de um personagem,
mas também de um, ou mais, dos vários eus que lhe compõem. Uma identidade
composta por experimentos, múltipla, diversa, poética e artística. A não binariedade,
portanto, mostra-se como caminho possível na concretização desta identidade.
Outro fator que aproxima Amê do teatro é a construção de atmosferas que
também corroboram a hipótese levantada.
Amê afirma que sempre foi uma pessoa muito solitária, até por conta do mundo
muito vasto, muito movimentado, e que, por meio do teatro e das relações, contatos,
encontros e presenças constantes proporcionados por ele, deparou-se com uma outra
realidade que sustenta a hipótese recém apresentada. “(...) Foi um processo muito
119
A gente trabalha, se ama e vive. Faz tudo junto e é muito intenso. Eu não
acho ruim, mas é intenso. Tem dias que a gente “aaaa”, se dá uma xingada,
dá uns atritos, porque porra, teatro é uma doidera! Não tem como fazer teatro
em paz. Teatro é sempre muito intenso. Mexe com o corpo, com o emocional.
Aí como a gente atua, dirige, produz... Aí a gente mexe com financeiro,
recebe gente, faz tudo (AMÊ, DC2, 2021).
Então seria uma sociedade sem gênero ou, que se tivesse gênero, não seria
algo imposto. Talvez não teria esse nome como tem hoje, mas seria como as
pessoas se identificam e isso não seria relevante. Seria uma sociedade em
que não tivesse as estruturas de poder econômico e que a economia girasse
em prol do bem comum, em prol da manutenção do planeta. Não existiria
relações de poder entre espécies, embora eu ache isso extremamente
utópico porque eu tenho pavor de barata e eu vou matar todas as baratas do
mundo (risos) e se eu não matar eu vou quase enfartar, porque quem vai
morrer vai ser eu... Mas seria com o máximo de respeito às espécies possível.
Em que o gatinho, o cachorrinho, o porquinho, o macaquinho, o besourinho
não fosse tão inferior em relação ao ser humano e que tivesse uma mínima
harmonia entre as formas de vida. E eu queria que o ser humano parasse de
se reconhecer enquanto a espécie predatória dominante, mas passasse a se
reconhecer como uma espécie onívora diferente, mas com importância
ecológica (AMÊ, DC2, 2021).
49
Neste capítulo utilizamos por vezes pronomes neutros e por vezes os masculinos.
50
Demissexual: Pessoa que sente atração sexual por outras somente após construir um vínculo
emocional. No caso de Tuti, isso independe de gênero.
125
Bombeire Civil. Trabalha como autônome, mora com o pai e participa de grupos
artísticos: Cena Ballroom e um grupo de artistas trans no Instagram.
Desde criança51, entre os 8 ou 9 anos, Tuti já questionava padrões de gênero 52
e via a si como diferente das outras crianças. Comentou sobre um episódio com sua
mãe que sempre, segundo Tuti, lidou com essas questões de forma tranquila e
acolhedora:
Eu estava numa loja e minha mãe falou “nossa, que vestido lindo, né?”, falei
“aham”. Aí eu vi uma parca, que na época era tipo um macacãozinho
masculino. “Mas isso é de menino” [fala da mãe]. Era do Seninha. Era
vermelho, azul e branco. Aí eu falei “onde tá escrito que é de menino? Isso é
roupa”. Sabe? Isso é roupa! Aí ela falou “Você quer? É, real… Bem que você
tá falando, é vermelho né?” “Tá e se fosse tudo azul?” [fala de Tuti criança].
É roupa, sabe? Desde criança eu tinha isso (TUTI, DC1, 2021).
Minha mãe sempre falou que já sabia para que que eu vim, “quando você
nasceu”, sabe? Minha mãe sempre foi de boa, sempre levou de boa, levando
as pessoas em volta a levar de boa (TUTI, DC1, 2021).
51
Ver: FAVERO, Sofia. Crianças Trans: Infâncias possíveis. 1ª Edição. Editora Devires, Coleção
Saberes Trans, Abril/2021.
52
Papéis de gênero delimitados na sociedade em formas de se vestir, se comportar, sentir, se
expressar etc.
126
Eu acho que, tipo assim, eu sofri pouco na escola, porque querendo ou não
a gente sofre bullying (...) Tem gente tão tóxica nesse mundo, né? “A sua
irmã é assim, por que você é assim?” Eu falei: “Ela é assim e tem sorte de eu
ser assim pra ela ter apoio pra ser assim. Não é porque eu sou assim que ela
vai ser assim também”. Minha irmã tem muito mais personalidade do que eu
até (TUTI, DC1, 2021).
Mas é isso, hoje em dia, real eu entendo o que ela quis dizer. Que se eu
tivesse outra cabeça, outra frequência ali naquela época eu poderia ter algum
bloqueio, algum transtorno assim... de ansiedade, alguma coisa provocada
por não saber lidar53 na época com isso. Na época do meu desenvolvimento,
do meu crescimento, sabe? Quem sou eu no mundo, pra que que eu tô aqui,
sabe? (TUTI, DC1, 2021)
[Tia] “Você é um ser evoluído, você é atemporal para o lugar que você veio,
por isso que você sempre levou de boa”. Eu falei: “Ah meu signo, pisciano é
assim” Pisciano leva a vida tranquilo, não é porque eu sou um ser evoluído
não (...) Aí hoje eu dia eu fico assim: “Cara, será que foi bênção do universo?”
Eu nascer pisciane, né? Vendo as coisas pelo lado bom... fantasioso (TUTI,
DC1, 2021).
53
É importante frisar aqui que se trata da história de Tuti e de seus meios para lidar com os preconceitos
e discriminações. Não se refere a uma realidade generalizável.
127
A pessoa fica frustrada, oprimida. A pessoa fica fazendo coisas por conta da
religião, pensando no que aquela comunidade, aquele grupo religioso vai
pensar (...) Eu tenho uma amiga que tá hoje com depressão e eu sei que é
por conta de dogma religioso. “Isso é do demônio, você não vai ser salva”. E
eu tenho uma amiga que está se privando da sexualidade, porque ela é
lésbica. Tá se privando por causa da família e da igreja (TUTI, DC2, 2021).
Também isso é compreendido por Tuti de forma mais ampla. No Brasil, um país
majoritariamente cristão, no qual a subjetividade social é marcada por ideais
conservadores em relação a gênero e sexualidade, Tuti critica a existência de uma
bancada evangélica.
54
Apesar de utilizar na pesquisa a sigla LGBTI+, conforme explicado na contextualização, aqui optou-
se pela sigla LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Trans e Travestis, pessoas Queer,
pessoas Intersexo, Assexuais e o + representando as demais possibilidades) respeitando o
posicionamento de Tuti, que utiliza a sigla dessa forma.
55
Em abril de 2019 foi lançada a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos
Indígenas. Ver mais em: http://frenteparlamentarindigena.com.br/
128
do âmbito religioso, encontrando o que fazia sentido para si. Inclusive, nesse aspecto
da vida de Tuti, também são feitos questionamentos em relação a gênero, como
veremos no trecho a seguir:
Eu acredito, para ficar mais fácil, em Deus, um ser superior evoluído, benigno
que é um pai ou mãe. Porque pra mim é agênero. Não sei por que esse
machismo imposto. Então é um ser superior evoluído, uma criatura
misericordiosa que todo mundo deveria acreditar nisso, porque se não vai
ficar todo mundo desesperado (...) Esse Deus e esse Jesus que a galera fala
é bem diferente do Jesus da Bíblia que eu li. Jesus era tão bom cara! (TUTI,
DC2, 2021)
Nessa época, a família de Tuti entendeu que sua orientação sexual era lésbica,
por mais que Tuti não se identificasse assim e, por conta disso, perguntaram-lhe se
gostaria de fazer acompanhamento psicológico. Ele concordou, porém, sem sentir
necessidade, apenas “por desencargo de consciência da minha família” (TUTI, DC1,
2021). O que Tuti entende por “construção de gênero” será descrito mais adiante. Por
um tempo, dizer-se “ser humano” já era suficiente para Tuti ao pensar sobre si e a
forma como se expressa. Porém, depois do contato com a não binariedade e fluidez
de gênero, entendendo o significado disso, passou a nomear-se assim.
129
Não tenho gênero. Não precisa ter gênero. Não binárie é justamente pra sair
desse padrão de gênero do masculino e do feminino. Por mais que alguns
não bináries prefiram performar alguma coisa neutra. Eu sou o não binárie
que às vezes está mais para o feminine, às vezes mais pro masculine. Eu
sou dessa fluidez de gênero. Eu gosto dessa fluidez de gênero (...) É olhar
no espelho e ver “sou eu". Sou eu, sabe? Não tô incomodado, tô de boas. É
se sentir bem, tanto visualmente no espelho, quanto esteticamente falando.
Essa aí sou eu, esse aí sou eu (TUTI, DC2, 2021).
Mas eu entendo também, porque, sabe o que pode ser? As pessoas trans,
tanto homens quanto mulheres, sofreram muito. Tiveram que quebrar todo
esse tabu. A gente tem que respeitar quem veio antes né? Eles atacam, mas
vamos respeitar a luta deles, porque se não fossem eles a gente não estaria
aqui. Então sofreram muito com ataques, hormonização errônea... Porque
antes dos médicos, endócrinos, terem estudos sobre isso e trabalharem com
isso, quem começou com isso foram as próprias pessoas trans fazendo eles
mesmos de experiência. Então acho que ficam meio incomodados, tipo “se
não tem que fazer transição não é trans”. Eu tento entender o lado deles como
“eu tive tanto trabalho pra nada”, sabe? (TUTI, DC2, 2021)
E realmente, ali naquele lugar onde eu morava, ali com a cultura, ali no fim
do mundo onde Judas perdeu as botas e deixou elas com chulé (risos), eu
não ia me identificar. Falar: “Aqui tem alguém que me representa”, sabe? Me
contempla, pelo menos assim, pensa mais ou menos... Não tinha, porque ali
naquele lugar eu era o únique ser humano que pensava daquele jeito (TUTI,
DC1, 2021).
Neste lugar em que ele sente uma certa solidão por não encontrar pessoas ou
grupos que pensem de forma parecida ou complementar, a subjetividade social é
marcada pela lógica binária cisheternormativa e Tuti demonstra isso quando
reconhece que o contexto social é de desigualdade e falta de acesso ao
conhecimento. Neste caso em específico, conhecimento relacionado à diversidade de
gênero.
Eles falam “meio termo” [referindo-se a Tuti]. Não entendem, sabe? Mas
assim, não é culpa, é falta de cultura. E você sabe que não é “ruindade” (...)
131
Enfatiza que em sua cidade natal falta cultura e educação para as pessoas
compreenderem sua “construção de gênero”, termo que Tuti emprega para fazer
referência ao seu próprio processo histórico e dialético de configuração de gênero
enquanto pessoa não binárie. Aponta-se, portanto, um indicador da mobilidade
entre locais - cidades, estados e regiões diversas - como possibilidade de ampliar
vivências, ou seja, a mobilidade que abre novas vias, perspectivas e possibilidades
de conhecimentos, interrelações, expressões e experiências no desenvolvimento do
que aqui denominamos configurações subjetivas da não binariedade de gênero.
Já em relação ao Rio de Janeiro, Tuti vê a metrópole global como um retrato
do país, onde muitas pessoas estão em situação de extrema pobreza, morando nas
ruas e onde a cultura - da qual também faz parte a arte - está esquecida. “A realidade
do Brasil hipócrita” (TUTI, DC1, 2021) diz ele, salientando que, o que o país mostra
como realidade para fora, na verdade esconde vários problemas estruturais. Segundo
Tuti, a luta para que a cultura não morra fica a cargo das minorias marginalizadas.
Até então, quem luta por isso? A minoria. A gente, sabe? As pessoas que já
são julgadas por ser quem são. Aí bota esse encargo em cima da gente
também, aí o que acontece? Demoniza, marginaliza. Ninguém vai querer
prestar atenção, porque eles já estão doutrinados a achar que a gente já está
afrontando por ser quem a gente é, que isso é errado, que isso é demoníaco,
que isso é contra Deus, sabe? Então como que a gente vai brigar pela cultura
e por arte, sendo que a gente tá brigando pra ter paz pra ser quem a gente
é? É difícil, é difícil. É isso aí que é ser Tuti (TUTI, DC1, 2021).
Moro na comunidade, mas numa quitinete, num barraco, mas moro no Rio!
Sabe? Eu sou muito grato ao Universo, às energias. E assim, a gente tem
que reconhecer os privilégios quando a gente tem, sabe? São privilégios...
Todo mundo, tipo, tem a casa que mora do lado da praia, mas a gente sofreu
mundos e fundos pra comprar isso e dar uma qualidade de vida melhor para
todo mundo, sabe? (...) Se eu ficasse só no interior seria só mais uma
pessoa... “Apenas um rapaz Latino-Americano, sem dinheiro no bolso...”
[cantando] mas não sei, tudo tem um propósito (TUTI, DC1, 2021).
a partir das diversas atividades que desenvolve e grupos dos quais participa.
Atividades, relações e experiências com notórias implicações para o seu próprio
desenvolvimento e de outras pessoas, com vistas a que especialmente pessoas trans
não bináries possam viver, conviver e expressar-se de modo livre, autêntico e
confortável, na contramão de julgamentos e “cancelamentos”, da invisibilidade e não
permissividade, da discriminação e violência. Isso tem relação direta com o indicador
de acolhimento às diferenças, neste caso, por meio da educação. Quando
perguntado sobre o papel da informação, ele responde:
Tuti reconhece o que o acesso à informação fez por sua vida. Com esses
trechos, e considerando outros aspectos da vida de Tuti, como a infância, em que
mediava situações para que as pessoas não se constrangessem por serem diferentes
das demais, construímos a hipótese de que Tuti, por meio da comunicação e
formação educativa de outras pessoas, encontra vias de possibilitar sua própria
existência e também salvar outras vidas, seja literalmente, considerando as altas
taxas de suicídio entre a população LGBTQIA+, seja proporcionando um espaço
acolhedor em que possam ser elas mesmas.
Com o avanço da tecnologia e a possibilidade de acesso à internet, alguns
fenômenos sociais passaram a advir desse cenário. Alguns foram citados por Tuti
como: “cancelamento”, “ser emocionade” e digital influencers. O “cancelamento” diz
respeito à punição dada às pessoas que fazem algo considerado reprovável, como
por exemplo, emitir opiniões preconceituosas e, a partir disso, perder seguidores nas
redes sociais, perder patrocínios e ficar excluíde/o/a de diversos espaços. A ideia de
cancelamento é a de que, a partir desse momento, a pessoa não será escutada, mas
133
ignorada, colocada de lado, sem espaço para desculpas. Já ser uma “pessoa
emocionada”, no contexto atual dos relacionamentos, relaciona-se, de forma um tanto
pejorativa, a “se abrir” rápido demais e iludir-se com relacionamentos que podem ser
mais rasos e de curta duração. Estar “entregue” e ser levade/o/a pelas emoções, sem
muito discernimento. Entretanto, a linha é tênue entre a definição apresentada e
apenas sentir tudo mais intensamente.
(...) eu sempre fui muito emotivo, vou falar, muito visceral para as coisas e de
uns tempos para cá, você ser emocionade, você ser sentimental, você ser
humano, não ser uma máquina... As pessoas, enfim, tão meio que
marginalizando você ser emocionade. Você está com uma pessoa “pô, tem
um mês de namoro, tá emocionade”. “Tô sim, me encantei, me apaixonei,
nunca aconteceu isso com você não?” Sabe? (TUTI, DC1, 2021).
