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Artigo: Três imagens e uma única história

Assunto da vez nas redes sociais, imagem feita por Lucas Landau na Praia de Copacabana, na virada do ano, confirma
que nada é absoluto na fotografia. Coordenador dessa área no Instituto Moreira Salles, Sergio Burgi vai buscar em
registros feitos por nomes emblemáticos como Marc Ferrez e José Medeiros, nos séculos XIX e XX, uma linha evolutiva
que revela as permanentes contradições do país

Autodidata, Lucas Landau começou a carreira como free-lancer aos 16 anos. Já colaborou com revistas como “Rolling Stone Brasil” e “Vogue”. Na
virada do ano, para a agência Reuters, produziu a imagem acima, que logo viralizou nas redes sociais - Lucas Landau / Reuters

POR SERGIO BURGI, COORDENADOR E CURADOR DE FOTOGRAFIA DO INSTITUTO MOREIRA SALLES


06/01/2018 4:18

RIO - As fotografias distribuídas neste texto — a de Marc Ferrez, registrada em aproximadamente 1885, e de José
Medeiros, de 1955 —, foram realizadas num intervalo de aproximadamente 70 anos, que é quase o mesmo período que
separa a mais recente delas, a de Medeiros, da fotografia de Lucas Landau, realizada na Praia de Copacabana nesta virada
do ano.

O que dizem estas imagens, ao longo desses 133 anos de história, sobre os indivíduos nelas registrados e sobre o país?
O que revelam sobre a própria fotografia e sua natureza como registro documental, criação artística e veículo fundamental
de comunicação?

Principal fotógrafo do século XIX no Brasil, Marc Ferrez (1843-1923) registrou as fazendas de café do Vale do Paraíba nos anos 1880, ainda no
Império e antes da abolição da escravatura. Seu acervo integra a Coleção Gilberto Ferrez, preservada no IMS - Marc Ferrez/ Coleção Gilberto
Ferrez/ Acervo IMS
As três fotografias traçam um percurso que vai de um país ainda escravocrata, violento e arcaico, no período de
atividade de Ferrez, passam pelo Brasil do registro de Medeiros, já republicano, porém em permanente conflito entre
população e a estrutura desigual e estratificada, herdada do Império, e chega à imagem de Landau do menino em
Copacabana, objeto de apropriações e interpretações múltiplas nas redes sociais, reveladoras das contradições e impasses
em que continuamos a viver em 2018.

As crianças nas imagens representam e simbolizam em cada um dos três momentos as contradições mais evidentes da
sociedade em que vivemos. O legado da escravidão permanece. As estruturas de ascensão social, principalmente aquelas
associadas a uma educação universal de qualidade, permanecem desmontadas e sucateadas, negando o acesso em
especial aos negros. As crianças na imagem de Ferrez, escravizadas, ou quem sabe filhas libertas de escravizados,
poderiam, em tese, ter sido avós ou bisavós das meninas de Medeiros; e elas mesmas, possivelmente, poderiam ter sido
avós ou bisavós do menino de Copacabana, do qual pouco sabemos. O que se sabe é que somente depois de uma radical
revolução na educação poderemos pensar em uma verdadeira cidadania no Brasil. Até lá, estas imagens continuarão a
simbolizar as contradições de nosso país, alimentando polêmicas como a destes últimos dias.

O fotojornalista José Medeiros (1921-1990) trabalhou na revista “O Cruzeiro”, a maior do país na época, de 1946 a 1961, sendo um dos expoentes
da fotografia e do fotojornalismo brasileiro. Seu acervo também se encontra preservado no IMS - José Medeiros / Acervo Instituto Moreira Salles

As fotografias individualmente podem, por sua ambiguidade intrínseca, levar a diferentes interpretações e servirem
a múltiplos discursos, em especial quando associadas a textos, sejam estes editoriais ou jornalísticos, curatoriais ou
analíticos, ou pessoais e opinativos, como nas redes sociais. Os limites e potencialidades da imagem fotográfica não
desqualificam, entretanto, sua força documental e sua capacidade de registro visual de um determinado momento e nos
ajudam a pensar e refletir sobre os processos e dinâmicas dos arcos de tempo. Nada na fotografia é absoluto, exceto sua
capacidade de nos mostrar como em nenhuma outra forma de representação visual a materialidade do mundo, suas
superfícies, suas texturas, suas formas, os objetos e pessoas. Ela nos mostra, mas não explica. Ela amplia nosso repertório
visual, mas não necessariamente a nossa compreensão dos processos. A fotografia requer reflexão e ponderação. Requer
interdisciplinaridade. Requer diálogo, colóquio.

