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Michelle Karen Batista dos Santos

Lucas e Silva Batista Pilau


(Organizadores)

ENSAIOS CRIMINOLÓGICOS:
Produções Coletivas de Resistência

Porto Alegre
OAB/RS
2018
Michelle Karen Batista dos Santos
Lucas e Silva Batista Pilau
(Organizadores)

ENSAIOS CRIMINOLÓGICOS:
Produções Coletivas de Resistência

Augusto Jobim
Betina Warmling Barros
Caroline Bussoloto de Brum
Cibele de Souza
Domenique Assis Goulart
Fernanda Corrêa Osório
Fernanda Martins
Franchesca Inácio Zandavalli
Laura Gigante Albuquerque
Leandro da Cruz Soares
Lucas Dall'Agnol Pedrassani
Lucas e Silva Batista Pilau
Michelle Karen Batista dos Santos
Osmar Antônio Belusso Júnior
Patrícia Martins Saraiva

Porto Alegre
OAB/RS
2018
Copyright © 2018 by autores
Todos os direitos reservados
Diretora de Cursos Permanentes da Escola Superior da Advocacia da OABRS
Fernanda Corrêa Osório

Revisores
Betina Warmling Barros
Domenique Assis Goulart
Thiago Ribeiro Rafagnin

Capa
Carlos Pivetta

E52
Ensaios Criminológicos: produções coletivas de resistência/ Michelle
Karen Santos, Lucas e Silva Batista Pilau (Organizadores); Augusto
Jobim [et al.]. Porto Alegre/OABRS. 2018. 241p.

ISBN online: 978-85-62896-13-2

1. Ensaios Criminológicos. 2. Resistência. I. Santos, Michelle Karen


Batista dos. II. Pilau, Lucas e Silva Batista. III. Título

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COOABCred-RS

Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel


Vice-Presidente: Márcia Heinen
PALAVRA DO PRESIDENTE

A Escola Superior de Advocacia (ESA) da OAB/RS tem se


notabilizado pela crescente e plural produção de conteúdo oferecida ao
Direito brasileiro. São diferentes trabalhos elaborados a partir da
enriquecedora contribuição de advogadas e advogados.

A publicação da obra coletiva “Ensaios Criminológicos:


Produções Coletivas de Resistência” é mais um desses projetos de
fôlego. Questões relativas ao contexto do histórico de crimes no Brasil,
discursos criminológicos vigentes e suas implicações, desdobramentos
para a sociedade de novas realidades sociais, entre outros olhares, são
pautas atuais que impulsionam avaliações e revisões de temas
significativos para os brasileiros.

A OAB/RS se coloca como uma grande fomentadora e


plataforma impulsionadora para relevantes debates. Nesse sentido, o
trabalho da ESA deve ser reiteradamente reconhecido, em um trabalho
de muita qualidade e dedicação da diretora-geral Rosângela Herzer dos
Santos. Neste particular, o trabalho da diretora de Cursos Permanentes
da ESA, Fernanda Osório, acompanha os aplausos e elogios.

Por fim, registro com satisfação, tantos profissionais cada vez


mais interessados em contribuir com estudos e análises. É através dessa
riqueza de ideias, pontos de vista e pesquisas que qualificamos o debate
sobre pautas que fazem do Direito algo tão apaixonante e envolvente.
A todos que colaboraram com a obra “Ensaios Criminológicos:
Produções Coletivas de Resistência”, recebam minhas felicitações e
reconhecimento.

Ricardo Breier
Presidente da OAB/RS
PREFÁCIO

Na segunda metade do ano de 2016, os organizadores dessa obra


deram início a uma trajetória que até então desconheciam seu final e os
possíveis resultados: passaram a compor, juntos, a coordenação do
Grupo de Estudos em Criminologia na Escola Superior de Advocacia
da OAB/RS. Optaram, em um primeiro momento, por um semestre
voltado às leituras básicas do campo criminológico, retomando as
etapas de constituição da criminologia como saber e as principais
temáticas e pesquisas relativas às agências que compõe o sistema penal.
Os próximos semestres, até o final de 2017, momento em que encerrou
a coordenação em conjunto entre os organizadores (o que não
ocasionou, por óbvio, o fim do grupo), buscou-se um olhar desde outros
marcadores mais específicos (e por muito tempo colocados de lado pela
epistemologia criminológica), como o de gênero e o racial. Diversos
pesquisadores e pesquisadoras de Porto Alegre – com competência
acadêmica reconhecida – foram convidados a contribuir com os
debates, mas o que fez, verdadeiramente, que o grupo se constituísse e
se mantivesse vivo foi a relutância, de diversos estudantes,
advogadas/advogados e interessadas/interessados, em se manterem
assíduos nas reuniões, contribuindo com suas experiências, acadêmicas
e de vida, com os debates, e na construção do rumo que o grupo iria
tomar a cada semestre.
Esse livro é fruto daquelas pesquisadoras/pesquisadores que
estavam presentes no primeiro semestre, quando o Grupo de Estudos
em Criminologia da OAB/RS se constituiu, lá em 2016. A ideia,
originada ao fim do semestre de trabalho, foi dar visibilidade às
pesquisas e inquietações que os e as participantes trouxeram durante as
reuniões, tomando como referência as temáticas e escritos que
sustentaram as discussões. E por isso são chamados de ensaios, vez que
construídos para dar vazão, através de artigos científicos, a propostas
de pesquisas que podem ou não ter avançado no decorrer do tempo, com
o amadurecimento acadêmico das autoras e autores. E nesse ponto, é
preciso destacar que apesar de serem tomados como ensaios, dos
escritos vertem muita qualidade, como os leitores e as leitoras poderão
perceber.
Ainda, é preciso esclarecer que o título, ao referir tratarem-se de
produções coletivas de resistência, assim o é por dois motivos.
Primeiro, porque a gestação e organização dos artigos foi realizada
coletivamente, tendo pelo menos um(a) autor(a) revisado o artigo de
outro(a) autor(a), levantando dúvidas e críticas quanto ao seu conteúdo,
com o objetivo final de tão somente qualificar os trabalhos que
comporiam o livro. Segundo, como é mais evidente, pode-se notar que
o fio condutor dos textos é a resistência aos discursos violentos e
desinformados que há muito tempo dão base às políticas criminais e a
atuação dos agentes e das agências de controle do sistema penal. Além
disso, resistência, em um olhar mais atento, porque vive-se em um país
onde recorrentemente – e nos últimos anos ainda mais – pesquisadores,
até aqueles com larga trajetória acadêmica, são ameaçados com cortes
de orçamento para suas pesquisas, assim como bolsas de iniciação
científica, mestrado e doutorado passam a se tornar elemento raro e
disputado nas faculdades e nos programas de pós-graduação
(acomodando a lógica da concorrência entre pesquisadores e os efeitos
em nível de saúde que esse estado impõe). Assim, tendo em vista que a
maioria dos autores que compõe essa obra haviam recém iniciado sua
caminhada no campo acadêmico, demonstraram esses estarem cientes
de que, apesar das limitações que a profissão impõe, vale a pena lutar
pela pesquisa e pela ciência do país. Essa publicação resiste, então,
contra a redução e o encolhimento da pesquisa e mais ainda contra o
obscurantismo que toma conta da questão criminal.
Por fim, é preciso um agradecimento especial a professora e
advogada Fernanda Osório, a qual contribuiu, de maneira decisiva, para
que essa publicação fosse levada a cabo, e também aceitou o convite
dos organizadores para realizar a apresentação da obra, assim como a
Editora da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS, por oportunizar
que o material fosse publicado em seu catálogo.

Porto Alegre, agosto de 2018.

Lucas e Silva Batista Pilau


Mestre em Ciências Criminais (PUCRS)
Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas de Segurança e
Administração da Justiça Penal (GPESC)
Advogado do Centro de Defesa de Direitos Humanos (CDDH) de São
Leopoldo

Michelle Karen Batista dos Santos


Mestranda em Ciências Criminais (PUCRS)
Coordenadora do Grupo de Estudos Direito e Criminologia (ESA-
OAB/RS)
Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas de Segurança e
Administração da Justiça Penal (GPESC)
Advogada
APRESENTAÇÃO

Honra-me os autores e as autoras com o convite de apresentar a


coletânea de textos, fruto dos encontros e das discussões realizadas no
Grupo de Estudos em Criminologia(s) da Escola Superior da Advocacia
da OABRS em parceria com a Comissão Especial do Jovem Advogado
(CEJA/OABRS), coordenado por Michelle Karen Batista dos Santos e
por Lucas e Silva Batista Pilau, incansáveis na concretização do projeto
de aliar academia e advocacia, e que proporcionaram aos Advogados e
Advogadas do Rio Grande do Sul a comunicação entre o saber
criminológico e o saber jurídico-penal.

Ainda que preliminarmente, registro a felicidade de participar


desse projeto conjunto que revela as inquietações de um grupo de
profissionais que, com um potencial revolucionário, resgatam no
Direito e no exercício da advocacia a possibilidade de transformação da
realidade.
Não resta dúvida que há certas épocas em que os desafios são
maiores para uma abordagem crítica dos problemas relacionados à
violência, ao crime e ao controle social. Porém, para o Grupo de
Estudos em Criminologia(s), o desafio só fez aumentar a qualidade e a
profundidade dos debates, com o permanente incentivo para que
todos/as os/as integrantes tivessem espaço de fala e (des)construções.
A partir de uma perspectiva interdisciplinar, o Grupo de Estudos em
Criminologia(s), fez da Escola Superior da Advocacia um espaço
coletivo de discussão e reflexão sobre temas criminológicos candentes:
Criminologias Clássica, Positivista e Crítica, Crítica Criminológica ao
Processo Penal, Política Criminal e Práticas Punitivas, Segurança
Pública no Brasil, Criminologia Feminista, Políticas de Drogas e
Encarceramento em Massa e, por fim, Criminalização da Juventude.
As contribuições das Pesquisadoras Fernanda Martins, Betina
Warmling Barros e do Pesquisador Augusto Jobim do Amaral nos
encontros do Grupo enriqueceram os diálogos e permitiram questionar
a ideia de que a adesão a uma lógica punitivista traria soluções efetivas
para a diminuição da violência.
A disposição para o diálogo e preocupação em diminuir os
espaços entre a “teoria e prática” faz dessa coletânea de artigos um
convite ao leitor para que se comprometa com os direitos e garantias
fundamentais, tal como proclamados na Constituição da República e
nas Declarações Internacionais. Por todos esses motivos, é um grande
prazer e orgulho apresentar essa obra.

Porto Alegre, julho de 2018.

Fernanda Osório
Advogada
Diretora de Cursos Permanentes da Escola Superior da Advocacia da
OABRS
Prof. da Escola de Direito da PUCRS
SUMÁRIO

PALAVRA DO PRESIDENTE – Ricardo Breier

PREFÁCIO - Lucas e Silva Batista Pilau, Michelle Karen Batista


dos Santos

APRESENTAÇÃO – Fernanda Corrêa Osório

(RES)SOCIALIZAÇÃO MILITARIZADA: A POLÍCIA


MILITAR NO BRASIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE .............................................................................. 15
Betina Warmling Barros e Lucas e Silva Batista Pilau

RETRATO DO ABUSO DE PODER PELA ÓTICA


CRIMINOLÓGICA ......................................................................... 35
Caroline Bussoloto de Brum

ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O PAPEL DA LITERATURA NÃO


FICCIONAL E/OU MARGINAL NA TRADUÇÃO DOS
DISCURSOS PRODUZIDOS PELO SISTEMA PUNITIVO A
PARTIR DO CONCEITO DE “LOCAL DE FALA” ................... 52
Cibele de Souza

REFLEXÕES E INQUIETAÇÕES SOBRE A NECESSIDADE DA


CONSTRUÇÃO DE UMA LÓGICA E UMA PRÁXIS
JURÍDICAS ANTI-RACISTAS, FEMINISTAS E DE BASE ..... 78
Domenique Goulart

PENSAR A DEMOCRACIA EM TEMPOS DE MEDO ........... 100


Fernanda Martins e Augusto Jobim
A RELEVÂNCIA DA OMISSÃO EM CASOS DE ESTUPRO: A
CULPABILIZAÇÃO DA MULHER NA SOCIEDADE
PATRIARCAL BRASILEIRA...................................................... 115
Laura Gigante Albuquerque e Fernanda Corrêa Osório

GUERRA ÀS DROGAS: DA INEFICÁCIA DO


PROIBICIONISMO À CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA .. 133
Franchesca Inácio Zandavalli

A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL:


PERSPECTIVAS DOGMÁTICA E JURISPRUDENCIAL ...... 149
Leandro da Cruz Soares

A EXCEÇÃO COMO REGRA NA CRIMINALIZAÇÃO DA


RESISTÊNCIA: EXPANSIONISMO PUNITIVO E O
ABANDONO DAS JUSTIFICATIVAS JURÍDICAS NAS
ESTRATÉGIAS DE CONTROLE SOCIAL ............................... 172
Lucas Dall'Agnol Pedrassani

“MAIS SEGURANÇA E MENOS IMPUNIDADE”: O DISCURSO


MIDIÁTICO COMO INSTRUMENTO DE INCENTIVO E
SUPORTE DO POPULISMO PUNITIVO .................................. 196
Michelle Karen Batista dos Santos e Osmar Antônio Belusso Júnior

FACÇÕES E MARAS: ANÁLISE COMPARATIVA DA


CONSTITUIÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS ..... 216
Patrícia Martins Saraiva
15

(RES)SOCIALIZAÇÃO MILITARIZADA: A POLÍCIA


MILITAR NO BRASIL E O ESTATUTO DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Betina Warmling Barros1


Lucas e Silva Batista Pilau2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Desde que passou a se consolidar como área própria de


conhecimento no Brasil, principalmente a partir da promulgação do
Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, a justiça juvenil e seus
instrumentos socioeducativos vêm ganhando contornos teóricos cada
vez mais robustos e interligados com a produção acadêmica
internacional. A atuação dos profissionais a serviço do Estado que
lidam com este público também vem sendo esmiuçada como problema
de pesquisa, em que pese a ainda absoluta desigualdade de
aprofundamento teórico e de quantidade de intervenções, se comparada

1
Mestranda em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS.
Atualmente é bolsista de Mestrado CNPQ. Possui Graduação em Ciências Jurídicas e
Sociais da Faculdade de Direito/UFRGS. Atuação na área da Sociologia da Violência,
Criminologia, Direito Penal e Direito Penal Juvenil. E-mail:
barros.betina3@gmail.com.
2
Pesquisador e Advogado. Mestre em Ciências Criminais pelo Programa de Pós-
Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pelotas
(UCPel). Professor convidado na Pós-Graduação (lato senso) em Ciências Criminais
da Faculdade Campo Real (Guarapuava/PR). Advogado do Centro de Defesa de
Direitos Humanos (CDDH) de São Leopoldo. E-mail: lucas.pilau@hotmail.com.
16

com temáticas mais tradicionais da criminologia, como o


encarceramento adulto.

Assim, a despeito da consolidação deste “novo” campo


científico, há ainda extrema carência de aprofundamento nas pesquisas
na área da justiça juvenil, sobretudo em temas mais específicos como,
por exemplo, a atuação da polícia junto aos adolescentes. Talvez seja
justamente no processo de indiferenciação das vivências destes jovens
- como se a atuação da polícia produzisse os mesmos efeitos em um
adolescente de 15 anos e em um adulto de 25 - que reside a força de
movimentos conservadores, os quais buscam o desmantelamento das
conquistas das últimas décadas3. É necessário, pois, singularizar.

Com este objetivo, o presente artigo busca inicialmente traçar


um breve histórico do sistema de justiça juvenil no Brasil, delineando
os principais pontos de mudança com a transição da Doutrina da
Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral. A virada no
paradigma levou a promulgação de nova legislação, necessária também
em razão das desconfianças que se instalavam a respeito das teorias
etiológicas do crime e a reabilitação como objetivo da justiça juvenil4.
Em paralelo a essa onda de renovação legislativa, entretanto, a polícia
militar brasileira manteve seu funcionamento nos mesmos moldes do
período da ditadura civil-militar, preservando um ordenamento

3
Entre 1993 e 2010 tramitaram no Legislativo brasileiro 37 propostas de Emenda
Constitucional visando a redução da maioridade penal. (CAPPI, Ricardo. Pensando
As Respostas Estatais às Condutas Criminalizadas: um estudo empírico dos debates
parlamentares sobre a redução da maioridade penal (1993 - 2010). Revista de Estudos
Empíricos em Direito, 1 (1), 10-27, 2013. p. 15.)
4
BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin
america. In: MÁXIMO, L.; TANENHAUS D. S; ZIMRING, F. E. (Org.). Juvenile
Justice in Global Perspective. New York: New York University Press, 2015. p. 205.
17

hierárquico e militarizado, do qual o objetivo maior continua sendo o


extermínio do inimigo.

Assim, a despeito da inovação teórica ter produzido uma


revolução no sistema de justiça juvenil, o primeiro contato do Estado
com o adolescente continua sendo através de uma instituição policial
que não passou por qualquer reformulação democrática. A polícia, se à
época do menorismo era “provedor majoritário e habitual da clientela
das chamadas instituições de ‘proteção’ ou de ‘bem-estar’’5, pouco se
transformou nessas últimas décadas visando garantir a proteção integral
destes sujeitos em desenvolvimento. Continua, na verdade, a
representar o símbolo mais eloquente de violação aos direitos
individuais dos adolescentes criminalizados, ainda que tal desrespeito
não inicie através da polícia e nem por ela seja sepultado.

1 SISTEMA DE JUSTIÇA JUVENIL: ENTRE O PUNIR E O


EDUCAR
O campo jurídico exerce grande influência na vida daqueles a
ele subjugados. O Direito determina, em maior ou menor medida, os
próximos capítulos do enredo pessoal de quem a ele se curva (ou é
curvado, sem opção de fuga). Quando o público alvo dos desmandos
judiciais está sendo acusado do cometimento de um crime, estamos
falando do limite máximo de que é possível ao juiz dispor - a liberdade
individual. Evidente que, a respaldar decisões desta ingerência, há um

5
MÉNDEZ, Emílio Garcia. Infância, Lei e Democracia: Uma Questão de Justiça. In:
e BELOFF, Mary orgs. Infância, Lei e Democracia na América Latina, p. 42., apud,
COSTA, Ana Paula Motta. As garantias processuais e o direito penal juvenil: como
limite na aplicação da medida socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2005. p. 58.
18

sistema legal de comandos e proibições, eis que há tempos deixou-se de


acreditar - explicitamente, ao menos - no juiz como homem sábio,
detentor da verdade.

Pela importância que essas normativas possuem na vida da


sociedade a que se destina - não apenas como Lei a ser cumprida, mas
como sistema legal complexo que funda instituições, determina seu
funcionamento, e expõe suas razões de ser - acredita-se que
compreender o processo de constituição e implementação do
microssistema legal que respalda a realidade em análise é fundamental
à pesquisa de qualidade. Nesse sentido, quando se escolhe o recorte da
violência policial contra a juventude brasileira, o sistema
socioeducativo entra em pauta e passa a ser elemento central na análise
deste fenômeno social, dado que é somente a partir dele e para ele que
se fundam as possibilidades e justificativas para a repressão policial.
Passa-se, então, à análise do ECA.

O Estatuto brasileiro inaugurou em 1990, o que depois virou


tendência em praticamente toda a América Latina, a concretização em
norma da Doutrina da Proteção Integral. No mesmo ano, a Convenção
Internacional dos Direitos da Criança possibilitou o início das chamadas
leis de segunda geração6, sendo, o caso brasileiro representativo de uma
“verdadeira ruptura com a tradição anterior, assim como um caso de
aplicação rigorosa do novo paradigma”7. A promulgação da lei no
contexto de redemocratização brasileira talvez represente a segunda
maior ruptura no recém delineado campo da justiça juvenil, após a

6
MÉNDEZ, Emílio Garcia. Infância e Cidadania na América Latina. São Paulo:
HUCITEC, 1998. p. 34.
7
Idem, p. 35.
19

incorporação do modelo norteamericano de separação entre as varas


criminais e juvenis, ainda no início do século XX8.

É com a mudança legislativa de 1990 que se começa a pensar a


criança e o adolescente, no contexto brasileiro, não mais como menor
em situação irregular - ou “mero objeto do processo”9, mas como
sujeito de direito, principalmente a partir do princípio constitucional da
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento10. A partir do novo
paradigma incorporado11, se por um lado começa-se a distinguir as
políticas para adolescentes autores de ato infracional diversos daqueles
previstos para crianças e adolescente em situação de risco, por outro, a
legislação se propõe a ser instrumento para todo o conjunto da categoria
infância.

Nesse contexto, diversas estruturas de funcionamento do


sistema de justiça juvenil são modificadas com o intuito de adequar-se
a um devido processo legal pautado pela limitação do poder
jurisdicional e pelo sistema de garantias, sendo extendido aos
adolescentes “todas as garantias que correspondem aos adultos nos
juízos criminais, segundo as constituições e instrumentos internacionais

8
BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin
america.
9
SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: adolescente e
ato infracional. 3. ed. ampl. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 18.
10
Constituição Federal de 1988, art. 227, parágrafo 3º, inciso V.
11
“A Doutrina da Proteção Integral, além de contrapor-se ao tratamento que
historicamente reforçou a exclusão social, apresenta-nos um conjunto conceitual,
metodológico e jurídico que permite compreender e abordar as questões relativas às
crianças e aos adolescentes sob a ótica dos direitos humanos, superando o paradigma
da situação irregular para instaurar uma nova ordem paradigmática.” (SARAIVA,
João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: adolescente e ato
infracional. p. 18).
20

pertinentes”12. Mantém-se, todavia, a separação dos sistemas de


julgamento e a diferenciação das sanções a serem aplicadas. De modo
geral, portanto, o Brasil inaugurou transformação paradigmática vivida
logo após nos demais países do continente, estabelecendo preceitos
norteadores do sistema, conforme pontua Mary Berloff13, como o
princípio da legalidade, mecanismos restaurativos e alternativos, idade
mínima de responsabilidade criminal, devido processo legal,
consequências legais para os jovens que se declaram criminalmente
responsáveis e internação como a última medida.

Certamente, o instrumento de maior ingerência do Estado sob a


vida dos adolescentes, agora protegidos pelo ECA é a medida
socioeducativa, isto é, a resposta estatal para o cometimento de ato
infracional - o que seria considerado crime, fossem sujeitos adultos.
Trata-se de mecanismo de duplo caráter, em que se encontram
interligadas intrinsicamente as dimensões punitiva e pedagógica. Se o
educar está no nome da sanção, no seu dever-ser, o punir está presente
na prática, nos efeitos e na aparência que as medidas vão começar a
apresentar para a sociedade a partir da vigência do Estatuto.

A ambivalência desta nova categoria jurídica, criada juntamente


com a responsabilização penal dos adolescentes, é confusa desde o seu
princípio e, ao irradiar-se, continua a causar interpretações tanto em um
sentido quanto em outro. Os técnicos responsáveis pela aplicação destas
medidas (sejam juízes, promotores, psicólogos, assistentes sociais ou

12
SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil:
adolescente e ato infracional. p. 27.
13
BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin
america. p. 210.
21

educadores) lidam com um objeto jurídico-educacional “que ao mesmo


tempo deve reabilitar infratores e cultivar cidadãos14”. Assim, ao
entender o adolescente como um ser passível de correição social, se
cristalizou um ponto intermediário de intervenção do Estado, entre
piedade e tratamento como meio de controle social15.

Conforme se vê, portanto, a despeito da importância da


promulgação do Estatuto no contexto brasileiro e latino-americano, a
legislação não logrou romper com o chamado trinômio pobreza, desvio
e delinquência, nas palavras de Liana de Paula16. O paradigma da
Situação Irregular, precedente ao ECA e sustentado na ideia da divisão
entre crianças e menores, ainda percorre os corredores das Varas da
Infância e Juventude e dos locais de execução de medida
socioeducativa. Compartilhando da análise realizada pela autora, ao
apostar no poder judiciário como agente promotor de cidadania,
ascensão social e garantidor dos direitos humanos, “a doutrina da
proteção integral aposta na instituição de caráter mais conservador do
Estado Moderno como propagadora de mudanças”17. Esquece, todavia,
que o sistema socioeducativo, ao aplicar sanções, se afasta menos do
que gostaria do sistema punitivo e, nesse sentido, segundo nos desvenda
Foucault18, concede ao juiz nada mais do que o poder de sancionar

14
FONSECA, Cláudia; SCHUCH, Patrice. Políticas de proteção à infância: um olhar
antropológico. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. p. 77.
15
NICODEMOS, Carlos. A natureza do sistema de responsabilização do adolescente
autor de ato infracional. In: ILANUD (Org.), Justiça Adolescente e Ato Infracional:
Socioeducação e responsabilização. São Paulo: ILANUD, 2006, p. 62-85.
16
PAULA, Liana de. Liberdade assistida: punição e cidadania na cidade de São
Paulo. 2011. - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2011. p. 61
17
PAULA, Liana de. Liberdade assistida: punição e cidadania na cidade de São
Paulo, p. 61.
18
CASTRO, Françoise. Foucault par lui même. Disponível em:
22

aquilo que já fora muito antes decidido, quando do momento da


apreensão do adolescente pela polícia.

2 VIOLÊNCIA POLICIAL NO COTIDIANO BRASILEIRO

No Brasil e no mundo, diariamente são propagadas, tanto nos


meios tradicionais da mídia quanto nas redes sociais, fatos relacionados
à violência19 policial. Ou seja, fatos que demonstram o aparato estatal
interagindo com os sujeitos desde uma perspectiva autoritária e abusiva
frente aos direitos humanos internacional e constitucionalmente
consagrados. É a violação, pura e simples, daqueles que virtualmente
teriam o dever de proteção. Mas, no Brasil, pensar segurança pública
não é o mesmo que pensar segurança para todos. A Constituição
Federal, promulgada em 1988, dedica, a partir do seu artigo 144, um
capítulo inteiro sobre o funcionamento das forças policiais – as quais,
como se em regimes autoritários estivessem, são consideradas, segundo
o art. 144, inciso IV, § 6º, forças auxiliares e de reserva do exército20 –
elencando as cinco dimensões em que a instituição é repartida para sua

<https://www.youtube.com/watch?v=Xkn31sjh4To>. Acesso em: 19.02.2017.


19
O termo violência é aqui utilizado no sentido atribuído por Ricardo Timm de Souza:
“Tudo aquilo que entendemos por violência, em todos os níveis, do mais brutal e
explícito à violência coercitiva e socialmente sancionada do direito positivo e,
inclusive, a violência autoinfligida, repousa no fato exercido de negação de uma
alteridade [...] A violência, no sentido aqui proposto, constitui-se na medida em que
se exerce, desde um polo de decisão individual ou social, de forma consciente ou em
contextos que sugerem inconsciência, atos que negam a condição de outro do outro,
ou seja, daquele que não pertence ao polo de decisão” (SOUZA, Ricardo Timm de.
Ética como fundamento II: pequeno tratado de ética radical. Caxias do Sul, RS: Educs,
2016, p. 100).
20
ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição
Brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da
ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 52.
23

atividade: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária


federal, polícia civil e polícia militar e corpos de bombeiros.

Diante das atribuições que a cada uma dessas estruturas é


relegada pelo ordenamento jurídico brasileiro, para o objeto ora em
voga, importa focar somente nas polícias militares, na medida em que
são elas as responsáveis pelas atividades ostensivas, quer dizer, buscam
coibir e prevenir atividades criminosas, lançando seus agentes à
realidade dos bairros, das comunidades, das favelas. É o policial militar
quem se apresenta num primeiro momento, inesperadamente ou quando
convocado, aos fatos que podem (ou não) decorrer de atividades
criminosas.

Por isso é que, ao se falar de polícia militar, está se falando do


bloco da instituição policial brasileira, e mesmo de forma mais ampla,
do sistema penal como um todo, que incide diretamente sobre a
sociedade e especificamente sobre os indivíduos (gestos, ações e
movimentos): ora, como uma de suas faces, poder disciplinar por
excelência, na medida em que busca docilizar corpos para que se
tornem (economicamente) úteis21. Nesse sentido, sua estética
(condensada em armaduras e aparatos de forte blinde) contribui para
sua função panóptica – enxergar sem ser enxergado – em que os
contemporâneos trajes de robocop mascaram a identidade do corpo ali
inserido. Verdadeiro efeito de viseira22.

21
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 2009, pp. 131-163.
22
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a
nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994, p. 23.
24

É incontroverso que uma polícia estruturada de forma militar


agirá como se em uma guerra estivesse (e, portanto, usará táticas
direcionadas a inimigos), sem deixar de olvidar que os maiores
genocídios cometidos até hoje estiveram a cargo de forças policias ou
de forças armadas que cumpriam funções de polícia - a America Latina
é um exemplo pulsante23. No caso do Brasil, a ausência de uma política
de transição da ditadura civil-militar para o regime político-
democrático também contribuiu para que a estrutura militarizada da
polícia se mantivesse intocada e, portanto, envolta em uma
continuidade autoritária em que morte e esquecimento24 pautam o
cotidiano dos homini sacri, ou seja, das vidas matáveis25. Dirá
acertadamente Nilo Batista: “O militar é adestrado para o inimigo, o
policial para o cidadão. Na estrutura militar, a obediência integra a
legalidade; na policial, a legalidade é condição prévia da obediência.
São formações distintas, dirigidas a realidades também distintas”26.

Segundo pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança


Pública, só no ano de 2015 se registraram no Brasil 3.320 mortes
decorrentes de intervenções policiais, sendo que no período
compreendido entre 2009 e 2015, foram auferidas 17.688 pessoas

23
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da “invasão” da América aos sistemas
penais de hoje: o discurso da “inferioridade” latino-americana. IN: WOLKMER,
Antônio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey,
1996. p. 165 a 209.
24
SAFATLE, Vladmir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson;
SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2010, p. 238.
25
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de
Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 16.
26
BATISTA, Nilo. Ainda há tempo de salvar as forças armadas da cilada da
militarização da segurança pública. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.); Ana Luiza
Nobre [et. al]. Paz Armada. Coleção Criminologia de Cordel. Rio de Janeiro: Revan,
2012, 1ª reimpressão, setembro de 2013, p. 51.
25

mortas pelas polícias. Na mesma pesquisa, estimou-se que 70% dos


entrevistados consideram que a polícia exagera no uso da violência,
havendo o reconhecimento de 63% de que a polícia não possui boas
condições de trabalho27. Não é nenhuma novidade que as más condições
da instituição policial (sucateadas no Brasil principalmente a nível
estadual) influência no modo como essa interage com a sociedade.

Ao contrário do que se poderia pensar, nem todas aquelas mortes


foram investigadas. Algumas, sequer lembradas. O esquecimento
(Amarildo vive em poucos...) vem solapando as esperanças de
mudanças nas estruturas policiais rigidamente postas desde tempos
sombrios que o país passou, reatualizando diariamente, nas localidades
mais vulneráveis, a barbárie. Sem transformá-los em números, mas
listando-os por ordem temporal, somente após a promulgação da
Constituição de 1988 teve-se: Carandiru, em 1992 (111 mortos);
Candelária, em 1993 (08 mortos); Vigário Geral, em 1993, (21 mortos);
São Paulo, em 2006 (500 mortos); Grande São Paulo, em 2015 (23
mortos); Costa Barros, em 2015 (05 mortos); Londrina, em 2016 (10
mortos); Porto Alegre, em 2016 (04 mortos). Sem contar os recentes
casos emblemáticos, como o desaparecimento do pedreiro Amarildo
Dias de Souza (2013), morto após ser torturado na Favela da Rocinha,
no Rio de Janeiro. Além dele, Cláudia Silva Ferreira (2014), arrastada
por um camburão e morta, posteriormente, com um tiro dado pela
polícia.

Fatores que são decisivos na compreensão dessa lógica de


extermínio são o racismo institucional combinado com uma estrutura

27
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 10º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, 2016, p. 06.
26

punitiva onde a guerra é o elemento fundante (afinal, o Estado não fez


cessar a guerra de uns contra outros como se havia pensado28). A guerra
às drogas, verdadeira síntese de racismo, criminalização e polícia,
atualmente, pode-se dizer, é o grande motor dessa máquina de moer
gente chamada sistema penal. No Brasil, sabe-se há muito, crianças e
adolescentes são alvejados e mortos sem sequer ter tido qualquer
contato, para uso próprio ou para comércio, com substâncias ilícitas.
Eduardo Ferreira, de 10 anos, assassinado em 2015 durante um
confronto entre policiais e traficantes no Complexo do Alemão, é o
exemplo dessa desumanização advinda de um progresso (pacificador)
que só acumula catástrofe. Embora o quadro de Klee represente o pavor
do anjo frente ao vento que sopra do passado29, a realidade brasileira
estaria também representada pelo quadro de Edvard Munch30.

Assim é que se deve destinar uma visão ampla à questão da


militarização da polícia no Brasil, visto que sua prática cotidiana – fruto
de diversos fatores passados e não enfrentados e de conjunturas atuais
– acaba por impossibilitar a afirmação de direitos, antes possibilitando
tão somente a criminalização e a violação massiva e a conta-gotas
desses. Ao se tratar de uma parcela da população tão vulnerável como
adolescentes, nota-se certos entraves que essa polícia militarizada,
acostumada no Brasil a assassinar e torturar para garantir a segurança

28
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France
(19751976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.
91.
29
Em referência à tese IX das teses “Sobre o conceito da história” de Walter Benjamin
(BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin
– 8ª Ed. Revista – São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v.1, pp. 245-246).
30
Em referência ao famoso quadro O Grito, de Edvard Munch, em que uma criatura
demonstra, com as mãos coladas na face, angústia e desespero.
27

(de uns poucos), acaba impondo na concretização inclusive de


legislações vigentes promulgadas já no regime político-democrático.

3 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E


POLÍCIA NO BRASIL: INCOMPATIBILIDADE
INTRANSPONÍVEL
Nesse sentido, é preciso pontuar que a ideia de ressocializar
através do sistema penal não é necessariamente uma novidade do ECA.
Na criminologia, tal noção se apresenta como um dos regimes em que,
em determinado momento histórico, a pena tornou como objetivo
declarado. Uma breve história dos pensamentos criminológicos31 deve
passar pelas apropriações e reelaborações de termos que o sistema penal
se utiliza para justificar sua barbárie. Ressocializar é uma delas, entre
todos os métodos “re” (reintegrar, readaptar, reinserir) pela qual a
clientela desse sistema perverso teve de se submeter.

Não faz muito tempo que uma onda – e assim é chamada pelo
fato de vir e voltar constantemente, não tendo lugar definido – de
ressocialização acossou os sistemas penais do mundo. Terminada a
Segunda Guerra Mundial, parte da segunda metade do século XX, nos
países centrais, conheceu-se o chamado welfare state, onde o Estado,
diante de uma memória recente de terror, passou a dar assistência direta
aos indivíduos. Para os criminalizados e encarcerados da época, o
discurso estava centrado na busca pela ressocialização – a ideia de um
previdenciarismo penal girava em torno da prosperidade da sociedade,
incluindo nela os criminalizados sob cuidado agora de um Estado

31
Para uma visão geral, ver: ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos
criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca
de Criminologia, 2008.
28

preocupado tanto com a reforma quanto com o bem-estar deles32.

No mesmo período, a partir da segunda metade do século XX, a


retórica da reabilitação encontrou lugar cativo na temática da justiça
juvenil, não apenas na América Latina, mas nos sistemas de justiça
juvenil ao redor de todo o mundo33. Diferentemente da lógica penal, em
que o neoliberalismo da década de 70 em diante retoma o ideal
retribucionista da pena, o sentimento reabilitador continua vivo ao
redor do mundo no contexto da justiça juvenil. As razões para a
preservação deste ideal não são propriamente a crença completa nos
benefícios alcançados com a reabilitação, mas estão muito mais
relacionados com o diagnóstico de que o fenômeno da especialização
da justiça juvenil ao redor do mundo inquestionavelmente conquistou a
garantia de menos adolescentes encarcerados e de menos tempo de
reclusão34.

De todo modo, o discurso legal e majoritário da doutrina


especializada no tema é de que, a despeito da natureza sancionatória da
medida, “a responsabilização do adolescente em conflito com a lei deve
atender ao caráter socioeducativo”35. Legitima-se, portanto, a
intervenção estatal na vida do sujeito para que a este sejam

32
GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade
contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 110.
33
ZIMRING, Franklin E.; LANGER, Máximo. One theme are many? The search for
a deep structure in global juvenile justice. In: LANGER, M.; TANENHAUS D. S;
ZIMRING, F. E. (Org.). Juvenile Justice in Global Perspective. New York: New York
University Press, 2015. p. 389.
34
Idem, ibidem.
35
COSTA, A.P. M.Os direitos dos adolescentes em cumprimento de medidas
socioeducativas e sistema constitucional brasileiro. In: CRAIDY, C. M.;
SZUCHMAN, K. (Org.). Socioeducação: Fundamentos e Práticas. Porto Alegre:
Evangraf, 2015. p. 19.
29

concretizados o acesso a certos direitos sociais até então


negligenciados, na esperança de que essa reposição estatal desencoraje
a prática de atos infracionais pelo adolescente. Trata-se, em verdade, da
ideia de que o resgate dos direitos constitucionais de primeiro nível 36 -
como educação, habitação, convivência familiar, cultura, saúde e
esporte - não só é possível passados de 12 a 18 anos da vida do sujeito,
com é fundado pedir em contrapartida o abandono da prática criminosa
pelo adolescente.

Ocorre que, é curioso imaginar como sustentar tal ideologia em


que o adolescente precisa readquirir confiança no Estado - uma vez
que o próprio assume suas falhas com o sujeito até então - quando o
primeiro contato entre indivíduo-judiciário se realiza através da polícia.
É difícil, portanto, que as ideias contidas no Estatuto da Criança e do
Adolescente possam prosperar enquanto não se enfrentar o mecanismo
que realiza o jogo de seleção entre os adolescentes a ser captados: a
polícia militar. Aprofundada na ditadura civil-militar, a militarização,
calcada nas formas da disciplina e do combate àquele que obstrui o
recorrente e recorrido termo ordem pública, só reproduz violência, dor
e sofrimento quando do contato com indivíduos vulneráveis –
vulnerabilidade essa que se dá propriamente em função da idade, mas
que resta alargada no Brasil em razão de classe e cor.

Quer dizer: vulnerável pela adolescência, mas mais vulnerável


ainda se jovem, pobre e negro. As proteções que o ECA projeta para os
adolescentes não impedem que a polícia militar viole massivamente
seus direitos no dia-a-dia das favelas, dos bairros pobres, das delegacias

36
SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil:
adolescente e ato infracional. p. 50.
30

e das fundações em que mantidos segregados. Visto como inimigos, a


eles nenhum direito cabe: visão diária e corriqueira que a polícia militar
não cansa de reproduzir e, o pior, de ser aplaudida por segmentos
fascistas de classes mais abastadas, despreocupadas com o destino de
uma juventude que há muito experimenta a cilada da cidadania –
também conhecida como ciladania37.

O que foi trazido até então projeta, portanto, um oximoro


chamado ressocialização militarizada. Como a ressocialização de um
adolescente, o qual se encontra em fase da vida que justifica o
reconhecimento especial da própria legislação vigente, pode em alguma
medida prosperar através da violência que a militarização opera? No
Brasil, como um adolescente pode ter seus direitos consolidados se,
para chegar até eles, é obrigatório que seja captado por uma polícia
operando em uma lógica de guerra, a exterminar seus inimigos? Por
último, é possível que uma legislação como o Estatuto da Criança e do
Adolescente consiga operar em seu máximo quando intocadas as
garantias e prerrogativas de uma polícia militarizada desde a época da
recente ditadura civil-militar? Questões essas que, por certo, se
possuem resposta, tais encontram-se no plano da realidade, certamente
mais violenta e cruel do que as elucubrações teóricas aqui explanadas.

37
BATISTA, Vera Malaguti. Marx com Foucault: análises acerca de uma
programação criminalizante. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.02, n.04, p. 25-
31, julho-dezembro de 2005, p. 28.
31

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exposto, candente se torna pontuar algumas breves


reflexões finais. Na maneira como a justiça juvenil funciona, a sua
identificação com o sistema penal torna-se inafastável, ainda que se
tenha uma legislação que pretende realizar uma distinção teórico-
prática, mascarando o evidente. A reabilitação dos adolescentes,
portanto, é mera ferramenta discursiva que está em completo desacordo
com a prática da justiça juvenil no Brasil. A despeito de existirem
razões legítimas para mantê-la, não se pode deixar de apontar as
contradições e barreiras que essa pretenção ressocializativa encontra no
momento da sua operacionalização. Uma polícia militarizada é a maior
delas.

Atuando com sua engenharia violenta de controle social, a


instituição policial no país atua renovando, diariamente, o exército de
corpos dóceis disponíveis ao sistema econômico e social – afinal,
alguns grupos devem submeter-se à disciplina necessária para que se
contentem com subempregos. No entanto, essa lógica disciplinar não
afasta a verdadeira política de morte estatal instrumentalizada pela
polícia militar nas zonas periféricas. Assim, em sendo pressuposto o
entrelaçamento dessas duas esferas – legislação reabilitadora e polícia
militarizada – para o funcionamento da justiça repressiva a
adolescentes, difícil vislumbrar como não haver um campo de disputa
entre elas. Seus discursos caminham em direção opostas, porém devido
à necessidade da atuação conjunta no momento da intervenção estatal
na vida do adolescente, suas práticas se chocam.
32

Choque esse inabalável, mesmo que maiores sejam os esforços


reformistas tanto no sistema socioeducativo, quanto na polícia
historicamente militarizada. Transpor essa lógica significaria estarem
dispostas, sociedade e governabilidade estatal, a renunciar uma ou outra
dessas estratégias. É por essa razão que uma ressocialização
militarizada carrega consigo a impossibilidade de um por vir garantidor
dos direitos fundamentais da juventude brasileira, seja ela criminalizada
ou não.

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33

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TANENHAUS D. S; ZIMRING, F. E. (Org.). Juvenile Justice in
Global Perspective. New York: New York University Press, 2015, p.
383-411.
35

RETRATO DO ABUSO DE PODER PELA ÓTICA


CRIMINOLÓGICA

Caroline Bussoloto de Brum1

INTRODUÇÃO

A necessidade de impor limites aos poderes do Estado perfaz


eras e civilizações. Dada a necessidade contínua de transformação
social, uma vez que reconhecidos como cidadãos ativos e saturados do
absolutismo, a população burguesa revoluciona-se em prol de garantir
seus direitos, sua liberdade e igualdade.

Nunca para os cidadãos existiram direitos absolutos na esfera


pública antes das revoluções burguesas, exceto para o soberano, cujos
direitos e poderes se fundiam. Os direitos públicos, como conhecidos
atualmente, eram roupados como possibilidades de iniciativa pessoal,
construídos como privilégios, ou mais frequentemente como status,
concedidos às coletividades2.

As revoluções burguesas tentaram elevar certos interesses


fundamentais ao nível de garantias, tentando tornar tais direitos
absolutos. Essas metas foram, em certa medida, entendidas como
planos de ação, pelo menos na teoria inicial para a elaboração da

1
Pós-Graduanda na Especialização em Direito Penal e Políticas Criminais na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Advogada.
2
SAJÓ, András. Abuse of Fundamental Rights or the Difficulties of Purposiveness
(29-98). In: Abuse: The Dark Side of Fundamental Rights. Edited by András Sajo.
Eleven International Publishing. 2006. p. 43.
36

declaração resultante da revolução francesa.3 A declaração francesa dos


Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que define os direitos
individuais e coletivos dos homens como universais, não trouxe a
resolução desta matéria, ou seja, deixou para a legislação interna de
cada Estado signatário prever os limites aos direitos que ali dispõe como
mínimos.
Para compreender melhor o contra o que se revolucionaram, é
necessário saber o conceito trazido como “Estado” que pode ser
entendido como “um grande conjunto de pessoas, instituições e classes
que possuem o monopólio do poder e da força física”. 4 O Estado,
enquanto garantidor, busca suprir demandas populares, e, quanto menos
seguras estão as pessoas, mais elas exigem um Estado policial e um
Estado forte. Um Estado estruturalmente forte e altamente policial
reduz o espaço da democracia e estrutura-se para garantir, a qualquer
preço, a realização dos interesses dos sujeitos e classes que o
controlam5.

O Estado no modelo autoritário mais moderno, pós-


imperialistas, não pode ser encarado como algo contra as massas, mas,
ao contrário, aceito e, geralmente, defendido por elas, uma vez que nada
acontece sem que ocorra uma consonância com as aspirações coletivas.
Não se pode dizer que elas concordam com um Estado de terror tal, mas
sim, que buscam uma certa segurança que só é encontrada, nos termos
de hoje, como sinônimo de um Estado todo-poderoso.6

3
SAJÓ, András. Idem. p.43.
4
FILHO, Ciro Marcondes. Violência Política. Coleção polêmica. Editora moderna,
1987. p. 54.
5
FILHO, Ciro Marcondes. Idem. p. 56.
6
FILHO, Ciro Marcondes. Idem. p. 72.
37

Para melhor elucidação, as massas, enquanto definição


terminológica, somente são utilizadas neste contexto quando lidamos
com pessoas que são, devido ao seu número ou indiferença, ou ambos,
não integrantes de qualquer tipo de organização de interesses comuns,
como partidos ou sindicatos. São indivíduos comuns e presentes nos
Estados totalitários, que “não se unem pela consciência de um interesse
e falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em
objetivos determinados, limitados e atingíveis”.7Assim, a incansável
busca pela garantia e concessão de direitos nada mais é do que a
perquirição pela proteção dos arbítrios do Estado, que, na maioria das
vezes, foram inclusive legitimados pelos próprios cidadãos.

