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CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA,

MEMÓRIA CULTURAL E SOCIEDADE

ALEXANDRO CHAGAS FLORENTINO

A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO REALISMO NA REPRESENTAÇÃO


AUDIOVISUAL: AUTO-REPRESENTAÇÃO EM O PRISIONEIRO DA
GRADE DE FERRO (AUTO-RETRATOS)

CAMPOS DOS GOYTACAZES-RJ


MARÇO DE 2008
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA,
MEMÓRIA CULTURAL E SOCIEDADE

ALEXANDRO CHAGAS FLORENTINO

A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO REALISMO NA REPRESENTAÇÃO


AUDIOVISUAL: AUTO-REPRESENTAÇÃO EM O PRISIONEIRO DA
GRADE DE FERRO (AUTO-RETRATOS)

Monografia apresentada ao Centro Federal de


Educação Tecnológica de Campos – CEFET
Campos, como parte das exigências para a
obtenção do título de Pós-Graduado em
Literatura, Memória Cultural e Sociedade.

Orientadora: Profª Drª Analice de Oliveira


Martins

CAMPOS DOS GOYTACAZES-RJ


MARÇO DE 2008
ALEXANDRO CHAGAS FLORENTINO

A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO REALISMO NA REPRESENTAÇÃO


AUDIOVISUAL: AUTO-REPRESENTAÇÃO EM O PRISIONEIRO DA GRADE DE
FERRO (AUTO-RETRATOS)

Monografia apresentada ao Centro Federal de


Educação Tecnológica de Campos – CEFET
Campos, como parte das exigências para a
obtenção do título de Pós-Graduado em
Literatura, Memória Cultural e Sociedade.

Aprovada em:

Banca Avaliadora:

.......................................................................................................................................
Profª Analice de Oliveira Martins (orientadora)
Doutora em Estudos de Literatura
Centro Federal de Educação Tecnológica/Campos

.......................................................................................................................................
Profª Edinalda Maria Almeida da Silva
Mestra em Comunicação e Cultura
Centro Federal de Educação Tecnológica/Campos

.......................................................................................................................................
Profª Renata Queiroz Soares
Mestra em Cognição e Linguagem
Centro Federal de Educação Tecnológica/Campos
Aos meus amigos e à minha família.

E aos amigos, principalmente à companheira biAh weRTHer,


que lutam por fazer da prática de se fazer cinema no Brasil
uma prática de se lançar livres olhares, de ser livre e de se
experimentar o mundo.
AGRADECIMENTOS

A todos(as) aqueles(as) que, de alguma forma, tornaram possível a concretização


deste trabalho. Sob pena de esquecer alguém, procurei não citar nomes.

À Coordenação de Pós-Graduação do CEFET Campos.

Às professoras do Curso de Pós-Graduação lato sensu em Literatura, Memória


Cultural e Sociedade .

À turma de Pós-Graduação em Literatura, Memória Cultural e Sociedade (2006),


pela enriquecedora troca de experiências com profissionais de áreas do
conhecimento distintas e afins.

Às professoras que aceitaram o convite para participar da banca avaliadora deste


trabalho.

À minha orientadora, pela grande paciência e compreensão.


Uma das tarefas do intelectual reside no esforço em derrubar
os estereótipos e as categorias redutoras que tanto limitam o
pensamento humano e a comunicação.

Edward W. Said
RESUMO

Na presente monografia, propomos uma análise do documentário O Prisioneiro da


Grade de Ferro (auto-retratos), de Paulo Sacramento, levando em consideração sua
estrutura de produção, em que se pode perceber uma quebra de paradigma, um
rompimento com o olhar mediador do intelectual enquanto o único dotado de voz na
construção da representação de um real. Pretendemos demonstrar que esta quebra
da mediação do olhar do intelectual, em busca da construção de auto-
representações, proporciona uma aproximação mais efetiva do real, a criação de um
“novo realismo”.

Palavras-chave: Documentário. Auto-representação. Realismo afetivo.


ABSTRACT

In the present work, we propose an analysis of O Prisioneiro da Grade de Ferro


(auto-retratos), a documentary by Paulo Sacramento, considering its production
structure, which can be seen as a paradigm break, a rupture with the intelectual’s
look as the only capable of a reality perspective construction. We intend to
demonstrate that this rupture of the intelectual’s look, searching for the construction
of self-representations, offers a more effective real closeness, the creation of a “new
realism”.

KEYWORDS: Documentary. Self-representation. Affective realism.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………..10

1 - BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO: DOCUMENTÁRIO ENQUANTO GÊNERO


CINEMATOGRÁFICO ...............................................................................................12

2 - REPRESENTAÇÕES DO INTELECTUAL ...........................................................16

2.1 O papel do intelectual como mediador ............................................................16

2.2 – Por uma postura do intelectual.......................................................................23

3 - AUTO-RETRATO DO PRISIONEIRO...................................................................29

3.1 - Construção e afirmação de identidades culturais: um olhar dos estudos


culturais..............................................................................................................................29

3.2 - Um novo realismo...........................................................................................31

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 36

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 38
11

INTRODUÇÃO

Algumas áreas de pesquisa como a psicanálise, a iconografia e a semiótica


têm discutido, de certo modo, as possibilidades que o audiovisual instaura na
criação de “imaginários coletivos”, expressão cara a Martín-Barbero (2004),
enquanto ferramenta capaz de construir valores, diversidades e conhecimentos.

Porém não é difícil encontrar teóricos e estudos que condenem a produção


audiovisual ao mundo do engano, da fabulação, que a confinem apenas à dimensão
estética da arte, como uma ferramenta destinada a manipular e a persuadir, um
grande simulacro e um mal a ser combatido. Outra forma de se pensar a produção
audiovisual é considerando-a um mecanismo de representação do real capaz de
veicular o ponto de vista de quem a produziu. Assim sendo, esta noção de
veiculação de pontos de vista por quem realiza a representação audiovisual contribui
para a diversificação de olhares sobre a realidade.

Esses dois pontos de vista, no entanto, partem do mesmo pressuposto: a


função de representabilidade do real por parte da produção audiovisual. Com isso,
ao creditar a função de representabilidade do real ao audiovisual, ignoram-se as
atuais possibilidades de se trabalhar com a produção de imagem e som de forma tão
fácil, no que diz respeito à acessibilidade, quanto se trabalha com a escrita, o que
Pierre Lévy conclui assertivamente em As Tecnologias da Inteligência (1993), pois
não são mais necessários materiais e nem custos proibitivos e nem uma complexa
aprendizagem de operacionalização dos mecanismos de produção.

Esta facilidade de se trabalhar com imagem e som proporciona realizações


mais acessíveis, permite experimentar novas formas de produção, a ponto de
romper com os limites da representabilidade do real e criar efeitos de realidade.

É neste contexto que este trabalho busca discutir, a partir da análise da


estrutura de realização do documentário, enquanto gênero cinematográfico e
mecanismo de representação do real, algumas proposições acerca do papel de
mediador do intelectual e sua função na sociedade. O que propicia,
conseqüentemente, um debate sobre as possibilidades de construção de um novo
12

realismo na linguagem audiovisual, proporcionado pela ruptura do paradigma


convencional da mediação do intelectual.

Para tanto, o texto foi dividido em três capítulos. No primeiro, apresentamos


uma breve contextualização sobre a prática e a conceituação do documentário
enquanto um gênero cinematográfico, utilizando como referencial teórico Manuela
Penafria (2001), Bill Nichols (2005), Silvio Da-Rin (2006), dentre outros.

