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COULON, Alain.

A Condição de estudante: a entrada na vida


universitária. Salvador: EDUFBA, 2008

INTRODUÇÃO

A condição de estudante

A primeira tarefa que um estudante deve realizar quando ele chega à


universidade é aprender o ofício de estudante. Paradoxo, objetarão
alguns, porque ser estudante é um status social provisório que,
diferente de um ofício, dura apenas alguns anos. Esse é, precisamente,
o principal problema que encontram os estudantes - “manter-se” por
vários anos na universidade, especialmente além do primeiro ano, onde
se dá, na França, um conhecido fracasso. Hoje, o problema não é entrar
na universidade, mas continuar nela. O crescimento da demanda social
por formação superior e das possibilidades de acolhimento, as diversas
reformas que foram realizadas ao longo dos últimos vinte anos não
resultaram numa mudança sensível das taxas de fracasso e abandono
observadas. Para compreender esse fenômeno, é necessário abrir a
“caixa preta” da seleção na universidade e tentar ver, pela prática de
uma etnografia de campo, como se fracassa, quais são os mecanismos e
as conexões internas desse processo de seleção e de classificação social
que distingue aqueles que permanecerão estudantes daqueles que serão
excluídos.

Aprender o ofício de estudante significa que é necessário aprender a


tornar-se um deles, para não ser eliminado ou auto-eliminar-se porque
se continuou como um estrangeiro nesse mundo novo. A entrada na
vida universitária é como uma passagem: é necessário passar do
estatuto de aluno ao de estudante1. Como toda passagem, ela necessita
de uma iniciação. O trabalho que eu apresento aqui se funda sobre a

1
N. do T. Em francês, há uma diferença entre a palavra élève atribuída a crianças e jovens que estudam
até o nível médio e étudiant utilizado apenas para jovens ingressos no ensino superior.

1
hipótese de que os estudantes que não conseguem afiliar-se fracassam.
Eu entendo por afiliação o método através do qual alguém adquire um
status social novo. O estudante deve mostrar seu savoir-faire2 na
medida em que ele é uma condição do sucesso. Ter sucesso significa
que fomos reconhecidos como socialmente competentes, que os saberes
que adquirimos foram legitimados. Se o fracasso e o abandono são
numerosos ao longo do primeiro ano é precisamente porque a
adequação entre as exigências acadêmicas, em termos de conteúdos
intelectuais, métodos de exposição do saber e dos conhecimentos, e os
habitus dos estudantes, que são ainda alunos, não aconteceu. O aluno
deve adaptar-se aos códigos do ensino superior, aprender a utilizar
suas instituições e a assimilar suas rotinas. Como se adquire esta
competência se não através de uma aprendizagem que inicie o
debutante nas regras de seu novo universo? A entrada na universidade
pode ser analisada como uma passagem, no sentido etnológico do
termo, que eu proponho considerar em três tempos:
- o tempo do estranhamento, ao longo do qual o
estudante entra em um universo desconhecido, cujas instituições
rompem com o mundo familiar que ele acaba de deixar;
- o tempo da aprendizagem quando ele se adapta
progressivamente e onde uma acomodação se produz;
- e, por fim, o tempo da afiliação que é o do manejo
relativo das regras identificado especialmente pela capacidade de
interpretá-las ou transgredi-las.

O objetivo desse livro é mostrar que o sucesso na universidade passa


pela aprendizagem do ofício de estudante e que a entrada na
universidade de nada serve se não for acompanhada por um processo
de afiliação, ao mesmo tempo, institucional e intelectual. Tentarei
mostrar que o sucesso acadêmico depende, em grande parte, da
capacidade de inserção ativa dos estudantes em seu novo ambiente.
Trata-se de identificar as propriedades desses processos de aquisição

2
N. do T. Optamos por manter a expressão original por já ser utilizada na literatura brasileira.

2
que, apesar de estarem à margem do conteúdo acadêmico propriamente
dito, parecem-me essenciais em toda “carreira” estudantil de sucesso.