E nossa, e foi bom, porque tipo, além das pessoas que começarem a me
seguir, elas me orientaram também, muita coisa que não se conversava sobre
(…) Se eu tenho esse conhecimento que eu tenho, que eu passo para as
outras pessoas, foi porque as pessoas me passaram, sabe? Porque eu faço
o elo da corrente crescer, não “desemenda” (TUTI, DC1, 2021).
Um monte de gente fala assim: “Cara, ainda bem que eu vi seus stories!
Minha mãe começou a ver seus stories e agora ela vê as coisas de outro
jeito”, sabe? Que aí você compartilha as coisas dos seus amigos, de outras
pessoas aí... Você traz informação (TUTI, DC1, 2021).
Por meio das redes, Tuti gosta de compartilhar conhecimento sobre cultura,
música e também sobre a Cena Ballroom56, um movimento coletivo artístico e de
militância de grande importância para ele e que o movimenta emocionalmente.
Inclusive, tem vontade de visitar as diferentes balls das regiões brasileiras. No
momento, participa no Rio de Janeiro, o que se relaciona ao indicador da mobilidade
entre locais como possibilidade de ampliar vivências. Durante as dinâmicas
conversacionais, as experiências neste grupo foram constantemente mencionadas e
entendemos, a partir disso, o indicador da Cena Ballroom como constituinte da
subjetividade individual de Tuti acerca da arte, gênero e expressão. Os trechos
a seguir corroboram esse indicador.
[Ao chegar na Cena Ballroom] Eles falam assim: “Ó, se você se reconhece
enquanto pessoa trans e quer fazer modificações ou tratamentos, não faça
isso sozinhe em casa. Busca psicólogo, busca endócrino. Sozinhe é
perigosíssimo pra sua saúde mental e física”. Depois que eu conheci a Cena
Ballroom, foi abrindo esse leque de construções de gênero para mim. Existem
vários espectros dentro da construção de gênero. Aí que eu fui vendo que era
ali que eu me encaixava, onde me sentia representade. Sou não binárie. Eu
ficava me achando um ET. Mas é isso, eu não sou diferente de ninguém não,
só não conseguia me achar (TUTI, DC2, 2021).
De certa forma, Tuti reflete a Cena Ballroom em suas ações. Propõe-se a ser
acolhimento, a promover entretenimento, a disseminar informações de forma lúdica e
a compartilhar arte. Foi ao conhecer a Cena Ballroom e a dança Vogue57 que Tuti
parou de sentir-se “esse E.T., extraterrestre” (TUTI, DC1, 2021). Encontrou pessoas
56
Ver: https://houseofraabe.alboompro.com/post/46681-culturaballroom
57
Dança com poses glamurosas inspiradas na revista Vogue. Em 1980, em Nova York, as minorias
marginalizadas de afro-americanos e latinos faziam as poses da dança em bailes (Ballroons). Em 1990,
Madonna lança a música Vogue e expande a visibilidade dessa cultura dos guetos nova-iorquinos. A
série Pose, da FX, retrata essa realidade. Também sobre a temática, na HBO Max é exibido o reality
show Legendary, de competição de Voguing.
135
que pensavam de maneira mais próxima ao que entendia sobre si mesme e sobre o
mundo. Entretanto, apesar de Tuti afirmar que a Cena Ballroom é um lugar de
acolhimento, houve um episódio em que isso foi colocado em questão ao perceber
que algumas discussões estavam acontecendo e as pessoas estavam
desentendendo-se. Ele avisou às mothers58 e fathers que pretendia deixar o grupo,
uma vez que o objetivo inicial não estava sendo cumprido e exigências desmedidas
em relação a como cada pessoa decidia expressar-se estavam sendo feitas, não
somente a pessoas não bináries, mas também a pessoas em início de transição.
Aquilo chateou Tuti profundamente e, depois de uma reflexão feita em grupo a esse
respeito, as pessoas que estavam fazendo esses apontamentos e exigências
perceberam como isso poderia ser prejudicial e mudaram de comportamento.
Outro ponto comentado nas dinâmicas conversacionais foi sobre transição.
Transicionar, para Tuti, é algo que se inicia a partir do momento em que a pessoa
passa a enxergar-se enquanto trans, o que pode, segundo ele, acontecer em qualquer
fase da vida. “Começa antes mesmo da primeira agulhada. Começa na mente. O
primeiro o processo da transição é mental, depois ele vai para o aspecto físico da
pessoa” (TUTI, DC1, 2021). Ele também diz que o aspecto físico é igualmente
variável. Nem sempre as pessoas querem ou podem realizar procedimentos cirúrgicos
ou hormonais. No caso de Tuti, ele afirma que a sua transição é feita durante a vida
inteira, constantemente. Elencamos aqui o indicador de transição de gênero
contínua, sustentado também pelos questionamentos que Tuti faz na infância e
adolescência, além de como refere-se a si mesmo ao olhar-se no espelho e
reconhecer-se enquanto pessoa não binária.
Algo que incomoda muito Tuti é o que ele chama de “passabilidade tóxica”,
quando são exigidos determinados procedimentos para alguém que está começando
a entender-se enquanto trans ou que não sente necessidade de modificações
corporais. Pontua, por exemplo, que cada pessoa carrega um fardo e está inserida
em um contexto e que determinadas exigências podem contribuir para a invalidação
de algumas identidades trans, principalmente não bináries.
Eu conheço muitas mulheres trans que me ajudaram muito, mas elas têm
isso: “Ai, Tuti, quando você vai começar a sua hormonização para eu te ver
de barba? Você vai ficar muito gostoso de barba”. Como se sem barba eu já
58
“(...) as pessoas na house são majoritariamente pessoas negras ou descendentes de indígenas ou
pessoas que tenham essas ancestralidades” (TUTI, DC1, 2021).
136
não fosse muito gostoso, pelo amor de Deus! (risos) Eu sou linde! Elas
querem me ver de barba, então ficam com essa passabilidade tóxica pra eu
ter essa vontade que elas têm de me ver de barba (TUTI, DC2, 2021).
(...) Por exemplo, uma mulher trans se descobrir trans agora. Algumas
mulheres trans vão começar a apontar: “Tira essa barba” e a pessoa às vezes
não tem dinheiro para fazer uma depilação a laser pra tirar a barba. Isso é
exigência de passabilidade tóxica. (TUTI, DC2, 2021).
E fui eu que falei! O pessoal fala assim: “Ah eu gosto de você, porque você
joga as pautas que ninguém tem coragem de jogar” (...) Aí foi ali que eu me
137
declarei como trans não binárie. Eu sou uma pessoa não binárie, só não sabia
nomear isso. Aí nesse dia eu joguei para o mundo, no dia da minha
nomeação. Tem 1 ano...1 ano ontem fez exatamente! Caraca! (TUTI, DC1,
2021)
E é por isso que as pessoas têm que procurar pessoas que, no caso da
comunidade, pessoas que te contemplam, para você não se sentir, como
fala? Marginalizado por ser quem você é, não sentir diferentão, um monstro.
Não é, a gente não é, não somos! Só somos fora do padrão, sabe? Que estão
acostumados, mas não quer dizer que ser fora do padrão é anormal. Não é
anormal, sabe? Enfim, eu brinco que a gente veio da colônia espiritual
diferente, aí a gente veio nos tempos diferentes, não sei, não se sabe (TUTI,
DC1, 2021).
Apesar disso, não se sente desconfortável com o nome de registro e, quando vai na
casa de familiares, eles ainda o chamam de Luana (nome fictício), mais um indicador
de sentidos subjetivos de conforto e bem-estar com a fluidez de gênero.
No lugar de comunicadore, Tuti enfatiza a importância da representatividade,
algo que ele considera faltar quando se trata de pessoas não binárias. Assumindo
essa falta, propõe-se a produzir conteúdo, tomar este lugar, construir novas vias e
expor publicamente sua identidade e opiniões como uma forma de mostrar que outras
pessoas como ele também podem chegar até ali, ou pelo menos percebê-lo como um
espaço possível de existência.
O que que eu fiz de bom para a humanidade? Não que todo mundo tenha
que ter esse encargo... O que que eu fiz? Fui gente boa pra todo mundo que
convivi, sabe? Entendeu? Tenho que passar o bem pra todo mundo que eu
convivi (TUTI, DC1, 2021).
No ato de acolher, Tuti expõe a si, a sua identidade, o seu ser. Um movimento
dialético concreto nas vias da subjetividade individual e social. A isso nomeamos como
indicador de acolhimento como via de expressão de si. Ao mesmo tempo que
reconhece a responsabilidade social envolvida no processo, tanto no sentido de fazer
algo bom que acrescente na vida de outras pessoas e na sua própria quanto entender
que as pessoas são em grande medida influenciadas por outres/os/as pelas quais
sentem-se representadas. Entende que, a partir do momento que alguém se propõe
a representar algo, deve considerar que possivelmente suas ideias e comportamentos
serão reproduzidos em escalas para além de seu próprio controle.
(...) Se você for uma pessoa tóxica, aquelas 11.000 pessoas que estavam no
seu Instagram vão ser tipo “Maria vai com as outras”. Você prega ali. Você é
um pastor e as ovelhinhas são seus seguidores. Então, se você quer melhorar
o mundo, começa a melhorar de dentro pra fora, porque as pessoas vão
pegar e te imitar. Real, as pessoas vão te imitar (TUTI, DC1, 2021).
“A gente veio para cá para evoluir e esquecemos de evoluir” (TUTI, DC1, 2021).
Tuti reconhece que essa evolução é alcançada por meio da responsabilidade social,
exercendo um papel político e reconhecendo-se enquanto parte da sociedade, com
139
possibilidades de contribuir para que ela se modifique. A utopia de Tuti para um mundo
melhor, inclusive, está relacionada à politização do movimento LGBTQIA+, para que
as pessoas aprendam sobre seus direitos e deveres. “Eu tenho que perguntar pra mim
qual é meu papel sociopolítico sendo uma pessoa trans não binária. O que que eu tô
fazendo por isso?” (TUTI, DCG, 2021). Em um determinado momento da primeira
dinâmica conversacional, ele pontua o que estamos vivendo neste período de
pandemia e demonstra vontade de deixar algo bom, uma espécie de legado para as
próximas gerações.
Se realmente tudo acabar, se não existir vacina, se no final todo mundo fosse
se findar, eu tenho mais uns 2 anos, 6 meses aí de passagem nesse planeta,
nesse plano... Qual que é a minha história que vai ficar para trás? As pessoas
vão conhecer que Tuti? O melhor lado de Tuti tá só para mim. Que egoísmo
é esse? E eu que tanto falo de compartilhar o que a gente sente... Não! Estou
sendo hipócrita comigo mesme, sabe? (TUTI, DC1, 2021)
Então eu acho que de uns anos pra cá as pessoas tão com medo dessa
exposição também, esse medo do cancelamento né, com medo de expressar
o que são de verdade e isso acabou atingindo o meu lado artístico né...
Escrevo muito, componho muito, mas não boto para fora com medo do que
é que vão pensar e, caramba, sinceramente, ninguém me dá um real pra
comprar um pão. Entendeu? Tô nem aí. É isso agora, eu vou botar mesmo
pra fora, é isso, escutem. Eu tenho esse lado aqui (TUTI, DC1, 2021).
deste processo contraditório, Tuti alude ao medo de o que as pessoas vão pensar e,
mesmo tendo afirmado que não estaria “nem aí”, comentou durante as dinâmicas
conversacionais que, quando se deparou com a apreciação das pessoas em relação
às suas composições - e que eram dadas opiniões positivas mais ou menos parecidas
- ele sentiu que seria o momento de deixá-las públicas. Com isso, identificamos a
importância do feedback do público para que Tuti continue a expor cada vez mais as
suas canções. Ao mesmo tempo que sente também limitações no que diz respeito aos
equipamentos de que dispõe para gravação e reprodução audiovisual.
Tuti é artista. Ele acredita que a arte tem potencial de abrir debates, promover
cultura e disseminar pautas. Ao mesmo tempo que, na realidade brasileira, frisa as
dificuldades relacionadas à marginalização da arte e ao acesso no interior.
(...) A arte tem tudo pra isso! Não só pra essa pauta de gênero e sexualidade.
A arte tem o poder de salvar, mover montanhas, mover o mundo. Só que a
arte é marginalizada, então, como que as pessoas vão dar credibilidade a um
movimento marginalizado? Qualquer artista é marginalizado, infelizmente.
Porque existe esse preconceito cultural, pelo menos aqui no Brasil (...) Artista
é vagabundo, artista não quer nada da vida. Mal sabe o “corre” pra conseguir
um edital, pra conseguir dinheiro, pra conseguir se produzir para o edital.
Essas pessoas veem o artista quando já está estourado e aí pensa que é só
aquilo, por isso muitas pessoas não dão credibilidade (...) Normalmente os
artistas estão no subúrbio, na periferia, no interior. Eu, por exemplo, tive que
correr atrás de ter aula de canto, de dança, de teatro. É difícil ter acesso no
interior (TUTI, DC2, 2021).
Eu usaria desse tom de humor que eu tenho pra não fazer graça, mas pra
deixar a pessoa à vontade para eu entrar no assunto. E esse é meu jeito que
ri, faz piada e blá, blá, blá, faz a pessoa fantasiar na mente e entender. Porque
se eu chegar aqui e falar: “Não, porque é isso, você tem que me escutar e
bábábá”... Eu falo: “Gente, eu só sou gente”. Aí a pessoa já ri, isso traz
142
endorfina para o cérebro, que faz a pessoa prestar mais atenção naquilo que
você está falando e faz a empatia agir junto… Não sei que que é, só sei que
esse jeito dá certo. Não sei te explicar cientificamente, mas que dá certo, dá
certo (risos) (TUTI, DC2, 2021).
“Eu sempre quis ganhar o mundo”. Kafka diz isso colocando peso nas palavras,
emocionalmente implicado em um sonho que se relaciona com a liberdade, com a
possibilidade de explorar novos lugares, novas sensações, culturas, contatos,
conexões e realidades. Sua busca por vezes encontra dificuldades e obstáculos, mas
isso não o impede de - mesmo em alguns momentos não acreditando - tentar, testar
e se implicar no que quer conquistar.
59
Atração romântica por pessoas, independente de gênero.
60
Não monogamia: outra forma de pensar e vivenciar os relacionamentos para além da monogamia.
Leitura sugerida sobre a temática: TAKAZAKI, Silmara; TAVARES, Jessica; NÚÑEZ, Geni. (orgs.) Não
Monogamia LGBT+: pensamento e artes livres. Rio de Janeiro: Ape’ku, 2020.
146
A infância de Kafka foi marcada pela sensação de ser diferente das outras
crianças. “Eu sempre fui uma pessoa diferentona. Sabe aquelas pessoas diferentes
que sofrem bullying na escola? Os estereótipos, assim. Eu sempre li, sempre gostei
de ler, essa coisa meio emo/gótico da coisa” (KAFKA, DC2, 2021). Quando mais novo,
pegava as roupas e pertences do irmão e a mãe brigava com ele por essa razão.