Em seguida, buscamos analisar a função do intelectual enquanto mediador na


construção de representações e o seu papel na sociedade. Para isso, dividimos este
segundo capítulo em duas partes. Inicialmente, buscou-se compreender como
funciona, a partir da construção de representações, tendo como ferramenta a
realização audiovisual, a mediação do intelectual para, logo em seguida, analisar a
proposta de Daniela Versiani (2005) de construção de auto-representações. A
segunda parte deste capítulo ficou reservada para se discutir o papel do intelectual
contemporâneo na sociedade a partir das reflexões de Edward W. Said.

Por fim, o terceiro e último capítulo foi dividido em duas partes:


primeiramente, elaboramos uma análise no intuito de identificar os mecanismos de
formação e afirmação de identidade com base nos Estudos Culturais. Por fim,
verificamos, devido à estrutura de realização do documentário O Prisioneiro da
Grade de Ferro (auto-retratos), a ocorrência de um “novo realismo” em função de
uma aproximação mais efetiva do real.
13

1 – BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO: O DOCUMENTÁRIO ENQUANTO GÊNERO


CINEMATOGRÁFICO

Faz-se importante, ao falar da confecção de um filme, abordar o conceito de


perspectiva, que pode ser descrita como a arte de representar em uma superfície
plana as coisas como as vemos no mundo real. Tal termo surge com a Renascença,
na França, e, enquanto técnica, quase sempre esteve presente na produção de
imagens pictóricas.
Assim sendo, a produção de imagens pictóricas é realizada apoiando-se em
determinada perspectiva, ou seja, elaborada sob determinado ponto de vista.
Portanto, quando nos deparamos com uma projeção fílmica, deparamo-nos com o
ponto de vista de quem a produziu, com sua maneira de ver e representar o mundo.
Deste modo, a câmera funciona como mediadora entre o público e o filme, ou seja,
mediadora entre o modo de interpretar o mundo do espectador e a perspectiva, a
maneira de representar o mundo de quem realiza o filme.
Creio ser importante deixar claras essas questões, pois há quem acredite que
o cinema, a produção audiovisual, de uma forma geral, seja algo revelador, portador
da verdade, porém “a imagem que recebemos compõe um mundo filtrado por um
mundo exterior a mim, que me organiza uma aparência das coisas, estabelecendo
uma ponte, mas também se interpondo entre eu (sic) e o mundo” (XAVIER, 1988, p.
369-370).
Mesmo se tratando de um filme-documentário, não podemos ser ingênuos em
acreditar que ele é a expressão de uma verdade única e imodificável, pois, como
salienta a pesquisadora portuguesa Manuela Penafria, em seu artigo “O ponto de
vista no filme documentário” 1, o documentário apresenta uma rotina produtiva que é
caracterizada pelo registro in loco, o ponto de vista e a criatividade do
documentarista, sendo estes os princípios constituintes da unidade deste gênero
cinematográfico, princípios que, de certa forma, explicitam o envolvimento subjetivo
do documentarista.
Afinal, é, a partir dos pontos de vista ou abordagens, que as temáticas
1
PENAFRIA, Manuela. “O ponto de vista no filme documentário”. http://bocc.ubi.pt/pag/penafria-
manuela-ponto-vista-doc.pdf. 2001, p. 02.
14

tratadas em documentários têm possibilidades de serem abordadas de formas


aprofundadas, destacando-se, assim, o documentarista enquanto figura-chave do
documentário. A atividade de produção documental fica centrada na habilidade do
documentarista, segundo Manuela Penafria:

Um documentário pauta-se por uma estrutura dramática e narrativa,


que caracteriza o cinema narrativo. A estrutura dramática é
constituída por personagens, espaço da acção, tempo da acção e
conflito. A estrutura narrativa implica saber contar uma história;
organizar a estrutura dramática em cenas e seqüências, que se
sucedem de modo lógico. A suportar tudo isto deve estar uma idéia a
transmitir. Essa idéia a transmitir constitui a visão do realizador sobre
determinado assunto.

No entanto é possível, ainda, encontrar quem acredite que o cineasta,


sobretudo o cineasta de documentário, é uma espécie de repórter neutro e
onisciente de uma suposta verdadeira realidade dos fatos e não uma testemunha
participante e um ativo construtor de significados. Mas “o documentário sempre foi
uma forma de re-presentação, e nunca uma janela aberta para a ‘realidade’”
(NICHOLS, 2005, p. 49).
Outra questão importante e debatida pelo cineasta Silvio Da-Rin, na
introdução de seu livro Espelho partido: tradição e transformação do documentário, é
o fato de que o conceito de documentário é extremamente difícil de ser trabalhado
no plano teórico. Tentativas de definições e conceituação do que seria documentário
surgiram por diversas vezes, porém fracassaram, pois partiram da absolutização,
assim generalizando características ao gênero cinematográfico:

O que é um documentário? Para alguns, é o filme que aborda a


realidade. Para outros, é o que lida com a verdade. Ou o que é
filmado em locações autênticas. Ou o que não tem roteiro. Ou que
não é encenado. Ou ainda, que não usa atores profissionais. Estas e
outras tentativas simplistas de balizar o terreno vão sendo
sucessivamente negadas pelos exemplos de filmes que não se
enquadram nelas, mostrando que os limites são arbitrários e criando
um labirinto interminável de exceções que acabam por nos levar de
volta ao ponto de partida. Se o documentário coubesse dentro de
15

fronteiras fáceis de estabelecer, certamente, não seria tão rico e


fascinante em suas múltiplas manifestações. (DA-RIN, 2006, p. 15).

Da-Rin expõe algumas tentativas de definição mais precisas, mas que não
resolvem a questão, como a de que o documentário seria o “tratamento criativo da
realidade” (2006, p.16), definição esta atribuída ao inglês John Grierson.
Nesta questão de conceituação, há quem estabeleça uma oposição entre
documentário e ficção. Também há quem não acredite nesta oposição, como é o
caso do cineasta francês Jean-Luc Godard: “... todos os filmes de ficção tendem ao
documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção (...) E quem
opta a fundo por um encontra necessariamente o outro no fim do caminho”
(GODARD apud DA-RIN, 2006, p. 17).
Bill Nichols, no artigo “Introdução ao documentário”, também se dedica a
explicitar a dificuldade de se definir o que seria um documentário:

A definição de “documentário” não é mais fácil do que a de “amor” ou


de “cultura”. Seu significado não pode ser reduzido a um verbete de
dicionário, como “temperatura” ou “sal de cozinha”. Não é uma
definição completa em si mesma, que possa ser abarcada por um
enunciado que, no caso do “sal de cozinha”, por exemplo, diga tratar-
se do composto químico de um átomo de sódio e um de cloro (NaCl).
A definição de “documentário” é sempre relativa ou comparativa.
Assim como amor adquire significado quando constratada com
barbárie ou caos, o documentário define-se pelo contraste com filme
de ficção ou filme experimental e de vanguarda (NICHOLS apud
RAMOS, 2005, p. 47).

Assim, toda esta dificuldade de definição em terreno teórico, pois “suas


‘fronteiras incertas’ desafiam o estabelecimento de uma definição extensiva, capaz
de esgotar todas as ocorrências” (DA-RIN, 2006, p. 18), não impossibilita o
reconhecimento da concreta existência deste “grande regime cinematográfico”
(Idem). O cineasta Silvio Da-Rin acrescenta que tal regime é de fácil constatação
empírica, para isso dando o exemplo de que, caso um espectador entre em uma
sala de projeção sem que saiba o que será exibido, em poucos minutos, saberá se o
que lhe expõem é ou não um filme-documentário.
16

A possibilidade de se conceituar teoricamente um filme-documentário se torna


delicada e complexa, pois, além de haver diversas concepções do que seria um
documentário, existem diversas formas de se realizar um filme que possa ser
considerado um documentário, em que “periodicamente novos movimentos e
escolas aí se confrontam, dando lugar a sucessivas configurações do documentário”
(DA-RIN, 2006, p. 19), o que reforça a idéia da existência de diversas concepções
do que seria tal gênero cinematográfico:

As diferentes tendências que, ao longo da história do cinema, foram


identificadas com este nome tão difícil de definir, não constituem um
único e mesmo objeto, mas diferentes objetivações do documentário.
Cada uma delas possui seu percurso peculiar, suas plataformas
estéticas, sua crítica às práticas consideradas superadas e seu
resgate de antecessores (Idem).