1. A TRANSIÇÃO ENSINO MÉDIO- ENSINO SUPERIOR

Sabemos que a transição do ensino médio para o ensino superior é


delicada. Os índices de fracasso e abandono, ao longo do primeiro ciclo
universitário, traduzem a dificuldade dessa passagem. A universidade
de Paris VIII, em Saint-Denis, que é o campo que eu escolhi para
desenvolver minhas pesquisas, não escapa a esse fenômeno e
experimenta as mesmas dificuldades. A reforma dos primeiros ciclos
universitários, iniciada nessa universidade a partir do início do ano
escolar de 1984, era especialmente voltada para este problema,
propondo aos estudantes formações pluridisciplinares e uma orientação
progressiva.

A entrada no ensino superior: um objeto sociológico

Na França, a questão do fracasso universitário não é nova. Vários


trabalhos lhe foram consagrados e trouxeram contribuições
importantes. Mas qualquer que seja a sua orientação – teoria marxista,
da reprodução, das desigualdades e da mobilidade social, da economia
neoclássica – nenhum deles tomou como objeto a entrada no ensino
superior. Ora, esse é, precisamente, um momento decisivo que é preciso
estudar com muita atenção se queremos explorar os fenômenos do
abandono e do fracasso que se produzem, principalmente, ao longo
deste período. Por outro lado, esses estudos não levam em conta três
fatores que caracterizam o ensino superior:
- trata-se de um ensino que se dirige a adultos e,
exatamente por isso, problemas particulares se colocam e deveriam ser
estudados, dentre eles, especialmente, a conquista da autonomia. O
lugar do saber não é mais o mesmo: não há mais referência aos
discursos parentais, sendo que a autonomia é obtida em oposição a

3
esses discursos visando alcançar um saber que se exibe em uma
comunidade de construção de conhecimentos onde os pares assumem
um lugar importante;
- é um ensino terminal: o ensino fundamental prepara para
o ensino médio. Se, eventualmente, o ensino superior prepara para um
novo ciclo, como é o caso dos Cursos Preparatórios para as Grandes
Escolas, a universidade prepara, em princípio, para a vida ativa;
- a entrada no ensino superior continua voluntária, mesmo
se ela é, cada vez mais, uma escolha forçada, em razão do mercado de
empregos e porque o baccalauréat não é mais suficiente para garantir
uma saída profissional.

Várias rupturas simultâneas

Certo número de fatores relacionados precisam ser colocados em


evidência para que seja possível analisar o fenômeno do fracasso e do
abandono nas universidades.

a) Para muitos estudantes, a passagem para o ensino superior é


acompanhada por outras mudanças. Ela é marcada por várias rupturas
simultâneas:
- nas condições de existência, o que pode gerar, às vezes,
ansiedade e comportamentos que favorecem o fracasso;
- na vida afetiva, com a passagem, na maioria dos casos, da vida
no seio da família para uma vida mais autônoma;
- sobretudo uma ruptura psicopedagógica: a relação pedagógica
com os professores do ensino superior é, em geral,
extremamente reduzida, mesmo quando se trata de trabalhos
orientados em pequenos grupos. Se o tempo do ensino médio é
aquele do tutelamento, o tempo do ensino superior é o do
anonimato, também em relação aos outros estudantes. Isto
provoca comportamentos muito diferentes por parte dos novos

4
estudantes, cujas referências habituais foram todas subvertidas
ao mesmo tempo. Uma nova identidade está por ser construída,
uma nova relação com o saber precisa ser elaborada.

b) É importante insistir, igualmente, em relação à responsabilidade que


tem a organização institucional no sucesso ou fracasso na universidade.
Vários problemas encontrados, ao longo de minhas pesquisas, mostram
o efeito repetido dos dispositivos institucionais sobre o desenvolvimento
da escolaridade dos estudantes.

