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DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
MARIANA-MG
2023
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
MARIANA-MG
2023
SISBIN - SISTEMA DE BIBLIOTECAS E INFORMAÇÃO
CDU 376(043.3)
FOLHA DE APROVAÇÃO
Membros da banca
Profa. Dra. Carla Mercês da Rocha Jatobá Ferreira - Orientadora - Universidade Federal de Ouro Preto
Profa. Dra. Margareth Diniz - Membro Interno Titular - Universidade Federal de Ouro Preto
Profa. Dra. Ângela Maria Resende Vorcaro - Membro Externo Titular - Universidade Federal de Minas
Gerais
A Profa. Dra. Carla Mercês da Rocha Jatobá Ferreira, orientadora do trabalho, aprovou a versão final e
autorizou seu depósito no Repositório Institucional da UFOP em 23/06/2023.
Documento assinado eletronicamente por Marlice de Oliveira e Nogueira,
COORDENADOR(A) DE CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, em 26/06/2023, às
10:44, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto
nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.
Referência: Caso responda este documento, indicar expressamente o Processo nº 23109.008274/2023-39 SEI nº 0547192
Agradeço também todos aos meus educadores, desde quando ainda aprendia a dar os
primeiros passos. Aos professores que passaram pela minha vida na Educaçâo Básica , que
me ensinaram que a escola é um lugar onde podemos sonhar, um lugar de afeto, de alegria,
de aprendizado e de esperança. Como diria Paulo Freire, um lugar para esperançar, para
construir a partir da coletividade.
À minha família. Minha mãe Erika, que me ensinou a ser forte, que sempre acredita
que eu posso alcançar os meus sonhos. Que apesar dos quilômetros que nos separam hoje,
nunca deixou de sonhar comigo por dias melhores e de, na presença, aproveitar comigo nosso
tempo juntas como grandes amigas.
Ao meu pai Orlando (em memória), que me ensinou sobre vulnerabilidade. Por ter me
oferecido muito carinho, o tanto quanto pôde. Carrego na lembrança e no coração todos o
momentos de felicidade que compartilhamos, todo aprendizado e companherismo que a vida
nos afereceu pelo tempo que o destino e as circunstâncias decidiram.
A minha tia Suely, que considero minha segunda mãe. Que sempre me apoiou, sempre
me ofereceu um porto seguro e um olhar de afeto. Que me ensina sobre amar o próximo,
sobre o quão grande o coração de alguém pode ser.
Aos meus irmão, Rafael e Matheus, que me ensinam sobre o que é a irmandade e amor
incondicional. Ter irmãos é aprender desde sempre a compartilhar, mas também a multiplicar.
Multiplicar as conquistas, multiplicar as recordações, multiplicar o amor.
Ao meu “paidastro” Piquinho, que me acolheu e acolhe como filha. Que dançou
comigo a valsa de formatura, que é ponta firme em qualquer tempestade e que, acima de tudo,
oferece presença e carinho sempre que pode.
Jean de la Bruyere.
1
This is Us, Dan Fogelman, 2022.
RESUMO
As discussões e abordagens acerca do Autimo têm ganhado cada vez mais destaque nos
debates internacionais, nas políticas públicas e nas produções acadêmicas e científicas. As
ações institucionais e legais são resultados de muita luta por parte das associações, da
academia e das pessoas autistas e com deficiência, visando garantir seus direitos
constitucionais e promover políticas e práticas que sustentem um sistema de ensino de
qualidade para todos. A escola, que provavelmente se torna a segunda instituição
socializadora para essas crianças, desempenha um papel político, social, cultural e
educacional importante em suas vidas. A instituição pode participar e contribuir, juntamente
com a família, na formação desses sujeitos. Este trabalho teve como objetivo, por meio de
uma pesquisa qualitativa utilizando como procedimento metodológico a pesquisa
bibliográfica e uma abordagem psicanalítica, interrogar os processos educacionais, investigar
e analisar as tendências das pesquisas em relação à inclusão de crianças autistas no contexto
da Educação Pública. Buscamos, assim, problematizar, a partir do campo circunscrito, as
consequências teóricas para a compreensão do sujeito autista e seu papel na instituição
escolar, bem como os possíveis embaraços que se materializam nos aspectos normativos, nas
produções científicas e, consequentemente, no cotidiano escolar.
Discussions and approaches about Autism have been increasingly discussed and have
gained support in international debates, public policies, and academic and scientific
productions. Institutionalized and legal actions have been the result of a lot of struggles
by associations, academia, and autistic individuals and those with disabilities to
guarantee their constitutional rights and promote policies and practices that support a
quality education system for all. The school, which will possibly become the second
socializing institution for these children, plays a political, social, cultural, and educational
role in their lives. The institution can participate in and build, together with the family,
the development of these individuals. The present work aimed, through qualitative
research, using as methodological procedure the bibliographical research and a
psychoanalytic reading to interrogate the educational processes, investigate and analyze
the research trends regarding the inclusion of autistic children in the context of Public
Education. Thus, we sought to tense, from the circumscription of the field, the theoretical
consequences for the understanding of the autistic subject and what it represents in the
school institution, as well as the possible difficulties that materialize in normative scopes,
scientific productions, and, consequently, in daily school life.
Figura 04 - Artigos sobre autismo e escolarização, divididos por ano de publicação entre os
anos de 2015 e 2022 ............................................................................................................. 135
Quadro III - Dissertações e teses com os descritores: Autismo e Educação ....................... 102
Quadro IV - Consolidado dos dados obtidos junto ao banco de dados da SciELO ............ 120
Quadro V - Consolidado dos dados obtidos junto ao banco de dados da Revista Estilos da
Clínica ............................................................................................................................ 131
Quadro VI - Consolidado dos dados obtidos junto aos Anais da ANPEd ........................... 133
LISTA DE SIGLAS
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 08
1. CAMINHOS METODOLÓGICOS ............................................................................. 18
2. ENQUADRE HISTÓRICO E A EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
EDUCACIONAIS DE INCLUSÃO ..................................................................... .......... 23
2.1 ENQUADRE HISTÓRICO E LEGISLATIVO .......................................................... 23
2.2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO FUNCIONAMENTO E CONSTRUÇÃO DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL ............................................................................. 38
2.2.1 Embaraços conceituais ....................................................................................... 43
2.2.2 A especificidade do autismo ............................................................................... 45
3. COMPREENSÕES INICIAIS SOBRE O AUTISMO .............................................. 49
3.1 PSICANÁLISE E A ESCOLARIZAÇÃO DOS ESTUDANTES AUTISTAS .......... 57
3.2 A CRIANÇA AUTISTA, SUA VOZ E O PROCESSO EDUCATIVO ...................... 62
4. ESTADO DA ARTE ...................................................................................................... 66
4.1 DISCUSSÃO ACERCA DOS ESTUDOS DESCRITOS NAS DISSERTAÇÕES E
TESES .............................................................................................................................. 67
4.1.1 Tendências das dissertações e teses analisadas ............................................. 113
4.2 O QUE DIZEM OS ARTIGOS ACADÊMICOS ...................................................... 120
4.2.1 Apontamentos das pesquisas ............................................................................ 134
5. A FORMAÇÃO DE PROFESSORES, AS CONCEPÇÕES SOBRE DÉFICIT E
DEFICIÊNCIA E O DISCURSO MÉDICO NA ESCOLARIZAÇÃO DOS
SUJEITOS AUTISTAS .................................................................................................. 139
5.1 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES ................................................................... 139
5.2 AS CONCEPÇÕES SOBRE DÉFICIT E DEFICIÊNCIA ..................................... 151
5.3. A INCIDÊNCIA DO DISCURSO MÉDICO NA EDUCAÇÃO .......................... 161
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 173
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 180
APÊNDICES ..................................................................................................................... 191
APÊNDICE A – DADOS DO LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO ........................ 191
8
INTRODUÇÃO
Dos encontros.
Conforme me foi dito por um querido professor, durante o período em que eu cursava
Pedagogia, as trajetórias escolares e acadêmicas das pessoas provenientes das classes
populares costumam ser marcadas por instabilidade, não sendo lineares. Acredito que minha
trajetória tenha sido uma delas. Antes de encontrar meu caminho no campo da Educação,
passei por outros dois cursos em cidades diferentes, em busca desse encontro que só
aconteceria mais tarde. Foi somente em 2016, ainda incerta do encontro, me matriculei no
curso de Pedagogia na Universidade de São João del-Rei. . Não demorou muito para que eu
sentisse um senso de pertencimento e o desejo de permanecer ali, unindo-me à luta pela
Educação. No entanto, minha relação com a educação inclusiva e com os estudantes autistas
teve um ponto de partida diferente.
Após o primeiro encontro com João, inquietações foram surgindo daquela interação
inesperada, e ao conversar com a diretora da escola ela me disse que ele é autista, assim como
outros três estudantes que estavam regularmente matriculados na escola, somando três
meninos e uma menina. Naquele momento eu ainda tinha um conhecimento limitado sobre o
autismo. Recordo que minha compreensão se encontrava um pouco nos dizeres do senso
comum, principalmente em relação aos esteriótipos de aversão ao toque e as
hipersensibilidades. No entanto, passei a ser atravessada por interrogações sobre a forma
como esse sujeitos pensavam e agiam diante da vida e nas relações cotidianas, o que dispertou
em mim um maior interesse em conhecê-los e saber mais sobre o assunto.
Foi a partir desse movimento e das percepções adquiridas que a concepção da pesquisa
se fortaleceu e meus compromissos como pesquisadora se solidificaram. Sentindo meus pés
firmes, decidi avançar no estudo e compreender melhor as vivências de escolarização e as
múltiplas possibilidades dentro do campo educativo para os estudantes autistas.
11
Inquietações da pesquisadora
De tal forma, não estaríamos, de fato, abertos para escutar e reconhecer o outro
inédito, inerente a todo aquele que chega, tampouco os que escapam aos padrões de
normalidade excludentes impostos pela sociedade, que muito têm a dizer e agir sobre si
mesmos, mas apenas ao que o nosso olhar se interessa e deseja acolher sobre esse outro, e
para além disso, nos movemos para que os nossos desejos sobre o que o outro é sejam
atendidos, para assegurar assim o nosso conforto.
Diante dessas questões, a partir das indagações de Larrosa (2006) acerca da infância,
pensando aqui também as infâncias autistas, e em como as relações de ganância do saber e do
poder, do desejo de controlar e dominar os sujeitos através dos especialismos e dos
conhecimentos produzidos pela impossibilidade de sustentar o desconforto do não saber lidar
com a diferença que atravessam e são reproduzidos na escola, buscamos na Psicanálise outra
12
Assim, a psicanálise pode atuar como um alicerce para interrogar e poder, de certa
forma, romper com esses modelos já instaurados que ignoram os processos históricos e
sociais no desenvolvimento dos sujeitos e reduzem a sua natureza a determinados
conhecimentos, saberes e estigmas. Além disso, que possa compreender o desenvolvimento
humano pautado na combinação dos aspectos estruturais e instrumentais, ou seja, dos
elementos biológicos e do sujeito psíquico, e os instrumentos de socialização, interação e
linguagem do indivíduo no espaço (GUARESCHI, 2016). Ademais, a escola é um campo
fértil na manutenção e construção da linguagem e do simbólico que permeia todo
desenvolvimento dos sujeitos presentes nessa experiência e pode refletir de forma negativa ou
positiva no contexto escolar.
o único espaço social que divide com a família a responsabilidade de educar. Ela
favorece uma certa transitoriedade entre as diferenças individuais e as necessidades
do grupo, oferecendo ao indivíduo oportunidades de comportamentos mais
socializadores (SERRA, 2010, p.47).
ameaçar as conquistas alcançadas e a luta por uma educação inclusiva de qualidade, que seja
verdadeiramente inclusiva. Como menciona Plaisance:
A busca por uma sociedade inclusiva implica uma profunda transformação das
instituições, das práticas e dos modos de pensar. Nela, a educação ocupa um lugar
privilegiado. Longe da antiga cultura da separação presente na Educação Especial e
ultrapassando os limites da integração escolar, a Educação Inclusiva pode marcar
uma etapa decisiva no acolhimento de todos os educandos e, consequentemente,
inscrever-se plenamente na ambição democrática. (PLAISANCE, 2019, p.14)
Para crianças autistas, o ingresso na escola pode significar uma primeira dificuldade.
A inclusão, neste sentido, não seria uma questão inicial, mas a própria integração. Através de
relatos analisados para a construção deste projeto, foi possível perceber estes e outros
aspectos que nos ajudam a problematizar essa etapa inicial formal de educação – aqui
entendida como primeiro contato do estudante com a escola pública.
1 CAMINHOS METODOLÓGICOS
A partir das questões e dos objetivos propostos em nossa pesquisa, adotamos uma
metodologia de investigação qualitativa e exploratória, através da pesquisa bibliográfica. Para
compreensão de um processo complexo e heterogêneo a abordagem qualitativa se destaca
como a mais adequada, no sentido em que, como nos diz Gray (2012, p.135) “o papel do
pesquisador é obter um panorama profundo, intenso e ‘holístico’ do contexto em estudo,
muitas vezes envolvendo a interação dentro das vidas cotidianas das pessoas”. Portanto, a
escolha desse procedimento se dá à medida que permite ao pesquisador compreender o
fenômeno de forma mais aprofundada e ilustrativa. A pesquisa qualitativa tem em seu lócus
de estudo a fonte para sua coleta de dados e o pesquisador como principal ferramenta.
Já a pesquisa bibliográfica, conforme definida por Gil (2010), é aquela que se baseia
em elementos previamente publicados, como teses, dissertações, artigos científicos, livros,
entre outros. Através dessas fontes, são realizadas discussões embasadas nas contribuições
dos respectivos autores, permitindo ao pesquisador analisar e promover uma discussão crítica
sobre a temática em questão. É importante ressaltar que a pesquisa bibliográfica se distingue
19
Colocar o pesquisador em contato direto com tudo o que já foi produzido na área em
questão. No entanto, [...]a pesquisa bibliográfica não é uma mera repetição do que já
foi dito e escrito sobre determinado assunto. Como todos os demais tipos de
pesquisa, a bibliográfica exige do pesquisador a reflexão crítica sobre os textos
consultados e incluídos na pesquisa (MOREIRA E CALEFFE, 2008, p.74).
Dessa forma, a pesquisa bibliográfica vai além da mera descrição ou transcrição do
banco de dados ou categorias levantadas. Ela exige organização, sistematização, análise e
posicionamento crítico que promovam discussões, com o objetivo de contribuir para o campo
científico, ampliando o debate e buscando identificar novos elementos, hipóteses,
questionamentos e inquietações a partir das pesquisas realizadas.
regiões em que essas produções foram desenvolvidas, assim como seus principais eixos
temáticos. Por meio dessa sistematização, temos a possibilidade de identificar as tendências
apresentadas pelas produções e problematizar, por meio da análise de conteúdo, as
convergências e divergências das pesquisas. Além disso, podemos observar as relações que
têm sido estabelecidas no cotidiano escolar e nas linhas de pesquisa relacionadas à
escolarização de crianças autistas no contexto do ensino público brasileiro.
Como alicerce para orientar nossas observações e análise acerca do sujeito de estudo
da pesquisa, utilizamos a interface ética e teórica da Psicanálise, buscando, a partir dela,
subsidiar a nossa discussão no que se refere aos processos educacionais vivenciados pelos
estudantes autistas no âmbito do ensino público brasileiro, das questões teorizados nas
pesquisas publicadas nos últimos sete anos e descritas nas normativas que regem essa
temática.
No contexto escolar, podemos observar que, embora existam pesquisas que escapem à
lógica do discurso médico biologizante e da universalização do ensino, ainda prevalecem, no
cotidiano escolar, práticas e abordagens pedagógicas que negam a subjetividade e os modos
singulares de cada indivíduo. Essas práticas pedagógicas estão principalmente focadas na
ideia de universalidade, o que acaba desconsiderando as especificidades de cada sujeito Nesse
sentido, a pesquisa em interlocução com a psicanálise não se restringe a métodos e
21
metodologias para validar o universal e os resultados das pesquisas de onde surgem o dito
“saber universal”, mas se organiza pautada na verdade de cada sujeito (MARCOS, 2010).
Concordamos com a afirmação de Pereira (2020) de que "a educação, decerto, é para
todos, mas sempre um por um" (p.51). Isso significa que, embora a educação seja um direito
de todos, é necessário reconhecer e validar a singularidade de cada sujeito, levando em conta
suas necessidades, características e potencialidades.
Além da concepção de sujeito que nos é cara, a psicanálise interroga ainda os saberes
absolutos propostos pela ciência. A psicanálise reconhece a constante mudança na sociedade e
nas formas particulares de nos relacionarmos com a verdade. Ela implica em uma postura
ética que evoca o saber "não-todo", reconhecendo que sempre haverá lacunas e
questionamentos que não poderão ser totalmente respondidos. Essa abordagem é fundamental
na pesquisa, sendo uma parte essencial que permanecerá aberta e não será preenchida
(MARCOS, 2010). Conforme apontado por Guerra (2010), a psicanálise se apresenta mais
como uma linha de orientação do que uma verdade absoluta a ser validada ou descartada.
Mesmo que tenhamos hipóteses e direções para a pesquisa, a psicanálise nos leva a considerar
a complexidade do fenômeno estudado.
Como afirma Diniz (2016), essa abordagem nos leva a um acerto de contas com o
passado, reconhecendo as influências e trajetórias que nos levaram a esse ponto da produção
científica. É necessário assumir a responsabilidade pelas implicações e efeitos que essa
abordagem terá na sociedade (GUERRA, 2010).
23
Segundo Lima et al. (2014), até o final do século XX, a assistência pública às crianças
e adolescentes autistas era frequentemente limitada a tratamentos em "serviços-ilha", isolados
e pouco integrados a outros serviços. Além disso, muitas vezes eram encaminhados a
ambulatórios tradicionais com uma tendência a altos índices de medicalização. No entanto,
em geral, não havia acompanhamento adequado, resultando em um número significativo de
pessoas desassistidas pelo poder público.