Assim, os modelos tradicionais de sociedade e Estado surgiram


baseados na hierarquia e esta, por sua vez, no poder. Nesta linha de
raciocínio, as normas jurídicas, as morais e as sociais emanam de um
poder hierarquizado e seguem uma direção descendente. Desta forma,
quem ostenta o poder, ou participa dele de alguma maneira, não só o
detém, mas é identificado ou relacionado com a “fonte dos valores
sociais”, culminando na impressão de que “o poderoso não somente é
forte, mas acaba sendo visto como bom”.8 Com esta estrutura social era
natural que a criminalidade aparecesse em sua maioria, ou até
totalidade, representada pelos marginalizados.

7
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo e
Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 361.
8
PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder Aspectos
Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia
frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano
en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 45.
38

1. CRIMINOLOGIA E ABUSO DE PODER - EVOLUÇÕES


TEÓRICAS

Os criminólogos italianos Lombroso, Ferri e Garófalo, quando


iniciaram o estudo empírico da criminalidade e fundaram a
criminologia positivista, fizeram suas considerações a partir dos
“delinquentes” que povoavam as prisões. Eles estudavam os autores de
delitos, classificando-os e estereotipando-os através da análise suas
personalidades, chegando à conclusão de que eram portadores de uma
patologia.9 Hoje, já se adverte ao fato de que estas pessoas, e não outras,
constituíam e ainda constituem a “clientela” habitual do sistema penal
pela valoração e tomada de decisões serem realizadas por quem tem a
capacidade (dispõe do poder) de definir o que vem a ser delito ou não,
e de quem são os perseguidos ou não como delinquentes.10

Mas não foi nem a valoração social ou a estrutural adotada pelos


positivistas italianos, ou pela Criminologia tradicional. Partiu-se, ao
contrário, do conceito natural de delito, segundo o qual este não é um
produto de um determinado tipo de sociedade, mas sim algo intrínseco
ao indivíduo, que o faz nocivo. A consequência disto foi que ficou
consagrado um conceito de “delinquente” vinculado estreitamente à
marginalização social, fazendo com que as tipologias desses elaboradas
à época não se ajustassem à imagem de quem abusava das posições de

9
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de
Janeiro: Revan, 2011, 2ª edição. p. 45/46.
10
PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder
Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La
Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 43.
39

privilégio tanto social, como econômico ou político.11 Esta noção


errônea estereotipada ainda pode ser observada no pensamento
criminológico atual, enraizado de uma forma cultural através das
classificações hierarquizantes que se expandiram após o período
colonialista12.

Uma das realizações das novas teorias criminológicas foi ter


descoberto a chamada ubiquidade da delinquência. Com esse conceito,
quer se dizer que os delitos podem e são cometidos em todos os níveis
da sociedade, mas gera, concomitantemente, um fenômeno onde não se
pode identificar todos aquele que cometem crimes, ou seja, a chamada
cifra negra da criminalidade.13 Dentre as novas teorias, surge a
criminologia crítica, nascida em contraponto às teorias tradicionais
positivistas, analisa o abuso de poder, explicando inicialmente que a
adoção da teoria liberal pode ser útil para impor limites aos governos,
tendo como característica central a prescrição de reformas,
concentrando-se em pesquisas sociológicas para sugerir mudanças
institucionais e sociais como meios de prevenção do comportamento
antissocial.14 Comparando-se as teorias conservadoras e liberais, pode-
se chegar ao ponto comum de que ambas não questionam a estrutura
social ou suas instituições jurídicas e políticas, mas se dirigem para o

11
PUIG, Santiago Mir. Idem. Ibidem.
12
BATISTA, Vera Malaguti. Idem. p. 41.
13
PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder
Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La
Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 44.
14
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª ed. Curitiba: ICPC Lumen
Juris, 2008. p. 4.
40

estudo da minoria criminosa, elaborando etiologias do crime fundadas


em estudos patológicos, psicológicos e até genéticos.15

Para contrapor as teorias criminológicas meramente focadas em


aspectos internos do indivíduo desviante, surge a criminologia radical,
criada no Grupo Europeu para o Estudo do Desvio e do Controle Social,
em Florença na Itália, em 1972. Tal vertente, denunciava os modos
dominantes de análise do crime, que viam o criminoso como “produto
de defeitos psicológicos ou de personalidades anormais”, e o controle
social, que era avaliado apenas em termos de efetividade e eficiência
através das estatísticas criminais.16

Ou seja, as análises do que era crime e de quem era o criminoso


eram feitas pela camada superior de poder, que não ditava suas próprias
características como as comuns aos indivíduos criminosos, fazendo
com que ficassem evidentes as relações entre os sistemas de controle
social e a estrutura de classes do modo de produção capitalista. 17 Tal
vertente criminológica chega à conclusão de que os caracteres sociais
do sujeito ativo do abuso de poder, ou seja, aquele que executa o crime
no exercício de atividades político-administrativas, pela soma das
complexidades legais, das cumplicidades oficiais e pela atuação de
tribunais, às vezes especiais para tais autores, explica a imunidade
processual e a inexistência de estigmatização criminal para estes.18

Desta forma, a criminologia radical aponta as estatísticas


criminais como “produtos da luta de classes nas sociedades

15
SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem, Ibidem.
16
SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem. p. 7.
17
SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem, Ibidem.
18
ANIYAR, 1977, p. 92-93 apud SANTOS, 2008 p.13.
41

capitalistas”,19 afirmando que a criminalidade das classes dominantes,


expressa pelo abuso de poder econômico e político, está excluída das
estatísticas criminais, uma vez que sua origem estrutural e o lugar de
classe dos autores, os quais se encontram em posição de poder
econômico e político, são as explicações desta exclusão.20 Descobre
também que no sistema de justiça criminal há uma disjunção concreta
entre uma ordem social imaginária, que é difundida com noções de
igualdade e de proteção geral, e uma ordem social real, na qual ocorrem
desigualdade e opressão de classes.21

Nos anos 70, surge um movimento teórico com amplo impacto


popular conhecido como a criminologia da denúncia, que focava no
comportamento dos poderosos, “enunciando os defeitos das elites de
poder econômico e político da sociedade, para mostrar que os que
fazem as leis são, também, os maiores violadores dessas leis”22. Esta
vertente criminológica supõe que os poderosos deteriam um "direito
moral" que os capacita a converter força em "autoridade", por meio dos
procedimentos legalmente estabelecidos.23 Demonstrando que a
criminalidade do poder econômico e político não é um fenômeno
irregular ou acidental, mas sim regular e institucionalizado, fortemente
ligado à posição estrutural de classe na formação social. Assim,
conforme traz Cirino em sua explicação sobre o tema, o ponto central

19
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª ed. Curitiba: ICPC Lumen
Juris, 2008. p. 14.
20
YOUNG, 1979, p.16 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 14.
21
SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem. p. 15.
22
TAYLOR et alii 1980, p. 33 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 25.
23
TAYLOR et alii 1980, p. 33 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 26
42

que gera consequências práticas da criminologia radical é a negação do


mito do direito penal igualitário, ou seja

a proteção geral de bens e interesses existe, realmente,


como proteção parcial, que privilegia os interesses
estruturais das classes dominantes; a igualdade legal, no
sentido de igual posição em face da lei, ou de iguais
chances de criminalização, existe, realmente, como
desigualdade penal: os processos de criminalização
dependem da posição social do autor e independem da
gravidade do crime ou do dano social. 24

Desse modo, a criminologia radical melhor explica as relações


de poder e desigualdade, a fim de explicar a criminalização demasiada
dos marginalizados, bem como a precária falta de criminalização
daqueles que detêm o poder ou que podem dele se utilizar para
subverter o direito em seu benefício.

2. CRIMINALIDADE INCIDENTE NO ABUSO DE PODER

Dentre os tipos de abusos estatais aos quais os indivíduos estão


sujeitos, encontra-se o abuso de poder, que é o mais frequente e
suscetível a todos. Pode ser estruturado de forma a supor que o autor
deste, em uma determinada classe social alta, dispõe de um poder
potencial ou que o permite exercê-lo de maneira especial, não
disponível para qualquer um, e que apresenta uma influência contra os
desejos dos outros.25 Normalmente os praticantes do abuso de poder

24
BARATTA, 1978, p. 10 apud SANTOS, 2008, p. 46 e ss.
25
TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles
Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J.
(Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais
Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 13.
43

possuem uma ambição patológica, ou seja, sentem o poder como uma


droga26.
As causas que o motivam, geralmente, são a necessidade de
prestígio, a ambição de poder e a excessiva aspiração de influência. É
característico o esforço por aumentar ou reforçar a situação de poder já
existente, a ânsia pela perpetuação do poder quando ele não pode ou
não conseguiu desenvolver-se de maneira legal ou pelas vias
democráticas, que tem como consequência o abuso de poder que se
dirige à ilegalidade27.

Dados os mais distintos sentidos possíveis para o conceito de


poder, também são diversas as possibilidades para entender o conceito
objetivo de delinquência relacionada com o abuso deste poder. Em uma
análise ampla do sentido, o poder a que se alude pode alcançar não
somente o estatal ou o político, mas também a capacidade de influência
que tem determinados sujeitos por ocuparem posições sociais ou
econômicas privilegiadas. Não cabe no sentido amplo de poder a
criminalidade objetivamente relacionada com o crime, o qual se cometa
utilizando o aparato institucional do Estado, pois este é entendido como
uma manifestação no sentido estrito de delinquência por abuso de
poder28.

Comumente, a responsabilidade penal para as formas


tradicionais do abuso do poder é reconhecida às pessoas físicas, que são

26
TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 14.
27
TRIFFTERER, Otto. Idem, Ibidem.
28
PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder
Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La
Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 46.
44

aquelas na primeira linha para a responsabilidade penal. Mas, há algum


tempo, se realizam esforços a nível nacional e internacional para
estabelecer a responsabilidade penal das pessoas jurídicas e inclusive
do Estado29. Nos casos de abuso de poder cometidos por órgãos estatais,
inclusive nos Estados democráticos, os mecanismos sancionadores
existentes muitas vezes não funcionam corretamente, fazendo com que
esta forma de aparição do abuso de poder seja objeto, mais que qualquer
outro delito, de um crescente interesse internacional.30

Esta atenção especial na esfera internacional se deve, sobretudo,


por tais abusos de poder geralmente violarem direitos humanos. A
mesma comunidade internacional se sente cada vez mais chamada a
denunciar tais violações e a exercer pressão sobre o Estado agressor, se
faltam, por exemplo, os mecanismos sancionadores ou de controle.31 O
abuso de poder estatal ocorre quando se comete um abuso de poder
mediante órgãos do Estado ou ao menos com seu consentimento ou sua
tolerância tácita. Nestes casos, são inclusos também os responsáveis
pela administração da justiça, visto que é um poder do Estado, que,
sequer em uma democracia, se vê livre de influências externas e
ocasionalmente pode vir a ser o autor do abuso do poder.32

Em tempos de Estado democrático, via de regra, a probabilidade


de alguém ser vítima de um abuso de poder estatal que restrinja sua
liberdade, lhe cause prejuízo ou até mesmo culmine em uma fatalidade,

29
TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles
Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J.
(Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais
Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 16.
30
TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 16.
31
TRIFFTERER, Otto. Idem. Ibidem.
32
TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 17.
45

é consideravelmente menor que em uma ditadura ou em um Estado


absolutista. Porém, o abuso do poder costuma aparecer onde o poder
não seja suficientemente controlado, sendo tão somente um consolo que
em uma democracia, que geralmente funciona, se estabeleçam meios
legais que possibilitem aos prejudicados se defenderem ou serem
indenizados em eventuais abusos.33

Quanto aos problemas dogmáticos encontrados na delinquência


vinculada ao abuso de poder, pode-se dizer que esta não se limita a este
ou àquele tipo de delito, mas sim, em qualquer dos delitos que possam
ser cometidos abusando do poder, na medida em que estes se
caracterizam frequentemente pela utilização de um aparato hierárquico,
que muitas vezes obscurece a individualização dos responsáveis.34

3. ABUSO DE PODER PELA AUTORIDADE POLICIAL -


BREVES OBSERVAÇÕES CRIMINOLÓGICAS

Por fim, cabe analisar a conduta de abuso de poder daquele que


viola mais diretamente os direitos, pela sua presença na linha de frente
representando o Estado: a autoridade policial. Neuman analisa a
violência e o papel da polícia no contexto da América Latina, e

33
TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles
Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J.
(Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais
Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 18.
34
PUIG, Santiago Mir. Problemas Dogmáticos Generales de la Delinquência de
Abuso de Poder (111-120). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La
Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 113.
46

realizando pesquisas empíricas com policiais dos países na Argentina,


Uruguai, Brasil e México, chega à conclusão de que

Suas mentes parecem aderidas a precisos e inalteráveis


esquemas. Se expressam e observam - talvez por omissão
profissional - com desconfiança como se estivessem
sempre na presença de alguém suspeito. Possuem todos
um grande “espírito de corpo” e, muitos deles, ideias
fixas como tatuagens de que o delinquente é perverso,
canália, mentiroso bem armado, não tem nada a perder, é
um refugo humano, é uma praga ou carniça, é tudo, tudo
isso, menos ser humano. A violência que muitos
descarregam em sua ação frente a delinquência é, para
eles, sempre uma resposta e nunca uma provocação.35

A atuação desta polícia acaba vendo com normalidade a


presença da violência no seu cotidiano, não em seu fim, mas em seu
meio de exercício profissional. Inclusive expressam publicamente que
o conceito de repressão tem variado pela maior violência delitiva,
tentando justificar a atuação truculenta, quando na realidade, querem
dizer que a repressão violenta do crime tem se tornado uma atividade
elementar, diária e indispensável.36

Nos países da américa latina, ainda persiste a ideia de que o


crime é algo avassalador, tomado de características amedrontadoras,
fazendo com que seja útil aos discursos políticos, implantando o Estado
de terror, que acaba por legitimar e amparar a ação policial. 37 Assim,

35
NEUMAN, Elías. El Abuso de Poder em la Policia Latinoamericana (131-148). In:
BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder.
Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II
Cursos Europeos, 2001. p. 135.
36
NEUMAN, Elías. El Abuso de Poder em la Policia Latinoamericana (131-148). In:
BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder.
Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II
Cursos Europeos, 2001. p. 136.
37
NEUMAN, Elías. Idem. p.136.
47

surgindo a aclamada “guerra contra o crime”, que, aos moldes da ânsia


pela vingança privada praticada pelo poder público, limita-se ao campo
da violência como inalterável e única resposta.

Além da constante violência nas abordagens, existe ainda a


prática cotidiana da tortura, a qual é convertida em um método de
trabalho e realizada por alguns que foram conscientizados para impor a
sua função um sentido de “ordem e limpeza”.38 Os torturadores são
geralmente recrutados nas classes sociais mais desprotegidas, por meio
de um processo que é conhecido como policização.

Por fim, cabe ressaltar que o abuso de autoridade, como já


exposto, apesar de suas mais diversas facetas, quando carregado de
violência na ação política, expressa uma visível força do domínio e do
governo.39 Não sendo essa força um objetivo consciente do corpo
político, ou ainda, o alvo final de qualquer ação política definida, uma
vez que a força sem coibição gera mais força, e a violência, quando
administrativa, em benefício da força e não da lei, “torna-se um
princípio destrutivo que só é detido quando nada mais resta a violar”40.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como observado, o abuso de autoridade vem de uma relação


hierárquica de poder estatal, que ao longo do tempo, com a evolução
dos direitos, pode ser criminalizado e punido. As estruturas de poder
são baseadas na hierarquia e dificilmente podem ser desconstituídas ou

38
NEUMAN, Elías. Idem. p. 141.
39
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo e
Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 167.
40
ARENDT, Hannah. Idem. p. 167.
48

alteradas pelas suas frequentes vítimas. Porém, a tipificação do abuso


de poder buscou mais do que punir, mas também garantir os direitos
básicos encontradas nas cartas de direitos humanos que hoje pautam
internacionalmente o tema.

No Estado brasileiro, apesar de não ser este o tema do presente


artigo, vale observar que possui sua própria legislação sobre a temática,
tratada na Lei 4.898 de 09 de dezembro de 1965, que traz os
procedimentos necessários na seara cível e criminal para representação
nos processos de abuso de autoridade.

A lei, editada no período em que os militares se encontravam no


poder (1964-1985), no projeto original, em sua exposição de motivos,
justificava sua existência pois

Previu a Constituição, ao instituir as regras fundamentais


que caracterizam o estado de direito e ao inscrever no seu
texto direitos e garantias individuais, que abusos
poderiam ser cometidos pelas autoridades encarregadas
de velar pela execução das leis e pela manutenção da
vigência dos princípios asseguradores dos direitos da
pessoa humana. Conferiu, por isso mesmo, a quem quer
que seja, o direito de representar contra os abusos de
autoridades e de promover a responsabilidade delas por
tais abusos [...]41.

Assim, apesar da lei ter como objetivo responsabilizar os abusos


feitos pelas autoridades, e dentre eles, estar elencado em seu art. 4º ser

41
FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de
Autoridade: notas de legislação, doutrina e jurisprudência à Lei 4.898 de 9.12.65 - 4ª.
ed. ampl. e rev. de acordo com a Constituição de 1988 - São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1991. p. 15-16.
49

o abuso de poder uma modalidade de abuso de autoridade, 42 esta foi


editada em um dos períodos onde mais ocorreram abusos pelas
autoridades estatais no Brasil.

O relatório conduzido pelo bispo Dom Paulo Evaristo Arns


acerca da repressão política realizada no período da ditadura militar,
especialmente de 1964 a 1979, averiguou, dentre as várias atrocidades
cometidas, que eram além de comuns, incentivadas e legalizadas as
supressões de direitos aos perseguidos políticos. Dentre elas, destaca a
falta de submissão dos presos ao poder judiciário, afirmando que

[...] Isso repercutia na pessoa do preso político de várias


maneiras. A principal delas era que os presos ficavam
inteiramente subordinados ao controle dos organismos
policiais, que não submetiam seus atos a apreciação
judicial. Nessas condições, onde os processos não
registravam os responsáveis pelas prisões, nem o
momento e as circunstâncias em que elas ocorriam, a
defesa ficava bastante prejudicada. Além disso, a falta
dessas informações implicava na ocultação das
responsabilidades das autoridades pela custódia dos
presos, gerando a impunidade face às violações da
integridade física e moral [...]43.

Ou seja, mesmo em um dos períodos mais sombrios da história


brasileira, onde a regra era a imposição do medo pelo aparelho estatal,
onde a força ideológica e até instrumental impunha a lei e a ordem na
república, houve uma lei que buscava coibir tais abusos, ironicamente
punidos por aqueles que os permitiam.

42
Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: a) ordenar ou executar medida
privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;
[...]
43
ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 16-17.
50

Por fim, cabe ressaltar que a análise do abuso de autoridade pela


criminologia destaca em sua maior parte a origem do perfil criminal e
como este por muito tempo não foi condizente aos violadores por parte
do Estado, ou que por esse foram legitimados. Assim, demonstra a
evidente necessidade de proteção do cidadão e da segurança jurídica na
aplicação da lei indistintamente para todos que a violem, pois aqueles
que abusam de seu poder, especialmente por meio do Estado, não
apenas extrapolam seu papel de garantidor, mas viram violadores de
direitos humanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo,


Imperialismo e Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes,


1987.

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia


brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, 2ª edição.

FILHO, Ciro Marcondes. Violência Política. Coleção polêmica.


Editora moderna, 1987.
FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso
de Autoridade: notas de legislação, doutrina e jurisprudência à Lei
4.898 de 9.12.65 - 4ª. ed. ampl. e rev. de acordo com a Constituição de
1988 - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991.

NEUMAN, Elías. El Abuso de Poder em la Policia Latinoamericana


(131-148). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia
frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001.

PUIG, Santiago Mir. Problemas Dogmáticos Generales de la


Delinquência de Abuso de Poder (111-120). In: BERISTAIN. A.;
51

CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder.


Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San
Sebastian - II Cursos Europeos, 2001.

_______________. La Delinquência Relacionada com el Abuso de


Poder Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.;
CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder.
Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San
Sebastian - II Cursos Europeos, 2001.

SAJÓ, András. Abuse of Fundamental Rights or the Difficulties of


Purposiveness (29-98). In: Abuse: The Dark Side of Fundamental
Rights. Edited by András Sajo. Eleven International Publishing, 2006.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª ed. Curitiba:


ICPC Lumen Juris, 2008.

TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos de Abuso de Poder y sus


Posibles Respuestas em Derecho Penal Material (11-24). In:
BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al
Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de
Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001.
52

ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O PAPEL DA


LITERATURA NÃO FICCIONAL E/OU MARGINAL
NA TRADUÇÃO DOS DISCURSOS PRODUZIDOS
PELO SISTEMA PUNITIVO A PARTIR DO
CONCEITO DE “LOCAL DE FALA”

Cibele de Souza1

“LOCAL DE FALA”: PROBLEMATIZAÇÕES INICIAIS

Algumas palavras estão entrelaçadas de modo tão contundente


que a desconstrução de suas definições torna-se praticamente
impossível. O discurso que as define normalmente vem arraigado de
duplos sentidos pejorativos que inevitavelmente interligam uma a outra
no imaginário social. A tentativa das pesquisas empíricas, com uma
base de dados sólida, não é capaz de ultrapassar a ignorância desvelada
nos discursos de ódio2 reproduzidos diariamente por grande parcela da

1
Advogada com inscrição na OAB/RS nº 92.686. Pós-graduanda em Ciências Penais
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016). Formou-se em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (2012). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Penal
Contemporâneo e Teoria do Crime, sob a coordenação do Prof. Dr. Fabio Roberto
D'Avila, e do Grupo de Criminologias da OAB/RS; e do Grupo de Pesquisa em
Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC - PUCRS),
coordenado pelo Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, e do grupo de pesquisa
Processo Penal Contemporâneo: fundamentos, perspectivas e problemas atuais
coordenado pelo Prof. Dr. Nereu José Giacomolli. E-mail:
cibele_de_souza@hotmail.com
2
DA SILVA, Rosane Leal e Outros. Discursos de ódio em redes sociais:
Jurisprudência brasileira. Revista direito FGV, São Paulo, 7(2)|p.445-468|jul-
dez2011.Sitio em: http://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/artigo/discursos-de-
odio-redes-sociais-jurisprudencia-brasileira. Acesso em 20 de fev. 2017.
53

população brasileira, especialmente quando o tema versa sobre


violência, periferia, criminalidade e sistema penal.

De outro ponto, a linguagem empregada socialmente não


contempla a todos. Embora a língua seja a premissa básica para
cognição e expansão de uma civilização, percebe-se que a “fala”
permeia as glorias e as derrotas de uma sociedade. Em que pese a
evolução comunicativa presenciada ao longo da história, o “poder”
objetificado pela “fala” mantém-se disponível nas mãos dos mesmos
indivíduos ao longo dos tempos, ou seja, nas mãos de alguns poucos
homens.

Nesse passo, o questionamento que se propõe no presente artigo


é sobre o poder que a literatura não ficcional e/ou marginal tem como
elemento de reprodução e conhecimento da realidade social brasileira e
de transmutação dos estigmas intrínsecos a algumas falas. Com base na
ideia de desconstrução dos conceitos e barreiras impostas socialmente,
buscaremos, a partir dos fundamentos da criminologia radical3, realizar
uma análise dos discursos envolvidos na literatura nacional não
ficcional4 e na literatura marginal5 sobre a “cultura da punição”,

3
Juarez Cirino dos Santos3 a criminologia radical visa: “contribuir para a formulação
de políticas criminais democráticas e humanistas, opostas ao boom repressivo e
intolerante das políticas penais próprias do período de globalização da economia
capitalista ...”. SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia Rádical/ Juarez Cirino
dos Santos. – 3. Ed. – Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008.
4
FERRÉZ. Literatura marginal: talentos da escrita periférica. São Paulo: Agir, 2005.
132 p. Quarto de despejo: diário de uma favelada, na qual conta sua vida de catadora
de lixo e a luta pela sobrevivência. (Carolina de Jesus), LINS, Paulo. Cidade de Deus.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 550 p.
5
“Numa acepção estritamente artística, marginais são as produções que afrontam o
cânone, rompendo com as normas e os paradigmas estéticos vigentes.” OLIVEIRA.
Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria literária. Sitio em:
Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. Acesso em 08 fev.
2017.
54

discutindo sobre a importância da observância do “local de fala” para


conhecimento dos problemas vivenciados pelos envolvidos nestes
processos criminalizantes.

Nas palavras de Juarez Cirino dos Santos, a criminologia radical


pretende: “contribuir para a formulação de políticas criminais
democráticas e humanistas, opostas ao boom repressivo e intolerante
das políticas penais próprias do período de globalização da economia
capitalista[...]”. Tal modalidade vai ao encontro do estudo ora
proposto, já que busca por meio de seus escritos a construção de uma
sociedade democrática e igualitária.

1 A LITERATURA COMO FONTE DE CONHECIMENTO


SOCIAL

Sabe-se que a ausência de dados específicos obsta a realização


de pesquisas, bem como, a resposta destas não se faz suficiente para
alinhar as “expectativas sociais” com as políticas públicas, a ponto de
resolver os problemas relacionados ao aumento da violência e da
criminalidade nos grandes centros urbanos.6 A literatura,
especificamente a literatura não ficcional/marginal, demonstra-se como
uma forma palpável de introspecção e análise da “sociedade” em suas
diversas formas.

Assim, pretende-se realizar aqui uma análise


sócio/criminológica com base nos dados apresentados nas obras “O
dono do morro: Um homem e a batalha pelo Rio”, “Ninguém é inocente
em São Paulo”, “Capão Redondo”, “Abusado: O dono do morro Santa

6
SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da
sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007.
55

Marta” e “Quarto de despejo”, averiguando, assim, o papel dessas obras


na construção de um novo caminho comunicativo, dando voz aos que
detém a propriedade necessária sobre suas falas e suas reinvindicações,
isto é, suas vidas.

A questão que se apresenta inicialmente é se a literatura tem o


poder de tecer, de modo contundente, o senso comum, provocando a
desconstrução da lógica dos discursos autoritários7, que, de fato, as
pesquisas e estudos realizados pela academia nem sempre conseguem
transpor, introduzindo, por meio da literatura, os “marginalizados” na
pauta dos que se dizem “cidadãos de bem”8.

Nesse prisma, questiona-se se as obras não ficcionais/marginais


atingiriam o nível necessário para transpor a barreira verificada na
“sociedade brasileira”, qual seja, a da ignorância generalizada sobre a
vida do outro9, dos problemas da periferia e das favelas, associada ao
“silenciamento” e exclusão das “minorias”, sendo ocupada, de modo
paliativo, pela voz/representação de alguns poucos homens. Observa-
se, entretanto, que quando falamos de “minorias” não estamos

7
TIBURI. Marcia, 1970. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o
cotidiano autoritário brasileiro/ Marcia Tiburi. – 7ª ed. – Rio de Janeiro: Record,
2016.
8
Referência a crença nacional lendária que diferencia os cidadãos entre bons e maus,
entre dignos e indignos de direitos. “No Brasil, em razão das redes de TV utilizarem
o mesmo enquadramento jornalístico quando tratam os temas crime, criminalidade e
criminosos, foram criadas duas categorias fixas em permanente oposição: bandidos x
cidadãos de bem. Os primeiros deveriam ser esmagados, mas são bem tratados e
protegidos pelos defensores dos direitos humanos. Os outros são vítimas inocentes
cujos direitos à vida e à propriedade (não necessariamente nesta ordem) seguem sendo
pisoteados pelos bandidos e ignorados pelos advogados deles. As Leis brasileiras
seriam muito permissivas e o Judiciário não é tão rigoroso quando deveria.” Sitio em:
http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/cidadaos-de-bem-bandidos-
sintese-da-civilizacao-barbarie-produzida-no-brasil. Acesso em 17 de fev. 2017.
9
BAUMAN, Zygmund, Vida líquida/ Zygmund Bauman; tradução Carlos Alberto
Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed.2007.
56

empregando o caráter quantitativo da expressão, mas sim evidenciando


o seu caráter político.

Segundo Heloisa Buarque de Hollanda10, a literatura marginal


tem o condão de mostrar o ponto de vista, os pensamentos e os
sentimentos vivenciados por autores que estiveram ou estão à margem
da sociedade. Entretanto, parece necessária a desmistificação do
“marginal”, já que a palavra remete a uma visão socialmente
estereotipada, quando, em verdade, a literatura marginal compreende
uma forma de resistência artística e cultural dos que vivem à margem
da sociedade, ou seja, dos desde sempre excluídos e silenciados.

No contexto brasileiro, infere-se entre as problemáticas


envolvidas no campo do “controle social” a questão do desrespeito ao
“local de fala” dos diferentes indivíduos, o que torna as informações
“relatadas” sobre os pares envolvidos/recrutados pelo sistema penal
ainda mais sensível, já que são raras as informações apresentadas sobre
estes, enunciada por estes.

Os dados, estudos e informações levantados e reunidos em


diversos livros, dôssies e revistas não englobam a perspectiva do
“apenado” sobre a situação do sistema carcerário brasileiro, cultura da
punição, perspectivas de vida, educação, etc. A exposição que se busca
transpor aqui é a relatada pelo próprio “marginalizado”, a partir da
análise do conceito de “local de fala”, sendo especificamente o

10
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. As fronteiras móveis da literatura. Disponível
em http://www.heloisabuarquedehollanda. com.br/?p=67. Acesso em: 20 de fev. de
2017.
57

“encarcerado” peça fundamental na produção de conhecimento sobre


os meandros do sistema penal.

A literatura tem a possibilidade de dar voz a estas pessoas que


há muito foram silenciadas. Há que se observar que antes de ser parte
do sistema prisional já eram silenciadas pela sociedade, transformando-
se o cárcere numa extensão da fábrica de exclusão social
legislativamente reconhecida no Brasil11.

A obra “O dono do Morro: um homem e a batalha pelo Rio”


retrata, por meio de diversos depoimentos, as facetas de “Nem”,
conhecido como um dos homens mais procurados do Brasil até
novembro 2011, quando foi preso.12 Referida obra desconstrói a visão
midiática edificada sobre Antônio Francisco Bomfim Lopes, vulgo
“Nem” da Rocinha, bem como consegue a partir dos depoimentos de
“Nem”, demonstrar a sua relação com a favela, a família, o tráfico e, os
motivos que o levaram a ocupar o cargo de “traficante mais procurado
do Brasil”. O texto, nesse ponto, tem um papel de suma importância,
pois reúne ainda relatos e depoimentos dos moradores envolvidos direta
ou indiretamente nos diversos confrontos vivenciados a partir de 1960,
na Favela da Rocinha, explorando de modo brilhante a história da vida
de “Nem” que, em alguma medida, confunde-se com a História e
ascensão da Favela da Rocinha, na cidade do Rio de Janeiro.

Embora a discussão sobre “a propriedade de fala”,


especialmente sobre o respeito aos limites opostos pelo “local de

11
SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da
sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007.
12
GLENNY, Misha. O dono do Morro: Um homem e a batalha pelo Rio/ Misha
Glenny; tradução Denise Bottman. – 1º ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
P.22.
58

fala”13, venha ganhando força nos últimos tempos, não se verifica um


diálogo sobre a percepção e comunicação dos apenados sobre o sistema
criminal. A bandeira que se defende é a do “local de fala” das minorias,
em contraponto à hegemonia da voz do “homem branco, heterossexual,
cis e endinheirado na história”14 que perdurou por séculos,
vislumbrando-se, assim, o fim da discussão quando o “indivíduo” chega
ao cárcere.

Quinalha defende que: “os verbos da ação política, assim, não


podem mais ser conjugados em terceira pessoa, mas em primeira.
Ninguém melhor do que o grupo que é portador da experiência do
sofrimento e do preconceito para capitanear sua própria
emancipação.”15 Nesse passo, questiona-se quem teria propriedade
para perquirir as garantias legislativas, constitucionais e humanitárias
devidas aos apenados se não eles mesmos. Quem melhor que os
próprios encarcerados para relatar os meandros do sistema? A vida
antes e depois do cárcere, justapondo as nuances que convolam a vida
emudecida.

13
O conceito representa a busca pelo fim da mediação: a pessoa que sofre preconceito
fala por si, como protagonista da própria luta e movimento. É um mecanismo que
surgiu como contraponto ao silenciamento da voz de minorias sociais por grupos
privilegiados em espaços de debate público. Ele é utilizado por grupos que
historicamente têm menos espaço para falar. Assim, negros têm o lugar de fala - ou
seja, a legitimidade - para falar sobre o racismo, mulheres sobre o feminismo,
transexuais sobre a transfobia e assim por diante. Sitio em:
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-
%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate
Acesso em: 12 fev. 2017.
14
QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em:
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/
Acesso em 22 jan. 2017.
15
Ibdem.
59

Para Rosane Borges16, lugar de fala: “é a posição de onde olho


para o mundo para então intervir nele”. A pesquisadora observa que o
tema deve ser tratado com muito cuidado, pois aplicado por um campo
teórico que pratica a análise do discurso por meio da enunciação.

Nesse aspecto, Quinalha leciona que:

“O “lugar de fala” remete, simultaneamente, a um


duplo movimento: tomada de um ponto de
enunciação que deveria pertencer por
legitimidade de experiência aos oprimidos e, ao
mesmo tempo, despejo do titular de um lugar
ocupado, por força da dominação, por aqueles que
se apossaram das tradições de fala em uma
sociedade estratificada.”17

Nas palavras de Giocomonni:

“Um sujeito, quando ocupa um lugar institucional, faz


uso dos enunciados de determinado campo discursivo
segundo os interesses de cada trama momentânea. [...]
Além destes elementos, há outro central: a compreensão
de que o discurso é uma prática, que constrói seu sentido
nas relações e nos enunciados em pleno funcionamento. 18

A par do campo de enunciação dos discursos, insta referir que:


“o local de fala esta instintivamente ligado ao mito da “verdade”,

16
Matheus Moreira & Tatiana Dias. O que é ‘lugar de fala’ e como ele é aplicado no
debate público. Sitio em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-
que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-
aplicado-no-debate-p%C3%BAblico Acesso em 12 de fev. 2017.
17
QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em:
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/.
Acesso em 22 jan. 2017
18
GIACOMONI, Marcello Paniz & Vargas, Anderson Zalewski. Foucault, a
Arqueologia do Saber e a Formação Discursiva. Veredas on line – análise do
discurso – 2/2010, p. 119-129 – ppg linguística/ufjf – juiz de fora - issn 1982-2243.
p.4.
60

quem tem o poder de fala é credenciado como portador de verdades”.19


Partindo da análise do autor, o questionamento que se faz é se o “mito
da verdade” seria uma das motivações da perpetuação do descrédito
verificado na fala das “minorias” e, consequentemente, dos apenados.

A título exemplificativo, se colocados lado a lado, um homem


branco e um homem negro, o homem branco sempre será ouvido com
maior atenção pela sociedade em geral, embora quem tenha propriedade
para perquirir as questões intrínsecas ao preconceito e outros problemas
vivenciados seja o homem negro. Dita premissa, demonstra os fluxos
de poder envolvidos nos discursos, bem como na manutenção de uma
sociedade verticalmente hierarquizada.

Foucault em sua obra “A arqueologia do saber” permite a


análise da margem onde se encontra o mito da “verdade”, a “história” e
nós. A partir da ideia do autor, demonstra-se necessário para a
compreensão das questões fundantes do saber humano, a análise das
urgências e dos limites históricos de como nos conhecemos e não nos
reconhecemos enquanto seres inseridos numa comunidade.20 Em outra
obra, o autor incita o questionamento sobre os jogos de verdade
envolvidos nos discursos:

“Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu


ser próprio a pensar quando se percebe como louco,
quando se olha como doente, quando reflete sobre si
como ser vivo, ser falante e ser trabalhador, quando ele

19
QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em:
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ .
Acesso em 22 jan. 2017.
20
MADARASZ, Norman R.; JAQUET, Gabriela M.; FÁVERO, Daniela N.;
CENTENARO, Natasha (Orgs.).
Foucault: leituras acontecimentais.[recurso eletrônico]/ Norman R. Madarasz,
Gabriela M. Jaquet, Daniela N. Fávero, Natasha Centenaro (Orgs.) -Porto Alegre, RS:
Editora Fi, 2016. p. 152.
61

se julga e se pune enquanto criminoso? Através de quais


jogos de verdade o ser humano se reconheceu como
homem de desejo?” 21

Na formação de uma sociedade democrática, a multiplicidade


de falas, tendo como base a diversidade de experiências constantes de
uma vivência reconhecidamente opressora, oportuniza a acepção de
“discursos” com contribuições ímpares para a construção de uma
realidade mais justa e igualitária. Quinalha defende que a “política
transformadora que almeja universalizar princípios de igualdade e de
liberdade deve ser atividade de todxs. Por direito e por obrigação.”22.
A partir destes dados, percebe-se a importância da compreensão
e acepção do conceito designado pelo “local de fala”.
Independentemente das incongruências teóricas existentes, a “fala”
promove, em alguma medida, mudanças, oportunizando a construção
de novos paradigmas e a desconstrução de velhos estereótipos.
Sobre o tema, Foucault defende que os sujeitos e objetos não
existem a priori, são construídos discursivamente sobre o que se fala
sobre eles, sendo conhecidos e definidos discursivamente em dados
momentos pelo próprio homem. 23 Nesse ponto, verifica-se a produção
e perpetuação de um desconhecimento generalizado sobre os indivíduos
e seus problemas em sociedade, uma vez que sempre definidos a partir

21
FOUCAULT, Michael. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de
Janeiro: Graal, 1984. p. 13.
22
QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em:
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/.
Acesso em 22 jan. 2017
23
A título exemplificativo, assim leciona Machado: ” O corpo, por exemplo, só passou
a existir a partir das modificações discursivas da passagem da Idade Média para a
modernidade. Com o desenvolvimento da patologia, o corpo passa a ser percebido
como um conjunto de órgãos, e a Medicina passa a discursivizá-lo, ou seja, a formular
práticas e efetuar dizeres sobre ele.” - Veredas on line – Análise do discurso – 2/2010,
p. 119-129 – ppg linguística/ufjf – juiz de fora - issn 1982-2243
62

da análise de outros homens, com outras vivências e linguagens. A


teoria do labeling approach24 ecoa suas constatações até os dias de hoje,
já que os “discursos” socialmente reconhecidos, mantêm-se nas “falas”
de apenas alguns homens, o que, em dada medida, retroalimenta o
processo de rotulação e estigmatização das minorias na sociedade.
Baratta leciona que: “ A criminalidade é – um “bem negativo”,
distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixadas
no sistema sócio – econômico e conforme a desigualdade social entre
os indivíduos.”25
Fischer observa, entretanto, que “a descrição dos enunciados
que nesse tempo e lugar se tornam verdade, fazem-se práticas
cotidianas e interpelam sujeitos, produzem felicidades e dores,
rejeições e acolhimentos, solidariedades e injustiças.” 26
Com base na ideia de enunciado defendida por FOUCAULT,
questiona-se ainda, a incipiente adesão, bem como responsabilidade da
mídia sobre a reprodução da cultura da punição27. Por enunciado, tem-
se um tipo especial de ato discursivo que se separa dos contextos locais
e dos significados cotidianos para construir um campo de sentidos que
devem ser aceitos, seja por seus efeitos de verdade, seja pela função
daquele que o enunciou ou pela instituição que o acolhe.28 Assim, o

24
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução
à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de
Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 86
25
Ibdem.P. 161.
26
FISCHER, R. M. B. Foucault revoluciona a pesquisa em educação? Perspectiva.
Florianópolis, v. 21, n. 2, 2003, p. 378.
27
SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da
sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007.
28
VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p.
113.
63

enunciado não tem vinculação com a “verdade”, mas sim com “as
verdades” intrínsecas ao sujeito que o enuncia.
A par disso, o questionamento proposto a priori volta à voga: a
literatura não ficcional/marginal, por conjugar as diferentes falas sobre
um mesmo fato ou individuo, contrapondo estes com a fala do próprio
individuo, cumpriria, de modo satisfatório, o papel de oportunizar a
“fala” destas minorias e, por conseguinte, determinaria um modo de
empoderamento social?

2 LITERATURA, REALIDADE, CRIMINOLOGIA E


CULTURA DA PUNIÇÃO

Na intersecção entre a literatura e a criminologia, vislumbra-se


um dos problemas ligados à reprodução da violência nas sociedades
modernas, objetificado pelo sistema penal através do “silenciamento” e
exclusão da voz das “minorias”.

De outro ponto, infere-se o questionamento sobre a relação entre


literatura e realidade dada a complexidade da admissão da literatura
como forma de acepção de “verdades”. Para Lobo:

La relación entre literatura y realidad, o literatura como


forma de verdad, es un tema recurrente en las
discusiones. Frecuentemente se le asignan a la literatura
atributos tales como su capacidad de presentar facetas
ocultas de la realidad, de dar voz a quien no la tiene, de
develar verdades...Existe entonces un problema en torno
a la verdad que permea hasta a la institución literaria,
sobre todo en géneros como podrían ser el testimonio, las
memorias, la novela histórica y, claro está, la literatura
policiaca.29

29
LOBO, Tatiana. Introducción: verdad, saber, poder e historia en la literatura
policiaca. Sitio em:
https://www.academia.edu/10117131/INTRODUCCI%C3%93N_VERDAD_SABE
R_PODER_E_HISTORIA_EN_LA_LITERATURA_POLICIACA. Acesso em 18
de fev. 2017.
64

O tema do presente artigo surgiu da inquietude gerada pela


explanação do termo “local de fala”. A expressão em questão remete
sempre a uma cisão no meio acadêmico, bem como político, já que
muitas vezes é utilizada para fins diversos do conceito originário.

Guimaraes30 aduz que o falante é um sujeito da língua


constituído em um espaço de enunciação que se define como o: “espaço
do funcionamento de línguas que se dividem, redividem, se misturam,
desfazem, transformam por uma disputa incessante. São espaços
‘habitados’ por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus
direitos ao dizer e aos modos de dizer.”

Nesse prisma, o espaço de enunciação considera a prática


política, enquanto desconsidera o lado individual ou subjetivo, pois,
para o autor, enunciar significa estar na língua em funcionamento
no/pelo acontecimento.

De outro ponto, Quinalha observa que não se pode desqualificar


de pronto qualquer iniciativa dos que tentam se aliar às reinvindicações
dos “marginalizados” e “excluídos”, seja pela literatura, seja pelo
discurso público, uma vez que, inevitavelmente, estas vozes se fazem
necessárias na construção de uma sociedade menos estratificada.31

Uma reportagem recentemente produzida por Gerivaldo Neiva,


juiz de Direito Baiano, e publicada pelo portal de notícias Carta Capital,
em parceria com a página Justificando32, demonstrou a dificuldade

30
GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes, 2005 p.
18.
31
QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em:
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ .
Acesso em 22 jan. 2017
32
NEIVA, Gerivaldo. Fernando Beira – mar: esse cara sou eu.
65

vivenciada por Luiz Fernando da Costa, mais conhecido como


“Fernandinho Beira-Mar”, em encontrar um espaço onde sua “voz” seja
respeitada e reconhecida.
A reportagem intitulada: “Luis Fernando (Beira-mar): esse cara
sou eu”, concede espaço a este traficante de renome nacional,
perseguido durante os anos 2000, no Brasil. Na entrevista,
“Fernandinho Beira-mar”, entre outras coisas, assim respondeu quando
indagado como se sentia o “bandido” mais famoso do Brasil:
“– Doutor, eu estou nessa vida há muito tempo. Cometi
umas bobagens no Rio de Janeiro e depois precisei sair
para a fronteira. Lá, o esquema era muito perigoso.
Nossa atividade era de risco e envolvia drogas, armas e
carros. É claro que nessa atividade havia
desentendimentos, extorsão e conflitos de interesses.
Logo, se matava e se morria muito. Agora, doutor, igual
a mim, naquela época, existiam várias pessoas, inclusive
policiais que participavam do esquema. Pior do que eu,
existiam muito mais pessoas naquela atividade. O
problema é que o Estado Brasileiro precisava, para se
afirmar como eficiente e garantidor da lei, de um grande
bandido nacional para condenar a 300 anos de cadeia e
mantê-lo preso como exemplo dessa eficiência. O
problema é que minha prisão e condenação não acabou
com o tráfico, com a violência e criminalidade. Pronto!
Estou condenado, isolado em uma penitenciária de
segurança máxima e todos esses os problemas se
agravaram. Na verdade, eu já nem sei por quais crimes
fui condenado e por quais motivos tive minha pena
agravada em presídios, pois basta que um agente
penitenciário me acuse para que seja certa a
condenação. Por fim, doutor, o sistema precisa desse
grande bandido nacional e esse cara sou eu!”33

http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-
cara-sou-eu/ Acesso em 18 de fev. 2017.
33
NEIVA. Gerivaldo. “Luis Fernando (Beira-mar): esse cara sou eu”. Sitio em:
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-
cara-sou-eu/. Acesso em 17 de fev. 2017.
66

Embora a reportagem seja sucinta, consegue transcrever com


sabedoria e alteridade a importância de oportunizar a “fala” aos
“apenados”. Em um relato paradigmático, Neiva assim observa:

“Este relato que faço agora é fruto de anotações e


lembranças, mas é impossível retratar a realidade de um
presídio federal e, muito menos, o que deve sentir e
pensar “o grande bandido nacional” em suas 22 horas
diárias de isolamento e o peso da condenação em 300
anos de reclusão. Os meandros de sua mente e de suas
lembranças, conforme me relatou o próprio Luiz
Fernando, serão expostos quando do lançamento de seu
livro de memórias. Não me adiantou o conteúdo dessas
memórias, mas observou que precisa oferecer às pessoas
o outro lado da história oficial.”34

A temática aqui discutida envolve inúmeros conceitos,


produzindo incontáveis dúvidas quanto ao emprego do conceito de “
local de fala” pela sociedade, bem como do poder incutido aos discursos
para resolução e conhecimento dos conflitos. Spivak aduz em sua obra
“Pode o subalterno falar?” a incongruência que permeia a tentativa de
transposição do “outro” a partir de referenciais culturais distintos,
valendo-se do conceito de “pós-colonialismo” como argumento
contrário aos estudos e discursos promovidos sob a perspectiva de
alguns pensadores Europeus35. Assim exemplificando a problemática
aventada:

"É impossível para os intelectuais franceses


contemporâneos imaginar o tipo de Poder e Desejo que
habitaria o sujeito inominado do Outro da Europa. Não é
apenas o fato de que tudo o que leem ― crítico ou não ―
esteja aprisionado no debate sobre a produção desse

34
Ibdem.
35
A autora faz uma forte critica a visão empregada por Deleuze e Foucault em suas
obras, tendo em vista o desconhecimento da realidade vivenciado pela população dos
países de terceiro Mundo.
67

Outro, apoiando ou criticando a constituição do Sujeito


como sendo a Europa" (idem, p.45-46).