Por outro lado, a passagem para a universidade é acompanhada de


modificações importantes nas relações que o indivíduo mantém com
três modalidades fortemente presentes em toda a aprendizagem: o
tempo, o espaço e com as regras e o saber.
 Como observam os estudantes, a relação com o tempo
se encontra profundamente modificada: as aulas não
têm mais a mesma duração; o volume semanal de horas
é muito mais pesado que no ensino médio; o ano,
quando não é contínuo, é recortado em dois semestres
em vez de três trimestres; o ritmo de trabalho é muito
diferente, as provas não acontecem nos mesmos
momentos do ano, o esforço que precisam empregar não
se distribui da mesma maneira.
 No que concerne à relação com o espaço, os estudantes
sublinham que uma universidade - mesmo quando suas
instalações são restritas como é o caso de Paris VIII em
St. Denis - é imensa, infinitamente maior que um
colégio, ao ponto que eles têm dificuldades, no início, de
encontrar a sala de aula ou a secretaria certa.
 A mudança mais espetacular reside na relação com as
regras e com o saber. É preciso distinguir esses dois
aspectos, apesar de que a relação com o saber é

5
subjacente à relação mais global com as regras. Na
universidade, inicialmente, há um número expressivo
delas que atuam, eventualmente, de forma simultânea,
além de serem muito mais complexas. Elas são, com
freqüência, articuladas umas às outras resultando em
que, o desconhecimento de uma delas, provoca a
ignorância de todo um grupo de regras que lhe são
relacionadas. Além das regras propriamente ditas, o
“sentido do jogo” é muito diferente. Quanto à relação
com o saber, ele é totalmente modificado quando se
entra na universidade, seja pela amplitude dos campos
intelectuais abordados, ou em razão de uma maior
necessidade de síntese ou ainda, por causa do laço que
o ensino superior estabelece entre esses saberes e a
atividade profissional futura.

Esse conjunto de reflexões me levou a pensar que, se o primeiro ano de


universidade é tão catastrófico para muitos e tão difícil para todos, era
porque, além da capacidade e da aptidão de cada um, existiam
problemas sérios de adaptação ao ensino superior. Os estudantes que
aí chegam, vindo diretamente do ensino médio, ficam, geralmente,
surpresos de ter tanta dificuldade para se adaptar a esse novo quadro
que é a universidade. Os alunos do ensino médio não estão preparados
para se afiliar ao ensino superior, especialmente porque lá eles devem
suportar uma orientação obrigatória que lhes faz acreditar que estão no
lugar que merecem. Esses processos de orientação, - existência dos
CIO, o papel das subáreas do baccalauréat, o todo-poderoso conselho de
classe - que atribui um lugar a cada um, mascaram os fenômenos de
afiliação que, entretanto, existem no ensino médio, mas passam
desapercebidos. As estratégias dos indivíduos são, dessa forma,
ocultadas pelo próprio dispositivo institucional de orientação que
impede que os alunos sejam confrontados com esse tipo de
aprendizagem, como seria o caso em um sistema escolar mais flexível

6
em matéria de orientação. Assim, eles só descobrem a importância da
afiliação e seus riscos, experimentando muita ansiedade, quando
entram na universidade.

2. O OFÍCIO DE ESTUDANTE

“Tornem-se estudantes profissionais!”, eu digo isso aos novos que


acabaram de chegar à universidade. Não no sentido pejorativo que se
pode atribuir, às vezes, a esta expressão. Aprender a tornar-se
“estudantes profissionais” não é, como eu compreendo, uma brincadeira
irônica que os convida a ser estudantes sempre atrasados, um pouco
diletantes e que acabariam por não finalizar seus estudos. Este
conselho deve ser escutado como: “considerem seu novo status de
estudante como uma nova profissão que vocês irão exercer”. O que
significa não apenas que devem consagrar a ela um tempo significativo
de suas vidas imediatas, mas que é necessário, antes de qualquer coisa,
começar a aprendê-la, a dominar suas ferramentas, a identificar e
aprender suas regras.