2
Importante destacar que a Portaria nº 336, que normatiza a criação dos CAPSi ainda não traz no texto a
terminologia autismo, mas descreve o atendimento e acompanhamento de crianças e adolescentes em risco
psicossocial, com dificuldades em sustentar e se constituir no laço social (Couto, 2012).
24
A partir do ano de 2007, o termo "autismo" foi substituído pelo termo "Transtornos
4
Invasivos do Desenvolvimento (TID)", conforme definido pelo DSM-III-R (Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - Terceira Edição Revisada). Essa categoria
englobava o Autismo Infantil, a Síndrome de Asperger, a Síndrome de Rett e o Transtorno
Desintegrativo da Infância. Em 2008, surgiu a terminologia "Transtornos Globais do
Desenvolvimento (TGD)", em conformidade com a nova Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI, 2008), que será abordada
posteriormente no estudo. Somente em 2009, o termo "autismo" foi retomado como uma
categoria dentro dos TGD, sendo descrito como "Autismo Clássico". Essa denominação se
manteve até 2018, com uma única modificação em 2011, quando o termo "Clássico" foi
substituído por "Infantil". A última modificação ocorreu em 2019, quando foi adotada a
designação "Transtorno do Espectro Autista (TEA)" de acordo com o DSM-V, sendo essa
também utilizada na CID-11.
3
O Censo Escolar é uma ferramenta de pesquisa estatística do campo educacional em âmbito nacional, realizado
anualmente. Compreende as instâncias municipais e estaduais, públicas e privadas. Contempla as diferentes
etapas e modalidades de ensino, incluindo a Educação Especial.
4
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, terceira edição – Revisão, publicado em 1989.
25
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o
saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições
públicas e privadas de ensino;
IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; (BRASIL,1988).
5
Cabe salientar o aparente não comparecimento de um representante formal brasileiro, sendo que a Conferência
é considerada como um ponto chave da discussão sobre a inclusão nos contextos internacionais.
27
A respeito disso, Cury (2008) vê, problematiza a forma como as normativas vieram se
estruturando, no intuito dessa dita universalização da educação de forma organizada,
sistemática e democrática, enquanto somos marcados pelas relações de desigualdade social,
impeditivos nítidos que se refletem na escola em variadas formas de exclusão, associadas,
principalmente, aos preceitos mercadológicos neoliberais que fundamentam as construções
das diretrizes educacionais. Nesse sentido, “a educação escolar, similar a outras dimensões da
vida sociocultural, então coexiste nessa contradição de ser inclusiva e seletiva nos modos e
meios dessa inclusão e estar, ao mesmo tempo, sob o signo universal do direito” (CURY,
2008, p.210).
Dois anos depois, foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB, nº 9.394/1996)6, que apresenta diretrizes para pensar os currículos e as estratégias de
estruturação que atendam, de forma geral, os estudantes brasileiros, além de reforçar o acesso
à educação básica como um direito obrigatório. No capítulo V, a lei aborda a Educação
Especial como uma modalidade de educação escolar, a ser realizada "preferencialmente" na
rede regular de ensino para estudantes “portadores necessidades especiais" a partir das
seguintes considerações:
6
As considerações feitas sobre a LDB partem de seu texto original publicado em 1996.
7
Termo utilizado pela LDB.
29
8
Em 2015 houve a publicação do texto, intitulado “Propuestas para avanzar hacia un sistema educativo
inclusivo en Chile: Un aporte desde la educación especial” que buscou alavancar a perspectiva inclusiva,
embora não tenha alterado a possibilidade de os estudantes estarem matriculados em escolas especiais
(GARCIA; LÓPEZ, 2019).
9
Pessoas com deficiências auditivas, intelectuais, visuais, transtornos específicos de linguagem, transtornos
motores, transtornos do espectro autista, grandes alterações na capacidade de interação e comunicação
(GARCIA; LÓPEZ, 2019).
10
O Decreto Supremo nº1 de 1998 do Chile que discorre sobre a Educação Especial especifica que: “Quando a
natureza e/ou grau de deficiência não possibilite a integração nos estabelecimentos comuns, a educação especial
será realizada em escolas especiais, o que deverá ser avaliado por equipes multiprofissionais do Ministério da
Educação” (GARCIA; LÓPEZ, 2019).
31
na LDB, que deveria acompanhar todas as etapas e níveis de ensino. (BRASIL, 2004).
11
Revogado pelo Decreto nº 7.611/2011.
32
O ano de 2012 foi de grande importância para as pessoas autistas. Nesse ano, foi
estabelecida a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do
Espectro Autista, por meio da aprovação da Lei nº 12.764, conhecida como Lei Berenice
33
Piana12. Essa lei desperta opiniões divergentes entre pesquisadores e ativistas, sendo
considerada por muitos como uma conquista significativa. No entanto, também trouxe à tona
o antagonismo entre famílias de autistas e profissionais da saúde mental (RIOS; CAMARGO
JR., 2019).
Embora a Lei Berenice Piana seja vista como uma conquista por grande parte da rede
que engloba o autismo, ela é alvo de críticas e apresentas problemas significativos.
Inicialmente, presenciamos o retorno do autismo ao rol das deficiências, envolto por esse
manto, um enquadramento que se deu muito mais por uma questão política do que clínica
(FERREIRA E VORCARO, 2019). Além disso, mesmo entre os pesquisadores que não
discutem a problemática do enquadramento do autismo enquanto deficiência, há discussões
sobre a falta de especificidade do texto em relação aos tratamentos, intervenções e ações do
poder público nesse sentido, o que deixa lacunas na forma como a legislação será estabelecida
e efetivada na realidade dos sujeitos. Conforme Rios e Camargo Jr. (2019) esclarecem:
12
Berenice Piana, mulher, militante, mãe de um autista e coautora da Lei nº 12.764, foi homenageada dando
nome a esta lei, uma vez que foi sua articuladora através de iniciativa popular na luta pelos direitos das pessoas
autistas.
34
diz respeito à escolarização, a Lei n°. 12.764 não é clara quanto aos atendimentos
especializados direcionados a esse público, bem como à disponibilização das equipes
multiprofissionais e dos profissionais de apoio que fazem o acompanhamento desses
estudantes no ambiente escolar (COSTA E FERNANDES, 2018). Tal política, embora
proponha uma equiparação dos direitos dos sujeitos autistas ao das pessoas com deficiência,
possui muitos hiatos sobre a forma como tal proposição será efetivada em todos os aspectos
em que ela apresenta (COSTA E FERNANDES, 2018; RIOS; CAMARGO JR., 2019,
PIMENTA, 2019).
Avançando para julho de 2015, foi decretada e sancionada a Lei 13.146, conhecida
como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da Pessoa com
Deficiência. Essa lei, conforme estabelecido em seu Artigo 1º, tem como objetivo afirmar e
garantir os direitos e liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, com foco na
inclusão social e na cidadania, em conformidade com a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados em 2008 (BRASIL, 2015). A
lei apresenta um texto mais abrangente, com uma abordagem didática e detalhada dos direitos
das pessoas com deficiência, fornecendo conceitos e diretrizes que devem orientar tanto as
ações do setor público quanto do setor privado no que diz respeito à inclusão.
35
A Lei nº 13.977, também conhecida como "Lei Romeo Mion", foi sancionada em
janeiro de 2020 e trouxe alterações à Lei Berenice Piana (2012). Essa lei tem como objetivo
principal a criação da Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista
(Ciptea), emitida de forma gratuita. A Ciptea tem como propósito prioritário assegurar o
atendimento e os direitos integrais das pessoas autistas, especialmente nas áreas da saúde,
educação e assistência social, conforme estabelecido pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência
(2015). A Ciptea é um documento válido por cinco anos, que requer revalidação periódica, e
tem como finalidade fornecer um registro quantitativo do número de pessoas autistas em todo
o país. Além disso, a carteira contém informações sobre o indivíduo autista e seu responsável
legal, bem como o código de classificação do autismo na Classificação Internacional de
Doenças (CID).
Tal política tem como principal crítica a ampliação dos espaços de escolaridade, de
maneira que a escolarização dos estudantes em situação de deficiência, autistas e com altas
habilidades/superdotação possa ocorrer integralmente em instituições exclusivas, retirando-se
a obrigatoriedade das matrículas na rede regular de ensino, desvalorizando principalmente os
princípios da inclusão (ROCHA; MENDES; BROGLIA, 2021; SANTOS; MOREIRA, 2021).
O texto está descrito de tal forma que ampara o esvaziamento do atendimento desses
estudantes na escola pública comum, retornando para uma perspectiva segregadora,
propiciando a separação dos alunos público-alvo da Educação Especial em instituições
especiais isoladas. Além disso, o Decreto não descreve as formas de manutenção dos
recursos, nem os deveres do Estado no âmbito da educação pública, além de ampliar a
possibilidade de atuação das entidades privadas e filantrópicas, na medida em que permite que
elas concorram pelo financiamento público (LIMA; MORAES; LIMA, 2021; ROCHA;
MENDES; BROGLIA, 2021).
Constitucional. De acordo com essa decisão, os Decretos Presidenciais não têm competência
para alterar ou excluir direitos e obrigações estabelecidos em normas com força de lei
(ROCHA; MENDES; BROGLIA; 2021).
15
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação.
16
Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil.
38
Conforme apontado por Costa e Fernandes (2018), no Brasil, embora exista uma
ampla gama de publicações que tratam dos direitos e diretrizes para proteção e inclusão social
e educacional das pessoas em situação de deficiência, e mesmo com avanços significativos
nos últimos anos, ainda há uma grande lacuna entre os objetivos e as proposições presentes
nas políticas públicas e os efeitos observados no cotidiano dos sujeitos, especialmente no caso
dos estudantes autistas. É evidente a enorme discrepância entre o que é estabelecido pela
legislação e a realidade do processo inclusivo brasileito.
39
Conforme apontado pelas autoras, a realidade enfrentada pelos sujeitos autistas ainda é
a exclusão, uma vez que a maioria das transformações desejadas no sistema inclusivo não saiu
do papel. Isso valida as discrepâncias existentes entre o quadro legislativo e as ações efetivas
voltadas para a materialização do que está descrito nas políticas públicas inclusivas, que têm
como objetivo atender a todos os sujeitos que são alvo dessas diretrizes.
Essas análises são corroboradas pelo fato de que, de acordo com o Instituto Brasileiro
de Planejamento Tributário (IBPT), o Brasil é um dos países com uma das maiores cargas
tributárias do mundo, porém, apresenta um retorno relativamente baixo em políticas de bem-
estar social, conforme destacado por Olenike et al. (2015, in Costa e Fernandes, 2018). Fato
que está diretamente relacionado à gestão das políticas públicas.
40
De acordo com Libâneo (2012), “muitas das medidas adotadas pelas políticas oficiais
para a educação e o ensino têm o aspecto de soluções evasivas para os problemas
educacionais” (p.16). Essas medidas tendem a excluir os fatores internos das escolas que estão
relacionados ao desenvolvimento do ensino e da aprendizagem dos estudantes. O autor
também discute a forma como o discurso inclusivo tem sido incorporado às políticas públicas
brasileiras, alinhando-se às proposições do Banco Mundial e às reformas educacionais
neoliberais, que apresentam uma estrutura de manutenção das desigualdades sociais, que em
grande medida, operam com “mecanismos internos de exclusão ao longo do processo de
escolarização, antecipadores da exclusão na vida social” (p.24).
17
Conforme aponta a autora, essas disputas dizem respeito à maneira como as políticas são organizadas, à
caracterização do público-alvo, à compreensão dos serviços e funções dos atendimentos oferecidos e aos
parâmetros formativos de todos os profissionais que atuam nesse âmbito de extensão das políticas.
41
É importante destacar que a perspectiva inclusiva adotada pelo Brasil, a partir das
discussões e dos tratados internacionais, envolve um contexto abrangente. Isso inclui, como
salientamos anteriormente, as discussões étnico-raciais, de gênero e orientação sexual, classe
social e necessidades educacionais específicas (ABDALLA; ALMEIDA, 2020), e não apenas
as pessoas público-alvo da Educação Especial. No entanto, nas políticas educacionais
construídas até os dias atuais, principalmente após os anos 2000, quando o governo de Luiz
Inácio Lula da Silva (2003-2006; 2007-2010) começou a fomentar o que se denominou como
"educação inclusiva" (KASSAR, 2011a), fica evidenciado que, embora tenha contemplado
documentos mais abrangentes nos Planos Plurianuais, como o Plano Brasil de Todos:
participação e inclusão - 2004-2007 e o Plano Desenvolvimento com inclusão social e
educação de qualidade - 2008-2011 (KASSAR, 2011b), as políticas e discussões estruturadas
tiveram uma ênfase maior em relação ao acesso e à permanência do PAEE. Essa ênfase foi
estabelecida a partir de análises sistematizadas na relação entre Educação Inclusiva e
Educação Especial (FRANCO; GOMES, 2020).
De tal forma que, quando nomeamos e conceituamos algo, esse processo confere
significados aos sujeitos, seja de forma direta ou indireta, e pode estabelecer estigmas. As
denominações, quando pensadas dessa maneira, “podem ser consideradas como matrizes
conceituais que engendram maneiras de agir em relação às pessoas; concretamente, modos de
relações interpessoais, práticas e até mesmo instituições” (PLAISANCE, 2015, p.231).
No Brasil, conceito de inclusão foi utilizado como uma diretriz que deve orientar as
ações públicas de uma forma mais abrangente, sendo “tanto uma inclusão social quanto a
inclusão escolar” (PLAISANCE, 2019, p.11). A inclusão escolar, nesse sentido, é partícipe
dessa proposta, como um dos caminhos em que o sujeito pode alcançar seus direitos
fundamentais, de maneira que a diversidade possa ser vivenciada e valorizada no âmbito
educativo, trilhada em conjunto com as demais políticas públicas que discorrem acerca do
bem-estar e inclusão social.
Segundo Plaisance (2019), “de maneira geral, o qualificativo especial refere-se a uma
característica considerada diferente em relação à ordem comum ou habitual” (p.2). A partir do
trabalho de Woodill e Davidson (1989), o autor discute como o elemento "especial" pode ser
"mistificador", situando os sujeitos de forma objetificada no campo educacional e tornando-os
suscetíveis a práticas educacionais excludentes, além de criar e reforçar estigmas. Nesse
45
sentido, o termo pode funcionar como “um fator essencial para a manutenção de uma cultura
de separação” (PLAISANCE, 2019, p.2).
de 39% das citações, destaca-se o impacto das representações sociais, estigmas e do modelo
médico construídos em torno do autismo nas diretrizes legais e no ambiente escolar cotidiano,
se revelando como barreiras significativas que dificultam a efetivação da inclusão nas escolas.
O primeiro aspecto destacado, relacionado às lacunas na formação inicial e continuada
dos profissionais da educação, é apontado como uma das principais barreiras para a efetivação
das políticas públicas de inclusão. Essa temática é amplamente citada pelos estudos como um
obstáculo que limita a implementação de práticas inclusivas nas escolas, devido ao despreparo
dos professores e à falta de compreensão sobre o autismo, o uso de recursos e o papel das
salas de recursos multifuncionais. Os relatos de professores e familiares evidenciam a
necessidade de uma formação mais adequada que aborde a compreensão do autismo, as
estratégias e recursos educacionais adequados para atender às necessidades dos alunos autistas
e o entendimento da modalidade de educação especial descrita nas políticas públicas.
A partir dessa realidade vivenciada por grande parte dos professores e pela gestão
escolar, surgem tensões entre os profissionais que atuam nas salas de recursos multifuncionais
e os professores regentes de turma. Conforme Dambros (2018), é comum ocorrer nas escolas
uma responsabilização dos professores das SRMs pela escolarização dos estudantes autistas,
mesmo contrariando as diretrizes em vigor. Nesses casos, os atendimentos não ocorrem no
contraturno, e os alunos são retirados da sala regular para receber esse suporte (FREITAS,
2016; OLIVEIRA, 2017; DAMBROS, 2018; CAMARGO et al., 2020). Essa situação gera um
contexto de conflito, pois a retirada dos estudantes da sala regular para os atendimentos na
sala de recursos multifuncionais, o que prejudica sua participação e integração plena nas
47
atividades educacionais com os demais estudantes. Além disso, acarreta uma sobrecarrega nos
profissionais das SRMs e pode operar uma divisão e uma mal-estar entre eles e os professores
regentes de turma.
uma barreira a ser superada, reforçando os estigmas e limitando o potencial desses sujeitos
(KUBASKI; POZZOBON e RODRIGUES, 2015; OLIVEIRA, 2017; SANTOS, 2017;
ANDRADE, 2019; DAMBROS, 2019; CAMARGO et al., 2020).
Nas últimas décadas, observamos a ampliação dos aparatos legais e das diretrizes que
visam a proteção e promoção dos direitos das pessoas em situação de deficiência e dos
autistas. A mudança dos parâmetros educativos para a perspectiva da educação inclusiva traz
muitas inferências para o campo, uma vez que discorre sobre uma nova concepção acerca do
adaptar. Nesse sentido, ocorre o deslocamento da adaptação centrada na criança em relação ao
meio para uma necessidade das intuições se adaptarem aos contextos educativos plurais
(PLAISANCE, 2015).
As discussões e abordagens acerca do autismo vêm sendo cada vez mais debatidas e
têm alcançado respaldo nos debates internacionais, nas políticas públicas e em produções
acadêmicas e científicas. As ações institucionalizadas e legais têm sido fruto de muita luta das
associações, da comunidade acadêmica e dos próprios sujeitos, para garantir seus direitos
constitucionais e fomentar políticas e práticas que sustentem um sistema de ensino de
qualidade para esse público. Contudo, o campo educativo precisa considerar abordagens
necessárias para cada um, visto que a inserção da criança autista requer um olhar e escuta
atentos, para que não se opere em contraponto a sua exclusão (FERREIRA; VORCARO,
2019).