Portanto, se fôssemos conferir uma espécie de identidade à realização do


documentário seria a diversidade. Diversidade estabelecida a partir da construção e
da reconstrução de diversos agentes discursivos e comunidades interpretativas.

2 – REPRESENTAÇÕES DO INTELECTUAL
17

2.1 - O papel do intelectual como mediador

Analisando dois documentários contemporâneos brasileiros, Ônibus 174, de


José Padilha (2002), e O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos), de Paulo
Sacramento (2003), pode-se observar que ambos tratam de temas afins: violência
urbana, segurança pública, indivíduos marginalizados, etc.
O primeiro trata, especificamente, do episódio do ônibus da linha 174,
seqüestrado no Jardim Botânico, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, por Sandro
Nascimento, em 12 de junho de 2000. O episódio, à época, foi transmitido, via
satélite, por vários canais de televisão e chocou muitos telespectadores, assim,
tornando possível assistir ao que foi considerado um show de horrores, que
culminou com as mortes da professora Geísa Firmo Gonçalves, uma das reféns, e
do seqüestrador.
O documentário intercala imagens gravadas pelas redes de televisão,
imagens que exibem o pânico expresso nos rostos dos reféns dentro do ônibus,
depoimentos das vítimas e dos policiais que participaram da desastrosa ação.
Também é realizada uma reconstituição da vida de Sandro, em que conhecidos e
familiares do seqüestrador contam a história de sua vida, assim, apontando para as
possíveis causas do surgimento de perfis como o de Sandro Nascimento, formados
a partir da exclusão que os torna sujeitos invisíveis, e esta invisibilidade só é
desafiada com a prática de crimes.
O segundo filme, O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos), trata do
cotidiano dos presidiários da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru. O filme
de Sacramento, contudo, apresenta o dia-a-dia do presídio por intermédio de seus
residentes fazendo com que a tragédia do massacre do Carandiru, as condições
precárias do sistema carcerário brasileiro e a demolição do presídio sejam meros
coadjuvantes.
Esses dois filmes se distinguem, especificamente, na forma de realização e
representação do indivíduo marginalizado. Ônibus 174 realiza uma representação do
marginalizado a partir da mediação direta do intelectual. O diretor do filme, (o
intelectual), atua como um tradutor, aquele que vai até a realidade, interpela-a, tira
18

suas conclusões e nos expõe tal realidade, sempre a partir de seu ponto de vista, a
partir de suas interpretações e intenções.
Com isso, é importante salientar que, em cinema, a forma como um filme é
realizado é tão importante quanto o conteúdo, pois um filme é um conjunto de
práticas: roteiro, fotografia, edição, ritmo etc. E é este conjunto de práticas que faz
com que o assunto a ser abordado pela obra tome corpo e chegue ao público da
forma como foi idealizada, assim, (re)afirmando a intencionalidade na confecção de
um material audiovisual, sobretudo os de não-ficção.
Portanto, torna-se inadequado discutir um filme levando em consideração
apenas seu assunto, pois, desta forma, apenas se debate uma pequena parte da
obra. Há quem possa até questionar dizendo que, desta maneira, isso se tornaria
uma discussão acerca das questões técnicas, mas, não, isso seria considerar o filme
como um todo, debatê-lo enquanto um conjunto de práticas.
A estrutura de realização adotada por José Padilha (uma estrutura de certa
forma comum aos filmes documentários) proporciona a construção de uma
representação mediada pelo olhar, apenas, do intelectual.
Diferentemente do que ocorre em O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-
retratos), a estrutura de realização faz com que o filme seja concretizado, em sua
grande parte, pelo objeto, que normalmente teria uma representação construída pela
mediação do ponto de vista do cineasta. O objeto do filme realiza um filme sobre ele
mesmo, realiza uma auto-representação. O documentário de Paulo Sacramento foi
realizado (em sua grande parte), por alguns detentos da Casa de Detenção de São
Paulo (Carandiru) após participarem de algumas oficinas audiovisuais 2.
Essa auto-representação, contudo, é realizada em conjunto com o
documentarista, o intelectual. Assim, fazendo do documentário um “gênero coletivo e
interacional” (VERSIANI, 2005, p. 82), pois o documentarista compartilha seu
posicionamento sobre o assunto que procura tratar em seu filme com o objeto do
trabalho.
Neste ponto, a leitura que a pesquisadora Daniela Versiani faz, em sua tese
de Doutorado Autoetnografias: conceitos alternativos em construção, da teórica e

2
2 Essas oficinas e a captação de imagens utilizadas no documentário aconteceram ao longo de
sete meses do ano de 2001. Em 2002, o Complexo Penitenciário do Carandiru foi implodido em
ato público comandado pelo governo do Estado de São Paulo.
19

crítica literária Julia Watson é oportuna, ao compararmos a produção do texto


audiovisual de O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos) com a produção de
autobiografias, pois a análise do ensaio intitulado “Toward an Anti-Metaphysics of
Autobiografy” nos aponta a importância de estratégias alternativas na construção de
representações do eu, pois “enfatizando a presença ‘do outro’ na escrita do eu,
acaba por incluir, no discurso autobiográfico, por meio da memória e das condições
históricas em que se deu o processo de subjetivação, as vozes de outros selves”
(WATSON apud VERSIANI, 2005, p. 77), resultando em um tipo de escrita a partir
do que Watson denomina subjetividade dialógica:

Assim, de acordo com a argumentação de Julia Watson, se o modelo


de autobiografia cunhado no século XVIII servira para construir de
forma discursiva aquele sujeito unívoco, autobiografias que adotem
estratégias discursivas alternativas ao modelo tradicional
construiriam discursivamente identidades multifacetadas e
subjetividades plurais. Nesse sentido, nos modelos alternativos de
autobiografias apontados por Watson, a escrita autobiográfica torna-
se reveladora das diferentes vozes culturais interiorizadas pelo self
ao longo de sua trajetória pessoal e advindas das relações por ele
estabelecidas com outros selves em contextos específicos. (Apud
VERSIANI, 2005, p. 77-78).

Pode-se dizer, portanto, que o que conduz o filme em questão é essa


interação entre sujeito construtor da representação tratada na obra e o objeto desta
obra. Interação que permite uma co-produção, uma produção em conjunto, realizada
tanto pelo sujeito quanto pelo objeto. Essa interação permite ao documentário ter
uma perspectiva elaborada a partir de dois pontos de vista. Assim, comparando a
realização de um documentário a um trabalho etnográfico (guardadas as devidas
proporções), Daniela Versiani, analisando o debate travado por James Clifford
acerca da construção de textos etnográficos e a produção de conhecimento sobre os
outros, em que Clifford salienta a busca de alguns antropólogos contemporâneos, a
fim de se estabelecerem alternativas ao modelo de etnografia realizado por
Malinowsk3, em Os argonautas do pacífico ocidental (1922)4, aponta-nos uma
3
Malinowsk é considerado um dos fundadores da antropologia social, também conhecida como a
escola funcionalista.
4
Obra, em termos de texto etnográfico, considerada modelo de acordo com os tradicionais
princípios da antropologia moderna.
20

mudança de paradigma em que:

(...)as etnografias que denomina ‘pós-modernas’ referem-se


exatamente à não negação da experiência pessoal e, principalmente,
à explicitação do ‘contexto performativo imediato’ no qual ocorre a
relação interpessoal entre etnógrafo e etnografado como pressuposto
básico da construção da própria etnografia (VERSIANI, 2005, p. 84).