Dizer que se é um profissional, como se pode dizer em algumas


atividades esportivas, significa que deixamos de ser amadores, que não
exercemos mais essa atividade somente por prazer e que decidimos que
ela vai nos permitir ganhar nossa vida. No caso de um estudante, esse
conselho pode, evidentemente, ser considerado como um artifício
pedagógico, na medida em que, por definição, o status de estudante é
transitório. Entretanto, por não considerar seu status de estudante
como um ofício de verdade, muitos entre eles, não o mantêm por muito
tempo. O senso comum sabe, que realizar estudos superiores
representa um investimento para o futuro, que é preciso gerenciar,
seriamente, como um “profissional”, como o demonstraram, de maneira
pouco crítica, os defensores da teoria do “capital humano”, como Gary

7
Becker e Jacob Mincer, que concebem os estudos superiores realizados
pelos indivíduos como uma estratégia econômica calculada3.

Como identificar o essencial: o exemplo dos estudos de medicina

Howard Becker, Blanchee Geer, Everett Hughes e Anselm Strauss4


estudaram a vida cotidiana dos estudantes de medicina da
Universidade do Kansas. Na aprendizagem da profissão de médico, a
ciência e o talento não são suficientes, é preciso ser iniciado no status
de médico, ter aprendido seu papel. Esta aprendizagem não se dá de
uma única vez. A transição, no caso da aprendizagem da medicina, é
lenta. No início do ano, os estudantes do primeiro ano, que formam
realmente um grupo à parte, falam apenas de uma coisa: do trabalho
que devem realizar e de sua quantidade. Como eles farão para trabalhar
de 70 a 90 horas por semana, como parece exigir o volume de trabalho
que seus estudos representam? Mesmo que estejam muito motivados,
rapidamente, se sentirão sobrecarregados. Eles foram certamente
prevenidos que deveriam trabalhar sem parar e que seriam necessárias
horas suplementares à noite para finalizar alguns trabalhos de
laboratório. O problema é que eles próprios devem compreender
sozinhos, a natureza do trabalho a ser realizado, que é “indefinível”. O
que eles devem conhecer e com que grau de detalhe? Como eles devem
dosar seus esforços? O que é necessário aprender exatamente? É claro
que existem os manuais e os textos dos professores, mas apenas a sua
leitura já representa um trabalho tão grande que é absolutamente
necessário fazer uma seleção. Com a ajuda de que critérios? É claro que
eles são supervisionados o tempo todo por assistentes, ao longo de seus
estudos dirigidos, mas, dizem os autores, as exigências cotidianas dos
professores são mínimas, eles fazem apenas sugestões informais e os
estudantes não podem utilizar suas instruções para compreender a

3
Becker, G. S., Human Capital, New York, Columbia University Press, 1964; Mincer, J., “Investment in
Human Capital and Personal Income Distribution”, Journal of Political Economy, 1958, 66, p. 281-302.
4
Becker, H. S., Geer, B., Hughes, E. C., Strauss, A.L., Boys in White. Student Culture in Medical School,
New Brunswick, N. J., Transaction Books, (1977) [1961].

8
natureza da tarefa que têm para realizar. Apenas a prova lhes dirá,
mais tarde, se eles trabalharam o suficiente e se estavam no caminho
certo.

A sua primeira perspectiva, ao longo das quatro primeiras semanas, é


esta constante preocupação, que engendra sonhos “traumáticos”:
conseguir trabalhar o suficiente para aprender tudo o que é exigido. Ao
final de um mês, todos os estudantes compreendem que precisam
selecionar aquilo que devem aprender e aí, então, dois tipos de reações
aparecem: alguns irão triar aquilo que lhes parece importante “para a
prática médica”; os outros, em número três vezes maior, escolherão os
itens a serem trabalhados em função daquilo que “os professores
querem que eles saibam” o que, concretamente. quer dizer, aquilo que
eles talvez perguntam na provas.

