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A Condição de Estudante - Introdução.
A Condição de Estudante - Introdução.
INTRODUÇÃO
A condição de estudante
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N. do T. Em francês, há uma diferença entre a palavra élève atribuída a crianças e jovens que estudam
até o nível médio e étudiant utilizado apenas para jovens ingressos no ensino superior.
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hipótese de que os estudantes que não conseguem afiliar-se fracassam.
Eu entendo por afiliação o método através do qual alguém adquire um
status social novo. O estudante deve mostrar seu savoir-faire2 na
medida em que ele é uma condição do sucesso. Ter sucesso significa
que fomos reconhecidos como socialmente competentes, que os saberes
que adquirimos foram legitimados. Se o fracasso e o abandono são
numerosos ao longo do primeiro ano é precisamente porque a
adequação entre as exigências acadêmicas, em termos de conteúdos
intelectuais, métodos de exposição do saber e dos conhecimentos, e os
habitus dos estudantes, que são ainda alunos, não aconteceu. O aluno
deve adaptar-se aos códigos do ensino superior, aprender a utilizar
suas instituições e a assimilar suas rotinas. Como se adquire esta
competência se não através de uma aprendizagem que inicie o
debutante nas regras de seu novo universo? A entrada na universidade
pode ser analisada como uma passagem, no sentido etnológico do
termo, que eu proponho considerar em três tempos:
- o tempo do estranhamento, ao longo do qual o
estudante entra em um universo desconhecido, cujas instituições
rompem com o mundo familiar que ele acaba de deixar;
- o tempo da aprendizagem quando ele se adapta
progressivamente e onde uma acomodação se produz;
- e, por fim, o tempo da afiliação que é o do manejo
relativo das regras identificado especialmente pela capacidade de
interpretá-las ou transgredi-las.
2
N. do T. Optamos por manter a expressão original por já ser utilizada na literatura brasileira.
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que, apesar de estarem à margem do conteúdo acadêmico propriamente
dito, parecem-me essenciais em toda “carreira” estudantil de sucesso.
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esses discursos visando alcançar um saber que se exibe em uma
comunidade de construção de conhecimentos onde os pares assumem
um lugar importante;
- é um ensino terminal: o ensino fundamental prepara para
o ensino médio. Se, eventualmente, o ensino superior prepara para um
novo ciclo, como é o caso dos Cursos Preparatórios para as Grandes
Escolas, a universidade prepara, em princípio, para a vida ativa;
- a entrada no ensino superior continua voluntária, mesmo
se ela é, cada vez mais, uma escolha forçada, em razão do mercado de
empregos e porque o baccalauréat não é mais suficiente para garantir
uma saída profissional.
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estudantes, cujas referências habituais foram todas subvertidas
ao mesmo tempo. Uma nova identidade está por ser construída,
uma nova relação com o saber precisa ser elaborada.
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subjacente à relação mais global com as regras. Na
universidade, inicialmente, há um número expressivo
delas que atuam, eventualmente, de forma simultânea,
além de serem muito mais complexas. Elas são, com
freqüência, articuladas umas às outras resultando em
que, o desconhecimento de uma delas, provoca a
ignorância de todo um grupo de regras que lhe são
relacionadas. Além das regras propriamente ditas, o
“sentido do jogo” é muito diferente. Quanto à relação
com o saber, ele é totalmente modificado quando se
entra na universidade, seja pela amplitude dos campos
intelectuais abordados, ou em razão de uma maior
necessidade de síntese ou ainda, por causa do laço que
o ensino superior estabelece entre esses saberes e a
atividade profissional futura.
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em matéria de orientação. Assim, eles só descobrem a importância da
afiliação e seus riscos, experimentando muita ansiedade, quando
entram na universidade.
2. O OFÍCIO DE ESTUDANTE
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Becker e Jacob Mincer, que concebem os estudos superiores realizados
pelos indivíduos como uma estratégia econômica calculada3.
3
Becker, G. S., Human Capital, New York, Columbia University Press, 1964; Mincer, J., “Investment in
Human Capital and Personal Income Distribution”, Journal of Political Economy, 1958, 66, p. 281-302.
4
Becker, H. S., Geer, B., Hughes, E. C., Strauss, A.L., Boys in White. Student Culture in Medical School,
New Brunswick, N. J., Transaction Books, (1977) [1961].
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natureza da tarefa que têm para realizar. Apenas a prova lhes dirá,
mais tarde, se eles trabalharam o suficiente e se estavam no caminho
certo.
5
N. do A. As “fraternities”, ou as “sororities”, caso se tratem de rapazes ou moças, são grandes casas
situadas em volta dos campi. Os estudantes aí vivem coletivamente ao longo do ano acadêmico. São
lugares onde reina, em geral, uma grande solidariedade.