Mais tarde, em 1943, o psiquiatra austríaco Leo Kanner trouxe em seu trabalho uma
mudança significativa na concepção do autismo, promovendo novas abordagens no uso do
termo e na compreensão do que seria o autismo e sua etiologia. Ele apresentou uma nova
entidade nosológica, desvinculando-o da esquizofrenia (FERREIRA; VORCARO, 2019).
Kanner, em seu estudo pioneiro, analisou 11 crianças com idade inferior a onze anos,
que apresentavam como padrão de comportamento a "incapacidade de se relacionar de
maneira normal com pessoas e situações desde o início de suas vidas" (KANNER, in
OLIVEIRA, 2016, p.18). Ele entendeu que se tratava de uma condição inata, de origem
biológica. Entre os aspectos comuns observados nas crianças, destacaram-se o isolamento, as
estereotipias, a relação diferenciada com a linguagem e o tratamento com os outros nas
situações de socialização. A partir dessa análise pioneira de Kanner, o autismo foi dissociado
18
O termo no plural, autismos, evidencia os diferentes tipos de autismo. Utilizado por muitos autores,
principalmente no campo da Psicanálise, ele evidencia as diferentes expressões do autismo (FERREIRA E
VORCARO, 2019).
50
Um ano depois, o médico Hans Asperger (1944-1991) publicou "A psicopatia autista
na infância", no qual avaliou um grupo de crianças com as quais trabalhava e destacou
problemas relacionados à interação social, à comunicação (verbal e não verbal) e ao
comportamento. No entanto, seus estudos levaram a um novo quadro que mais tarde recebeu a
denominação de Síndrome de Asperger, mas que se assemelhava em grande parte ao autismo
analisado por Kanner, com base no conceito de “autismo de alto funcionamento” (WING,
1991 in FERREIRA E VORCARO, 2019).
É importante ressaltar que nas primeiras edições dos DSMs, como o DSM-I (1952) e o
DSM-II (1968), as condições etiológicas e o paradigma psicossocial recebiam mais ênfase no
tratamento dos transtornos mentais. No caso do autismo, o modelo nosográfico também
passou por modificações ao longo das publicações do DSM, evoluindo de um distúrbio
afetivo para um distúrbio adaptativo (PIMENTA, 2012).
É importante destacar, como apontado por Laurent (2014), que o DSM não é um
sistema classificatório qualquer. Seu uso e aplicação têm impacto nas intervenções
disponibilizadas pelos planos de saúde e também é utilizado como referência em questões
legais. No entanto, o autor também alerta para as problemáticas envolvidas na concepção
desse manual, uma vez que “pretende ‘administrar’ o campo da saúde mental de acordo com
um sistema que propõe classificações sob forma de hipóteses” (LAURENT, 2014, p.173).
De tal forma, essa "administração", que está alinhada a um sistema classificatório que
dispensa discussões teóricas mais profundas, uma vez que se alega ateórico, e se mantém de
forma que as discussões estejam centralizadas na quantidade de comportamentos e sintomas
observáveis que os sujeitos venham a apresentar, é necessária certa cautela e crítica sobre o
que tem se proposto enquanto hipóteses científicas, mas que na verdade se aproxima mais de
uma testagem em massa, além de um mecanismo de controle que tem efeitos segregadores e
pode ter consequências nocivas para os sujeitos a quem se diz identificar (HOLANDA, 2014;
LAURENT, 2014).
O aparente aumento dos casos de autismo apontados anteriormente pode ser pensado a
partir de diferentes aspectos. Podemos questionar a assertividade dos diagnósticos que têm
sido feitos, principalmente após as mudanças realizadas em tais parâmetros médicos, uma vez
que houve uma extensão das possibilidades de sintomas e características dentro do espectro
(LAURENT, 2014). Assim, esse movimento nos levou a duas reflexões importantes: os
diagnósticos têm sido feitos de maneira mais eficaz e, por isso, temos um aparente aumento
no número de casos? Ou, devido à abrangência e inespecificidade dos diagnósticos, temos
pessoas sendo diagnosticadas de forma equivocada?
53
Cabe ressaltar que é necessário fazer uma clara diferenciação entre o que esses ditos
aumentos sugerem. É possível afirmar com certa segurança (SANTOS; ELIAS, 2018) o
aumento exponencial das matrículas realizadas nas escolas regulares por estudantes autistas
nos últimos anos, principalmente após o ano de 2012 com a promulgação da Lei Berenice
Piana. Essa lei os inclui na modalidade da Educação Especial, reforçando seus direitos e
fortalecendo o movimento inclusivo nas escolas, uma vez que as normas sugerem que eles
sejam matriculados preferencialmente no ensino regular. No entanto, como descrevem Santos
e Elias (2018), é preciso estar alerta a esses números, visto que os dados colhidos pelos
autores acerca da caracterização das matrículas de alunos autistas nas regiões brasileiras
descrevem uma trajetória escolar irregular desse público, relatando aumentos e quedas
sequenciais. Esse dado interroga a relação de permanência desses alunos e a efetividade das
ações e práticas inclusivas estabelecidas no ensino regular ao longo do processo de
escolarização.
Além disso, é importante salientar que, embora a Lei Berenice Piana tenha garantido
legalmente o acesso dos sujeitos autistas às políticas que contribuem para sua formação e
experiência cidadã, essa medida acaba por normatizar o autismo nas políticas públicas,
colocando-o no rol das deficiências, proposição é acentuada pelo campo médico. Embora não
haja consenso entre os pesquisadores desse campo, essa caracterização acarreta consequências
significativas no tratamento do autismo em diversos contextos políticos, como no âmbito
educacional e da saúde.
Lajonquière (2019) traz reflexões importantes para pensarmos essas questões. Em seu
texto "As crianças, a educação e os sonhos adultos em tempos de autismo", o autor discorre
sobre o que ele considera uma "tara" que tem sido observada nos últimos anos em relação ao
autismo na sociedade, de forma semelhante à obsessão pelos extraterrestres na década de 60.
O autor faz um alerta sobre a maneira como esse questionável interesse pelo autismo,
combinado com os discursos médicos e os "tecnocientificismos" que nos cercam a todo
momento, contribuem para interrogarmos o que realmente estamos vivenciando nesses
tempos de autismo na modernidade. É relevante salientar, que segundo o autor, o evidente
aumento do interesse da sociedade pela temática do autismo, assim como as pesquisas e todo
o conhecimento construído em torno dele, não significa necessariamente que estejam sendo
considerados os interesses de cada sujeito autista de maneira adequada.
54
Diante desse dilema que pode vir a assombrar uma parte da população acerca das
formas que o autismo assume hoje na sociedade e das especulações e discursos acalorados
sobre sua propagação e aparente aumento como: as mudanças genéticas, a relação com o uso
de vacinas e a utilização dos agrotóxicos e fertilizantes na agricultura, entre outras muitas
possibilidades encontradas nos discursos, alguns de cunho científico e outros compartilhados
no senso comum, Lajonquière (2019) destaca apontamentos necessários para que possamos
organizar melhor nossas considerações sobre o assunto, especialmente no que diz respeito a
esse suposto aumento dos casos de autismo ou à necessidade de seu mapeamento para obter
respostas conclusivas. O autor apresenta a seguinte análise:
Pretender contabilizar todas as crianças, uma por uma, para sabermos que se têm
mais ou menos crianças sindrômicas que antes é impossível. Para além do tamanho
do levantamento, como estaremos certos de estar contabilizando o mesmo e não
coisas parecidas, mas não de fato a mesma coisa? Porém, supondo que mesmo essas
impossibilidades resolvidas, ainda teríamos que resolver a questão comparativa com
o passado. E aqui já é querer demais! Toda pretensão com vistas a elaborar um saber
total sobre os chamados fatores em causa do autismo infantil, ou de qualquer outra
dita síndrome, não passa de mais uma tola pretensão que acabará nos lançando
contra o famoso dilema, sobre o que veio primeiro: o ovo ou a galinha? Ou seja,
vivemos a vida com a criança desse jeito porque é autista? Ou é autista porque
vivemos a vida desse jeito com ela? (LAJONQUIÈRE, 2019, p.44)
Essa multiplicidade de teorias que têm surgido nos últimos anos, como apontado por
Ferreira e Vorcaro (2019), abrange concepções organicistas e genéticas, que veem o autismo
como uma deficiência pela perspectiva do déficit; as concepções desenvolvimentistas que
buscam fortemente métodos comportamentais; e a Psicanálise que se preocupa com a
constituição psíquica dos sujeitos. Essas diferentes perspectivas tornam o campo do autismo
extremamente complexo, destacando que mesmo entre os estudos relacionados, não há uma
única e assertiva definição do autismo em termos científicos precisos.
aspecto importante, que é refletir sobre as intervenções e a realidade vivida por esses sujeitos
com base nas possibilidades que lhes são oferecidas no cotidiano.
Tais métodos, como o TEACCH (Treatment and Education of Autistic and related
Communication-handicapped Children - Tratamento e Educação para Autistas e Crianças com
Déficits relacionados com a Comunicação), ABA (Applied Behavior Analysis - Análise do
Comportamento Aplicada), Floortime (tempo de chão) e o Programa Son-rise, são
predominantemente adaptativos e têm como objetivo extinguir comportamentos considerados
desviantes por meio de soluções reeducativas. Eles visam fornecer estratégias e ferramentas
aos indivíduos autistas para que possam se ajustar aos parâmetros normativos da sociedade,
especialmente no contexto educacional, que é o foco deste estudo. Laurent (2014), citando G.
Bernot (2012), destaca a ampla adoção das abordagens cognitivo-comportamentais, que
movimentam entre 15 e 42 bilhões de euros por ano19, demonstrando a influência e a presença
significativa dessas abordagens nas intervenções e acompanhamentos relacionados ao
autismo. Isso evidencia a força e o espaço que essas abordagens têm conquistado nesse
campo.
19
Bernot G., “Moi autiste, face à la guerre des lobbies”, Le Monde, março de 2012 (disponível na internet) –
citado por Laurent (2014).
56
A ética nos métodos comportamentais é uma indagação que deve ser questionada,
como apontado por Laurent (2014). O autor destaca o relato de Michelle Dawson, uma
pesquisadora autista canadense, que questiona a posição ética dessas intervenções em um
artigo publicado em 200420. Dawson argumenta que o autismo vai além do comportamento e
enfatiza a importância de compreendermos as dinâmicas e o funcionamento do cérebro
autista, em vez de nos concentrarmos apenas em condicionar comportamentos e suprimir suas
formas de existir no mundo. A pesquisadora também levanta preocupações sobre as
consequências dessas abordagens comportamentais, argumentando que, embora possam ser
eficazes, ainda não se tem pesquisas científicas que abordem questões centrais para os sujeitos
autistas diante das supressões realizadas nessas intervenções. Essa falta de compreensão das
necessidades e perspectivas dos sujeitos autistas pode ter implicações negativas em seu bem-
estar e em seu desenvolvimento.
20
“Dawson. M., The misbehaviour of behaviourrists. Ethical challenges to the autismo-ABA industry – citado
por Laurent (2014).
57
Antes de prosseguirmos nas possíveis relações que podem ser estabelecidas entre a
Psicanálise e o autismo, cabe ressaltar que não pretendemos nos aprofundar nas
especificidades da clínica com sujeitos autistas, bem como em suas características
pormenorizadas enquanto estrutura psíquica. No entanto, nos propomos a investigar, a partir
da interface com a Psicanálise, caminhos que nos ofereçam furos à lógica da pedagogia
contemporânea, às terapias comportamentais e ao discurso médico biologizante, que, em
grande parte, limita as crianças ao diagnóstico e nega sua posição enquanto sujeitos
(MANNONI, 1977).
Historicamente, desde o final do século XIX, vivenciamos uma relação com o discurso
médico em que ele ocupa um lugar de extrema relevância diante das dinâmicas da sociedade,
como apontado por Mannoni (1977) em sua obra "Educação Impossível", indicando-o como o
lugar da religião, em que alguns "adotarão até o título de catecismo" (p. 28). A partir desse
cenário, temos instaurado o lugar do saber científico que vai reger diversos setores da nossa
sociedade, incluindo, com entusiasmo, a Educação. Concordando com as observações de
Mannoni (1977) em seu trabalho e com a análise de Voltolini (2011) sobre esse movimento,
no qual vemos o desenvolvimento da Pedagogia como uma ciência que busca respostas,
levando o educador a eleger e construir metodologias eficazes para o maior número possível
de estudantes. Ao encontrar dificuldades nessas relações no interior da escola, muitas vezes
eles recorrem aos discursos médicos, com possíveis diagnósticos, e ao suporte dos chamados
profissionais especialistas.
diagnóstico. O objetivo não é encontrar um método ou estratégia correta, mas sim uma
interrogação para o entendimento do processo singular dos sujeitos e do processo educativo.
Propõe-se que, no que se refere à escolarização, possamos compreender e sustentar a
complexidade e a instabilidade (VOLTOLINI, 2004) que fazem parte do cotidiano escolar e
estarão presentes nas ações e práticas escolhidas no ato educativo. Partimos do pressuposto de
que o ato educativo não possui um manual (LAJONQUIÈRE, 1997), uma vez que não se trata
de fórmulas exatas que possam ser aplicadas em larga escala, pois estamos lidando o tempo
todo com a diferença inerente ao ser humano.
A Psicanálise se concentra nas marcas simbólicas que são construídas nas relações
entre os sujeitos, reconhecendo cada um requer um direcionamento único, que necessita a
todo instante de uma “re-invenção” de metodologia, uma vez que cada pessoa autista possui
uma posição diferente no mundo e estruturações subjetivas distintas (JERUSALINSKY,
2012), ainda que denotem homologias de estrutura (LAURENT, 2014). Conforme Pimenta
(2019a), para a Psicanálise “qualquer intervenção que exclua o sujeito que lá está se mostra
em desacordo com seus princípios éticos” (p.1258). Embora a interação social consentida
possa ser um desafio para o sujeito autista, ao colocarmos sua particularidade como cerne do
processo, temos a possibilidade de atuar de acordo com suas próprias manifestações e
invenções, guiados pelo próprio autista.
Nessa proposição, diferente das estratégias adotadas por grande parte das teorias
comportamentais, que buscam extirpar os comportamentos ditos “dissonantes”, tais
comportamentos se caracterizam como
O clínico seguirá alguns procedimentos com a pessoa com autismo. Muitos deles
podem ser transpostos para a atuação do educador em sala de aula, uma vez que este
reconheça o modo de funcionamento da criança com autismo e verifique o que se
torna pertinente no trato com seu aluno (PIMENTA, 2019b, p.15).
Além disso, a psicanálise interroga as implicações no campo educativo e o risco de
conceber os sujeitos autistas apenas pela perspectiva do déficit, ignorando o funcionamento
particular desses estudantes (PIMENTA, 2019b).
De acordo com Jerusalinsky (2015b), é essencial que alguém seja capaz de fornecer
traços e sinais acessíveis ao sujeito. Na escola, esse profissional poderia usar as pistas que a
criança oferece nas
formas de expressão e contato que o autista deixa entrever, sem pretender encaixá-lo
no processo de aprendizagem cumulativo e aproveitando as janelas pulsionais para
estabelecer pequenas pontes – das quais é preciso aceitar sua instabilidade tentando
puxá-las para alguma constância (JERUSALINSKY, 2015b, p.257).
A partir desse momento, ao captar e sustentar os momentos de conexão com o sujeito
autista, surge a oportunidade de estabelecer um "traço de reconhecimento recíproco" que
permita ao sujeito alcançar o outro que o interpela. Nesse sentido, “o autista não tem que ser
chamado, é o outro que precisa ir ao seu encontro para reinvocá-lo para dentro do contexto”
(JERUSALINSKY, 2015a, p.258).
61
Maleval (2017) enfatiza que a Psicanálise, como abordagem, pode alcançar os sujeitos
autistas ao confiar nas construções que eles tecem, o que favorece a instituição do laço
transferencial. Ela apresenta um olhar “original do autista”, enquanto um “trabalhador
incessante em seu propósito de regulação” (PIMENTA, 2003, p.136). Ao contrário dos
métodos comportamentais de aprendizagem que buscam uma técnica eficaz baseada em uma
perspectiva de problema e solução (LAURENT, 2014), que consederam o sujeito como
alguém desprovido de saber em que suas invenções são percebidas como obstáculos
(MALEVAL, 2017), a Psicanálise se preocupa em se aproximar dos sujeitos, reconhecendo
em suas singularidades, ações e estereotipias uma passagem viável da imitação à identificação
(JERUSALINSKY, 2015), guiada pelos interesses e sustentada pelos desejos do sujeito,
mesmo diante dos embaraços e impasses inerentes ao processo (CULLERE-CRESPIN,
2010).
Ao priorizar os saberes produzidos pelo sujeito em vez dos sintomas que ele apresenta,
abrimos espaço para uma diversidade de situações que “vão muito além do que pode ser
diagnosticado apenas com uma sigla, o que, por sua vez, pode dar lugar a soluções
inéditas”(CIRINO, 2015, p.38, in ROCHA LAGO, 2017, p.43). Nesse sentido, o
compromisso psicanalítico reside na aposta na criança (FERNANDES, 2015) em que
articulação entre os campos da Psicanálise e da Educação, aliada às pesquisas clínicas no
trabalho do educador na escolarização, sobretudo no processo inclusivo, permite que ele
amplie suas possibilidades de atuação. Assim como lhe confere maior autonomia para lidar
com as situações enfrentadas no cotidiano de sua prática (PIMENTA, 2019b), do mesmo
modo que sustenta as concepções do educador, para que não caia nas “tentações autoritárias
do modelo único” (LAURENT, 2014, p. 24).