Ele morava em uma casa atrás da casa da avó - que também fez parte de sua
criação, juntamente à mãe - e ao lado do tio. Convivia com os primos, sendo a maioria
primos do que primas. Também tem uma tia que tem seis filhos homens e, ao observá-
los, Kafka percebia que queria crescer mais como eles do que da forma como as
primas cresciam. Nesse momento, Kafka ainda não havia passado pela puberdade e,
quando via esse momento chegando para os primos homens, sentia vontade de que
fosse assim com ele também. Ele queria ser igual aos meninos com os quais tinha
amizade, aos meninos da cidade. Entretanto, não totalmente parecido, uma vez que
os achava “muito héteros e machistas” (KAFKA, DC1, 2021). Queria a aparência.
No Ensino Médio, tinha mais amizade com gays e não conseguia, por mais que
tentasse, fazer parte do grupo das meninas lésbicas. Ele conta que era um tabu a
questão da orientação sexual e aquele era um momento de muitas dúvidas entre os/as
estudantes. Uma menina apaixonou-se por Kafka e, por não aceitar o sentimento, ele
acabou se afastando. Kafka diz que nunca teve liberdade para falar sobre o assunto.
Quando eu resolvi falar que eu era bi, aí um menino falou assim: “É... uma
bicha conhece a outra” (risos). (...) O Ensino Médio foi bem conturbado nesse
sentido. Eu andava mais com as pessoas mais estranhas, tipo rockeiras e
nerds e por muito tempo eu fiquei sozinho. Comecei a fazer amizade com
outras turmas, com pessoas mais “comuns” assim, porque eles se afastaram
de mim. Muitas vezes eu ficava só, tipo, lendo livro sozinho e tal (KAFKA,
DC1, 2021).
Onde morava, Kafka não encontrava muitas referências de pessoas como ele.
Atribui isso a estar em uma cidade pequena que, portanto, teria menos acesso ao
assunto. Quando via casais de lésbicas e gays - podendo também ser bissexuais ou
pansexuais - normalmente não era algo publicamente “assumido”. Por mais que as
pessoas soubessem, não se tocava no assunto.
Tinha uma moça que tinha uma academia, então ela era tipo a referência de
sapatona na cidade, porque ela era assumida, tinha uma academia, era, tipo,
“masculina”. (...) Eu lembro que passava por um bairro que tinha muita, tipo,
casa de prostituição (...) tinha umas travestis, mas eu não tinha amizade com
elas, e não tinha como acessar pra ter uma amizade com elas (KAFKA, DC1,
2021).
O “não falar sobre” a que Kafka faz referência algumas vezes, como acontecia
no colégio e na igreja, é, para nós, um indicador do silenciamento frente a
questões sobre identidade de gênero e orientação sexual, relacionado
diretamente ao tabu social e ao preconceito presentes na subjetividade social sobre
diversidade sexual e de gênero.
Um tempo depois, foi morar em São Paulo com as tias. Conta que elas eram
muito conservadoras e tinham medo de que, se algo acontecesse com Kafka, seria
responsabilidade delas. Neste sentido, naquele local ele sentia que não tinha
liberdade. Por outro lado, encontrava um espaço mais acolhedor e seguro ao
conversar com a prima, que atualmente tem uma namorada, mas não é “assumida”.
Além da prima, que é uma pessoa mais introspectiva e ficava mais em casa, Kafka
acabou não tendo muitos contatos. Fez amizade com as duas vizinhas, uma que não
148
saía de casa e somente saía com o namorado e outra que era muito nova. Com isso,
Kafka não costumava sair e passou a utilizar mais a internet para entreter-se e buscar
conhecimento.
O contato com a prima e com os grupos de que se aproximava no Ensino
Médio, leva-nos ao indicador de busca de acolhimento por grupos e pessoas
LGBTI+, sendo que, por meio da identificação com essas pessoas e grupos,
alcançaria maior liberdade, um desejo que aparece quando Kafka se expressa sobre
mudanças de cidade e pertencimento a grupos, além de sua vontade de vivenciar o
mundo, conforme veremos mais a seguir.
Kafka comentou que no Facebook tinha uma conta com o novo nome e seu
irmão a viu. “Eu lembro que o meu irmão viu uma vez e falou ‘Kafka’? Eu disse ‘sim’
e ele ‘então, tá’” (KAFKA, DC1, 2021). Ele conta que o irmão nunca foi muito engajado
em aprender sobre identidade de gênero ou orientação sexual, mas também nunca o
rejeitou nem falou nada para a mãe sobre o nome no Facebook. Kafka conta que teve
vários namoros virtuais porque na cidade onde morava não encontrava muitas
pessoas parecidas com ele e, além disso, era mais fácil de esconder dos pais e das
demais pessoas. Aqui, elencamos o indicador da internet como possibilidade de
vivenciar a identidade de gênero e orientação sexual. Quando se relacionou com
uma menina dessa forma, lembra de um episódio em que o irmão o provocara com o
intuito de ver a reação da mãe:
Eu tinha uma namorada online, virtual. Ela morava em Taiwan, gringa. Ela
era enfermeira. Aí o meu irmão falava: “Olha, tem um monte de foto dessa
enfermeira no celular”. E a minha mãe também era enfermeira (risos). Então,
era esse tipo de coisa que ele soltava e a minha mãe, tipo, “tudo bem". E aí
algumas coisas assim ela já ia aceitando. Uma vez eu fui sair com as minhas
amigas e a gente não precisava muito de dinheiro, porque a gente se juntava
e tal. Dessa vez, eu me arrumei muito, pedi dinheiro e ela me deu bastante
dinheiro, então ela sabia que tinha alguma coisa rolando. Então, com o
tempo, ela foi aceitando mais. Só que ela não queria que eu falasse pras
pessoas. Teve um dia que eu falei para ela, mas ela não queria que eu falasse
para as pessoas. Tudo bem, só se fosse escondido (KAFKA, DC2, 2021).
Para ele, conversar sobre orientação sexual e identidade de gênero com a mãe foi um
processo bem mais gradual e dificultoso do que com seu pai. Por não ter uma relação
tão próxima e o pai morar longe, Kafka falou como ele antes sobre como sentia-se e
identificava-se. Ele comenta que o pai é uma pessoa “bem liberal” e que,
principalmente em função da distância e não proximidade/intimidade, caso o pai não
aceitasse de alguma forma, aquilo não o afetaria.
A primeira vez que beijou uma menina foi quando se mudou para o Rio de
Janeiro. Apesar de ter tido pequenos romances, nunca havia se relacionado dessa
forma com uma menina. Também foi no Rio que teve um relacionamento com uma
pessoa transfeminina. “Os homens trans têm muito disso, de ficar com uma menina e
acabar entrando na comunidade lésbica e aí, depois, se encontrar trans” (KAFKA,
DC2, 2021). Ele também afirma que: “A minha história na transmasculinidade é meio
enrolada, assim” (KAFKA, DC2, 2021). Conforme Kafka fala de seus movimentos de
descoberta, é possível perceber como questões de orientação sexual e identidade de
gênero entrelaçam-se e, por vezes, confundem-se.
No Rio, Kafka tinha uma conta no Instagram já com seu nome - o que sustenta
o indicador da internet como possibilidade de vivenciar a identidade de gênero
e orientação sexual - e existia a possibilidade de encontrar o Instagram das pessoas
por meio do número de celular. Nesse ínterim, sua tia encontrou-o e enviou uma
mensagem. Ele, por sua vez, sentiu-se desconfiado e disse que não usava mais
aquele user. Mesmo assim, a tia levou a questão ao grupo de WhatsApp da família e
mostrou o celular para a avó de Kafka.
Aí minha avó falou assim: “Não tô vendo nada demais aí”. Tipo: “Qual o
ponto? Nome de homem? Nada demais”. Ela aceitou que nem meu irmão.
Ainda fala algumas coisas assim, da idade, mas ela soube lidar mil vezes
melhor do que a minha mãe. Minha mãe ficou destruída. Aí minha mãe veio
me falar porque tinham falado pra ela. Eu falei que é isso mesmo, perguntei
se ela nunca desconfiou. Foi um processo bem doloroso nas duas vezes.
Quando eu falei que era bi e depois quando eu falei que era trans. E depois
foi repercutindo na família (KAFKA, DC2, 2021).
Diante desse cenário, Kafka sentiu como se houvesse sido “tirado do armário”.
Isso, na família, não aconteceu somente com ele. Também a prima de segundo grau
por parte de mãe, que namorava outra menina, teve que lidar em seu núcleo familiar
com a exposição e a não aceitação. A mãe dessa prima “(...) queria matar a namorada
da menina, não lembro bem se é namorada ou esposa. Ficaram bastante tempo no
150
relacionamento, mas a mãe não aceitou” (KAFKA, DC2, 2021). Hoje em dia, ele não
tem mais contato com a prima e não sabe para onde a história se direcionou. Outra
prima de Kafka, bissexual, indignou-se com o que estava acontecendo e disse para
ele que tiraria do Facebook todas as pessoas que não o aceitaram na família, o que
corrobora o indicador de busca de acolhimento por grupos e pessoas LGBTI+.
Frente aos questionamentos e ideias equivocadas de sua mãe sobre as
questões trans, Kafka procurou oferecer recursos para que ela pudesse compreendê-
lo melhor. Deu a ela um livro sobre questões LGBTI+ e mostrou alguns vídeos pois
sabia que, mesmo tendo posturas conservadoras, sua mãe é, ao mesmo tempo, uma
pessoa aberta ao diálogo. Já seu irmão, perante esse contexto, passou a chamar
Kafka não mais pelo nome de registro, mas por um apelido que criou, além de ainda
utilizar os pronomes femininos. Kafka diz que o irmão tenta “respeitar um pouco do
jeito dele” (KAFKA, DC2, 2021).
A avó buscou conversar com Kafka e disse-lhe que teve um irmão que foi criado
pela irmã, como se fosse um sobrinho e irmão ao mesmo tempo - ele já é falecido e
Kafka conheceu-o quando era adolescente. A avó contou-lhe que esse tio era gay e
poliamorista61. Ele era casado com dois homens e havia adotado um menino. Para
Kafka, é um grande exemplo LGBTI+ na família. Ele afirma que sabe que alguns
primos e primas são LGBTI+, mas não se fala muito sobre o assunto, o que se conecta
ao indicador do silenciamento frente a questões sobre identidade de gênero e
orientação sexual.
Hoje em dia, Kafka namora uma pessoa não binária que se identifica com o
gênero neutro ou masculino, mas foi designada como homem ao nascer,
diferentemente de Kafka. Então, para a família dele, o relacionamento é com um
homem cis. A partir disso, a avó entendeu que Kafka havia deixado de ser trans.
“Umas coisas assim que eles ficam confusos” (KAFKA, DC2, 2021). Confusões como
essas são reflexo da lógica cisheteronormativa, uma vez que é esperado que as
relações sejam sempre heterossexuais. Então, neste caso, se Kafka mantém um
61
“O poliamor, ou seja, muitos amores, como modo de vida defende a possibilidade de estar envolvido
em relações íntimas e profundas com várias pessoas ao mesmo tempo, no mesmo nível de importância.
No poliamor uma pessoa pode amar seu parceiro fixo e amar também pessoas com quem tem
relacionamentos extraconjugais ou até mesmo ter relacionamentos amorosos múltiplos em que há
sentimento de amor recíproco entre todas as partes envolvidas” (LINS, 2017, p. 166). LINS, Regina
Navarro. Novas formas de amar. Editora Planeta do Brasil, 2017.
151
Não é porque eu acho que as pessoas bis sejam transfóbicas nem nada, acho
que elas podem se relacionar e sentir atração por pessoas não binárias
também, mas o termo em si me incomoda, porque fica parecendo que são
dois, também. Então eu, Kafka, não me sinto confortável e prefiro o termo
pan, que é “todos” (KAFKA, DC2, 2021).
ele estava em primeiro lugar. Quando acabou o processo, estava em segundo. Ficou
boquiaberto e lembra de quando contou para a mãe.
(...) lembro muito bem da cena, minha mãe na sala vendo novela, eu no
computador. Eu falei: “Passei na UFRJ, vou pro Rio de Janeiro!” E ela “Não,
lá é muito perigoso” e não sei o que, mas aí ela já, tipo, falou que era uma
oportunidade em mil e que eu tinha que ir sim. Aí foi! Vaquinha online,
inclusive as pessoas que procuram calouros me conheceram pela vaquinha
que eu tava fazendo. Uma menina acessou minha vaquinha e, tipo, me
botaram no grupo de calouros (KAFKA, DC1, 2021).
Nessa época, ele já sabia que era trans e lembra de ter conversado
privadamente pela internet com um menino com quem fez amizade. Disse a ele que
era uma pessoa trans e que não pôde fazer o nome social por ainda não ser assumido.
Iria fazer a matrícula com uma procuração. O menino disse a ele, então, que fariam
de tudo para que seu nome de registro não fosse descoberto.
Na época, eu tinha muito problema com meu nome antigo, mas acredito que
mais pela... Você vai passando por situações de transfobia, descobrindo que
o mundo é transfóbico, e como tem uma binariedade muito rígida e você
começa a ter disforia com seu nome (KAFKA, DC1, 2021).
“Eu vim morar no Rio e fiquei independente”. Kafka conta na segunda dinâmica
conversacional que a mudança para o Rio de Janeiro lhe trouxe, além da
independência, a liberdade. Com isso, e outras informações relacionadas à vontade
de Kafka explorar o mundo, elencamos o indicador de “ganhar o mundo” como
forma de conquistar a liberdade para ser e se expressar como é. Em comparação
à cidade onde morava na Paraíba, de acordo com ele, o Rio de Janeiro tem uma
questão de maior violência física, enquanto na cidade pequena a violência estava
mais relacionada ao âmbito psicológico, principalmente por todas as pessoas se
conhecerem e questões de gênero e sexualidade serem um tabu. Não somente esses
temas, mas falava-se muito sobre a vida uns dos outros e isso era um fator incômodo
para Kafka. Não sentia que conseguiria viver em paz assim.
Aqui no Rio já foi mais tranquilo, porque eu já cheguei já sendo eu. Não
precisava criar coragem para me assumir para pessoas que eu já tinha
alguma relação. Se a pessoa não quisesse, ela já não se aproximava, sabe?
Outro contexto (KAFKA, DC2, 2021).
153
Isso foi crucial para que ele demonstrasse para a família que faria as próprias
escolhas, já era adulto e poderia sustentar-se sozinho.
A minha família viu que eles não podem mandar em mim. A minha mãe não
queria que eu fizesse transição hormonal, mas aí ela chegou à conclusão de
que ela não poderia mandar em mim porque eu já sou adulto e que me
sustentava sozinho, morava fora. (...) Não me arrependo de não ter me
assumido antes porque, por mais que eu tenha passado muito tempo
morando lá com disforia e querendo ser eu mesmo sem conseguir, eu não
sei como seria. Muitas pessoas são expulsas de casa. Então eu vim pro Rio
e me assumi aqui, eu posso fazer o que eu quiser agora (KAFKA, DC2, 2021).
Esse trecho e o que Kafka expressa antes, sobre a relação com seu nome de
registro, levou-nos ao indicador de sentidos subjetivos relacionados à disforia
ligados ao preconceito e transfobia na história de vida de Kafka. De acordo com
ele, as pessoas fazem diferentes leituras a partir de suas próprias referências e,
portanto, ao pensar sobre passabilidade, entende que se trata de fluidez no que diz
respeito a essas diversas interpretações. Quando a questão é sobre si mesmo,
percebe que existe uma variação grande de como cada pessoa enxerga e define-o.