Aprender a instituição do saber

Como adivinhar o que é necessário fazer quando os professores se


contentam em dizer a estudantes, literalmente, abarrotados de
trabalho: “Dêem o melhor de vocês”? É assim que nascem as técnicas
para se dar bem nas provas quando os estudantes realizam verdadeiras
pesquisas sobre as preferências e as perspectivas dos professores.
Assim, nas “fraternities”5, todas as provas dos anos precedentes são
conservadas, analisadas e comentadas. Se as provas são tão
importantes aos olhos dos estudantes, não é apenas porque elas são
difíceis e, a cada vez, colocam em questão sua própria existência como
estudante de medicina é, sobretudo, porque elas são a única ocasião
que eles têm de avaliar, através das perguntas que lhe são feitas, se eles
estudam os temas “corretos”. As notas obtidas e os comentários dos
professores são considerados primeiro como indicações que lhes dizem
se eles estão no “caminho certo”. Os estudantes arriscam ir mais longe

5
N. do A. As “fraternities”, ou as “sororities”, caso se tratem de rapazes ou moças, são grandes casas
situadas em volta dos campi. Os estudantes aí vivem coletivamente ao longo do ano acadêmico. São
lugares onde reina, em geral, uma grande solidariedade.

9
ainda, tentando compreender como responder às questões das provas
da maneira mais adequada possível. Aprendendo aquilo que eles
pensam que seus professores querem que eles demonstrem como
compreendido, conhecido e sob seu controle, os estudantes têm o
sentimento de aprender seu ofício de médico. Mas, fazendo isso, ao
mesmo tempo, eles renunciam ao seu ideal de conhecimento, para
serem mais eficazes.
A obra de H. Becker e seus colaboradores mostra que o primeiro ano é
decisivo para “aprender a instituição”: mesmo que não seja o mais
importante do ponto de vista do conhecimento estritamente médico, ele
é essencial por ser aquele onde se formam as perspectivas dos
estudantes. É durante esse ano que se aprende a viver esse novo papel.
Mais tarde, ao longo de seus anos clínicos, os estudantes deverão ainda
enfrentar problemas similares, mas aí eles já disporão de dois critérios
para escolher o que é necessário estudar em prioridade: sua experiência
clínica, através da qual eles podem identificar todas as suas lacunas e
sua responsabilidade médica que os desafia a estabelecer um
diagnóstico correto e um tratamento adequado. Quando estão no
primeiro ano, ao contrário, eles devem aprender tudo, como indica bem
a expressão americana que os designa6: eles são instados a descobrir,
não apenas o conteúdo acadêmico da medicina, mas, sobretudo, a
encontrar soluções para o problema principal que os atormenta, a
saber, como aprender tanta coisa em tão pouco tempo.

3. OS RITOS DE AFILIAÇÃO

Raros estudantes estão prontos para se tornarem verdadeiros


profissionais de seus estudos. Não que eles não sejam capazes. Mas,
para isso, necessitam ter uma perspectiva a longo prazo, isto é, um

6
N. do A. Os estudantes de primeiro ano são chamados nos Estados Unidos de freshmen; no segundo ano,
eles se tornam sophomore, em seguida junior e, por fim, senior.

10
projeto suficientemente elaborado que justifique os esforços empregados
e que se realize em instituições que o favoreçam.

A noção de passagem

Podemos considerar, como se faz, freqüentemente, na linguagem


ordinária, a entrada na vida universitária como uma passagem. Não é
comum falar de “passagem” para o ensino superior, ou ainda do
baccalauréat como um “ponto de passagem” obrigatório em direção à
universidade? Esta passagem, para se realizar, supõe o domínio de
certo número de mecanismos e exige ter realizado, com êxito, certo
número de ritos de afiliação.