Se pensarmos no caso específico do Rio de Janeiro, local de registro de duas das imagens aqui discutidas, veremos que
as favelas cariocas, áreas de ocupação por parte das camadas mais pobres da sociedade de encostas de morros e outras
áreas urbanas devolutas, estruturaram-se no final do século XIX a partir das fortes transformações associadas à abolição
da escravatura e à proclamação da República e, nos anos seguintes, ao retorno das tropas da Guerra de Canudos — que
acampam no que viria a ser no Morro da Providência — e às políticas de higienização social e gentrificação de áreas
centrais da cidade, ações que não foram acompanhadas por ações de governo ou das elites dirigentes no sentido de
minimizar desigualdades. Em paralelo, os anos de uma forçada industrialização, que se intensificaram a partir da década
de 1940, produziram igualmente uma forte migração interna, em especial para a região Sudeste, consolidando um
processo de crescimento urbano vertiginoso que em cinco décadas inverteria radicalmente a relação entre a população
urbana e rural do país.

A evolução das comunicações veio a reboque. Revistas ilustradas e depois a televisão constituíram-se nos principais
canais de comunicação visual de massa, cenário ampliado mais recentemente pela internet. É da inerente tensão entre
os indivíduos que atuam na imprensa — repórteres, fotógrafos, editores e dirigentes — e hoje também dos que opinam
e se expressam nas redes sociais, que nascem as dinâmicas específicas de cada órgão ou plataforma de comunicação. José
Medeiros, um dos principais repórteres de “O Cruzeiro” ao longo da década de 1950, foi um dos responsáveis por uma
vertente mais humanista e engajada que teria grande influência sobre o fotojornalismo praticado na revista e na imprensa
brasileira dali em diante. Medeiros engajou-se em dar visibilidade aos negros na revista, então o veículo de comunicação
brasileiro de maior alcance de público, ao produzir matérias sobre trabalhadores, favelas, música popular e religiões afro-
brasileiras.

Todavia, é importante ressaltar que a distinção entre a comunicação — processo potencialmente instigante,
questionador, objetivo e esclarecedor — e a propaganda — comunicação deliberadamente manipulada —, permite
reconhecer que imagens produzidas por um fotojornalismo de intuito humanista, portanto de comunicação nos termos
colocados acima, são inúmeras vezes transformadas pela comunicação de massa em propaganda. Quando isso ocorre,
como afirma o sociólogo Herbert J. Gans, a função maior da imprensa passa a ser a que deriva diretamente da atuação
dos editores como “construtores” da nação e da sociedade, operando essencialmente como administradores da arena
simbólica. O contexto das revistas ilustradas, portanto, em que o trabalho original do fotojornalista é normalmente
difundido em uma estrutura de relações precisas e cuidadosamente editadas entre textos e imagens, transformará muitas
vezes, de forma contraditória, a intenção original da comunicação direta e objetiva do fato pelo fotógrafo em uma
mensagem de forte caráter simbólico e ideológico.

A despeito de todas as transformações nas formas de difusão da informação que os meios digitais já promoveram e
constantemente apresentam, a circulação da imagem técnica segue enfrentando questões que surgiram com sua criação:
autoria, documentação, edição, ética, encenação e espetacularização política e ideológica, sempre abertas a múltiplas
camadas possíveis de leitura, interpretação e, certamente também, manipulação. O episódio de reações à imagem do
menino de Copacabana nos permite perceber o papel permanente e dual da fotografia como interpretação e
representação, e, simultaneamente, como registro direto, documental e figurativo de um determinado espaço-tempo por
meio de um aparato técnico que efetivamente informa sobre a materialidade e especificidade daquele local. O mundo da
representação visual através da imagem técnica, seja este o da fotografia ou do cinema documental, ambos aqui pensados
nos termos propostos por Villém Flusser, requer, portanto, que sejamos capazes de permanente discernimento destes
aspectos duais presentes em cada uma das imagens que nos é diariamente apresentada, sejam eletrônicas ou impressas.
Este é um desafio do mundo contemporâneo, onde as imagens têm um papel crescente e inegável, mas requerem cada
vez mais um pensamento crítico e análise aprofundada para que não se percam em sua própria ambiguidade.

https://oglobo.globo.com/cultura/artigo-tres-imagens-uma-unica-historia-22261496 - Acessado em 06/01/2018

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