Por exemplo, quando eu saio na rua com máscara, roupas masculinas e tal,
no meu ponto de vista não teria nada ou quase nada que fizesse alguém me
ler enquanto mulher, mas as pessoas liam. E às vezes, antes da pandemia,
as pessoas liam como homem, então é muito confuso. Antes de transicionar,
algumas pessoas já falavam que eu tinha uma aparência andrógina. Acho
que é uma coisa muito fluida. Então, às vezes eu sou lido como gay ou viado,
quando tô com o meu namorado. Antes, quando eu andava de mãos dadas
com as minhas amigas, me viam como lésbica. As pessoas sempre me veem
como algo diferente (KAFKA, DC2, 2021).
154
“Eu acho que é uma coisa muito individual, pode ser fluida pras pessoas, acho
que pode mudar de acordo com o caminhar da pessoa” (KAFKA, DC1, 2021). De
acordo com o ponto de vista de Kafka, o gênero é individual, fluido e mutável. Trata-
se do que compreendemos como indicador de construção contínua de identidade
de gênero. A distinção de “cis/trans”, para ele, é uma questão política. Entretanto,
afirma que em relação aos estereótipos de gênero, acredita que nem as pessoas cis
conseguem, de fato, responder totalmente.
Então eu acho que existe o gênero individual, né, tipo essa questão de como
a gente se apresenta socialmente, como a gente constrói nossa identidade
né, e que isso vai entrar com tudo da sua vida, porque gênero tá em tudo. E
existe também aquele gênero imposto, aquele estereótipo, aquela ilusão de
gênero que a sociedade tem, que acha que, tipo, só existe homem e mulher,
mas aí é uma viagem do conservadorismo (KAFKA, DC1, 2021).
de muitas coisas. Com isso, foi também conhecer, juntamente às amigas, algumas
igrejas evangélicas. Ele gostava bastante. Em outro momento, também foi a um centro
espírita e gostou, mas depois parou de frequentá-lo.
“Eu conheci muitas religiões e comecei a não acreditar e há muito tempo não
sentia mais questão de emoções de presença de Deus” (KAFKA, DC1, 2021). Já
quando passou a morar no Rio de Janeiro, não tinha muito contato com a igreja porque
seu foco principal era a universidade. Chamaram-no para ir a uma igreja, mas ele
recusou. Depois, conheceu o atual namorado que o levou a uma reunião sobre
questões LGBTI+ no centro espírita frequentado por ele.
Então, pra mim, foi muito bom porque eu me encontrei ali. Não sei se eu
tivesse conhecido uma casa kardecista conservadora se eu seria espírita
hoje, porque eu já tinha me desligado do conservadorismo, sabe? E eu não
queria isso pra minha vida mais, sendo que eu nem acreditava mais em Deus,
sabe? Hoje em dia a religião ocupa um lugar muito bom para mim, mas tem
sempre tretas né, porque muita gente fala mal de religião, que LGBT não
pode ter religião. Apesar de eu saber que tem muita coisa para mudar, tem
que mudar de dentro também, não é só falando mal que vai mudar. Tá
progredindo. Um dia vai (KAFKA, DC2, 2021).
Por mais que, por vezes, houvesse uma relação conflituosa acerca das
religiões, principalmente no que se relaciona a posicionamentos conservadores
concernentes à diversidade, Kafka demonstra que a religiosidade tem um papel
importante em sua vida. Isso nos levou a elencar o indicador da religiosidade como
geradora de sentidos subjetivos sobre a existência de Kafka e o lugar que ocupa
156
no mundo, uma vez que, mesmo ao tornar-se ateísta, buscou formas de se aproximar
de diferentes religiões. Inclusive, já na infância e adolescência, aproximou-se da igreja
por conta própria. Ainda, diferenciamos de espiritualidade, uma vez que esta não se
relacionaria necessariamente a religiões e, no caso de Kafka, a religião aparece como
um fator relevante.
Em relação à corporeidade, outro assunto conversado nas dinâmicas
conversacionais, quando pequeno, Kafka não queria ter órgão genital. Sabia que não
existia essa possibilidade, mas se tivesse como escolher, queria nascer sem os dois.
Não sentia ódio. Era uma vontade de ser neutro. Isso, para ele, também é algo que
fez com que percebesse que sua identidade de gênero não era de homem trans.
Depois que conheceu o feminismo, seu primeiro contato com a militância, passou a
perceber a questão com outros olhos e a enxergar seu corpo de outra forma. “Comecei
a me empoderar e eu falei: ‘Eu acho que gosto de ter vagina’. Hoje em dia eu gosto.
Mas também, se eu pudesse escolher a próxima reencarnação, não teria nada”
(KAFKA, DC1, 2021). Isso se relaciona ao indicador de construção contínua de
identidade de gênero, que se complexifica na medida em que Kafka questiona-se e
acessa outras possibilidades de pensar sobre a corporeidade, tanto em sua dimensão
subjetiva como - em contradição - à objetividade do corpo em termos físicos,
anatômicos, fisiológicos e hormonais. Nesse sentido, atualmente ele tem se
interessado pelas questões de direito reprodutivo, tanto que faz curso de doulagem.
Outro aspecto é demonstrado no trecho que se segue:
(...) aqui no Rio tem essa questão da Baixada Fluminense que é tipo região
metropolitana. São umas cidades mais marginalizadas, mas são pessoas
incríveis dispostas a estudar e aprender. Claro que vai ter uma outra falando
de ideologia de gênero (risos), acontece, mas eu nunca sofri transfobia. As
pessoas sempre me respeitaram. Não tem desculpa por ser um lugar mais
marginalizado. Eu acho que as pessoas olham muito pras cidades menores,
favela, lugares como a baixada e acham que vai ser um lugar mais
preconceituoso, mas não necessariamente. Eu acho que é muito das
pessoas mesmo. Já fiz uma matéria sobre pessoas trans nas favelas e
geralmente o relato é de que as pessoas procuram entender, respeitam e
têm uma comunidade. Os vizinhos se conhecem e tal. Não é porque é favela
que as pessoas vão ser escrotas. Então é muito individual, vai da criação
que ela teve, do caráter dela (KAFKA, DC2, 2021).
considera que as posturas das pessoas mais velhas no movimento geralmente têm
relação com o que elas vivenciaram em suas épocas de início de descoberta de si, de
militância e de construção dentro dos movimentos.
(...) teve uma vez no grupo do WhatsApp que surgiu uma polêmica sobre não
binariedade, aí a médica levou isso pro pessoal, pra gente na roda. Aí o
pessoal que era não binário falou, eu falei e tal. E tinha uma mulher mais
velha que falou que na época dela só tinha travesti, depois que vieram as
mulheres trans, depois homens trans e agora a não binariedade. Ela mostrou
essa visão de pessoa mais velha dentro da comunidade trans e são coisas
que vão surgindo, que ela viu como uma coisa boa, que pra gente jovem é
para levantar mesmo a bandeira. E eu vi que é exatamente isso, de você ver
que antigamente nem a palavra transgênero, transexual era usada. Era só
travestis ou gays, depois que veio bi. É uma coisa gradual que vai vir nos
debates e é sempre bom a gente tentar mostrar que não é uma coisa de
agora. Em outras culturas, indígenas por exemplo, já tinham outros gêneros
fora do padrão homem e mulher, mas que realmente a luta política está se
consolidando mais agora e realmente tem pessoas mais jovens, mas também
porque na comunidade trans as pessoas são mais jovens, porque tem a
questão da expectativa de vida. (KAFKA, DC2, 2021).
(...) na pandemia, antes, a gente podia estar em espaços com mais pessoas,
mas agora, como o contato é mais íntimo, se eu vou na casa das pessoas, lá
não tem muita gente, só quem mora lá. Então, às vezes é até mais fácil de
lidar porque [você] se sente mais seguro porque você está conversando com
uma só pessoa. Na internet você não sabe quem vai aparecer, da onde vai
sair um monte de comentário de hater e tal. Então, acho que tem essa
diferença. Às vezes você abre a internet, parece que as pessoas tiraram o
dia para falar mal de não binariedade. As pessoas nunca conviveram com
alguém não binário (KAFKA, DC2, 2021).
159
Foi por meio da internet que Kafka conheceu mais sobre a comunidade
LGBTI+, sobre o feminismo, em que entrou em contato com a possibilidade de
diversidade de gêneros e com o termo “não binariedade”.
Eu tava no Facebook e eu vi uma página que falava que não era só homem
ou mulher, mas que existia vários gêneros. Aí, de começo, tomei um susto:
“Como assim? Como assim, gente? Mas outros gêneros?” Nunca ouvi falar
disso, aí comecei a pesquisar mais sobre e aí foi que eu descobri a não
binariedade, porque eu já sabia sobre homem trans porque, querendo ou não,
tinha um pouco. Eu lembro que tinha só um canal do YouTube e eu vi uma
matéria de um cara que tinha feito um financiamento coletivo pra cirurgia dele
de tirar as mamas e aí eu fiquei fascinado naquilo e procurei as redes sociais
dele. E tipo, gente! Aí comecei a pesquisar sobre, mas eu vi os vídeos desses
meninos e eram dois meninos com canal no YouTube, chamado “Cavalo
Marinho”. Eu via os vídeos deles, mas eu não conseguia me identificar
totalmente como um homem trans e eu ficava pensando, tipo: “Meu Deus,
quando que eu vou me tornar um homem de verdade?” Essa era a frase. Eu
pensava e conversava com Deus (...). Achava que uma hora eu ia realmente
me tornar um homem, que era tipo uma fase pra, tipo, ser binário, mas aí
depois eu descobri essas pessoas e a não binariedade (KAFKA, DC1, 2021).
62
Descrição no Facebook do Canal das Bee: “Não só um canal contra a homofobia. Um canal contra
o preconceito. Um canal a favor da diversão, do riso e de viver a vida do jeito que você quiser. E
principalmente, sendo quem você é!” Slogan: “Porque uma abelha só não produz nenhum mel”. Link
do canal: youtube.com/canaldasbee
160
binariedade. Kafka era uma dessas pessoas e com elas fez um novo grupo, no qual
passaram a descobrir-se juntes. Dentre essas pessoas, uma manteve o nome
socialmente considerado feminino, mas hoje utiliza pronomes masculinos. Já outro
saiu do grupo por identificar-se enquanto homem cis. Foi nesse momento que Kafka
escolheu seu nome junto a uma amiga que passou a ser, de acordo com ele, sua
madrinha. “Construímos esta identidade juntos” (KAFKA, DC1, 2021). Hoje em dia
não tem mais tanto contato com essas pessoas, mas afirma que foram importantes
pois ajudaram-no a descobrir-se e a encontrar-se.
Identidade, para Kafka, tem a ver com algo íntimo e individual ao mesmo tempo,
em como cada pessoa identifica-se com o mundo. Isso ele afirmou na segunda
dinâmica conversacional e disse ainda que acha difícil definir o que é identidade. Já
um tempo depois, durante a dinâmica conversacional em grupo, foi perguntado por
que é difícil falar sobre identidade. Kafka posicionou-se dizendo que é difícil por ser
algo muito individual, mas também coletivo. Ele comenta estar aprendendo isso
porque o namorado estuda Psicologia. Conta que achava que a Psicologia concernia
a questões individuais por tê-la comparado a seu curso, Relações Internacionais.
Além disso, ele também reflete sobre as questões pessoais, de que para
algumas pessoas possa existir dificuldade em se falar sobre isso. Para ele, não ocupa
um lugar de dor. Afirma que sofre com a transfobia, mas que tem ferramentas que
permitem a ele encarar essa realidade, tais quais: “(...) Faço terapia, minha família me
aceita, a família do meu namorado me aceita” (KAFKA, DCG, 2021). A partir disso,
ele entende que já conseguiu construir muitas coisas, ao mesmo tempo que “sente
preguiça” em falar repetidamente sobre algumas questões. Com o tempo, passou a
ficar mais seletivo.
Eu seleciono muito as coisas que valem a pena. Por exemplo, essa pesquisa
vale muito a pena, tipo, falar sobre isso. Foi uma experiência incrível que eu
não imaginei que ia ser assim. Mas por exemplo, na faculdade, não vale muito
a pena porque as pessoas já pressupõem que eu vou falar sobre isso. Por
exemplo, quando eu fui fazer meu TCC, falei com um menino e ele: “Não, pra
161
63
Sobre essa discussão, indicamos a leitura do livro Pensamento Feminista hoje: Sexualidades no
sul global. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
162
Você vê isso desde muito tempo e até mudanças importantes, por exemplo,
às vezes mudanças mais longas. Ninguém fala “vós” ou “vosmecê” hoje em
dia, então as coisas mudam. Tanto quanto coisas assim, a curto prazo, tipo,
a linguagem da geração Z já não é mais a minha. Eles falam cringe (risos).
Essas coisas que a gente vê hoje em dia. Os adolescentes falando e tal. A
língua muda muito rápido e essa é só mais uma das mudanças, só que existe
uma repulsa muito grande por isso por conta da transfobia e binarismo
(KAFKA, DC2, 2021).
A linguagem neutra Kafka percebe ser utilizada na internet e, para ele, o maior
problema é a dificuldade de usar os pronomes neutros. Ele conta que suas amizades
utilizam masculino ou feminino para facilitar. Kafka acredita que “às vezes, na nossa
individualidade, falta uma questão política também, de aprender a inserir mais no
nosso dia a dia” (KAFKA, DC1, 2021).
Outra questão presente na vida de Kafka é sua relação com a arte. Iniciou-se
na adolescência, quando ele começou a escrever de forma artística. Sente que é algo
que o salvou muitas vezes, mas tem medo de que comece a ter relação com dinheiro
e ocupe um espaço de obrigação em sua vida, tornando-se monótono. Ele comenta
sobre o coletivo artístico para pessoas trans que coordena e afirma ser algo de que
gosta muito, mas fica receoso quando percebe que isso pode vir a ser uma obrigação
em algum momento.
1
Só mais um
Só mais um número
Mas sem dado, sem pesquisa, sem estatística
Só mais um pra ser chamado de uma
Só mais um que tem medo de andar nas ruas
Seja de noite, seja de dia
Só mais um que vai ser chamado
De viado ou de puta
Só mais um que vai ser perseguido
Pelo fato de não ter falo
Que vai ter que esconder o peito
Em dobro
Só mais um manchando o chão da cozinha
Da igreja, da escola
De casa pra escola, da escola pra casa
Com o sangue invisível, esmagado
Só mais um
Só mais um zero
Por meio dessa expressão artística, percebemos conexões com alguns dos
indicadores elencados: indicador de sentidos subjetivos relacionados à solidão
de sentir-se diferente e a relação disso com a exclusão e invisibilidade - “sangue
invisível” - além da violência em diversos níveis; indicador do silenciamento frente
a questões sobre identidade de gênero e orientação sexual; indicador de
sentidos subjetivos relacionados à disforia ligados ao preconceito e transfobia
no ato de esconder o peito e a perseguição por não ter um falo. Além disso, demarca
lugares como a escola, a igreja e a casa, que fizeram parte de seu desenvolvimento
e constituem-no enquanto ser humano.
164
Até eu falei esses dias: “Não vou mais ficar com cis”, aí daqui a pouco vai e
beijo uma boca de cis (risos). Impossível (risos), mas o quanto é muito
diferente flertar com pessoas trans. Esses dias falei com um crush meu que
165
é trans. Nem sei se ele dá bola pra mim, mas a gente conversou muito e é
outra coisa, o papo é outra coisa. A gente nem precisa estar falando sobre
questões trans, mas é uma outra visão sobre se relacionar, principalmente
com homens cis. Eu fico muito mais com pessoas masculinas que femininas
(...). Eu fiquei esses tempos com um casal, um homem cis e uma mulher cis
e o quanto era muito mais confortável estar com a mulher cis, mas é isso, não
tem muito pra onde fugir, às vezes você gosta da pessoa (KAFKA, DCG,
2021).