Quando observamos os primeiros meses que se seguem à entrada de


um estudante na universidade, ou quando solicitamos que a
descrevam, é fácil localizar as três fases descritas por Van Gennep7 que
acreditou ser possível detectar, em todas as sociedades, uma estrutura
de rituais de iniciação que sempre marcam a passagem de um status
social para outro: a separação em relação ao status passado, a fase de
ambigüidade e, enfim, a fase da conversão, que ele chama de admissão.
Os primeiros meses na universidade são descritos pelos estudantes
como seguindo três fases:

- o novo estudante se encontra inicialmente na fase da


separação com o passado familiar, ao longo do qual ele
perde suas referências anteriores: é preciso “esquecer”
aquilo que ele conhece bem. Segundo os estudantes, “a fac,
não é semelhante ao colegial, é preciso se habituar”. Eu
chamei essa fase o tempo do estranhamento. Nele, o que é
importante é o ponto de encontro entre a universidade e o
futuro estudante, deixando para trás o tempo da separação
e a viagem realizada entre esta e a porta da universidade.

7
Van Gennep A., Les rites de passage, Paris, Picard, 1981 [1909], 288 p.

11
Diante dessa porta que se abre para a estranheza, o
iniciante percebe um mundo que não é mais familiar;

- a segunda fase, a da margem, é onde se corre os maiores


perigos. É um período freqüentemente doloroso, feito de
inseguranças e dúvidas, ao longo do qual o estudante está
ansioso. Ele não tem mais passado, mas ainda não tem
futuro. Ele está no espaço entre dois momentos e não tem
mais referências. À necessária desestruturação que
acompanha o esquecimento de seu passado, não sucede,
imediatamente, a reestruturação que o fará passar,
definitivamente, para a terceira fase. Uma aprendizagem
complexa se opera e há de ser feita o quanto antes, já que é
indispensável para prosseguir na passagem para a vida
universitária: é o tempo da aprendizagem;

- enfim, vem o momento da admissão, aquele da passagem


definitiva para seu novo estado: o estudante é agora um dos
“veteranos”. Os estudantes sabem reconhecê-lo e dizem
quando ultrapassaram a soleira dessa terceira fase: “agora
está melhor”, “eu sei que eu não vou mais abandonar”: é o
tempo da afiliação. A duração da passagem é variável. Ela
depende da duração da segunda fase que varia segundo os
indivíduos. Ela varia também segundo os estabelecimentos,
seu grau de sofisticação institucional e segundo o número e
a complexidade de suas regras.

Da noção de passagem à de afiliação

Aprender o ofício de estudante consiste em aprender os inúmeros


códigos que balizam a vida intelectual e proceder de maneira que os
professores, que são também os seus avaliadores, reconheçam que eles
apresentam um domínio suficiente para exercê-lo. Assim, não se trata,

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apenas de adquirir esta competência, é necessário igualmente aprender
a maneira de mostrar que eles a possuem.

Esta exibição da competência assume diversas formas. Ela não se


manifesta somente nos momentos de avaliação acadêmica formal, mas
depende também de operações informais que são objeto de julgamento
por parte dos professores e de outros estudantes: expressão oral e
escrita, inteligência prática, chamada, às vezes, de competência para
“saber se virar”8, seriedade, ortografia, saber apresentar referências
teóricas e bibliográficas. É preciso exibir sua competência, mostrar que
ele se tornou um “igual”, que atribui o mesmo sentido às mesmas
palavras, aos mesmos comportamentos. Neste sentido, a cultura
estudantil é diferente da cultura dos jovens do ensino médio. Entre
estes os códigos são outros, são outros o discurso e a linguagem e,
igualmente, a maneira de identificar, de colocar e de resolver
problemas. O colégio e a universidade não têm a mesma comunidade de
habitus e o primeiro ano de universidade, sobretudo os primeiros
meses, ou as primeiras semanas, exige que se passe de uma à outra.
Este trabalho deve ser realizado além do trabalho intelectual
normalmente relacionado à universidade. Ele demanda tempo e deve
ser considerado como uma aprendizagem verdadeira. Esquemas
culturais devem ser desenvolvidos, é preciso “esquecer” sua cultura
anterior de estudante de ensino médio, na qual ele viveu durante sete
anos, para substituí-la por uma nova cultura, mais complexa, mais
sofisticada, tão mais difícil de decodificar e adquirir na medida em que
ela é mais simbólica.