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ainda, tentando compreender como responder às questões das provas
da maneira mais adequada possível. Aprendendo aquilo que eles
pensam que seus professores querem que eles demonstrem como
compreendido, conhecido e sob seu controle, os estudantes têm o
sentimento de aprender seu ofício de médico. Mas, fazendo isso, ao
mesmo tempo, eles renunciam ao seu ideal de conhecimento, para
serem mais eficazes.
A obra de H. Becker e seus colaboradores mostra que o primeiro ano é
decisivo para “aprender a instituição”: mesmo que não seja o mais
importante do ponto de vista do conhecimento estritamente médico, ele
é essencial por ser aquele onde se formam as perspectivas dos
estudantes. É durante esse ano que se aprende a viver esse novo papel.
Mais tarde, ao longo de seus anos clínicos, os estudantes deverão ainda
enfrentar problemas similares, mas aí eles já disporão de dois critérios
para escolher o que é necessário estudar em prioridade: sua experiência
clínica, através da qual eles podem identificar todas as suas lacunas e
sua responsabilidade médica que os desafia a estabelecer um
diagnóstico correto e um tratamento adequado. Quando estão no
primeiro ano, ao contrário, eles devem aprender tudo, como indica bem
a expressão americana que os designa6: eles são instados a descobrir,
não apenas o conteúdo acadêmico da medicina, mas, sobretudo, a
encontrar soluções para o problema principal que os atormenta, a
saber, como aprender tanta coisa em tão pouco tempo.
3. OS RITOS DE AFILIAÇÃO
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N. do A. Os estudantes de primeiro ano são chamados nos Estados Unidos de freshmen; no segundo ano,
eles se tornam sophomore, em seguida junior e, por fim, senior.
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projeto suficientemente elaborado que justifique os esforços empregados
e que se realize em instituições que o favoreçam.
A noção de passagem
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Van Gennep A., Les rites de passage, Paris, Picard, 1981 [1909], 288 p.
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Diante dessa porta que se abre para a estranheza, o
iniciante percebe um mundo que não é mais familiar;
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apenas de adquirir esta competência, é necessário igualmente aprender
a maneira de mostrar que eles a possuem.
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N.do T. Em francês, débrouillardise.
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deles não residem no trabalho acadêmico propriamente dito. Pois o
senso comum, como sublinhou P. Perrenoud9, é difuso, “ele está
implicado na prática mais insignificante, na interação mais
insignificante, no mais insignificante objeto, no mais insignificante
aspecto da organização social” (p.247).
9
Perrenoud, P. La fabrication de l’excellence scolaire, Genève, Droz, 1984.
10
Coulon, A., L’éthnométhodologie, Paris, PUF (“Que sais-je?”, no. 2393) 5e édition, 2002.
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cultura de senso comum é suficiente, em geral, para conferir, àquele
que a detém e que sabe exibi-la, o status de membro.
Estudantes ordinários
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É chocante constatar que a universidade comum, que produz os
quadros executivos e que diz respeito, cada vez mais, às classes médias,
foi pouco analisada a partir de pesquisas empíricas. Não se sabe
praticamente nada acerca das práticas concretas, nem das
universidades, porque elas não são avaliadas no plano qualitativo, nem
da experiência e estratégias dos estudantes no interior das
universidades e menos ainda das práticas pedagógicas dos professores
do ensino superior. Eu me esforçarei então para oferecer ao leitor,
graças aos métodos etnográficos que utilizei, um “visão de dentro”
acerca das práticas universitárias.
4. A ORGANIZAÇÃO DOLIVRO
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N. do T. O autor faz referência a uma observação feita por Bourdieu, explicada mais adiante no livro.
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me parecem possíveis sobre o material recolhido e os resultados a que
cheguei. No primeiro capítulo, “O tempo da estranheza”, eu vou mostrar
a desordem que atinge os estudantes quando eles chegam, pela
primeira vez, à universidade e se defrontam com os dispositivos
institucionais dentro dos quais eles terão de trabalhar. No segundo, “O
tempo da aprendizagem”, eu vou expor as estratégias que eles utilizam,
as perspectivas que se desenham, os desencantamentos que ameaçam
levar ao abandono e a instalação progressiva de rotinas. Finalmente, no
terceiro capítulo, “O tempo da afiliação”, eu insistirei, sobre a
interpretação que fazem os estudantes das regras do currículo, e sobre
a incorporação que fazem dos allant de soi intelectuais que irão defini-
los, progressivamente, como estudantes competentes.
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