62
Apoiada nas contribuições de Lacan, Vorcaro (2003) ratifica que, no trabalho com
crianças no universo da psicopatologia, fundamenta-se nos processos de transmissão
simbólica que possibilita que elas construam de forma singular
Catão e Vivès (2011) constatam, a partir das narrativas clínicas sobre as crianças
autistas, que elas não padecem de deficiência intelectual, confirmando as descrições de
Kanner em seus estudos sobre o autismo. O que se pode avaliar é que tal quadro possa vir a
integrar as características do sujeito, principalmente daquele que não se encontra em
tratamento. Contudo, tal condição estaria articulada de maneira secundária como efeito do não
uso de algumas zonas cerebrais (CATÃO; VIVÈS, 2011).
psíquica, assim como a escuta, que difere da audição. Enquanto uma é uma função psíquica, a
outra é uma função do órgão.
A voz se diferencia da fala, uma vez que esta última funciona como um instrumento
que confere sentido às funções do sujeito, conectando o "a-significar e o significante". A voz
é considerada o "terceiro termo deste nó" (Catão; Vivès, 2011, p. 84). Assim, a concepção de
voz na Psicanálise difere daquela utilizada no contexto cotidiano, pois não se reduz apenas às
características sonoras. “O som é a vestimenta imaginária da voz. A prosódia é seu registro
simbólico”. A voz é, assim, a primeira a ser constituída e também é articuladora “por
excelência da necessária incorporação da linguagem” (CATÃO; VIVÈS, 2011, p.85), que
possui dimensão de enunciação e endereçamento.
Esta criança está em choque. Ela se sente danificada, fraca e impotente. A reação,
para contra-atacar isso, foi desenvolver práticas que lhe dessem ilusão de ser
impenetrável, invulnerável, e estar no controle absoluto (ÁVILA, 1997, p.15).
De acordo com o autor, a criança autista desenvolve uma proteção, uma "carapaça",
que a isola do mundo exterior, ao mesmo tempo em que se torna uma barreira para o seu
acesso a ele. Dessa forma, podemos observar na estrutura autística uma defesa contra o
excesso de estímulos que, para os sujeitos autistas, poderiam desintegrá-los ou torná-los
64
estrangeiros a si mesmos na busca por se engajar nesse mundo (MALEVAL, 2017). O maior
dilema enfrentado por eles seria a perda se sua existência (ÁVILA, 1997).
Retomando a questão da fala, conforme apontado por Catão e Vivès (2011), ela não
pode ser considerada algo natural, mas sim uma conquista. “O exercício da função
performática da fala pela criança indica que ela conseguiu percorrer o caminho complexo e
sutil que a introduz no campo da linguagem” percorrendo do “barulho real ao som e a
música”, assim como “da música a fala” (p.87). Para que a fala se estabeleça, o sujeito precisa
utilizar sua voz, e isso não pode ser resultado de um processo de adestramento, mas sim da
estruturação do funcionamento psíquico.
De acordo com Maleval (2009 in CATÃO; VIVÈS, 2011), o sujeito autista sofre um
“excesso voz”. A criança autista não pode ser compreendida como alguém que não se
comunica (MALEVAL, 2017). Ela se comunica, no entanto, escolhendo não se engajar
totalmente com o Outro, recusando-se a se alienar completamente em seu campo. Muitas
vezes, ela recusa a posição de enunciador e a própria fala. Em muitos casos, quando um
autista fala, o faz de maneira que dilui a dimensão enunciativa, reproduzindo falas que se
desconectam da dimensão subjetiva, manifestando-se por meio de ecolalias e estereotipias
(CATÃO; VIVÈS, 2011).
Conforme pontuado por Ávila (1997), uma instituição adequada na atenção às crianças
autistas estaria disposta em sustentar uma profunda dúvida sobre o que se propõe. O autor
defende que essa instituição deveria abandonar as certezas, uma vez que sua abordagem
terapêutica não seria baseada em um método fixo, mas estaria submetida às particularidades
singulares de cada criança. Isso está em consonância com o método proposto por Freud, no
qual o tratamento é recriado a cada criança, sem a intenção de aplicá-lo a outros sujeitos. Isso
implica em se afastar de certos saberes pré-estabelecidos e recusar sua aplicabilidade
(VORCARO, 2003).
65
4 ESTADO DA ARTE
Dessa forma, a realização do Estado da Arte se revela como uma valiosa ferramenta
para a construção do conhecimento, proporcionando uma visão abrangente e atualizada do
cenário de pesquisa sobre a escolarização de crianças autistas no contexto brasileiro. Ao
identificar lacunas, tendências e contribuições existentes, abre-se espaço para o
desenvolvimento de novas discussões e investigações, bem como para a formulação de
propostas e intervenções que possam pensar em novas estratégias relacionadas às práticas
pedagógicas e às ações educacionais. A partir desse panorama, é possível dialogar com as
bases teóricas, direcionando nossos esforços para a construção de uma educação inclusiva e
de qualidade, buscando a participação ativa das crianças autistas no contexto escolar e social.
Para esse estudo, foi adotada uma abordagem qualitativa, valendo-se de um estudo de
caso único. Nele, a autora analisou o sujeito na interação com o acompanhamento terapêutico,
visando a subjetividade e as perspectivas inclusivas desenvolvidas a partir dos processos
característicos da criança. A pesquisa observou a relação da criança com a linguagem, o laço
social, o brincar e a aprendizagem, a fim de investigar os processos psicológicos que
permeiam a inclusão. Ao dialogar com a concepção clínica, o estudo aborda as demandas que
vão além do âmbito escolar e individual.
21
Perspectiva fomentada por Santos (2013) que descreve uma forma totalizante de se perceber as diferenças
como pertencentes a um cenário maior, considerando as dimensões culturais, políticas e práticas que se
comportam de maneira complexa e dialética.
73
em uma proposta quase experimental do tipo A-B-C22, considerando a creche como espaço
privilegiado para o desenvolvimento das crianças na infância.
Olmedo (2015) entende que a comunicação alternativa e aumentativa tem sido cada
vez mais indicada na literatura e utilizada como recurso importante e essencial para
complementar e dar suporte no processo de inclusão de crianças autistas. Isso amplia e
fortalece o uso da linguagem, especialmente quando esta se torna limitada, possibilitando uma
comunicação mais eficiente nas práticas e vivências escolares. O sistema escolhido, o PECS –
Picture Exchange Communication System, é um recurso de baixa tecnologia que, segundo a
autora, auxilia a superar os déficits presentes na oralidade dos alunos autistas. Ele permite que
essas crianças se expressem de forma mais funcional e aumentem o uso da linguagem oral,
tendo potencial para melhorar suas relações com seus pares.
Diante da pesquisa, a autora verificou que houve um interesse por parte dos
educadores em relação ao tema. No entanto, observou-se que muitos deles careciam de
conhecimentos e formação específica, tanto sobre o autismo quanto sobre a Comunicação
Alternativa e Aumentativa, que possibilitassem práticas e ações mais significativas no
cotidiano escolar. A autora destaca que esse processo beneficia não apenas os alunos com
TEA, mas toda a rede escolar, uma vez que promove uma maior interação e compreensão
desses alunos por parte de todos os profissionais envolvidos na escola. Contudo, a autora
ressalta as limitações do estudo devido ao tempo insuficiente para avaliar a efetividade da
proposta. Isso evidencia a necessidade de ações contínuas que apoiem a inclusão e uma escola
para todos.
Almeida (2016) realizou uma análise da relação entre escola e família como elementos
essenciais no processo de desenvolvimento de crianças com autismo, reconhecendo seu
potencial para impactar a realidade dessas crianças de várias maneiras. O objetivo do estudo
foi compreender como essa interação ocorre no contexto escolar, por meio de uma abordagem
qualitativa, utilizando estudo de caso múltiplo. O estudo envolveu pais e professores que
estavam presentes no processo de inclusão de crianças com TEA na educação infantil e nos
anos iniciais do ensino fundamental.
22
As propostas quase experimentais exprimem a impossibilidade do pesquisador em controlar todas as variáveis
do estudo. A configuração A-B-C evidencia as três etapas utilizadas pelo autor: observação, intervenção e
avaliação.
76
A autora reflete sobre o papel fundamental da família como o primeiro ambiente social
no qual o indivíduo interage, reconhecendo-o como sujeito e contribuindo para a construção
de sua identidade e subjetividade por meio dessas interações. A família se torna o referencial
direto para cada criança e exerce influência na maneira como o sujeito estabelece suas
relações com o mundo, moldando sua formação individual e coletiva, práticas culturais e
possíveis padrões de comportamento.
A pesquisadora também observou que essa interação entre família e escola pode gerar
descontentamento, afetando a relação entre ambas as partes. As famílias relataram a falta de
interesse e disponibilidade por parte dos professores, além de ansiedade e angústia após o
diagnóstico, enquanto a instituição escolar demonstrou rigidez na manutenção do diálogo e
nas preocupações da família. Os professores, por sua vez, demonstraram preferência pelo uso
de agendas como principal meio de comunicação e foco nas atividades relacionadas ao
aprendizado. Almeida (2016) destaca a ineficácia dessas relações, uma vez que as famílias
não se sentem atendidas em suas necessidades e demandas diante das informações recebidas
durante a escolarização de seus filhos autistas.
Em seu trabalho, Freitas (2016) aborda o acesso de crianças autistas à rede regular de
ensino, ressaltando sua natureza recente e os desafios envolvidos. A autora enfatiza que a
inclusão não pode ser compreendida de maneira uniforme, pois não existem caminhos únicos
para lidar com essa questão. O estudo foi realizado de forma qualitativa, com base em um
estudo de caso único, visando observar como o processo de escolarização se desenrola na rede
regular e como as práticas e políticas vivenciadas impactam a vida escolar desses alunos.
(FREITAS, 2016, p.58), repercutindo na maneira como essas crianças lidam e constroem sua
subjetividade.
Com base em alguns conceitos de Freud e Lacan, bem como em seus comentadores
contemporâneos, compreende-se que o autismo está relacionado à falta de conexão das
operações psíquicas fundamentais. Rocha Lago (2017, p.27) argumenta que isso ocorre
devido ao "fracasso da montagem da unificação do corpo próprio devido à não instauração da
operação psíquica do estádio do espelho; e a falha da instauração do circuito pulsional". A
autora trabalha, então, com as questões centrais que fundamentam a concepção da
subjetividade dos sujeitos, as quais serão fundamentais na investigação sobre o autismo nas
interações com o outro e no processo inclusivo.
78
Ainda em relação aos diagnósticos, Rocha Lago (2017) salienta que essa carga
científica que acompanha muitas vezes o discurso acerca dessa temática atua de forma que
deslegitima a subjetividade e a autonomia dos sujeitos. Além disso, essa configuração acaba
por recriar novos manejos e estratégias que irão afetar os sujeitos autistas na forma com a qual
lidam e constroem essa subjetividade negada. Dessa forma, essa caracterização diagnóstica
restringe tanto as ações e práticas dos educadores, como também a própria condição do aluno
diante dessas categorizações de sua existência, o que acaba por influenciar a forma como eles
se percebem nesse contexto.
Rocha Lago (2017) observou que o movimento que envolve as pessoas com autismo,
considerando o aumento significativo de casos nos últimos anos, tem levado à "naturalização"
de uma criança estigmatizada, como sugere a autora. Nesse sentido, a escola desempenha um
papel fundamental na manutenção e construção da linguagem e do simbólico que permeiam o
desenvolvimento dos sujeitos envolvidos nessa experiência, podendo ter reflexos negativos ou
positivos no contexto escolar. A autora ressalta a necessidade de uma perspectiva de educação
inclusiva que esteja pautada nos sujeitos, independente se essa escolha trará garantias na
práxis docente.
23
Modelo criado por Stanley Greenspan e Serena Wieder. DIR: Desenvolvimento, Diferenças Individuais e
Relacionamento, utilizados na construção de perfis de desenvolvimento. Floortime, técnica de brincar no chão.
81
A autora destaca que o processo emocional das mães é influenciado por várias
questões. Suas experiências afetivas são moldadas pelos contextos sociais e históricos em que
estão inseridas, que carregam crenças, padrões, normas e princípios que moldam a sociedade
e constroem as subjetividades. Portanto, cada experiência carrega um traço característico e
único, visto a pluralidade social e cultural presente na estruturação simbólica dos sujeitos.
atenuar as possíveis dificuldades no percurso. Nesse sentido, é na escola que essas crianças
estarão vivendo uma socialização que sai do âmbito da família e, consequentemente, desperta
nas mães expectativas acerca da oportunidade de mudanças sobre os padrões e perspectivas
construídas em relação ao autismo.
Monteiro (2019) entende que o encontro entre os profissionais que tratam do autismo é
muito importante na estruturação de manejo e estratégias que garantam estímulos e respostas
mais adequadas a cada criança. Assim, a escola seria esse lugar onde os saberes e ações se
convergem e se integram ao cotidiano escolar. Esse movimento, segundo ela, permite uma
cooperação em que todos os agentes serão beneficiados, à medida que, estreitando os laços e
as trocas, todo o processo poderá caminhar com mais segurança, permitindo que tanto os
profissionais quanto os familiares apreendam de maneira mais tangível o TEA, bem como a
especificidade de cada sujeito.
Por outro lado, a autora salienta que apenas a afetividade não é suficiente para apoiar
esse processo, uma vez que os estímulos e benefícios adquiridos podem ser desmantelados
diante dos obstáculos encontrados no cotidiano escolar. Todo o processo inclusivo é
complexo e envolve políticas educacionais, recursos didáticos e financeiros, entre outros, que
podem gerar conflitos na dinâmica escolar. Nesse sentido, é necessário buscar ações
empáticas e democráticas que considerem os sujeitos e promovam o diálogo, sempre
procurando atribuir significados humanizados que reconheçam a singularidade dos deles
diante do processo inclusivo.
O autor afirma que "o conjunto normativo para o AEE se inclina mais para legislações
simbólicas, para demonstração ilusória da capacidade de ação do Estado (legislação-álibi)"
(SANTOS, 2019, p.160). Isso se reflete nos tratados jurídicos nacionais e internacionais que
regem a perspectiva inclusiva, mas que não garantem a efetivação deles na realidade escolar
cotidiana e na qualidade das ações e práticas educativas. Portanto, o autor constata que há
uma longa trajetória para que a inclusão se torne mais realista e palpável, sendo necessário um
olhar heterogêneo e amplo, no qual a diversidade possa ser genuinamente vivenciada.
84
25
Esses professores tinham como função, orientar, supervisionar, oportunizar material, demandar
documentações gerais e também apoiar as assessorias da APAE na escola.
86
Na análise realizada, a autora identificou alguns pontos-chave que são relevantes para
a investigação no campo da inclusão das pessoas autistas no contexto educacional. Entre esses
pontos, destacam-se a relação entre exclusão e inclusão na educação, os desafios presentes na
legislação relacionada à inclusão e a especificidade do Transtorno do Espectro Autista. A
autora observou que a atuação do poder público tem sido insuficiente e de natureza
secundária, o que se reflete no âmbito municipal em um atendimento precário que não está em
conformidade com as diretrizes estabelecidas na legislação.
A pesquisa também destaca a formação dos professores como um fator relevante que
reflete as dificuldades encontradas no ambiente escolar, evidenciando falhas na
implementação das políticas públicas. A autora ressalta que a ausência de políticas de
formação contínua dos educadores contribui para a manutenção das desigualdades
educacionais, privilegiando certos grupos e excluindo os diferentes. Isso ocorre porque a
formação tende a homogeneizar os estudantes por meio de um modelo, tornando a inclusão
um problema em vez de um direito e uma prioridade da educação. A pesquisadora enfatiza a
necessidade de reflexão e defesa da inclusão escolar como um movimento em prol do direito
de todos à educação, além da importância crucial da implementação e promoção de políticas
públicas voltadas para essa temática e para as necessidades específicas dos estudantes autistas.
contribuiria para a melhoria das práticas pedagógicas e para um atendimento mais adequado
às necessidades desses estudantes.
É a partir dessa análise que a autora utilizará a psicanálise como alicerce para
compreender e superar esses modelos já estabelecidos, que desconsideram os processos
históricos e sociais no desenvolvimento das crianças autistas, reduzindo sua identidade ao
diagnóstico.
88
Dambros (2018) conduziu uma análise em sua tese sobre como os processos
pedagógicos estão sendo desenvolvidos nas salas de aula regulares e como os estudantes
autistas estão experienciando o movimento de inclusão na educação. A pesquisa foi delineada
por meio de levantamentos bibliográficos e análise de documentos e dados oficiais
relacionados ao tema. Como parte da metodologia, a autora realizou pesquisas de campo em
duas escolas de Ensino Fundamental e duas escolas de Educação Infantil no município de
Lins, em São Paulo. Um total de 11 educadores foram entrevistados utilizando uma
abordagem de entrevista semiestruturada, com três eixos de discussão: o olhar do educador, o
olhar para a criança e o olhar para a escolarização.
A autora destaca que a forma como nos organizamos como sociedade, particularmente
a maneira como a escola conduz suas práticas, tem como resultado ações de curto prazo
permeadas por burocracia. Diante desse processo, as práticas educativas voltadas para alunos
89
com deficiência requerem ainda mais atenção, pois não se limitam apenas à inclusão desses
estudantes no ambiente regular da escola, mas envolvem uma prática social mais ampla.
Nesse sentido, ela ressalta a importância de o trabalho pedagógico estar fundamentado em
metodologias e recursos científicos, aliados a uma abordagem humanizada desses processos.
Além disso, é enfatizado o caráter cultural, em vez do biológico, que permeia todo o processo
de desenvolvimento das crianças inseridas em um contexto coletivo e que influencia as
formas pelas quais nosso sistema escolar funciona. No caso específico das crianças autistas,
elas também estão imersas nessa cultura, embora possam ter maneiras diferentes de se
apropriar das características do ambiente e das relações que se estabelecem durante o processo
de socialização dos sujeitos.
Conforme apontado por Dambros (2018), a formação dos professores é uma questão
de grande relevância, uma vez que esses profissionais enfrentam diversas dificuldades ao
trabalhar com estudantes autistas. Muitas vezes, sua formação é insuficiente e limitada, não
abrangendo uma educação integral para esse público no que se refere à socialização,
linguagem, cognição e desenvolvimento. Essa lacuna na formação contribui para a
perpetuação de estigmas e preconceitos, alimentando um misticismo em torno do autismo.