A autora define como subalterno os membros das “camadas


mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de
exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da
possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social
dominante”.36 Em contrapartida, na concepção de Ferréz, não se pode
associar os “subalternos” de Spivak aos “marginais” da literatura
marginal, já que entende o último a partir de uma concepção mais
complexa.

Assim, nas palavras de Ferréz37 a: “literatura marginal é aquela


feita por marginais mesmo, até por cara que já roubou, aqueles que
derivam de partes da sociedade que não têm espaço”, ou seja, o
“marginal” é o bandido, ou “bicho-solto”, que vive à margem da
sociedade e que busca um espaço na série literária.

Enquanto isso, Spivak leciona que o intelectual tem o “dever”


de representar o subalterno, concluindo, que este percurso deve ser feito
com atenção “para não emudecer [mais] o subalterno, e sim ser um
veículo para que este possa falar e ser ouvido.”38 A autora é
reconhecida ainda, pelas suas críticas às leituras feitas e produzidas por
Foucault e Deleuze sobre a sociedade.

36
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o sulbaterno falar? Belo Horizonte: Editora
da UFMG, 2010.P. 12.
37
FERRÉZ. Literatura marginal: talentos da escrita periférica. São Paulo: Agir, 2005.
38
BRAGA FILHO, Edmar. M. Voz, agência e representação: Spivak e os sujeitos
subalternos. Sitio em : https://circuitoacademico.com.br/2014/10/02/voz-agencia-e-
representacao-spivak-e-os-sujeitos-subalternos/. Acesso em 10 de fev. 2017.
68

Segundo a autora: “o subalterno não deve configurar apenas


um “objeto” a ser revelado ou conhecido pelo intelectual que deseja
falar pelo outro.”39, desmistificando, o modelo de
“autorrepresentação”40. A intenção evidenciada em sua obra é a de
“desafiar os discursos hegemônicos e nossas próprias crenças como
leitores e produtores de saber e conhecimento.”41

Na intersecção entre literatura e respeito ao “local de fala”,


Oliveira aduz que a propriedade de fala:

“seria o primeiro desafio a ser enfrentado pela teoria


frente à atual produção literária da periferia brasileira,
relacionado ao papel do sujeito como agente e produtor
cultural, que muitas vezes vive sob condições de
ilegalidade, reivindicando, no entanto, o direito de falar
desde essa experiência.”42

Para a autora: “tanto o marginal como o periférico são


conceitos intrinsecamente ligados a modelos de representação, que
põem em causa não apenas modos de significar o mundo, como também
de produzir identidades.”43 Dita afirmação demonstra-se essencial
para divagarmos sobre essa nova modalidade de “produção literária
contemporânea originada nos morros e favelas das grandes cidades
brasileiras”, questionando, “o modo como ela se inscreve no contexto

39
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o sulbaterno falar? Belo Horizonte: Editora
da UFMG, 2010.P. 14.
40
Entende-se por “autorrepresentação” o
41
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o sulbaterno falar? Belo Horizonte: Editora
da UFMG, 2010.P. 8.
42
OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria
literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011.
Acesso em 08 fev. 2017.
43
OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria
literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011.
Acesso em 08 fev. 2017. P.32.
69

sociocultural em que se situa, as experiências que ela traduz e as


identidades que engendra.”
De outro passo, Oliveira leciona que: “a condição periférica,
marcada pela pobreza e exclusão social, econômica e cultural, sempre
ganhou as páginas da nossa literatura.”44. Aduz ainda que a obra “Os
pobres na literatura brasileira”, de Roberto Schwarz, tem como pano
de fundo o retrato dessa “marginália”. Exemplificando o viés da
literatura marginal publicado até então no Brasil:

“... os miseráveis explorados pela metrópole nos poemas


satíricos de Gregório de Matos, os escravos da poesia
libertária de Castro Alves, os moradores dos cortiços de
Aluísio Azevedo, os sertanejos de Euclides da Cunha, os
desvalidos de Lima Barreto, o Jeca Tatu de Monteiro
Lobato, os severinos de João Cabral, os retirantes de
Graciliano Ramos, os pequenos trabalhadores e
contraventores de João Antonio; os mendigos e
criminosos das ruas do Rio de Janeiro de Rubem
Fonseca”45

Na contemporaneidade, entretanto, estas produções literárias


vêm ganhando novos contornos. Se observarmos as condições de
produção dessa nova modalidade literária, perceberemos as diferenças
presentes no lugar assumido pelo escritor, bem como o vínculo presente
em seu discurso com a comunidade onde vive.46

Verifica-se, portanto, que a característica central da literatura


marginal contemporânea versa sobre o fato de sua produção ser

44
Ibdem. P .33.
45
SCHWARZ, Roberto. Os pobres da literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense,
1983. 246 p. Apud OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal:
questionamentos à teoria literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial,
p. 31-39, jul./dez. 2011. Acesso em 08 fev. 2017. P.33.
46
Ibdem. p. 34.
70

essencialmente realizada por autores da periferia, consagrando, assim,


uma nova visão baseada em um olhar interno, ecoando nestes escritos
a experiência diária de viver na “condição de marginalizados sociais e
47
culturais”. Nesse aspecto, percebemos a literatura marginal como
meio de resistência das minorias frente ao sistema ora estabelecido,
valendo-se desse espaço de enunciação para denúncia e produção de
conhecimento.

Essa nova geração de escritores periféricos estabelecem a


diferença crucial entre as obras literárias clássicas e a literatura
marginal contemporânea, pois, conforme elucida Oliveira: “a maior
parte dos escritores que povoaram suas páginas com os marginais e
marginalizados da sociedade, salvo algumas poucas exceções, não
pertencem a essa classe de indivíduos, senão que assumem o papel de
porta-vozes desses sujeitos, falando em seu lugar, assumindo a sua
voz.”48

Vellozo exprime de modo conciso o papel da produção literária


como meio de mudança social. Para a autora: “A produção literária é
um fenômeno social, na medida em que resulta de convicções, crenças,
códigos e costumes sociais (ver Oliveira, 1984). Enquanto tal exprime
a sociedade, não ipsis litteris, mas modificando-a e até mesmo
negando-a.”49 Em contraponto, a autora aduz que a literatura não tem

47
OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria
literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011.
Acesso em 08 fev. 2017. P.33.
48
OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria
literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011.
Acesso em 08 fev. 2017. P.33.
49
VELLOSO, Mônica Pimenta. A Literatura como Espelho da Nação. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, P. 240.
71

obrigação de ser o registro fiel da realidade histórica que emerge, mas


pode sim insurgir-se contra esta realidade, apresentando à sociedade
uma imagem que ela, por vezes, se recusa a reconhecer. A mesma
conclui afirmando que a produção literária se trata: “de uma relação
necessária, contraditória e imprevisível.”50

Não desqualificando grandes nomes da literatura nacional,


como Machado de Assis, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Jorge
Amado, Oswald de Andrade e Mario de Andrade, que dentro das suas
categorias literárias retrataram de modo brilhante aspectos sociais,
verifica-se que essas obras retratam o modo como estes percebiam a
sociedade brasileira, mantendo assim o “poder discursivo” nas mãos
dos homens letrados e privilegiados.

Desse modo, a literatura marginal vem se estabelecendo como


uma nova forma de produção cultural e literária, já que produzida pelos
próprios “excluídos”, “marginalizados”, que produzem conhecimento
da favela e não apenas “sobre” a favela. Nesse passo, Oliveira observa
que: “Um traço bastante inovador da literatura marginal da periferia
é justamente o seu caráter de voz coletiva, comprometida em contar e
escrever a própria experiência, em contraponto à cultura oficial
dominante.”51 A inovação parte da tentativa de dar voz a vida dos que
vivem à margem do conceito de sociedade pré-estabelecido.

50
Ibdem. p. 240.
51
OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria
literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011.
Acesso em 08 fev. 2017. P.34.
72

BREVES CONCLUSÕES

No âmbito da sociedade excludente, a literatura não ficcional


e/ou marginal apresenta-se como uma oportunidade de dar “voz” aos
problemas vivenciados diariamente pelas “minorias”. Os
“marginalizados” que convivem desde sempre a par desse estereótipo
e, na maioria das vezes, não são ouvidos ou questionados sobre as
modificações sociais necessárias para tornar a vida em sociedade mais
justa e igualitária, têm por meio da literatura uma fonte de
empoderamento e resistência social.

Urge, no entanto, repensar os conceitos envolvidos na


reprodução de conhecimento em sociedade, bem como o poder
ilegitimamente intitulado a poucos e parcos “homens de bem”, seguido
pela negligência constituída à “fala”.

A fala nos remete a potência da evolução humana, uma vez que


somos a única espécie que detemos tal poder. Assim sendo, por que
usamos este privilégio evolutivo de modo involutivo? Além das
considerações já tecidas, o presente estudo não traz soluções à
problemática aventada, entretanto, visa instigar o questionamento
quanto ao poder que a literatura marginal e/ou não ficcional tem como
fonte de resistência numa sociedade verticalmente hierarquizada.

Afora todo o exposto, esses grupos52 que traduzem por meio da


literatura marginal a voz das periferias, em certa medida, oferecem uma

52
Ferréz, fundou o grupo 1DASUL; Sérgio Vaz, ficou conhecido pelos saraus que
organiza na Zona Sul da cidade; Sacolinha, criou, em 2002, o projeto Literatura no
Brasil, que veio a tornar-se uma Associação Cultural. Além de produzir uma revista
especializada com o mesmo nome, a Literatura no Brasil realiza concursos literários.
73

nova opção aos jovens socialmente negligenciados, já que a literatura


surge como um meio de reconhecimento e crescimento.53

A par disso tudo e reconhecendo-se a natureza multidimensional


dos tópicos aqui levantados, instiga-se o questionamento sobre o papel
que a “fala” alcançaria no contexto social para fins de diminuição da
violência e da criminalidade nos grandes centros urbanos, seja por meio
da literatura marginal, seja por outros meios discursivos.

Luiz Eduardo Soares alerta que: “Os direitos democráticos são


amplamente garantidos, na letra da Constituição, mas a prática os
distribui de acordo com idade, gênero, cor e classe social – e local de
moradia, posto que a segregação é também espacial...” 54. A afirmação
do pesquisador convola a perspectiva da segregação espacial narrada
nos discursos literários ora apresentados.

Ainda que obras não ficcionais como: “O dono do Morrro: Um


homem e a batalha pelo rio, “Abusado - O dono do Morro Dona Marta”,
“Estação Carandiru” e “Rota 66” apresentem suas histórias por meio da
escrita de outros homens, como exposto ao longo do texto, estes escritos
não devem ser negligenciados, já que por meio de testemunhos e

53
Sobre o tema, Soares observa que: “Hoje, estamos diante de um genocídio de jovens
pobres e negros, que morrem e matam em um enfrentamento autofágico e fatricida,
sem quartel, sem bandeira e sem razão. Apesar da maioria resistir, muitos jovens sem
perspectiva e esperança, distantes das oportunidades geradas pela educação e a
cultura, sem lazer, esporte, afeto, reconhecimento e valorização, com suas auto-
estimas degradadas, acabam cedendo à sedução exercida pelo crime. Ao se deixarem
recrutar, aceitam a arma como passaporte para visibilidade social e o reconhecimento,
antes de usá-la em benefício de estratégias econômicas.” SOARES. Luiz Eduardo y
GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da sociedade no Brasil
Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007.
54
SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da
sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007.
74

pesquisas de campo contrapõe fatos e dão “voz” a história de pessoas


que talvez não tivessem essa oportunidade por elas mesmas.

Em suma, qualquer meio de ocupação e empoderamento do “


local de fala” das minorias, justapondo a hegemonia dos discursos
totalitários dominantes, demonstra-se como uma possibilidade de
resistência e luta contra os preconceitos e estigmas reproduzidos na
sociedade brasileira. A única discussão permitida nesses espaços de
enunciação deveria ser contra a censura vivenciada diariamente na
sociedade brasileira.

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77

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78

REFLEXÕES E INQUIETAÇÕES SOBRE A


NECESSIDADE DA CONSTRUÇÃO DE UMA
LÓGICA E UMA PRÁXIS JURÍDICAS
ANTIRRACISTAS, FEMINISTAS E DE BASE

Domenique Goulart1

“Hoje eu me acordei branca.


Tomei banho, lavei o cabelo, sai para trabalhar e não
precisei pensar quantas pessoas vão fazer comentários
desnecessários sobre ele. Caminhei pelas ruas sem
olhares de escárnio ou fetichização. Cheguei ao meu
destino em tempo adequado, não tive nenhuma angústia
sobre a cor da minha pele durante o dia todo.
Hoje eu me acordei branca. Por nenhum segundo
precisei refletir sobre racismo, porque me acordei
branca e portanto pude "não ver racismo em tudo", já
que ele não me atingiu nenhuma vez. Pude ignorar o fato
de que todas as pessoas que me pediram dinheiro na rua
ou um prato de comida eram negras. Não precisei pensar
sobre o que isso significa na sociedade porque me
acordei branca. Fui para aula na universidade, escolhi
uma classe e ao olhar para os lados me senti acolhida,
todas as pessoas na minha classe são parecidas comigo
e isso é ótimo.
Hoje eu me acordei branca, não fui parada por nenhum
porteiro. Andei por todos os lugares segura de mim.
Pude ignorar dados, estatísticas, fatos. Porque hoje eu
me acordei branca e não fui impedida em absolutamente
nada do que resolvi fazer.
Hoje eu me acordei branca, defini isso para mim. Posso
me acordar branca, tenho parentes que são, posso me
sentir branca, posso ter pertença branca, me acordei
branca me sentindo branca.

1
Graduanda em Ciências Jurídicas e Sociais na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Cofundadora e integrante do Grupo Interdisciplinar de Trabalho e
Assessoria para Mulheres (GRITAM/SAJU). Bolsista de iniciação científica (CNPq).
E-mail: domenique.goulart@gmail.com.
79

Acontece que o resto do mundo acordou e olhou para


mim também. E o mundo decidiu: eu não sou branca”2
INTRODUÇÃO
O que se busca nestes escritos, em linhas gerais e sem pretensão
alguma de esgotar os assuntos, é uma breve tentativa de expor, em um
primeiro espaço, que os marcadores de raça, classe e gênero
influencia(ra)m profundamente os alicerces da epistemologia jurídica.
Num segundo momento, busca-se mostrar o impacto da lógica elitista,
masculinista e branca nos trâmites processuais e na esfera judicial, bem
como tecer breves considerações acerca dos mecanismos considerados
imprescindíveis para a construção de um raciocínio jurídico anti-
hegemônico e progressista.

EIXO I - Uma perspectiva epistemológica: dos marcadores


sociais de gênero, raça e classe que são estruturais e estruturantes da
Ciência Jurídica

Numa sociedade de origem patriarcal, de herança


escravocrata, o homem, o branco, torna-se a norma, o
totalizante, e linguagem além de designar coisas e
objetos, será um modo de interpretação de mundo que
atribuirá valores a determinados grupos como forma de
(manter) poder ou de opressão.3

(...) a estrutura social não foi profundamente modificada


pela evolução da condição feminina; este mundo, que

2
BUENO, Winnie. Hoje eu acordei branca, fev 2017. Disponível em:
<https://www.facebook.com/ninebueno/posts/10208124557302698>. Consultado
em: fev. 2017.
3
RIBEIRO, Djamila. Linguagem, Gênero e Filosofia: Qual o mundo criado para as
mulheres?, Periódico Sapere Aude, Revista de Filosofia - PUC Minas Gerais, v. 5, n.
9, 2014. Disponível em: <http://periodicos.
pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674>. Consulta em: fevereiro de
2017.
80

sempre pertenceu aos homens, conserva ainda a forma


que eles lhe imprimiram..4
A Ciência Jurídica sempre foi tida como um ramo elitizado e
muito valorizado socialmente. Semelhante às faculdades de Medicina,
as de Direito conferiam e ainda conferem notório destaque às pessoas
desta área. Historicamente, cursos como esses foram destinados com
exclusividade às pessoas mais favorecidas socioeconomicamente. Nas
paredes da Faculdade de Direito da UFRGS, por exemplo, encontram-
se pendurados muitos quadros com fotos de pessoas que ali se
formaram. Ao direcionar a atenção às imagens ostentadas pelas
pomposas molduras, perceptível que apenas recentemente o curso
começou a ser composto por mulheres e por pessoas negras.
Com efeito, a esfera jurídica é um ramo das ciências humanas e
sociais composta por seleto grupo de pessoas majoritariamente do
gênero masculino, brancas, ricas, com conhecimentos e vivências
direcionados. O resultado disso é a construção de uma lógica e de um
regime de verdade particulares e específicas, a excluir demais
perspectivas e abordagens. Ao se referir às demais lógicas suprimidas,
se entende por todas as outras dissonantes, divergentes, plurais e
outsiders5. Isso quer dizer que ao serem elencados determinados fatores

4
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Tradução de Sérgio Milliet. - Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980, pg 450.
5
“Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e em algumas
circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e tipos de comportamento
a elas apropriados, especificando algumas ações como “certas” e proibindo outras
como “erradas”. Quando uma regra é imposta,a pessoa que presumivelmente a
infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver
de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um
outsider.” BECKER, Howard Saul.. Outsiders: estudos de sociologia do desvio.
Tradução Maria Luiza X. de Borges; revisão técnica Karina Kushnir. - 1.ed. - Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, pg. 15.
81

limitantes como a regra a ser seguida, esta parte de pressupostos fixos


que condicionam a racionalidade a ser percorrida e que consolidam uma
única narrativa.
Pelo âmbito das ciências jurídicas ser constituído,
historicamente, por grupos minoritários elitizados, os quais são dotados
de determinada ideologia, toda teoria e prática jurídicas refletem tais
aspectos. A ausência de pluralidade de pressupostos e de olhares com
vivências diversificadas, por meio da exclusividade do acesso à esfera
jurídica por um grupo com determinadas demandas e formas de ver o
mundo, acarreta a edificação dos pilares jurídicos sob um prisma de
manter os privilégios já adquiridos. Ou seja, há um caminho percorrido
no sentido da manutenção do status quo através desse ramo do saber,
que tanto impacta diferentes aspectos da dinâmica social. Como expôs
Nereu Giacomolli6, a ideologia:
(...) é tida como um conjunto de ideias e valores
informadores da direção do pensamento e da ação, na
compreensão e na resolução de um problema, ou seja,
como pensar, o que pensar, como fazer e o que fazer.
Através da ideologia é que o poder dominante se legitima,
o qual recebe uma identidade de pensamento (...). A
ideologia legitima, integra e justifica uma realidade e,
paradoxalmente, também a deforma e profana. Há um
certo consenso de que a ideologia conduz a ação e o
pensamento, as pré-compreensões, determinando práticas
e apresentando resultados.

Deveras, a ideologia dos grupos dominantes dá forma à (e


deforma a) epistemologia jurídica. E no momento em que se deixa de
tratar como relevantes as ideologias sociais que alicerçam e atravessam
a realidade das pessoas que detêm os meios de produção do

6
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a
Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. - 3. ed. rev., atual e ampl. -
São Paulo: Atlas, 2016, pg. 87.
82

conhecimento, tratamos como naturalmente legítimas tais pessoas a


falar e produzir saberes, normas, discursos e dinâmicas sociais, em
detrimento do silenciamento histórico de toda a coletividade.
Também a linguagem se conforma como modo de exercício de
poder e de estabelecimento de exclusões e monopólios, principalmente
quando nos atentamos às especificidades do nosso “juridiquês”. Na
análise construída por Djamila Ribeiro7, à luz do filósofo Wittgenstein,
a linguagem seria ela mesma um modo de interpretar o mundo, que não
é neutro, mas sim alicerçado e direcionado por exercícios de poder:

a linguagem não é somente uma estrutura de


vocabulários, não é simplesmente uma gramática com o
objetivo de ensinar alguém a escrever ou falar, a
linguagem é uma forma de vida que traz em si valores
políticos e sociais formando uma visão de mundo. Esses
valores oferecidos pela linguagem, explicitando sua não
neutralidade, recaem sobre determinados grupos, como
as mulheres. (...) linguagem além de designar coisas e
objetos, será um modo de interpretação de mundo que
atribuirá valores a determinados grupos como forma de
(manter) poder ou de opressão.

O modo como são edificados os saberes a partir das opressões


estruturais regula a distribuição desigual de direitos e oportunidades,
além de naturalizar violências e invisibilizações a determinados corpos.
Face a isso, com o objetivo de romper com essa racionalidade de
manutenção de privilégios, é indispensável que se entenda que os
marcadores sociais estruturais atingem de modos diferentes as pessoas

7
RIBEIRO, Djamila. Linguagem, Gênero e Filosofia: Qual o mundo criado para as
mulheres?, Periódico Sapere Aude, Revista de Filosofia - PUC Minas Gerais, v. 5, n.
9, 2014. Disponível em: <http://periodicos.
pucminas.br/index.php/SapereAude/article/
83

e podem também coexistir, devido às intersecções de condições de


gênero, raça e classe.
Interseccionalidade é uma maneira de entender que mais de um
tipo de opressão pode atravessar um mesmo contexto, sem que haja uma
hierarquia entre opressões ali existentes. Cada marcador social age e
impacta de um modo diverso e não pode ser analisado de forma
apartada. Ou seja, opressões tais como a LGBTTfobia8, o racismo, o
classismo, o machismo, por exemplo, podem ser fatores conjugados, a
atingir uma mesma pessoa ou grupo de pessoas.
Há quem diga que tais marcadores sociais - gênero e raça, por
exemplo - são apenas atributos pessoais que não devem ser ressaltados,
pois cada pessoa é um conjunto de particularidades e especificidades
que a torna única. Entretanto, esta é não somente uma forma de se
eximir de responsabilidades enquanto sujeitos privilegiados, mas

8
LGBTT é a sigla do movimento político que representa as lésbicas, os gays, as
pessoas bissexuais, trans e travestis. De modo mais objetivo, a LGBTTfobia é a
opressão e a violência pautadas no preconceito, na aversão, na não aceitação, na fobia
que pessoas sentem pelas pessoas LGBTT’s. Enquanto as letras L, G e B, se referem
à sexualidade, as letras T’s se referem à identidade de gênero. Para melhor elucidar a
questão, à: “nível de conceituação moderna o termo trans, prefixado historicamente
na palavra transexual, é cunhado para significar identidades de gêneros que estejam
em oposição com a norma cultural vigente de que os órgãos genitais (pênis e vagina)
definem o gênero (homem e mulher). Ao longo da história a palavra transexual era
utilizada como sinônimo de homossexualidade, enquanto interpretação de que
homens e mulheres homossexuais possuíam desejo de trocar o sexo e por conseguinte
o gênero. Hoje, já se construiu um termo que abrange a experiência de incômodo
existencial com o gênero ofertado pela relação sexo-gênero, o termo transgênero. Do
latim, trans, aquilo que está em oposição, observamos que seres humanos transgêneros
se qualificam enquanto existirem em oposição ao gênero definido somente por
carregarem tal ou qual órgão genital. Mais tarde se popularizou o termo transexual
masculino e feminino, para por fim definirmos, atualmente, os conceitos de homem
transexual (gênero inicialmente ofertado foi o de mulher por possuir vagina) e mulher
transexual (gênero inicialmente ofertado foi o de homem por possuir pênis).”
ROVEDA, Atena Beauvoir. Transantropologia: corpos, existências e humanidades
em oposição, fev. 2017. Disponível em: <http://atenabeauvoir.blogspot.com.br/>.
Acesso em: fevereiro de 2017.
84

também um modo de invisibilizar pautas de opressão, as quais devem


ser cada vez mais confrontadas.
Ciente da discussão acerca da interseccionalidade, substancial a
retomada da reflexão sobre quem dita as normas sociais e jurídicas.
Apenas muito recentemente a abertura política possibilitou a
participação de mulheres em âmbitos sociais mais influentes. Apesar
disso, a ascensão de mulheres à posições de poder ainda é escassa.
Quando conjugamos também o marcador de raça, vemos ainda muito
menos mulheres negras em espaços de significativa influência
normativa.
Um exemplo concreto disso é a ínfima quantidade de mulheres
que participaram da Assembleia Nacional Constituinte que deu corpo
ao texto da Constituição Federal de 1988. A Assembleia foi formada
por apenas 24 mulheres9 das 559 pessoas que a compuseram (72 pessoas
Senadoras e 487 pessoas Deputadas10). Ou seja, isso representa a
irrisória porcentagem de 4,29% de mulheres que participaram da escrita
do texto original da nossa Carta Magna. Salta ainda mais aos olhos
quando verificamos que, destas 559 pessoas que formaram a
Constituinte, apenas uma delas era uma mulher negra11: a parlamentar
constituinte Benedita da Silva.

9
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-
1988/mulher-constituinte>. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017.
10
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-
1988/constituinte-1987-1988/panorama-da-constituinte>. Acesso em 05 de fevereiro
de 2017.
11
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/ constituicao-
cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/parlamentaresconstituintes/constituic
ao20anos_bioconstituintes?pk=103478>. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017.
85

Por outro lado, a representatividade de mulheres e/ou de pessoas


negras, por si só, não garante que as demandas coletivas e os fatores que
vulnerabilizam as mulheres e a população negra sejam pautas
reivindicadas. Nesse sentido que é demonstrado o percurso transcorrido
nos EUA por movimentos sociais, o qual foi historicizado por Angela
Davis, no célebre livro Mulheres, Raça e Classe. A autora narra a forma
como o movimento de mulheres, apesar de inicialmente ter agido
ativamente em prol da abolição da escravatura no país, depois
apresentou reiteradas posturas racistas, a negar a participação das
mulheres de cor nos espaços de luta pelos direitos das mulheres:

A ideologia burguesa - e particularmente seus componentes


racistas - realmente deve possuir o poder de diluir as
imagens reais de terror em obscuridade e insignificância de
dissipar os terríveis gritos de sofrimento dos seres humanos
em murmúrios quase inaudíveis e, então, em silêncio.
Com a chegada do século XX, um casamento ideológico
sólido uniu racismo e sexismo de uma nova maneira. A
supremacia branca e a supremacia masculina, que sempre
se cortejaram com facilidade, estreitaram os laços e
consolidaram abertamente o romance. 12

Neste contexto histórico que foi proferido o memorável discurso


demarcado pelo questionamento feito por Sojourner Truth, uma ativista
negra, em face ao movimento de mulheres brancas: “E não sou eu uma
mulher?”13. Desse modo, carece haver a conscientização do
engendramento das opressões em virtude dos recortes de classe, raça e
gênero, dando visibilidade e atenção às especificidades de cada pauta.

12
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina Candiani. - 1. ed.
- São Paulo: Boitempo, 2016, p. 127.
13
Disponível em: <http://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-
truth/?gclid=CjwKEAjw387JBRDPtJePvOej8kASJADkV9TLncTWCOSezoICzX0
kHIVH3RydGqm0oMzuUwE3eYGszxoCLsHw_wcB#gs.D36j1ks>. Acesso em:
junho de 2017.
86

Quanto ao ponto, cabe trazer à tona a ideia sustentada por Sueli


Carneiro, a qual defende a necessidade de enegrecer o feminismo14:
Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo
transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. Essa
condição faz com esses sujeitos assumam, a partir do
lugar em que estão inseridos, diversos olhares que
desencadeiam processos particulares subjacentes na luta
de cada grupo particular. Ou seja, grupos de mulheres
indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo,
possuem demandas específicas que, essencialmente, não
podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da
questão de gênero se esta não levar em conta as
especificidades que definem o ser mulher neste e naquele
caso. Essas óticas particulares vêm exigindo,
paulatinamente, práticas igualmente diversas que
ampliem a concepção e o protagonismo feminista na
sociedade brasileira, salvaguardando as especificidades.

Outrossim, imperioso enfatizar o fato de que a crença e práxis


pautadas no machismo e no racismo são vislumbradas tanto nas micro-
relações quanto nas macro-relações. O machismo e o racismo são
ideologias dominantes também nas bases estruturais e estruturantes
institucionais, as quais silenciam aquelas e aqueles que são
oprimidas/os.
De fato, as diversas formas de violência contra as mulheres15
transcendem as relações pessoais e constituem também as lógicas

14
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142003000300008>, dezembro de 2003. Acesso em: junho de 2017.
15
Algumas das formas de violência contra as mulheres se encontram elencadas na Lei
Maria da Penha. Uma conquista significativa ao movimento de mulheres foi ver
validadas enquanto violências as formas descritas no art. 7° do referido dispositivo.
Senão vejamos:
Lei n. 11.343/06, Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a
mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou
saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
87

institucionais. Isso ocorre seja na invisibilização e negligenciamento de


demandas que somente as mulheres apresentam, na maior punição de
mulheres encarceradas16, na hostilização e menosprezo às mulheres, na
deslegitimação de suas insurgências e nos abusos morais e sexuais. A
lista de violências às quais as mulheres são submetidas nas esferas
institucionais é demasiadamente longa. Sob a roupagem de argumentos
morais, religiosos e culturais, os quais se mostram sempre impregnados
de estigma, quem apresenta o poder de ditar as normas instrumentaliza
o patriarcalismo, a retirar a autonomia das mulheres sobre suas próprias
vidas e sobre seus próprios corpos. No que concerne a tais posturas
institucionais paternalistas e patriarcais, cabe transcrever fragmento do
Informe do grupo de trabalho da ONU sobre questões das mulheres, de
201617:

desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,


crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio
que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a
utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método
contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,
mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o
exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria.
16
ALVES, Dina. Rés negras, Judiciário branco: uma análise da interseccionalidade
de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. Disponível
em: <https://tede2.pucsp.br/handle/handle/3640>. Acesso em: fevereiro de 2017.
17
Recomendações do grupo de trabalho da ONU. Informe do grupo de trabalho da
ONU sobre questões das mulheres, 2016.
88

Ao longo de todo seu ciclo vital, o corpo da mulher é


instrumentalizado e suas funções e necessidades
biológicas estigmatizadas, submetidas a um programa
patriarcal politizado. O estado trata as mulheres de forma
instrumental, como ferramentas as quais aplica políticas
e programas. Por vezes se recorre a sanções penais e com
frequência com o pretexto de proteger a saúde e a
segurança da mulher, com argumentos religiosos e
culturais. Fins políticos, culturais, religiosos e
econômicos para a instrumentalização do corpo das
mulheres.

Dessa forma, o que se busca demarcar é que as estruturas do


direito foram edificadas por grupos com pressupostos patriarcais,
racistas e elitizados, com inexistência de pluralidade e diversidade, bem
como desatenção às demandas de segmentos denominados como
“minorias”. Impossível mensurar o impacto desta construção histórica.
Contudo, essencial que sejam direcionados olhares, ouvidos e vozes
àquelas e àqueles que vêm reivindicando e finalmente tomando (apenas
após muita luta) os espaços e os tornando cada vez mais plurais.

EIXO II - Do impacto da lógica elitista, masculinista e branca


nos trâmites processuais e na esfera judicial

É sintomático que as causas que toquem profundamente as


pessoas e as prioridades por elas elencadas digam bastante sobre seu
local de fala18. Devido a isso, é latente a necessidade de conseguir

18
Demarcar quais são os privilégios e opressões da pessoa a qual está sendo dada a
voz (ou que a toma com afinco) é substancial, pois são expostos quais os pressupostos
de onde partem a pessoa para que se construa o que se quer dizer. Ao salientar isso,
não se entende, por exemplo, que somente possa falar sobre uma opressão aquele que
sofre com isso. Entretanto, implica dizer que se deve refletir a realidade por meio da
própria posição de quem se manifesta em determinado contexto. Ninguém que não
sofre com alguma opressão é legítimo para apontar o que é e o que não é uma forma
de discriminação, uma vez que este sentimento é subjetivo e individual (ainda que
também estrutural, porém no caso em concreto deve ser respeitada a autonomia da
89

enxergar e dar visibilidades aos diversos marcadores sociais, os quais


atravessam o contexto que atinge cada pessoa em suas particularidades.
E essa carência se deve principalmente ao fato de que, como dito, a
lógica jurídica foi construída por meio destes primas masculinistas,
elitistas e brancos, acarretando que o processo, (principalmente o
penal), acabe por negligenciar e omitir a complexidade das estruturas
sociais que impactam os sujeitos, sobretudo, os criminalizados pelo
sistema de controle penal.
Ao refletir sobre a construção da racionalidade que rege a
tramitação dos processos penais, possível enxergar haver uma
sistemática de desumanização das pessoas julgadas. Isso ocorre em
virtude de uma análise mecanicista dos fatos contidos nos autos, ao que
pretere todo o contexto sócio-político que gerou aquele fato social. Em
que pese seja crucial não cair na falácia do Direito Penal do Autor19, o
que se vê é o paradigma oposto disso20, a ser julgada a conduta como se
ela fosse apartada de todas as condições sociais da pessoa que a

pessoa que é diretamente atingida), não cabendo a quem causa um sofrimento dar
(in)validade ao ato ocorrido. Por outro lado, cabe a esta pessoa pensar e (des)construir
a conduta ou disseminação de uma opressão a partir da sua posição no mundo. Nesse
sentido é que se fala, por exemplo, que pessoas brancas devam falar sobre sua conduta
enquanto racistas e os homens enquanto machistas, cabendo refletir e buscar formas
de diminuir e extinguir as opressões por elas mantidas e alimentadas.
19
“O Direito Penal do autor configura-se quando a reprovabilidade social, bem como
a aplicação das sanções penais são baseadas não na ocorrência de um fato ilícito, mas
sim no modo de ser do agente. A sanção deve ser aplicada, portanto, fundamentada
na personalidade do agente, na atitude interna jurídica corrompida do agente. A
conduta realizada seria apenas uma das características inerente aquele ser que nasceu
para delinqüir.” MOTTA, Alessandra Costa da Silva. Uma análise sobre a aplicação
do direito penal do autor nos dias atuais relacionada ao pensamento de Lombroso.
Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862&
revista_caderno=3>. Acesso em: fev. de 2017.
20
ROBALDO, José Carlos de Oliveira. Direito Penal do autor ou Direito Penal
do fato? Disponível em <https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal-
do-autor-ou-direito-penal-do-fato>. Consultado em: 05 de fevereiro de 2017.
90

executou, a ignorar todas as opressões estruturais que perpassam aquela


situação.
E isso acarreta uma desumanização da(o)s julgada(o)s, pois a
mera qualificação prévia ao interrogatório, por exemplo, não se mostra
suficiente para que seja enxergado o indivíduo em sua plenitude e
complexidade. O Poder Judiciário está então a tropeçar no mito da
igualdade21. Ao fragmentar e simplificar os sujeitos a condutas
passíveis de mera tipificação penal, são colocados entraves a um
exercício mínimo de empatia22.

Nesse sentido, a alteridade é um exercício que precisa ser levado


em conta quando da realização da atividade jurisdicional, justamente
pela questão de análise de prova quando averiguada a credibilidade e
verossimilhança dadas aos ditos das pessoas acusadas. E nenhuma
dessas reflexões vão de encontro ao dever de imparcialidade da pessoa
julgadora23. Pelo contrário, justamente devido à incapacidade de
analisar com a mesma ausência de preconceitos as teses acusatória e
defensiva, encontra-se a impossibilitar o alcance da esperada
imparcialidade. Tais preconceitos se concretizam na pré-disposição a

21
“Uma nova forma de hierarquia se estabelece, desta maneira, sob a forma de uma
sociedade individualista e administrativa. Se todos se tornam juridicamente iguais,
elas vêm a ser igualmente dominados por uma instância que lhes é superior. A
uniformidade, a igualização e a homogeinização dos indivíduos facilita o exercício do
poder absoluto em vez de impedi-lo.” WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso
comum teórico dos juristas. Sequencia, 3(5): p. 40. 1992.
22
Entendo por empatia o exercício de tentar se colocar no lugar da outra pessoa.
Tentar “vestir” suas vivências a fim de enxergar e sentir como a pessoa vê e sente as
experiências que a atingem. É o esforço de abdicar dos preconceitos e dos julgamentos
morais para entender a realidade subjetiva da outra pessoa.
23
“Mais adequado conceituar imparcialidade como um princípio supremo do processo
(...), pois dela decorre uma vinculação da conduta dos magistrados, que devem
comportar-se na condução do processo como terceiros alheios aos interesses das
partes” MAYA, André. Imparcialidade e Processo Penal, da Prevenção da
Competência ao Juiz de Garantias. São Paulo: Atlas, 2014, p. 102.
91

tratar como inverídicas as versões defensivas, sempre dando maior peso


aos ditos testemunhais dos policiais militares24, os quais, por exemplo,
na visão majoritária das pessoas julgadoras, “jamais teriam motivos
para faltarem com a verdade”. E tal contexto, ao fim e ao cabo, fere
frontalmente o princípio da presunção de inocência25.

Portanto, o exercício da alteridade é um requisito necessário para


que a atividade judicial não acabe imersa em um alheamento à realidade.
Ocorre que a dificuldade de conseguir se colocar no lugar da outra
pessoa se deve a algumas causas, sendo as principais: a fundação
epistemológica do próprio direito (já exposta no eixo I), a grande
demanda de processos, a forma do ensino jurídico e a organização da
lógica do poder judiciário.

Em primeiro lugar, o distanciamento entre as pessoas julgadora


e julgada é causado pela excessiva quantidade de processos que cada
juiz(a) compete analisar. Com isso, criam-se mecanismos de julgamento

24
Sobre o assunto: “Mais de 70% das prisões em flagrante por tráfico de drogas têm
apenas um tipo de testemunha: os policiais que participaram da operação. E 91% dos
processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. O problema, para
quem estuda a área, é que prender e condenar com base, principalmente, em
depoimentos de agentes viola o contraditório e a ampla defesa, tornando quase
impossível a absolvição de um acusado.”. RODAS, Sérgio. 74% das prisões por
tráfico têm apenas policiais como testemunhas do caso. Consultor Jurídico.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-
policiais-testemunhas>. Acesso em: fevereiro de 2017.
25
“Trata-se, como afirmou Luigi Lucchi, de “um corolário lógico do fim racional
consignado ao processo” e também a “primeira e fundamental garantia que o
procedimento assegura ao cidadão: presunção juris como sói dizer-se, isto é, até prova
contrária”. A culpa, e não a inocência, deve ser demonstrada, e é a prova da culpa -
ao invés da inocência, presumida desde o início - que forma o objeto do juízo”.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Prefário da 1. ed.
italiana, Norberto Bobbio. - 4. ed. rev. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2014, pg. 505.
92

que buscam simplificar os contextos26, além de haver uma abstração das


consequências concretas de cada decisão. Há também certa
desumanização intencional das pessoas julgadas, para que seja
humanamente possível lidar com o peso das decisões judiciais
aplicadas, principalmente quando se está decidido sobre suas
liberdades. Com o passar do tempo, a atividade discricionária de
aplicação da pena27 acaba sendo unicamente uma proporção abstrata, e
não anos de vida em que alguém permanecerá enjaulado em condições
extremamente insalubres.

E, com feito, isso é estruturado pela forma com que se dá o


ensino jurídico. Para mudar tal aspecto, necessária não somente a
revisão dos currículos dos cursos de direito, mas urge que se faça toda
uma revolução da forma pela qual o conhecimento é construído dentro
dos pomposos muros das faculdades de ciências jurídicas. Para
demonstrar tal urgência, calham as valiosas reflexões de Boaventura de
Sousa Santos28:

26
Evidente exposição da generalização e da simplificação dos casos judiciais é a
forma cada vez mais recorrente que os Tribunais Superiores vêm julgando casos com
repercussão geral, limitando demais tribunais a realizarem maior análise das
especificidades do caso em concreto.
27
“Conceito de fixação de pena: trata-se de um processo judicial de discricionariedade
juridicamente vinculada visando à suficiência para prevenção e reprovação da
infração penal. O juiz, dentro dos limites estabelecidos pelo legislador (mínimo e
máximo, abstratamente fixados para a pena), deve eleger o quantum ideal, valendo-se
do seu livre convencimento (discricionariedade), embora com fundamentada
exposição do seu raciocínio (juridicamente vinculada)”. NUCCI, Guilherme de
Souza. Código Penal Comentado. 11. ed. rev., atual e ampl. - São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2012, pg. 414.
28
SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça. - 3.
ed. - São Paulo: Cortez, 2011, pg. 86-87.
93

O paradigma jurídico-dogmático que domina o ensino


nas faculdades de direito não tem conseguido ver que na
sociedade circulam várias formas de poder, de direito e
de conhecimentos que vão muito além do que cabe nos
seus postulados. Com a tentativa de eliminação de
qualquer elemento extranormativo, as faculdades de
direito acabam criando uma cultura de extrema
indiferença ou exterioridade do direito diante das
mudanças experimentadas pela sociedade. Enquanto
locais de circulação dos postulados da dogmática
jurídica, têm estado distantes das preocupações sociais e
têm servido, em regra, para a formação de profissionais
sem um maior comprometimento com problemas sociais.

Nesse prisma, é a defesa do fortalecimento das atividades de


extensão29, as quais são justamente aquelas que possibilitam haver uma
maior pluralidade e diversidade de saberes, além da troca de
conhecimentos entre estudantes da academia e a sociedade como um
todo. Primordialmente, os núcleos de assessorias jurídicas populares
buscam que eixos socialmente marginalizados tenham acesso à justiça,
atuando na promoção e efetivação de direitos humanos e acesso à
justiça, a proporcionar que a Universidade cumpra sua função social.
No Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (SAJU/UFRGS)30, por exemplo, a
elevada atuação das e dos estudantes na extensão direciona “seus

29
Constituição Federal/1988: art. 207. As universidades gozam de autonomia
didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão
ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
30
Programa de extensão voluntário, pautado em protagonismo estudantil, em que as
pessoas participantes atuam com o objetivo de proporcionar acesso à justiça a pessoas
em situação de hipossuficiência socioeconômica. O SAJU/UFRGS atualmente conta
com vinte grupos, cujas temáticas se especificam para melhor atender as demandas
sociais.
94

conhecimentos para uma atividade jurídica de cunho social, reflexiva,


crítica e transformadora da realidade.31
No entanto, o que se vê, em regra, é o oposto disso: o fomento
da perpetuação de uma “bolha acadêmica”, a qual é distante e alheia à
causas, controvérsias e reivindicações sociais. Como dito
anteriormente, por este âmbito historicamente ser construído por
pessoas advindas de camadas mais favorecidas social e
economicamente, impera o esforço para manter o alheamento ao que
Boaventura denomina de fascismo del apartheid social32.

O ensino jurídico dialoga com casos tão simplórios que não dão
conta da materialidade dos casos reais. Reflexo disso é que no próprio
Poder Judiciário os conflitos sociais são simplificados à nível de meras
demandas jurídicas, acarretando uma fragmentarização do indivíduo, o
qual deixa de existir e de ser visto em sua humanidade e complexidade,
passando a ser enxergado como um objeto, um case, uma lide. Da
necessidade de se lidar com um conflito real de uma relação social,
passa-se a trabalhar com as folhas dos autos, com números de processos.