Tornar-se um membro nativo: uma aprendizagem do senso comum

Como se adquirem esses códigos, essa cultura particular de uma


universidade? Seguramente, não só de maneira acadêmica. Muitos

8
N.do T. Em francês, débrouillardise.

13
deles não residem no trabalho acadêmico propriamente dito. Pois o
senso comum, como sublinhou P. Perrenoud9, é difuso, “ele está
implicado na prática mais insignificante, na interação mais
insignificante, no mais insignificante objeto, no mais insignificante
aspecto da organização social” (p.247).

Assim, não é de bom augúrio que um estudante diga: “eu passo o


menor tempo possível na universidade, assim que as aulas acabam eu
vou embora”. Aqueles que conhecem as condições de vida difíceis de um
estudante no interior de certas universidades não se surpreenderão
com uma fala como essa. Entretanto, é preciso ter consciência que esta
prática, freqüentemente induzida por condições de vida difíceis, leva
igualmente o estudante a se isolar de múltiplas e minúsculas operações
que participam da imersão nessa nova cultura. Quanto mais interações
aconteçam, mais se atenua a ambigüidade da segunda fase da
passagem e melhor se realiza a indispensável aprendizagem do senso
comum.

Os estudantes devem tornar-se nativos desta nova cultura


universitária, tornarem-se membros dela, pois, para eles, isso é uma
questão de sobrevivência. A noção de membro, que, para a
etnometodologia10, designa o domínio da linguagem natural do grupo ou
de sua organização, permite compreender a necessidade e as condições
dessa passagem para o status de nativo. Tornar-se membro, não é
apenas tornar-se nativo da organização universitária, é também ser
capaz de mostrar aos outros que agora possuímos as competências, que
possuímos os etnométodos de uma cultura. Esta aquisição não é
completa porque a cultura da comunidade nativa é movente e
cumulativa. Ela é ainda menos completa na medida em que o próprio
debutante participa, desde que esteja suficientemente iniciado, de sua
transformação e elaboração. Apesar disso, a posse de uma parte dessa

9
Perrenoud, P. La fabrication de l’excellence scolaire, Genève, Droz, 1984.
10
Coulon, A., L’éthnométhodologie, Paris, PUF (“Que sais-je?”, no. 2393) 5e édition, 2002.

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cultura de senso comum é suficiente, em geral, para conferir, àquele
que a detém e que sabe exibi-la, o status de membro.

Reconhecer a competência de um membro é identificar aquilo que ele


exibe do domínio que tem das rotinas, admitir nele uma naturalidade
autêntica que lhe permite realizar certo número de coisas sem pensar
nelas, obedecendo a alguns esquemas de pensamento ou de ação, o que
Pierre Bourdieu chamou de habitus, que, como conjunto de
pensamentos e práticas incorporadas, gera novas atitudes e facilita
novas aquisições. Entretanto, a aquisição do conjunto de procedimentos
novos, através dos quais nos tornamos membros, não está ancorada
sobre um habitus constituído de uma vez por todas, fonte infalível e
motor inesgotável de todas as aquisições e performances ulteriores. Ela
se produz sobre um habitus constantemente renovado, que se enriquece
- ou se empobrece, como é o caso no analfabetismo - de experiências
novas que são como sedimentadas sobre as precedentes. As
incorporações mais recentes são aquelas que foram objeto de um
julgamento avaliativo, o que pode ser de uma grande eficácia destrutiva:
os estudantes que não podem mostrar que eles incorporaram, ao longo
dos primeiros meses após sua chegada à universidade, os traços
distintivos de sua afiliação ao “ofício de estudante” são,
impiedosamente, eliminados (fracasso) ou se auto-eliminam (abandono).