Diante dessas questões, a autora destaca a importância de disponibilizar publicações sobre o
autismo no cotidiano escolar, a fim de promover maior conhecimento e compreensão sobre o
tema. Além disso, ressalta a necessidade de uma configuração escolar inclusiva, que seja
integrativa e permeie toda a estrutura educacional de forma dialógica, de maneira que seja
caminhar em direção a uma realidade menos excludente e proporcionar uma educação mais
inclusiva para os sujeitos autistas.
Com base em suas análises, a autora ressalta a concepção de Voltolini (2004b) de que
a psicanálise pode fazer furor à noção técnica que objetifica os sujeitos, possibilitando uma
postura ética e atenta à subjetividade destes, trazendo “uma política de identificação das
diferenças como aspectos singulares e não tipológicos” (NASCIMENTO, 2019, p.77). A
autora estabelece um diálogo com a perspectiva de Lajonquière (1999), que foge da dimensão
inclusiva que busca a adaptação dos sujeitos com base em diagnósticos, o que limita o escopo
do processo inclusivo. Dessa forma, a psicanálise proporciona um outro viés de percepção e
análise.
26
Termo utilizado pela autora.
91
família permite observar as implicações que o processo diagnóstico gera para elas, o que
repercute na forma como as crianças experimentam a inclusão no âmbito escolar. A autora
também reflete sobre os procedimentos desgastantes enfrentados pelas famílias na busca por
abordagens que possam proporcionar um melhor desenvolvimento e aprendizagem para seus
filhos. Além disso, destaca as situações de preconceito, exclusão e a visão clínica que se
restringe ao diagnóstico, não considerando o sujeito presente. A autora também ressalta as
questões do senso comum e das crenças dos profissionais da saúde e da educação, que afetam
a compreensão dos familiares e as abordagens decorrentes disso.
Tambara (2017) realiza uma investigação sobre a compreensão das mães de alunos
com autismo em relação ao início do processo de escolarização de suas crianças na Educação
Infantil. A autora aborda conceitos relacionados à infância, à função das escolas na atualidade
e ao processo de inclusão, incluindo aqueles relacionados ao Transtorno do Espectro Autista
(TEA). A pesquisa foi conduzida de forma qualitativa, utilizando o método do estudo de caso,
por meio de entrevistas narrativas com mães de alunos autistas que estão na Educação
Infantil.
Em sua análise, a autora observou que a escola, com seu potencial socializador,
permite aos sujeitos vivenciarem a troca com o outro. Nesse sentido, a escola pode promover
o reconhecimento do sujeito e de suas famílias por meio do olhar e convivência com a
diversidade. É nesse momento que se torna possível identificar possíveis riscos no
desenvolvimento das crianças, como o autismo.
Nogueira (2019) realizou uma análise das características das ações, práticas e
estratégias pedagógicas acompanhadas por metodologias inovadoras na perspectiva inclusiva
de alunos com Transtorno do Espectro Autista. A pesquisa contou com a participação de 10
sujeitos, entre alunos e ex-alunos, que foram diagnosticados como autistas ou que se
identificam dentro do espectro. A autora utilizou a Epistemologia Qualitativa27 como base
para a delineação de sua pesquisa.
De acordo com a autora, o autismo não deve ser resumido ao diagnóstico, salientando
que existem dois aspectos importantes a serem considerados. Primeiro, acerca da
credibilidade dos manuais e diretrizes diagnósticas, que de acordo com Orrú (2016, p.42-43):
No contexto do segundo aspecto, existe uma relação direta com as consequências dos
diagnósticos e a disseminação de uma perspectiva que reduz e neutraliza a identidade dos
sujeitos autistas. Essa perspectiva é baseada em um padrão de normalidade que acaba por
negar a individualidade desses sujeitos. A autora ressalta a importância de conhecer e
compreender as características do espectro autista, a fim de superar o senso comum e as
barreiras impostas pelo preconceito e pela falta de informações humanizadas sobre o tema.
Nessa perspectiva, o diagnóstico possibilitaria assegurar os direitos e propiciar um dispositivo
de conhecimento para os sujeitos.
Nogueira (2019) destaca que a utilização dos eixos de interesse pode ser um facilitador
na estruturação de práticas educativas que promovam a participação ativa dos alunos no
processo de aprendizagem. Essa abordagem também contribui para o desenvolvimento da
autonomia dos sujeitos e para a melhoria das relações estabelecidas nos momentos de
socialização. Segundo a autora, as metodologias inovadoras e inclusivas são diversas e
abrangentes, e têm como objetivo identificar e valorizar a singularidade das crianças. Essas
abordagens se baseiam na cooperação e na troca entre os sujeitos, levando em consideração
seus interesses individuais e proporcionando um desenvolvimento mais significativo.
27
Metodologia proposta por González Rey (2010), de caráter construtivo-interpretativo, que compreende o
conhecimento enquanto produção não linear, considerando pesquisador e sujeitos participantes como agentes
igualmente importantes na construção do conhecimento.
96
Moreira (2019) observa que ocorreram muitas mudanças nesse cenário, com um
aumento significativo na visibilidade e nas oportunidades no contexto da inclusão ao longo
dos anos. Entretanto, juntamente com essas mudanças, também surgiram dificuldades e
fracassos. A autora aponta que os paradigmas ainda presentes na escola impedem que o
processo inclusivo seja efetivo, pois a escola não consegue atender às diversas necessidades
dos sujeitos de forma adequada. A autora ressalta a importância de as políticas educacionais
abordarem a questão da acessibilidade nas escolas, uma vez que, muitas vezes, o ambiente
escolar se torna inacessível para alunos com TEA.
28
Termo utilizado pela autora.
98
A pesquisadora compreende a intervenção mediada como uma estratégia que pode ser
utilizada como aliada na intervenção precoce de crianças autistas. Ela descreve essa
metodologia como uma ação na qual os estudantes "típicos" são instruídos a ensinar e/ou
apoiar as crianças autistas no desenvolvimento de suas habilidades sociais. Essa intervenção é
vista como um reforço de comportamento, onde os pares instruídos estimulam a criança
autista e ajudam a ampliar seu repertório em relação a certas competências e formas de
responder adequadamente a determinadas interações.
29
A autora atribui à melhora, as respostas dos questionários de validade social respondidos pelas professoras
participantes após a realização das intervenções propostas nesse estudo, contabilizando as aproximações dos
estudantes autistas com os demais e em relação às atividades realizadas, posteriormente representadas em
gráficos.
100
Com base em suas análises, Santos (2017) destaca a necessidade de criar condições no
processo educacional dos alunos autistas de modo que não haja culpabilização do sujeito com
base no diagnóstico, evitando assim a paralisação de qualquer ação educativa. Nesse sentido,
a autora ressalta a importância da formação humana que ocorre nas relações entre os sujeitos,
101
Bacaro (2020) conduziu uma pesquisa em sua tese investigando como a intervenção
pedagógica baseada na abordagem responsiva de aprendizagem, utilizando material
estruturado, pode ser benéfica e eficaz para a aquisição da leitura e escrita em estudantes com
autismo, levando em consideração o uso da linguagem e a integração sensorial. Para atingir
esse objetivo, foram realizadas intervenções com cinco crianças autistas, em que as atividades
interativas tinham como objetivo fornecer subsídios para a apropriação da leitura e escrita,
através da conexão e do envolvimento das crianças durante as ações. A autora organizou sua
análise em torno das seguintes categorias: o retorno do sujeito em relação à linguagem, a
intervenção de modulação sensorial, a abordagem responsiva relacionada à ação interativa, o
uso de material estruturado e a aquisição da leitura e escrita.
mediadores são fatores essenciais que promovem maior significância no processo educativo.
Com base nas análises realizadas neste estudo, a autora destaca que é necessário ir além das
metodologias tradicionais, apostando na criação de estratégias que possam “bloquear”30 os
sintomas que estejam prejudicando a escolarização das crianças autistas, o que permitiria a
adoção de novas condutas e práticas que proporcionem melhorias no processo de ensino e
aprendizagem dessas crianças
30
Termo utilizado pela autora.
103
Segundo a autora, a educação infantil também passou por uma construção recente,
uma vez que os primeiros documentos que abordam essa temática datam de 1961, ressaltando
a maneira comedida com que se discutia essa etapa da educação básica. É importante
ressaltar o caráter assistencialista que permeou a educação infantil por um longo período, em
que o cuidado era a principal função dessas instituições. Esse enfoque foi impulsionado pelo
contexto da industrialização brasileira, no qual as mulheres estavam cada vez mais presentes
no mercado de trabalho e precisavam de apoio nesse aspecto. Além disso, é relevante
considerar que inicialmente essa etapa de ensino não era oferecida pelo Estado, mas sim por
entidades privadas, filantrópicas e religiosas.
uma educação deficiente em relação aos direitos educacionais dos alunos autistas. A autora
enfatiza a importância de desenvolver mais propostas e embasamento teórico que possam
fundamentar as práticas e experiências de inclusão escolar, dada a complexidade e as
possibilidades que permeiam o campo da educação inclusiva.
A autora destaca as dificuldades que podem afetar esse processo, como as formas de
expressão e comunicação dos autistas, as relações que envolvem o contato físico, a maneira
como fantasiam e experimentam emoções e desejos, o que pode resultar em desafios para o
desenvolvimento da sexualidade. No entanto, ela enfatiza que isso não nega nem invalida a
existência da sexualidade nas pessoas com autismo, nem tampouco diminui sua identidade
enquanto seres sexuados.
capitalista31. A autora também aponta a falta de preparo dos educadores ao lidar com esse
tema, muitas vezes gerando angústia e despreparo para dialogar com os alunos, embora
muitos professores reconheçam a importância da educação sexual. No entanto, isso também
evidencia a falta de compreensão e capacitação dos próprios professores em trabalhar com
uma educação sexual emancipatória, deixando de apreender seu potencial libertador.
A autora ressalta que, apesar das limitações da pesquisa, é crucial questionar a eficácia
das políticas públicas de inclusão e sua interação com as práticas e ações inclusivas
implementadas nas escolas. Nesse sentido, ela destaca a importância dos educadores estarem
constantemente atentos ao seu papel como professores e à transformação do Atendimento
Educacional Especializado (AEE), a fim de proporcionar mais oportunidades de escolarização
e fortalecer o processo de inclusão. A autora sugere que seja dada uma atenção especial à
capacitação dos professores, considerando o espaço colaborativo e significativo que o AEE
oferece no diálogo com os alunos autistas e suas famílias.
31
A autora propõe uma investigação crítica acerca da forma como o capitalismo age no que diz respeito
moralização dos corpos, atuando de forma opressora e que busca atender uma demanda de dominação e
mercantilização desses corpos em prol da produtividade desejada, não se deslocando para uma perspectiva
emancipatória da sexualidade, o que se reflete nas ações e práticas pedagógicas encontradas nas instituições
escolares.
107
voltadas para esses alunos. O trabalho adotou uma abordagem qualitativa, utilizando um
estudo de caso com um aluno autista que frequentava a rede pública de ensino, juntamente
com sua mãe e três professoras. A observação participante e entrevistas foram utilizadas como
instrumentos metodológicos para coleta de dados.
foram considerados dados provenientes dos registros legais do município para enriquecer a
análise.
Em seu trabalho, Souza (2019) propôs compartilhar sua trajetória como mulher-
professora-mãe de uma criança autista desde o nascimento até que ela atingisse a idade de seis
anos. O estudo se baseou em uma abordagem autobibliográfica que dialoga com autores da
fenomenologia e das perspectivas metodológicas da narrativa autobiográfica. A autora
buscou, por meio de um olhar crítico e sensível, construir uma narrativa que pudesse
colaborar e favorecer a compreensão do autismo e da inclusão, apresentando outras
perspectivas e possibilidades de sensibilização e aprendizagens mútuas no campo educativo.
Segundo a autora, a infância é uma temática que requer cuidado em sua abordagem,
mas ao longo da história tem passado por transformações, e atualmente é importante estar
atento ao espaço que ela ocupa na sociedade. A autora argumenta que a participação das
crianças nas dinâmicas sociais tem sido cada vez mais limitada. Ao focar sua atenção nas
crianças com deficiência, a autora observa que poucas mudanças ocorreram, pois ainda existe
uma padronização imposta pelo sistema, que exige que as crianças e suas famílias se adaptem
à "normalidade" do mundo, “no qual ela tem que pedir licença para fazer parte” (SOUZA,
2019, p.34).
109
Por fim, Souza (2019) acredita no poder do olhar sensível e amoroso para
compreender as perspectivas dos estudantes com Transtorno do Espectro Autista. Segundo a
autora, a jornada nunca é pré-determinada e as respostas não são prontas, mas é possível
percorrer um caminho atento e afetuoso, buscando novas e desconhecidas possibilidades que
favoreçam uma compreensão mais ampla do processo de ensino e aprendizagem para essas
crianças. A autora defende um deslocamento em relação aos rótulos que cercam as
deficiências e o autismo, buscando uma percepção mais humanizada, enxergando os sujeitos
em sua totalidade.
O estudo realizado por Santos (2021) teve como objetivo investigar a contribuição do
uso de jogos digitais como mediadores no processo de desenvolvimento de funções
intelectuais básicas em crianças autistas, por meio das atividades realizadas no Atendimento
Educacional Especializado (AEE). A pesquisa adota uma abordagem qualitativa e
colaborativa, utilizando uma metodologia exploratória. Para isso, a autora utilizou um jogo
chamado "Dr. Baguncinha", desenvolvido no Observatório de Políticas Educacionais da
UNIVALI. O estudo envolveu a participação de duas crianças matriculadas nos Anos Iniciais
do Ensino Fundamental que recebem atendimento no AEE, na rede municipal de ensino da
cidade de Pomerode/SC.
Brito (2016) realizou uma análise das práticas educativas no Atendimento Educacional
Especializado (AEE) por parte de professores que utilizam os Sistemas de Comunicação
Alternativos e Ampliados (SCAA) na escolarização de crianças com Transtorno do Espectro
111
A autora conclui que o uso dos SCAA ainda é pouco frequente nas escolas, e tanto os
professores quanto os alunos ainda não estão plenamente familiarizados com essas estratégias,
o que limita a efetividade das práticas do Atendimento Educacional Especializado (AEE). No
entanto, com base em seu trabalho com as professoras, ela observou diferenças significativas
nas práticas antes e depois da utilização desses recursos, demonstrando que é possível
compreender, prevenir e modificar o comportamento por meio de um planejamento
sistemático. A autora ressalta que esse processo não é simples, requerendo estudo sobre os
determinantes do comportamento e como eles se manifestam no contexto escolar,
considerando as experiências dos diversos atores envolvidos nessa dinâmica.
32
Delineamento intrassujeitos com linha de base múltipla. A base A-B-A (linha de base, tratamento, linha de
base), indica os procedimentos de intervenção em mais de um sujeito, mais de um comportamento e mais de um
ambiente, ao mesmo tempo.
112
De acordo com a análise dos dados realizada por Jadjesky (2020), foi constatado que
na instituição escolar estudada há uma intencionalidade e uma vontade de acertar por parte
dos professores, buscando garantir aos estudantes, com ou sem deficiência, o acesso aos
conhecimentos produzidos e acumulados pela sociedade, levando em consideração a função
social da escola. No entanto, a autora destaca a necessidade de ressignificar as práticas e ações
pedagógicas voltadas para as crianças autistas, rompendo com percepções restritas, como a
ideia de alienação ao meio social. Conforme observado pela autora, as interações e
intervenções propostas no estudo resultaram em avanços significativos na forma de
relacionamento da criança autista analisada. Isso reforça a importância de investimentos na
formação dos educadores, a fim de desconstruir estigmas e preconceitos provenientes do
senso comum em relação ao autismo.
Diante das dissertações e teses analisadas no recorte da pesquisa, destaca-se que duas
regiões tiveram uma maior produção, sendo elas o Sul (com 16 publicações) e o Nordeste
(com 11 trabalhos publicados). No entanto, observou-se que todas as regiões tiveram
trabalhos realizados sobre a temática abordada por nós. A região Centro-Oeste teve quatro
pesquisas, o Norte teve cinco e a região Sudeste apresentou oito pesquisas no banco de teses e
dissertações da Capes. A partir desses dados, apresentamos a seguinte disposição gráfica:
33
A autora utiliza esse termo se referindo à abordagem científica pensada por Vygotsky, discorrendo sobre a
possibilidade de estudar as doenças e patologias ligadas ao infantil a partir do conceito de singularidade.
114
Figura 01 - Pesquisas sobre autismo e escolarização, encontradas nos Bancos de Teses e Dissertações da Capes
entre os anos de 2015-2022.
14 13
12
10 9
6 5 5
4
4 3 3
2
2
0 0
0
Sul Nordeste Centro-Oeste Norte Sudeste
Teses 3 2 0 0 3
Dissertações 13 9 4 5 5
Figura 02 – Pesquisas sobre autismo e escolarização divididas por ano de publicação, elencadas no Banco de
Teses e Dissertações da Capes nos anos de 2015 – 2022.
14
12
10
0
2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022
Teses 0 2 1 1 1 2 0 1
Dissertações 5 4 5 2 12 4 4 0
Teses Dissertações
34
As instituições públicas de direito privado com redação na Lei 7.596/87, são de personalidade jurídica de
direito privado, sem fins lucrativos, com autonomia administrativa e de patrimônio, custeadas com recursos da
União e de outras fontes.
116
Essas abordagens foram identificadas com base na frequência com que apareceram nas
pesquisas analisadas.
deixar cair o manto da deficiência que esconde a criança, sua potencialidade criadora
e seu trabalho de estar no mundo, de encontrar um sítio no complexo campo do
outro, de lidar com tudo aquilo que a aterroriza, mesmo que este trabalho não seja
facilmente identificável ou que seja confundido com expressão ou manifestação da
“doença”, como às vezes os autismos são vistos (FERREIRA; VORCARO, 2018,
p.111).