31
SAJU: Breves apontamentos e suas tendências. Disponível em:
<http://www.ufrgs.br/saju/sobre-o-saju/historia-1>,. Consulta em: 19 de fevereiro de
2017.
32
“Es decir, la segregación social de los excluidos a través de la división de ciudades
en zonas salvajes y zonas civilizadas. Las zonas salvajes son las zonas del estado de
naturaleza de Hobbes. Las zonas civilizadas son las zonas del contrato social, y viven
bajo la amenaza constante de las zonas salvajes. Para defenderse a sí mismas, las zonas
civilizadas se convierten en castillos neofeudales, enclaves fortificados que son
característicos de las nuevas formas de segregación urbana: urbanizaciones privadas
cerradas, comunidades valladas. (...) En relación al Estado, la división agrega un doble
criterio de acción estatal en las zonas salvajes y civilizadas. En las zonas civilizadas,
ek Estado actúa de forma democrática, como un Estado protector, incluso si en
ocasiones es ineficiente y poco fiable. En las zonas salvajes, el Estado actúa de una
manera fascista, como un Estado predador, sin ningún respeto, ni siquera en aparencia,
por el Estado de derecho.” SANTOS, Boaventura de Souza. Sociología jurídica
crítica - Para un nuevo sentido común en el derecho. p. 560.
95

Impera uma “cultura normativista técnico-burocrática”33. No pertine a


esta discussão, Daniel Achutti34 assim se refere quanto à obra de Nils
Christie:

(...) as cortes penais, ainda segundo o autor, possuem uma


mensagem escondida para a população: ao trabalhar por
meio de um sistema simplificador, os tribunais
transmitem a ideia de que “atos, bem como pessoas,
podem e devem ser avaliados através de dicotomias
simplistas”, com a consequente redução ao mínimo
possível de elementos a serem considerados relevantes
em um julgamento.

Também não há como deixar de mencionar a relevância de


políticas públicas de inclusão social e ações afirmativas nas pautas aqui
tocadas. Não somente no que concerne ao acesso às universidades, mas
também nos concursos públicos, políticas de caráter de compensação
histórica se mostram indispensáveis à acessibilidade destes espaços.

Ou seja, devido à elitização da esfera jurídica - desde o seu


ensino até a prática judicial -, vige um alheamento às causas sociais. Por
restarem insuficientes e inadequados os mecanismos concretos de
pluralização de tais meios, as e os operadoras/es do direito apresentam
grande dificuldade de empatia com aquelas e aqueles que são
majoritiariamente selecionadas/os pelo sistema de controle penal:
pessoas marginalizadas econômica e socialmente. Ante a isso, urge que
se revolucione, se politize e se humanize não somente o ensino jurídico,

33
SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça. - 3.
ed. - São Paulo: Cortez, 2011, pg. 85.
34
ACHUTTI, Daniel. Justiça restaurativa e abolicionismo penal. - São Paulo:
Saraiva, 2014, pg. 109.
96

mas também demais esferas do meio jurídico, o que, em verdade,


possibilita o combate a esta dicotomia vigente:

Por un lado, quienes encabezan secuencias de


destrucción y de creación social - generalmente, grupos
sociales pequenos, dominantes - se encuentran tan
absorbidos en la mecanicidad de la secuencia, que
perguntarse lo que hacen es, en el mejor de los casos,
irrelevante, y en el peor, amenazante y peligroso. Por otro
lado, la gran mayoría de la población que vive las
consecuencias de una intensa destrucción y creación
social está tan ocupada o pressionada para adaptarse,
resistir, o simplemente sobrevivir, que no logra indagar y
mucho menos responder a cuestiones complejas sobre lo
que están haciendo y por qué. (...) éste no es un periodo
conducente a la autorreflexión. Ésta probablemente está
restringida a aquellos lo suficientemente privilegiados
como para atribuirla a otros.35

EIXO III - Proposições reflexivas


Face ao emaranhado de inquietações aqui expostas, forçosa a
consolidação de constantes questionamentos e enfrentamentos por parte
dos segmentos de resistência. A explanação de reiterados chamamentos,
a fim de buscar a instauração de um estado de alerta permanente,
visando esforços para que o fluxo não seja seguido. E o fluxo, sem
dúvida, é a perpetuação da invisibilização das demandas de segmentos
socialmente vulneráveis e a reprodução de violências:

No curso de sua afirmação, a utilização das ferramentas


jurídicas hegemônicas e o recurso a concepções
alternativas não hegemônicas encontrará contradições,
avanços e recuos e a realização do potencial
emancipatório do direito dependerá não só de
proatividade, mas também de resiliência e constante
vigilância epistemológica.36

35
SANTOS, Boaventura de Souza. Sociología Jurídica Crítica, p. 542.
36
SANTOS, Boaventura de Souza. Para um revolução democrática do Direito,
pg. 68.
97

Assim sendo, o combate à falácia da neutralidade do direito é


crucial, pois, como demonstrado, este mito está a serviço de poucos, os
quais buscam se manter em posições de poder e de privilégio. O
questionamento e desconforto devem ser constantes face à cultura
hegemônica jurídica. Assim, busca-se demonstrar a necessidade não
somente de resiliência, mas também de resistência e combatividade.
Isto posto, principalmente em momentos políticos tal como o
atual, com retirada de direitos sociais básicos e desmantelamento do
Estado Democrático de Direito, a construção de uma lógica e uma práxis
jurídicas antirracistas, feministas e de base são substanciais a uma
perspectiva progressista. Com efeito, são muitas as pessoas
irresignadas, as quais devem superar os sectarismos e atuar de modo
conjunto, a fim de que esse âmbito socialmente tão relevante seja
pluralizado, humanizado e politizado, tornando-o instrumento de
transformação sócio-política.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo: Saraiva, 2014.

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Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
98

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Tradução Maria Luiza X. de Borges; revisão técnica Karina Kushnir. -
1.ed. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Disponível em:


<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
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GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem


conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. -
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do direito penal do autor nos dias atuais relacionada ao pensamento
de Lombroso. Disponível em: <http://www.ambito-
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SANTOS, Boaventura de Souza. Sociología jurídica crítica. 2. ed. -


Madrid: Editorial Trotta, S.A., 2009.
100

PENSAR A DEMOCRACIA EM TEMPOS DE


MEDO

Fernanda Martins1
Augusto Jobim2

EX-POSIÇÃO

Em tempos sombrios de naturalização da violência, sobretudo


dos dispositivos de punição, em que o embrutecimento do pensamento
toma protagonismo, orientado por uma “nova razão do mundo”3 ditada
pelos auspícios neoliberais, a urgência radical de certa inteligência que
enfrente a burrice do fanatismo mobilizado pelos fascismos como modo
de vida atrofiado pelo medo se impõe. Um vazio reflexivo ganha eco,
matraqueado pelo senso comum que, também em matéria penal,
concretamente, não apenas franquia a morte em escala industrial
operada pelo sistema penal, mas forja uma expansiva e permanente
tecnologia de governo hábil à eliminação da diferença. Refletir, ainda
que de maneira esparsa, mas comprometida com este estado de coisas,

1
Mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pelo PPGD/UFSC, doutoranda em
Ciências Criminais pela PUCRS, professora de Direito Penal, Processo Penal e
Criminologia da UNIVALI.
2
Doutor em Altos Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra
(Portugal); Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS e Professor de Criminologia
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (Mestrado e Doutorado) da
PUCRS.
3
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a
sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
101

é mais que mera questão de engajamento, atualmente trata-se de ponto


nevrálgico de sobre-vivência.

1 DEMOCRACIA COMO EXPERIÊNCIA DO IM-


POSSÍVEL

Diretamente ao ponto que propomos à reflexão: o que podemos


dizer sobre o contexto de democracia que, supostamente como regime
político, compartilhamos no ocidente? Ademais de relatar o sequestro
que uma sociedade mercantil impinge, através de subjetividades
arraigadas a um “ideal empreendedor de si”, aos atuais parâmetros
democráticos, como propriamente poderíamos pensar a democracia
através de novos impulsos? Necessário primeiramente que façamos a
distinção tanto entre democracia real, como constituição do corpo
político, e a democracia como mera técnica de administração das leis
fetichistas da rentabilidade quanto também à democracia para além da
sua subordinação à forma estatal.
Cremos, ademais, nada auspicioso metermo-nos a apresentar
receitas. Contudo, não podemos usar a democracia como paradigma se
não dissermos como hoje a democracia tem-se portado. Para pensar em
desconstruir de outro modo o conceito de democracia normalmente
pintado, deve-se pensar uma diferença de natureza e não meramente de
grau. Jamais se imiscuindo no deplorável espetáculo hipócrita do
compromisso democrático falsamente despolitizado, urge (re)pensar
neste viés uma democracia, agora por vir. Convite paradoxal, nunca
cego ao apelo sedutor de algum regime político estreito, contudo que
arrisca, para além da contingência de alterar as coordenadas do que
102

parece possível e poder dar condições a algo novo,4 sobretudo a


resguardar como se5 possível fosse a radicalidade da abertura de um
talvez im-possível6? Não estaríamos às voltas com tantos mal-
entendidos sobre a democracia se não houvesse mesmo uma imperativa
complexidade desconcertante no seu trato? Em todo o terreno, as
complicações nunca se fazem por prazer, todavia fingir estar certo de
alguma simplicidade onde ela não existe é postura por demais
desaconselhada.7 Concedido algum espaço a isto, por fim, qual seria em
parte o alcance político-democrático deste pensamento? O que se apõe
é uma experiência aporética do impossível. Um pensamento radical de
desconstrução8 em democracia, se é que isto pode-se dar, estaria longe
de qualquer fatalismo niilista ou outra técnica menos eficaz de
neutralização que possa apagar seu rastro, e ainda muito distante de
algum método analítico. Esta hipérbole, imprevisível aposta, de
maneira geral, muito mais comprometida estaria, sim, em desestabilizar
propriedades estruturais que mantém unidos certos esquemas
conceituais. Noutros termos, tratar-se-ia de suspender de maneira
argumentada as hipóteses, pressuposições e as oposições

4
Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Arriesgar lo imposible: Conversaciones com Glyn Daly.
Traducción de Sonia Arribas. Madrid: Editorial Trotta, 2006.
5
DERRIDA, Jacques. Vadios: Dois Ensaios Sobre a Razão. Coordenação, Tradução
e Notas de Fernanda Bernardo. Coimbra: Palimage, 2003, pp. 219 e 239.
6
DERRIDA, Jacques. “Como se fosse possível, “within such limits”...”. In: Papel-
máquina. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, pp. 258-
259.
7
DERRIDA, Jacques. “Em direção a uma Ética da Discussão” In: Limited Inc..
Tradução Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1991, p. 161.
8
DERRIDA, Jacques. Mémories – pour Paul de Man. Paris: Galilée, 1988, p. 38 e
DERRIDA, Jacques. Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo. In: Pensar em não
ver: escritos sobre as artes do visível. MASÓ, Joana; MICHAUD, Ginette;
BASSAS, Javier (Orgs.). Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da
UFSC, 2012, p. 138.
103

diametralmente rígidas que identificam uma construção conceitual.9


Intervenção, pois, sobre identidades homogêneas, a qual não pretende
negociar com seu objeto em troca de algum sentido ou significação, mas
busca traços desconstrutivos que destotalizem totalidades
autoinclusivas (não precisamos lembrar a totalizadora lógica que
ostenta a democracia capital-parlamentar).
De certo modo, estamos já pulsando sob o espaço que pode vir.
Tudo aquilo que trazemos gira em torno, a rigor, em termos
democráticos, de uma invocação por vir [à venir] da democracia – cada
vez de novo, à-vez [tour à tour], e de uma vez por todas [une fois pour
toutes]10 – num cenário urgente que não ignora o motivo que isto
implica: não se pode querer ver vir o que permanece insistentemente
por vir.11 Algo quiçá nada latente quando se afirmam comummente os
argumentos sobre os horizontes democráticos não realizados, mas a
serem alcançados como metas a serem perfectibilizadas
teleologicamente. Falseiam as boas intenções, pois ainda estaremos
sobre a miríade do cálculo, daquilo que se antecipa. E arrancar
efetivamente a democracia para tocá-la radicalmente é ir além do mero
círculo econômico (antecipações, projeções programadas de ideias
reguladoras) que ainda tal lógica acaba por remeter.

9
DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 251 (sobre os equívocos na sua acepção a parte da
Destruktion heideggeriana, consultar p. 263, nota 4).
10
DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 31.
11
DERRIDA, Jacques. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver: escritos sobre
as artes do visível. MASÓ, Joana; MICHAUD, Ginette; BASSAS, Javier (Orgs.).
Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012, p. 70 e
DERRIDA, Jacques. “Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento”
(tradução de Piero Eyben). In: Revista Cerrados (Revista do Programa de Pós-
Graduação em Literatura da UnB). Brasília: Vol. 21, nº 33 (2012), p. 244-5.
104

A democracia por vir (la démocratie à venir)12 com que lidamos


não significa, tal qual escreve Derrida – é um de seus traços mais
marcantes, ao contrário do que se poderia pensar – ser uma democracia
futura que um dia será presente, pois diretamente uma democracia no
sentido levantado nunca será presente, apresentável em si mesma, e
tampouco subordinada a uma ideia reguladora kantiana. Ter esta aporia
como base nos leva ao epicentro do conceito de democracia, em última
análise, não como “regime político”, mas como a instância capaz de
acolher a possibilidade de ser contestada, de se criticar e se aperfeiçoar
indefinidamente. Esta indecidibilidade de base, novamente, não se
inscreve num horizonte teleológico qualquer e leva a sério a aporia do
demos que, segundo o filósofo franco-argelino,

“(...) é simultaneamente singularidade incalculável de


qualquer um, antes de qualquer ´sujeito´, o possível
desfazer do laço social por um segredo a ser respeitado,
além de toda cidadania, além de todo ´Estado´, na
verdade de todo ´povo´, na verdade além do estado
corrente da definição de um ser vivo como ser vivo
´humano´, e a universalidade do cálculo racional, da
igualdade dos cidadãos perante a lei, do laço social de
estar junto, com ou sem contrato (...).” 13

Vislumbra-se uma história a ser pensada de modo


completamente alheia de qualquer horizonte, porque acredita na
permanência do impossível. É nesta existência do impossível que a
promessa da democracia se inscreve, logo a ordem do possível, de um
ideal possível, não encontra domínio. Tal recurso que os próprios meios

12
DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 96-7.
13
DERRIDA, Jacques. “Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos – Um diálogo
com Jacques Derrida”. In: Filosofia em Tempo de Terror: diálogos com Jürgen
Habermas e Jacques Derrida. BORRADORI, Giovanna. Tradução Roberto Muggiati.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 130.
105

tons (inclusive críticos) assumem quando falam sobre democracia corre


o risco de tornar-se um álibi. Para nós, sucintamente, Derrida14 oferece
reservas fundamentais a ela como ideia reguladora. No contexto
kantiano, a ideia reguladora mantém-se na ordem do que é ainda virtual
ou potencial, um possível infinitamente postergável, dentro de uma
fórmula de poder nada livre de fins teleológicos. Reservadamente, em
primeiro lugar, uma democracia por vir concentra seus esforços, como
dito, sob o título do im-possível, uma heteronomia da lei vinda do outro.
Im-possível, frise-se, que não é o inacessível, muito menos que eu possa
postergar indefinidamente, pois me apanha num aqui e agora urgente
da minha decisão, que não pode aguardar simplesmente no horizonte –
injunção premente que, enfim, não pode ser idealizada. Portanto, por
segundo, há uma responsabilidade que verticalmente se abate para ser
feita, assimétrica à obediência de uma norma. Mesmo quando existe
regra, por mais problemática que seja, sabe-se o caminho a tomar, não
se hesita mais e, a rigor, mesmo a decisão já não decide mais nada, pois
foi desdobrada pelos automatismos – o lugar da justiça ou da
responsabilidade não mais se entrevê.
Consequentemente, noutras palavras, a vinda singular do outro.
Uma força fraca (nada segura, garantida ou coberta de sucesso), dirão
alguns (com razão), para outros, apenas restará o equívoco de acusar tal
faceta de uma abertura inescapável à fé messiânica. Àqueles, de fato,
esta força vulnerável da alteridade comprova o limite da ex-posição
incondicional ao que ou a quem vem e que vem afetá-la eticamente. Aos
últimos – àqueles que em seus pobres registros de uma apropriada
política democrática que consente apenas sobre aquilo que se sabe deve

14
DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 164-168.
106

fazer, pelo dever e pela dívida – ressoaria sem dúvida ainda um


chamado racional, mas de um outro lugar: o hiato de um espaço
racional de uma fé hiper-crítica, desprovida de dogma ou religião, uma
outra maneira de fazer a razão razoar.15
Pensar este encontro impossível com a democracia por vir – sob
a égide do “agir como se”16, tal qual o performativo da acusatoriedade
o qual viemos a desenvolver (ambos convocam-se longe de quaisquer
idealizações e realizam-se a cada instante, responsavelmente desde uma
heterogeneidade de ordem diversa) –, além de todo o mais, em contraste
com as ambições político-reguladoras democráticas, facilita a
pedagogia das chamadas figuras metonímicas do incondicional.
Naturalmente, a mais importante delas para os nossos interesses, a qual
cabe ao menos referir (ainda que sob o preço de alguma celeridade
prejudicial), é a heterogeneidade e indissociabilidade da justiça e do
direito.17 Se ingressamos a fundo no respaldo filosófico que o assunto
da democracia envia, correlato aos trâmites jurídico-penais, não é senão
para destacar algo aparentemente comezinho, mas que funda a questão:
se direito e justiça apelam-se mutuamente, esta excede aquele. No
entanto, a justiça mesmo excedendo não apenas o direito, mas a própria
política, jamais deve ser rechaçada, subtraída ou preterida nesta
convocação. Se há um núcleo que aquela desconstrução que propomos

15
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a
nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994, p. 93.
16
O tratamento mais aprofundado do tema pode ser lido em DERRIDA, Jacques. Dar
la muerte. Traducción de Cristina de Peretti y Paco Vidarte. Barcelona: Paidós, 2006,
p. 94-129.
17
Para tanto, indispensável referir o colóquio “Desconstruction and the Possibility
of Justice” na Cardozo Law School em outubro de 1989 que dará origem, em parte,
à obra DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade.
Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 03-58.
107

(tanto à democracia quanto ao direito) encontra espaço, trata-se, ao


mesmo tempo, do intervalo do seu próprio limite: a justiça. A justiça,
como a possibilidade mesma da desconstrução, é o que ainda dará, não
obstante, a autoridade do direito como possível exercício
desconstrutor.18 É o desligamento deste espaço livre que se relaciona à
singularidade incalculável do outro que faz, incomensuravelmente, a
justiça exceder o direito, contudo nenhum impulso maior há ao devir
da sua própria racionalidade jurídica. Enquanto, heterogêneos, como
dito, justiça e direito apelam a sua indissociabilidade. Por isso, aquilo
que a uma primeira vista poderia ser visto como uma condição (de
justiça) importante (ninguém negaria), porém apartada diretamente dos
escaninhos do processo penal (sintoma de alguma fraqueza
envergonhada), deve sempre ser reconhecida conjunta e
intransigentemente como sua exigência. É preciso à razão jurídica ver-
se sempre às voltas com o cálculo e o incalculável – precisamente, é
este transação impossível entre o condicional (direito) e o incondicional
(justiça) que não se cansa de falar: “não há justiça sem apelo a
determinações jurídicas e à força do direito, não há devir,
transformação, história e perfectibilidade do direito que não apele a
uma justiça que, não obstante, a excederá sempre”.19 Por mais que
receemos, o cuidado nunca será demasiado diante da prudência
necessária para que se evite a neutralização deste movimento. Nosso
exercício sob o dispositivo inquisitivo – neste apartado em particular
atravessado pela resistência aos blocos falsamente indesconstruíveis de
uma democracia sequestrada pelo capitalismo – inclina-se em direção a

18
DERRIDA, Jacques. Força de Lei, pp. 27-8.
19
DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 265.
108

este por vir, agora e urgente, de abertura radical a uma performance


acusatória afeta a uma justiça, em seus termos, indissociavelmente
jurídica.
O desafio jurídico, e naturalmente da democracia, neste ponto,
para não dizer da própria razão digna deste nome, em qualquer
dimensão que a ela seja convocada, não poderá ter outra pedra de toque
senão o irrenunciável momento decisivo de captar o incalculável no
reino do cálculo. Para além da arquitetônica da razão, há racionalidades
plurais que a põe sempre em crise, dignidade esta emprestada,
indispensável e insuprimível de qualquer pensamento que se coloque
incansavelmente avesso à neutralização do acontecimento, da
alteridade singular e excepcional do que vem, incluso de quem vem, e
sem a qual nada ocorre. Nada de idealismos e racionalismos
transcendentes regidos sempre por teleologias – novamente, os
entremeios democráticos e especialmente o “reino dos fins” no processo
penal encontram-se francamente anêmicos a esta disposição –, pelo
contrário, mas uma vinculação preocupada com o que há de mais
concreto e radicalmente desafiador: “como articular esta justa
incalculabilidade da dignidade com o indispensável cálculo do
direito?”20 Como relacionar o singular com o universalizável?
Tais considerações, para uma lógica especializada e propensa ao
objetivismo reducionista, podem soar irresistivelmente estranhas,
particularmente se esta racionalidade instrumental estiver rendida –
querendo debater iludidamente com responsabilidade as questões
candentes da esfera da política, da democracia e dos dispositivos
criminais – às mesclas de certos pragmatismos (de perguntas e respostas

20
DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 238.
109

fáceis) com os funcionalismos das mais variadas espécies –


catalogadas, quase que por inércia, de “impossíveis” ou de “estéreis”,
sem qualquer fundo prático. Para dizer o menos, pouco atentos estariam
à assimetria insubssumível das regras jurídicas, tanto a uma justiça
quanto a uma democracia por vir em si mesmas, sem que isto deixe
radicalmente, contudo, de impor(tar) indissociavelmente um
movimento impostergável da sua própria racionalidade.
Assim, o idioma de uma democracia não poderia ver sua
gramática reduzida meramente à contabilidade, nem a algum horizonte
programável possível. A um tal pensamento não se conjugaria uma
categoria mais justa do que o por vir. Porque se o possível em
democracia fosse apenas o possível – não possível, seguramente e
certamente possível – e acessível de antemão, já seria um possível sem
por vir (sem vida). Por assim dizer, haveria uma democracia posta de
lado, “segura da vida” – no sentido de seu desinteresse sobre ela, como
se a contabilização e a calculabilidade no seu regime a tivesse colocado
sob a lógica de qualquer “seguro de vida” – um programa causal de
desenvolvimento sem desenrolar algum.21
Salvaguardar a democracia viria da invenção posta por uma
escrita singular da razão democrática – instável, que incita e induz ao
alcance da preferência do irredutível sobre o racional. Democracia
razoável preferível ao racional – diferença frágil de uma língua precária
– que, como aponta Derrida, se por um lado teria em conta a
“contabilidade da justeza jurídica, (...) esforçar-se-ia também (...) em
direcção à justiça.” O razoável da democracia não seria nada muito

21
DERRIDA, Jacques. Políticas da Amizade. Seguido de O Ouvido de Heidegger.
Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campos das Letras, 2003, p. 42.
110

diverso que “uma racionalidade que tem em conta o incalculável, para


dele prestar contas, ali mesmo onde isso parece impossível, para o ter
em conta ou para contar com ele, quer dizer, com o evento do que [ce
qui] vem ou de quem [qui] vem.”22 Apenas uma democracia por vir,
desafeta à banalização dos fetiches da alteridade, pode dar seu sentido
e a sua racionalidade prática a todo e qualquer conceito de democracia,
a toda e qualquer democraticidade, porque em sua grafia já seria o
intervalo do outro lugar sem idade da democracia: democratic idade.
Por isso o apelo: apelar a um pensamento do evento por vir, da
democracia por vir, da razão por vir.23 A certeza de que deveríamos ter
começado por aqui já não cede mais. Todavia, a tempo, haveria como
deixar de fazê-lo, a todo custo, ao fim, como questão inicial?

2 ENTRE NÓS – PARA ALÉM DO MEDO

Como pensar a democracia como a tarefa do impossível, de se


calcular o incalculável, contar com o outro, sempre antes tendo-o em
conta? Como lidar com a imprevisível e radical experiência de uma
democracia por vir, principalmente quando lidamos com os
agenciamentos maquínicos de um poder punitivo ao mesmo tempo
repressivo, estigmatizante e seletivo e, sobretudo, configurador e
canalizador de desejos violentos, dispositivo hábil a aniquilar qualquer
futuro que não seja ditado pelo monopólio do medo? Como desatar
estes nós, para a construção do que há de comum entre-nós?

22
DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 276.
23
DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 36.
111

Tal cumplicidade atravessa a partilha das angústias que tocam a


inegociabilidade com o poder punitivo. Sendo assim, devem-se abrir
sulcos no maciço dominante do conjunto do sistema penal. A esta
economia que utiliza a aniquilação do outro ban(d)ido como
combustível, opomos traços de momentos de vida e morte que se
colocam tanto como memória inapreensível de um sofrimento surdo
quanto inspiração ar-riscada de novos modos de viver a urgência de um
pensamento sem medos. Este é o ritmo, a toada daquilo que procuramos
ressoar neste trabalho, sempre premidos pelo aqui e agora das
catástrofes que se acumulam sob a égide da violência punitiva. Ler nas
entrelinhas as tragédias naturalizadas e su-portar o peso da
responsabilidade ético-política é, antes de tudo, auscultar as
estratégias capitais em seu mais rigoroso sentido. Deve-se buscar
incessantemente, de forma mais específica, a fabricação de feixes,
intersecções de tensores e extensores, construídos pela tentativa de
questionar a opressão provinda e acalentada pelo poder punitivo.
Portanto, provocar o diálogo pela perturbação da ordem punitiva fixada
historicamente por uma lógica de segurança e medo.
Tenhamos como convidada singular neste passo uma cena
inspiradora de Nina Simone (documentário indicado ao Oscar do de ano
2016 “What happened, Miss Simone?”). A entrevista com esta figura
ímpar, no ponto que nos interessa, apresenta sua condição singular de
mulher. A partir de uma fala despretensiosa, há a demonstração da
potência disruptiva de uma artista que conquistou um espaço
predominantemente masculino do jazz norte americano. Assim, crucial,
diante do inventário de questões que poderíamos retirar para os debates
criminológicos, antever que estamos às voltas da indizível questão do
112

sofrimento humano. A interrogação feita a Nina é peremptória e


aparentemente insuperável: “O que é ser livre para você?” (What`s free
to you?).
Nascida Eunice Kathleen Waymon em 1933 nos E.U.A., Nina
teve formação musical para ser pianista clássica. No entanto, com a
recusa do seu pedido de ingresso no Instituto de Música Curtis na
Filadélfia, a artista transforma-se em Nina Simone para tocar em bares
noturnos sem o conhecimento de seus pais. Como negra que transita
pelos circuitos dominados por homens, a pergunta posta já bem conduz
ao infinito diálogo sobre a ideia de liberdade. Sua resposta é
arrebatadora e vai diretamente ao cerne daquilo que nos importa: “Ser
livre”, diz ela “é só um sentimento. É como explicar a alguém como é
estar apaixonado. Como você vai explicar para alguém que nunca se
apaixonou como é amar? Você não pode fazer nem para salvar sua
própria vida! (…) Liberdade é para mim: não ter medo. Não ter medo,
mesmo!” Nina, ao dizer do desafio perene de viver sem medo
encaminha aquilo que há de mais importante na não-resolução do
problema de liberdade em meras dimensões formais: a subjetividade
ética que deve lhe lastrear.
Se quisermos fazer valer a pena, de fato, o problema da
liberdade como sugerido na fala de Nina, defendê-la para além de
simples identidades subjetivas, de mônadas dotadas de vontades
individuais e de meras faculdades de agir postas contratual e
ardilosamente sob fronteiras claras, bem ao perfil de democracias
formais – liberdade(s) que terminam onde começa(m) a(s) do outro –
nada, absolutamente nada se movimenta para fora da falácia. Enfim,
deixar de ver a liberdade desta forma e transformá-la, como diz Ricardo
113

Timm de Souza24, na “condição vital da sobrevivência supraindividual


dos múltiplos”, ou seja, consubstanciada em atos éticos que amparem
em si mesmos a própria razão de ser da liberdade. Daí sim sua
concretização para além da mera ideia: responsabilidade anterior à
liberdade. Suscetibilidades que agora nos permitem falar
numa liberdade ética transmutada sob a forma de responsabilidade pelo
Outro.
Escapar da patologia da totalidade carregada pelas lógicas da
liberdade imunes com relação ao outro pressupõe encarar que todo
o medo é medo do outro. A convocação posta com firmeza por Nina é
imperativa: liberdade é não ter medo. Medo este que é sempre do outro,
outro sem o qual apenas a indiferença e a lógica do preconceito de todas
as ordens (racial e de gênero em especial) poderão reinar. Todavia, não
nos iludamos. E o alerta já foi dado pelo poeta moçambicano: “há quem
tenha medo que o medo acabe”.25
Quiçá alguma loucura por justiça passe hoje pela libertação dos
modos de determinação subjetiva em que nos encerramos, à condição
de mostrar a viabilidade de se pensar um circuito de afetos que não
tenha o medo como fundamento26. Talvez hoje, mais do que nunca, no
mais arriscado desejo, a liberdade de não ter medo ressignifique olhares
através das vidas que nos tocam. Resistindo em conjunto pelas lutas
sempre urgentes e encarando radicalmente nossas autoimunidades
medrosas, especialmente através do seu privilegiado acólito chamado

24
SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como fundamento II: Pequeno tratado de ética
radical. Caxias do Sul: Educs, 2016, p. 145-152.
25
Intervenção “Murar o Medo” de Mia Couto nas Conferências de Estoril de 2011.
26
SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo e o fim
do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
114

poder punitivo, talvez aí esteja a força motriz das oportunidades de


viver uma vida radicalmente digna para além da violência, ainda mais
possível sob novos tons da junção do querer viver para além do medo e
a responsabilidade que há entre-nós.
115

A RELEVÂNCIA DA OMISSÃO EM CASOS DE


ESTUPRO: A CULPABILIZAÇÃO DA MULHER
NA SOCIEDADE PATRIARCAL BRASILEIRA

Laura Gigante Albuquerque1

Fernanda Corrêa Osório2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho parte de uma verdadeira inquietação das


autoras diante da fundamentação utilizada em decisões e acórdãos
referentes a processos criminais – especialmente de estupro – para a
responsabilização de mulheres, na modalidade comissiva por omissão,
por crimes de estupro.
A pesquisa volta-se primeiramente para a análise dos crimes
omissivos impróprios e às suas peculiaridades, a fim de compreender
como se dá a responsabilização penal do agente a partir da omissão. A
seguir, passa-se a investigar de que forma a omissão imprópria vem
sendo utilizada para operar-se a criminalização de mães em casos de
violências praticadas contra os seus próprios filhos. Além disso,

1
Mestranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Ciências Penais pela PUCRS. Graduada em
Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre/RS.
Brasil.
2
Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS). Professora da Escola de Direito da PUCRS. Diretora de Cursos
Permanentes da Escola Superior da Advocacia da ESA/OABRS. Advogada. Porto
Alegre/RS. Brasil.
116

entende-se essencial atentar para as práticas discursivas dos atores do


sistema de justiça criminal – juízes, desembargadores, promotores,
advogados –, e de que forma estes discursos3 refletem o pensamento de
uma sociedade patriarcal4 em que estamos inseridos.
No presente trabalho, a pesquisa se voltou à análise do discurso
dos julgadores, em especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul (TJRS), sendo analisados acórdãos publicados entre os anos de
2000 e 2016 que tratassem da responsabilização criminal de mães
através da figura da omissão imprópria. A fim de analisar as práticas
discursivas, foi realizada pesquisa qualitativa de análise de discurso,
buscando verificar de que forma o discurso e a prática do campo
jurídico-penal reproduzem os estereótipos de gênero presentes em
nossa sociedade.

1 OS CRIMES OMISSIVOS IMPRÓPRIOS: BREVES


APONTAMENTOS SOBRE O INSTITUTO
A responsabilidade penal a partir da omissão pode ser mais
facilmente compreendida a partir da sua contradição em relação à
responsabilidade pelos delitos chamados comissivos. Enquanto os
crimes comissivos se revelam pela realização de uma ação humana, ou
seja a realização da conduta proibida, os crimes omissivos caracterizar-
se-iam pela “não-realização” de uma ação devida.

3
Na lição de Foucault (1998, p. 10), o discurso não é apenas aquilo que traduz as lutas
ou sistemas de dominação, mas aquilo por que ou pelo que se luta: o poder do qual
queremos nos apoderar.
4
“Numa sociedade de origem patriarcal, de herança escravocrata, o homem, o branco,
torna-se a norma, o totalizante, e [a] linguagem além de designar coisas e objetos, será
um modo de interpretação de mundo que atribuirá valores a determinados grupos
como forma de (manter) poder ou de opressão” (Ribeiro, 2014, p. 459).
117

Os delitos comissivos, portanto, partem de uma ação positiva, e


só poderiam ser praticados mediante a realização de um
comportamento. Os delitos omissivos, por sua vez, somente se
verificam através da omissão de uma ação determinada, ou seja, de uma
não-ação, quando o agente era capaz de realizá-la (Prado, 2007, p. 317).
Na lição de Juarez Cirino dos Santos:
Desse modo, a ação seria uma realidade empírica
reconhecível pelos sentidos; a omissão de ação não seria
uma realidade empírica, mas uma expectativa frustrada
de ação, somente conhecível por um juízo de valor. Nesse
sentido, omitir uma ação não significa, simplesmente,
não fazer nada, mas não fazer algo determinado pelo
direito. (SANTOS, 2006, p. 198)

Essa distinção entre ação e omissão ocorre porque o Direito


Penal utiliza duas técnicas para a proteção de bens jurídicos (Santos,
2006, p. 200). A forma usual de proteção é quando a norma penal proíbe
ações que podem lesar bens jurídicos. Excepcionalmente, no entanto, a
norma penal ordena a realização de ações que protegem bens jurídicos.
A omissão delituosa ocorrerá, portanto, quando da não realização de
uma ação determinada pela norma penal, ou seja, quando houver
violação a um comando ou dever de atuar (Prado, 2007, p. 322). Nas
palavras de Fabio D’Avila, pode-se dizer que “enquanto nos crimes
comissivos o agente viola uma norma proibitiva, nos crimes omissivos,
a norma violada é preceptiva” (D’Avila, 2005, p. 202).
Os crimes omissivos, que partem de um dever de agir, também
se dividem em duas modalidades: a omissão própria e a omissão
imprópria. A omissão própria é quando ocorre a violação a uma ordem
de ação explícita, ou seja, quando o agente deixa de realizar uma
conduta específica, como no delito de omissão de socorro: “deixar de
118

prestar assistência (...) à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa


inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo (...)”
(artigo 135 do Código Penal).
Pela omissão imprópria, o agente contribuiria para a realização
de uma ação proibida, prevista nos tipos penais que seriam comissivos,
por exemplo, “matar alguém” (artigo 121 do Código Penal). A
realização do resultado morte poderá ocorrer, portanto, por uma
omissão, e não por uma ação, sempre que o agente tinha o dever de
impedir o resultado. Nos crimes omissivos impróprios, a ordem de
realizar ações protetoras de bens jurídicos encontra-se implícita
(Santos, 2006, p. 200), e não explícita em tipos legais, como no de
omissão de socorro.
Os crimes omissivos impróprios, também denominados crimes
comissivos por omissão, têm por pressuposto a existência de uma
posição de garantidor do bem jurídico, atribuída a determinados
indivíduos (Santos, 2006, p. 200). Denominada por Jescheck como
“causa jurídica especial” (Jescheck, 1993, p. 564), a posição de
garantidor é o que gera um dever jurídico especial de agir para impedir
o resultado proibido. Como descrito por Juarez Tavares:
Diz-se, na verdade, que os crimes omissivos impróprios
são crimes de omissão qualificada porque os sujeitos
devem possuir uma qualidade específica, que não é
inerente e nem existe nas pessoas em geral. [...] Fala-se
que essa relação especial do sujeito (qualificado) para
com a vítima corresponde a um dever especial de
proteção, diferentemente do dever geral de solidariedade
dos delitos omissivos próprios. (TAVARES, 2012, p.
312-313)

Sendo assim, os crimes omissivos impróprios são caracterizados


por uma omissão dolosa ou imprudente de evitar um resultado previsto
119

como crime (morte, lesão corporal, etc), que somente pode ser atribuída
ao agente que detinha a especial responsabilidade de evitar o resultado,
ou seja, a pessoa que ocupa a posição de garantidor.

O fundamento legal para a responsabilização penal por omissão


é fornecido pelo § 2º do artigo 13 do Código Penal:

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o


omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O
dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou
vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir
o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da
ocorrência do resultado.

Em relação à primeira hipótese, a pessoa que ocupa a posição


de garantidor é aquela que, por lei, detém o dever de cuidado, proteção
ou vigilância de outrem, tais como: a) superiores em relação a
subordinados(as); b) ascendentes e descendentes entre si
(principalmente os pais em relação a filhos(as) menores); e c) cônjuges,
também em relação um ao outro (Tavares, 2012, p. 320-322).
Assim, por exemplo, se os pais, mesmo sendo capazes, não
impedem o afogamento do(a) filho(a) menor na piscina doméstica,
responderão pelo resultado de morte (artigo 121 do Código Penal) em
virtude da omissão, seja ela por dolo ou por imprudência (Santos, 2006,
p. 201).
Em tese, portanto, tanto a mãe quanto o pai encontram-se na
posição de garantidores em relação aos(às) filhos(as) menores de idade
para efeitos penais, pois ambos possuem dever de proteção, cuidado e
vigilância para com a prole. A expressão “em tese” foi utilizada porque,
120

na prática, como procuraremos demonstrar a seguir, apenas as mães


vêm sendo criminalizadas por este tipo de omissão de cuidado.

Para além das diversas críticas dogmáticas que se podem fazer


ao instituto da omissão imprópria, o enfoque aqui buscado é nas
questões de gênero imbricadas na aplicação desta forma de
responsabilização, em especial nas práticas discursivas reproduzidas no
âmbito da justiça criminal. Quase exclusivamente são as mulheres que
respondem penalmente nestes casos de delitos comissivos por omissão,
sendo necessário analisar-se de que maneira as práticas jurídico-penais
reproduzem discursos e estigmas relacionados aos papéis de gênero na
sociedade.

2 A CULPABILIZAÇÃO DA MULHER: UMA ANÁLISE


DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS JURÍDICO-PENAIS

O local reservado à mulher na sociedade ainda é,


predominantemente, o ambiente doméstico, familiar, privado. À mulher
incumbem os papéis relacionados aos cuidados do lar e principalmente
aos cuidados com os filhos, a sua educação e supervisão. Ainda que se
tenha avançado muito em termos de igualdade de gênero, em especial
no século XX, com os diversos movimentos feministas por igualdade,
ainda hoje a mulher segue carregando o estigma da mãe, esposa,
responsável pela esfera doméstica5, além de sofrer a imposição de
padrões de feminilidade e passividade.

5
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mesmo nos países
em que a participação das mulheres no mercado de trabalho vem aumentando, elas
ainda são responsáveis, em média, pelo dobro do trabalho doméstico e de cuidados
121

No que tange aos crimes omissivos impróprios, verifica-se que


é a mulher quem assume o papel de principal garantidora em relação
aos filhos menores, para efeitos do artigo 13, § 2º, alínea “a”, do Código
Penal. Raramente se ouve falar de um caso em que o pai foi
responsabilizado, por omissão imprópria, em razão de crime praticado
contra o seu filho. Em relação às mães, pelo contrário, identifica-se uma
tendência de culpabilização que vai além do senso comum da sociedade
e ingressa na esfera jurídica, ou seja, na prática de responsabilização
criminal. Entre os acórdãos analisados6, serão reproduzidos alguns
trechos para demonstrar o discurso dos atores do campo jurídico que
reproduzem os estereótipos de gênero dominantes na sociedade.
No acórdão da apelação criminal n. 70055449326 (TJRS),
tratou-se de denúncia pelo crime de atentado violento ao pudor, em que
D.J.D. teria abusado sexualmente das filhas de F.R.R.M., com quem
tinha um relacionamento amoroso. A mãe das duas vítimas e

(não remunerado) do que aquele realizado pelos homens. Fonte: OIT. Mulheres no
Trabalho: tendências de 2016, p. 68. Disponível em:
<http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---
publ/documents/ publication/wcms_457317.pdf>. Acesso em: 20 de junho de 2017.
6
Notas metodológicas: Considerando os limites de espaço e tempo do presente
estudo, a pesquisa qualitativa foi realizada apenas no âmbito do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul. A fim de analisar as práticas discursivas em torno da
responsabilização de mães por omissão imprópria, foram analisados acórdãos
publicados entre os anos de 2000 e 2016, contendo a expressão “omissão imprópria”
ou a expressão “crime comissivo por omissão”, ambas relacionadas à palavra “mãe”.
Foram encontrados 21 acórdãos na primeira chave de pesquisa (“omissão imprópria”
e mãe) e 6 acórdãos na segunda (“crime comissivo por omissão” e mãe), sendo
excluídos aqueles que tratavam de outros tipos de crimes de omissão imprópria, como
por exemplo aqueles praticados por médicos. Os acórdãos pertinentes foram
cuidadosamente lidos e tiveram alguns trechos selecionados para serem reproduzidos
no presente artigo. Sabe-se que toda opção do(a) pesquisador(a) implica, por outro
lado, em uma exclusão de demais dados que poderiam ser relevantes. A seleção dos
trechos analisados no presente artigo teve a finalidade de demonstrar alguns discursos
oficiais, por parte do Poder Judiciário, que reproduzem estigmas e papéis de gênero
atribuídos às mulheres.
122

companheira do agressor foi denunciada pelo mesmo crime – atentado


violento ao pudor – na forma da omissão imprópria, por ter-se omitido
do dever de garantia em relação às filhas. Ao analisar-se o acórdão,
destaca-se primeiramente a referência ao laudo psicológico realizado,
que demonstra a culpabilização da mãe:

“O laudo psicológico realizado em N.M.C [abreviei]


conclui que: “A mesma relatou sintomas condizentes
com a vitimização sexual que foi submetida (atentado
violento ao pudor) [...]. Pode-se sugerir ainda que a
adolescente foi exposta à situação constrangedora na
infância, ficando vulnerável ao ter sua intimidade violada
sexualmente e pela falta de uma mãe cuidadosa que
acreditasse em seu pedido de ajuda na época que foi
vítima de Abuso sexual. A mãe dizia que N.M.C
[abreviei] era mentirosa e permitiu que seu companheiro
a desmentisse. Pode-se sugerir que a Sra. F.R.R.M.
[abreviei] foi negligente e passiva em relação à
dinâmica incestuosa que seu companheiro mantinha
com suas filhas (fls. 70/71 do inquérito).” (Trecho do
acórdão da apelação n. 70055449326)

O acórdão da apelação criminal também reproduziu extensos


trechos da decisão que condenou a mãe acusada em concurso com o
agressor. Pode-se extrair o seguinte trecho, da sentença de primeiro
grau, que também demonstra um discurso moralizante por parte o
magistrado de primeiro grau:

“Neste quadro, é inequívoco que a genitora das vítimas


manteve-se indiferente ante às atitudes libidinosas do
acusado Márcio, e, mesmo tendo a possibilidade de
atuação, nada fez, não se importando com a situação
vivenciada por suas filhas, embora o Direito lhe
impusse agir.” (Trecho do acórdão da apelação n.
70055449326)
123

Por fim, na própria fundamentação do acórdão, destacam-se os


seguintes trechos do voto do Desembargador relator, ao sustentar a
responsabilidade da mãe:

“Ressalte-se que a acusada, em depoimento à fl. 97, relatou


que achou que casando ia viver, mas só foi viver mesmo
aos 29 anos, quando foi fazer o curso supletivo e conheceu
o réu. Disse que saía para ir ao colégio, mas, na verdade,
ia se encontrar com o réu. O que desmente a versão do
acusado de que não tinham nenhuma relação antes da
separação, e corrobora o relato das vítimas de que dois ou
três dias após a separação de seus pais, o acusado já
estava dentro da casa das ofendidas. As vítimas
disseram que a mãe saía muito à noite para dançar, e
nessas ocasiões ficavam acompanhadas por babás,
esclarecendo que Delmar a acompanhava nas festas, mas
afirmaram que, a maior parte do tempo, quando a mãe saía,
ficavam aos cuidados da irmã mais velha. Chama a
atenção o comentário de Nathália ‘Minha mãe queria viver
o tempo que ela não viveu’ (fl. 159v), o que não parece ser
uma constatação infantil, mas uma frase muitas vezes
ouvida. Importante referir que a pequena Vitória, irmã
menor das ofendidas, ao ser avaliada por psicólogas disse
‘A Nati não teve infância, porque ela teve quer cuidar de
mim e da Jé.’ (fl. 87), confirmando o relato das vítimas de
que, muitas vezes, ficavam sozinhas aos cuidados de
Nathália, então com 10 anos de idade. Não se está aqui
fazendo julgamento moralista da ré, apenas analisando a
alegação defensiva no sentido de que Flávia era uma mãe
zelosa e que jamais deixava as meninas sozinhas, que não
encontra respaldo na prova dos autos.
(...)
Não é aceitável que uma mãe, diante de tantos indícios,
simplesmente se recusasse a acreditar nos relatos
uníssonos de suas filhas. A prova dos autos evidencia
que a ré optou, livremente, em manter uma relação com
o acusado ainda que à custa do sofrimento de suas filhas
menores. E mais, não satisfeita em ignorar os relatos e
súplicas das crianças, ainda as constrangia impondo-
lhes silêncio, dizendo que se contassem para o pai, o réu
poderia matá-lo. Como conforto, as meninas apenas
ouviram da mãe a orientação descabida de que tinham que
esquecer, porque ‘ia passar’, e o relato de que sofrera
tentativa de abuso na infância.” (Trechos do acórdão da
apelação n. 70055449326)
124

Embora o próprio julgador afirme que não está realizando um


“julgamento moralista”, percebe-se que a sua fundamentação jurídica
não se dissocia do julgamento que faz em relação à conduta da acusada
F.R.R.M.: parte-se, inevitavelmente, de uma avaliação do que se
esperava dela no seu papel de mulher e de mãe. Por isso, a análise não
recai apenas na quebra de um dever jurídico de garantia (o qual incumbe
sempre a ambos os genitores). É necessário, para demonstrar a falha
dessa mãe, ressaltar que ela “saía muito à noite para dançar”, que passou
a ter um novo companheiro poucos dias após a separação, que “optou”
por manter um relacionamento com o acusado “ainda que à custa do
sofrimento de suas filhas menores”. Em última análise, as conclusões –
muitas vezes disfarçadas de fundamentação jurídica – relacionam-se
diretamente às constatações da psicóloga, ao afirmar, no laudo acima
referido, que faltou às vítimas “uma mãe cuidadosa”.
Na apelação criminal n. 70063826663 (TJRS), embora o
desfecho tenha sido favorável à mãe acusada, observou-se que o voto
divergente de um dos Desembargadores trouxe à tona algumas
concepções morais e notadamente patriarcais, por mais que se saiba
estarem incrustradas no imaginário social:

“Com efeito, como mãe da ofendida, sua garante, era de


se esperar que ela se pusesse de anteparo à barbárie, ao
irracional, fosse o ombro consolador, o norte moral da
situação.
A culpa da ré, data vênia, afigura-se ainda maior do
que a do padrasto, pois não foi ela movida pelo
instinto irracional, incontido, de satisfação sexual,
mas, diversamente, trouxe aos fatos elemento cerebral,
pensado, racional de maldade, silenciando consciente e
coniventemente com a sanha sexual irrefreada do réu
(...).” (Trecho do acórdão da apelação n. 70063826663)
125

Para além do julgamento moral da mãe, que deveria ser “o


ombro consolador, o norte moral da situação”, constata-se a referência
ao “instinto irracional, incontido, de satisfação sexual” ao tratar do
crime de estupro praticado pelo então padrasto da vítima. Trata-se de
um discurso muito comum no âmbito do crime de estupro, o de
relacioná-lo a um “instinto” de satisfação sexual, como uma forma de
quase exculpar-se a conduta do agressor. De fato, como já bem
observado por Vera Andrade (2005, p. 94), o senso comum policial e
judicial não difere do senso comum social. Contudo, as pesquisas em
torno dos crimes de estupro já há muito demonstraram que “não se trata
de uma conduta voltada, prioritariamente, para a satisfação do prazer
sexual (lascívia desenfreada)”, mas, sim, a um contexto de violência
física, de controle e domínio (Andrade, 2005, p. 95-96).
Na apelação n. 70050251891, houve a condenação da mãe D.M.
por omissão imprópria em caso similar aos demais, por se tratar de
crime de estupro praticado pelo seu então companheiro contra a sua
filha. Ao tratar da responsabilidade penal da mãe, fundamentando a
existência do dever de garantia que configurou o delito de estupro por
omissão imprópria, o acórdão concluiu, em relação à conduta da mãe,
que “mais lhe valia a companhia do criminoso do que a dignidade da
filha”. Independente de eventual quebra do dever legal da mãe em
relação à filha menor, verifica-se um evidente juízo moral, que
extrapola os limites do julgamento dos fatos atinentes ao processo.
Já no âmbito da apelação criminal n. 70011583234 (TJRS),
houve a reforma da sentença pelo órgão colegiado e, portanto, a
absolvição da mãe da vítima. De acordo com a denúncia, a mãe
D.T.C.S. teria praticado o crime de atentado violento ao pudor por
126

omissão imprópria, em virtude dos crimes de estupro e atentado


violento ao pudor praticados pelo seu então marido contra a sua filha
menor de idade. Embora o Tribunal tenha absolvido a mãe, chama
atenção no acórdão o seguinte trecho reproduzido da sentença que havia
condenado D.T.C.S.:

“A omissão da mãe não é incomum nestes casos,


mormente quando o marido exerce forte comando
familiar, como geralmente acontece em cidades
interioranas. Prova disso é que ela chegou a relatar para
uma professora que estava sendo ameaçada de morte por
A.
Não é crível que D. não soubesse do que estava
ocorrendo, pois se T. chegou a comentar os fatos com os
colegas de escola, por certo, comentava com a mãe
também. Esta, evidentemente, era pressionada pelo
marido ou, no mínimo, fazia de conta que nada estava
acontecendo, pois me custa acreditar que achasse tudo
aquilo normal, no seu papel de mãe.
(...)
Pois, no caso dos autos, é certo que D. tinha um especial
dever de cuidado, proteção e vigilância em relação à T.,
posto que é sua mãe. Ainda que o agressor direto fosse o
seu próprio marido, tinha o dever jurídico e moral de
dar um basta àquela situação, denunciando o fato às
autoridades competentes, o que não se fez. (...)
As ameaças que ela diz ter sofrido de A., ao meu sentir,
não chegam a configurar uma coação moral irresistível,
até porque tais fatos não foram bem explorados no
decorrer da instrução. Tem-se, é claro, aquela impressão
do que geralmente acontece, porém insuficiente para o
reconhecimento da exclusão da culpabilidade.
Tenho consciência da fragilidade que certas mulheres
ainda apresentam em relação aos maridos, porém, na
qualidade de mãe, o esperado era que D. rompesse
quaisquer amarras, registrasse o fato na Delegacia de
Polícia e exigisse providências. Isso se chama
negligência.” (Trechos do acórdão da apelação n.
70011583234, com os nomes substituídos pela inicial).