Estudantes ordinários

Meu propósito não é o de analisar a formação das elites, formadas, em


geral, nas Grandes Escolas. Eu estou interessado na imensa massa de
estudantes “ordinários” que fazem seus estudos na universidade e que
se tornam, em seguida, “elites médias”. Esse fenômeno social é muito
importante, especialmente por causa das perturbações econômicas e
políticas que provocaram a explosão demográfica universitária das
últimas três décadas.

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É chocante constatar que a universidade comum, que produz os
quadros executivos e que diz respeito, cada vez mais, às classes médias,
foi pouco analisada a partir de pesquisas empíricas. Não se sabe
praticamente nada acerca das práticas concretas, nem das
universidades, porque elas não são avaliadas no plano qualitativo, nem
da experiência e estratégias dos estudantes no interior das
universidades e menos ainda das práticas pedagógicas dos professores
do ensino superior. Eu me esforçarei então para oferecer ao leitor,
graças aos métodos etnográficos que utilizei, um “visão de dentro”
acerca das práticas universitárias.

Por que se interessar por estudantes de uma universidade reputada,


mas considerada “marginal”? Acontece que a universidade de Paris VIII,
em Saint-Denis, apresenta uma dupla vantagem: trata-se de uma
universidade inovadora do ponto de vista pedagógico, desde a sua
origem, e que dispensa atenção aos estudantes de primeiro ciclo; além
disso, ela acolhe, particularmente, um grande número de estudantes
imigrantes, ou de estudantes titulares de baccalauréats tecnológicos ou
profissionais, considerados como culturalmente “dominados11”. Essas
características fazem dela um campo privilegiado de estudos de
fenômenos que já são observados, em outros espaços, mas que devem
produzir-se, massivamente, em talvez um terço das universidades
francesas ao longo dos dez próximos anos. Trata-se, então, de analisar
os mecanismos de afiliação que estão em curso nelas. A revelação
desses mecanismos, mesmo que descobertos e analisados localmente,
tem a ambição de ter um alcance mais geral e resultados suscetíveis de
ser generalizados ou utilizados em outras universidades.

4. A ORGANIZAÇÃO DOLIVRO

Depois de iniciar expondo o contexto e as condições da pesquisa, bem


como os métodos utilizados em campo, eu apresentarei as análises que

11
N. do T. O autor faz referência a uma observação feita por Bourdieu, explicada mais adiante no livro.

16
me parecem possíveis sobre o material recolhido e os resultados a que
cheguei. No primeiro capítulo, “O tempo da estranheza”, eu vou mostrar
a desordem que atinge os estudantes quando eles chegam, pela
primeira vez, à universidade e se defrontam com os dispositivos
institucionais dentro dos quais eles terão de trabalhar. No segundo, “O
tempo da aprendizagem”, eu vou expor as estratégias que eles utilizam,
as perspectivas que se desenham, os desencantamentos que ameaçam
levar ao abandono e a instalação progressiva de rotinas. Finalmente, no
terceiro capítulo, “O tempo da afiliação”, eu insistirei, sobre a
interpretação que fazem os estudantes das regras do currículo, e sobre
a incorporação que fazem dos allant de soi intelectuais que irão defini-
los, progressivamente, como estudantes competentes.

Concluindo, eu tentarei mostrar as conseqüências concretas que podem


ter esses resultados, como um novo olhar possível acerca do primeiro
ano de universidade. Eu vou tentar apresentar certo número de idéias
que, se postas em prática, poderão favorecer uma pedagogia da
afiliação. Com efeito, parece-me que múltiplas circunstâncias -
políticas, econômicas, sociológicas, psicológicas - que cercam a entrada
dos estudantes nas universidades, por sua natureza, exigem ser
consideradas seriamente e tratadas com urgência.

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