Para fornecer uma representação visual mais ilustrativa dos conceitos e termos
utilizados nas pesquisas mencionadas neste capítulo, elaboramos uma nuvem de palavras35
(Figura 03), empregando para tal, as palavras-chaves escolhidas pelos autores em seus
trabalhos. Tal estratégia nos permite visualizar e registrar as incidências das menções
realizadas nas pesquisas. Quanto mais um conceito é mencionado nos trabalhos, maior é a sua
fonte na nuvem, denotando a sua relevância nas discussões e evidenciando as perspectivas
mais frequentemente adotadas pelos pesquisadores.
Figura 03 - Nuvem de palavras, elaborada a partir das palavras-chaves elencadas nas pesquisas sobre a temática
do autismo e a escolarização, listadas no Banco de Teses e Dissertações CAPES, publicadas entre os anos de
2015 a 2020.
35
A construção da nuvem de palavras foi possível através da utilização da plataforma virtual
WordArt.com, de manipulação gratuita. Para garantir uma melhor compreensão das incidências das
terminologias e conceitos utilizados pelos autores, a utilização de palavras e termos semelhantes foram
agrupados em um termo único. Como exemplo disso, temos as variações da nomenclatura Transtorno do
Espectro Autista e as designações que indicam as práticas pedagógicas como eixo discursivo nas análises dos
trabalhos.
119
escolarização. Além disso, a nuvem de palavras também demonstra uma grande variedade de
perspectivas que subsidiam as pesquisas nesse campo, evidenciando a existência de diferentes
eixos de investigação.
WUO, Andrea Soares 2019 Educação de pessoas com Saúde e Sociedade, São
Transtorno do Espectro do Paulo, v.28, n.3, p.210-223,
Autismo: estado do 2019
conhecimento em teses e
dissertações nas regiões Sul e
Sudeste do Brasil (2008-2016)
SILVA, Mirella Cassia da; 2020 Uso de histórias sociais em sala Psicologia em estudo, v. 25,
de aula para crianças com e43094, 2020
ARANTES, Ana;
autismo
ELIAS, Nassim Chamel
122
RODRIGUES, Viviane; 2020 Implementação do PECS Rev. Bras. Ed. Esp., Bauru,
Associado ao Point-Of-View v.26, n.3, p.403-420, Jul.-
ALMEIDA, Maria Amelia
Video Modeling na Educação Set., 2020
Infantil para Crianças com
Autismo
SILVA Martony Demes 2020 Software mTEA: do Desenho Rev. Bras. Ed. Esp., Bauru,
da; Computacional à Aplicação por v.26, n.1, p.51-68, Jan.-Mar.,
Profissionais com Estudantes 2020
SOARES André Castelo
com Autismo
Branco;
BENITEZ Priscila
NUNES, Debora Regina 2021 Comunicação Alternativa para Rev. Bras. Ed. Esp., Bauru,
de Paula; Alunos com Autismo na Escola: v.27, e0212, p.655-672, 2021
uma Revisão da Literatura
BARBOSA, Joao Paulo da
Silva;
NUNES, Leila Regina de
Paula
SANTOS, Régia Vidal; 2022 Autismo na escola: da Rev. bras. Estud. pedagog.,
construção social estigmatizante Brasília, v. 103, n. 264, p.
MACEDO, Eunice;
ao reconhecimento como 466-485, maio/ago. 2022.
MAFRA, Jason Ferreira
condição humana
Togashi e Walter (2016) conduziram uma pesquisa que fazia parte de um estudo mais
amplo sobre a implementação de um programa de capacitação de professores envolvidos no
Atendimento Educacional Especializado e o uso do sistema PECS-Adaptado com alunos
autistas. O objetivo era investigar como os educadores estavam dando continuidade ao uso
das PECS-Adaptado e como isso impactava a relação dos alunos com a professora e a
123
Com base nos dados obtidos, Lemos et al. (2016) destacaram a importância de
questionar os estigmas construídos em torno do autismo e enfatizaram a necessidade de
inclusão desses sujeitos no ensino regular. Segundo os autores, é fundamental estabelecer uma
comunicação e participação efetiva entre os professores e os familiares dos alunos, a fim de
garantir um processo inclusivo satisfatório. Além disso, eles ressaltaram a urgência de ter a
presença de um psicólogo escolar para apoiar e orientar as práticas educacionais,
especialmente na perspectiva inclusiva.
série correspondente, mas serem realocados em outra sala de aula. Além disso, a frequência
dos alunos autistas nas salas de atendimento educacional especializado é baixa, e o governo
do estado demonstra ineficácia em fornecer suportes significativos diante dessa
realidade.Diante dessas constatações, as pesquisadoras destacaram a continuidade precária da
escolarização dos alunos autistas, bem como a falta de efetivação das leis e diretrizes que
deveriam garantir um processo inclusivo mais eficaz para esse grupo de alunos.
No estudo realizado por Vargas e Rodrigues (2018), foi feito um mapeamento dos
processos relacionados à mediação escolar no contexto de alunos diagnosticados como
autistas ou psicóticos. As autoras utilizaram a abordagem da cartografia (Deleuze e Guattari,
1995) para conduzir uma pesquisa-intervenção, acompanhando regularmente uma escola em
uma cidade do interior do estado do Rio de Janeiro ao longo de um ano.
promovendo um diálogo que vai além do papel de cuidado. As autoras enfatizam que a
mediação escolar não é considerada a única abordagem possível para o processo inclusivo,
mas ressaltam sua importância como uma possibilidade significativa para lidar com a
complexidade envolvida na inclusão.
No trabalho conduzido por Wuo (2019), por meio de uma pesquisa bibliográfica, o
autor buscou verificar e compreender o estado do conhecimento sobre o processo de inclusão
escolar de indivíduos com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O estudo focou em teses e
dissertações publicadas em programas de pós-graduação na área de educação, disponíveis na
Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) do Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), no período de 2008 a 2016, nas regiões Sul e
Sudeste do Brasil. O estudo foi realizado em duas etapas. Primeiramente, o autor realizou o
levantamento da bibliografia desejada, selecionando teses e dissertações relacionadas ao tema
da inclusão escolar de pessoas com TEA. Em seguida, ocorreu a análise de conteúdo dos
trabalhos selecionados.
126
Através dos relatos das professoras entrevistadas, os autores perceberam que a maioria
delas possui poucos conhecimentos e estudos acerca do autismo, especialmente no que diz
respeito às possíveis práticas e ações pedagógicas mais significativas para esses alunos. Além
disso, observou-se a persistência de concepções equivocadas em relação ao processo de
inclusão, resultando em atividades e propostas diferenciadas para esses alunos, o que, na
realidade, pode levar a um processo de exclusão. Os pesquisadores ressaltaram a importância
de ouvir os educadores para tornar o processo inclusivo mais concreto, garantindo que suas
necessidades também sejam atendidas, possibilitando a criação de conexões adequadas para
127
Com base nos dados coletados na pesquisa, as autoras destacaram a importância das
interações entre os alunos e a professora, especialmente em relação às atividades propostas e à
mediação oferecida pela educadora. Essas interações também influenciaram as relações
estabelecidas entre os alunos, resultando em benefícios não apenas para os alunos autistas,
mas também para as demais crianças. As autoras enfatizam a relevância desse método de
pesquisa, uma vez que ele permite uma compreensão mais aprofundada das interações reais
que ocorrem em sala de aula e no ambiente escolar. As autoras ressaltam ainda, a importância
de realizar mais pesquisas sobre esse tema, uma vez que existe uma escassez de estudos que
empregam abordagens observacionais em contextos naturalísticos.
36
Termo utilizado na pesquisa.
128
de ensino. Isso possibilita um ambiente mais inclusivo e contribui para o sucesso acadêmico e
social dos alunos com TEA.
37
Questionário realizado com os participantes para que eles expressassem livremente suas percepções sobre o
estudo.
129
Nunes, Barbosa e Nunes (2021) realizaram uma investigação acerca dos contextos de
uso da Comunicação Alternativa e Ampliada (CAA) em ambiente estruturado,
especificamente em escolas, com estudantes autistas matriculados na rede regular de ensino.
Para isso, eles realizaram buscas no portal de periódicos e no catálogo de teses e dissertações
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES), abrangendo o
período de 2015 a 2018. A partir dessa busca, foram selecionados oito estudos que envolviam
participantes com idades entre 3 e 12 anos. Esses estudos foram realizados em salas de aula
do ensino regular e/ou em salas de Recursos Multifuncionais. Em dois dos trabalhos
130
promover uma comunicação dialógica e o avanço, de todos nós, como seres humanos nas
relações sociais. Isso implica em superar barreiras comunicativas e estabelecer espaços de
diálogo inclusivos, onde as vozes das pessoas autistas sejam ouvidas e valorizadas.
Quadro V - Consolidado dos dados obtidos junto ao banco de dados da Revista Estilos
da Clínica – USP.
PONCE, Joice Otávio; ABRÃO, 2019 Autismo e inclusão no ensino Revista Estilos da
Jorge Luís Ferreira regular: o olhar dos professores Clínica, V. 24, n°2, p.
sobre esse processo. 342-357.
Fonte: Revista sobre Infância com Problemas Estilos da Clínica. Organização da autora.
Lajonquière (2019), a partir do que ele vai nomear de “tempos de autismo”, faz uma
análise acerca do que é a criança moderna, através das formas como os adultos lidam,
percebem e projetam a infância. Ele questiona como o sujeito, influenciado pela cultura,
constrói sua presença no mundo por meio da linguagem e como essa relação afeta as
projeções de futuro que constantemente impactam os sujeitos em nossa sociedade. No
contexto educacional, o autor destaca que os mal-entendidos, que podem surgir, têm o
potencial de deslocar as crianças para um lugar de "divagantes do mundo". Ele sugere que as
crianças autistas talvez estejam se tornando espectadoras desse processo, ou seja, podem estar
sendo excluídas ou não plenamente envolvidas nas interações sociais e nas experiências
educativas.
para esse público. Ele compara essa situação ao interesse popular nos marcianos e
extraterrestres nos anos 60, sugerindo que o autismo pode ter se tornado uma espécie de
"tara".
No âmbito educacional, o autor vai discorrer sobre o que ele denomina de “ilusões
pedagógicas”, cujas consequências recaem diretamente sobre as crianças. Ele destaca a
influência significativa dos discursos tecnocientíficos, que buscam justificar todo e qualquer
comportamento observado nas crianças, geralmente fundamentados em concepções
biologizantes e psicologizantes. Lajonquière (2019) argumenta que essa ilusão decorre “tanto
na possibilidade quanto na necessidade de adaptarmos ou ajustarmos a educação a um sempre
suposto ser infantil já dado que nada deve aos sonhos do mundo adulto” (p.50). O autor
aponta que os pressupostos tecnocientíficos servem como um consolo para pais e educadores,
que buscam no contexto da modernidade respostas rápidas e soluções prontas para lidar com
os desafios educacionais.
Os autores concluíram que, de forma geral, as professoras entrevistadas têm uma visão
positiva em relação ao movimento de inclusão, reconhecendo os benefícios sociais que ele
traz para o ambiente escolar. No entanto, eles também identificaram resistências presentes na
escola em relação às representações sociais e estigmas que ainda persistem nas relações
133
nesse aspecto. A falta de formação especializada sobre o autismo foi uma questão consensual
entre as professoras participantes do estudo, nenhuma delas possuía formação ou havia
realizado cursos específicos sobre o tema. Foi constatado um déficit na formação inicial das
professoras em relação ao autismo, apesar de relatarem ter obtido alguns sucessos na
adaptação dos alunos autistas em suas práticas educacionais.
Com base nas pesquisas levantadas nesta segunda parte do trabalho, podemos observar
um cenário regionalizado em relação às publicações sobre autismo e inclusão, diferente do
que pudemos observar nas teses e dissertações analisadas. A região Sudeste apresentou a
maior quantidade de publicações, com 14 trabalhos, seguida pela região Sul, com 4 pesquisas.
Não foram encontradas publicações em revistas de outras regiões do país. É importante
ressaltar que a maioria dos artigos foi publicada no estado de São Paulo, representando cerca
de 57% dos trabalhos elencados. Esses dados indicam que, embora as revistas estejam
sediadas nessas regiões, a submissão de trabalhos não se restringe apenas a pesquisadores e
estudos realizados nessas localidades. Além disso, esses resultados são específicos das
pesquisas analisadas neste estudo e não representam a totalidade das publicações sobre
autismo e inclusão no Brasil. É possível que haja outras pesquisas realizadas em diferentes
regiões do país que não foram contempladas na amostra deste trabalho.
135
Figura 04 – Artigos sobre autismo e escolarização, divididos por ano de publicação entre os anos de 2015 e
2022.
5% 5%
10%
16%
0%
16%
32%
16%
Quanto aos possíveis eixos temáticos discutidos nas pesquisas, identificamos seis
áreas de aprofundamento e análise abordadas pelos autores. Dessas, quatro se repetem em
relação às teses e dissertações estudadas. São elas:
5. Análise do contexto interacional das crianças autistas com seus pares, colegas e
professores como fator central (2 estudos).
A partir dessa constatação, que foi amplamente abordada nos artigos, surge uma
segunda questão que se relaciona de certa forma com a primeira: as concepções que os
professores e pais possuem sobre o autismo, assim como as representações sociais e o
entendimento da inclusão que se manifestam nas escolas.
ponto de partida para a construção dessas práticas e estão presentes nas discussões que delas
surgem.
Figura 05 – Nuvem de palavras com as palavras-chave dos artigos elencados na Scientific Eletronic Library
Online (SciELO), a revista sobre infância com problemas Estilos da Clínica da Universidade de São Paulo
(USP) e o GT 15 da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPEd acerca do
autismo e escolarização entre os anos de 2015 e 2020.
Após a análise inicial das tendências das teses, dissertações e artigos acadêmicos
levantados no Estado da Arte, identificamos três categorias que perpassam os eixos
destacados anteriormente, com o objetivo de aprofundarmos nossos estudos. São elas:
1. A querela da formação de professores, uma temática que surge com grande relevância,
especialmente nas teses e dissertações;
2. As concepções em torno dos termos utilizados para definir e/ou abordar o autismo,
assim como a relação entre deficiência e déficit que incide sobre o sujeito;
A discussão em torno da formação docente tem sido uma questão recorrente tanto nas
pesquisas sobre educação, quanto no dia a dia das escolas, ao longo dos últimos anos. De
acordo com Lajonquière (2011), a temática da formação de professores tem ganhado
destaque, sobrepondo-se à questão que dominou por décadas o debate educacional: os
140
problemas de aprendizagem e o fracasso escolar. Bastos (2018) aponta que houve uma
mudança no enfoque do fracasso escolar, que anteriormente era atribuído principalmente aos
alunos. Atualmente, essa questão é abordada sob uma perspectiva jurídico-administrativa na
educação, o que tem gerado um desalinhamento na formação de professores em relação às
práticas e ações de ensino e aprendizagem. Conforme Bastos (2018, p. 127), "se os alunos não
aprendem, cabe ao professor adotar metodologias e estratégias de ensino mais eficazes".
Ponce e Abrão (2019) afirmam que, a partir do século XX, com a chamada "psicologização da
educação", o estudante passou a ser tratado como um objeto, sujeito à aplicação de métodos.
Esses métodos são adquiridos por meio de diversas formas de formação, o que acabou
reduzindo o papel do professor, colocando a chave do seu sucesso em uma categoria técnica
de atuação (Bastos, 2018).
Com base nos trabalhos levantados em nosso Estado da Arte, podemos observar essa
tendência nas pesquisas. Cerca de 76% dos trabalhos abordaram a temática da formação de
professores, enquanto os 24% restantes (16) não discutiram essa questão. É importante
destacar que a maioria desses 16 trabalhos são artigos acadêmicos (12 pesquisas), que
possuem um recorte mais específico em relação às discussões escolhidas para serem
abordadas.
trabalhos que indicam tal problemática, mas o fazem com ressalvas, principalmente no que
concerne à forma como tal movimento vem se materializando na comunidade escolar; e as
pesquisas que se posicionam criticamente a esse movimento, assinalando as contingências
desse discurso.
Vieira (2016) ainda ressalta que, em sua pesquisa específica, o município em questão
requer uma formação mínima diferente daquela proposta pelas diretrizes nacionais, o que
causa um desalinhamento ainda maior e questiona os direitos tanto dos educadores quanto dos
alunos. Tambara (2017) também evidencia essa discrepância ao observar, em sua pesquisa,
que dos cinco professores entrevistados, dois não possuem a formação específica exigida pela
legislação atual para atuar nas SRMs.
Sadim (2018) constata em seu trabalho, por meio da análise das políticas públicas
pertinentes, que, embora as normas estabeleçam tais exigências, a proposta de formação
oferecida aos educadores e à gestão escolar ainda não atende a essas demandas. Ribeiro
(2021) destaca essa questão ao relatar em seu trabalho que os gestores escolares afirmam de
forma unânime que as formações relacionadas à Educação Especial são oferecidas
principalmente aos professores das salas de recursos multifuncionais, sem abranger os demais
membros da equipe escolar. O mesmo foi observado por Tiradentes (2020), ao descrever a
insatisfação dos professores por não receberem formação e capacitação adequadas para
142
trabalhar na perspectiva inclusiva. Isso revela uma carência e falta de articulação na gestão do
estado do Amazonas, onde os educadores buscam maior apoio em suas práticas docentes, o
que poderia ser orientado, de acordo com a autora, pela Secretaria do Estado.