Assim sendo, no filme em questão, observa-se essa relação entre objeto e


documentarista. Eles constroem um olhar acerca do tema proposto de forma
conjunta, não prevalecendo, com isso, a construção de uma representação mediada
pelo olhar, apenas, do intelectual.
Dessa maneira, chegamos à outra questão importante, que é o fato de O
Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos), nessa estrutura produtiva adotada,
passar a não ser apenas um documentário sobre os detentos e seus pontos de vista
sobre a situação em que se encontram, mas ser um filme sobre o trabalho da própria
equipe comandada por Paulo Sacramento. Mesmo que, em primeiro plano, sempre
se enxerguem os prisioneiros, o documentarista e sua equipe estão visivelmente
inclusos no filme, seja dando orientações aos detentos que recebem uma câmera
(essa situação é registrada e incluída na edição final), seja em momentos em que
aparece em cena alguém da equipe filmando os prisioneiros, e estes a filmando.
Assim, configura-se o que “Foucault (...) ensinou-nos sobre a ‘indignidade de falar
pelos outros’ e que”:

(...)o papel do intelectual que hoje partilha de uma perspectiva


multiculturalista (...) e deseja colaborar para a construção de uma
episteme multicultural e aberta, seja não o de falar sobre os outros,
descrevendo-os, nem pelos outros, tutelando, mas sim com os
outros, imaginando processos dos quais sujeitos possam falar sobre
e por si mesmos (VERSIANI, 2005, p. 22)

Nesta obra, sob este prisma, podemos ouvir as vozes dos detentos a todo
instante. A título de exemplo, podemos observar o desenrolar de uma das
21

seqüências iniciais do filme em questão, onde um sujeito conhecido com FW MC é o


protagonista.
A seqüência se inicia com ele e seu parceiro de rap – Kric MC – cantando
para outros detentos. Logo em seguida, aparece na tela FW andando com uma
câmera na mão e sua voz em off dizendo que irá mostrar a realidade da prisão e
que o filme é um auto-retrato: “esse é o nosso auto-retrato”.
Esta seqüência é composta por imagens do detento recebendo orientações
para manuseio do equipamento, jogo de futebol no pátio do presídio, lixo sendo
recolhido de fossa etc., até o momento em que FW se recolhe em sua cela e,
olhando através das grades de ferro, observa o pátio vazio ao som de Ave Maria.
Sem precisar recorrer ao depoimento, recurso comumente utilizado em
documentários, FW mostra, por meio de um texto construído por imagens, como é
seu cotidiano, o que ele acha mais representativo. Tanto os aspectos positivos
quanto os negativos estão expressos na seqüência. Ele não precisou depor, mas
ouvimos o que ele quis dizer.
Esta seqüência, o fato de não precisar depor para ouvirmos sua voz, acaba
por configurar uma ruptura com certa tradição do documentário, que é a de pautar-
se em depoimentos que são utilizados no intuito de dar crédito ao que o
documentarista quer dizer com o filme que realizou.
A alternativa a esse recurso tradicional do depoimento pode ser considerada
uma substituição de uma voz de autoridade do intelectual na construção de
representações. Para sustentar esta idéia, pode-se recorrer à discussão feita por
Paulo Roberto Tonani do Patrocínio em sua Dissertação de Mestrado, Entre o morro
e o asfalto: imagens da favela nos discursos culturais brasileiros 5, em que,
recorrendo a Foucault, diz que o intelectual deve “ser crítico de suas próprias
condições de trabalho” (BRUNI apud PATROCÍNIO, 2006, p. 82) para que o
discurso do personagem não seja absorvido pelo discurso do intelectual, tutelando-
o, o que acabaria por desqualificá-lo, devolvendo-o ao silêncio.
Utilizando apontamentos da crítica australiana Margery Fee, no artigo “Who
can write as Other”, Patrocínio incorpora importantes questionamentos de Fee, que
potencializam o debate sobre a produção de representações sobre o outro:

5
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Letras
da PUC-Rio. Rio de Janeiro, 10 de março de 2006.
22

(...) podem os grupos majoritários falar como se fossem as minorias?


Os brancos como se fossem negros ou pardos, os homens como se
fossem mulheres, os intelectuais como se fossem operários? Caso
afirmativo, como podemos diferenciar juízos preconceituosos e
reacionários, generalizações aproveitadoras, romantizações
pendendo ao estereótipo, tipificações indulgentes e visões imparciais
e transformadoras? (FEE apud PATROCÍNIO, 2006, p. 81)

Talvez, a estrutura de realização do documentário sobre o Carandiru, em que


os personagens são, também, os realizadores do filme, possa ser uma proposta de
atuação do intelectual enquanto mediador, uma alternativa que não silencia “o
sujeito que está alocado no espaço da exclusão” (PATROCÍNIO, 2006, p. 82) e que
também pode ser uma forma efetiva de atuação, enquanto alternativa, observando
as colocações de Versiani, que alega que o discurso acerca da indignidade de falar
pelos outros acaba por servir de justificativa para que o intelectual contemporâneo
se exclua do processo de representações dos outros, e que se faz necessário criar
estratégias para que seja possível dar visibilidade às subjetividades do intelectual ao
se posicionar frente ao seu objeto, pois é insatisfatório apenas destinar esforços à
analise dos processos de exclusão e marginalização de sujeitos silenciados:

(...) é necessário elaborar estratégias de inclusão dessas


subjetividades não apenas no que consideramos seja nossa
“realidade” social, supostamente exterior e anterior aos nossos
modos de percepção dessa “realidade”, mas efetivamente através da
elaboração criativa de estratégias capazes de torná-las visíveis na
própria episteme que interativamente construímos, estratégias de
produção e leitura dessa “realidade” ancoradas em conceitos
capazes de tornar novas subjetividades não apenas visíveis em sua
complexidade, mas também autorizadas a falar sobre e por si
mesmas (VERSIANI apud PATROCÍNIO, 2006, p. 83).
A experiência de Paulo Sacramento pode significar um ato empírico de
repensar o papel do intelectual, correspondente aos questionamentos levantados
pelos teóricos referidos, ou seja, sem se furtar do processo de construção de
representações do outro, sobretudo o outro marginalizado, mas sem silenciá-lo.
Com isso, podemos levantar uma proposta em que o papel do intelectual,
23

enquanto mediador da representação, seja comparado às propostas realizadas por


outro mecanismo de representação, o informacional. Jorge Rocha, em relatório do
projeto de Iniciação Científica Participatory Journalism: práticas e papéis dos
6
jornalistas na Internet propõe a concepção de um Jornalismo Colaborativo a partir
de práticas colaborativas, em que quem consome a informação pode agregar
conteúdo à informação inicial, assim, tornando-se co-enunciador na construção da
informação fazendo com que haja uma transmutação no que seria o tradicional
papel do jornalista, aquele que cria representações do mundo a partir da construção
de informações, o que Rocha denomina “Cartógrafo da informação”. Assim: “A
aproximação entre os papéis de ‘quem produz’ e de ‘quem consome’ informação nos
parece ainda mais evidente, conforme atestam as práticas do Jornalismo
Colaborativo em sites”, já que o objetivo principal é a “participação ativa entre os
vários agentes do processo informacional” (Idem).
De acordo com tal concepção, tomando critérios comparativos, essa poderia
ser uma postura adotada pelo intelectual contemporâneo. Assim, entendemos que a
atuação do intelectual, enquanto mediador de representações, seja uma atuação
colaborativa, ou seja, a de construtor de conhecimentos através de representações
em conjunto com o objeto dessas representações, o que o tornaria uma espécie de
Cartógrafo do conhecimento. Importante, também, ressaltar que, segundo
Patrocínio, a partir de proposições de Heloísa Buarque de Hollanda, o intelectual
contemporâneo está “impossibilitado de falar pelo Outro, pois os próprios
marginalizados já construíram suas próprias formas de representação”, restando “ao
intelectual exercer a função de co-autor dos processos simbólicos” (PATROCÍNIO,
2006, p.84). Para exemplificar, menciona a edição do livro Cabeça de porco7 (2005),
de MV Bill, Celso Athayde e Luiz Eduardo Soares, em que é construído um saber
compartilhado.