Antes da pesquisa, Kafka teve alguns contatos com a Psicologia. Ele conta
que, quando criança, a mãe considerava-o muito “rebelde” e, por isso, a família
buscou atendimento psicológico para ele. Já na adolescência, no Ensino Médio, voltou
à psicoterapia por estar sofrendo bullying. “Eu precisava superar aquilo e ia pra falar
sobre aquilo”, diz Kafka na segunda dinâmica conversacional. Já quando estava na
universidade, pediu atendimento psicológico para iniciar a hormonização, entretanto,
foi informado de que o atendimento não era necessário para este fim e que lá também
não faziam transição hormonal. Mas, mesmo assim, seria oferecido atendimento caso
166
porque eu não via pessoas e não tinha transfobia. Agora que as coisas estão
um pouco voltando, eu tenho sentido mais disforia, que eu não tinha mais
antes, e aí eu tô pensando o que eu faço, porque agora como eu tô pra me
formar, eu sempre pensei que eu queria ser muito independente, ter uma
grande carreira. E ter um filho, querendo ou não, atrapalha. Porque fazer
mestrado, fazer doutorado, procurar emprego que você trabalhe viajando,
Relações Internacionais, que é meu curso, não sei se é uma boa ideia ter um
filho agora. Então ainda tô na dúvida de voltar a usar T [testosterona] ou não
(KAFKA, DC2, 2021).
Quando perguntado sobre o que ele acha que seria interessante as pessoas
saberem sobre gênero e não binariedade, aquilo que a sociedade precisa
desenvolver, Kafka responde que a primeira coisa que lhe vem à cabeça é que
identidade de gênero e orientação sexual são coisas distintas. Ele incomoda-se com
as pressuposições nesse sentido, principalmente que partam de uma ideia binarista e
cisheteronormativa.
Nasci menina, aí vai ser homem pra ficar com mulheres, só que você não
precisa ser homem pra ficar com mulheres e você também não vai ser homem
por conta que você fica. (...) Ah, vamos supor que eu estivesse com uma
mulher namorando: “Ah, então você, tipo, enfrenta essa questão de fazer
hormonização, cirurgia, mudar nome, tudo por conta de que você gosta de
mulher?” Não faz sentido, não sei, tipo, você gosta da pessoa porque você
gosta da pessoa, por ela, por você mesmo, sabe? Não tem a ver com o seu
corpo. E aí acho que isso tá muito arraigado na binariedade. De você só ter
uma opção, que se você vai transicionar você vai ser trans ou homem ou
mulher e só hétero, sabe? Então, as pessoas acham que você ser
transmasculino é ser uma lésbica muito masculina, você ser transfeminina é
uma gay muito afeminada e aí isso é muito ruim. (...) As pessoas acham que
você vai transicionar e você vai ser totalmente só homem, e não é assim
(KAFKA, DC1, 2021).
Com isso, está relacionada também a utopia de Kafka para um mundo melhor.
Para ele, um mundo melhor seria aquele onde as pessoas soubessem o que é gênero
e sexualidade, onde tivessem acesso a essas informações, entendessem que se trata
de uma questão social e que a biologia não é totalmente determinante. Com essa
compreensão, Kafka acredita que o preconceito não existiria. O conhecimento,
portanto, combateria a ignorância.
Os indicadores aqui elencados foram:
Bokoto foi quem inspirou o título dessa pesquisa com sua perspectiva crítica,
afetuosa e sensível sobre a vida. “Desviantes são as pessoas que impõem. Sistemas
que impõem essa normatividade compulsória [principalmente] pela violência. Nós
somos “viantes”, construímos vias” (BOKOTO, DC2, 2021). Bokoto constrói vias a
partir das grupalidades, do afeto, da preocupação/atuação social, do posicionamento
político, da militância, da Psicologia e da arte. São também criadas vias a partir do
que Bokoto reflete sobre identidade, corporeidade, trans e cisgeneridade e
colonialidade. Ainda, com seus poemas alcança a resposta de “qual o lugar da arte
para você?” com mais precisão do que qualquer outra explicação extensamente
elaborada.
64
Foram utilizados os pronomes “elu/delu”, conforme Bokoto refere a si mesme.
65
Pessoa branca. “Branque” foi escrito na linguagem neutra por Bokoto na resposta do formulário.
172
lutas por direitos das populações LGBTIA+66. Atualmente, faz um curso de formação
política para a mobilização por direitos das populações travestis, trans, trans não
bináries e gênero dissidentes67.
(...) “cara, isso é tão frágil, gênero é tão frágil!” Ao mesmo tempo que é uma
fantasia, uma ficção hiper materializada. De forma nenhuma ela é banal. Ela
tem efeitos muito reais, mas isso aqui é tão “mexível”, sabe? O que antes
parecia um prédio de concreto, começou a parecer uma amoeba, saca? Aí
depois eu comecei a ter raiva, porque aqueles afetos se relacionavam com
quem eu era de fato e eu ainda não sabia, só tinha algumas pistas. Então, no
final das contas, gênero para mim hoje é um campo de disputa. Eu acho que
eu definiria assim. É um território de disputa. Eu não sei se eu consigo definir,
não sei se está muito aéreo, mas acho que é um campo de disputa e
tensionamentos (BOKOTO, DC2, 2021).
66
Outra possibilidade de nomear o movimento trazida por Bokoto na resposta ao formulário de
informações gerais das pessoas participantes. LGBTIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Trans
e Travestis, pessoas Intersexo, Assexuais e demais possibilidades).
67
Bokoto traz a definição de pessoas “gênero dissidentes” durante as dinâmicas conversacionais e
isso será exposto no texto.
173
(...) porque se tem uma coisa que eu me entendendo enquanto não binárie
me ajudou a entender e a minha visão de mundo é que não dá para você
assumir o gênero de ninguém, ninguém mesmo, ninguém no mundo dá pra
você assumir o gênero. Por nenhuma característica, nenhuma questão. É
simplesmente por autodeclaração mesmo que a gente constrói as relações.
Então o que eu busco sempre fazer é prestar uma atenção ali, principalmente
quando eu estou conhecendo a pessoa, né. Não conheço os pronomes, aí eu
presto uma atenção em como ela está se referenciando, né, se ela coloca
algumas pistas de como ela se vê e, se não, aí eu pergunto. Então, se a
pessoa não me pergunta isso pode estar acontecendo ou a pessoa pode
estar só assumindo algum gênero, né, e pronomes para mim (BOKOTO, DC1,
2021).
De acordo com o que foi constatado por Bokoto, 2020 foi o ano em que a
linguagem neutra passou a entrar em um debate social para além da comunidade
trans. Conforme torna-se mais popular, também aparecem as represálias e deboches,
mas Bokoto considera que também existem vias sendo criadas com mais maturidade
e amadurecimento para falar-se do assunto. Os referenciais estão em construção.
A linguagem neutra, para Bokoto, ocupa principalmente um lugar de
experimento pessoal. Como pensar uma linguagem sem pronomes? Como pensar
numa língua não generificada? Esses eram alguns dos questionamentos delu. Nesse
experimento pessoal, elu se propôs a referir-se a si mesme e a outras pessoas em
uma linguagem não generificada. Reformulava as frases de forma que não colocava
seu gênero ou de outras pessoas nas frases. Comenta que era um processo
trabalhoso e nem sempre conseguia.
Outro assunto trazido nas dinâmicas conversacionais diz respeito aos lugares
em que Bokoto considera conseguir ser elu mesme. Afirma que são limitados.
Coletivas68 trans ou gênero dissidentes, grupos de psicólogues trans e grupos de
68
Bokoto se refere a “coletivo” no feminino. É uma maneira de utilizar a palavra com o “feminino
disruptivo”, ou seja, transformar a palavra como forma de questionar sua construção. Outro exemplo
utilizado por Bokoto durante as dinâmicas conversacionais é “corpa” ao invés de “corpo”.
174
artistas trans. Em grupos de transmasculinidades sente que consegue “ser”, mas não
em totalidade, por ser um lugar principalmente de homens trans e elu não se percebe
nem se apresenta assim. “E aí essas pessoas são 99,9% trans ou gênero dissidentes,
as pessoas com as quais eu consigo ser eu” (BOKOTO, DC2, 2021). Elencamos aqui
o indicador de sentidos subjetivos de pertencimento e acolhimento em grupos
em que se encontram pessoas gênero dissidentes.
Bokoto aproxima-se, no que tange à espiritualidade, das religiões afroindígenas
brasileiras nas quais os orixás não têm gênero, apesar de, segundo elu, alguns
terreiros não deixarem de ser discriminatórios. Bokoto estava realizando uma
pesquisa e constatou que são nessas religiões que se depara com mais pessoas
gênero dissidentes, conseguindo encontrar um espaço para si e sentindo acolhimento.
Onde são respeitadas e conseguem, de acordo com elu, trabalhar a sua
individualidade.
Ainda sobre os lugares que Bokoto ocupa, antes da pandemia sentia-se mais
tranquile quando alugava um quarto na região metropolitana do Rio de Janeiro junto
a homens cis héteros, em razão das condições financeiras do momento e por ser um
local perto da faculdade, no alto de um morro, com várias plantas. Um lugar que lhe
agradava em diferentes aspectos. O espaço da faculdade era onde Bokoto sentia que
conseguia impor-se, porém, com a pandemia e o ensino à distância, passou a lidar
com novas questões.
(...) não tinha mais convivência, comer junto, bandejão, enfim. Então, no
espaço de aula tinham professores que já me conheciam, me respeitavam,
outres que não. Aí, processo chato né, porque assim, pode dizer o que for,
mas quando você abre o microfone para falar, é uma chuva de pronomes
errados. (...) Nunca foi um espaço dado, mas limitou as possibilidades de eu
me colocar com totalidade. Isso me deixou na merda por um tempo, mas
depois eu pensei: “Ah, sempre foi assim, vai sempre ser isso mesmo”.
Continuei participando. Às vezes eu corrigia, às vezes eu só cagava. Às
vezes algumas pessoas corrigiam, o que era muito bom (BOKOTO, DC2,
2021).
estar num espaço acadêmico se as coisas fossem diferentes” (BOKOTO, DC2, 2021).
Isso se relaciona ao indicador de sentidos subjetivos de pertencimento e
acolhimento em grupos em que se encontram pessoas gênero dissidentes.
Quando começou a pandemia, Bokoto pretendia mudar-se, porém, os planos
precisaram ser modificados e elu ficou na casa dos pais no Rio de Janeiro. Na casa
moram Bokoto, o pai, a mãe, o irmão de 19 anos e os avós. Esses últimos estão
morando lá temporariamente porque a sua casa, no momento da conversa com
Bokoto, estava em obras. A convivência com a família trouxe memórias e sensações
da adolescência. Bokoto afirma que nesse momento “travou” e sentiu-se novamente
“embotade”.
Eu percebi que é uma repetição que eu faço de ficar até meio lesado. Meio
fora do mundo porque é um mundo que eu não consigo viver e chega uma
hora que a força pra se opor e pra lutar, não sei se esgota, se não está tendo
reenergização. Só falando com pessoas trans pela internet e eu nem sou uma
pessoa muito do virtual, saca? Então tá sendo, esses dois anos, tá sendo um
período muito difícil (BOKOTO, DC2, 2021).
O pai de Bokoto começou aos poucos a falar pronomes neutros, a mãe não.
Chamam-no de “Bokoto” e não mais o nome de registro. Elu entende que aconteceram
alguns avanços neste sentido, “mas eu ainda estou nesse lugar de incógnita. Ainda tô
nesse lugar de esquisito, aberração” (BOKOTO, DC2, 2021). O irmão mais novo faz
176
piadas com a situação, porém, houve mudanças quando ele teve contato com uma
menina trans nos jogos online que tem costume de jogar.
Ele foi super respeitoso com a menina, pensava que ela era trans. Ela foi lá
e falou pra ele. Estão super migues. Eu vi meu irmão começar a chegar em
mim e falar, tipo, me perguntar: “Quais são seus pronomes?” Ainda fazendo
piada, mas ao mesmo tempo meio sério, então ele começou a ser provocado
por isso, não respeita ainda, mas quando ele fala com outras pessoas ele se
refere a mim como “irmão”, por exemplo. Dá aquela explosão de felicidade
assim (BOKOTO, DC2, 2021).
(...) o gênero passa muito por aí, ele é um discurso colonial, é uma produção
colonial. Como é uma produção colonial ele tem intenções, ele tá ligado a
políticas, projetos de tecnologias para que o discurso seja enraizado nas
177
Não é possível falar de gênero como uma coisa só. De acordo com Bokoto,
trata-se de uma multiplicidade, tanto de discursos de controle, construção e produção,
como também de vivências, não somente gênero dissidentes. A gênero dissidência
para Bokoto, diz respeito à ampliação da compreensão de gênero, principalmente
quando se trata de diferentes culturas. Elu traz essa reflexão para indicar que é
possível que, por exemplo, pessoas que seriam compreendidas como cisgênero em
uma determinada sociedade não se reconheçam assim e muito menos tenham uma
construção a partir da ideia de cisgeneridade. Tal ideia, inclusive, está diretamente
relacionada a uma construção branca e colonial.
(...) até pelos meus estudos, eu tenho visto como o gênero, como a gente
entende ele, essa constelação de dimorfismo sexual, de dividir entre homem
e mulher a partir da genitália... E aí a gente tem pessoas que efetivamente,
materialmente, inclusive, [que] contradizem essas leis biológicas, né, que são
69
Leitura complementar: FERNANDES, Rosa Maria Castilhos; DOMINGOS, Angélica. (Orgs.)
Políticas indigenistas: contribuições para afirmação e defesa dos direitos indígenas. Porto
Alegre: Editora da UFRGS/CEGOV ABEU (1ª edição), 2020.
70
“Endossexo: pessoa cujo corpo tem uma conformação gonodal, cromossômica, genital, e fenotípica
de acordo com a convenção social do que é estipulado como sexo feminino ou masculino”. (CIASCA;
HERCOWITZ; LOPES JUNIOR, GLOSSÁRIO, 2021)
71
Para mais informações: Associação Brasileira Intersexo (ABRAI) - https://abrai.org.br
178
colocadas pra definir o gênero, por exemplo pessoas Intersexo. São muito
apagadas, inclusive o apagamento delas é estratégico para manter essa ideia
de gênero. Então eu acho muito importante, porque também é uma luta muito
apagada, de como que a gente tem vários registros de cirurgias que estão
sendo feitas em bebês intersexo para construir uma genitália que caiba nesse
dimorfismo, pra realmente apagar a multiplicidade, a diversidade (BOKOTO,
DC2, 2021).