Tiradentes (2020) e Ribeiro (2021) assinalam que o grande desafio posto para a
educação brasileira refere-se à implementação e efetivação das políticas educacionais
inclusivas e de Educação Especial. Essa ação ofereceria amparo pedagógico aos professores, à
estrutura escolar como um todo e também aos alunos autistas, proporcionando-lhes mais
oportunidades de aprendizagem e práticas mais significativas em sua escolarização. Conforme
Tambara (2017), a concretização da escola inclusiva passa diretamente pela efetivação das
políticas de formação de professores, uma vez que eles precisam estar preparados para lidar
com as diversas demandas relacionadas a esse modelo, principalmente no que diz respeito às
práticas pedagógicas adequadas para atender às pessoas autistas.
Conforme Olmedo (2015), Brito (2016) e Martins (2020), quando o educador tem
conhecimento de técnicas de intervenção eficientes, utilizando manejos comportamentais e
estratégias de comunicação alternativa, contribui para que ele tenha uma concepção mais
abrangente acerca da inclusão e torna esse processo mais viável. Olmedo (2015) afirma que o
desconhecimento desses fatores implica em dificuldades para os profissionais da educação,
que acabam comprometendo a interação com as crianças autistas, dificultando ainda mais o
desafio inclusivo nas escolas brasileiras. Silva (2019) e Martins (2020) observam que a
adaptação do estudante autista no ambiente escolar depende das ações planejadas no âmbito
pedagógico, as quais são afetadas diretamente pela questão da formação da equipe de
educadores das escolas, sendo um marcador de extrema relevância para o sucesso dessa
adaptação.
Os trabalhos de Sousa (2016), Nogueira (2019), Pereira (2022), Sadim (2018), Bardini
(2020), Jadjesky (2020), Santos (2017), Nascimento (2015), Rodrigues (2015), Guareschi
(2016), Pereira (2019) e Rodrigues e Angelucci (2018) apontam para a importância da
formação de professores, mas o fazem com diferentes ressalvas sobre a forma
institucionalizada com que esse processo vem sendo discutido e efetivado nas escolas e nas
políticas públicas educacionais.
2017). Sendo assim, é cada vez mais comum observarmos formações na modalidade a
distância, que, segundo Jadjesky (2020), representam a face da mercantilização e privatização
da educação em prol do lucro no sistema capitalista em que vivemos.
Fieira (2017), Lima (2019), Moreira (2019), Nascimento (2019), Ponce e Abrão
(2019) e Rosado (2021) adotam uma postura ainda mais crítica em relação ao papel redentor
que tem sido atribuído à formação de professores em relação aos problemas educacionais.
Moreira (2019) observa que a má formação dos educadores tem sido responsabilizada pelo
fracasso escolar e pelas mazelas do sistema educacional, destacando o baixo nível de
escolarização e a qualidade questionável dos cursos de formação. No entanto, a autora aponta
que ao atribuir todos os problemas da escola a uma única fonte de crítica, outras questões
relevantes são deixadas de fora.
Conforme observado por Nascimento (2019), a fragilidade das escolas brasileiras não
se deve apenas à questão da formação docente, mas é influenciada por diversos outros fatores,
como as condições estruturais das escolas, a falta de recursos institucionais, a falta de diálogo
e troca de experiências, bem como a ausência de compartilhamento nas tomadas de decisão,
entre outros. A realidade das escolas brasileiras, como está atualmente, segundo Moreira
(2019), exige algo que é impraticável, pois não há nenhuma formação que possibilite um
processo de escolarização saudável.
Fieira (2017) aborda a questão da formação docente em sua tese, trazendo dados
relevantes que nos levam a refletir sobre o lugar ocupado por essa temática. Segundo a autora,
os professores entrevistados em seu estudo possuíam formação e especialização no que diz
respeito à escolarização de crianças autistas. No entanto, eles ainda enfrentavam grandes
dificuldades em lidar com esses alunos em sua prática docente. Essa constatação revela uma
contradição em relação ao discurso dominante que culpa os professores pela falta ou
insuficiência de formação, uma vez que as educadoras pesquisadas possuíam especialização
na área. No entanto, essa formação não ofereceu as garantias necessárias em termos de
conhecimentos para lidar efetivamente com as crianças autistas no contexto escolar.
Corroborando essa posição, Ponce e Abrão (2019) argumentam que, embora uma
formação de qualidade possa contribuir para uma inclusão mais significativa do estudante
autista, ela por si só não será capaz de transformar todo o processo de escolarização e a
relação entre os sujeitos. Portanto, “considerar a necessidade de melhor formação dos
professores como apanágio de todas as dificuldades enfrentadas na inclusão, caminha no
147
pautado pelo discurso do mestre, daquele que tudo sabe, ou ainda na lógica da crise
na escola moderna, daquele que se encontra no declínio de seu saber, o professor
relega o aluno a uma posição de passividade em relação a sua própria aprendizagem
(PONCE E ABRÃO, 2019 p.348)
Rosado (2021) enfatiza que a formação continuada é uma ferramenta importante para
que os educadores ampliem seus conhecimentos, no entanto, seu objetivo não deve ser o de
fornecer todas as respostas para os desafios que surgirão no dia a dia escolar, seja lidando com
crianças autistas ou não. Embora as capacitações possam trazer novos olhares e reflexões aos
professores, é importante ressaltar que cada sujeito é único, tanto os educadores quanto os
alunos, com suas próprias histórias e formas de aprendizado.
148
Lima (2019), sob uma perspectiva psicanalítica, sustenta que a educação está situada
no campo do impossível, sendo um trabalho manual. Nessa perspectiva, o que se pode
oferecer ao educador não é uma fórmula precisa ou ferramentas infalíveis para sua prática,
mas sim orientações sobre o que não fazer, como evitar seguir manuais que se
autodenominam detentores das respostas. Em consonância com a autora, acreditamos que o
educador precisa se reconhecer enquanto sujeito da falta, assim como todos nós, e esse
reconhecimento afetará diretamente o ato educativo.
O professor não detém todo conhecimento, seu saber é incompleto, e não há manual
no mundo que dê conta dessa incompletude. Da mesma forma, um professor nunca
conseguirá transmitir todo conhecimento ao aluno, sempre restará/faltará algo. É
nesse algo que reside a subjetividade (LIMA, 2019, p.43).
Concordamos com a autora no sentido de que a aposta do professor no estudante é
uma questão urgente e fundamental, para que ambos possam se tornar sujeitos de desejo no
processo educativo. Essa aposta implica reconhecer a singularidade de cada aluno, suas
potencialidades e dificuldades, e buscar estratégias pedagógicas que estimulem seu
desenvolvimento de forma conjunta. Onde o educador e o estudante possam se engajar
ativamente no processo de aprendizagem, compartilhando experiências, conhecimentos e
construindo saberes de forma colaborativa.
Alinhadas à perspectiva psicanalítica, entendemos que o ato educativo deve ter como
princípio uma interpelação ética38 (VOLTOLINI, 2018), em que seja possível ouvir os
sujeitos envolvidos no processo de escolarização no caso a caso, sem padronizações.
Devemos levar em conta que, independentemente das ferramentas e saberes utilizados pelo
educador em sua prática, não existem garantias nem uma receita que possa ser replicada para
todos os estudantes autistas, em uma lógica homogeneizante. Corroboramos com Kupfer
(1989, p. 98) ao afirmar que os pedagogos não deveriam se preocupar “tanto com métodos,
que muitas vezes constituem tentativas de inculcar, a todo custo, um conhecimento
supervalorizado pelos professores”, mas sim de vivenciar, experimentar e construir junto com
seus estudantes o que faz sentido para eles e o que é possível em cada contexto.
38
Voltolini entende, fundamentado nos estudos de Imbert (2001), que a interpelação ética à pedagogia e à
educação supõe diferenciar ética e moral. A moral se ocupa daquilo que é bom ou mal, a partir de valores de
determinada sociedade, enquanto a ética se debruça sobre as raízes do discurso, sua base discursiva
invariavelmente viciosa, situando os hábitos do campo e suas condições de possibilidade, interpelando essa
viciosidade.
151
Nos trabalhos elencados, observam-se três categorias de análise para a discussão dessa
temática. Inicialmente, abordaremos as pesquisas que conceituam o autismo como deficiência
e descrevem suas características com base na noção de déficit. Em seguida, temos os
trabalhos que consideram o autismo como deficiência, porém discutem as arbitrariedades que
essa concepção pode exercer no campo escolar e na realidade desses sujeitos. Por fim, temos
as discussões que vão contra essa apreciação, não considerando o autismo como deficiência,
tampouco discutem suas características a partir da perspectiva de déficit, atraso ou categorias
152
Podemos inferir, a partir dessa categoria de análise, que há um foco nos supostos
"comprometimentos" que os sujeitos autistas apresentariam em relação à sua condição. Há
uma descrição detalhada desses comprometimentos e uma busca por métodos, ferramentas e
estratégias que possam amenizar esses "déficits". Essa abordagem é subsidiada pelas
categorizações estabelecidas pelos manuais diagnósticos e pelo discurso médico, que orientam
uma quantidade significativa de trabalhos. Além disso, as políticas públicas brasileiras
também estão fundamentadas nesse paradigma, o que será discutido no próximo eixo.
Pereira (2022) enfatiza que a vida dos sujeitos é influenciada pelo contexto histórico,
social e cultural. Nesse sentido, ele defende a necessidade de compreendermos a criança
autista além de seus "hábitos mecânicos", a fim de repensar a tipificação proposta pela clínica
tradicional, que se baseia exclusivamente na condição diagnóstica. Monte (2015) e Trevizan e
Pessoa (2018), que também adotam a teoria histórico-cultural, concordam com Pereira (2022)
e argumentam que o estudante com autismo não deve ser referenciado apenas por sintomas e
possíveis "falhas" que possam apresentar. Essa perspectiva reducionista baseada no déficit
deve ser superada, e é necessário trabalhar com o estudante autista na produção e
154
Pereira (2022) também ressalta que a busca por patologias e dificuldades inerentes aos
sujeitos autistas no contexto educacional não atende às suas necessidades. Ele compreende
que o desenvolvimento do estudante não é uma "evolução passiva", mas sim mediado pela
linguagem e pelos sentidos construídos nas relações interpessoais e nas singularidades que
delas emergem. Pereira argumenta que as tipificações presentes nos discursos, em detrimento
das potencialidades e dificuldades dos sujeitos autistas, tendem a padronizar, limitar e
aprisionar esses indivíduos, tomando como referência aquilo que eles não realizam. Essa
configuração resulta em práticas pedagógicas mecânicas, nas quais o sujeito autista é
objetificado e rotulado.
Sousa (2016) destaca que o motivo do fracasso escolar dos estudantes autistas não se
deve à suposta deficiência deles, mas sim a múltiplas variáveis do sistema escolar. Ao
centralizar suas ações a partir da concepção de déficit e deficiência, o sistema produz
currículos e metodologias inadequadas que não conseguem lidar com a diversidade e
singularidade das pessoas autistas. Isso ocorre porque estão presos a caricaturas resultantes da
natureza descritiva e classificatória dos diagnósticos. Pereira (2022) salienta que devemos
inverter essa lógica, dando prioridade à observação do aluno em vez de seu diagnóstico
clínico, trabalhando com as possibilidades em vez das limitações e intervindo na realidade de
cada caso. Nesse sentido, a intervenção requer uma conscientização de nós mesmos e do outro
como seres inacabados, em que a educação se estabelece como um processo permanente.
são, resultando apenas em uma visão fragmentada que as impede de serem compreendidas
como sujeitos. Essa configuração reducionista define o todo a partir de uma única
característica (RODRIGUES E ANGELUCCI, 2018; NOGUEIRA, 2019). Segundo Silva
(2014), tem ocorrido um “desaparecimento do individual e do singular em que até mesmo o
nome das pessoas desaparece, deixando de ser ‘Pedro’ e ‘Maria’ para serem ‘os autistas’ (p.34
in NOGUEIRA, 2019)”.
Para Santos (2017) e Oliveira (2019), que abordam o autismo sob a perspectiva da
teoria histórico-cultural, ele é considerado um sujeito histórico que se desenvolve por meio
das relações que estabelece e se apropria do ambiente em que vive, sendo ativo em nossa
sociedade. Santos (2017) argumenta que a forma como as pessoas o percebem e se relacionam
com ele estabelece condições para seu desenvolvimento. Portanto, quando o autismo é
compreendido sob a ótica do déficit, enfatizando o que falta, isso acarreta consequências que
limitam certos papéis que devem ser desempenhados por essas pessoas. Isso resulta em uma
privação do desenvolvimento cultural da criança, em que as diferenças são interpretadas como
obstáculos para sua participação na vida em comunidade.
Essa estruturação está presente nos campos clínico, educacional e social, alienando o
sujeito autista, que é visto como deficiente e limitado de várias maneiras. As intervenções são
direcionadas para a remissão dos supostos sintomas por meio de condutas normalizadoras
(OLIVEIRA, 2019). Santos (2017) compreende que a educação de pessoas autistas deve ser
baseada no desenvolvimento cultural, pois a forma como esse processo é vivenciado na escola
pode tanto possibilitar como restringir seu desenvolvimento. O autismo, nesse sentido, deve
ser entendido como uma das formas possíveis de constituição do sujeito, e os resultados serão
diferentes dependendo de como o subjetivamos e o inserimos nas relações sociais.
Wuo (2019), que utiliza a perspectiva social, entende que é necessário pensar o
autismo a partir das construções sociais, linguísticas e políticas, se queremos transpor a lógica
dicotômica entre a normalidade e a anormalidade proveniente dos discursos de ordem
biológica e médica. Nessa perspectiva, o autismo deixa de ser concebido pelo prisma do
déficit e se apresenta como diferença, condição inerente ao ser humano. Diante desse ponto de
vista, o autor questiona as bases epistemológicas que sustentam a culpabilização, ora do
estudante, ora dos educadores, ora dos familiares, reproduzidos a partir dos discursos
científicos.
O pesquisador argumenta que, sob uma orientação crítica que favoreça os aspectos
educacionais, sociais e históricos acerca da constituição dos sujeitos, é possível o afloramento
de novas perspectivas sobre a inclusão dos estudantes autistas. Uma vez que estudos
produzidos a partir dessa ótica entendem a escolarização como um processo construído
através das relações sociais, a educação inclusiva não se restringe a uma modalidade de
ensino, mas precisa ser interrogada enquanto política que pode transformar a realidade tal
como posta hoje.
157
Os autores nos propõem refletir sobre a abertura à história do outro, por meio da
escuta qualificada, que acolha e seja educativa, colocando em questão a "homogeneização
e/ou dissimulação da diferença". Eles defendem o reconhecimento dos sujeitos autistas a
partir de suas potencialidades, visão de mundo e saberes, buscando ferramentas que possam
promover trocas e desenvolvimento para todas as pessoas envolvidas nesse processo
relacional. Isso deve ser feito em uma perspectiva de educação libertadora, que privilegie o
desenvolvimento das pessoas autistas nos aspectos afetivos, intelectuais, laborais e
expressivos. Os autores reafirmam, de forma incisiva, que as dificuldades vivenciadas por
essas pessoas resultam substancialmente do cenário estrutural em que vivemos e dos sistemas
de crenças instituídos historicamente pela sociedade. Portanto, é necessária a revisão e
reconstrução dos nossos modos de comunicação e interação com a diversidade.
Corroborando nessa discussão, Fieira (2017) e Ponce e Abrão (2019) analisam que a
multiplicidade de pressupostos e de saberes acerca do autismo produziu representações sociais
sobre essa condição, promovendo concepções pautadas na perspectiva de déficit, relacionadas
apenas aos possíveis impedimentos que o sujeito possa vir a apresentar, e na suposta ausência
de subjetividade. Os discursos são centralizados na ideia de falta, sem espaço para reconhecer
158
A pesquisadora assinala que a ética suscitada pela psicanálise dialoga com a recusa
dos estereótipos que atribuem ao sujeito um lugar de descrédito e abandono. Ela compreende
que a incorporação do autismo no rol das deficiências possibilitou avanços legais. No entanto,
é essencial ampliarmos o debate sobre as implicações que isso causou no campo, a partir
dessa associação, e quais propostas e ações educacionais foram desenvolvidas desde então.
De acordo com Lima (2019), existe uma clara discordância de interesses presentes na
realidade escolar, na qual os estudantes autistas expressam o desejo por práticas pedagógicas
diferentes daquelas oferecidas pelos métodos cognitivo-comportamentais que predominam
nesse campo. Eles buscam um modelo de escola que promova a aprendizagem de novos
conhecimentos, em vez de simplesmente normalizar e adestrar seus comportamentos. A
autora argumenta que, quando as crianças autistas não se comportam conforme as
expectativas dos pressupostos pedagógicos vigentes, os educadores tendem a buscar nos
manuais, na ciência, na psicologia e na neurologia as razões de seu suposto fracasso. Isso leva
a uma série de investigações e especulações sobre as capacidades e habilidades cognitivas e
afetivas desses sujeitos, sugerindo a presença de comprometimentos e déficits.
Lajonquière (2019) nos ajuda a refletir sobre essa questão ao enfatizar que no ideário
pedagógico dominante nas escolas, existe um “justificacionismo” em que tudo aquilo que
ocorre na vida das crianças é explicado a partir de uma “hermenêutica psico-socio-lógica
qualquer” (p.49), na qual ao menor sinal de desacordo com o parâmetro de normalidade
159
Rocha Lago (2017) corrobora nesse sentido, afirmando que a psicanálise segue por um
caminho diferente. Ela busca a subjetivação do sujeito a partir do pressuposto de uma estruturação
subjetiva que permitirá que a criança autista se insira nas relações sociais e com outras pessoas,
criando suas próprias significações. Acreditamos, assim como a autora, que as estruturas no
sujeito autista não são cristalizadas, não são decididas39.Sob essa ótica, a escola pode
oportunizar condições para o estabelecimento do laço social e para a aprendizagem,
permitindo que o sujeito autista recupere seu desenvolvimento ou sustente o mínimo de
sujeito que possa ter se construído até o momento de sua escolarização.