A referência expressa ao “papel de mãe” pelo magistrado de


primeiro grau no caso acima analisado ilustra, de forma bastante
127

explícita, a influência dos já denominamos papéis sociais de gênero no


pensamento e no discurso dos atores do campo jurídico. O lugar da
mulher na sociedade (ainda) é o de zelar pelos outros, o de mãe
“cuidadosa”, esposa dedicada. Ao ousar quebrar esses estereótipos, a
mulher é duplamente condenada: pela sociedade e pelo Poder
Judiciário. Os discursos jurídicos reproduzem, portanto, a opressão e
estigmatização que as mulheres já sofrem em seu cotidiano na
sociedade, independentemente de serem criminalizadas. Contudo, na
esfera penal, “as opressões ficam ainda mais cruéis, pois a vida daquela
mulher acaba por depender do olhar do julgador, que é um grande
reprodutor de discursos patriarcais” (Castro, 2016, p. 175).

Por outro lado, nas palavras de Rochelli Fachineto (2012, p.


358), a mulher ré paira num “não lugar”, na invisibilidade social, uma
vez que a incidência de crimes cometidos por mulheres é demasiado
pequena em relação aos crimes cometidos por homens, de forma que a
mulher na condição de ré e de encarcerada é colocada neste “não-
lugar”. De fato, uma das grandes críticas que se pode fazer ao sistema
de justiça criminal é a ausência de atenção à mulher e às suas
peculiaridades7. Considerando que o sistema prisional é um espaço
essencialmente masculino, muitas vezes “as demandas básicas
femininas são diminuídas a meros caprichos” (Souza; Santos; Mendes,
2015, p. 9).

Dessa forma, a utilização, dos papéis de gênero pelos atores


jurídicos, em especial dos estigmas ligados à categoria “mulher”, não

7
Como há muito já acentuado por Elena Larrauri (1994, p. 21-29) o direito penal trata
as mulheres como os homens tratam as mulheres, pois ao próprio direito também são
relacionadas as características do “masculino” (racional, ativo, objetivo).
128

se faz dissociada do meio social (Fachinetto, 2012, p. 397). Os papéis


de gênero não são criados no campo jurídico, mas são por ele
atualizados, ressignificados, a partir da estrutura social preexistente.
Tampouco se pode considerar o discurso vinculado à estigmatização de
gênero como uma prática consciente por parte do julgador, uma vez os
preconceitos e mitos relacionados às mulheres fazem parte do habitus8
incorporado pelos atores jurídicos.
Por fim, é importante perceber que o discurso não apenas reflete
e representa a sociedade. Esta, a sociedade, também é modificada e
construída pelos discursos (Figueiredo, 2014, p. 142). Em especial,
quando se fala em discursos produzidos no campo jurídico, percebe-se
a enorme força com que estes discursos podem influenciar a sociedade.
De fato, o discurso produzido pelos atores do campo jurídico contribui
“para a desigualdade de gênero no acesso à justiça, consolidando
relações desiguais de poder, calcada em construções de gênero, criando
e recriando estereótipos sobre comportamentos e maneiras de se portar
de homens ou mulheres” (Fachinetto, 2011, p. 110).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve como tema central a figura dos crimes


omissivos impróprios e a responsabilização penal das mães nos casos
de crimes cometidos contra seus filhos menores. Dessa forma, em uma
primeira abordagem sobre o tema e considerando os limites do presente

8
Habitus é conceituado por Bourdieu como “produto da incorporação de uma
estrutura social sob a forma de uma disposição quase natural, frequentemente dotada
de todas as aparências do que é inato, o habitus é a vis insita, a energia potencial, a
força dormente, de onde a violência simbólica, em particular aquela exercida pelos
performáticos, extrai sua misteriosa eficácia.” (Bourdieu, 2001, p. 205).
129

estudo, buscou-se demonstrar algumas práticas discursivas do Tribunal


de Justiça do Rio Grande do Sul que evidenciam como o campo jurídico
segue reproduzindo estereótipos de gênero a partir dos papéis e
estigmas provenientes da sociedade em geral.
Em pesquisas futuras, pretende-se analisar também o discurso
dos demais atores do campo jurídico (promotores de justiça e
defensores públicos ou privados), através da realização de estudos de
caso. Dessa forma, ao analisarem-se os casos com maior profundidade,
será possível evidenciar também como a opressão de gênero se
relaciona com outros tipos de opressão. Tendo em vista a seletividade
do sistema penal, considera-se essencial que a análise das questões de
gênero venha acompanhada de um estudo interseccional que revele as
demais problemáticas que perpassam o fenômeno, como as opressões
de raça e classe.
Ao analisarem-se as práticas discursivas do Tribunal de Justiça
gaúcho, já foi possível perceber como os estereótipos, mitos e papéis de
gênero ainda estão implícitos e explícitos nas decisões, e reafirmam o
local da mulher na sociedade: o papel dócil, frágil, de cuidadora. Ainda,
como salientado em um dos acórdãos analisados, muitas vezes o
discurso em relação à mãe pode ser ainda mais recriminador e repressor
do que o julgamento em relação às atitudes do próprio agressor, ainda
que se trate de crimes terríveis como o estupro.
Por outro lado, não causa surpresa que a quase totalidade dos
casos de responsabilização de genitores através da figura da omissão
imprópria recaia sobre a mãe, e não sobre o pai. Um dos dogmas ainda
muito difíceis de superar é o da distinção entre os papéis paterno e
130

materno9, pois a despeito dos avanços já conquistados em termos de


igualdade de gênero e de poder familiar, a mãe permanece como a
principal fonte de amor e de cuidado para o bebê: “amamentar, dar
banho e comida, vigiar os primeiros passos, consolar, cuidar,
tranqüilizar à noite... são gestos de amor e de devotamento” que recaem
majoritariamente sobre a mãe (Badinter, 1985, p. 338).

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BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalinas. Tradução de Sergio
Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

9
Nas palavras de Andrea Bispo, “(...) o arquétipo junguiano da Grande Mãe continua
operando invicto no inconsciente coletivo e dando conteúdo às normas todas as vezes
que as relações familiares são analisadas. Assim, se de um lado, a guarda, via de regra,
é concedida à mulher, por outro, a mãe que abandona os filhos é extremamente
reprovada, e uma vez que violou os estereótipos da maternidade, passa a ser
considerada incapaz de educar a prole e indigna de conviver com ela. (...) o
comportamento masculino semelhante, ao invés de gerar o mesmo ódio, ou no mínimo
o mesmo furor argumentativo, é absorvido com absoluta naturalidade.” (BISPO,
2016, p. 31).
131

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criminologia feminista. In: Anais do I Congresso de Criminologia(s)
críticas(s), minimalismo(s) e abolicionismo(s). Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2015.
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial
Pons, 2012.
133

GUERRA ÀS DROGAS: DA INEFICÁCIA DO


PROIBICIONISMO À CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA

Franchesca Inácio Zandavalli1

INTRODUÇÃO

O intuito da presente escrita nada mais é do que uma tentativa


de ampliar o debate sobre a atual política de drogas do Brasil. Uma
política de drogas que tem como um de seus resultados mais
expressivos o aprofundamento da desigualdade ao afetar diretamente
classes que já sofrem por sua posição desprivilegiada na sociedade: os
negros e pobres.

Apesar de toda população sofrer os efeitos dessa guerra


descabida, não há comparação entre o impacto causado nas periferias
e o impacto causado nas classes abonadas. Faz-se necessário destacar
que essa não é uma guerra voltada contra a droga considerada ilícita,
mas sim uma guerra contra cor, classe e endereço.

Conforme dados divulgados em 2016 pelo do Sistema Integrado


de Informação Penitenciária (InfoPen), em dezembro de 2014 a
população carcerária brasileira atingiu o número de 622.202 presos,
sendo que 55% tem entre 18 e 29 anos, 61,6% são negros e 75,08%
tem apenas o ensino fundamental completo. Dentre estes

1
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRITTER).
134

encarcerados, 28% são devido ao tráfico de drogas e 40% ainda não


foram condenados. 2
Estes dados contrastam com a composição étnica brasileira,
onde 50,7% da população é negra, ou seja, há uma visível disparidade.
Mesmo não havendo distinção de classe entre os usuários de
drogas ilícitas, a distinção existe nos métodos utilizados para combatê-
las. Para Vera Malagutti Batista:

A visão seletiva do sistema penal para adolescentes


infratores e a diferenciação no tratamento dado aos
jovens pobres e aos jovens ricos, ao lado da aceitação
social que existe quanto ao consumo de drogas, permite-
nos afirmar que o problema do sistema não é a droga em
si, mas o controle específico daquela parcela da
juventude considerada perigosa. 3

Esta diferenciação aumenta em demasia o número de


encarceramentos da juventude pobre. Percebe-se, pois, a inevitabilidade
de considerar uma mudança na legislação vigente, visto que, segundo
Salo de Carvalho:
Apesar do reconhecimento mundial do fracasso desse
modelo, importantes setores dos Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário reiteram a adesão ao punitivismo,
cujos efeitos, nas últimas décadas, foram aumentar
vertiginosamente os índices de encarceramento e criar
barreiras à implementação de alternativas eficazes ao
tratamento das pessoas que fazem uso problemático das
drogas.4

2
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. População carcerária
brasileira chega a mais de 622 mil detentos, Brasília, DF, 2016. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br/noticias/populacao-carceraria-brasileira-chega-a-mais-
de-622-mil-detentos>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2017.
3
Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de
Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.134.
4
Carvalho, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e
dogmático da Lei 11.343/06. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 31
135

Enquanto assistimos muitos países considerados por alguns


como desenvolvidos, até mesmo o que capitaneou a Guerra às Drogas5
darem grandes avanços nesse tema, no Brasil seguimos tentando
aumentar a repressão e o proibicionismo que se mostra ineficaz há mais
de 40 anos.

1 GUERRA ÀS DROGAS: A DISSEMINAÇÃO DO


TERROR

Em 1971, com a premissa de que as drogas ilícitas eram o


“inimigo número um do país” o então presidente norte-americano,
Richard Nixon, declarou pela primeira vez a famosa war on drugs.
Rapidamente essa ideologia se alastrou pelo mundo e, notoriamente,
pelo Brasil.

A cultura de medo e terror, vendidos pela mídia e pelos


políticos da época, fizeram a sociedade demonizar os traficantes e os
usuários. A desumanização dos comerciantes de drogas somada com
sensação de insegurança criou um cidadão que aceita essa guerra sem
hesitar. Constituiu-se então uma ideologia de guerra, porém, uma
guerra voltada às pessoas pobres e em sua maioria não-brancos, como
bem pondera Maria Lucia Karam:

A nociva, insana e sanguinária “guerra às drogas” não é


efetivamente uma guerra contra as drogas. Como
qualquer outra guerra, não se dirige contra coisas. É sim
uma guerra contra pessoas - os produtores, comerciantes
e consumidores das arbitrariamente selecionadas
substâncias tornadas ilícitas. Mas, é ainda mais

5
A primeira declaração de “Guerra às Drogas” foi feita em 1971 pelo então presidente
norte-americano Richard Nixon.
136

propriamente uma guerra contra os mais vulneráveis


dentre esses produtores, comerciantes e consumidores.
Os “inimigos” nessa guerra são os pobres, os
marginalizados, os desprovidos de poder.6

Não há uma justificativa plausível e corroborada por estudos


científicos para determinação de quais drogas são consideradas lícitas
ou não. As consideradas lícitas são tão nocivas quanto as ilícitas, “todas
são substâncias que provocam alterações no psiquismo, podendo gerar
dependência e causar doenças físicas e mentais. Todas são
potencialmente perigosas e viciantes. Todas são drogas”7. A falta de
argumentos embasados em dados aponta que o motivo que determina
se uma substancia é ilícita ou não é puramente político.

Desde a declaração desta guerra vivemos um ciclo de violência


sem fim. O número de mortes violentas aumenta a cada ano no Brasil.
Vemos nossas comunidades pobres sangrando todos os dias, reféns da
violência comandada pelas redes criminosas e pela polícia. Todos os
dias pessoas perdem suas vidas por causa desta guerra. Seja porque
foram vítimas de balas perdidas, porque foram confundidas com
traficantes, porque de fato eram traficantes, porque eram policiais em
serviço, e por inúmeros outros motivos relacionados à esta insana
repressão. A guerra às drogas no Brasil já matou e continua matando
muito mais do que qualquer droga seria capaz.

6
KARAM, Maria Lúcia. Drogas, é preciso legalizar. Law Enforcement Against
Prohibition, maio de 2012. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>.
Acesso em: 05 de fevereiro de 2017.
7
KARAM, Maria Lúcia. Drogas: legalizar para respeitar os direitos humanos. Law
Enforcement Against Prohibition, agosto de 2015. Disponível em:
<http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017.
137

É inegável a influência midiática na disseminação dessa


mistura de medo e ódio que mantém a guerra às drogas tão poderosa há
tantos anos. O discurso de ódio das pessoas manipuladas por um senso
comum faz com que esse debate tão importante permaneça inerte há
muito tempo. Afinal, quem estamos tentando proteger?

2 POLÍTICA DE DROGAS NO BRASIL

Em 2006, no Brasil, passou a vigorar a nova Lei de Drogas


(11.343/2006), lei essa que mesmo extinguindo a pena de prisão para
usuários, é uma das maiores culpadas pelo encarceramento em massa,
principalmente dos mais desprovidos de recursos.

A atual lei antidrogas não especifica a quantidade de droga que


diferencia o usuário do traficante, desse modo, muitos usuários acabam
sendo condenados por tráfico de drogas. Como sempre, os pobres, não-
brancos e moradores da favela são os que mais sofrem as consequências
desta legislação. Na prática a regra é simples: os brancos residentes de
bairros de luxo são considerados usuários e os pobres residentes das
favelas são considerados traficantes. São poucos os que têm o privilégio
de serem tratados como usuários. Para a elite brasileira “as massas
urbanas de trabalhadores, em sua maioria negros, vivendo nos morros,
quilombados, constituem contingentes perigosos”8.

Mesmo que a quantidade de drogas que caracterize um


indivíduo como usuário ou traficante seja vago, a legislação prevê
outros critérios com esse intuito, por exemplo, onde e como ocorreu a

8
Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de
Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 36
138

ação policial, as condições sociais e pessoais e também a conduta e os


antecedentes da pessoa, como prevê o §2° do artigo 28 da Lei
11.343/2016.

A ausência de critérios que especifiquem a quantidade de droga


encontrada com a pessoa para que seja considerado o crime de tráfico é
absurda, visto que o encarceramento em massa de usuários enquadrados
como traficantes é uma das razões da superlotação do nosso sistema
prisional.

A realidade brasileira é que algumas gramas de maconha são o


suficiente para fazer com que uma pessoa seja presa por anos. Décadas
dessa guerra deixaram marcas profundas que não desaparecerão com
facilidade.

O Brasil tem hoje, em números absolutos, a quarta maior


população carcerária do mundo, dentre eles, 40% são provisórios. O
aumento constante do número de encarceramentos em nada diminuiu a
violência nas ruas.9

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Barroso


reconhece que a atual legislação sobre o assunto causa um
estrangulamento no sistema prisional brasileiro, apesar de não achar
que uma simples descriminalização do consumo de drogas fosse
resolver o problema:

A crise no sistema penitenciário coloca agudamente na


agenda brasileira a discussão da questão das drogas. Ela deve
ser pensada de uma maneira mais profunda e abrangente do

9
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. População carcerária
brasileira chega a mais de 622 mil detentos, Brasília, DF, 2016. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br/noticias/populacao-carceraria-brasileira-chega-a-mais-
de-622-mil-detentos>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2017.
139

que a simples descriminalização do consumo pessoal, porque


isso não resolve o problema. Um dos grandes problemas que
as drogas têm gerado no Brasil é a prisão de milhares de
jovens, com frequência primários e de bons antecedentes,
que são jogados no sistema penitenciário. Pessoas que não
são perigosas quando entram, mas que se tornaram perigosas
quando saem. Portanto, nós temos uma política de drogas
que é contraproducente, ela faz mal ao país.10

O Brasil sempre foi um país muito conservador e atrasado se


comparado com “países de primeiro mundo”. O que acaba gerando mais
problemas que poderiam ser evitados. São diversos os fundamentos
para que as drogas sejam legalizadas no país, inclusive argumentos
defendidos por estudiosos, porém ainda há quem, com discursos
conservadores, reprima o assunto por interesses financeiros. Conforme
analisa Jean Willys :

(...) a criminalização não produz qualquer benefício à


sociedade nem sequer naquilo que implicitamente
promete. Alguns ingenuamente ainda acreditam que a
simples proibição impede que alguém faça uso de alguma
substância, mas está provado que isso não acontece. O
consumo de drogas não se reduziu pela criminalização,
mas aconteceu o contrário. E o que temos, então, é crime
organizado, violência, corrupção policial, insegurança,
milhares de mortes, criminalização de jovens das favelas
e das periferias, presídios lotados onde esses jovens têm
seu futuro aniquilado e drogas de má qualidade vendidas
de maneira informal, sem controle, a pessoas de qualquer
idade, em qualquer sítio e sem pagar impostos. 11

A repressão não muda o fato de que o jovem da comunidade


desamparado e esquecido pelo Estado verá na venda de drogas uma
solução para mudar de vida, tampouco fará o jovem de classe média

10
G1, Um em cada três presos do país responde por tráfico de drogas. Disponível em:
<http://g1.globo.com/politica/noticia/um-em-cada-tres-presos-do-pais-responde-por-
trafico-de-drogas.ghtml>. Acesso em 13 de fevereiro de 2017.
11
Carta Capital, Legalizar as drogas. Disponível em:
<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/legalizar-as-drogas-2566.html>. Acesso
em 13 de fevereiro de 2017.
140

parar de consumir. Com a legislação atual a tendência é que a população


carcerária continue crescendo em ritmo acelerado, o que pode acabar
por implodir o sistema prisional nacional, mas sem a contrapartida de
diminuição da criminalidade, que pode até aumentar.

Alicerçada em estereótipos e estigmas, a política de drogas no


Brasil é um assunto que para grande parte da população deve ser tratado
com a maior repressão possível, não havendo necessidade de debater
sobre o assunto.

3 UM MUNDO LIVRE DAS DROGAS

Essa idealização de que algum dia teremos um mundo livre das


drogas, que deu origem a essa destruidora política proibicionista, não
passa de uma utopia, tendo em vista que “drogas têm sido usadas desde
a origem da história da humanidade”12. Hoje muitas substancias que
alteram a psique humana (característica comum entre todas as drogas)
são aceitas socialmente e usadas diariamente, como, por exemplo,
cafeína e álcool.
Como um Estado que não consegue controlar o tráfico dentro
das prisões pode achar que existe uma forma de erradicá-lo fora dela?
Os presídios brasileiros atualmente são controlados não pelo Estado,
mas pelas facções e organizações criminosas que comandam e
comercializam drogas mesmo que apenados. A corrupção dentro do
próprio sistema carcerário faz com que os presos tenham acesso às

12
KARAM, Maria Lúcia. Drogas, é preciso legalizar. Law Enforcement Against
Prohibition, maio de 2012. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>.
Acesso em: 05 de fevereiro de 2017.
141

drogas dentro da prisão. É como se tirássemos o cidadão da rua para


agradar a quem convém, mas não nos importássemos com ele tendo a
mesma atitude lá dentro.
Décadas de fracasso deveriam ser o suficiente para percebermos
que esse modelo repressivo, definitivamente, não deu e nem dará certo.
O fato é que a droga ilícita não deixará de existir. Para cada droga
proibida surge outra mais barata e mais nociva, vide exemplo do crack,
droga derivada da cocaína, com um custo muito mais barato e efeitos
muito mais nocivos.

No começo deste ano de 2017, presídios superlotados e


comandados por facções, tiveram rebeliões que somadas resultaram na
morte de mais de cem pessoas. Mortes cruéis que incluíram
decapitações, esquartejamentos e carbonizações, cultura de violência
esta que possivelmente foi adquirida dentro do próprio cárcere e que se
estende às ruas. Se seres humanos são seres sociais, é natural que eles
ajam de acordo com a sociedade na qual estão inseridos. Se inseridos
em um ambiente onde a própria vida humana é desvalorizada, incluindo
a sua, é natural que passem a desvalorizar a dos outros.

Essa guerra por poder não afeta apenas os envolvidos com o


tráfico de drogas, mas sim, toda sociedade, visto que, com o aumento
de violência nas ruas, os não usuários também estão em perigo
constante.

Conforme lembra Luís Carlos Valois: “O legislador sequer


imagina que a violência atribuída ao comércio das drogas tornadas
142

ilícitas só existe porque estas foram tornadas ilícitas, mas que na relação
comercial em si não há qualquer violência. ”13.

A máquina de violência da repressão está por todos os lados, e


parte inclusive da polícia que deveria controlá-la. Vera Malaguti
Batista, em seu livro Difíceis Ganhos Fáceis menciona que:

O processo de demonização do tráfico de drogas


fortaleceu os sistemas de controle social, aprofundando
seu caráter genocida. O número de mortos na “guerra do
tráfico” está em todas as bancas. A violência policial é
imediatamente legitimada se a vítima é um suposto
traficante. O mercado de drogas ilícitas propiciou uma
concentração de investimentos no sistema penal, uma
concentração dos lucros decorrentes do tráfico e,
principalmente, argumentos para uma política
permanente de genocídio e violação dos direitos
humanos, contra as classes sociais vulneráveis (...) 14

Os exorbitantes lucros obtidos com o comércio ilegal de drogas


são um dos fatores que tiram também alguma justificativa econômica
para o proibicionismo desta atividade. Com a ilegalidade do comércio
de certos entorpecentes o estado provê às facções criminosas um
monopólio com altas margens de lucro, mas sustentado por meio do uso
de violência. Para garantir pontos de tráfico que oferecem altos
potenciais de lucro, as redes criminosas utilizam de violência e
investem em armamentos pesados para afastar potenciais concorrentes.

13
VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. IBCCRIM. Setembro,
2016.
14
Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de
Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 36
143

Na teoria econômica sobre oligopólios, onde existem poucos


ofertantes de um bem em certo mercado, a guerra se dá sobre o preço
de produtos. No caso, analisando sobre o tráfico de drogas, a guerra
perde seu sentido figurado e toma as ruas das comunidades pobres do
Brasil.
Se ao contrário de ser visto como um problema de segurança
pública, o uso de drogas, hoje ilícitas, fosse tratado como problema de
saúde pública (como é encarado hoje, por exemplo, o uso de álcool e
tabaco) o Estado encontraria uma alta possibilidade de arrecadação
nesta atividade que já existe de qualquer forma, mas onde todo dinheiro
circula somente no mercado paralelo e ilícito. Uma mudança da forma
como é encarado o problema de drogas no país resulta em uma boa
justificativa econômica para o tema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A guerra às drogas é um dos principais causadores de


criminalização da pobreza no país. O que, de fato, aumenta a violência
policial, principalmente nas periferias. Atualmente o Brasil tem a
polícia que mais mata e mais morre no mundo. Temos uma polícia que
além de ser mal paga é extremamente despreparada. Os policiais são
preparados para “eliminar” os marginalizados e não para proteger a
sociedade. “Certamente, quem atua em uma guerra, quem deve
“combater” o “inimigo”, deve eliminá-lo. Como se espantar quando os
policiais brasileiros torturam e matam? ”15

15 KARAM, Maria Lucia. Direitos Humanos, laço social e drogas: por uma política
solidária com o sofrimento humano. Law Enforcement Against Prohibition,
144

A forma com que esses crimes são retratados pela grande mídia
faz com que a sociedade aceite essas mortes partindo da premissa que
“bandido bom é bandido morto” não importando a circunstâncias que
ocasionaram esses homicídios. A população tem admitido essas mortes
como se fosse algo inevitável para o combate do crime.

A cor da pele e o endereço voltam a ser os principais quesitos


na hora de decidir quem deve viver ou não. A cada notícia de que um
jovem, negro e morador de favela foi morto surgem as especulações
sobre os antecedentes da vítima, o que mostra como temos uma
sociedade que justifica a morte daqueles considerado indesejados por
ela. Não há problemas se um traficante é assassinado, pois ele é
merecedor de violência e apenas mais uma estatística.

O Brasil tem mais números de homicídios por ano do que países


que estão em guerra. No Brasil, em um período de 4 anos, morreram
279 mil pessoas, enquanto que no mesmo período na Síria, país em
guerra, morreram 256 mil16. A maioria dessas mortes tem uma relação
direta ou indireta com a violência que a guerra às drogas proporciona.

A abordagem policial seletiva é uma prova de como funciona a


estigmatização das pessoas pobres, pois a ideia de que elas devem ser
consideradas suspeitas, apenas por serem pobres e, em sua maioria
negras, já deixa claro como a política antidrogas é seletiva e
indefensável. Em pesquisa feita sobre drogas e a juventude pobre do

novembro de 2011. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acesso


em: 15 de fevereiro de 2017.
16
G1, Número de homicídios no Brasil é maior do que o de países em guerra.
Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/10/numero-de-
homicidios-no-brasil-e-maior-do-que-o-de-paises-em-guerra.html>. Acesso em: 13
de fevereiro de 2017.
145

Rio de Janeiro, Vera Malaguti Batista menciona que as palavras


“atitude suspeita” são sempre utilizadas pelos policiais para justificar
as abordagens daqueles que são marginalizados pela sociedade:

“Analisando a fala dos policiais, o que se vê é que a


‘atitude suspeita’ não se relaciona a nenhum ato suspeito,
não é atributo de ‘fazer algo suspeito’ mas sim de ser,
pertencer a um determinado grupo social; é isso que
desperta suspeitas automáticas. Jovens pobres, pardos ou
negros estão em atitude suspeita andando na rua,
passando num táxi, sentados na grama do Aterro...”17

Como pode-se perceber “a guerra às drogas legitima a violência


e as violações aos direitos humanos cometidas pelo próprio Estado
contra os pobres, normalizando as mortes dos traficantes, ou dos
supostos traficantes”18.

A criminalização da pobreza tira os direitos fundamentais destas


pessoas que têm suas casas invadidas pela polícia, passam por revistas
sem autorização e são humilhadas diariamente, apenas por existirem e
morarem em lugares considerados perigosos. Muito diferente dos
moradores de condomínios de luxo, que mesmo tendo uma parcela de
consumidores assíduos de entorpecentes não são sujeitados a nenhum
tipo de constrangimento.

O que é necessário que se entenda é que ser a favor de uma


flexibilização da política de drogas, ou até mesmo ser a favor de uma
eventual legalização delas, não é o mesmo que ser a favor das drogas.
Ser a favor de políticas mais liberais em relação aos entorpecentes

17
Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de
Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 103
18
GENRO, Luciana. Guerra às drogas. 2014. Disponível em: <
https://lucianagenro.com.br/2014/03/guerra-as-drogas/>. Acesso em: 19 de fevereiro
de 2017.
146

considerados hoje como ilegais é um dos caminhos para que haja uma
redução da violência e um alívio no sistema carcerário. Ser a favor do
fim desta repressão contra comerciantes e usuários é compreender que
o consumo da droga deve ser tratado como problema de saúde pública,
não de polícia. Conforme salienta Salo:

Não se trata de desconsiderar ou de minimizar os riscos


e os danos individuais e sociais que podem decorrer do
uso de drogas. Trata-se, ao contrário, de considerá-los em
sua complexidade, fato que nos impede de crer na
eficácia da solução pré-fabricada do direito penal.19

Afinal, quem esta guerra intenta proteger se estamos vendo


nossa juventude morrer nas mãos de quem deveria protegê-la? Quem
estamos tentando curar se estamos aprisionando pessoas em lugares que
transformam suas vidas em verdadeiros infernos? Que violência
visamos acabar se temos uma escola do crime disfarçada de prisão?

Enquanto este assunto não for debatido até que a legalização e


o controle sobre essas drogas passem a ser efetivos, o que nos resta é
continuar acumulando estatísticas, famílias destruídas, vidas acabadas,
chacinas e corrupção. A descriminalização das drogas, e a partir dela
um estudo avançado sobre o comércio é o primeiro passo para o fim
dessa violência descontrolada que, por enquanto, está longe de chegar
ao fim.

19
Carvalho, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e
dogmático da Lei 11.343/06. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 435.
147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. População


carcerária brasileira chega a mais de 622 mil detentos, Brasília, DF,
2016. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/populacao-
carceraria-brasileira-chega-a-mais-de-622-mil-detentos>. Acesso em:
18 de fevereiro de 2018.

BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a


juventude do Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

CARVALO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo


criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8 ed. São Paulo: Saraiva,
2016.

G1, Número de homicídios no Brasil é maior do que o de países em


guerra. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-
nacional/noticia/2016/10/numero-de-homicidios-no-brasil-e-maior-do-
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G1, Um em cada três presos do país responde por tráfico de drogas.


Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/um-em-cada-
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GENRO, Luciana. Guerra às drogas. 2014. Disponível em: <


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KARAM, Maria Lucia. Direitos Humanos, laço social e drogas: por


uma política solidária com o sofrimento humano. Law Enforcement
Against Prohibition, novembro de 2011. Disponível em:
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KARAM, Maria Lúcia. Drogas, é preciso legalizar. Law Enforcement


Against Prohibition, Maio de 2012. Disponível em:
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KARAM, Maria Lúcia. Drogas: legalizar para respeitar os direitos


humanos. Law Enforcement Against Prohibition, agosto de 2015.
148

Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acesso em: 05


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VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas.


IBCCRIM. Setembro, 2016.

WYLLYS, Jean. Legalizar as drogas. Disponível em:


<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/legalizar-as-drogas-
2566.html>. Acesso em 13 de fev. de 2018.
149

A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO INQUÉRITO


POLICIAL: PERSPECTIVAS DOGMÁTICA E
JURISPRUDENCIAL

Leandro da Cruz Soares1

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem o objetivo de apresentar, mesmo que de


forma breve, algumas considerações acerca da razoável duração do
inquérito policial desde duas perspectivas: uma dogmática e outra
jurisprudencial. A importância do tema está diretamente vinculada ao
local que o inquérito policial ocupa não só nos elementos angariados
pela polícia para fins de investigação de determinado delito, mas
também pela influência que possui junto ao andamento do processo
penal.

Em um primeiro momento, aborda-se o que se tem


compreendido por inquérito policial e quais as suas características mais
marcantes. Entre elas, adianta-se: a sua natureza inquisitiva, seu caráter
sigiloso, sua indisponibilidade, sua dispensabilidade para a persecução
penal, a obrigatoriedade de ser escrito, a sua oficiosidade e o seu
aspecto unidirecional. Por fim, realiza-se uma crítica acerca da
promulgação da Lei n.º 13.245/2016.

1
Graduação. Pós-Graduação em andamento. Advogado. E-mail:
leandro@leandrosoaresadv.com.br
150

Após, o segundo capítulo dedica-se a esclarecer, buscando


referências no ordenamento jurídico-penal brasileiro, a questão em
torno da razoável duração do inquérito policial. Defende-se, desde já, a
existência de incidência do princípio da razoabilidade da duração do
processo nos procedimentos investigativos, na medida em que a
investigação preliminar que dura um tempo prolongado viola tal
princípio fundamental.

Por fim, realiza-se uma breve pesquisa jurisprudencial, visando


firmar alguns entendimentos que podem ser encontrados no Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul acerca da razoabilidade de duração de um
inquérito policial e suas diversas implicações.

1 INQUÉRITO POLICIAL BRASILEIRO: ELEMENTOS


ESTRUTURAIS

O inquérito policial é o conjunto de diligências comandadas por


um delegado de polícia para a obtenção de elementos que apontem
autoria e prova da materialidade de determinadas infrações penais. É
um procedimento administrativo tendo em vista que a sua instauração
prescinde de uma autoridade policial. Ademais, é um procedimento
inquisitorial do qual se destina buscar informações para elucidar os
mais diversos crimes. E por fim, não existe a ampla defesa2.
Para Aury Lopes Jr., não se podenegar a necessidade do
advogado, bem como a possibilidade de sua participação no

2
AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo:
método, 2014. p. 151.
151

interrogatório do indiciado para sua defesa, conforme consagrado nos


arts. 185, 186, 188 e seguintes do CPP3. Em regra, como é sabido, não
existe o contraditório no inquérito policial. A exceção seria em relação
ao inquérito policial instaurado com o objetivo de expulsão de
estrangeiro, conforme o Estatuto do Estrangeiro, vez que o Decreto
86.715/1981, que regulamentou os dispositivos da Lei 6.815/1980
(Estatuto do Estrangeiro), expõe uma sequência de etapas do qual se
tem a possibilidade do contraditório, conforme os art. 102 a 105 do
Decreto mencionado4.
Nesse sentido, o inquérito policial é um conjunto de atos
praticados pelo Estado – através da autoridade máxima da polícia civil,
ou seja, um(a) delegado(a) de polícia – para apurar a autoria e
materialidade (nos crimes que deixam vestígios) dando ao Parquet
elementos que estruturariam, se necessário fosse, uma ação penal5. Ou
seja, o inquérito policial é uma atividade realizada pelos órgãos do
Estado após uma notícia-crime, a qual pretende averiguar a autoria e as
circunstancias de um fato criminoso com o fim de dar início a ação
penal ou, caso não haja elementos suficientes, seu arquivamento6.

Nessa fase, o juiz deve permanecer alheio à qualidade da prova


no curso do inquérito, somente intervindo para proteger violações ou
ameaças de lesões a direitos e garantias individuais dos envolvidos, ou

3
LOPES JR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no
processo penal. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 228.
4
AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo:
método, 2014. p. 152.
5
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P.
73.
6
LOPES JR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no
processo penal. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 90.
152

ainda para resguardar a efetividade da função jurisdicional, deste modo


exercendo atos de natureza jurisdicional7.

Deve-se destacar que nenhum processo penal terá início sem


uma denúncia8 ou uma queixa9, que atende justamente o princípio da
determinação prévia10. Esse princípio busca a verdade “sob pena de
“navegar-se” sem rumo ou incorrer-se na maquiavélica devassa11”. Ou
seja, para punir qualquer pessoa as sanções jurídicas devem estar
determinadas em lei. Nesse sentido, tal princípio possibilita, com fins a
dar limite ao poder de punir estatal, que “uma ação somente pode ser
punida quando a punibilidade estiver determinada antes da ação a ser
perpetrada12”.
Colocada essas questões, sublinha-se que inquérito policial tem
algumas características marcantes, que se lastreiam em sua natureza

7
PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11 ed. RJ. Editora Lumen
Juris, 2009. p. 43.
8
É a existência de justa causa, onde há elementos mínimos de autoria e materialidade.
Onde por sua vez, o Estado – Juiz menciona se existem possibilidades para dar início
a persecução penal. (LOPES JR, Aury; ROSA, Alexandre Morais.
http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-vip-
recebimento-denuncia-motivado acesso em 18/07/2017).
9
É quando “o particular é titular de uma pretensão acusatória e exerce o seu direito
de ação, sem que exista delegação de poder ou substituição processual”, ou seja, atua
unicamente em direito próprio. (LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed.
SP: Saraiva, 2014, p. 404).
10
Também conhecido como princípio da legalidade que é um dos princípios mais
importantes da Constituição Federal. O referido princípio tem aplicação diferenciada
para o Estado e para o Particular. Naquele tem o dever de fazer o que está determinado
em Lei, para o particular esse pode fazer o que a lei não proíbe. (MARTINS, Flávio.
Curso de direito constitucional. 1 ed. SP. Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 839).
11
TOVO, Paulo Cláudio. Opinião sobre investigação Criminal (CPI – assunto
momentoso). Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais n.º 154 – setembro
de 2005.
12
GIACOMOLLI, Nereu José; SILVA, Pablo Rodrigo Alflen. Direito penal e
processo penal: estudos em homenagem ao Prof. Paulo Tovo. Porto Alegre: Sapiens,
2010. Artigo: O princípio da Legalidade no direito penal alemão: um exemplo a ser
seguido(?) p. 278.
153

inquisitiva, em seu caráter sigiloso, na sua indisponibilidade, na sua


dispensabilidade para a persecução penal, na obrigatoriedade de ser
escrito, na sua oficiosidade e no seu aspecto unidirecional. O
procedimento inquisitivo do inquérito policial faz com que a figura do
investigado fique a margem do direito de defesa, pois ainda não há uma
acusação formal contra ele e sim uma averiguação realizada por um
delegado de polícia13.
Não existem regras determinadas para a instauração do inquérito
policial. Conforme preceitua o art. 6º do Código de Processo Penal, não
há dúvidas de que a autoridade policial, logo que tiver conhecimento da
prática de infração penal, deverá adotar uma série de procedimentos
que tem por objetivo colher o maior número de informações sobre o
fato delituoso ocorrido14. Quais sejam: ir ao local do crime, apreender
objetos, colher provas, ouvir o indiciado, fazer acareações se
necessário, enfim, uma série de procedimentos que visa a identificar a
prova da existência do crime e o mínimo de indício de autoria.

Importante mencionar que o art. 14 do Código de Processo


Penal (CPP) permite que a autoridade policial, por seu próprio juízo,
faça um valor sobre as diligências requeridas pelo indiciado, as quais,
se consideradas impertinentes pela autoridade policial, poderão ser
indeferidas, na medida em que a possibilidade de prejudicar o curso das
investigações15. Com isso, reafirma-se: o inquérito policial é um

13
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P.
100.
14
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P.
100.
15
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P.
100.
154

procedimento inquisitivo, com o fim de obter elementos que sirvam de


baliza ao oferecimento da denúncia ou de queixa-crime16.

Outra característica do inquérito policial é que não esse não


aceita a existência de uma investigação através do meio de expressão
verbal. Todas as peças do inquérito policial serão por escrito e todas
somente em um único processo, rubricadas pela autoridade (como
preceitua o art. 9, do CPP). Os atos do inquérito policial devem ser
reduzidos a termo para que exista segurança em relação ao conteúdo.
Todavia, importante mencionar que o art. 405, § 1º, do CPP, diz que o
registro do depoimento do investigado, indiciado, testemunhas e
ofendido, sempre que possível, será feito a gravação magnética
(inclusive audiovisual), sem a necessidade de posteriormente efetuar a
transcrição dos depoimentos conforme art. 405, § 2º, do CPP17. Quando
realizadas as investigações pela autoridade policial todo o material
colhido deve ser documentado nos autos do inquérito, para que se possa
ter uma reconstrução probatória dos fatos18.

Já a unidirecionalidade do inquérito policial tem uma única


finalidade: a de apuração dos fatos, não cabendo ao represente policial
propagar nenhum juízo de valor na apuração dos fatos, como por
exemplo que o investigado agiu em legítima defesa ou movido por
violenta emoção ao cometer o crime de homicídio. Segundo Rangel, há
“relatórios em inquéritos policiais que são verdadeiras denúncias e

16
AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo:
método, 2014. p. 158.
17
REIS, Alexandre Cebrian Araujo; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito
processual penal esquematizado. Coordenador Pedro Lenza. 5ª edição. SP: Saraiva,
2016. p. 67.
18
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P.
102.
155

sentenças. É o ranço do inquisitorialismo no seio policial”19. Essa


característica tem como atributo impedir que tal valoração ocorra.