2.2 - Por uma postura do intelectual

6
Projeto financiado pelo Propic, a primeira etapa da pesquisa teve início em fevereiro de 2006 e foi
finalizada em fevereiro de 2007. Após este prazo, foi renovada por mais doze meses, devendo
terminar em fevereiro de 2008.
7
Livro de autoria colaborativa, sobre violência urbana a partir de depoimentos de jovens brasileiros
envolvidos no tráfico de drogas, escrito pelo rapper MV Bill, pelo empresário de rap e hip-hop
Celso Athayde e pelo antropólogo Luis Eduardo Soares. Editora Objetiva, 2005.
24

Seguindo a linha de raciocínio dos possíveis papéis do intelectual e


considerando o filme – Tropa de Elite (2007), segundo filme, como diretor, de José
Padilha, - que, antes mesmo de seu lançamento oficial, gerou árduos debates nos
suplementos de cultura dos jornais, é possível observar, principalmente, sua
estrutura de realização, pois, em caso contrário, aconteceria o que se deu em
debates travados, centrados em condenar ou absolver o ponto de vista do diretor
sobre o assunto do filme, com isso discutindo-se apenas o enredo do filme. Como já
afirmado, anteriormente, um filme não é feito apenas de um assunto, portanto, toda
discussão sobre um determinado filme deve levar em consideração sua estrutura de
realização, todo o texto cinematográfico.
Tropa de Elite, filme com temática afim aos filmes Ônibus 174 e O Prisioneiro
da Grade de Ferro (auto-retratos), é, porém, um filme de ficção, cuja pretensão é
representar a violência urbana em que a sociedade contemporânea está submersa.
Esse texto cinematográfico, através da agilidade e seqüência de imagens rápidas,
cortes dinâmicos que são comparados, por Ken Dancyger, ao padrão MTV de
produzir audiovisual, propicia o que Ivana Bentes, no artigo “Estéticas da violência
no Cinema”, considera uma “naturalidade” 8 da violência nos discursos que se
denominam representativos de tal violência no cinema contemporâneo.
Em “Técnicas de Edição para Cinema e Vídeo”, Ken Dancyger postula que
esse modelo videoclipado do modo de produção MTV, próprio do cinema
“hollywoodiano”, atende ao “público jovem que procurava por estímulo visual rápido
e evocativo” (DANCYGER, 2003, p. 191). Dancyger, em seu trabalho, defende tal
modelo de realização acreditando que o “estilo MTV rejeita a narrativa tradicional,
ele nos interessa” (DANCYGER, 2003, p. 192), porém, seu ponto de vista está
embasado no do profissional que entende o cinema como puro espetáculo, mera
mercadoria, uma visão publicitária da finalidade de um filme. Tal visão é própria dos
profissionais inseridos na indústria cinematográfica norte-americana.
Concordamos com Martin-Barbero e Germán Rey, que, em Os exercícios do
ver, afirmam que a produção imagética, incluindo a produção audiovisual, constrói
“imaginários coletivos” (MARTIN-BARBERO e REY, 2004, p.26), e reafirmamos as
8
BENTES, Ivana. “Estéticas da violência no Cinema”. In: Revista Semiosfera,
dez.2003.http://www.eco.ufrj.br/semiosfera/anteriores/especial2003/conteudo_ibentes.htm
25

observações de Ivana Bentes de que, ao se construir uma normalização da violência


através da representação audiovisual, são concretizadas, conseqüentemente, a
“indiferença à origem da pobreza e às injustiças estruturais, mais segurança privada,
mais repressão e demanda pela contenção das populações das favelas, (...) mais
câmeras de vigilância na defesa do patrimônio privado” 9.
A partir destes posicionamentos, considera-se que a estética da violência,
empregada em filmes como Tropa de Elite, reforça os estereótipos em que o pobre
configura um ator social que é a personificação do risco e da ameaça social, o que
torna as críticas a tais filmes pertinentes, pois:

Nunca houve tanta circulação e consumo de imagens da pobreza e


da violência, imagens dos excluídos, dos comportamentos ditos
"desviantes" e "aberrantes". A violência e a denúncia de crimes se
tornou quase um gênero jornalístico. O que seria interessante se
essas imagens não viessem freqüentemente descontextualizadas. A
violência aparecendo como "geração espontânea" sem relação com
a economia, as injustiças sociais, e tratada de forma espetacular,
acontecimento sensacional, folhetim televisivo e teleshow da
realidade que pode ser consumido com extremo prazer (Idem).

Neste contexto, e, sobretudo considerando o realizador de um filme como um


intelectual, realizador de discursos, um produtor de conhecimentos, podemos nos
questionar sobre o papel deste intelectual na sociedade.
De forma metafórica, Edward W. Said, em Representações do Intelectual,
livro que reúne seis conferências suas transmitidas pela BBC, as Conferências de
Reith, de 1993, compara a postura a ser adotada pelo intelectual como a de um
exilado, pois tal situação, o exílio, não representa a idéia equivocadamente difundida
de que seria um corte absoluto com o local de origem, muito menos a crença de
uma total integração em seu novo espaço de convívio. Com isso, tal intelectual tem
de viver todo o tempo com a certeza do exílio e com a idéia de não estar
efetivamente tão distante de casa assim, numa espécie de não pertencimento ao
lugar onde se está e nem de onde se veio:

9
BENTES, Ivana. “Estéticas da violência no Cinema”. In: Revista Semiosfera,
dez.2003.http://www.eco.ufrj.br/semiosfera/anteriores/especial2003/conteudo_ibentes.htm
26

Portanto o exilado vive um estado intermediário, nem de todo


integrado ao novo lugar, nem totalmente liberto do antigo, cercado de
envolvimentos e distanciamentos pela metade; por um lado ele é
nostálgico e sentimental, por outro, um imitador competente ou um
pária clandestino. A habilidade em sobreviver torna-se o principal
imperativo, com o perigo de o exilado ficar acomodado e seguro em
demasia, o que constitui uma ameaça contra a qual deve sempre se
prevenir (SAID, 2005, p. 57).

Com essa comparação, podemos sugerir uma possível postura do intelectual,


que deve ser a de nunca se deixar acomodar, sempre se manter em exílio, logo,
“nunca encontrar-se plenamente adaptado, sentindo-se sempre fora do mundo
familiar (...) por assim dizer, predisposto a evitar e até mesmo a ver com maus olhos
as armadilhas da acomodação e do bem-estar nacional” (Idem, p. 60).
O estar sempre incomodado é preponderante para que um espírito crítico
com as coisas e consigo mesmo esteja sempre presente em suas atitudes, e que
essas atitudes sejam sempre radicais, o que não quer dizer ser sectário, e, sim,
independente, autônomo.
Voltando à crítica ao filme Tropa de Elite e considerando a importância de que
o intelectual tenha bem definido um papel a ser posto em prática na sociedade em
que se insere, a posição do realizador, o intelectual em questão, segue um caminho
oposto ao que se sugere como sendo uma postura adequada àquele que se
pretende intelectual, a quem cabe o papel, de certa forma, de incomodar o
consenso, incomodar com radicalidade sem fazer o jogo do mercado e do
establishment 10.
Pode-se observar um antagonismo na atitude do intelectual, em Tropa de
Elite, diante da que se sugere como postura do intelectual, devido ao fato de o filme
(re)afirmar uma imagem já amplamente difundida do objeto que se pretende
representar: uma imagem estereotipada da violência urbana, da corrupção, do pobre
favelado, sem questionar suas origens, (re)afirmando o senso comum relativo a tais
questões.
Estes posicionamentos possibilitam o surgimento de mais um