É mais sobre o que a gente faz com essas ideias de gênero do que
necessariamente o gênero abrir vias, né (...) Eu acho que consigo afirmar que
não existe pessoa que não crie rachaduras, sabe? Nas ideias de gênero,
mesmo que seja na sua intimidade. Eu realmente acho, porque é uma norma
tão engessada, cristalizada e ridícula (risos) e ela se pretende ser... E aí eu
vou usar a palavra trans, né, transcultural, transcendente. Ela se pretende a
ser tão irrestrita, mas ela se materializa diferentemente com aqueles
marcadores que a gente falou e tal [classe, raça, gênero], que cara, eu acho
que em certa medida, geral faz isso, de criar uma via pra conseguir existir,
porque sobreviver só da norma eu nem sei se é possível, sabe? (BOKOTO,
DC2, 2021)
(...) O gênero também faz isso com a gente, a normativa de gênero né. Ele
cria a noção de que, para você pertencer a uma coletividade, uma
comunidade, você tem que seguir a normativa, porque se você não reproduzir
aquilo que a sua genitália indicou que você é, e se você não se vestir de tal
forma e fazer tais coisas e reproduzir certos papéis sociais, você não vai se
integrar. E aí não só pra pessoas gênero dissidentes, mas pra pessoas não
hétero, que também entram nesse diálogo de não corresponder a uma série
de paradas da norma, uma série de mandatos (BOKOTO, DC2, 2021).
A partir dos afetos, das aproximações, dos recuos e incômodos causados por
normativas impostas, Bokoto começa a “mexer” novamente nesta estrutura. Estar
atento aos afetos torna-se imperativo porque sente que é a única coisa a fazer quando
já estava em um processo de adoecimento. Elu traz uma metáfora sobre um
submarino para exemplificar todos esses sentimentos conturbados e, ao mesmo
tempo, libertadores, que produzem o movimento dialético, contraditório, de
tensionamento, sempre em diálogo, construindo vias criativas de configurações
subjetivas de identidade, subjetividade e atividade:
(...) então era “ou vai ou racha”. Ou melhor, era “vai e racha”, porque começou
a rachar. Eu escrevi essa imagem no TCC. Essa imagem de eu começando
a ver que eu precisava mexer nesse rolê de gênero e tal. A imagem que me
veio assim foi de eu estando em um submarino, sozinhe em um primeiro
momento, mas depois eu fui descobrir que eu não tava sozinho. Ali numa
parte do submarino que eu tô sozinhe, começa a rachar as paredes do
submarino e a água começa a entrar e eu vou tentando tapar com o meu
próprio corpo. Tentando fazer meu próprio corpo de barreira. E essa missão
é impossível por definição, saca? Porque era uma parada de outra dimensão
que meu corpo real não ia dar conta de parar, né. Então essa água vai
entrando e na medida que vai entrando eu não consigo parar todas as
180
(...) mexer com gênero e mexer com as normativas me viabilizou primeiro ser
eu, de fato. E esse “ser eu”, acho que a gente não precisa... Eu não reivindico
isso para mim mais, porque tava me adoecendo reivindicar, mas acho que a
gente não precisa, enquanto pessoas, reivindicar: “Isso aqui sou eu” e ter um
“eu” super estruturado, consolidado, sólido. É o que de fato te proporciona a
sensação de “eu”, sabe? Quando eu parei de reivindicar isso para mim, foi
super assim, e tem super relação de eu me entender enquanto uma pessoa
não binária porque, tipo, eu me entender enquanto pessoa não binária, pra
mim, envolve uma fluidez de como eu estou me entendendo também, sabe?
Envolve uma não fixação com o que que eu estou entendendo sobre mim o
que que eu estou querendo para mim. Envolve ter uma sensação de
movimento, de liberdade. Então acho que mexer com o gênero me viabilizou
eu poder ser eu. Poder criar uma saúde para mim, porque eu não podia criar
um campo de saúde para mim, porque nada era possível. Parecia que eu
tava sempre sem ferramentas, sem referencial e sem um corpo pra fazer
qualquer articulação (BOKOTO, DC2, 2021).
E como a gente vê isso? Por exemplo, a ideia de uma pessoa não binária
sendo incorporada, sendo colocada enquanto corpo branco, magro, sem
deficiência, com grana... Tem muito dessa visão das pessoas da gringa e
como que, em vários sentidos, isso se joga contra nós. Eu tenho me debatido
que nem um peixe fora d’água com essa questão de identidade. Não vou
deixar a luta política, porque ela me compõe e vivendo a gente já está sendo
uma luta política, mas o quanto que também é isso, ter que sustentar: “Eu
sou uma pessoa não binária” e ter que lutar também pela sua existência e
também de outras pessoas. Quantas vezes a gente, infelizmente, é a única
pessoa NB em um espaço e carrega esse peso todo e você também não
poder se expressar de outras formas, sabe? Você ser limitade a aquilo ali.
Enfim, tentando também não se sufocar com esses códigos todos que são
criados, até mesmo sobre algo que é tão variável e complexo quanto a não
binariedade (BOKOTO, DCG, 2021).
Não presume nada sobre a pessoa e esta seria para elu uma incógnita até que, por
meio da troca, esta pessoa se apresente. Neste caso, tratar como uma incógnita seria
um lugar de respeito à autodeterminação e compreensão de que é por meio da relação
que se conhece outra pessoa. Não se trata, portanto, de duvidar da pessoa, mas da
classificação normativa de gênero.
Outro sentido para “incógnita” esteve relacionado a um lugar ocupado por
pessoas não bináries como sendo fora do imaginário, fora do que se entende
enquanto gênero, fora da cisheteronormatividade e da lógica binária. Não está em um
campo de possibilidades, o que sustenta o indicador de reclusão em um lugar não
inteligível. De acordo com Bokoto, não se tem um equivalente normativo para como
elu se identifica, nem um caminho para espelhar-se. Sentiu isso com a família, que
mesmo fazendo alguns esforços pontuais, não o compreendem bem. “É como se
viesse na frente do nosso corpo uma grande marca de interrogação, que inclusive vai
nos marcando até fora de um campo de pessoa” (BOKOTO, DC2, 2021).
Eu acho que, assim, a experiência de ser ou estar incógnita, ela vem muito
na relação, no laço social, principalmente num laço social cishetero branco
normativo. A ideia de você ser uma incógnita parte daí. Nesse imaginário
cisheterobranco, não existe uma possibilidade de vida que seja assim. Se
aparece algo assim é uma falha da natureza, uma aberração, um monstro,
uma parada absurda (BOKOTO, DC2, 2021).
(...) Eu acho que é uma experiência ruim ser uma incógnita quando você não
está com uma base pra se sustentar em segurança. Esse é um lado da
experiência. Eu não sinto mais ele hoje, mas nos últimos anos eu acho que
185
pende pro lado ruim da experiência, quando a gente não tem uma
comunidade, quando a gente não tem segurança e apoio, porque no final das
contas, é você... Eu não lembro, eu já vi isso muitas vezes. Acho que muitas
travestis falam disso, você se veste pra guerra. Você se vestindo como você
quer ir enfrentando esses códigos e normativas, você está se vestindo para
a guerra. Ao mesmo tempo você tá se vestindo porque você quer, porque
aquilo traz saúde (BOKOTO, DC2, 2021).
“Eu não te digo o que eu sou, eu te digo o que eu não sou, que é binárie (...) O
que eu sou, só na relação que dá pra gente desenrolar” (BOKOTO, DC1, 2021). Os
trechos apresentados relacionam-se com o indicador da identidade como
mapeamento político da existência e também com o indicador da não inferência
de gênero como porta de entrada para uma relação.
“A dissidência vai existir se existir uma norma”. Essa é a afirmação feita por
Bokoto na segunda dinâmica conversacional. Essa dissidência é construída
historicamente como um “não lugar”, trazida em um lugar de “problemática, faltante,
no lugar de distorção de algo” (BOKOTO, DC2, 2021), o que sustenta o indicador de
reclusão em um lugar não inteligível. Hoje em dia, Bokoto gosta do termo “não
binárie”, encontra-se e reconhece-se nele, mas ao mesmo tempo entende ser um
nome que envolve a negação de algo, da normatividade. Elu salienta uma forma de
construir vias para se pensar sobre isso - indicador das fissuras e rachaduras como
novas vias de subjetivação - trazendo o exemplo de ume amigue indígena que utiliza
o termo “kontrabynárye” como outra possibilidade de nomeação e escrita. Ainda,
quando elu sugere o termo “gênero viantes”, pensa no sentido de afirmação de um
lugar, além da negação da norma. Para elu, não é preciso somente fazer referência a
essa norma. É possível construir, apesar e além dela.
São feitas críticas à não binariedade, segundo Bokoto, como sendo uma
existência que colocaria a existência binária como errada, a ser superada, que
pessoas trans binárias estariam reforçando os estereótipos de gênero que remontam
a cisgeneridade, que a não binariedade estaria afirmando o caminho de uma real
transição ou que é preciso desapegar-se de qualquer referência de gênero.
Entretanto, de acordo com elu, interpretar a não binariedade dessa forma seria
enxergá-la - e às pessoas que assim se identificam – através de uma lógica colonial.
O pensamento colonial, conforme descreve Bokoto, é o de um grupo que se
afirma na medida em que outro deve ser destruído, entrando no âmbito do ataque, da
guerra, como se fossem grupos opostos, com focos diferentes, lutando por diferentes
coisas e que não poderiam fazer uma caminhada compartilhada. Sem a possibilidade
186
(...) a gente não tem muitas pessoas trans mais velhas, sequer vivas. Se a
gente pensar na expectativa de vida de uma pessoa trans, é 35 [anos]. Então,
tipo assim, uma pessoa trans mais velha é uma pessoa trans com 29 anos,
28 já, né. (...) Eu vejo muita dificuldade de lidar, nessa questão geracional,
lidar com pessoas não binárias, mas também lidar com a flexibilização das
conversas sobre referenciais de gênero, sobre estereótipos de gênero que
gerações mais novas estão fazendo, né. Em que a gente vai estar pautando
que nada te define enquanto trans a não ser você se sentir trans. Não vai ser
qualquer outra questão, muito menos vai ser a realização de qualquer
procedimento dentro daquele protocolo, né, que seria o necessário para ser
trans, que era o que era entendido muito como necessário, inclusive
(BOKOTO, DC1, 2021).
Quando a gente tá pautando, né, que: “Não, você não precisa ter um corpo
assim, assim, assado, você não precisa fazer isso ou aquilo”, começa a se
tornar insustentável para diversas pessoas estarem nessa discussão, até. Ou
por terem passado por esses procedimentos ou por quererem passar. Enfim,
é um ponto complicado porque é um movimento que não tem tempo da gente
não pautar a existência de todo um grupo em cima do auto ódio e da
necessidade de se remodelar em qualquer sentido, não só fisicamente, mas
de você ter que readequar uma mentalidade ou qualquer coisa assim, de ter
que se adestrar (BOKOTO, DC1, 2021).
(...) eu tive uma professora, mulher trans. Ela fez a cirurgia de redesignação
e também fez e faz uso de hormônios, também colocou prótese, silicone e aí,
nessa lógica de passabilidade, ela seria o suprassumo da passabilidade. (...)
E aí ela contou de uma vez que ela foi num date [tradução livre: encontro] e
o cara falou pra ela: “Eu sei que você é homem”. Ela já se preparou pro pior.
Aí o cara era dentista e falou que pela arcada dentária dela, ele conseguia
identificar que era uma arcada dentária que não era de uma mulher. Então,
sabe assim? A cisheterobranconormatividade vai num nível... Bizarro
(BOKOTO, DC2, 2021).
A luta construída, de acordo com elu, é uma luta pela saúde, pela
sustentabilidade, pela prosperidade - indicador da identidade como mapeamento
político da existência – porque, quanto menos compulsoriedade puder fazer parte
dessa construção, maiores passos podem ser dados. Elu acredita que a discussão
sobre não binariedade não se trata de tirar lugares de discussões da transgeneridade
de forma geral, conforme são feitas algumas críticas. Os debates sociais, de acordo
com Bokoto, não precisam funcionar dessa forma. As pessoas estão existindo e
diferentes pautas são discutidas em paralelo sem que uma apague ou se sobressaia
à outra.
Na dinâmica conversacional em grupo, Tuti, outre participante, comentou sobre
os ataques serem motivados pelo medo que as pessoas têm de ser quem são. Bokoto,
na ocasião, discordou de Tuti e colocou seu ponto de vista sobre o assunto. Pontuou
justamente a questão dos marcadores sociais, os quais vão fazer com que cada
pessoa tenha uma experiência de vida diferente que vai requerer diferentes ações.
Tais quais em busca, por vezes, de segurança. Não se trata de quem quebra mais
padrões. Elu comenta, como forma de exemplificar, que em alguns lugares sabe que
se colocar enquanto uma pessoa não binária pode ser complicado - indicador de
cansaço e desânimo onde se vê conformado com uma realidade que lhe dificulta
a existência e indicador de reclusão em um lugar não inteligível – então,
denomina-se trans ou, no máximo, transmasculine.
A estrutura social na qual vivemos, segundo Bokoto, tem como uma de suas
principais ferramentas o apagamento dos próprios rastros e, como em um “faz de
conta”, expõe determinadas questões como se fossem “naturais” ou fossem “sempre
assim”. Inclusive, isso pode aproximar-se da falácia do apelo à tradição, comumente
utilizada em nossa sociedade e que ocorre quando se afirma que algo, por ter sido
188
sempre de uma mesma maneira, deve permanecer assim e não ser mudado. O
problema principal nesse tipo de argumento é que a repetição de algo ao longo do
tempo não é diretamente proporcional à sua qualidade. Quando se trata
especificamente de gênero, não há referência somente ao que foi repetido, mas
também ao que foi apagado e invisibilizado.
Então, quando veem vidas, quando veem corpos, quando veem pessoas
expor isso, é dar um “tilt” no mecanismo da coisa mesmo, né. Então, é por
isso que também dá tanto problema, né? Porque às vezes a pessoa que vai
estar lhe fazendo uma represália e tudo e, até, sei lá, eu olho pro ódio dessa
forma assim também, de como que mexeu numa coisa estrutural mesmo.
Quando aparece uma mulher trans ali e aparece um cara que se diz cidadão
de bem, pai de família, vai e mata aquela mulher trans. É porque aquilo
mexeu numa questão estrutural nele, na vida dele em sociedade, tipo: “Não,
isso aqui é uma aberração”, porque cara, mulher e homem…” Cis, né? “Só
existe homem e mulher e a vida funciona assim” (BOKOTO, DC1, 2021).
Que dinâmica é essa? Uma dinâmica muito específica, né? Onde a coisa tá
ali acontecendo, estão consumindo, né, mas tudo na surdina, né? Qual que
é o problema da exposição? O que que a exposição carrega, né? (...) “Olha
só como eu odeio tanto isso aqui. Eu sou capaz de matar na frente de vocês
todos” (BOKOTO, DC1, 2021).
72
“Travestis alimentam todo dia ao meio-dia”. Proposição: Isadora Ravena, Georgia Vitrilis, Sarah
Nastroyanni e Júnior Meireles. Direção: Isadora Ravena. Criação e Performance: Caironi, Georgia
Vitrilis, Janine Aigle, Júnior Meireles, Larissa Olinda, Lucas Dilacerda, Lucas Pontes, Melindra Lindra,
Rayshinshuan, Isadora Ravena, Sarah Nastroyanni e Urutau. Disponível em:
https://vimeo.com/414811278
189
(...) “ser trans é isso aqui, então se você não se vê nesse quadradinho muito
estreito do que é ser trans, então você é sei lá o quê, mas foda-se, você não
é trans”. É que gera muito sofrimento, isso gera muito, muito sofrimento,
então, por isso que volta naquele papo, né, de visibilidade, da gente se ver,
né... E aí um amigo escreveu até um texto no [grupo de artistas trans] e ele
fala sobre a real possibilidade da gente se ver, né. A gente se ver com
segurança, a gente não se ver só em manchete de jornal que tá usando o
nome morto da pessoa pra falar que ela foi assassinada, que uma pessoa
trans foi assassinada (BOKOTO, DC1, 2021).