39
De acordo com Rocha Lago, a psicanálise opera com a concepção de estruturação não-decidida no tempo da
infância (BERNARDINO, 2006; CATÃO, 2015; JERUSALINSKY, 2015; KUPFER, 2010), compreendendo
que na infância o sujeito está sendo “constituído”. Dessa forma, a estruturação do sujeito não é entendida como
algo definido e/ou irreversível. Tal terminologia “estruturas não-decididas”, propõe uma perspectiva de estados
provisórios, visto o momento de inscrição do sujeito. Assim, pressupõe maiores expectativas de constituição das
crianças, denotando sua posição na linguagem e considerando a realidade do sujeito em desenvolvimento.
160
instabilidade é parte do processo singular de cada um. Rocha Lago (2017) nos esclarece que
todas as crianças aprendem, e na especificidade das crianças autistas, elas possuem algo da
linguagem e ilhas de inteligência resguardadas que quando não consideradas no enlace com o
outro, podem desaparecer ou traduzir-se em estereotipias.
Corroboramos com Fieira (2017) e Ponce e Abrão (2019) que o sujeito autista possui
habilidades e potencialidades assim como todas as crianças. A partir disso, é necessário
fomentarmos a positivação dessa criança, desmantelando o estigma social que opera sobre ela,
ao despertar o interesse e a curiosidade sobre o real do sujeito, visando sua emancipação e
considerando-o enquanto sujeito de desejo. Tal proposição só é possível mediante a rejeição
das idealizações pedagógicas e dos discursos homogeneizantes que ocupam, em grande parte,
a cena educativa. É essencial adotar um posicionamento ético que opere uma abertura ao
outro diante da compreensão de que podemos encontrar algo novo, algo diferente, que se
oponha às concepções engessadas que permeiam o autismo e negam ao sujeito a oportunidade
de se inserir no laço social e de usufruir plenamente do espaço escolar.
Concebemos como fundamental que o processo educativo seja capaz de dialogar com
a singularidade e com as especificidades de cada um, sem restringir os sujeitos às suas
possíveis dificuldades, visto que todos nós possuímos necessidades específicas em
determinados âmbitos de nossas vidas. Isso nos permite enxergar possibilidades e não
barreiras. A psicanálise nos convida a olhar e escutar esses sujeitos, a estar e agir para e com
cada um deles. Em conformidade com Fieira (2017), entendemos que a Psicanálise pode
oportunizar a criança autista uma posição em que ela seja capaz de conquistar sua autonomia,
mesmo que enfrente sofrimentos psíquicos, compreendendo o sujeito como um todo, não
segmentado tampouco objetificado em detrimento de seu suposto diagnóstico.
Brito (2016) em sua análise destaca várias possíveis causas e evidências genéticas do
autismo, como a idade avançada dos pais, mutações genéticas, volume das amígdalas e
anomalias da substância branca do sistema límbico, entre outras, que indicam diferenças em
relação aos indivíduos considerados "saudáveis". O autor também observa que
aproximadamente 75% das pessoas autistas necessitam de atendimento e cuidados
permanentes ao longo da vida, sendo que o declínio cognitivo está presente em diferentes
graus. Bacaro (2020), por sua vez, aponta alguns fatores de risco associados ao autismo, como
medicamentos tomados pelas mães durante a gravidez, gestação tardia, prematuridade e baixo
peso ao nascer.
Ribeiro (2021) e Monteiro (2019) concordam com Brito (2016) ao discutir a presença
de assimetria cerebral e alterações na organização cortical em indivíduos autistas,
evidenciadas por meio de neuroimagens, que estão diretamente relacionadas aos sintomas
apresentados por eles, embora não seja possível estabelecer uma relação de causa e efeito
nesse aspecto. Em relação à deficiência cognitiva, Ribeiro (2021) descreve que 33% das
pessoas com autismo são afetadas por essa condição, enquanto 75% apresentam padrões e
estereotipias de verbalização.
Dambros (2018), Andrade (2019), Moreira (2019), Nogueira (2019) e Bardini (2020)
também destacam as concepções médicas e as diretrizes estabelecidas pelos manuais
diagnósticos. No entanto, eles ressaltam que tais discursos não devem limitar as ações
educativas, reduzindo-as aos estigmas que podem ser gerados, negando a potencialidade do
estudante autista e restringindo a possibilidade de atividades que os beneficiem (ANDRADE,
2019). De acordo com Moreira (2019), o laudo não deve ser visto como um documento que
atesta limitações, mas sim como uma ferramenta que auxilia na compreensão de uma
determinada situação.
Sousa (2016), Oliveira (2019), Nogueira (2019) e Pereira (2022), que utilizam como
fundamento teórico para construção de suas discussões os pressupostos da teoria histórico-
cultural, observam uma problemática latente no campo educativo em relação às pessoas
diagnosticadas como autistas. Essa problemática diz respeito à primazia do discurso médico
em detrimento dos saberes pedagógicos e do lugar que a escola deveria ocupar na vida desses
sujeitos (PEREIRA, 2022). Neste sentido, a criança autista passa a ser objetificada pela
ciência, traduzida em um diagnóstico e sujeita às classificações e avaliações resultantes desse
diagnóstico (SOUSA, 2016).
164
Ao refletir sobre a temática, Nogueira (2019) pondera que o olhar médico possui um
recorte de atuação voltado para o desenvolvimento divergente daquele considerado típico.
Essa posição geralmente ocasiona uma descrição do sujeito com base nos parâmetros
constituintes do diagnóstico, desconsiderando as particularidades, os desejos e as frustrações
do sujeito. Por fim, é utilizado como um instrumento “desresponsabilizador” da sociedade em
seu caráter constitucional de formação cidadã, ignorando sua função no bem-estar social e nos
direitos e deveres de todos. De acordo com a autora, o parecer médico adquire um status de
confiabilidade sem igual, como se as informações contidas no laudo selassem o destino do
sujeito. Nas palavras de Orrú (2016)
Sousa (2016), Nogueira (2019) e Oliveira (2019) destacam que o diagnóstico médico
não deve ser utilizado para descrever o sujeito, devido à sua confiabilidade questionável e à
estrutura de construção dos manuais diagnósticos. Embora o avanço da ciência moderna possa
contribuir para o conhecimento de certas condições, o ideal de progresso que a sustenta limita
a compreensão das situações específicas de cada caso (SOUSA, 2016). Conforme apontado
pelas autoras, os manuais diagnósticos são organizados a partir de um consenso de um
determinado grupo de médicos, predominantemente psiquiatras e neurologistas, sendo as
últimas edições influenciadas também pela neurociência, ocupando um lugar de destaque na
clínica e na cena educacional.
Neste sentido, Nogueira (2019) e Oliveira (2019) questionam até que ponto esses
manuais podem ser considerados como “verdade”, uma vez que os critérios estabelecidos são
questionáveis e não há unanimidade na comunidade científica sobre a condição do autismo,
sendo baseados em conjecturas impossíveis de validação. Conforme alerta Oliveira (2019),
mesmo com os avanços científicos, atualmente não existe nenhuma pesquisa que consiga
definir a etiologia do autismo. Não há, até o momento, nenhum marcador clínico universal
165
que possa determinar essa condição, nem metodologias ou métodos definidos para a
intervenção com esses sujeitos.
Sob essa perspectiva, Sousa (2016) salienta que o caráter descritivo dos manuais
diagnósticos e a visão biomédica não levam em consideração as questões subjetivas das
pessoas autistas. Essa postura resulta frequentemente na medicalização e adaptação do sujeito,
visando apenas controlar os supostos sintomas que não se enquadram na noção
“normalidade”, seguindo uma lógica psicométrica e reducionista, descrevendo o sujeito em
termos estritamente orgânicos. Há como consequência disso:
Como resultado do predomínio do discurso médico, Sousa (2016) observa que em vez
de considerar o desenvolvimento psíquico dos sujeitos em formação, presume-se a existência
de déficits neurológicos. Isso leva a um processo massivo de diagnósticos e discriminação em
relação às doenças40 mentais, resultando em uma busca incessante por explicações biológicas
e orgânicas que possam dar conta do mal-estar social contemporâneo. Nessa perspectiva, a
abordagem médica possui o poder de detectar os sintomas do sujeito e descrevê-los dentro de
sua própria linguagem e discurso, silenciando outras questões que envolvem a pessoa autista,
assumindo sua identidade.
Sousa (2016) observa que a utilização do diagnóstico como parâmetro para o trabalho
docente gera uma inoperância das práticas e ações pedagógicas, impedindo os professores de
conhecer seus estudantes de maneira integral e singular. Nogueira (2019) salienta que ocorre
40
Termo utilizado pela autora.
166
uma adaptação dos conteúdos e uma tentativa de adaptação do sujeito, acarretando o oposto
do que se propõe: a exclusão de determinados sujeitos diante dos demais. De acordo com
Pereira (2022), há um hiato nesse processo em relação aos métodos utilizados, pois estes são
subordinados ao saber clínico, ao saber médico, que visa o controle e a resolução de conflitos
imediatos, os quais não conseguem suprir as demandas escolares.
Segundo Sousa (2016), precisamos recuperar a noção de sujeito, o que implica recusar
as categorizações e classificações disseminadas pela linguagem da medicina e da psicologia
que dominam o senso comum. É necessário resgatar a singularidade necessária às práticas e
ações educativas. Sob a perspectiva histórico-cultural, os transtornos mentais não se traduzem
em doenças, mas são, sobretudo, uma configuração subjetiva em construção, que adquire
sentidos subjetivos conforme a relação dos sujeitos com o meio social e a cultura (SOUSA,
2016; NOGUEIRA, 2019). Neste sentido, a estruturação da escola a partir da descrição
médica se torna uma barreira impeditiva de mudanças efetivas no processo educativo, sob a
chancela de um olhar clínico tradicional no qual o sujeito, enquanto ser histórico e cultural,
não é percebido, reproduzindo continuamente uma lógica de "tipificação" (PEREIRA, 2022).
Nos artigos publicados por Rodrigues e Angelucci (2018), Vargas e Rodrigues (2018)
e Wuo (2019), consideramos interessante destacar a posição dos autores em relação ao
discurso biomédico. Wuo (2019) aponta que o “TEA” compreendido sob a luz das teorias
167
ontológicas da doença pensadas por Canguilhem (1995), é concebido como um “ser” que,
desconsiderando as condições sociais, restringe o sujeito ao diagnóstico. Neste sentido a
inclusão escolar inclina-se a uma limitação de suas ações em relação ao arcabouço
pedagógico de saberes especializados, que estariam aptos a normalizar, cuidar ou até curar o
estudante. Sob essa ótica, observa-se no campo escolar a abertura a discursos que permitem e
legitimam as microexclusões, embora se mantenha o projeto de uma educação inclusiva.
Lima (2019) assinala que, a partir da terceira edição do DSM, o manual rompeu
radicalmente com a psicanálise, buscando conferir um caráter mais “científico” à psiquiatria,
tornando-a mais objetiva e fundamentada em observações empíricas. Essa configurção
também se refletiu na educação, resultando em ações e práticas normalizadoras e adaptativas,
objetivando o que é subjetivo. Sob essa perspectiva, a autora argumenta que o DSM e as
teorias neurobiológicas contribuem para instituir uma categoria de criança que, ao receber um
diagnóstico, fica sujeita aos estigmas divulgados e reproduzidos pelas mídias.
De acordo com Laurent (2014), à medida que o manual foi sendo atualizado, ocorreu
uma aplicação mecânica de critérios cada vez mais abrangentes, sem levar em consideração
discussões teóricas. Com isso, vivenciamos uma crise em relação às disfuncionalidades
democráticas suscitadas pela gestão burocrática dos problemas sociais, que minimiza o que
Lacan nomeou como os efeitos segregativos da ciência. Segundo o autor:
Conforme Michels (2011), citada por Guareschi (2016), o modelo educacional atual
fundamenta-se na ideia de que a causa do insucesso escolar está relacionada a questões
biológicas, somando-se a uma validação psicológica que enxerga o fracasso escolar como
resultado de características individuais, em vez de fatores sociais. As políticas públicas de
inclusão escolar, substancialmente influenciadas pelo saber médico, definem os sujeitos-alvo
da Educação Especial com base no discurso do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM), elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA)
(GUARESCHI, 2016). Esse documento respalda a formação dos profissionais da educação,
priorizando os conhecimentos médicos em detrimento do enfoque pedagógico.
Lima (2019) corrobora com essa questão ao analisar como o saber médico e
psicológico passou a ocupar a realidade escolar, se tornanado parte do cotidiano das escolas.
A autora observa que diante do menor sinal de possibilidade de diagnóstico, inaugura-se uma
peregrinação à procura de manuais e técnicas orientadoras que indiquem como trabalhar com
esses sujeitos. Neste sentido, a pesquisadora identifica um movimento de desautorização dos
educadores em relação ao seu saber pedagógico no trabalho com os sujeitos autistas.
Movimento esse, que é alimentado pelas ações e formações promovidas pelas instituições
escolares, nas quais a inclusão é compreendida como algo viável por meio do uso de métodos
e técnicas comumente baseados na abordagem cognitivo-comportamental.
por Nascimento (2019), essa exacerbação tecnicista reflete a hegemonia de uma perspectiva
replicável e serial, originada na fabricação de objetos, o que entra em conflito com um ofício
que é eminentemente humano, a educação.
A inclusão escolar é, sem dúvida, um ganho inestimável para os sujeitos autistas, pois
busca reduzir a discriminação e a exclusão social. No entanto, a implementação dessa
perspectiva, por si só, não é capaz de dissolver os paradigmas que ocupam historicamente as
relações escolares e favorecem resistências à abertura de outras possibilidades e caminhos na
escolarização de sujeitos que furam a lógica pedagógica tradicional vigente (PONCE;
ABRÃO, 2019). Para vivenciarmos uma escola que promova a emancipação do sujeito, é
necessário rejeitar as idealizações pedagógicas e o discurso homogeneizante disseminado em
nossa sociedade. Uma vez presos a esse modelo, os educadores dificilmente conseguirão
transpor a negativa instituída para esse público em relação à construção do laço social, bem
como à sua forma singular de expressão, apreensão e percepção de mundo (PONCE;
ABRÃO, 2019).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos ao momento de tecer nossos comentários finais sobre este trabalho, embora
estejamos longe de findar ou concluir qualquer discussão sobre a escolarização dos sujeitos
autistas. Reconhecemos a complexidade dessa temática, a nossa incompletude e ciclicidade da
vida sempre em transformação. Neste momento, gostaríamos de expressar nossa experiência
durante a pesquisa, os aprendizados adquiridos e os desafios que permearam o nosso ser
pesquisadora e as proposições que nos impactaram, refletindo em nosso posicionamento
diante dos embaraços colocados no campo do autismo atualmente.
tenha oferecido benefícios para esse público em relação à garantia de direitos, também
resultou em consequências diretas e efeitos estigmatizantes decorrentes da implicação dos
sujeitos autistas enquanto pessoas com deficiência.
Na análise inicial dos dados, observamos a presença de oito eixos de discussão, nos
quais estão contemplados os artigos acadêmicos e as teses e dissertações consultadas. São
eles: os trabalhos que discutem as práticas pedagógicas e a utilização das salas de atendimento
educacional especializado, políticas públicas e documentos legais relativos à temática (20); as
pesquisas que abordam e buscam estratégias e métodos de intervenção no trato dos alunos
autistas (17); as produções alicerçadas pelo aporte teórico e pelas contribuições da Psicanálise
e perspectivas de uma educação terapêutica (10); as publicações baseadas no envolvimento
entre família e escola, bem como a subjetividade dos familiares, principalmente as mães,
como atravessamento desse processo (5); as pesquisas fundamentadas no contexto
interacional das crianças autistas com seus pares, colegas e professores, como fator central de
análise (4); os trabalhos fundamentados na discussão sobre as representações sociais tecidas
pelos professores e a forma como elas interferem no processo de inclusão (3); as produções
tecidas a partir da construção do Estado da Arte ou do Estado do conhecimento (2); e aqueles
debruçados sobre a estrutura de pensamento e linguagem no autismo (1). Esses eixos foram
caracterizados com base da incidência observada nas pesquisas analisadas.
direcionadas a esse público, ainda se encontram muito aquém das condições consideradas
necessárias ou até mesmo razoáveis para que o processo educativo seja experenciado de
forma significativa por eles.
Nas palavras de Jim Sinclair (1993) aos seus pais, retomadas por Maleval (2009,
p.377):
As nossas formas de travar relações são diferentes. Insistam nas coisas que a
perspectiva de vocês considera normais e vocês vão encontrar a frustação, a
decepção, o ressentimento – talvez, até mesmo, a raiva e o ódio. Aproximem-se com
respeito, sem preconceitos, e dispostos a aprender coisas novas, daí encontrarão um
mundo que jamais teriam podido imaginar41.
Enxergamos a escola como uma instituição que possui legitimidade para instituir seu
potencial emancipatório, crítico e político, tornando-se um espaço verdadeiramente inclusivo,
que promova as aprendizagens, os afetos e a instituição do laço social. Sabemos sobre os
imensos desafios e entraves para que essa escola exista, mas escolhemos esperançar
Jim Sinclair, texto “Don’t mourn for us”. Autista e ativista criador da “Autism Network International” junto à
41
(FREIRE, 1992).
Esperamos que esse trabalho possa ser mais um, embora não sejam muitos, a
contribuir na discussão sobre psicanálise e educação e a inclusão dos sujeitos autistas,
preenchendo o hiato de quatro anos sem publicações de teses e dissertações a partir dessa
interlocução. Durante nossa trajetória na construção desta dissertação, vivenciamos momentos
de angústia, alegria e descoberta em relação às crianças autistas, ao ofício de educadoras e à
nossa identidade como pesquisadoras, reconhecendo-nos como enquanto sujeitos incompletos
e repletos de desejos. Assim, desejamos que essa pesquisa possa provocar novos debates e
perspectivas sobre a inclusão, fomentando outros olhares sobre a escolarização das crianças
autistas e potencializando o diálogo tão enriquecedor entre Psicanálise e Educação na
compreensão das relações sociais e do ato educativo.
180
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