10
Entendendo establishment como grupo sociopolítico que exerce sua autoridade, controle ou
influência, defendendo seus privilégios; ordem estabelecida, sistema.
27

questionamento: que direito tem o intelectual de realizar representações sobre


determinados grupos sociais, em que são criados e intensificados os estereótipos?
Para compreender melhor esta questão podemos recorrer à argumentação de
Said sobre a existência do intelectual profissional e do amador.
Sendo assim, o intelectual profissional é aquele cuja função central é “conferir
autoridade com seu trabalho enquanto recebem grandes lucros” (Idem, p. 14),
exercendo a função de especialistas, consultores, grupos de indivíduos alinhados a
instituições, com isso ganhando “poder e autoridade a partir dessas instituições. Se
as instituições prosperam ou decaem, assim também fazem seus intelectuais” (Idem,
p. 73).
Já o intelectual amador é visto por Edward W. Said como aquele cuja tarefa é
se esforçar para “derrubar os estereótipos e as categorias redutoras que tanto
limitam o pensamento humano e a comunicação” (Idem, p. 10), configurando, desta
forma, um papel junto à sociedade enquanto outsider, autônomo, perturbador do
status quo, “(...) intelectuais precisamente como figuras cujo desempenho público
não pode ser previsto nem forçado a enquadrar-se num slogan, numa linha
partidária ortodoxa ou num dogma rígido” (Idem, p. 12).
É possível cotejar o debate 11, realizado no tópico anterior, com a análise que
a ensaísta Beatriz Resende faz sobre o momento cultural em que vivemos como
sendo um momento em que o intelectual não tem mais essa voz de autoridade, pois
os que antes não tinham voz criaram mecanismos para e preferem falar por si sós,
restando assim ao intelectual a função de ser um sujeito crítico, o qual Said sugere
como “amador”:
Se hoje o intelectual não tem mais a função de porta-voz dos que
não tem – que preferem falar por si mesmos –, tarefa de mediador
entre poderosos e oprimidos, como acontecia com o intelectual
moderno, resta-lhe ainda a função crítica que os distingue dos
“especialistas” (RESENDE, 2002, p. 22).

A partir destas proposições, alguns questionamentos podem ser pertinentes.


De que forma Tropa de Elite, com uma postura crítica, poderia agregar

11
O debate refere-se ao papel do intelectual, enquanto mediador portador da voz que fala pelos que
não a têm, levando-se em consideração a ruptura com esta postura realizada no documentário de
Paulo Sacramento.
28

responsabilidade, por exemplo, pela banalização da violência urbana nos meios de


comunicação, tendo em vista que os veículos de comunicação de empresas como
as Organizações Globo foram grandes aliados na construção da idéia de que tal
filme seria algo “fantástico”?
Em matéria intitulada “Os bastidores da Tropa”12, veiculada pela revista
eletrônica da emissora Rede Globo, o Fantástico, no dia 23/09/2007, pôde-se notar,
observando a estrutura da matéria, que, mesmo tentando mostrar uma
imparcialidade – como se fosse possível -, o objetivo foi o de enaltecer o filme Tropa
de Elite.
O primeiro aspecto enfatizado na matéria foi o fato de que o filme causou
polêmica na mesma semana em que 58 policiais corruptos foram presos no
município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, e, logo na seqüência, é utilizada uma
parte do filme onde o Capitão Nascimento, personagem vivido por Wagner Moura,
como um narrador que se pretende onisciente, diz que “(...) quem quer ser policial
tem que escolher: ou se corrompe, ou se omite, ou vai pra guerra”. Este arranjo na
estrutura da matéria cria um elo entre a realidade (policiais corruptos sendo presos
em Duque de Caxias) e a ficção, conferindo status de verdade ao retrato da
realidade do filme. O ritmo da matéria, como no filme, é um ritmo catártico, escutam-
se apenas especialistas que defendem a hipótese de o filme ser o tal verdadeiro
retrato da realidade, o que é inapropriado para que algo dito polêmico seja debatido
adequadamente, assim, privilegiando apenas um ponto de vista. Outra questão que
funciona como uma espécie de exaltação ao referido filme são as ênfases em tons
eufóricos por parte dos jornalistas ao se falar de Tropa de Elite, um tom que busca
criar expectativa, que busca vender.
Outro questionamento a ser feito é o de como problematizar as construções
de representações estereotipadas no estilo hollywoodiano de se fazer cinema, já que
o diretor José Padilha vendeu os direitos de distribuição internacional do filme à
Weinsten Company, dos irmãos e ex-sócios da Miramax, Bob e Harvey Weinsten 13,
empresa bem estabelecida na indústria cinematográfica dos EUA, e mantém
12
Matéria disponível em: http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM734352-7823-
OS+BASTIDORES+DA+TROPA,00.html

13
Em entrevista para a revista Bravo, onde, também, Padilha revela que vendeu o roteiro do filme
para Weinsten Company por US$ 1,75 milhão, disponível em:
http://bravonline.abril.com.br/indices/cinema/cinemamateria_265136.shtml?printpage.
29

pretensões de participar da disputa pelo OSCAR, premiação da Academy of Motion


Picture Arts and Sciences (A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas)?
A importância de se enquadrar no estilo hollywoodiano pode ser
exemplificada pela manobra estratégica14 do produtor Harvey Weinstein. O longa-
metragem de José Padilha foi anunciado na mostra competitiva do Sundence Film
Festival, considerado o maior festival americano e o mais importante festival
independente do mundo, porém, o filme figurou entre os selecionados para o
Sundance por apenas um dia, pois, a pedido do produtor, Tropa de Elite foi retirado
da seleção.
Então, Harvey Weinstein passou a negociar a seleção do filme no Festival de
Berlim, de onde saiu premiado com o Urso de Ouro. Essa foi uma jogada
mercadológica valiosa na opinião do diretor, pois o filme volta a ganhar força no
mercado nacional, ganha força no mercado internacional e ganha força para figurar
entre os selecionados para concorrer ao OSCAR de 2009.
Essas questões servem para que possa ser observada a aplicação das
sugestões de Said aos nossos propósitos de análise. Chegando a uma conclusão
acerca da análise específica deste trabalho, talvez, a melhor proposta não seria a de
cobrar que o intelectual siga uma determinada postura, mas sim que ele deixe
plenamente clara para a sociedade a postura escolhida: a de profissional ou a de
amador. Afinal, da mesma forma que se apregoa o direito à independência, à
autonomia, o intelectual tem o direito de optar por se “profissionalizar”, mas que ele
deixe clara esta opção.

14
Essa manobra foi noticiada por jornais, revistas e sites como:
http://insightpublicidade.wordpress.com/2008/02/17/tropa-de-elite-conquista-o-urso-de-ouro-em-
berlim/
30

3 – AUTO-RETRATO DO PRISIONEIRO

3.1 – Construção e afirmação de identidades culturais: um olhar dos estudos


culturais

Retomando a análise do documentário de Paulo Sacramento, O Prisioneiro


da Grade de Ferro (auto-retratos), observa-se que a estrutura de realização adotada
funcionou “como meio de realização da consciência de si, da produção de uma
identidade ao mesmo tempo subjetiva e social e de auto-realização da pessoa”
(SUBIRATS, 1989, p. 72).
Considerando as colocações de Jameson que acredita que “(...) eliminar o
sujeito não nos deixa com o objeto wie es eigentlich gewesen [como efetivamente é],
mas, ao contrário, com uma multiplicidade de simulacros” (2006, p. 95), chegamos à
conclusão de que, além de um sujeito incluso e atuante na construção de uma
representação, ao “objeto” é facultada a transformação em sujeito elaborador de tal
representação, aflorando, desta forma, sua identidade de maneira mais eficaz
enquanto objeto de um documentário.
O modo de produção caracteriza uma quebra de paradigma, pois há um
rompimento com o olhar mediador do intelectual enquanto o único dotado de voz na
construção da representação de um real. Também, observa-se uma reestruturação
na maneira como identidades culturais são representadas, desta forma, indo ao
encontro dos apontamentos de Homi Bhabha, feitos em O Local da Cultura:

(...) reconstruir o discurso da diferença cultural exige não apenas


uma mudança de conteúdos e símbolos culturais; uma substituição
dentro da mesma moldura temporal de representação nunca é
adequada. Isto demanda uma revisão radical da temporalidade social
na qual histórias emergentes possam ser escritas; demanda também
a rearticulação do “signo” no qual se possam inscrever identidades
culturais. (1998, p. 240).