Além disso, vale destacar que não existe entre a investigação


policial e o represente do Ministério Público relação de meio e fim, mas
apenas de progressividade funcional. A polícia civil – vinculada ao
Poder Executivo segundo o art. 144 da Constituição Federal – não tem
compromisso algum com a acusação ou com a defesa. Tem a função
preparatória de juntar elementos para dar substrato a eventual denúncia
com elementos que constituam, se houver, uma justa causa para a ação
penal20.

A autoridade policial assegurará no âmbito do inquérito policial


o sigilo necessário para a solução do fato ou exigido pelo interesse da
sociedade. O sigilo não abarca o membro do ministério público, nem a
autoridade judiciária. O advogado pode acompanhar os autos do
inquérito policial, porém, se estiver decretado judicialmente o sigilo na
investigação, não poderá acompanhar a realização dos procedimentos21.

Diferentemente do que ocorre em relação ao processo criminal,


que rege pelo princípio da publicidade, o inquérito policial pode estar
em sigilo no decorrer de uma determinada investigação. Muitas vezes
o êxito das investigações está vinculado, em inúmeros casos, ao
elemento surpresa nas diligências realizadas e ao fato de que as provas

19
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P.
103.
20
CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de Castro. Inquérito policial tem sido
conceituado de forma equivocada, 2017. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia-policia-inquerito-policial-sido-
conceituado-forma-equivocada. Acesso em 17/07/2017.
21
AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo:
método, 2014. p. 159.
156

obtidas durante o inquérito sejam produzidas no rumor dos


acontecimentos, quando ainda não houve a oportunidade da pessoa a
ser investigada tentar maquiar os fatos, como acontece regularmente na
fase judicial22.

No entanto, por vezes, o sigilo de uma investigação não permite


a intromissão do advogado durante a fase investigatória, que está sendo
feita sob total sigilo, já que, do contrário, a inquisitoriedade do inquérito
policial ficaria prejudicada, bem com a própria investigação23.
Inúmeras vezes a divulgação pela imprensa das diligências que serão
efetuadas no âmbito de uma investigação frustra seu objetivo principal,
que é a descoberta de prova da materialidade e autoria do crime24.

A questão do sigilo no inquérito policial, principalmente no


plano da atuação dos advogados, se revela às vezes um verdadeiro
embate entre o advogado e a autoridade policial. Aquele quer o livre
exercício profissional enquanto esse exerce o poder do Estado 25. É
muito comum, portanto, a Comissão de Prerrogativas da Ordem dos
Advogados do Brasil receber reclamações de advogados que foram
impedidos, quer pela autoridade policial ou por algum agente de polícia,
de examinar autos de inquérito policial na delegacia ou até mesmo
conversar reservadamente com seu constituído. A súmula vinculante nº.

22
AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo:
método, 2014. p. 159.
23
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P.
103.
24
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P.
103.
25
D`URSO, Luiz Flávio Borges. O sigilo do inquérito policial e o exame dos autos
por advogado, 2004. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/artigo/6889-Artigo-
O-sigilo-do-inquerito-policial-e-o-exame-dos-autos-por-advogado. Acesso em
17/07/2017.
157

14, do Supremo Tribunal Federal, é clara em prever que os elementos


de prova que o advogado tem direito, no curso da investigação criminal,
devem ser as documentadas e não aquelas que ainda serão realizadas e
que necessitam do sigilo necessário à sua consecução26.

De outro lado, no âmbito do inquérito policial, o delegado de


polícia pode determinar ou postular, com discricionariedade, todas as
diligenciais que achar necessárias aos desdobramentos dos fatos. Isso
nos indica que após a instauração do inquérito policial, a autoridade
judiciária possui autonomia para decidir acerca das providências que
deseja tomar acerca da investigação27. A autoridade policial, quando
iniciado a investigação, não fica atrelada a nenhuma forma previamente
determinada. A autoridade tem a liberdade de agir, para a averiguação
do fato criminoso, dentro dos ditames estabelecidos em lei. Importante
dizer que discricionariedade não é arbitrariedade. Essa última é a
capacidade agir sem qualquer abrigo da lei28.

Por fim, no ano de 2016 foi promulgada a Lei n.º 13.245/2016.


Com ela, ao contrário do que se pensou, o inquérito policial não deixou
de ser inquisitivo. A nova lei não conferiu caráter acusatório ao
inquérito policial. A falta de poder requisitório do advogado na fase
investigativa intensifica a continuidade da característica inquisitorial do

26
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P.
105.
27
AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo:
método, 2014. p. 159.
28
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P.
106.
158

inquérito. Da mesma forma não se pode ignorar que a eficácia da polícia


civil em grande parte está ligada ao fator surpresa29.

Aury Lopes Jr. diz que mesmo com o aumento da presença do


advogado no inquérito policial, fortalecendo a defesa e o contraditório,
não há supressão do caráter inquisitório do inquérito. A presença do
advogado no interrogatório do indiciado é em geral pacífica por parte
das autoridades policiais. Assim, a Lei 13.245/2016 veio apenas
reforçar essa prerrogativa já prevendo a 'nulidade absoluta' dos atos
quando barrada pela autoridade policial30.

2 RAZOABILIDADE NA CONCLUSÃO DO INQUÉRITO


POLICIAL NO BRASIL: ELEMENTOS DOGMÁTICOS

Sabe-se que a Emenda Constitucional n.º 45 de 30 de dezembro


de 2004 criou, explicitamente, no ordenamento jurídico brasileiro, a
garantia da duração razoável do processo31. Essa emenda foi imposta
pelo legislador constituinte através do inciso LXXVIII, do artigo 5º da
Constituição Federal: “[...] a todos, no âmbito judicial e administrativo,
são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação”.

29
COUTRIM, Eujecio Lima Filho. Lei nº. 13.245/16 e o caráter inquisitivo do
Inquérito Policial,2016. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/lei-no-
13-24516-e-o-carater-inquisitivo-do-inquerito-policial. Acesso em 22/05/2017.
30
LOPES, Aury Jr. Lei 13.245/2016 não acabou com o caráter “inquisitório” da
investigação, 2016. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-29/limite-
penal-lei-132452016-nao-acabou-carater-carater-inquisitorio-investigacao. Acesso
em 17/07/2017.
31
BARBOSA, Ruchester Medeiros. Investigação criminal também deve cumprir
prazo de duração razoável, 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-
nov-03/academia-policia-investigacao-criminal-tambem-cumprir-prazo-duracao-
razoavel#_edn2, acesso em 27/06/2017.
159

Para Alexandre Morais da Rosa, a garantia da duração razoável


do processo consagrada na Emenda Constitucional nº 45 não se trata de
algo inédito, dado que já discutida em diversos âmbitos, especialmente
na Europa32: “Na verdade, prometer-se a duração razoável sem medidas
compensatórias é o mesmo que se prometer amor. Para além do Direito
(ao amor ou à duração razoável do processo) é preciso estabelecer-se as
garantias”33.

Para Aury Lopes Jr., em que pese, o Código de Processo Penal


fazer menção a diversos limites de duração dos atos (arts. 400,412, 531
etc.), infelizmente não retira a crítica, pois, são prazos sem nenhum tipo
sanção.34 Sem contar que essa garantia constitucional, consagrada agora
no ordenamento jurídico brasileiro, vem mencionada na Convenção
Americana dos Direitos Humanos (CADH)35 do qual o Brasil ratificou
e assumiu o compromisso de cumprir em todo território nacional, bem
como todas as instituições, poderes, todos os agentes públicos e os
cidadãos36.

Deste modo, importante registrar o artigo 8.1 da Convenção


Americana de Direitos Humanos:

32
ROSA, Alexandre Morais da. Duração razoável do processo sem contrapartida é
como promessa de amor, 2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul-
18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor. Acesso em
27/06/2017.
33
ROSA, Alexandre Morais da. Duração razoável do processo sem contrapartida é
como promessa de amor, 2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul-
18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor, acesso em
27/06/2017.
34
LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 188.
35
LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 187.
36
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo pemal. Abordagem conforme a
Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. Cases da Corte
Interamericana, do Tribunal Europeu e do STF. SP: Atlas, 2014, p. 07.
160

Artigo 8º – Garantias judiciais:

1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as


devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um
juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido anteriormente por lei, na apuração de
qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na
determinação de seus direitos e obrigações de caráter
civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Sem grifos no original.

Nesse sentido, Lechenakoski diz que existe a incidência da


razoável duração do processo nos procedimentos investigativos com
base na Emenda Constitucional nº. 45/2004, a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 trouxe referência expressa ao
referido princípio da razoável duração do processo, consagrado no art.
5º, LXXVIII37. Por fim, a investigação criminal que dura um tempo
demasiadamente prolongado pode não incidir no prazo da prescrição do
crime, porém ocorrendo a violação do preceito fundamental da razoável
duração do processo38.

No ordenamento infraconstitucional brasileiro consta que o


inquérito policial deverá ser encerrado e encaminhado ao juiz
competente no tempo hábil de 10 (dez dias) estando o indiciado preso
em flagrante ou preventivamente e, quando solto, mediante fiança ou

37
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a
razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
38
LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. A razoável duração do processo X prescrição
retroativa após alteração da Lei 12.234/2010, 2016. Disponível em:
http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-
retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno-
lechenakoski/#_ftnref3, acesso em 27/06/2017.
161

sem ela, terá a autoridade o prazo de 30 (trinta) dias. Segundo o Código


de Processo Penal:

Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias,


se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver
preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese,
a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou
no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança
ou sem ela.

Algumas variações da regra geral: no âmbito da Justiça Federal,


o prazo é de 15 dias, se o acusado estiver preso, podendo ser prorrogado
por mais 15 dias, conforme art. 66 da Lei 5.010/66. Sendo o acusado
solto, o prazo segue a regra geral do qual será de 30 dias39, ou seja,
seguindo o dispositivo do art. 10 do Código de Processo Penal. Com o
advento da Lei nº. 11.343/2006, que trata sobre o tráfico ilícito de
entorpecentes, o prazo de conclusão do inquérito policial é de 30 dias,
conforme art. 51 da referida lei, quando o acusado estiver preso.
Independentemente se o crime ocorreu em território brasileiro ou no
exterior o prazo se manterá40. E de 90 dias se o acusado estiver solto.
Conforme o parágrafo primeiro do art. 51 os prazos podem ser
duplicados mediante pedido justificado41.

Quando tratamos de crimes dos artigos 28, 33, § 3º e 38 da Lei


11.342/2006, não existe o inquérito policial, tendo em vista que são
infrações de menor potencial ofensivo, tornando-se assim objeto da

39
PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11 ed. RJ. Editora Lumen
Juris, 2009. p. 48.
40
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P.
115.
41
PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11 ed. RJ. Editora Lumen
Juris, 2009. p. 48.
162

lavratura de termo circunstanciado42. O termo circunstanciado está


regulamentado no art. 69 da Lei nº. 9.099/95, a qual preceitua:

Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da


ocorrência lavrará termo circunstanciado e o
encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do
fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos
exames periciais necessários.

No âmbito dos crimes contra a economia popular – Lei n.º


1.521/1951 – a previsão é que inquérito policial seja finalizado em 10
dias, não importando se o investigado está preso ou solto (art. 10, §
1º)43. Já no inquérito policial militar, em consonância com o Código de
Processo Penal Militar, o prazo de finalização é de 20 dias, se preso o
investigado, e de 40 dias, prorrogáveis por mais 20 dias, se solto (art.
20 do Decreto-lei 1.002/1969)44.

Lembrando que se o indiciado estiver solto o prazo tem como


termo inicial a portaria de instauração do inquérito policial. Porém, se
o indiciado estiver preso, o prazo terá como data inicial a dia efetivação
da prisão. Por fim, inclui-se o dia do começo na contagem, não se
prorrogando o prazo em hipótese alguma. Os prazos materiais têm a sua
forma de contagem regrada pelo art. 10 do Código Penal, incluindo-se
o dia do começo45. Estando o indiciado preso dentro do prazo previsto

42
RANGEL, Paulo; BACILA, Carlos Roberto. Lei de drogas: comentários penais e
processuais. 2. Ed. SP: Atlas, 2014, p. 179.
43
AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo:
método, 2014. p. 193.
44
AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo:
método, 2014. p. 193.
45
AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo:
método, 2014. p. 190.
163

para a conclusão do inquérito policial e este ainda não concluído, é


necessária sua soltura por constrangimento ilegal46.
Não obstante, existe uma lacuna ainda não dirimida na lei
processual penal quanto a finalização do prazo fixado em lei e sobre a
existência de alguma sanção aplicada quando do prazo não for
correspondido. Para Lopes Jr., quando o prazo não possui nenhuma
sanção, tem-se a ineficácia do direito fundamental da razoável duração
do procedimento47. E esses direitos são normas de conteúdo
declaratório, previstos e consagrados na Constituição Federal.

3 RAZOABILIDADE PELA LENTE DO JUDICIÁRIO:


UMA ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL

É consabido que a jurisprudência está presente para os


advogados, juristas, doutrinadores e a sociedade de forma geral para
fins de uma sensibilidade mais aguçada em torno da formação de uma
mentalidade julgadora, norteando a todos, por vezes, a apuração de
determinados casos concretos. Seu objetivo, na medida em que traz
julgamentos já realizados, é dar embasamento para evitar que novas
discussões acerca do tema sejam iniciadas. Por óbvio, vários casos têm
decisões divergentes. Sendo assim, o Estado-Juiz, analisando o caso
concreto, dará a melhor solução pela sua livre convicção e pelas provas
produzidas durante a instrução processual.

46
AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo:
método, 2014. p. 191.
47
LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 193.
164

Na Sétima Câmara Criminal do TJRS pode-se encontrar a


seguinte decisão acerca da razoável duração do inquérito policial:

HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA O


PATRIMÔNIO. ROUBO MAJORADO. Excesso de
prazo na formação da culpa do paciente. Ausência de
conclusão do inquérito policial dentro do prazo previsto
no código de processo penal que configura
constrangimento ilegal. Soltura do paciente que se
impõe. A contagem dos prazos processuais para a
formação da culpa do paciente no processo penal pátrio é
global e não por etapas, devendo eventual ilegalidade da
prisão cautelar por excesso de prazo ser analisada à luz
do princípio da proporcionalidade. O art. 10 do Código
de Processo Penal prevê que o prazo para a conclusão do
inquérito policial é de 10 (dez) dias nos casos em que o
investigado estiver preso preventivamente, iniciando-se
o prazo a partir do dia em que se executar a ordem de
prisão. Nestes temos, estando o paciente preso desde a
data de 25/04/2017 e não tendo sido remetido o inquérito
policial ao Juízo Criminal dentro do prazo previsto na
legislação processual penal pátria, a situação constitui
constrangimento legal, havendo manifesta ofensa ao
princípio da razoável duração do processo, de estatura
constitucional, de forma que imperiosa a soltura do
paciente, com aplicação de outras medidas cautelares,
dada a ocorrência de excesso de prazo para a formação
de culpa. ORDEM CONCEDIDA, EM PARTE. (Habeas
Corpus Nº 70073591844, Sétima Câmara Criminal,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Conrado Kurtz
de Souza, Julgado em 18/05/2017).

No despacho acima o desembargador-relator menciona que não


tendo sido o inquérito policial remetido ao juízo dentro do prazo
estabelecido no art. 10 do CPP, ou seja, 10 (dez) dias e estando o
investigado preso preventivamente, do qual o prazo inicia-se a partir da
data em que se executar a ordem de prisão, sendo assim, o paciente
estará preso preventivamente por um tempo maior do que o prazo
estabelecido no mencionado artigo, de modo que a situação do caso
165

concreto constitui constrangimento ilegal, concluindo ainda o Relator


que é uma ofensa ao princípio da razoável duração do processo. Por
fim, determinou a soltura do paciente por excesso de prazo para a
formação da culpa.

No mesmo sentido vai a Terceira Câmara Criminal:

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS.


ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. EXCESSO DE
PRAZO VERIFICADO. 1. A averiguação da ocorrência
de violação à razoável duração do processo demanda
análise, em concreto, da presença - ou não - das
exigências da proporcionalidade. 2. No caso dos autos, o
paciente encontra-se preso preventivamente desde 11 de
setembro de 2016, e o feito encontra-se parado há 70
(setenta) dias sem a remessa do inquérito policial ao
juízo, importando destacar que não se trata de fatos
complexos. Porém, tendo em vista a gravidade concreta
do delito e os antecedentes do paciente, adequada a
fixação de medidas cautelares diversas. ORDEM
PARCIALMENTE CONCEDIDA. (Habeas Corpus Nº
70072016769, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Ingo Wolfgang Sarlet, Julgado em
14/12/2016).

Na decisão acima foi concedida a revogação da prisão


preventiva tendo em vista que a autoridade policial estava a 70 (setenta)
dias sem findar o inquérito policial. Ainda, deve-se destacar que não
existia nenhum elemento nos autos do processo que indicava
complexidade do feito a justificar tal morosidade. Por fim, o
desembargador-relator conclui que restou evidenciada desídia por parte
da autoridade policial, desta forma impondo a revogação da medida
gravosa.

No entanto, tais entendimentos não são unânimes. Em sentido


contrário se manifestou a Primeira Câmera Criminal:
166

HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO.


PRISÃO PREVENTIVA. MANUTENÇÃO DA
SEGREGAÇÃO. EXCESSO DE PRAZO.
INOCORRÊNCIA. 1. Considerados os poucos
elementos juntados, não se observa constrangimento
ilegal na manutenção da prisão, pois presentes os
requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal.
Conforme informações da autoridade apontada coatora,
há indicativo da participação do paciente nos crimes
imputados nos elementos colhidos no Inquérito Policial
nº 20/2016/200850/A. O Magistrado mencionou que o
triplo homicídio qualificado decorreria da rivalidade
existente entre as facções “Bala na Cara” e “Os Vila
Jardim”, circunstância que indica a gravidade concreta da
conduta. A prudência recomenda, portanto, a
manutenção da segregação cautelar, não sendo suficiente,
no presente contexto, a aplicação de medidas cautelares
diversas. 2. A duração do processo, nos exatos termos da
norma constitucional (art. 5º, inciso LXXVIII, da CF),
deve ser razoável, impondo-se a interpretação da demora
no curso da instrução através da ponderação com o
princípio da proporcionalidade, que em seu sentido
estrito autoriza a maior dilação dos prazos processuais
quando a ação penal apresentar maior complexidade.
Embora o paciente esteja preso desde 21 de março de
2016, a complexidade do feito, que conta com nove réus
e quatro fatos, autoriza maior dilação dos prazos
processuais. Encontra-se pendente apenas a resposta à
acusação de um dos réus, de forma que a instrução poderá
se iniciar em breve. Não se identifica, por ora, inércia do
aparelho judiciário, não podendo eventual demora ser
atribuída ao Juízo condutor da ação. ORDEM
DENEGADA. (Habeas Corpus Nº 70071384523,
Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em
14/12/2016).

Na decisão acima o desembargador-relator menciona que a


duração do processo deve ser razoável, porém tendo em vista que a ação
penal apresentou maior complexidade, e mesmo que o paciente
estivesse segregado há nove meses sem avistar o início da instrução, em
virtude da complexidade do caso e do número extensivo de réus – nove
167

(09) e dos quatro (04) fatos delituosos – não foi configurado o excesso
de prazo na formação da culpa.
No mesmo sentido assim novamente a Terceira Câmara
Criminal decidiu:
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO DUPLAMENTE
QUALIFICADO. COAÇÃO NO CURSO DO
PROCESSO. DESNECESSIDADE DE
MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DO
ACUSADO. INOCORRÊNCIA. EXCESSO DE
PRAZO NA FORMAÇÃO DA CULPA.
INEXISTÊNCIA. SEGREGAÇÃO CAUTELAR
MANTIDA. A prisão preventiva, no caso concreto, não
configura antecipação da punição penal. Caso em que o
decreto de prisão encontra-se adequadamente
fundamentado – na garantia da ordem pública e
conveniência da instrução criminal – e embasado em
circunstâncias específicas do caso concreto, havendo
comprovação da materialidade e suficientes indícios da
autoria delitiva em nome do paciente. Embora primário o
paciente, as circunstâncias fáticas, diante do contido nos
autos – evidente, no caso, o periculum libertatis, ante a
ameaça do paciente à vítima sobrevivente, bem como as
testemunhas, o que tem dificultado o andamento do feito,
inclusive, para seu encerramento já que as testemunhas
em razão do temor que sentem não compareceram em
duas solenidades aprazadas –, são desfavoráveis e pesam
contra o acusado, pelo que não há ilegalidade na
manutenção da prisão preventiva.
a razoável duração do processo deve ter em consideração
as circunstâncias específicas do caso concreto, como a
complexidade do feito e o comportamento das partes e do
magistrado. Nesta linha, o excesso de prazo na formação
da culpa não decorre do simples descumprimento de
prazos processuais isolados, como simples operação
aritmética. Embora o paciente esteja preso há
aproximadamente nove meses, não há qualquer retardo
provocado pelo juízo ou ministério público na condução
do processo, pelo que, no momento, não se vislumbra o
alegado excesso de prazo sustentado. Excesso de prazo
não configurado. ORDEM DENEGADA. (Habeas
corpus nº 70073832867, terceira câmara criminal,
tribunal de justiça do rs, relator: Sérgio Miguel Achutti
Blattes, julgado em 05/07/2017).
168

Na decisão acima, para o desembargador-relator, mesmo que o


paciente estivesse preso preventivamente a 09 (nove) meses, por si só,
não configuraria excesso de prazo. Acrescenta ainda, que embora esteja
assegurado o direito de ser julgado em um prazo razoável, o tempo não
vem expresso. Diz ainda que a simples ultrapassagem dos prazos legais
não configura a ilegalidade da custódia. Por fim, acrescenta o relator de
que a alegação de excesso de prazo, não é suficiente para a concessão
de liberdade do paciente, tendo em vista a periculosidade do agente em
frente às circunstâncias do caso concreto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo que foi exposto, a análise realizada aponta que o


inquérito policial é um procedimento de investigação com o viés de
apurar indícios de autoria e a prova da materialidade de um crime,
fornecendo substratos mínimos para a propositura da ação penal. Em
um primeiro momento foram analisados os conceitos básicos sobre o
inquérito policial sobre a ótica de alguns autores. Posteriormente, foram
analisadas algumas características principais do inquérito policial,
sendo que se trata de um procedimento inquisitorial, ou seja, o indiciado
fica afastado do direito de defesa; a característica formal é que todos os
atos do inquérito policial serão por escrito; é sistemático, quando todo
o material colhido deve ser documentado; unidirecional significa dizer
que o inquérito policial tem a única finalidade de apuração do fato
criminoso; e também é sigiloso, pois a autoridade assegurará o sigilo
necessário para a concretização do inquérito em decorrência do fato
criminoso; e discricionário, vez que concentra toda a carga do inquérito
policial ao seu representante, que é o/a delegado(a) de polícia.
169

Ainda foi feito uma análise, mesmo que breve, sobre o prazo
para a conclusão do inquérito policial que, em regra geral, se guia pelo
o que está consagrado no art. 10 do CPP. Se por ventura o indiciado
estando preso e a autoridade policial não concluiu o inquérito policial é
necessário à sua soltura por constrangimento ilegal. As características
estudadas estão em consonância com a finalidade do inquérito policial,
e aos princípios fundamentais que garantem a preservação da dignidade
do indivíduo consagrada na constituição federal.

Por fim, diante dos acórdãos colhidos no Tribunal de Justiça do


Rio Grande do Sul, cumpre destacar que não existe uma uniformização
acerca da razoável duração do inquérito policial. Há decisões que
concedem o excesso de prazo e outras não configuram o excesso de
prazo para a formação da culpa. O parecer, quando não é favorável
acerca do excesso de prazo, atrela-se principalmente a da complexidade
do fato, muitas vezes caracterizado pelo número abundante de réus e
outras vezes pela quantidade de fatos constantes na denúncia. Percebe-
se que está longe de termos uma uniformização sobre o tema. Enquanto
isso os presídios estão cada vez mais abarrotados de pessoas que por
muitas vezes não precisariam estar segregados no sistema penitenciário.
170

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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tem sido conceituado de forma equivocada, 2017. Disponível em:
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Criminais n.º 154 – setembro de 2005.
MARTINS, Flávio. Curso de direito constitucional. 1 ed. SP. Editora
Revista dos Tribunais, 2017.
172

A EXCEÇÃO COMO REGRA NA


CRIMINALIZAÇÃO DA RESISTÊNCIA:
EXPANSIONISMO PUNITIVO E O ABANDONO
DAS JUSTIFICATIVAS JURÍDICAS NAS
ESTRATÉGIAS DE CONTROLE SOCIAL

Lucas Dall’Agnol Pedrassani1

O ENSINO DO MEDO

Num mundo que prefere a segurança à justiça, há cada


vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça no altar
da segurança. Nas ruas das cidades são celebradas
cerimônias. Cada vez que um delinquente cai varado de
balas, a sociedade sente um alívio da doença que a
atormenta. A morte de cada malvivente surte efeitos
farmacêuticos sobre os bem-viventes. A palavra farmácia
vem de phármakos, o nome que os gregos davam as
vítimas nos sacrifícios oferecidos aos deuses nos tempos
de crise2.

INTRODUÇÃO
Com os levantes de junho de 2013, a aproximação dos
denominados “megaeventos” como a Copa do Mundo FIFA de 2014 e
as Olimpíadas de 2016, houve uma intensificação nos mecanismos de
controle social, também no intuito de vender melhor a imagem do país

1
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Integrante do G10- Assessoria à Juventude Criminalizada (SAJU/UFRGS).
Graduando em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Advogado. E-mail: lucasdpedrassani@gmail.com.
2
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo avesso. Porto Alegre:
L&PM, 1999, p. 81
173

na mídia internacional, bem como no sentido de reforçar as posições


sociais em que cada segmento deve se postar segundo a lógica
dominante e os caminhos institucionalizados para sua esparsa variação
segundo a ordem capitalista. A busca de novos mercados segue a lógica
da globalização predatória - já anunciada nos slogans das grandes
empresas - nos termos desenvolvidos pelo militante, geógrafo e
advogado Milton Santos3:

Consideramos, em primeiro lugar, a emergência de uma


dupla tirania, a do dinheiro e a da informação,
intimamente relacionadas. Ambas, juntas, fornecem as
bases do sistema ideológico que legitima as ações mais
características da época e, ao mesmo tempo, buscam
conformar segundo um novo ethos as relações sociais e
interpessoais, influenciando o caráter das pessoas. A
competitividade, sugerida pela produção e pelo consumo,
é a fonte de novos totalitarismos, mais facilmente aceitos
graças à confusão dos espíritos que se instala. Tem as
mesmas origens a produção, na base mesma da vida
social, de uma violência estrutural, facilmente visível nas
formas de agir dos Estados, das empresas e dos
indivíduos. A perversidade sistêmica é um dos seus
corolários.

A partir desta demanda, em atenção aos interesses de


investidores, ainda de proteção patrimonial da classe média e alta – e
de seu “poder” de consumo – houve uma investida contra segmentos
populacionais organizados e ocupantes segregados de parcelas do
território outrora esquecidas. Estes, se viram tocados pelo poder estatal
apenas quando surgiu a demanda do setor econômico na sua exploração,

3
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único a consciência
universal. Record: Rio de Janeiro/São Paulo, 2000a, p. 19.
174

tendo tais populações anteriormente se habituado a sobreviver perante


o abandono e a inércia estatal em face de sua condição.

Os elevados “investimentos” em infraestrutura em contraste


com a precarização dos serviços básicos que supostamente visariam
assegurar os direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos,
bem como a privatização dos espaços públicos, a expulsão de
comunidades inteiras em direção à periferia e a segmentação do espaço
urbano culminaram por desvelar, de forma drástica, a sobreposição dos
interesses de uma classe sobre a outra. O marco da guerreira defesa dos
agentes repressores em nome dos fulecos, ao longo do Brasil em
detrimento da população, deram a tônica do que estava por vir4.

Eis que, quando se apresenta o tal agir estatal, não bastasse a


não observância em assegurar as garantias fundamentais e condições
dignas de vida, subverte a lógica apregoada pelo ordenamento jurídico,
ignorando a fragmentariedade do Direito Penal e, ainda, invertendo
princípios basilares do Estado Democrático de Direito, como os
consolidados “in dúbio pro reo”, o direito ao julgamento, a presunção
de inocência dentre outras garantias constitucionais, ao praticar
verdadeiro direito penal do inimigo5 em relação a determinadas frações
da população na escusa de se tratar de uma situação atípica.

4
OLIVEIRA, Samir. Protesto envolvendo Tatu-Bola segue repercutindo entre
policiais e ativistas de Porto Alegre. Sul21, Porto Alegre, 6 de fev. 2013. (Disponível
em: <http://www.sul21.com.br/jornal/protesto-envolvendo-tatu-bola-segue-
repercutindo-entre-policiais-e-ativistas-de-porto-alegre/>. Acesso em: 28 set. 2015).
5
Eugênio Raul Zaffaroni que assim dispõe: “O direito penal [do inimigo] tem como
uma de suas marcantes características o combate a perigos, isso representa, em muitos
casos, a antecipação de punibilidade, na qual o inimigo é interceptado, em um estado
inicial, apenas pela periculosidade que pode ostentar em relação à sociedade. Para ele
não é mais o homem o centro de todo o Direito, mas sim o sistema, puramente
175

Ocorre, em verdade, que a única excepcionalidade destes


abusos é a sua magnitude que vem tomando contornos cada vez mais
desavergonhados, dignos de nota dos teóricos do terceiro reich,
consolidando, na exceção à regra, um mecanismo de controle que paira
com permanência. Dito isto, o artigo pretende questionar a legitimidade
do discurso da política de conciliação de classes e do Estado de Direito,
que cai por terra sempre que se enfrentam questões em que há choque
de forma mais direta entre os direitos e privilégios de uma e de outra
classe, recorrendo-se a verdadeiro estado de exceção para manter a torta
coesão social e as posições de funcionamento da organização social
vigente. Como pode o Direito burlar a si próprio para assegurar a
implementação de determinada vontade do poder dominante? E mais,
ao fazer isso, como mantém sua legitimidade de assegurar as próprias
leis que viola?

 A EXPANSÃO DAS PRÁTICAS E TÁTICAS DE UM


ESTADO TERRORISTA

Abandonemos, de início, a noção mais comumente difundida da


associação do terrorismo enquanto categoria relativa ao sujeito ou
organização que comete atentados pelo uso de violência direta. A ideia
que o título busca remeter é justamente mais próxima a definição
primeira de aterrorizar, causar medo, impor vontade pelo uso
sistemático de práticas de terror. Essa vem sendo a tônica da postura do
aparato repressivo estatal para lidar com os movimentos sociais de

socionormativo” ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo do Direito Penal. Ed.


Revan 2007, p. 76.
176

contestação da ordem que vem surgindo ao longo da formação do nosso


país, recorrendo a práticas e táticas notoriamente ilegais em nome da
manutenção da legalidade, situação cujo exemplo mais difundido têm
sido o período da ditadura civil-militar.

A premissa neoliberal que dominou a política posteriormente,


como bem assevera Loic Waquant6 é constantemente reapresentada
como solução para o “monstro da criminalidade” tão alimentado pela
mídia hegemônica, aduzindo o seguinte paradoxo: “Remediar com um
“mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e
social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança
objetiva e subjetiva [...]”. Assim, o denominado Direito Penal do
Inimigo de Gunther Jakobs toma força no norteamento da política
interna de combate aos sujeitos tidos por perigosos através de seus
simbólicos Robocops7 e caveirões8 dirigindo-lhes um olhar desprovido
da noção de cidadania e dignidade. De acordo com Jakobs9:

6
WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 7.
7
ELY, Débora. Robocop na Copa: o traje que os policiais usarão no Mundial. Para
atuar em possíveis protestos durante os jogos, Brigada Militar receberá 300
exoesqueletos do governo federal. Zero Hora, Porto Alegre, 21 de mai. 2014.
Disponível em <http://zh.clicrbs.com.br/rs/esportes/copa-
2014/noticia/2014/05/robocop-na-copa-o-traje-que-os-policiais-usarao-no-mundial-
4505977.html>. Acesso em: 28 set. 2015.
8
CONTRA protestos em SP, PM compra 'supercaveirão'. Estadão, São Paulo,
12 de mar. 2015. Disponível em <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-
estado/2015/03/12/contra-protestos-em-sp-pm-compra-supercaveirao.htm>. Acesso
em: 28 set. 2015.
9
JAKOBS, Ghunter; MELIÁ, Manuel Câncio. Direito Penal do Inimigo:
noções e críticas. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2005, p. 37.
177

O direito penal conhece dois pólos ou tendências em suas


regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão,
esperando-se até que se exteriorize a sua conduta para
reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da
sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que
é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por
sua periculosidade.

Amparados pelas proposições de Walter Benjamin e de


Giorgio Agamben pretende-se desencobrir uma parcela desta
intimidade cadavérica entre os regimes totalitários e as democracias
modernas10. A atualidade de seus pensamentos conjugados com o
conhecimento de Zaffaroni acerca dos Estados Latinos pode dar as
pistas para melhor compreender as estratégias de formação de um
estereótipo de indivíduo a ser combatido como nas categorias de
“subversivo”, “terrorista”, “bandido”, “vândalo” entre outras, para
justificar o recrudescimento das políticas repressivas fazendo valer o
slogan fascista da “ordem e progresso” (ou o atual, “Não pense em
crise, trabalhe”) a custo dos sujeitos dispensáveis, ou seja, através do
paradigmático conceito do protagonista da obra de Giorgio Agamben:
A Vida Nua11. Na perseguição de seus inimigos o sob o mote do
desenvolvimentismo, as forças repressivas se pautam pela ação da força

10
No início da obra o Homo Sacer: o Poder Soberano e a Vida Nua I,Agamben nos
antecipa o que virá a ser objeto de seu dedicado olhar:“A tese de uma íntima
solidariedade entre democracia e totalitarismo (que aqui devemos, mesmo com toda
prudência,adiantar) não é, obviamente (como,por outra,aquela de Strauss sobre a
secreta convergência entre liberalismo e comunismo quanto à meta final),uma tese
historiográfica, que autorize a liquidação e o achatamento das enormes diferenças que
caracterizam sua história e seu antagonismo; não obstante isto, no plano histórico-
filosófico que lhe é próprio, deve ser mantida com firmeza, porque somente ela poderá
permitir que orientemo-no diante das novas realidades e das convergências
imprevistas do fim de milênio, desobstruindo o campo em direção àquela nova política
que ainda resta em grande parte inventar.”AGAMBEN, Giorgio.Homo sacer: o poder
soberano e a vida nua.Belo Horizonte:UFMG,2002,p. 18.
11
Ibidem, p. 16.
178

de lei12 sem lei, que suspende as garantias legais em nome da sua própria
manutenção. Ora, não tem sido exatamente esse o paradigma central do
discurso predominante na política nacional, em especial naquilo que
remete a (in)segurança pública?

Para tanto é necessário retomar ideia primordial de Walter


Benjamin acerca da exceção. É através da intensificação dos
mecanismos de controle e pela criminalização da pobreza e dos
movimentos sociais que se verifica de forma mais visível a correlação
de forças que desemboca naquilo que chamaram estado de exceção,
razão pela qual temos a necessidade de nos situarmos perante esse
paradigma, senão vejamos13:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “Estado de


Exceção”, no qual nós vivemos, é a regra. Precisamos
atingir um conceito de história que corresponda a isto.
Então teremos diante de nós como nossa tarefa provocar
o efetivo Estado de Exceção; e deste modo melhorará a
nossa posição na luta contra o fascismo. A sorte deste
depende não em última instância, que seus opositores
lutem contra ele em nome do progresso como uma norma
histórica. – A admiração de que as coisas que nós
vivenciamos ‘ainda’ são possíveis no século XX, não é
filosófica. Ela não esta no início de um conhecimento, a
não ser de que a idéia de história, de onde ela provém,
não pode mais ser sustentada.

A ideia da neutralidade do estado tão fortemente criticada


pelos mais variados setores da esquerda nacional e internacional de

12
Conforme Agamben O sintagma “força de lei” vincula-se a uma longa tradição do
direito romano e no medieval, [...] tem o sentido geral de eficácia, de capacidade de
obrigar. [...] O conceito “força de lei”, enquanto termo técnico do direito define, pois
uma separação entre vis obligandi ou aplicabilidade da norma e sua essência formal,
pela qual decretos, disposições e medidas, que não são formalmente leis, adquirem,
entretanto, sua “força’. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo:
Boitempo, 2004, p.60.
13
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas; v. 1. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 226.
179

Marilena Chauí14 a Meszáros15, segue intocável fora dos bastidores


decisórios do poder. Da mesma forma, a confiança em uma justiça
suprema ou em uma verdade prevalecente que deriva do argumento de
autoridade é tanta, que o apego às formalidades ou consistências
jurídicas e argumentativas das decisões e ações que derivam no
exercício do poder de polícia vem sendo notoriamente abandonadas.
Dessa forma retomamos a problematização de Benjamin, quando nos
deparamos com as bizarras decisões e ações dos agentes repressivos: A
admiração (ou o espanto) de que as coisas que nós vivenciamos ainda
são possíveis atualmente em pleno século XXI não é filosófica, porque
a “história” de onde esse espanto provém não pode mais ser sustentada.

 WALTER BENJAMIN, CONTROLE SOCIAL E


LEGITIMAÇÕES.
Walter Benjamin traz a margem um questionamento de
espantosa atualidade, se pensado com atenção voltada ao cenário
político brasileiro. Diante da crise da representatividade que permeia o
cenário atual, inclusive relativo ao período anterior ao atual regime

14
A crítica referida pode ser analisada de forma mais explícita no seguinte trecho do
livro O que é Ideologia: “O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena
e regula para o interesse geral definido por ele próprio enquanto poder separado e
acima das particularidades dos interesses de classe. Ele é a preservação dos interesses
particulares da classe que domina a sociedade. [...]O papel do Direito ou das leis é o
de fazer com que a dominação não seja ti da como uma violência, mas como legal, e
por ser legal e não violenta deve ser aceita. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São
Paulo: Brasiliense, 1984. p. 90.
15
A passagem de Meszáros a que se refere a menção pode ser compreendida a partir
da obra O poder da Ideologia: “A verdade prosaica de que o Estado na verdade não é
a encarnação do “princípio da legitimidade”, mas das relações de poder prevalecentes,
e que não é constituído a partir de decisões individuais soberanas, mas em resposta
aos contínuos antagonismos de classe, permanece oculta sob o véu da impressionante
fachada teórica da ideologia dominante.” MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia.
São Paulo: Boitempo, 2004. p. 26.
180

vampiresco que carece ainda mais de legitimidade, a brutalidade


policial vêm sendo a resposta estatal para os anseios sociais que, na
derrocada da estratégia do pão e circo, retomou pelos mecanismos mais
tradicionais a “ordem pública” necessária ao “progresso”. Calcada em
nome do interesse público, tal ação repressiva, lança mão de inúmeros
subterfúgios (i)legais de modo a pressionar e coagir os contestadores da
política implantada. Após a caracterização do poder enquanto
instituinte e mantenedor do Direito, do âmago de sua violência criadora
e conservadora, Benjamin dispara:

[...] Poder-se-ia dizer que um sistema de fins jurídicos é


insustentável quando, em algum lugar, fins naturais ainda
podem ser perseguidos pelo meio da violência. Mas isso,
por enquanto, é um simples dogma. Por outro lado, talvez
deva se levar em consideração a surpreendente
possibilidade de que o interesse do direito em
monopolizar o poder diante do indivíduo não se explica
pela intenção de garantir os fins jurídicos, mas de garantir
o próprio direito [...]16

Com essa afirmativa em mente torna-se possível desferir um


olhar mais apurado para os fatos públicos que ocorreram não só no
Brasil, mas em diversos outros país, mais especificamente os latinos
que vêm tendo constantes interferências de origem externa
corroborando significativas alterações políticas em nome da expansão
do capital na história recente. A hipocrisia do progresso seletivo e do
agravamento da segmentação social, geraram (e geram) uma
resistência, não raro violenta, através de uma LEGÍTIMA defesa, de
uma casa, de uma escola, de um bairro, de uma renda, de um amigo: de

16
BENJAMIN, Walter. Crítica da violência – crítica do poder. ___. Documentos de
cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. (Trad.: Willi Bolle). São Paulo:
Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo 1986, p. 162.
181

dignidade. Assim, o recrudescimento do aparato repressor,


compreendido desde o policiamento ostensivo, passando pelas
inquisitórias denúncias criminais, constante vigilância (inclusive por
informantes infiltrados e com utilização de drones), abordagens
infundadas, flagrantes forjados, tudo amparado pela proteção
normativa, convenientemente interpretada por seus pares, pode ser
recordada no destacamento do poder amorfo da instituição policial em
mais uma passagem das teses benjaminianas:

A infâmia dessa instituição - sentida por poucos, porque


raramente a competência da polícia é suficiente para
praticar inter·venções mais grosseiras, podendo, no
entanto, investir cegamente nas áreas mais vulneráveis e
contra cidadãos sensatos, sob a alegação de que contra
eles o Estado não é protegido pelas leis - consiste em que
ali se encontra suspensa e separação entre poder*
instituinte e poder* mantenedor do direito. Do primeiro
se exige a legitimação pela vitória, do segundo, a
restrição de não se proporem novos fins. O poder* da
polícia se emancipou dessas duas condições. É um
poder* instituinte do direito - cuja função característica
não é promulgar leis, mas baixar decretos com
expectativa de direito - e um poder* mantenedor do
direito, uma vez que se põe à disposição de tais fins. A
afirmação de que os fins do poder* policial seriam
sempre idênticos aos do direito restante ou pelo menos
ligados a eles, é falsa. Na verdade, o "direito" da polícia
é o ponto em que o Estado - ou por impotência ou devido
às inter-relações imanentes a qualquer ordem judiciária -
não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus
fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço 17.

O desvelamento das relações de poder ocultadas pelo aparato


teórico que justifica a força de lei enquanto instrumento de garantia de
privilégios deve ser, nas formulações de Benjamin (definitivamente não
só dele), exposta18. Essa violência - que define pura, ou criadora - seria

17
Ibidem. p. 166.
18
Ibidem. p. 226.
182

única capaz de provocar fim a esse movimento oscilante da violência


instituinte e mantenedora do Direito. Em oposição à teoria do Soberano
de Carl Schmitt, a exceção de fato não poderia ser fundada na premissa
de conservar o próprio direito, mas em uma dimensão que destruiria o
próprio reino que o jurista do Terceiro Reich visa assegurar. Para tanto,
deve-se primeiramente expor os meandros dessa relação tiranizante,
identificá-la, revelá-la, para aí então destruí-la, esse é o desafio acerca
da reconstrução da história, sobre o conceito de história, ou, como
propõe de forma brilhante Reyes Matte, no catar dos dejetos19. Assim,
nos termos propostos por Neto:

Essa violência inerente e oculta do direito é o que


legitima a injustiça em que vivemos e por vezes se torna
visível em episódios como os campos de concentração,
aeroportos rejeitam refugiados, favelas em que a vida
está exposta à morte, zonas rurais dominadas por
coronéis. Nesses locais a vida está nua, ou seja,
totalmente exposta, totalmente submissa a um poder que
pode a descartar livremente. Então a conclusão dessa
primeira perte é: o estado de exceção não é “exceção”,
mas a regra sobre o qual o estado de direito se ergue como
uma espécie de mito que encobre as relações de poder
reais que existem20.

Nesse caminho adentramos a conceituação de Agamben acerca


dos corpos disponíveis ao bel prazer do fazer político. Aliás, como
ponto de contato entre a resistência afirmada anteriormente e os
matáveis do cotidiano nacional, é simbólico o recorrente drama das
abordagens policiais na defesa da “paz social” das praias cariocas em

19
MATTE, Reyes. Meia-noite na história: Comentários sobre às teses de Walter
Benjamin. Sobre o conceito de história. Ed. Unisinos.2010. p. 125.
20
NETO, Moysés Pinto. A matriz oculta do Direito Moderno: crítica do
constitucionalismo contemporâneo. Cadernos de ética e filosofia política, São Paulo,
n. 17, p.131 – 152, jan./jun. 2010.
183

que se é preciso reafirmar obviedades em tempos de bárbarie21. A


suspensão de direitos daqueles que subvertem a hegemonia branca dos
calçadões e trazem à superfície o sintoma da perversa coesão social que
lhes é imposta, evidencia o caráter eugenista da ideia de “cidade
maravilhosa”. Este local, onde um mês do salário de muitos de seus
habitantes é consumido em apenas um dia de capricho dos que detém
esse privilégio, reproduz o conflito inarredável decorrente dessas
contradições. A resposta estatal recorrente é a repressão na forma de
retirada das garantias daqueles a quem se quer combater, dos nossos
próprios “inimigos” internos, através da batalha diária dos Capitães do
Mato contra os Capitães de Areia 22.