Sem saber que havia vida, Bokoto sentia-se impossibilitade de pensar gênero
para além do lugar normativo. Sair disso seria encarar um “não lugar que incluía a
morte” (BOKOTO, DC2, 2021). Morte subjetiva e morte material/física. O que se
relaciona ao indicador de imposições normativas como geradoras de sofrimento.
Foi por aumentar suas redes de contato, conhecendo pessoas trans e travestis – e
pessoas trans não binárias um pouco mais tarde - que Bokoto passou a encontrar na
coletividade a fertilização, conforme elu se refere, do imaginário que estava morto,
além de si mesme também se sentir morrendo.
“Acho que a relação, a troca, é um componente fundamental”, diz Bokoto na
segunda dinâmica conversacional sobre um dos assuntos que mais ganhou destaque
nas conversas que tivemos: grupalidades.
Foi por meio das grupalidades e de circular por elas que Bokoto percebeu que
era possível uma certa mobilidade, encontrar um espaço que lhe faça sentido sem
precisar deixar o movimento trans. O que se relaciona com o indicador das fissuras
e rachaduras como novas vias de subjetivação, uma vez que as grupalidades,
nesse sentido, permitem a fluidez e o fluxo da água - em referência à metáfora do
submarino trazida por Bokoto - transitarem sem a preocupação de tapar com corpo e
ideias as rachaduras feitas pela força da normatividade.
73
Packer: Pênis de silicone, utilizado para criar volume e/ou urinar.
74
Binder: “Bandagem” (tradução livre) utilizada no peito para o achatamento dos seios e aparência
mais “reta”.
191
Afinal, quem quer ficar isolade, sozinhe e na merda, sabe? Porque essa
coletividade também envolve você conseguir ser amade, amar, envolve você
conseguir ter uma casa, saúde emocional, tudo na vida (risos). Então quem
é que quer ficar sozinho? (BOKOTO, DC2, 2021)
“A gente constrói utopias no meio das distopias todas, mas a gente se reúne
um pouco pra construir utopias mesmo” (BOKOTO, DC1, 2021). O que nos remete ao
indicador da identidade como mapeamento político da existência. A utopia de
Bokoto para um mundo melhor começa no presente, a partir do que já está sendo feito
por meio de resistência e exposição para o mundo do que se vê e sente. Uma utopia
que passa por alguns lugares. Por uma possibilidade de ganhar mais espaço e
respeito, por todas as vidas poderem estar seguras e acolhidas nos espaços, por
existir a possibilidade de se estar em espaços que hoje são legitimados, de tomadas
de decisão, de construção de trabalho. Além disso, uma utopia que passa pelos
marcadores sociais de poder que estão nas pessoas. A branquitude olhando para si,
a cisgeneridade olhando para si, a transgeneridade olhando para si e revendo suas
próprias bases, para o que se tem construído no mundo.
Outro lugar pelo qual essa utopia passaria seria por um cenário em que todos
conseguissem ver as guerras que estão existindo e que fossem capazes de encarar,
de fato, o que falta para que todas as pessoas sejam consideradas simplesmente
gente; ser humano. Com isso e com os trechos a seguir, o indicador das fissuras e
rachaduras como novas vias de subjetivação sustenta-se.
Ser considerado humano real, assim, nas suas diferenças, não num mundo
que busque ideais igualitários, porque isso não existe assim, mas nas suas
diferenças, sendo reconhecidos como gente. Acho que essa utopia também
passaria por, até por uma vangloriação assim. Isso existe? (risos) Enfim,
vangloriar as produções das vidas dissidentes, assim, sabe? Que já tão
rolando, a galera já está produzindo, já está lançando, não só em arte, não
só em texto acadêmico, não só em... Várias coisas, mas, tipo, isso ser
vangloriado, isso não ser só escorraçado ou ser tratado como algo assim...
Extraordinário, fora desse mundo. Não! Está neste mundo e precisa ser
75
Mais informações: facebook.com/abranb
192
celebrado, sabe? Que vozes trans, por exemplo, sejam vangloriadas, sejam
ouvidas, sejam consideradas. Que a gente saia do subterrâneo, sabe?
(BOKOTO, DC1, 2021)
Antes parecia que o meu corpo eram peças de quebra-cabeça, mas que
quando se juntavam ficavam sempre tremidas. Eu ficava tipo, parece que tem
um monte de gente recortada e colada aqui. Eu me senti um Frankenstein,
saca? E não que eu não me sinta mais. O meu TCC é muito sobre
monstruosidade, vem muito essa imagem do Frankenstein inclusive. Não
acho que ela diminui qualquer coisa, não acho que, tipo: “Ah, uma experiência
Frankenstein é uma experiência merda” ou ruim, só por ela ser uma
experiência misturada, mas eu comecei a ver fora desse lugar. Me ver, me
sentir fora desse lugar de: “Caralho, nada está fazendo sentido. Eu não sei
nem como me relacionar com esse corpo aqui. Quero fugir desse corpo aqui”.
E como é que você foge? (BOKOTO, DC2, 2021)
76
Ver: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/04/21/tiffany-abreu.htm
193
O que Bokoto entende por corporeidade, somado a quando falou sobre sentir-
se uma incógnita e trazendo ainda a mistura de vestimentas que seriam consideradas
femininas ou masculinas - bermuda grande, blusa bem comprida e solta, maquiagem
e unhas postiças – levam-nos ao indicador da corporeidade como via de
expressão de gênero. A ideia de incógnita difere da “monstruosidade” trazida por
Bokoto no trecho acima, tendo em vista que existe um lugar demarcado, mesmo que
de monstro, que se relaciona às “misturas” nas expressões de gênero.
Neste processo de entendimento de si, Bokoto também precisou encarar o que
efetivamente gostaria de mudar e o que não queria. Para isso, precisou entender as
normativas criadas pelo que elu chama de “branco-cistema-mundo”, que seriam as
expectativas de o que as pessoas trans, gênero dissidentes, teriam de fazer com o
próprio corpo. Ultimamente, tem se visto a partir de uma relação. A relação de si
consigo mesmo, de si com seu próprio corpo.
Não me relaciono com a minha genitália como ela está. Agora eu tô usando
testosterona e tal, e tá mudando e eu tô falando: “Cara, é isso aqui. É isso
aqui mesmo”. Pra mim, é como se eu estivesse mais cedo com isso aqui ou
era para eu alcançar isso aqui. Então me possibilitou ter essa relação com o
meu corpo e com o mundo (BOKOTO, DC2, 2021).
(...) hoje falo de pessoas não brancas porque no Brasil temos todas a essa
problemática da miscigenação. Não é fácil se declarar racialmente no Brasil,
conferir sua identidade racial. Mas também para não apagar, colocando
nessa dicotomia branques e negres. Branquitude e negritude, quando só no
nosso território que tem uma variedade imensa. Mas essas produções
começaram a atentar como que pessoas não brancas são muito mais
referidas enquanto corpos do que enquanto pessoas. Essa palavra “corpo”
veio dessa tradição colonial de colocar as pessoas não brancas só enquanto
corpo, sem subjetividade, sem história, sem narrativa, só um corpo pra ser
usado. (...) Se as melhores notícias que a gente têm são sobre pessoas não
brancas mortas, a palavra que a gente mais vê se remetendo a essas
pessoas é “corpos”, e aí dessas produções falando pra se atentar e subverter
isso, não falar só de corpos (BOKOTO, DC2, 2021).
194
Mexendo com gênero nessa vivência não binária, eu tô passando agora por
um rolê de finalmente ganhar espaço, ter saúde e confiança de querer usar
coisas muito diferentes. Até algumas paradas assim com uns decotes, sabe?
Tipo, super peito pra fora, até querer usar um binder, uma roupa nesses
signos assim masculino e feminino. Pegar as extremidades assim e também
misturar essas coisas. E isso me traz medo não só por sair na rua e medo de
represálias, até porque acontece isso de uns olhares, falarem umas paradas
de mau gosto. E tem, inclusive, aí eu não acho que isso seja de uma
experiência específica, mas quando você vai misturando algumas paradas
que saem dos códigos sociais de gênero binário, você vai virando uma
incógnita (BOKOTO, DC2, 2021).
E aí também foi muito crucial, para mim, ver um documento oficial falando
sobre... Ah, não é essa palavra que eu quero usar, mas assim, a supremacia
mesmo da autodeclaração, né. Que o posicionamento da pessoa é soberano
sobre qualquer outra questão, sobre qualquer posicionamento do
profissional. E isso bateu na minha vida, assim, inclusive, enquanto pessoa
trans, também de uma forma muito louca (...), porque foi uma outra relação
que eu comecei a construir com a saúde também, em que... cara, a gente
está tendo algum respaldo, algum apoio (BOKOTO, DC1, 2021).
Bokoto também ressalta que não é uma luta começando “do zero”, porque
existem pessoas trans nos Conselhos Regionais e no Conselho Federal. Ou seja, já
existem pessoas trabalhando para que hoje tenhamos, por exemplo, acesso a essa
resolução. Com isso, elu ressalta a importância da equipe da área de saúde neste
lugar profissional ocupado por corpos - conforme elu nomeia - que em geral destoam
do perfil profissional da área, normalmente constituído por pessoas cis, supostamente
196
(...) Então, a gente acaba atuando também como agente de equidade, né?
Então o nosso corpo estar presente ali é não só ir abrindo aquele próprio
espaço para entrar em relação com pessoas, agora pegando como exemplo
pessoas trans, né, mas dá pra gente fazer isso com qualquer experiência
dissidente da norma, né. (...) Do quando que a gente estar presente lá,
começa a abrir pra um relacionamento conosco enquanto seres humanos
complexos, né, que estão para aquém e para além de qualquer protocolagem
das nossas vidas. A gente ainda tá brigando, a gente ainda tá lutando para
ser reconhecide enquanto gente, para vir para o básico, né... Pra gente não
ser nem tratade como uma monstruosidade ou uma vida excêntrica... Não!
Que a gente come, caga, bebe como todo mundo, que a gente tem todo tipo
de conversa, de demanda e que, enfim, vai começando um trabalho de
humanização ali também. Se reverbera não só para o espaço em equipe, mas
também pro dia a dia do serviço (BOKOTO, DC1, 2021).
Sobre a ocupação desses espaços, Bokoto conta sobre uma experiência que
teve em um espaço no Rio de Janeiro que ainda é regido pela lógica manicomial. Elu
passou duas vezes por esse lugar com trabalhos diferentes. Enquanto estava lá,
encontrou duas pessoas que, após várias conversas e maior aproximação, elu
percebeu como pessoas trans, “mas que o serviço via como, no máximo: ‘Ah, um
viadinho’ ou via como uma ‘sapatona’” (BOKOTO, DC1, 2021). E tratava-se de
internação dividida por gênero - subjetividade hegemônica nos espaços de saúde -
então, as pessoas estavam alocadas ali com a interpretação social de gênero e
estavam, naquele momento, com a saúde mental muito comprometida. A equipe, de
acordo com Bokoto, não entendia as expressões de gênero enquanto expressões que
apontavam para uma transgeneridade. Além disso, não havia nenhuma pessoa trans
na equipe multiprofissional.
Daí eu comecei a tocar essa ideia com a equipe, no dia a dia ali, indo aos
pouquinhos, né, até que chegou num ponto em que uma dessas pessoas
conseguiu dizer para mim, um desses usuários chegou e conseguiu dizer que
não se identificava... Enfim, que se identificava enquanto uma mulher trans e
não queria continuar na internação masculina, por exemplo, e aí toda uma luta
com a equipe para falar: “Olha, mas essa pessoa tá trocando isso comigo, essa
pessoa tá me passando isso e já tá expressivamente colocando que não pode
estar neste espaço porque não condiz com a vivência dela”. E aí era tomada
como delírio, era tomado como isso aquilo, todas as nomenclaturas (BOKOTO,
DC1, 2021).
Para pessoas trans, o tratamento vai continuar a ser aquele que está já
endurecido, calcificado, sobre essas vidas, né. Então, é um trabalho que
ainda vai ser muito extenso, extensivo e intensivo, né. No dia a dia dos
dispositivos, porque na prática mesmo, o quadro não mudou tanto e
pensando mais assim, no SUS. (...) Uma das primeiras coisas, elementos,
acontecimentos assim que me aproximaram da transgeneridade, (...) [foi que]
há três anos atrás, três anos e meio eu nem sabia que pessoas trans eram
pessoas, que existiam, que andavam por aí, sabe? Eu não sabia da
existência. Eu tinha aquele repertório violento e opressor. Eu tinha algum
repertório, principalmente sobre mulheres trans e travestis e aquele repertório
que a gente conhece né, que é só pra, na verdade, violentar as nossas vidas.
Não tinha ideia que tinham homens trans, transmasculines, não bináries,
então foi todo um tempo pra eu saber que existia e que se podia ser, né
(BOKOTO, DC1, 2021).
Entre 2017 e 2018, a partir do contato com uma colega e o namorado dela, que
é um homem trans, Bokoto passou a pensar sobre o lugar ocupado pela Psicologia
quando se trata de questões de gênero. Percebeu, ao pesquisar, que não havia
espaço na formação para esses temas, nem na graduação nem na pós-graduação.
(...) e a gente não tinha nada para falar sequer sobre gênero, sequer pra falar
qualquer questão de gênero, quiçá falar em pessoas trans existindo, um lugar
referencial da Psicologia nessa relação. Eu fiquei: “Cara, isso é um
problema”. Aquilo foi alarmante para mim (...) e por mais que a Psicologia não
estivesse naquele momento reconhecendo pessoas trans como pessoas, e
tal, e reconhecendo o seu lugar nessa relação, tinha que, no mínimo: “Tá,
pessoas trans estão aí e a Psicologia tá numa posição de validação dessa
estrutura biomédica e protocolar”. Então, as pessoas têm que ter isso na
graduação. (...) Nem essa parte que é patológica não dão, imagina discutir
as pessoas trans enquanto pessoas, sabe? É um pouco maior ainda, mas
naquela época, eu tava tipo: “Caralho, a gente não tá olhando nem para um
laudo”, sabe? Então isso me deu uma estalada também e isso é uma
problemática que a gente está enfrentando ainda, enquanto pessoas que
estão na formação (BOKOTO, DC1, 2021).
Ao mesmo tempo que Bokoto compreende ser necessário ter espaços para
falar dos temas em questão, também entende que, se vidas fossem realmente
198
(...) aí a gente tava vendo um vídeo e no final do vídeo era a pessoa falando,
né: “Ah, mas isso aqui se aplica… A gente fez isso aqui com essas crianças,
com essa demografia e aí isso meio que se aplica só a essas crianças”. A
gente ficava meio que se perguntando: “Tá, mas o que que eu vou fazer aqui
no Brasil nessa abordagem, com crianças não brancas e que não têm… que
têm estruturas familiares diferentes ou crianças que foram criadas em
estruturas familiares diferentes?” Tem questões que é realmente voltar na
base, né? E aí eu acho que pensar um caminho em que escuta é
interessante. Cara, é o pulo do gato e é o mais necessário assim. Mas o
interessante é pensar a partir da diferença, sabe? Não só de pensar uma
escuta para pessoas trans, mas que escuta é essa que não acolhe nenhuma
diferença? (BOKOTO, DC1, 2021)
“Que escuta é essa que não acolhe nenhuma diferença?” Repetimos aqui essa
pergunta tão importante. Esse também é um questionamento feito por Sofia Favero
(2020), que, ao se referir à clínica, propõe uma via de enfrentamento:
Como uma pessoa diferente do padrão vai ser acolhida por profissionais da
Psicologia? Como a escuta está sendo pensada? Para quais corpos? Quais vidas?