Ou seja, a construção e a afirmação de identidades culturais, em O


31

Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos), realiza-se da seguinte forma: a


câmera, um objeto - representativo de uma atividade – com o qual até então os
objetos/sujeitos envolvidos na construção do filme não tinham tido contato. O fazer
cinema atua como um elemento catalisador, em que indivíduos distintos – e até
então subjugados à identidade de presidiários – se organizam em coletividade para
a realização do filme.
Devemos considerar que cada indivíduo possui uma natureza distinta, estão
ali por crimes, também, distintos. Utilizar a câmera, enquanto ferramenta capaz de
contribuir para construção de representações, filmando o que julgam ser
representativo, significa atribuir certo valor ao que é filmado: rotina do presídio, os
diferentes modos como cada indivíduo cumpre sua pena, as condições a que são
submetidos companheiros de detenção etc.
Este certo valor caracteriza uma identificação15 - por parte de quem filma -
com o seu objeto (o que é filmado). O que nos remete ao que Stuart Hall,
mencionando Lacan, em seu livro A Identidade Cultural na Pós-modernidade,
descreve como a “formação do eu no ‘olhar’ do Outro” (1999, p. 37).
Ou seja, quem está com a câmera filmando leva em consideração, atribui
importância a representações culturais do Outro, numa espécie de recriação de si
mesmo. Com isso, “a identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL apud
HALL, 1999, p.13). É a partir da opção pela estrutura de realização do filme,
adotada por Paulo Sacramento, que há a construção, a formação das identidades
exibidas na representação fílmica, pois, como salienta Tomaz Tadeu da Silva em
seu ensaio “A produção social da identidade e da diferença”, a identidade é
produzida cultural e socialmente. Antes desta prática - o filme -, os realizadores
estavam subjugados16 à identidade de prisioneiros e a toda sorte de definições que
acompanham tal caracterização:

Já sabemos que a identidade e a diferença são o resultado de um


15
“Esse conceito que descreve o processo pelo qual nos identificamos com os outros”
(WOODWARD apud SILVA, 2000, p. 18).
16
Subjugado no sentido de que há vetores de força, relações de poder impondo algo.
32

processo de produção simbólica e discursiva. O processo de


adiamento e diferenciação lingüísticos por meio do qual elas são
produzidas está longe, entretanto, de ser simétrico. Isso significa que
sua definição – discursiva e lingüística – está sujeita a vetores de
força, a relações de poder. Elas não são definidas; elas são impostas
(SILVA, 2000, p. 81).

Outra questão importante é o fato de o filme O Prisioneiro da Grade de Ferro


(auto-retratos), levando em consideração os mecanismos adotados para sua
realização, como já foi abordado anteriormente neste trabalho, não ser um
documentário sobre, somente, os presidiários e a situação em que se encontram,
mas também ser um documentário sobre a própria equipe realizadora do filme.
Portanto, o ato no qual a equipe filma o prisioneiro e o prisioneiro filma a
equipe, estando, assim, todos representados no filme, fazem dele uma produção
constituída pela co-autoria já debatida, acontecendo a valorização das
representações do Outro, um reconhecimento do Eu no Outro. Assim, não só a
identidade dos detentos está em constante transformação, em movimento. Também
é móvel a identidade dos integrantes da equipe que trabalha na construção do
documentário.

3.2 – Um novo realismo

O movimento artístico e cultural Realismo tem sua origem na segunda


metade do século XIX e é caracterizado pela busca do artista em representar a
realidade de maneira objetiva. A base do movimento pauta-se na “concepção
materialista da realidade” (FILHO, 1973, p.207), visão de mundo proporcionada pela
corrente filosófica do período, o Positivismo, que tem, na ciência, o único artifício
seguro para explicar a realidade. O olhar científico era tido como o critério mais
adequado para compreender e analisar a realidade.
Eça de Queirós, figura representativa do realismo na literatura portuguesa e
universal, em sua famosa conferência sobre o realismo em arte, em 1871, no
Cassino Lisbonense declara que:
O Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte
que nos pinta a nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para
33

que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que


houver de mau na nossa sociedade. (QUEIRÓS apud FILHO, 1973,
p. 207).

O realismo, enquanto movimento artístico, busca representar o real seja na


literatura, seja nas artes plásticas, seja no teatro etc, a partir da ocultação dos
indícios que caracterizam a produção de ficções no intuito de ser plenamente
verossímel, aproximando-se ao máximo da realidade, decalcando-a, inventarindo-a,
para que, assim, seja atestado o caráter documental e mimético do movimento
referido.
Para tal, na literatura realista, por exemplo, pretende-se o máximo de
objetividade, e, ao fornecer “uma interpretação da vida, suas obras são também
caracterizadas por uma preferência marcada pela narração” (Idem, p. 210), uma
busca pela aproximação dos relatos científicos mediante uma linguagem próxima da
realidade, sem rebuscamentos, natural, narrativa lenta e preocupada com minúcias.
Sob este ponto de vista, quando nos deparamos com um filme, deparamo-nos
com representações realizadas sobre um suposto real mediado pelo olhar do
cineasta, que, de forma totalizadora, coloca seu ponto de vista sobre este real e o
veicula no filme.
Encontramos este modo de se produzir arte em filmes como Tropa de Elite,
tido por quem o realizou como um retrato autêntico da violência urbana no Rio de
Janeiro, que funciona como uma espécie de denúncia deste quadro social. O filme,
no entanto, é uma ficção que utiliza a narrativa supostamente onisciente do Capitão
Nascimento17, em off, para conduzir minuciosamente a trama do filme, o que pode
caracterizar o real mediado sob a tutela do intelectual, o real interpretado e
analisado sob o ponto de vista de José Padilha, o diretor do longa-metragem.
Já em O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos), a mediação do
intelectual na construção da obra não se dá convencionalmente, como nas demais
produções fílmicas, onde há uma mediação claramente explícita. Portanto, a
estratégia empregada na realização do documentário em questão revela um esforço
percebido, na cultura contemporânea, de se apresentar, como postulado por
17
Deve-se levar em consideração que uma das maiores acusações imputadas ao filme foi a
escolha do ponto de vista exclusivo do Capitão Nascimento, e que José Padilha e até o ator
Wagner Moura se defenderam veemente dessas críticas.
34

Schøllhammer, em entrevista à revista Digitagrama18, como “uma cultura


representativa maciça que sobrepõe uma realidade de simulacro a qualquer
possibilidade de referencialidade”. Pode-se dizer que isso significa:

(...) que a arte e a literatura e também, de certa maneira, o cinema


têm sido, nesse questionamento, forçados a uma meta-reflexão
sobre a questão da representabilidade do real, mas sempre dentro
de um certo ceticismo em que se questiona a possibilidade de ser
alguma coisa sem levar em consideração as convenções
representativas.