Essa ficção jurídica da suspensão do tempo, da invocação de


artifícios não legais em nome da ordem e do progresso, é instrumento
de constante aplicação no cotidiano, tanto das democracias, quanto dos
absolutismos atuais. Seus alvos, em geral os corpos negros que as balas
23
policiais insistem em achar , sentem todo peso da lógica de

21
A menção se refere à ação impetrada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro
para ver declarado o raríssimo Direito dos adolescentes de não serem presos a não ser
que estivessem cometendo algum delito. OUCHANA, Giselle. Vara da Infância e
Juventude proíbe PM de apreender adolescentes sem flagrante Decisão foi tomada
após adolescentes serem retirados de ônibus a caminho das praias da Zona Sul no mês
passado. O Globo, 10 de nov. 2015. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/rio/vara-da-infancia-juventude-proibe-pm-de-apreender-
adolescentes-sem-flagrante-17456925#ixzz3mpSv8gQL>. Acesso em: 10 de out.
2015.
22
VICE, Marie Declercq da. “PM do Rio impede adolescentes da periferia de ir às
praias da zona sul”, Folha de São Paulo, 25 de ago. 2015. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/08/1673548-pm-do-rio-impede-
adolescentes-da-periferia-de-ir-as-praias-da-zona-sul.shtml>. Acesso em: 07 de out.
2015.
23
A menção faz referência ao brilhante artigo escrito por Eliane Brum em que expõe
a matabilidade e ausência completa de empatia, de emocionabilidade com o que já se
tornou tão corriqueiro no cenário (bio)político nacional. Intitulado “ECA do B”, busca
explicitar com uma ironia ácida a lei real (ou a força de lei sem lei) que é a exceção
184

dispensabilidade de suas vidas perante a organização social que lhes é


imposta. A gestão da miséria como bem assevera Loic Wacquant
através da globalização da lógica da tolerância zero24 introduz uma
condição do que Agamben vem a denominar campo decorrente da não
provisoriedade da lógica da exceção, na menção ao nazismo e suas
concentrações de morte. Essa parcela territorial que, por sua vez, se
encontra desamparada pelo ordenamento jurídico do qual está inserida
é o elemento através do qual são dirigidas as políticas públicas de
extermínio dos indesejáveis nacionais que, tampouco possuem acesso
aos direitos básicos, bem como, sequer as garantias constitucionais de
presunção de inocência, contraditório, ampla defesa, e mesmo, da vida.
A lei, ainda que assegure suas liberdades e garantias, lhes sujeita,
enquanto que a prática dá conta de impossibilitar a sua efetivação de
todas as maneiras. Se, como refere BAUMAN, o holocausto é fruto da
própria racionalidade da civilização moderna, da lógica do consumo, do
descarte25, a fabricação de cadáveres não cessou ao findar a segunda
guerra, mas persiste nas inúmeras Auschwitz nacionais26.

Não obstante às exigências do cumprimento de certos


requisitos para sua decretação, o que se verifica na realidade do Estado
brasileiro é a presença constante da exceção enquanto paradigma de

permanente na lida com a pobreza e os ban(d)idos perpassando os recorrentes


comentários que dão a tônica do pensamento “comum” vomitado pela pela mídia
hegemônica. BRUM, Eliane. ECA do B. El País, 28 de set. 2015. Disponível em:
<http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/28/opinion/1443448187_784466.html>.
Acesso em: 8 de out. 2015.
24
WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
25
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Tradução de Marcus Penchel.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.32.
26
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. . São
Paulo: Boitempo, 2008, p. 79.
185

governo. A partir desta constatação traçamos um panorama da


convivência do ordenamento jurídico com as violações às suas garantias
de parte de seus órgãos promotores, e a serviço de que(m) estão tais
práticas que atuam na construção da figura do inimigo, e na
corporificação de toda a culpa das frustrações sociais vividas em
indivíduos, costas disponíveis ao açoite da chibata do capital.

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido,


como a instauração por meio do estado de exceção, de
uma guerra civil legal que permite a eliminação física não
só dos adversários políticos, mas também de categorias
inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, parecem não
integráveis ao sistema político. Desde então, a criação de
um estado de emergência permanente (ainda que,
eventualmente, não declarada no sentido técnico) tornou-
se uma das práticas essenciais dos Estados
contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos
27
.

A supressão temporária dos direitos, derivada do conceito de


iustititum deu margem à brutalidade policial vista nas repressões e
criminalizações dos manifestantes, posta em prática sob argumentos
estigmatizantes, visando retirar a humanidade dos indivíduos que a
compunham. Os vândalos, comunistas, anarquistas, subversivos,
baderneiros travaram uma dura batalha para irromper o abismo que
separa o governo do povo que, rapidamente, tratou de restabelecer a
distância rotineira por meio da (i)legitimidade do artifício jurídico-
policial.

As prisões (i)legais se multiplicaram no intuito de fazer cessar


à base da força o resquício de contestação que persiste em meio à

27
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.
186

naturalização da opressão, da desigualdade e da pobreza. Novas


formulações legislativas trataram de ser imediatamente propostas e
impostas, de modo a inserir em um aspecto de maior legitimidade as
violações rotineiras praticadas contra os manifestantes. A qualificação
dos sujeitos enquanto inimigos, os tão citados black blocs, serviram,
assim como qualquer designação exposta pelo quarto poder, para tentar
justificar as brutalidades do aparato repressivo que estaria combatendo
um inimigo interno. Não obstante as reiteradas utilizações das forças
armadas contra a própria população por meio das invasões às
comunidades periféricas, o núcleo duro da ausência de legitimidade, da
regra, retomando Benjamin, enquanto consolidação de vontade de uma
classe sobre a outra, foi largamente expandido de modo a calar a
crescente discórdia que transborda.

 TEORIAS ANTIGAS DE ATUALIDADE ALARMANTE

Sob o assombro de constantes inovações legislativas, que


fornecem o aparato “legítimo” dando instrumentos aos orquestrantes do
permanente governo de exceção, o Brasil, que antes se deparou com a
edição da chamada Lei de Segurança Nacional, definida por Heleno
Cláudio Fragoso enquanto instrumento de perseguição e atemorização
dos trabalhadores que poderiam reivindicar melhores condições de
trabalho, agora se vê assombrado por reinterpretações de direitos
fundamentais em nome da “flexibilização de estruturas arcaicas”. Na
esfera penal o pensamento derivado da lógica de pensamento no
combate ao inimigo, que pode estar infiltrado em solo nacional sob a
carapaça de qualquer cidadão comum, ainda assombra os movimentos
187

sociais brasileiros como no inquérito que ensejou a detenção prévia da


estudante de 19 anos em São Paulo por supostos atos preparatórios que
visavam a depredação de uma viatura, há inúmeras inovações
legislativas que almejam atualizar ou (re)oficializar as práticas
repressivas em nome da ‘Segurança Nacional” 28.

É o caso de inúmeros projetos de Lei, em especial o


2016/2015, aprovado pela câmara dos deputados que visa a
regulamentação do terrorismo no Brasil(?), tipificando condutas como
a sabotagem de bancos de dados de informática, bem como depredação
de meios de transporte e bens públicos ou privados com sanções de
reclusão que variam entre doze e trinta anos, nas mesmas penas
daqueles que usariam conteúdos nucleares ou biológicos capazes de
promover destruição em massa. A barbaridade ainda segue com pena
de quatro a oito anos para quem “fizer publicamente apologia de fato
tipificado como crime nesta Lei” e ainda, ao que parece uma sátira de
fazer inveja ao artigo 33 da Lei de Drogas, aduz:

Art. 6º Receber, prover, oferecer, obter, guardar, manter


em depósito, solicitar, investir, de qualquer modo, direta
ou indiretamente, recursos, ativos, bens, direitos, valores
ou serviços de qualquer natureza, para o planejamento, a
preparação ou a execução dos crimes previstos nesta Lei:
Pena - reclusão, de quinze a trinta anos. Parágrafo único.
Incorre na mesma pena quem oferecer ou receber,
obtiver, guardar, mantiver em depósito, solicitar, investir
ou de qualquer modo contribuir para a obtenção de ativo,
bem ou recurso financeiro, com a finalidade de financiar,
total ou parcialmente, pessoa, grupo de pessoas,
associação, entidade, organização criminosa que tenha

28
JUSTIÇA paulista livra ativista de ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional.
Rede Brasil Atual, 1 de jul. 2014. Disponível em:
<http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2014/07/justica-paulista-livra-ativista-
de-ser-enquadrada-na-lei-de-seguranca-nacional-4018.html>. Acesso em: 12 de out.
2015.
188

como atividade principal ou secundária, mesmo em


caráter eventual, a prática dos crimes previstos nesta Lei.
29

O poder executivo pretendeu garantir um instrumento legal


que torne mais crível a associação ao estigma de sujeito desprovido de
direitos e garantias face ao tratamento já dispensado pela sua polícia.
Não obstante os resquícios estruturais do período ditatorial, vivemos
sob uma crescente punitivista que retoma o saudosismo daquilo que
houve de mais podre dentre as importações (ou imposições) norte-
americanas, a ideia da Doutrina de Segurança Nacional, logo após o
“livre-mercado”. Aliás, nesta lógica de estado de guerra em “tempos de
paz”, de uma liberdade (estritamente de consumo), bem como da
influência do quarto poder em tempos de populismo penal, é de
espantosa atualidade as prelusões da obra literária de George Orwell,
1984: Guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força,
respectivamente.30

Em sua Nota aos leitores brasileiros, cujo subtítulo é Rumo a


uma ditadura sobre os pobres?, Loic Wacquant traça um panorama da
influência ideológica advinda do Norte, em que a classe miserável, ou
retomando Marx, o subproletariado, se vê combatida e subjugada ao
clamor dos pânicos orquestrados pela máquina midiática que alardeia
os medos da classe média. A insegurança criminal no Brasil, aponta, é
nitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem, expressa
na letalidade e brutalidade das polícias nacionais que advém de uma

29
A íntegra da Redação Final pode está disponível em
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegracodteor=1373970
&filename=REDACAO+FINAL+-+PL+2016/2015>. Acesso em: 12 de out. 2015.
30
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
189

tradição multissecular de controle da miséria pela força perpassando a


escravidão, os conflitos agrários e as duas décadas de Ditadura civil-
militar em que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da
ordem pública se confundem31.

Profundamente marcada pelo autoritarismo e pela ideia de que a


defesa de direitos é coisa de vagabundos, subversivos, de quem quer se
esquivar ao bem, vez que, quem não deve não teme, o Estado Penal
Brasileiro está posto para responder às desordens suscitadas pelas
contradições inerentes à lógica da sociedade contemporânea ditada pelo
consumo, pela falácia da meritocracia, e pela desigualdade material 32.
Nessa esteira o francês, conclui:

Em suma, a adoção das medidas norte-americanas de


limpeza policial das ruas e de aprisionamento maciço dos
pobres, dos inúteis e dos insubmissos à ditadura do
mercado desregulamentado só ira agravar os males de
que já sofre a sociedade brasileira em seu difícil caminho
rumo ao estabelecimento de uma democracia que não
seja de fachada, quais sejam, “a deslegitimização das
instituições legais e judiciárias, a escalada da
criminalidade violenta e dos abusos policiais, a
criminalização dos pobres, o crescimento significativo da
defesa das práticas ilegais de repressão, a obstrução
generalizada ao princípio da legalidade e a distribuição
desigual e não equitativa dos direitos do cidadão”. A
despeito dos zeladores do Novo Éden neoliberal, a
urgência, no Brasil como na maioria dos países do
planeta, é lutar em todas as direções não contra os
criminosos, mas contra a pobreza e a desigualdade, isto
é, contra a insegurança social que, em todo lugar, impele
ao crime e normatiza a economia informal de predação
que alimenta a violência 33.

31
WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro. ED. Jorge Zahar 2001.
P. 8.
32
Ibidem. p. 10.
33
Ibidem. p.. 13.
190

Conforme nos recorda Taiguara, a criminalização não se


restringe à gestão da miséria, mas atua visivelmente no controle dos
atos contestatórios à ordem vigente34. A rotulação, derivada da teoria
do labelling approach, é fator que conduz ao estigma do homo sacer
destinado às novas classes perigosas ou aos inimigos públicos. Como o
foco no trato do inimigo, conforme referido anteriormente, não é,
propriamente, o de punir ou readequar um sujeito desviante, mas de
neutralizar uma ameaça à ordem, as mais variadas arbitrariedades
passam a serem exercidas por meio de armas letais e menos letais de
parte dos agentes públicos. O processo de construção do Estado
brasileiro é profundamente tatuado pela tinta da obediência e da
submissão em que a repactuação do contrato social repete a fórmula do
coronelismo, do absolutismo e da escravidão, prestando veracidade às
palavras do rapper paulista Eduardo Taddeo:

"Ainda vivemos em temos de chibatas. Senhor de


escravos virou patrão, capitão do mato virou polícia,
homem branco virou playboy, escravo virou cidadão de
renda modesta; casa grande virou mansão; senzala virou
favela; tronco e pelourinho se transformaram em sistema
carcerário e navio negreiro se transformou em viaturas da
polícia." 35.

34
SOUZA, Taiguara Libano Soares e. Estado Policial e Criminalização dos
Movimentos Sociais: Notas sobre a Iconstitucionalidade do Decreto nº 44.302/13 do
Governo do Estado do Rio de Janeiro. \R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p.
185 - 205, jan - fev. 2015, p. 193.
35
A frase se deu em postagem em sua página pessoal nas redes sociais. Disponível
em: <https://pt-
br.facebook.com/permalink.php?story_fbid=303931759743679&id=280113148792
207>. Acesso em: 11 de out. 2015.
191

O teor criminalizatório dirigido contra os movimentos sociais


que reivindicam, em suma, a instauração plena das próprias previsões
constitucionais, acusados não raro de atentarem contra a própria
democracia, são falácias estratégicas daqueles que estão satisfeitos com
o desenrolar das coisas. O Brasil, talvez em uma escala maior que
muitos países, têm gravado no seu cerne o trato aos movimentos sociais
enquanto casos de polícia, notadamente dada a origem destes no campo
da esquerda e a histórica caça aos comunistas patrocinada pelo ideário
do sonho americano, agravada pelo contexto da guerra fria.

As violações estatais típicas da lógica da exceção culminaram


por estender o campo exposto por Agamben, das periferias para o
asfalto, sendo que o absoluto vazio legal instaurado a partir da lacuna
de poder delegado em que podem atuar as policiais decorre da lógica de
guerra instaurada do Estado (e seus defendidos) contra sua própria
população: “Nas zonas indiscerníveis de indistinção entre espaço
político e vida nua é que a força policial se dá, abrindo o campo de vidas
matáveis o qual se habita.” 36
. As vidas nuas, portanto, também
passaram a marchar pelas ruas da cidade.

Que os movimentos sociais sigam a profanar o improfanável,


como sugere Giorgio Agamben37, de modo a abrir o percurso do novo,
de modo a manter a humanidade caminhando em busca da utopia como
sugere Galeano38 para que talvez possa encontrar a justiça social que

36
AMARAL, Augusto Jobim Do. Polícia e democracia: o tempo que resta das
jornadas de junho de 2013. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p.
174-195, jul.-dez. 2014. p. 38
37
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 79.
38
GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Porto Alegre: L&PM, 1994.
192

buscam os segmentos historicamente esquecidos, pois, como bem


lembra o falecido escritor uruguaio: “Em certo sentido, a direita tem
razão quando se identifica com a tranquilidade e com a ordem. A ordem
é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem — a
tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta.”39.
Libertem Rafael Braga Vieira!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições
investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização
terrorista; e altera as Leis nºs 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e
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196

“MAIS SEGURANÇA E MENOS IMPUNIDADE”:


O DISCURSO MIDIÁTICO COMO
INSTRUMENTO DE INCENTIVO E SUPORTE
DO POPULISMO PUNITIVO

Michelle Karen Batista dos Santos1


Osmar Antônio Belusso Júnior2

INTRODUÇÃO

O cenário atual dos veículos de comunicação é marcado por


discursos dominantes que buscam através do endurecimento de penas,
da criminalização de condutas e da redução de garantias processuais,
utilizar o sistema penal como solução para o problema da criminalidade
e da violência, agravando imensamente o problema do encarceramento
em massa e retroalimentando as condições que possibilitaram e
legitimam esse fenômeno.

1
Mestranda em Ciências Criminais (PPGCCRIM/PUCRS). Pós-Graduanda em
Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Graduada em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB/DF).
Coordenadora do Grupo de Estudos em Criminologia(s) da Escola Superior de
Advocacia (ESA/OAB-RS). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa em
Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC/PUCRS),
coordenado pelo Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo..
2
Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. Assessor Jurídico do Projeto
Cada Jovem Conta! – Centro de Prevenção às Violências. Advogado do Grupo de
Estudos e Intervenção em Matéria Penal (GEIP-SAJU/UFRGS). Integrante do Grupo
de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal
(GPESC/PUCRS).
197

Assim, o presente trabalho pretende trazer à discussão o papel


desempenhado pela mídia no que se denomina populismo punitivo.
Para tanto, abordaremos em um primeiro momento aspectos que dizem
respeito diretamente sobre o funcionamento estrutural das agências de
comunicação, isto é, quais são seus métodos de atuação e fins almejados
dentro de uma sociedade intimamente marcada pela violência.
Após verificarmos quais são os discursos presentes nos meios
de comunicação, debateremos a sua capacidade de propagar o medo e
o sentimento de insegurança na população, ensejando, por
consequência, a defesa de meros slogans, tão vagos quanto ineficazes
aos fins propostos, mas que produzem efeitos reais e cruéis para aqueles
selecionados pelo poder punitivo.

 A MÍDIA, O CRIME E O CRIMINOSO

Antes de tratar especificamente sobre os mecanismos


utilizados pela mídia a partir da íntima relação que guarda com o
sistema penal, abordaremos brevemente alguns pressupostos que
consideramos importantes para compreender esse ente abstrato. Da
mesma maneira como o século XX trouxe consigo uma série de
transformações rápidas e radicais nas formas de transportes, a
metamorfose dos meios de comunicação igualmente representa um
aspecto essencial dos fatores de mobilidade. Acontece que a
comunicação é, também, um meio de transporte - que não envolve o
deslocamento de corpos físicos em si, senão de informação3.

3
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro:
Zahar, 1999. p. 17.
198

Assim, as mudanças estruturais nas redes comunicacionais


alteraram profundamente a forma como as relações sociais se
estabelecem dentro e entre comunidades, através, principalmente, do
fator velocidade. As informações de terras distantes são limites que se
quebram na medida em que a velocidade permite o rompimento das
fronteiras geográficas. Com o surgimento e popularização da internet,
modificam-se os próprios significados conferidos às noções de
“viagem”, “distância” e “longe”, uma vez que se traz à tona um novo
conceito temporal fundamental para a nova configuração dos meios de
comunicação: a instantaneidade4.
De acordo com Paul Virilio, esse novo espaço - virtual - é
desprovido de dimensões espaciais, ao mesmo passo em que é inscrito
em uma temporalidade muito singular. Inexistem obstáculos físicos ou
distâncias temporais. Com a variada gama de aparelhos eletrônicos à
disposição dos indivíduos - computadores, tablets, smartphones, etc. -,
distinções entre “aqui” e “lá” esvaziam-se ou tornam-se puramente
artificiais5. O distante fica próximo, o velho torna-se novo.
Essa velocidade, reduzida ao instante, permite a sensação de
um “espaço comunitário virtual”, rápido e público. Essa ideia - de que
compartilhamos uma vida em rede - perpassa pela percepção dos
acontecimentos pelos indivíduos em circunstâncias simuladas da
experiência real, ou seja, a mídia possibilita um espaço onde episódios
distantes no tempo e no espaço se apresentem como um simulacro

4
BAUMAN. Ibidem. p. 18.
5
VIRILIO, Paul apud BAUMAN. Ibidem. p. 20.
199

simbólico de vivência simultânea, tornando episódios individuais


imediatamente públicos6 7.
Entre os acontecimentos sociais que, mais do que se tornarem
públicos, ascendem à condição de problemas públicos a serem tratados
pelas narrativas jornalísticas, está o crime - ou melhor: alguns crimes,
pois como veremos adiante, não são todos os delitos que ingressam na
agenda de fatos noticiáveis, assumindo maior ou menor enfoque de
acordo com o caldo cultural da sociedade em que estão inseridos.
Crime, mídia e cultura, assim, se entrelaçam fortemente: “o fascínio
contemporâneo da imprensa noticiar a ação violenta relaciona o medo
dos indivíduos de serem vítimas de um crime e o imperativo da
modernidade de promoção de entretenimento”8.
As decisões tomadas pela mídia para a escolha de quais temas
são ou não inseridos no debate público, bem como em qual intensidade,
diz respeito à estrutura de seu funcionamento, onde a seleção do que
vira notícia passa por um conjunto de diretrizes pré-estabelecido,
configurando o que se denomina agenda-setting9. Desse modo, o

6
MELO, Patricia Bandeira de. Criminologia e teorias da comunicação. In: LIMA, R.
S.; RATTON, L. L.; AZEVEDO, R. G. (Orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil.
São Paulo: Contexto, 2014. p. 165.
7
No entanto, em que pese as redes sociais digitais tenham possibilitado um ambiente
em que é possível o estabelecimento de diversas discussões que dizem respeito a
questões sociais ou das agendas políticas, não conseguiram garantir, ainda, a sua
inclusão no debate público, onde as chamadas "velhas mídias" - televisão, jornal,
rádio, etc. - ainda detêm o monopólio de "tornar as coisas públicas", dando
visibilidade a determinados assuntos em um espaço formador de opinião pública.
LIMA, Venício de A. Mídia, rebeldia urbana e crise de representação. In: Cidades
rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo:
Boitempo, 2013. p. 90.
8
MELO. Criminologia e teorias da comunicação. Ibidem. p. 165-166.
9
MELO, Patricia Bandeira de. Histórias que a mídia conta: o discurso sobre o crime
violento e o trauma cultural do medo. Tese (Doutorado em Sociologia) - PPGS,
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2010. p. 154.
200

processo de absorção de informação por parte do público não está


condicionado apenas às seleções realizadas pela mídia sobre quais
temas são apresentados, como também pela ênfase dada a cada tópico,
acarretando na variação da carga de relevância depositada nas notícias.
Nas palavras de Maxwell McCombs, a partir de tradução livre dos
autores:

Os jornais fornecem uma série de sugestões sobre a


relevância dos tópicos nas notícias diárias: história
principal na primeira página, capa diferenciada, grandes
manchetes, etc. As notícias na televisão também
oferecem numerosas sugestões sobre essa relevância: a
história de abertura do noticiário, o tempo dedicado a
cada história, etc. Essas sugestões repetidas dia após dia
efetivamente comunicam a importância de cada tópico10.

Assim, é possível afirmar que o discurso dos meios de


comunicação produz efeitos de sentido, isto é, indicam para o indivíduo
receptor da notícia - leitor/telespectador - o caminho de significações
para os acontecimentos narrados, bem como a linha de construção da
sua agenda pessoal de preocupações11. Os critérios para a
noticiabilidade de um determinado acontecimento são, como mostra
Patricia Bandeira de Melo, os denominados valores-notícia:
constituem-se a partir de alguns medidores de relevância, como a
importância do evento, quais os agentes envolvidos e a existência de
conflito. Busca-se aquilo que é novo, inusitado, controverso, incomum,
bárbaro12.

10
MCCOMBS, Maxwell. The Agenda-Setting Role of the Mass Media in the Shaping
of Public Opinion. Austin: University of Texas at Austin, 2003. p. 1.
11
MELO. Histórias que a mídia conta. Ibidem, p. 155.
12
MELO. Histórias que a mídia conta. Ibidem, p. 158.
201

Segundo Elihu Katz, “o elemento de grande drama ou ritual é


essencial: o processo tem de estar carregado de emoções ou símbolos,
e o resultado repleto de consequências”13. Por essa razão, o crime
assume papel protagonista nos veículos de comunicação, configurando
um tema capaz de elevar drasticamente os índices de audiência.
Arquiteta-se calculadamente a forma mais dramática e emocional de se
expor um fato delitivo para manter a atenção do público. A narrativa
apelativa requer a cerimônia, necessita de vilões, heróis e vítimas e
deseja a culpa e a punição14 15.
Entretanto, tais explicações, por si só, não compõem uma gama
completa que dá conta de explicar um fenômeno tão complexo como o
que ocorre no interior dos meios de comunicação. Se por um lado existe
uma forte relação de interesse entre violência e audiência, também é
certo que essa equação não encerra a questão criminal na mídia, sob
pena de incorrermos em ingenuidade. Mais que isso, as agências de
comunicação procuram constituir-se como os instrumentos de análise
dos conflitos e dos problemas sociais por excelência, necessitando, para
isso, de uma racionalidade bastante funcional para a sua performance.
Essa estrutura de pensamento é o discurso criminológico midiático - tão
distante daquele produzido no âmago da academia. Os demais discursos
devem ser ignorados ou no mínimo menosprezados, como forma de se
fortalecer uma mentalidade una e homogênea16.

13
KATZ, Elihu apud MELO. Histórias que a mídia conta. Ibidem, p. 161.
14
MELO. Criminologia e teorias da comunicação. Ibidem. p. 170.
15
A incompreensão do “herói” sendo punido como se “vilão” fosse: "Homem preso
por balear criminosos desabafa: 'Tratado como vagabundo'", In: G1, 26/02/2015.
Disponível em <http://glo.bo/1833dXd>. Acesso em 15/02/2017.
16
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Biblioteca On-line
de Ciências da Comunicação. ISSN: 1646-3137. 2003 Disponível em
202

Faz-se uso de profissionais, ditos especialistas, para que as


afirmações desse discurso - que jamais encontrariam uma comprovação
empírica -, validem seus enunciados, por mais vagos que sejam. Nilo
Batista traz exemplos de slogans conhecidos - que possuem tanto um
grau elevado de introjeção, quanto de inverdade: "a impunidade
aumenta o número de crimes", "nas drogas é como uma escada, passa-
se das mais leves para as mais pesadas", "penas elevadas dissuadem”,
etc. A regra oculta está na não-dissidência, ou seja, só se concede um
espaço para que um profissional tenha voz quando a sua fala converge
com o discurso criminológico homogêneo da mídia. O especialista
complementa e legitima a informação, principalmente quando suas
ideias não são a notícia. É a figura do argumento de autoridade17.
Os relatos diários das narrativas delitivas não são imparciais e
tampouco meramente descritivos. Vêm à tona já em formato de
acusação - por vezes mais severas que a própria acusação formal, pois
ausentes quaisquer possibilidades de defesa - e é marcada por um tom
moralizante e maniqueísta: nós contra eles, cidadãos de bem contra
delinquentes, o bem contra o mal.1819 Ocorre nesse meio a (nem sempre
mascarada) estigmatização, onde enquadram-se indivíduos e grupos em
um perfil estereótipo delinquente. A identificação de sinais - e quanto

<http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf>. Acesso em
09/02/2017. p. 6-7.
17
BATISTA. Ibidem, p. 9.
18
BATISTA. Ibidem, p. 14.
19
Ainda, sobre a violência dos bons: "Marconi: Entre o cidadão de bem e o bandido,
nós todos estamos ao lado do cidadão de bem", In: Jornal Opção, 06/04/2016.
Disponível em <http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/marconi-entre-o-
cidadao-de-bem-e-o-bandido-nos-todos-estamos-ao-lado-do-cidadao-de-bem-
63018/>. Acesso em 15/02/2017.
203

mais visíveis melhor - atua na vinculação da pessoa a uma determinada


condição, a de perigosa20.
A ideia do “bandido”, do indivíduo perigoso, dá base para a
criação do inimigo no imaginário social. Eugenio Raúl Zaffaroni
compreende que essa conceituação surge da separação entre cidadãos
(pessoas) e inimigos (não-pessoas), onde este último possuirá um
tratamento diferenciado por parte do Estado, em virtude de sua suposta
periculosidade. Ao retirar-lhe a condição de pessoa, coisifica-se a
pessoa e permite-se toda espécie de neutralização21.
A tendência dentro desse espectro, embora não seja uma norma
rígida, seja que a conduta dos “cidadãos de bem” seja via de regra
compreendida como positiva, enquanto a conduta dos “inimigos”, em
regra de modo negativo. O paradoxo se instala quando se percebe que
existem comportamentos destrutivos e que causam danos há inúmeras
pessoas que não são vistos como movimentos violentos, como é o caso
das demissões em massa, do uso de métodos exploratórios no mercado
de trabalho, etc., em detrimento de condutas menos danosas, mas que
são duramente criminalizadas, como o vandalismo ou o furto.
Esse tratamento diferenciado se faz vividamente presente nas
agências de comunicação, através de uma seletividade que opera
através de filtros de raça, classe e outros marcadores sociais.22 Segundo

20
FOSCARINI, Léia Tatiana. O discurso midiático nos meandros da criminalização:
contemporaneidade e movimentos sociais. 2008. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33559-43484-1-PB.pdf>.
Acesso em 15/02/2017. p. 4.
21
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2007. p. 18.
22
Impossível não trazer o clássico exemplo da discrepância entre duas manchetes do
mesmo jornal de grande circulação nacional: "Polícia prende jovens de classe média
com 300 kg de maconha no Rio", In: G1, 27/03/2015. Disponível em
<http://glo.bo/1NhRaoR>. Acesso em 15/02/2017; e "Polícia prende traficante com
204

Melo, “crimes de ordem tributária, por exemplo, estão nas páginas de


economia ou política dos jornais, enquanto os crimes violentos ocupam
as páginas policiais”23, quando não toda a primeira página. Notícias
relacionadas a violência geralmente aparecem vinculadas aos setores
mais pobres da sociedade. Como já foi exaustivamente exposto pelas
edições do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o jovem pobre,
negro e da periferia é a vítima número um, seja da prisão, seja da morte
violenta, realizando a mídia um acompanhamento quase em tempo real,
como um reality show, distante de qualquer postura crítica24.
Léia Tatiana Foscarini escolhe muito bem as palavras quando
afirma que a mídia não expõe simplesmente um fato, mas que "vende a
notícia, cuidadosamente recortada e selecionada, exibindo um discurso
parcial, dotado de pré-conceitos e de tratamentos diferenciados”25.
Uma mídia que detenha um poder tal que, além de funcionar da maneira
exposta, ainda seja capaz de pautar a atividade das agências executivas
do próprio sistema penal26, merece, no mínimo, atenção redobrada.

 DO MEDO DO CRIME AO POPULISMO PUNITIVO


No Brasil, a utilização da concepção abrangente de educação,
voltada para o desenvolvimento da pessoa humana e para o exercício

10 quilos de maconha em Fortaleza", In: G1, 17/03/2015. Disponível em


<http://glo.bo/1MIwOmK>. Acesso em 15/02/2017.
23
MELO. Criminologia e teorias da comunicação. Ibidem. p. 168.
24
Sobre tratamento diverso para diferentes pessoas em diferentes classes sociais: "No
aeroporto de NY, Eike é parado por brasileiros para selfies", In: O Globo, 30/01/2017.
Disponível em <http://oglobo.globo.com/brasil/no-aeroporto-de-ny-eike-parado-por-
brasileiros-para-selfies-20841665>. Acesso em 15/02/2017; enquanto, por outro lado:
"Assaltante é linchado após arrombar casa em Caruaru", In: Folha de Caruaru,
16/12/2016. Disponível em: <http://www.folhadecaruaru.com.br/assaltante-e-
linchado-apos-arrombar-casa-em-caruaru/>. Acesso em 15/02/2017.
25
FOSCARINI. Ibidem, p. 11.
26
BATISTA. Ibidem, p. 13.
205

da cidadania, garantiu com que a Constituição da República


prescrevesse que os conteúdos das programações dos meios de
comunicação social devem atender às finalidades educativas, artísticas,
culturais e informativas27. O radio e a televisão, por constituírem formas
de serviços públicos, devem se submeter à regulação adequada,
cumprindo com as devidas obrigações, tal como o atendimento ao fim
educacional. De forma que, quando se fala da importância da regulação
do setor de comunicação, não se trata de censura, mas de resultado do
processo de juridicização da atividade de radiofusão28, onde se busca a
proteção dos bens e valores, difusos e coletivos, mais vulneráveis.
O comprometimento finalístico com delimitados valores
públicos e sociais estabelece existência de compatibilidade entre o
exercício das liberdades e a obtenção desses fins. No entanto, os
grandes empresários do setor de radiofusão, preocupados apenas com
seus interesses, se mostram contrários a qualquer tipo de regulação ou
de controle29, alegando “defesa da liberdade de expressão”, utilizada
muitas vezes para mascarar atuações arbitrárias que entram em choque
com outros direitos, tais como o direito à honra e à intimidade.
No fenômeno da indústria cultural30, os responsáveis pela
cultura de massa oferecem produtos de baixa qualidade em razão dos
seus interesses particulares baseados exclusivamente no lucro, de

27
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em 07/02/2017.
28
ANDRÉA, Fernando de. O protagonismo dos meios de comunicação social:
algumas reflexões. In: Discursos sediciosos - crime, direito e sociedade. Rio de
Janeiro: Revan, Ano 19, n° 21/22, p. 464.
29
ANDRÉA. Idem.
30
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1984. p. 57.
206

maneira que o sucesso está nas práticas de manipulação adotadas, estas


que garantem altos índices de audiência. Pensar em espectador como
consumidor é ignorar inúmeras demandas, motivo pelo qual se faz
necessária a regulação do setor, a fim de impulsionar o
desenvolvimento de uma cidadania social, política e cultural31. E,
também, no que tange ao pluralismo e à participação de grupos
minoritários e excluídos, há que se perceber o problema da
concentração vertical e de seus reflexos nocivos32.
Tratando da necessidade de regulação dos meios de
comunicação, há que se falar que a política cultural tem relação
estratégica com as políticas de educação, comunicação social e mesmo
com as de segurança pública, sendo essas relações elementos essenciais
para o processo de transformação social. No entanto,
especificadamente, no que tange à relação com a segurança pública,
apresenta-se um problema denominado de “ideologia do repressivismo
saneador”33, questão propagada pela mídia que, mediante a
espetacularização, dissemina o medo na sociedade34, fazendo com que
a criminalidade apareça como o problema social mais relevante.
É o discurso punitivo, difundido pelos meios de comunicação
em massa, que busca o aumento das penas e o cerceamento das
garantias fundamentais, colocando a criminalidade como maior mal a
ser combatido. Frisa-se, aqui, a importância do que Nilo Batista35

31
ANDRÉA. Ibidem, p. 465.
32
ANDRÉA. Ibidem, p. 467.
33
LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal – fundamentos de
instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 15.
34
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: Comentários sobre a Sociedade do
Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. p. 28.
35
BATISTA. Ibidem. p. 3.
207

denominou de “novo credo criminológico da mídia”, cujo núcleo reside


na ideia de glorificação da pena. A vinculação entre mídia e o sistema
penal apresenta uma disputa desigual entre o discurso criminológico
acadêmico e o discurso criminológico midiático, de caráter
hegemônico36, haja vista que este demonstra ter as melhores soluções
para o exercício do controle penal dos contingentes humanos, por ele
marginalizados37.
Os meios de comunicação atuam como agentes políticos,
idôneos para moldar a opinião pública. Noticiam fatos a partir de
formas próprias de percepção do real, defendendo um Estado Penal
máximo, em detrimento do Estado social, garantindo uma “onda
punitiva” que por onde passa leva as consequências terríveis da miséria
e persegue os inconvenientes sociais38. E, longe de apresentar qualquer
hipótese de redução ou alteração das condições que atingem a
população marginalizada, toda solução é depositada na prisão, ali aonde
irá se conter, controlar e confinar os elementos considerados
perigosos39.
Temos na mídia fontes de percepção do delito e dos “caminhos
necessários para solução dos problemas da segurança pública”, sendo
essas informações, muitas vezes, transmitidas de forma abstrata e
confusa. Nessas sociedades da informação, há a transformação de fatos
que ocorrem em âmbitos mais reduzidos da coletividade em

36
ANDRÉA. Ibidem, p. 468.
37
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.
21.
38
SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Neoliberalismo, mídia e movimento de lei e
ordem: rumo ao Estado de Polícia. In: Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Revan,
n° 15/16, 262.
39
ANDRÉA. Ibidem, p. 469.
208

acontecimentos públicos e, a partir desses alarmismos, os cidadãos


adquirem uma dimensão social que dificilmente pode ser construída
sem essas ações midiáticas40.
As indústrias da comunicação surgem como as grandes
mediadoras entre a cidadania e o mundo do delito, no sentido de que
boa parte do que os indivíduos sabem e imaginam do crime é baseado
nas imagens divulgadas na televisão, nas informações radiofônicas e
nos discursos da imprensa escrita41. E, talvez, nem possam ser
consideradas mediadoras, pois são elas que elaboram a mensagem
transmitida. Essa forma de atuação alarmista, insistente e
sensacionalista, mostra o forte papel da mídia na transformação dos
imaginários coletivos da (in)segurança42 e na ampliação da cultura do
medo. Precisando entender que o discurso do medo produz a imagem
necessária do terror social, e é transferido de forma tão natural ao senso
comum que se torna mais espontânea a exigência de uma ação estatal
cada vez mais disciplinadora e emergencial, típica dos estados
totalitários43.
Baierl44 entende que na nossa sociedade e na história da
humanidade, o medo é usado como instrumento de manipulação,
tornando as pessoas escravas e dominadas por determinados grupos,
indivíduos ou situações. Assim, o poder de manipular as pessoas através

40
BARATA, Francesc. A midiatização do direito penal. In: Discursos sediciosos -
crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, n° 21/22, p. 471.
41
BARATA. Ibidem, p. 476.
42
BARATA. Idem.
43
SOBRINHO, Sergio Francisco Carlos Graziano. Reflexões sobre os fundamentos
de uma sociedade de controle. In: Discursos sediciosos - crime, direito e sociedade.
Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, n° 21/22, p. 333.
44
BAIERL, Luzia Fátima. Medo social: da violência visível ao invisível da violência.
São Paulo: Cortez, 2004. p. 39.
209

do medo não é uma novidade, no entanto, o poder da mídia trouxe


amplitude à essa manipulação45. O medo passou a ser usado de forma
consciente para manipular as forças populares, revelando-se uma
importante ferramenta para se alcançar o consenso na sociedade para o
recrudescimento penal46. Bauman47 traz que esse medo tem caráter
difuso, pois eles

podem vazar de qualquer canto ou fresta de nossos lares


e de nosso planeta. Das ruas escuras ou de telas luminosas
dos televisores. De nossos quartos e de nossas cozinhas.
De nossos locais de trabalho e do metrô que tomamos
para ir e voltar. De pessoas que encontramos e de pessoas
que não conseguimos perceber. De algo que ingerimos e
de algo com o qual nossos corpos entram em contato. Do
que chamamos “natureza” (pronta, como dificilmente
antes em nossa memória, a devastar nossos lares e
empregos e ameaçando destruir nossos corpos com
proliferação de terremotos, inundações, furacões,
deslizamentos, secar e ondas de calor) ou de outras
pessoas (prontas, como dificilmente antes em nossa
memória, a devastar nossos lares e empregos e
ameaçando destruir nossos corpos com a súbita
abundância de atrocidades terroristas, crimes violentos,
agressões sexuais, comida envenenada, água ou ar
poluídos).

O medo sentido e a criação desse pânico social, muitas vezes


pela maximização operada pelos meios de comunicação, criam
condições necessárias para que a população legitime o recrudescimento
penal, aceite a redução de direitos e garantias, e se torne consumidora
dos produtos de segurança. Ressaltando-se que esse recrudescimento é

45
FELETTI, Vanessa Maria. Vende-se segurança: a relação entre o controle penal da
força de trabalho e a transformação do direito social à segurança em mercadoria. Rio
de Janeiro: Revan, 2014. p. 125.
46
FELETTI. Ibidem, p. 126.
47
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 11.
210

voltado para os delitos pelos quais os trabalhadores pobres são mais


perseguidos, já a redução de direitos e garantias é para todos - mas
principalmente para esses indivíduos, pois eles são o principal alvo do
controle penal e os que são mais criminalizados pela mídia 48. O
consumo dos produtos de segurança, dessa forma, é consequência do
medo de ser vítima de um crime.
Essa cultura de propagar o medo e as pulsões repressivas
presentes na sociedade, foi justamente chamada de “populismo penal”,
expressão que caracteriza

qualquer estratégia referente ao tema da segurança


voltada para obter demagogicamente o consenso popular,
respondendo ao medo da criminalidade com um uso
conjuntural do direito penal tão duramente repressivo e
antigarantista quando ineficaz a respeito das finalidades
declaradas de prevenção49.

As emoções coletivas passaram a ser um fator essencial nas


políticas criminais, um fenômeno semelhante à sua inclusão no discurso
político. Não é por acaso que o tema da (in)segurança vem ganhando
amplo destaque nos debates eleitorais50. Apoiada nos alarmismos
midiáticos, fortalece-se uma criminologia que comercializa “com
imagens, arquétipos e ansiedades, em lugar de estar fundamentada em
uma análise meticulosa e nos descobrimentos da investigação
científica.”51. E é assim que muitas medidas abrangidas pelo populismo

48
FELETTI. Ibidem, p. 127.
49
SALAS, Denis apud FERRAJOLI, Luigi. Democracia e medo. Discursos
sediciosos - crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, nº 21/22. p.
118.
50
BARATA. Ibidem, p. 485.
51
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad
contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2005. p. 93-94.
211

punitivo são colocadas em prática depois de uma cobertura midiática


intensiva, quando não sensacionalista, a respeito de determinados
problemas sociais52.
Amaral53 ressalta que “a paixão por punir, alimentada pelo
populismo penal, é imposta, sobretudo, pelo afeto. Quebra-se qualquer
olhar compreensível quanto ao acusado, na medida em que a
indignação coletiva relega este olhar ao mal personificado”. A
mudança de sentido do papel do direito penal e do conceito de
segurança, somada ao alarme social, à dramatização do medo e ao
populismo punitivo, formam a palavra de ordem “tolerância zero”, esta
que é muito admirada, no entanto, nos custa a transformação das
sociedades em regimes disciplinares, submetidos à vigilância invasiva
e (nem sempre) sutil da polícia54.
É preocupante a verificação de como as mensagens midiáticas
estão se transformando nos melhores aliados das políticas
conservadoras em matéria penal, já que suas informações favorecem a
indignação e é sobre ela que as ações de “tolerância zero” são
legitimadas55. Como afirma Garland, o sentimento que perpassa a
política criminal “é agora, com mais frequência, uma irritação coletiva
e uma exigência moral de retribuição, ao invés do compromisso de
buscar uma solução justa, de caráter social”56. As políticas criminais
estão sendo guiadas pelo discurso midiático de alarmismo e
disseminação da cultura do medo. Há uma grande influência da mídia

52
BARATA. Ibidem, p. 486.
53
AMARAL, Augusto Jobim do e ROSA, Alexandre Morais da. Cultura da punição:
a ostentação do horror. 2º ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 71.
54
FERRAJOLI. Ibidem, p. 124-125.
55
BARATA. Ibidem, p. 487.
56
GARLAND. Ibidem, p. 45.
212

na agenda penal, isto fica mais claro quando constatamos que os meios
de comunicação estão atuando como o ator principal nas dinâmicas
atuais das políticas criminais57. Sem a mídia, restaria uma grande
dificuldade de compreender o auge do populismo punitivo e a
consolidação do Estado Penal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões, dentro das perspectivas aqui apontadas,


apresentaram os profundos laços existentes entre os meios de
comunicação social e as políticas populistas de sustentação do medo,
estas que são inúteis, restringem liberdades e enfraquecem a luta por
uma sociedade justa e solidária. O medo propagado consegue romper
relações sociais, alimenta tensões, gera ódios e aumenta o desejo de
vingança, envenenando a população, a fim de garantir um bom espaço
para a cultura punitiva que ameaça a democracia.
Compreendemos que os alarmismos midiáticos se tornam
alarmismos sociais quando a mídia consegue, através de seu discurso
desproporcional, insistente e sensacionalista, atingir a emoção pública
e ser determinante para a formação da opinião dos cidadãos. E, assim,
os meios de comunicação deixam de ser agentes de transmissão de
informações, para se transformarem em instrumento de incentivo e
suporte do populismo punitivo.
Contestar esses processos é desenvolver novas formas de
enxergar o outro e a justiça. O agora urge pela regulação da mídia, por
novas formas de solidariedade e pela defesa da luta contra as políticas

57
BARATA. Ibidem, p. 487.
213

populistas de punição. Que o caminho seja de liberdades, igualdades e


pluralidade.

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216

FACÇÕES E MARAS: ANÁLISE COMPARATIVA


DA CONSTITUIÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES
CRIMINOSAS

Patrícia Martins Saraiva1

INTRODUÇÃO

A falta de uma política de Estado, a segurança pública e ao


sistema carcerário, somado à ausência de políticas públicas efetivas que
atendam a sociedade, criou um panorama de exceção permanente (que
passou a ser regra), permitiu o surgimento e o fortalecimento de grupos
organizados dentro das prisões. Estes grupos, que em sua gênese, eram
voltados à defesa dos seus integrantes diante da violência promovida
pelo Estado, hoje são voltados à prática de crimes, notadamente o
tráfico de drogas.

Partindo deste quadro de “ausência” do Estado, o presente artigo


visa demonstrar como se dá o fenômeno das facções no sistema
prisional tomando como “Os Manos”; “Os Bala na Cara”; “V7” em
Porto Alegre, do PCC em São Paulo, Comando Vermelho no Rio de
Janeiro e das Maras na América Central, através de uma análise
comparativa destas organizações e das teorias criminológicas que

1
Advogada, especialista em Direito Público – FMP/RS; Integrante dos grupos de
Criminologia OAB/RS, Garantias processuais penais FMP; Cátedra Sérgio Vieira de
Mello UFRGS e Rede de Justiça, Direitos Humanos e Segurança/RS.
217

buscam justificar a existência e conformação dos grupos criminosos


através da Subcultura Delinquente e Anomia.