Existe um “sujeito universal” a quem essa escuta é pensada durante toda uma
graduação em Psicologia? São essas outras as inquietações trazidas por Bokoto. A
partir das informações que trouxemos sobre a ligação de Bokoto com a Psicologia,
elencamos o indicador da Psicologia como possibilidade de ampliar
199
77
Foi pedido a Bokoto o arquivo do poema após o encontro e aqui apresentamos conforme estava
escrito em respeito à autoria e sua liberdade artística/poética.
200
Branco-Cisnobyl
Em frente onde escrevo a carta que [incompreensível] a pele, carta aos
mundos que se vão, depois um espelho que faz tamanho com a minha mão
aberta, que levo na bolsa pondo na cara da rua mesmo sem querer. Em que
caixinha cê vai tentar me espremer? Pra eu caber na noção rasa que cê tem
de gente válida. Esse pacote que diz, que cada pira que eu dou, cada abismo
que eu crio asa é pira falha? Te enxerga que tu vai ver, tem muito mais
debaixo desse teu tapete que tu entope de qualquer noia pobre, só pra ver
se engole. Revolução que não passa na tua Smart TV. É bebê, a gente não
veio só para ficar, a gente veio pra se mover e pra mobilizar. Cês acharam
mesmo que iam se safar? Eu conheço um pique diferente, uma gente do fim
do mundo, cria e criadora dos fins do mundo. [Incompreensível] viva com
essa coisa de ser... só coisa. Elas caminham, correm com as ruínas se
alongam no caos, maratonam na Chernobyl que é o dia a dia ciscêntrico,
entre o silêncio e as sementes, que só amanhã pra ver no que vão dar, mas
valem de hoje pela nossa força e sutileza que movimentam. Cada passo
fazendo afronta ao binômio ausência-saturação que eles nos espremem
achando que vamos pular fora. É que, olha meu irmão, a gente já é o fora,
criando dentro, criando fora. Acorda! Desviantes são eles, nós somos viantes,
criamos vias. Viabilizamos as rachaduras junto dos mundos que o tal fardo
do homem branco fardado até hoje tenta exterminar. [Incompreensível] isso
tá levando o mundo à loucura, isso tá uma loucura em corpo. Isso! O meu
corpo! Uma loucura, muitas, várias... Cria... Crua... Cura... Cru atravessa a
encruzilhada nada crua. É a caminhada das coisas noturneiras fazendo beira,
fazendo esquina. Cada curva que acentua... A palavra é sorrateira, como a
Linn, quando diz que é mais cobra do que a pele que fica pra trás da própria
quebrada. Isso... Nada disso... Enlouquecer na medida em que o peito faz
curva com o vendaval. Se nutrir de boa comida e carinho. Mudar-se... Plantar-
se... Tomar seu tempo, tomar sua dose do que quer que te crie saúde. Viver...
com insistência que causa espanto. Com nosso canto reconhecer o canto de
mais traças que traçarão a queda dessa merda genocida toda. Ser o próprio
201
Parar um pouco... Parar um pouco e mesmo rouco fazer uma oração pra mim,
pra nós. Pra nós respirar fundo pra continuar, pra que a palavra do amar não
se embole no corpo inteiro sem encontrar lugar. Para que faça seus caminhos
e seus carinhos permitam com arrepiar até o mais doído de nós. Que seja
bem cuidado o mais doído de nós. Que seja recebido em abraço e assim dê
espaço para florescer desatando os nós do adoecimento e do passado. Que
os nossos laços sejam pontes pra chegar mais perto, e mesmo nesses corres
incertos nós tem um canto ou colo de paz. Uma vela acesa para afastar os
males mentais e chamar pra perto os guias espirituais que acompanham
nossos passos, nossas versas, nossos processos. Que sempre tenhamos
acesso àquela parte que se esconde, para onde vão todos os amores que
eles tentaram banir de nós, mas que volta e meia brotam na tua voz e me
fazem lembrar que a gente não anda só. Enquanto eu não piso no mar... Ah,
enquanto eu não piso no mar eu te vejo e te canto de longe... e mando pelo
vento amor pros nossos nós… (BOKOTO, DC1, 2021)
● Impermanência do gênero;
● Não inferência de gênero como porta de entrada para uma relação;
● Sentidos subjetivos de pertencimento e acolhimento em grupos de pessoas
gênero dissidentes;
● Cansaço e desânimo onde se vê conformado com uma realidade que lhe
dificulta a existência;
● Reclusão em um lugar não inteligível;
● Fissuras e rachaduras como novas vias de subjetivação;
● Imposições normativas como geradoras de sofrimento;
● Identidade como mapeamento político da existência;
● Grupalidades como redes de apoio;
● Corporeidade como via de expressão de gênero;
● Arte como via de livre produção e expressão de sentidos subjetivos.
202
“Tudo que impede vida, impede que tenhamos uma identidade humana”
(CIAMPA, 1987, p.36). Acerca disso, Tuty Veloso Coura Guimarães (2021) afirma:
Esse modo de existir é, sobretudo, uma prática política que visa subverter o
padrão existente. A desconstrução é feita nas ações, na existência.
(Re)existindo é que se faz revolução. A mudança surge quando o sujeito se
faz revolucionário. (FREIRE; CHAGAS; GOMES, 2021, p. 32)
“Como (re)existir se não nos colocamos como uma identidade?” questiona Ale
Mujica Rodriguez (2021, p. 42). Não se trata, entretanto, de tornar igual. Dandriel
Henrique da Silva, ao realizar uma análise historiográfica acerca de identidades
indígenas trans, afirma “Nunca somos iguais. Mas somos sempre dissidentes. Nossa
existência é uma dissidência” (2021, p. 92). O que vai de encontro ao que foi trazido
por Bokoto e Amê sobre “pessoas gênero dissidentes” nas dinâmicas
conversacionais. Para que essas sejam existências inteligíveis, é preciso subverter a
lógica colonial branca cisheteronormativa.
Esse trecho de Brune Camillo Bonassi (2021) leva-nos à próxima via. A língua
e a linguagem com possibilidades de experimentação. Aqui, não estamos
somente trazendo a ideia da linguagem neutra, mas da poesia, da literatura, da arte
que, ao mesmo tempo que pode servir de escoamento de determinados sofrimentos
e angústias, também se mostra como potente via de conexões e contatos conforme
vimos nos poemas de Bokoto, de Kafka, na teatralidade de Amê, na mística do
cuidado de Luís Henrique e na música de Tuti.
Essa é uma história com a qual você provavelmente teve contato quando
criança em algum conto infantil ou desenho animado. Isso pode, inclusive, ter lhe feito
respeitar mais os casulos e não mexer neles, sabendo que tinham borboletas sendo
formadas ali dentro. Porém, essa não é uma história representativa quando se trata
de gênero. Ou o que aqui propusemos chamar de metamorfoses de gênero. Um dos
motivos pelos quais não é representativa, é porque os juízos de valor sobre a lagarta
e a borboleta são muito demarcados. Como se o fato de ser uma lagarta - e aqui estou
considerando que já entendemos essa história como metáfora - significasse ter uma
vida infeliz e, por outro lado, ser uma borboleta representasse a felicidade, a
completude. “Sair do casulo”, quase como um “sair do armário”, seria finalmente
encontrar uma “forma” que fosse condizente com aquilo que estava na essência, até
então, não fisicamente observável.
Com o intuito de buscar produções atuais acerca de identidade e
metamorfoses, entramos em contato via e-mail com o Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Identidade Metamorfose (NEPIM) da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Perguntamos sobre a existência de trabalhos realizados pelo núcleo
que envolvessem a população LGBTI+, mais especificamente, a população trans e,
apesar de nos ser informado que o Núcleo não possui nenhuma produção própria,
foram indicadas algumas produções parceiras. Dentre elas, destacamos:
corporeidade e estética corporal por meio das modificações físicas, sejam cirúrgicas
ou não, como forma de vivenciar o gênero.
Outra leitura indicada pelo NEPIM foi da coletânea intitulada Metamorfoses do
Mundo Contemporâneo, que contém dois textos acerca de metamorfoses do/de
gênero, fundamentados na compreensão de identidade proposta por Ciampa (2004).
Tais quais: “Metamorfoses do gênero: Apontamentos sobre corpos, identidades e
sexualidades”, sob autoria de Carla Cristina Garcia (2021) e A vulnerabilidade social
da pessoa LGBTQIA+ e as metamorfoses de gênero do mundo contemporâneo, sob
a autoria de Maura Âmbar (2021). Entretanto, ambas autoras não discorrem sobre o
que seria o conceito “metamorfose do gênero” ou “metamorfose de gênero” ao longo
de seus textos.
Garcia (2021) traz, logo no início de seu capítulo, quatro principais crenças
relacionadas à sexualidade e ao gênero que, segundo ela, têm respaldo na Filosofia,
Medicina, Direito e religiões ocidentais. Tais quais:
seria tido como sexo frágil, filho invertido, aberração sexual ou qualquer um
que destoasse da cis-heteronormatividade. Assim, coloca-se em risco o
império construído pelo patriarcado, que sempre se beneficiou com o lugar
de destaque e privilégios na sociedade machista e sexista em que vivemos,
tratando o modelo de gênero binário como algo natural e imutável. Uma
construção que se perpetua em nossa história, mas que o próprio ser humano
vem mostrando em sua vivência e autoconhecimento o quanto ela precisa ser
desconstruída (ÂMBAR, 2021, p. 95).
78
Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=16641
209
Ainda, pesquisas nas áreas da saúde que pensem mais profundamente sobre
as próprias bases que excluem a diversidade; pesquisas na Biologia que ofereçam
uma visão mais ampla de sexualidade e gênero, considerando, inclusive, a não fixidez
do termo “biológico” como sinônimo de “válido” e “natural”; pesquisas que se
aprofundem na questão da colonialidade, branquitude e questões étnico-raciais
relacionadas à identidade de gênero; pesquisas historiográficas, antropológicas e
sociológicas, que contextualizem as premissas de gênero das quais partem para fazer
afirmações sobre outras realidades e épocas; pesquisas sobre a relação entre
lesbianidades e transmasculinidades; pesquisas sobre identidade de gênero e
pessoas com deficiência; pesquisas no âmbito jurídico e pesquisas sobre linguagem
relacionadas à não binariedade.
A lista poderia estender-se muito, mas também deixo para que a própria leitura
desta dissertação promova a abertura para outras possibilidades, afinal, este é apenas
um mergulho em uma pequena lagoa, em alguns metros nos quais me atrevi a
adentrar.
215
REFERÊNCIAS
ADELMAN, Miriam. O gênero na construção da subjetividade: entendendo a
“diferença” em tempos pós-modernos... In: ADELMAN, M. e SILVESTRIN, C. B. (Org).
Coletânea Gênero Plural. Curitiba: Ed. UFPR, 2002.
CASTRO, Roney Polato.; DOS REIS, Neilton. “Eu comecei a dar uma aula mais
biológica mesmo, porque é bem polêmico”: currículo de Ciências e Biologia e os
atravessamentos de diversidade sexual e de gênero. Ensino em Re-Vista, p. 16-39,
2019.
_______. Identidade. In: LANE, Silvia Tatiana Maurer; CODO, Wanderley. (Orgs.)
Psicologia Social: O homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 2004.
FREIRE, Abbi Sampaio de Lima; CHAGAS, Rozana Ferreira; GOMES Adriano Lopes.
Transcendendo Rótulos: das ideias para o tátil. In: MORGADO, Morgan. (Org.). A
primavera não binárie: O protagonismo trans não-binárie no fazer científico.
Florianópolis, SC: Rocha Gráfica e Editora, 2021. (Selo Nyota).
HENN, Ronaldo Cesar; DIAS, Marlon Santa Maria. “Se ela é não-binária, por que se
referem no feminino?”: um corpo estranho em disputa. Revista FAMECOS, v. 26, n.
3, p. 33922, 2019.
PORCHAT, Patricia; OFSIANY, Maria Caroline. Quem habita o corpo trans? Revista
Estudos Feministas, v. 28, n. 1, 2020.
*Por serem pessoas que se aproximam de algum tipo de arte, é possível perguntar
sobre isso conforme a conversa fluir.
222
ANEXO A – TCLE
g) As pesquisadoras Norma da Luz Ferrarini e Amanda Giulia Sartor, responsáveis por este
estudo poderão ser localizados por e-mail, considerando as medidas de segurança por conta
da pandemia do novo coronavírus - normadaluzf@gmail.com e amanda.g.sartor@gmail.com.
Caso ocorra o retorno às atividades presenciais, as pesquisadoras poderão ser encontradas
no Centro de Assessoria e Pesquisa em Psicologia e Educação da UFPR, telefone (41) 3310-
2840, situado na Praça Santos Andrade, 50, subsolo, Centro, Curitiba – PR, nas quartas e
quintas-feiras das 14h às 17h para esclarecer eventuais dúvidas que você possa ter e
fornecer-lhe as informações que queira, antes, durante ou depois de encerrado o estudo, em
qualquer horário e a qualquer momento.
h) A sua participação neste estudo é voluntária e se você não quiser mais fazer parte da
pesquisa poderá desistir a qualquer momento e solicitar que lhe devolvam este Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido assinado.
i) O material obtido – transcrição da entrevista – será utilizado unicamente para essa pesquisa
e o arquivo será destruído/descartado ao término do estudo, dentro de 5 anos.
j) Para que a sua identidade seja preservada e mantida sua confidencialidade, na
pesquisa serão utilizados nomes fictícios, ficando a seu critério se quer ou não decidir qual
será o seu.
k) Você terá a garantia de que quando esta pesquisa for publicada, não aparecerá seu nome.
l) As despesas necessárias para a realização da pesquisa são as relacionadas a seu acesso
à internet para realização da entrevista virtualmente. Você não receberá qualquer valor em
dinheiro pela sua participação.
m) Caso existam dúvidas sobre seus direitos como participante de pesquisa, você pode
contatar também o Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CEP/SD) do Setor de
Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná, pelo e-mail cometica.saude@ufpr.br
e/ou telefone (41) 3360-7259, das 08:30h às 11:00h e das 14:00h.às 16:00h. O Comitê de
Ética em Pesquisa é um órgão colegiado multi e transdisciplinar, independente, que existe
nas instituições que realizam pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil e foi criado com
o objetivo de proteger os participantes de pesquisa, em sua integridade e dignidade, e
assegurar que as pesquisas sejam desenvolvidas dentro de padrões éticos (Resolução nº
466/12 Conselho Nacional de Saúde).
_________________________________________________________
[Assinatura do Participante de Pesquisa ou Responsável Legal]
224
Eu declaro ter apresentado o estudo, explicado seus objetivos, natureza, riscos e benefícios
e ter respondido da melhor forma possível às questões formuladas.
_____________________________________________
[Assinatura do Pesquisador Responsável ou quem aplicou o TCLE]
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Setor de
Ciências da Saúde da UFPR, recebendo o número CAAE: 39735820.2.0000.0102 e o número do
Parecer de Aprovação: 4.421.726.