Essas questões caracterizam o que Karl Erik Schøllhammer, em seu ensaio,


discute sobre a busca por um novo realismo 19, propondo “uma nova evocação de
‘realidade’ nas tendências” de se produzir expressões na literatura e nas artes, “que
procura criar efeitos de realidade, na transgressão dos limites representativos do
realismo histórico” (2002, p.78). Limites representativos que, na análise de
Schøllhammer, são colocados em xeque: “... dentro do cânone modernista do século
XX, a determinação das noções de realidade e realismo funcionou como limite, um
contraponto para a experimentação artística, sempre marcando um horizonte
implícito” (Idem, p. 77).
Levando em consideração tal ponto de vista, pode-se acreditar que essa
forma de realismo nos aponta um outro caminho, oposto ao da construção de
representações. Sendo assim, esse outro caminho é o de questionar a linguagem do
verossímil, o estatuto da verossimilhança inerente ao realismo histórico, construindo,
dessa forma, a noção de um “realismo que introduz a realidade de uma maneira
efetiva, de uma maneira além da representação, aquém da representação”, como
afirma Schøllhammer na entrevista já mencionada .
Com isso, Schøllhammer, citando Hall Foster, em The Return of The Real,
passa a sugerir “uma mudança em relação à conceituação tradicional do real, do
‘real entendido como efeito de representação ao real entendido como um evento de
18
Digitagrama: Revista Acadêmica de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Entrevista cedida à
Gabriela Lírio, Coordenadora de área e professora do curso de Cinema da Universidade.
19
O título do ensaio de Karl Erik Schøllhammer é “À procura de um novo realismo – Teses sobre a
realidade em texto e imagem hoje” . In: OLINTO, Heidrun Krieger e SCHØLLHAMMER, Karl Erik
(orgs). Literatura e Mídia. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002.
35

trauma’” (FOSTER apud SCHØLLHAMMER, 2002, p. 81):

Ou seja, a obra se torna referencial ou “real” na medida em que


consegue provocar efeitos sensuais e afetivos parecidos ou idênticos
aos encontros extremos e chocantes com a realidade em que o
próprio sujeito é colocado em questão (SCHØLLHAMMER, 2002, p.
81-82)

Outra questão importante levantada por Schøllhammer, em entrevista à


revista on-line Digitagrama, refere-se ao fato de que, na perspectiva dos novos
realismos, estratégias como as utilizadas na realização de O Prisioneiro da Grade de
Ferro (auto-retratos), apontam para uma outra maneira de se discutirem as
possibilidades “de novas linguagens que tentam trazer para dentro da obra efeitos
da realidade, mas, que não são necessariamente efeitos violentos ou chocantes ou
traumáticos”.
Seguindo estas proposições, atestamos a estrutura de realização do
documentário de Paulo Sacramento, em que o prisioneiro, ao construir o filme sobre
ele mesmo em conjunto com o cineasta, levando o registro dessa prática para dentro
da própria obra, dá-nos um índice de algo verdadeiramente real.
Assim, ao fazer constarem do filme elementos como câmera na mão dos
presidiários, a equipe profissional sendo filmada, microfones e fios em evidência
para o espectador, Paulo Sacramento opta por não ocultar tais elementos indiciais
que proporcionam uma ruptura com a ilusão de realidade, esgarçam a
verossimilhança, deixam à vista os artifícios do ilusionismo artístico, operando a
desconstrução do realismo convencional e realizando o que Schøllhammer define
como realismo indicial, pois “traz para dentro da obra um tipo de signo que não
representa a realidade, mas que é a realidade e apresenta a obra de arte seja ela
literária, plástica ou cinematográfica de uma maneira muito diferente” (Schøllhammer
apud LÍRIO, 2007).
Para Schøllhammer, tais práticas indiciais constituem o denominado realismo
afetivo:
...a criação de um efeito, não um efeito chocante, de repulsa, mas
um efeito de apego que é tão efetivo que se recria a situação dentro
36

da obra. Recriando a situação se está no limite da representação de


novo, mas de uma maneira muito diferente, que não é
necessariamente traumática, chocante, não é pela ruptura, mas é
pela diluição entre a distância que se tem quando se depara com
uma obra de arte, seja ela qual gênero for, e sua emoção poética,
estética aí envolvida (Idem).

Portanto, tais discussões propõem a quebra – paradigmática – com o olhar


mediador do documentarista a partir da reformulação da maneira habitual, no
formato de se construir um filme-documentário, rompendo, desta forma, com os
limites da representação e evidenciando uma estratégia de realização que se
aproxima do espectador. A ele é apresentada uma experiência afetiva. Na
perspectiva do realismo afetivo, este afeto é entendido como um real sensível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
37

A introdução do filme O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos) é


bastante representativa. Valendo-se de uma câmera posicionada distante do
presídio, o documentário mostra os destroços de um prédio demolido voltando a ser
um presídio, uma reconstrução que nos conclama a prestar atenção aos
personagens que habitam tal cenário.
Porém essa (re)construção do presídio se dá como um apelo a esquecermos
tudo que já ouvimos e vimos sobre a Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru.
Esquecer o que foi noticiado e documentado por jornais e telejornais, esquecer o
que foi ficcionalizado pelo cinema. Essa (re)construção é um pedido de atenção para
personagens importantes, os Prisioneiros, pois, no processo de tantas
representações elaboradas, suas vozes não foram ouvidas, e seus pontos de vista
não foram expostos.
Ao sermos conduzidos pelo filme a aproximar nosso olhar sobre o Carandiru
e seus detentos, deparamo-nos com a grata surpresa de poder ver uma inovadora e
experimental forma de se realizar um documentário, em que alguns detentos foram
selecionados para participar de oficinas no intuito de que pudessem operar
mecanismos audiovisuais e, a partir dessas oficinas, com uma câmera na mão,
mostrar sua “realidade”, mostrar um ponto de vista que muito foi ignorado.
Com isso, verificamos, nesta monografia, que, ao abrir mão de construir uma
representação sobre o Outro, sob a ótica do olhar mediador do intelectual enquanto
único dotado de voz, Paulo Sacramento permite que o “objeto” do filme realize uma
auto-representação, como postula Versiani (2005), ao comparar a realização de um
documentário a um trabalho etnográfico – o que não configura problema algum, visto
que, nos estudos etnográficos, o documentário pode ser considerado uma opção
metodológica –, sendo realizada uma espécie de autoetnografia. Desta maneira, o
documentarista atuou como co-autor da representação que os presidiários fizeram
de si mesmos, não sendo, nessa proposta, tutelados pelo olhar do intelectual.
A partir desta estrutura, experimentada pelo documentário O Prisioneiro da
Grade de Ferro (auto-retratos), este trabalho sugere a função do intelectual não mais
como mediador, como o porta-voz das minorias, mas sim como co-autor dos
processos simbólicos como na referência aos estudos sobre práticas e papéis dos
jornalistas na Internet, de Jorge Rocha, um cartógrafo do conhecimento.
38

Outro aspecto importante referente ao intelectual contemporâneo é sobre o


seu papel na sociedade. Observamos que existem posturas nas quais ele pode se
enquadrar (o “profissional” e o “amador”), sendo que a proposta deste trabalho é a
de que o intelectual seja livre para escolher sua postura, mas que sua escolha seja
clara para a sociedade.

Por fim, foi possível verificar, por meio da estrutura de realização documental
experimentada por Paulo Sacramento, os mecanismos que possibilitaram o
processo de construção e afirmação de identidades culturais, a partir da
identificação do “Eu” no “Outro”, e a realização da auto-representação.

Diante do já mencionado rompimento do olhar mediador do intelectual,


chegou-se à conclusão de que toda a estratégia utilizada na confecção do referido
filme-documentário proporcionou apresentar ao espectador uma experiência
efetivamente real, uma realidade afetiva, o que cria uma ruptura com os limites da
representabilidade do real.

REFERÊNCIAS
39

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dez.2003.
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