Através do estudo dos diferentes grupos criminosos, destacar-


se- á os elementos que demonstram suas características comuns, bem
como suas diferenças culturais, sua estrutura de funcionamento, a
relação entre os grupos distintos e entre grupos adversários, a dinâmica
no cárcere, as redes de dominação e, por fim, as práticas de mercado.

1 TEORIAS JUSTIFICADORAS DA FORMAÇÃO DE


ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS

O primeiro desafio seria conceituar o objeto do presente estudo,


se organização ou facção criminosa. Podemos extrair o conceito de
organização criminosa do artigo 1º 2 da Lei 12.850/13. Por outro lado,
o termo facção encontra-se mais adequado ao proposto, conforme
podemos destacar da lição de Bruno Shimizu3:

2
A definição de facção/crime organizado sofre críticas, para Zaffaroni não existe um
limite claro entre o que pode ser considerado legal ou ilegal, sendo a sua tentativa de
categorização um fracasso, para Maria Lúcia Karam a conceituação científica de
crime organizado somente se presta para a criação de leis de exceção e para os adeptos
da labelling aproach a adoção do termo facção é criadora do desvio. Discussão esta
que foi resolvida pelos nossos ilustres legisladores com a edição da lei nº 12.850/13,
que traz no seu art.1º o conceito de organização criminosa e que consiste em:
Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas
estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que
informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer
natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam
superiores a 4(quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
3
SHIMIZU, Bruno. Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas: um estudo
criminológico à luz da psicologia das massas. Disponível em:
218

“Aduz-se, assim, que facções criminosas sejam grupos de


pessoas em que se verificam relações de solidariedade e
gregarismo, que surgiram nos presídios brasileiros e
foram fundados prioritariamente sob o lema da defesa
dos interesses da comunidade carcerária, tendo a prática
de atos tipificados em lei como crimes como um dos seus
modos de atuação dentro e fora do presídio”.

A complexidade do fenômeno da criminalidade de grupo


ultrapassa a simples definição trazida pelo legislador, para encontrar
seu fundamento nas escolas sociológicas. O estudo do fenômeno das
facções se dará a partir de uma perspectiva sociológica; portanto, foi
abandonado o paradigma individualista, biologicista, onde o delito era
estudado a partir da conduta individual do sujeito para o paradigma
sociológico, tendo como objeto à análise dos grupos sociais. Conforme
se verifica da lição de Carlos Alberto Elbert4:

“Na interpretação sociológica, de modo diferente,


interessa o funcionamento dos grupos sociais e sua
relação com as normas, entendendo que as motivações
individuais não são somente psíquicas, senão que, em
grande medida, resultam de processos normativos de
aprendizagem.”

A sociologia criminal5, tem por objeto a relação entre


indivíduos e sociedade, uma vez que aqueles acabam agrupando-se pela
identidade de valores formando assim os grupos. Para tanto, faz-se
necessário a compreensão do fenômeno das facções criminosas e

<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-31072012-092234/pt-
br.php.>Acesso: 20/11/2016.p. 71
4
ELBERT, Carlos Alberto. Novo Manual Básico de Criminologia. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2009. p.155.
5
Destaca-se o “surgimento” da Sociologia criminal nos Estados Unidos (final século
XIX e inicio do XX) devido a crescente industrialização o que demandou um grande
fluxo migratório de mão de obra, o que gerou a concentração destes nos grandes
centros como Detroit e Chicago, onde formavam guetos com idioma, costumes e
valores distintos da classe dominante. ANITUA, Gabriel. História dos pensamentos
criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
219

Maras, através da Escola de Chicago e Teoria da Subcultura


Delinquente.

1.1 ESCOLA DE CHICAGO

A Escola de Chicago6, que também é conhecida como “Teoria


Ecológica”, “Ecologia Social”, “Sociologia Urbana”, ou “Teoria da
Desorganização Social”, tem seu objeto de estudo centralizado nas
condições de vida dos seres humanos nos centros urbanos e de como
estes podem influenciar ou determinar o fenômeno desviante.

Segundo Carlos Alberto Elbert7:

“Sua atenção se dirigiu, então, aos habitantes de setores


pobres ou com pouca integração social; daí que se tenham
concentrado, no estudo de gangues juvenis, grupos
recém- assentados, grupos ligados à prostituição ou ao
jogo, guetos raciais, famílias pobres, imigrantes de
diversas procedências e cultura, delinquentes adultos,
pobres etc. Dentre esses temas, o que mais atenção
mereceu por parte dos pesquisadores foi o de gangues e
grupos juvenis (...)”.

A Escola surgiu a partir de estudos empíricos baseados no


crescimento desorganizado da cidade, as crescentes migrações do
campo e do velho continente, formando agrupamentos em locais
afastados do centro, ou seja, bairros carentes de saneamento,
organização, iluminação e onde o controle social é mais elástico,

6
Escola de Chicago surgiu entre os anos de 1915 e 1940 a partir de Estudos feitos na
Universidade de Chicago, sendo desenvolvida por Robert Park, Ernest Burgess e
Mckenzie. Como explica Vera Malaguti, Estes trabalhos de campo sobre grupos
sociais específicos, que não eram hegemônicos na sociedade estadunidense,
revelavam que havia subculturas que produziam comportamentos considerados
marginais. BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à Criminologia Brasileira.
2º Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.p. 68.
7
ELBERT, 2009.p. 159.
220

portanto, esta mobilidade, não permite o exercício efetivo do controle


social. Para Gabriel Ignacio Anitua8, a “Escola de Chicago dedicou-se
principalmente a estudar a desorganização social dessas outras áreas
dentro das cidades, para tentar achar soluções para essa desorganização,
ao mesmo tempo social e individual”.

Destaca-se, o estudo feito a partir de determinados grupos


sociais, uma vez que “(...) muitos desses comportamentos estavam
adaptados às normas de subculturas de pequenas comunidades que
toleravam, estimulavam ou recompensavam esses comportamentos.” 9
Surgiu a pesquisa de Frederick Thrasher, intitulada O bando10 que “(...)
seria o lugar no qual os jovens encontrariam afeto, reconhecimento e
lealdade, na falta de outro tipo de instância de controle.”11

A Escola de Chicago contribuiu para a criminologia, na


medida em que tomou, através de uma análise empírica, como objeto
de pesquisa as condições impostas pela cidade ao indivíduo que
propiciam uma maior tendência a criminalidade. A pesquisa, no
entanto, tinha como objeto apenas um grupo específico, ou seja, os
pobres, os marginalizados das zonas periféricas da cidade. Identificava,
portanto, a criminalidade com uma determinada localização geográfica
da cidade.

8
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de
Janeiro: Revan, 2008. p. 425.
9
ANITUA, 2008.p. 427.
10
Thrasher realizou uma pesquisa de campo com 25 mil membros de cerca de 1300
bandos da cidade de Chicago. Traçou um quadro que inicia com amizades de infância
e sua evolução para grupos delinquentes. Thrasher concluiu pela existência de 4 tipos
de bandos o difuso, solidificado, convencional e o estritamente criminoso. ANITUA,
2008.p. 427.
11
ANITUA, 2008.p.427.
221

1.2 TEORIA DA SUBCULTURA DELINQUENTE

A teoria da subcultura delinquente é a que melhor se debruça


sobre o estudo da criminalidade de grupo, seu mais notório
representante Albert Cohen, através da obra “Delinquent Boys: The
Culture of the Gang” fez o estudo das várias gangues juvenis
delinquentes e concluiu que “(...) seus integrantes se mantinham coesos
por valores e crenças próprios, que se geravam com o trato entre jovens
situados em circunstâncias similares.”12 Cohen rechaça a explicação da
criminalidade destes grupos pelo viés psicológico, entendendo que ela
se dá, também, pelo contato com modelos delinquentes. Na verdade, o
autor buscou uma síntese entre a teoria da anomia e da associação
diferencial, para explicar o fenômeno das subculturas, uma vez que: (...)
juntas sim, elas têm capacidade explicativa: a pressão social explica o
bloqueio da satisfação de alguns indivíduos e a associação com outros
na mesma situação explica como esse bloqueio é solucionado”.13

A teoria da subcultura nos indica que existe uma cultura


dominante e outra, em tese, inferior, marginal ou periférica a qual os
indivíduos que não se adaptam a primeira ou não conseguem alcançá-
la, se agrupam e formam pequenas redes, associações invertendo os
valores propostos pela classe dominante. Segundo Gabriel Anitua14:
“Conforma-se assim uma subcultura. Quando essa subcultura valoriza
ou dá desculpas para aquelas condutas, que para cultura geral, são
delitivas, estamos diante de uma subcultura criminosa.”

12
ELBERT, 2009. p. 167
13
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de
Janeiro: Revan, 2008. p.500.
14
ANITUA, 2008.p. 498.
222

“Isso significava que tais grupos geravam seus próprios


valores, apartando-se dos hegemônicos, outorgando-se
um status próprio e concebendo seu desvio como
meritório, ainda que estivesse contrário aos valores
dominantes que, para Cohen, eram sempre os da classe
média. De tal modo, os jovens das classes baixas,
sentindo-se rechaçados e inferiores em relação aos das
classes médias e altas, reacionavam apartando-se dos
padrões de comportamento social dessas classes para
adaptar-se de outra maneira à vida comum. Em
consequência, a eleição de uma nova variante cultural foi
vista como um processo psicológico de formação reativa
(processo denominado em outras teorias como
“mecanismos de neutralização”) para compensar
angústias e frustrações, logrando algum grau de estima
social”.15

Cohen, inclusive aponta três possíveis caminhos para esta falta


de reconhecimento pela cultura geral: “Ou esforça-se, apesar de tudo,
para obter um reconhecimento, sendo dedicado e buscando a
‘superação’. Ou renúncia às aspirações de sucesso e assume o papel de
‘bom menino humilde de bairro’. Ou se refugia no caminho da
subcultura criminosa.”16

Estes “mecanismos de neutralização”17 são descritos por


Sykes e Matza, onde “os jovens delinquentes não negam nem invertem
os valores dominantes, e sim aprendem a neutralizá-los”18. Este foi o
contraponto ao pensamento de Cohen, para os autores acima “a
subcultura criminosa não tem um sistema de valores opostos aos da

15
ELBERT, 2009.p. 167-68.
16
ANITUA, 2008.p. 502.
17
Zaffaroni traz os apontamentos feitos por Sykes e Matza a respeito dos cinco tipos
de técnicas de neutralização como negação da responsabilidade “são as circunstâncias
que me fazem assim”, “a sociedade me fez assim”; negação do dano “havia ofendido
minha mãe”, “têm muito mais grana”; negação da vítima “foi a vítima que me
agrediu”, “são todos negros”, condena os condenadores “ a policia é corrupta”, “juízes
são hipócritas” e por fim apelo a lealdades superiores “ não posso faltar com os
amigos”. ZAFFARONI, 2013. p.125.
18
ZAFFARONI, 2013.p.124.
223

cultura na qual a lei se ampara, mas sim que se acha inserida nela”.19
Através da introjeção destas técnicas é que o indivíduo torna-se
delinquente.

No caso em estudo, merece destaque a questão das


“subculturas carcerárias”20 formadas dentro das cadeias traduzida
através das suas regras internas, que foi objeto de estudo de Donald
Clemmer21, que, ao aplicar as teorias sociológicas funcionalistas no
sistema carcerário, pode identificar dois meios de vida: o oficial e o não
oficial, o primeiro é representado pelas normas legais, que ditam a
ordem/disciplina na prisão (a exemplo da nossa lei de execuções
penais), e o segundo representado pelos códigos criados pelos presos,
que regem-se pelas suas próprias leis e aplicando suas próprias sanções,
criando assim uma subcultura criminosa.

19
ANITUA, 2008.p. 506.
20
Expressão trazida na monografia de SHIMIZU, BRUNO. Solidariedade e
gregarismo nas facções criminosas: um estudo criminológico À luz da psicologia das
massas. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-
31072012-092234/pt-br.php.>Acesso: 20/11/2016.p 62
21
Na sua obra de 1940 denominada “A comunidade da prisão”, o autor afirma que o
indivíduo que quiser sobreviver na prisão, deve adaptar-se e integrar-se a estes
códigos da subcultura carcerária. Assim, ele adotara, ou será adotado por um grupo,
seguirá seu modo de falar, vestir e conduzir-se na cadeias, e principalmente o papel
que representa dentro desta organização. ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos
pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
224

2 O FENÔMENO DAS MARAS E FACÇÕES: ANÁLISE


COMPARATIVA
As Maras, ou fenômeno Mareiro, é bastante conhecido na
América Central e Norte22. Atribui-se seu surgimento as políticas
migratórias23 e de combate ao crime24 norte-americanas. O ponto de
partida para compreender o fenômeno, foi a obra de Thrasher, “The
Gang”, um dos representantes da Escola de Chicago, que trabalhou a
formação de grupos de jovens ligados a criminalidade.

Usa-se Mara25 para identificar o agrupamento e Marero o


indivíduo integrante deste. Sua origem reside nas gangues urbanas

22
As Maras se desenvolveram em El-Savador, Honduras, Guatemala, Estados
Unidos, México, Canadá e até na Europa. Em Honduras, segundo dados de 2013,
havia cerca de 36 mil “pandilleros”. A atuação das Maras é mais proeminente em El
Salvador, Honduras e Guatemala. COMISIÓN ESPAÑOLA DE AYUDA AL
REFUGIADO. Maras en Centroamérica y México (Costa Rica, Guatemala,
Honduras, Nicaragua, Panamá, EL Salvador. Disponível em:< http://cear.es/wp-
content/uploads/2013/10/CENTROAMERICA.-2013.-Maras.pdf acesso em:
01/03/2016.
23
Associação de criminalidade e migração não é um fenômeno novo em nossa
sociedade. Sempre há a busca do “bode expiatório”. O imigrante sempre é visto com
desconfiança, como uma ameaça externa, um outsider. Nas palavras de Zygmunt
Bauman: Os refugiado são refugo humano, sem função útil para desempenharem na
terra a que chegaram e na qual permanecerão temporariamente, nem a intenção ou
perspectiva realista de serem assimilados e anexados no corpo social.” BAUMAN,
Zygmunt.Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.p. 99.
24
No combate ao crime os Estados Unidos adotou apolítica do “Three strikes and
you’re out”. Segundo Zaffaroni esse nome surgiu de uma jogada do beisebol, onde na
terceira vez que o rebater não devolver o arremesso do adversário, ele está fora.
Reforça o autor que estas leis obrigam o judiciário a aplicar de forma impositiva
prisão perpétua aqueles condenados por três ou mais delitos entendidos como graves.
Neste conjunto de leis, até a família é excluída da convivência social, e ocorre o
cancelamento dos benefícios sociais. ZAFFARAONI, Eugenio Raúl. A questão
criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
25
O nome Mara na verdade tem origem nas formigas Marabuntas, conhecidas como
carnívoras e migratórias, que por onde passam deixam um rastro de destruição, graças
a sua coesão e trabalho em grupo feito de forma cooperativa. Em El Salvador é usado
o termo Mara para designar “gente alborotadora”. COMISIÓN ESPAÑOLA DE
AYUDA AL REFUGIADO. Maras en Centroamérica y México (Costa Rica,
225

formadas nos guetos latino-americanos presente nos grandes centros


urbanos como Los Angeles e New York, decorrente da migração em
massa em busca do “American Dream” principalmente na década de
1980. Essa migração se deu devido a questões como escassez de terra,
empregos, oportunidades promovida pelos constantes golpes de Estado
e guerras civis.

Nas cidades americanas, na tentativa de uma identidade e


proteção devido à realidade violenta imposta por outros grupos como a
Máfia Mexicana, surgiu a 18th Street Gang ou Barrio 18 e na América
Central conhecida como Mara 18. Em oposição a este grupo, foi criada
a Mara Salvatrucha, como refere Ney Fayet e Martha Ferreira26:

“(...) na década de 1980, em uma realidade violenta e


segmentada, o grande contingente de imigrantes
salvadorenhos recém–chegados encontrou-se marginado
dentro do próprio contexto da comunidade hispânico
local. (...) nasce a Mara Salvatrucha, grupo que
proporciona identidade e solidariedade para seus
membros como contraponto à fragilidade e ao
deslocamento de sua condição de recente imigração”.

As Maras adquiriram o caráter transnacional a partir da


deportação em massa27 de imigrantes ilegais promovida nos Estados
Unidos, decorrente da política de tolerância zero.

As Maras, seja em decorrência do recrudescimento da sua


repressão pelo Estado ou pela sua necessidade de sobrevivência

Guatemala, Honduras, Nicaragua, Panamá, EL Salvador. Disponível em:<


http://cear.es/wp-content/uploads/2013/10/CENTROAMERICA.-2013.-Maras.pdf
acesso em: 01/03/2016.
26
JÚNIOR, Ney Fayet; FERREIRA, Martha da Costa. O fenômeno Marero na
América Central: uma abordagem criminológica dos seus pressupostos existenciais.
Porto Alegre: Núria Fabris, 2012.p. 33-34.
27
Colocar a politica de migração dos EUA.
226

oportunizou “(...) o surgimento gradual de uma estrutura hierárquica


verticalizada, ausente nos primórdios do movimento. Também o
encarceramento ofereceu as condições de possibilidade para as
mudanças que tornaram os grupos mais coesos.”28 Sua organização, por
ser vertical, é dividida em: a) Direção geral ou “jenga”; b) “Clicas”; c)
Veteranos ou membros da base dura; d) Novatos; e) Aspirantes,
formando assim subgrupos dentro da organização.

As pandillas, são formadas por indivíduos na maioria


homens29, com faixa etária de 5 a 35 anos, recrutados nas camadas mais
pobres da sociedade, nelas o marero encontra proteção,
companheirismo e apoio financeiro.

Atribui-se a uma grande onda de “desplaziamento forzado” na


América Central (Guatemala, El Salvador, Honduras) ao fenômeno das
Maras, narcotráfico e crime organizado transnacional. As solicitações
de refúgio e asilo30 se dão diante da tentativa das comunidades em

28
FAYET JÚNIOR, p. 53
29
O papel das mulheres nas Maras reproduz o mesmo papel da mulher na sociedade,
ou seja, passam por discriminação, tratamento desigual e possuem um papel
segundário dentro da organização. Seu ingresso na pandilla, passa por rituais de
ingresso, que variam do rito do brinco (sessão de espancamento que dura cerca de
vinte segundos) ao estupro coletivo pelos membros do grupo. Na Mara Salvatrucha,
seu ingresso é proibido. Na maioria das pandillas elas representam apenas a parceira
sexual do Marero, em alguns casos, excepcionais há clickas formadas por mulheres.
Maras en Centroamérica y México (Costa Rica, Guatemala, Honduras, Nicaragua,
Panamá, EL Salvador. Disponível em:< http://cear.es/wp-
content/uploads/2013/10/CENTROAMERICA.-2013.-Maras.pdf acesso em:
01/03/2016.
30
Segundo dados do ACNUR do ano de 2012, cerca de 1.600 Salvadorenhos
solicitaram asilo e 8.200 conseguiram o “status de refugiado”. Destaca ainda que cerca
de 3.735 pessoas dos países conhecidos por “triângulo norte” (Guatemala, salvador,
Honduras) solicitaram asilo e que 17.129 saíram com status de refugiado, os países
que mais receberam pessoas são Estados Unidos, Canadá, México, Nicarágua, Costa
Rica e Panamá. Conforme pode-se extrair de: ACNUR: las maras son em El Salvador
La principal causa de “desplaziamento forzado”. Disponível
227

evitarem “que se cumplan amenazas de muerte; para impedir que lós


hijos sean reclutados por las pandilas o para librarse de las extorsiones
de los pandileros.”31

Em que pese seu caráter transnacional, complexidade


organizativa, modo de cometimento de delitos e que conflitos entre as
pandillas sejam mortais a exemplo do que ocorre com as organizações
criminosas, não são iguais a elas, apenas possuem pontos de
identificação, deste modo:

“Actualmente en El Salvador, y probablemente en el


resto de los países de la región, existe una relación de
intersección entre el crimen organizado, la delincuencia
común y las actividades delincuenciales de las maras; es
decir, son tres fenómenos distintos que tienen existencia
propia, pero con espacios de empalme entre ellos.32”

Podemos afirmar que as Maras “actualmente configuran una


mezcla de fenómeno social con derivaciones delictivas”33, devendo seu
enfrentamento se dar através de um enfrentamento tanto social, com
políticas públicas de resgate destes integrantes, bem como uma
intervenção policial com enfoque mais social.34

No tocante as facções, formadas dentro do nosso sistema


carcerário, em âmbito nacional, podemos destacar: Comando

em:http://elfaro.net/es/201403/internacionales/?tag=Migraci%C3%B3n. Acesso em:


23/02/2016.
31
ACNUR: las maras son em El Salvador La principal causa de “desplaziamento
forzado”. Disponível
em:<http://elfaro.net/es/201403/internacionales/?tag=Migraci%C3%B3n.> Acesso
em: 23/02/2016
32
VENTURA, Jaime Martínez. Maras em El Salvador y su relación com el crimen
organizado transnacional. Disponível em: <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/la-
seguridad/08184.pdf>. Acesso em: 20/12/16. p.6
33
VENTURA, 2010 p.6.
34
VENTURA, 2010.p.3.
228

Vermelho-CV35 e o Primeiro Comando da Capital - PCC, sendo que


estes possuem ramificações, ou melhor, “franquias” em outros Estados
da Federação36, além de outras facções de âmbito regional. Sendo que,
no Rio Grande do Sul, destacamos a ausência de comando do PCC e até
uma certa negativa das lideranças em aderir ao grupo.

As facções surgiram, em um primeiro momento, com a


finalidade de reagir as violações e violências do sistema37, um exemplo
é o primeiro comando da capital – PCC - surgido em São Paulo, no
presídio conhecido como “Piranhão”, chamado pelos detentos de
“campo de concentração”. Não foi por acaso que o PCC surgiu um ano
após o massacre do Carandiru38 em 1992. Nas palavras de Guaracy

35
O Comando vermelho-CV, surgiu em 1979, no presídio Cândido Mendes no rio de
Janeiro, através do convívio entre presos comuns e presos políticos que combatiam o
regime militar. Um de seus principais fundadores era conhecido como o “Professor”,
seu crescimento entre final doas anos 70 e meados dos anos 80 se deu através do
tráfico de drogas. Seu campo de atuação é variado (tráfico de drogas, armas, assalto a
banco, sequestros). O CV tem sua “sede” carcerária no presídio Bangu 1, bem como
exerce controle em favelas cariocas. O crescimento exagerado e conflitos internos
levou a divisão do grupo e surgimento de outras facções como PCC, TC (terceiro
comando), ADA (amigos dos amigos) e PCJ (primeiro comando jovem). Hoje seu
principal líder é Fernandinho Beira Mar. FOLHA ONLINE. Organização nasceu do
convívio de grupos de combate ao regime militar. Disponível em:<
http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/traficonorio/faccoes-cv.shtml>.
Acesso: 19/01/2017
36
A partir de 2006, após o Marcola ter assumido o PCC, verificou–se a expansão da
facção em outros Estados como Mato Grosso, Paraná, Florianópolis/SC, onde
ocorreram rebeliões, ataques a postos policiais, agências bancárias, queima de ônibus.
37
Conforme podemos extrair do Estatuto do PCC, que no 13º item afirma: “temos que
permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre
semelhante ou pior ao ocorrido na casa de Detenção em 02 de outubro de 1992 (...)
Porque nós do Comando vamos mudar a pratica carcerária, desumana, cheia de
injustiças, opressão, torturas, massacres nas prisões.” Com isso os presos fundaram o
PCC aproveitando-se do descaso do Estado, das mazelas do sistema prisional e da
cultura do “bandido bom é bandido morto.” Folha Online. Disponível em:<
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u22521.shtml>. Acesso em:
19/01/2017.
38
O massacre do Carandiru ocorreu outubro de 1992 em São Paulo, quando a policia
militar invadiu o presídio para controlar uma rebelião de presos, durante a invasão
229

Mingardi39: “Facção é parte. No caso de São Paulo, o PCC não é parte,


exerce poder hegemônico. (...) diria que dominam ao menos 80% do
sistema prisional paulista.”.

No CV, não há uma liderança única, cada líder comanda uma


área, sua direção funciona como colegiado, onde uma ação que ocorra
fora de sua “jurisdição”, deve ser referendada pelo comando. Neste,
não ocorrem “justiçamentos”, mas um debate exaustivo entre seus
lideres e outros membros, até chegar a um consenso de que não existe
outra alternativa, a não ser a morte através da execução. Segundo
Camila Caldeira Nunes Dias40:

“Sempre que a ocasião favorece, porém, as execuções


comandadas pelo PCC contêm símbolos que marcam e
reforçam o poder da facção criminosa. As rebeliões são
as ocasiões mais favoráveis a esta demonstração de poder
através dos suplícios sobre o corpo dos condenados. A
decapitação é (ou era) uma das marcas do PCC nas
execuções dos membros de outras organizações”.

O PCC comunica-se por códigos41, as questões disciplinares


são resolvidas em “tribunais” com participação de vários integrantes,

foram mortos 111 detentos. O Fato, que expressou toda a banalidade do mal, foi objeto
de livro e filme, sendo que mais recentemente após o 24º dia do aniversário do
massacre o TJSP anulou o julgamento que condenou os 74 policiais, reforçando assim
a lógica do Bandido bom é bandido morto. COUTINHO, Leonardo. A Origem.
Revista Veja, nº40, p.85-86, out. 2016.
39
MARTINS, Rodrigo. O terror à espreita. Revista Carta Capital, nº935, p. 22-15,
jan.2017.
40
DIAS, Camila Caldeira Nunes. Da guerra à gestão: a trajetória do Primeiro
Comando da Capital (PCC) nas prisões de São Paulo. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ts/v23n2/v23n2a09.pdf >. Acesso em:19/01/2017. p. 4
41
Quando a organização se deu conta que suas comunicações eram interceptadas,
passou a usar códigos: 1533 no lugar de PCC; 1631 para matança; Um exemplo, são
as citações bíblicas como Salmo 2110 para rebelião – “Ateia fogo neles como a um
forno, no dia em que te manifestares.”; São Lucas 1512 para informar que haveria
matança a ser realizada pelo integrante novo no grupo. SHIMIZU, Bruno.
230

sem a imposição da vontade de um líder, com possibilidade de


argumentação da defesa do “réu”. Um dos principais códigos é o
“Salve”.

Somente com a megarrebelião de 2001, as autoridades ligadas


à segurança publica admitiram a existência do PCC. A facção, além dos
motins locais, expandiu suas atividades, também, atuando por meio de
atentados no intuito de chamar atenção das autoridades, a exemplo de
bomba colocada no Fórum João Mendes Junior, arremesso de granadas
na secretaria de administração penitenciária, um carro com explosivos
no Fórum da Barra Funda.

Dentro do sistema carcerário, vigoram regras de convivência


“informais”, mas que se fazem necessárias, e uma vez descumpridas,
cabe a sanção imposta pela facção, que Bruno Shimizu identifica como
“regras do proceder”.42 Os acertos de contas, ou seja, as medidas
punitivas dentro da prisão se dão a depender da infração cometida. Por
volta do ano de 2003, após a assunção de Marcola na direção no PCC,

Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas: um estudo criminológico à luz


da psicologia das massas. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-31072012-092234/pt-
br.php.>Acesso: 20/11/2016.p.116.
42
As “regras do proceder” são nada mais do que a “lei” que vigora dentro do sistema
carcerário, feita pelos próprios presos. É um código de conduta, que vai desde regras
para uso de drogas dentro da cela, contato com as visitas. Exemplo, o PCC vetou o
consumo de crack na unidades prisionais que “administra”, no PCPA, o consumo deve
ser com respeito aos demais e em lugar determinado, no tocante as visitas, mais
especificamente as femininas, um preso não pode se dirigir a ela, sendo de outro preso
e que muitos se viram de costas, fato verificado tanto no constexto do PCC quanto no
presídio central em Porto Alegre. AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CIPRIANI,
Marcia. Um estudo comparativo entre facções: O cenário de Porto Alegre e o de São
Paulo. Disponível
em:<http://revistaseletronicas.pucrs.br/face/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/art
icle/view/22162/13927>. Acesso: 04/11/2016.
231

este promoveu um rearranjo da facção, as decisões deixaram de ser


centralizadas por integrantes43 do topo da pirâmide, passando a ser
tomadas por um colegiado. Em 200644, nova crise eclodiu, com ataques
ao transporte coletivo, policiais e agentes penitenciários, onde o Estado
transferiu todos os lideres para um presídio que só fez fortalecer a
facção, conforme verifica Bruno Shimizu45:

“(...) estabelecendo células em diversas unidades


prisionais e em favelas e bairros de periferia alcançados
pela sua influência. Dentro dessas células, passou-se a
estabelecer uma divisão própria de atividades entre os
membros. Cada “piloto” é subordinado a um “torre”,
liderança decisória que intermedeia as atividades da
facção e a liderança geral, concentrada nas mãos de
poucos indivíduos: os generais. Há ainda os “sintonias”,
responsáveis pela comunicação entre as células”.

43
Existem outras categorias “marginais” aos integrantes da facção, como os “primos”
(presos que vivem nas cadeias dominadas pelo PCC, mas não são batizados), “irmãos”
(membro batizado), “coisas” (inimigos), “Zé Povinho” (quem está fora da
organização, não é do crime). SHIMIZU, Bruno. Solidariedade e gregarismo nas
facções criminosas: um estudo criminológico à luz da psicologia das massas.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-31072012-
092234/pt-br.php.>Acesso: 20/11/2016.
44
Conforme recente reportagem da Revista Carta Capital “(...) o PCC ergueu uma
gestão hierarquizada e extremamente organizada, subdividida em setores chamados
de Sintonias. Em última instância, encontra-se a Sintonia Geral, cúpula formada por
Marcola e seus apadrinhados. É essa cúpula, de forma colegiada, que toma todas as
decisões do PCC. A principal atividade da organização é o tráfico de drogas, chamado
de Progresso. Este por sua vez, é dividido em três instâncias. A mais baixa é a
Disciplina, responsável por disseminar e fiscalizar a implantação da ideologia em um
bairro ou cidade. Cabe a essa instância, seja um indivíduo, seja um grupo, a primeira
decisão sobre os problemas da comunidade onde a facção atua, resolução para brigas
entre integrantes e cumprimento de punições. A disciplina reporta-se ao Sintonia-
Geral, segunda instância que cuida de uma grande região ou de cidades vizinhas e
deve se reportar ao Sintonia final. Essa última instância encontra-se logo abaixo da
cúpula do PCC e é responsável pelas grandes regiões.” MARTINS, Miguel;
MARTINS Rodrigo. Na desordem, a força do mal. Revista Carta Capital, n.935, p.
16-25, 18 fev.2017.
45
SHIMIZU, Bruno. Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas: um estudo
criminológico à luz da psicologia das massas. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-31072012-092234/pt-
br.php.>Acesso: 20/11/2016.p. 117
232

“(...) o PCC ergueu uma gestão hierarquizada e


extremamente organizada, subdividida em setores
chamados de Sintonias. Em última instância, encontra-se
a Sintonia Geral, cúpula formada por Marcola e seus
apadrinhados. É essa cúpula, de forma colegiada, que
toma todas as decisões do PCC”.

No inicio de 2017, eclodiu um Manaus, devido a disputa por


uma rota internacional de drogas, uma guerra entre o PCC e o CV, este
último aliado à FDN (família do norte), na sequência Roraima, Natal e
por último no presídio de Lages/SC. A barbárie perpetrada nas
penitenciárias tem como estopim a morte de um traficante no Paraguai,
por disputas de rotas de tráfico principalmente no Norte e Centro-Oeste
do País46.
No Rio Grande do Sul, o surgimento das facções ocorreu nos anos 80
com a Falange Gaúcha, tendo como principal característica a criação de
um caixa comum (fundo alimentado pelas atividades criminosas dos
integrantes em liberdade), para sustentar os presos e familiares,
seguindo o modelo do Comando Vermelho. Durante o período em que
a Falange Gaúcha comandava os presídios (década de 80), os motins e
rebeliões pelo Estado eram constantes e vigorava a lógica do “bandido
bom é bandido morto”. Dentro dessa lógica, o Estado não se fazia

46
As principais facções que dominam o sistema prisional no norte/nordeste são o CV,
PCC, FDN, Bonde dos 40 e Sindicato do Crime. A Família do Norte, com atuação no
norte e nordeste, surgiu em 2007, sendo aliada do CV, exerce o controle das rotas de
tráfico nos rios amazônicos, seu “salto” no crime se deu com a tomada da “rota dos
Solimões” que passa pelo Peru, Colômbia até chegar em Manaus, consta que
contribuíram inclusive para a eleição do atual governador do Estado. O Bonde dos
40, nasceu em 2007 na capital do Maranhão, ganhou destaque com os assassinatos
dentro da penitenciária de Pedrinhas entre 2013/14 e ataques na rua, já o Sindicato do
Crime surgiu em 2013 no Rio Grande do Norte, na cidade de Natal, trata-se de uma
dissidência do PCC, ganhou evidência após a instalação de bloqueadores de celular
na cadeia de Parnamirim, onde de início a uma onde da ataques a prédios públicos,
delegacias, transporte coletivo. LEITÃO, Leslie. Permitido matar e decapitar.
Revista Veja, edição 2512, nº2, p.50-53, janeiro 2017.
233

presente nas prisões, para este, se o preso fez o mal, deveria receber o
mal e os presos se conduziam desta maneira. Os acertos de contas eram
feitos nas próprias cadeias pelos “Robôs” (presos responsáveis pela
execução do serviço sujo na cadeia).47

A mudança de paradigma, ocorreu em 1992, quando o líder da


Falange comandou uma greve de fome que abrangeu presos do PCPA,
PEC, PEJ e PASC. A partir deste fato, nasce o slogan “o preso tratado
como cidadão”, onde foram permitidas eleições dentro das galerias de
“lideranças” que pudessem dialogar com o Estado. Surge, a partir da
iniciativa dos “Brasas”, uma nova leitura dos presos, do “seu local de
fala”, passaram a assumir as galerias e posteriormente o pavilhão,
atuando de forma colaborativa com o Estado.

Ao final da década de 90 e inicio do século XXI, despontaram


os “Brasas” (hegemonia no PCPA) que passaram a rivalizar com os
“Manos” (hegemonia na PASC) e os “Abertos” (dissidência das duas
facções anteriores com hegemonia na CPA). Na sua gênese, as facções
possuíam suas ideologias, hoje vigora apenas a lex mercatoria (o que
importa é quantidade de “bocas de fumo” e benefícios alcançados nas
galerias.

O Presídio passa a ser um local de comércio, um local de


investimento para o crime e fornecimento de mão de obra. As Cantinas
no interior do PCPA movimentam milhões de reais, presídio lotado é
lucro para o chefe da facção. A exemplo dos grupos - CV e PCC - nas

47
DORNELLES, Renato.Falange Gaúcha. Porto Alegre: RBS publicações, 2008.
234

facções em Porto Alegre, igualmente, verificamos a mesma


organização colegiada:

“A descentralização de posições de mando, também, é


observada, em algum nível, no contexto porto alegrense,
posto que “não democratizaram de cima para baixo, mas
tem sempre um comissão, é um grupo que comanda.
Pode até parecer um na mídia um pouco mais, mas as
decisões são tomadas por um grupo coletivamente, tipo
um colegiado, vamos dizer assim (OP01). Esse aspecto,
adicionalmente, pode ser relacionado a uma espécie de
sofisticação da experiência delituosa, na medida em que
“cada região tem, sim, o seu líder, mas acabou a
mistificação daquele “Deus” que centraliza tudo.
Dividem funções, decidem mais juntos. E também
porque eles perceberam que isso ajudava a não chamar
tanta atenção da policia” (PM01)”48

Alba Zaluar explica com maestria esta nova lógica através do


surgimento do “Bandido” dentro do nosso ideário social:

“(...) que apareceu quando a contravenção e o crime


tornaram-se eles mesmos empreendimentos mercantis
montados com base num exército de empregados que são
simultaneamente soldados de uma guerra sem fim pelo
controle dos mercados.”49.

Aqueles, que antes eram vistos de forma romântica, nas


palavras da autora, ou opositores ao “sistema”, passaram a servir “(...)

48
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CIPRIANI, Marcia. Um estudo comparativo
entre facções: O cenário de Porto Alegre e o de São Paulo. Disponível
em:<http://revistaseletronicas.pucrs.br/face/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/art
icle/view/22162/13927>. Acesso: 04/11/2016. p.164
49
ZALUAR, Alba. Da Revolta ao Crime S.A. São Paulo: Moderna, 1996.p.100
235

ao mesmo demônio da acumulação infindável50 e da obtenção do lucro


desmesurado.”51

O recrutamento/lealdade à determinada facção dentro do


sistema carcerário se dá pelos motivos mais simples como dar alimento
a um familiar ou medicamentos. Os “acertos de contas”, entre as
facções não ocorrem dentro dos presídios, para não colocar em risco o
bom andamento do grupo dentro do sistema prisional. Não existe a
possibilidade de acefalia nas organizações, devido a sua forma
colegiada, assim que um sai, já ingressa outro no lugar.

Hoje o sistema carcerário52 no RS possui as seguintes


facções53, para citar as mais representativas: “Os Manos”, “Brasas”,

50
TORRES, Eduardo. O esquema das cantinas piratas no Presídio Central.
Disponível em: < http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2013/10/o-
esquema-das-cantinas-piratas-no-presidio-central-4290344.html>. Acesso em:
02/02/2017.
51
ZALUAR, 1996. p. 100.
52
A divisão dentro do sistema carcerário conforme relata Vinicius Sallin, não se dá
apenas entre facções, se dá ainda em outros grupos como “Os Crentes” , compostos
de católicos e evangélicos, “Os Duques” ou seguro, são aqueles que praticaram crimes
sexuais, permanecendo isolados, uma outra galeria que abriga policiais, presos com
curso superior, militares, outra galeria é composta por presos transgêneros. SALLIN,
Vinicius Ricardo. As facções e o grupo da segurança no presídio central de Porto
Alegre. Disponível em:<
http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/4998/1/000411102-
Texto%2bCompleto-0.pdf >. Acesso em: 20/11/2016.
53
Segundo relato de Mariana Py Muniz Capellari, o Estado não ingressa mais nas
galerias, sua atuação vai até o plantão da chave. Para a manutenção da integridade dos
presos, estes são agrupados segundo as facções. O Presídio Central, hoje renomeado
para Cadeia pública, está dividido em pavilhões: A, B, C, D, E e F e construídos mais
recentemente os pavilhões G, H, I e J. Estes pavilhões são divididos em galerias que
estão divididas da seguinte forma: Galeria 1ºB e 2ªA é dos “Abertos”; Galeria 2ª A e
3ª B dos “Manos”; Galeria 1ª e 2ª dos “Unidos pela paz”; Galeria 1ª e 3ªD da facção
Farrapos; Galeria 1º E dos idosos, desintoxicados e cadeirantes, foi reinaugurada a 1ª
A para presos com necessidades especiais; Galeria 2ª E para presos com curso
superior, ex- policiais, agentes da segurança pública, presos primários da lei de
drogas; Galeria 3ªF dos “Bala na Cara”; Galeria J reservados aos presos incursos na
lei Maria da Penha; Galeria 3ªH dos travestis e homossexuais. CAPPELARI, Mariana
236

“Bala na Cara”, “V7”, “Os Aberto”, “Conceição”, e da união de


pequenos grupos surgiram os “Anti Bala”54. Estes últimos, surgiram da
união de pequenos grupos com os V7 (onde nenhum tiro é dado sem a
ordem direta do seu líder). A atuação55 deste grupo se dá da seguinte
forma:

Já era desejo antigo de quadrilhas em quase todas as


regiões de Porto Alegre derrubar os "toma bocas", como
são chamados entre os criminosos os grupos ligados à
facção dos Bala na Cara. Os V7 serviram como uma
luva. O grupo fornece gente e armas aos aliados. Em
troca, ganha mercados para a droga. Como resultado, a
quadrilha virou um dos alicerces na frente "Anti-Bala".

A rivalidade entre as facções, bem como os “acertos de contas”


reside nas ruas, com disputas por pontos de venda de drogas, onde se
dá a invasão de bairros e o confronto entre os grupos, importante
destacar que há separação dos grupos, por grades e locais reservados

Py Muniz. Os direitos humanos na execução penal e o papel da Organização dos


Estados Americanos (OEA). Porto Alegre: Núria Fabris, 2014.
54
TORRES, Eduardo. Como nasce uma facção: entenda o surgimento dos principais
rivais dos Bala na cara. Disponível em:<
http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2016/04/como-nasce-uma-
faccao-entenda-o-surgimento-dos-principais-rivais-dos-bala-na-cara-5758161.html>
acesso em 19/01/2017.
55
O líder dos V7, conhecido como “Nego André”, comanda o grupo com mão de
ferro, conhecido como um lobista do crime, devido as suas articulações que
estabelece. Seu objetivo na construção de alianças é sempre a garantia do lucro, em
troca do fornecimento de armas aos aliados ganha mercado de droga. A principal
aliança construída pelo V7, foi o grupo “Anti -Bala”, formado com pelos membros da
Conceição, Vila Jardim, Monte Cristo, e aos poucos foram (re)tomando territórios
dos Bala, como o campo novo, o Crescimento desta facção se deu pelas alianças e não
através de confronto. TORRES, Eduardo. Como nasce uma facção: entenda o
surgimento dos principais rivais dos bala na cara. Disponível em:<
http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2016/04/como-nasce-uma-
faccao-entenda-o-surgimento-dos-principais-rivais-dos-bala-na-cara-5758161.html>
acesso em 19/01/2017.
237

dentro das casas noturnas da região central de Porto Alegre56. Dentro


das penitenciárias, o cenário é outro, elas fecham acordos e realizam
negócios. Segundo o Juiz Sidinei Brzuska57: “Porque a regra que está
estabelecida aqui (dentro do presídio), é que o problema da rua se resolve
na rua”.

Destaca-se que o ano de 2016, foi marcado por um acirramento


nos confrontos entre as facções resultando em mortes no “asfalto”, e
uma “crise” na segurança gaúcha. Só no ano referido, a “guerra” do
tráfico matou cerca de 400 pessoas58. Diante deste quadro de chacinas,
decapitações e de cabeças espalhadas pela cidade de Porto Alegre, em
bairros fora dos redutos e domicílio dos criminosos, surge um novo
grupo/facção o “CPC”- Comando Pelo Certo59, o qual, através de um
manifesto pede que a violência nos confrontos não atinja a sociedade.

56
VASCONCELLOS, Hygino. PM diz que grades separam facções em “inferninhos”
de Porto Alegre. Disponível em:<http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-
sul/noticia/2016/07/pm-diz-que-grades-separam-faccoes-em-inferninhos-de-porto-
alegre.html>. Acesso em: 19/01/2017.
57
RBS TV. Facções Criminosas atuam em quase metade dos bairros de Porto Alegre.
Disponível em:< http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2016/09/faccoes-
criminosas-atuam-em-quase-metade-dos-bairros-de-porto-alegre.html> Acesso
em:19/01/2017.
58
RBS TV. Facções Criminosas atuam em quase metade dos bairros de Porto Alegre.
Disponível em:< http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2016/09/faccoes-
criminosas-atuam-em-quase-metade-dos-bairros-de-porto-alegre.html> acesso em:
19/01/2017.
59
FARINA, Jocimar. Criminosos lançam “manifesto” e querem limites para violência
do RS. Disponível em: <http://gaucha.clicrbs.com.br/rs/noticia-aberta/criminosos-
lancam-manifesto-e-querem-limites-para-violencia-no-rs-178159.html.> Acesso:
19/01/2017.
238

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verifica-se que muitas teorias foram desenvolvidas para


entender as razões do surgimento do crime e do criminoso, todas de
alguma maneira contribuíram para melhor entender o fenômeno
criminal, mas nenhuma conseguiu afirmar de forma categórica que o
crime surge por um motivo apenas. O mesmo se pode inferir das
organizações criminosas/facções, muitos fatores contribuem para sua
formação dentro do sistema carcerário (luta por melhores condições nas
prisões, disputas por espaço, mercado, aspectos psicológicos,
sobrevivência, etc), mas não podemos apontar apenas um fator como
determinante para seu surgimento.

As teorias sociológicas, a que melhor estuda o fenômeno é a


da subcultura delinquente, que demonstra/traz o terreno propício para o
surgimento de um grupo, que se dá através dos indivíduos que não se
adaptam as exigências da classe dominante ou não conseguem alcançá-
las e se agrupam invertendo os valores propostos pela classe dominante.

Diante deste contexto, podemos entender as causas do


surgimento tanto do fenômeno Marero na América Central e EUA
quanto no Brasil as facções criminosas que dominam nossos presídios
e bairros em nossas cidades. Destacando, que ambos mantém estruturas
organizacionais, recrutamento, modo de agir similares, destacando que
ambos possuem caráter transnacional. Portanto, ao mesmo tempo que
são formações similares, possuem diferenças na base, que impedem que
o mesmo tratamento sociológico empregado para um grupo seja
aplicado em outro, inclusive no tocante ao seu enfrentamento.
239

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