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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Felipe Leal Ribeiro de Albuquerque

Atores e agendas da política externa brasileira para a África e a instrumentalização


da cooperação em segurança alimentar (2003-2010)

Rio de Janeiro

2013
Felipe Leal Ribeiro de Albuquerque

Atores e agendas da política externa brasileira para a África e a instrumentalização da


cooperação em segurança alimentar (2003-2010)

Dissertação apresentada como requisito


parcial, para obtenção do título de
Mestre, ao Programa de Pós-graduação
em Relações Internacionais, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Política
Internacional.

Orientador: Profa. Dra. Miriam Gomes Saraiva

Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

A345a Albuquerque, Felipe Leal Ribeiro de


Atores e agendas da política externa brasileira para a África e
a instrumentalização da cooperação em segurança alimentar
(2003-2010) / Felipe Leal Ribeiro de Albuquerque. – 2013.
250 f.

Orientador: Miriam Gomes Saraiva.


Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Bibliografia.

1. Brasil – Relações Exteriores – África - Teses. 2. África –


Relações exteriores – Brasil -Teses. I. Saraiva, Miriam Gomes.
II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

CDU 327(81)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que
citada a fonte.

_____________________________________ ___________________________
Assinatura Data
Felipe Leal Ribeiro de Albuquerque

Atores e agendas da política externa brasileira para a África e a instrumentalização da


cooperação em segurança alimentar (2003-2010)

Dissertação apresentada como requisito


parcial, para obtenção do título de
Mestre, ao Programa de Pós-graduação
em Relações Internacionais, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Política
Internacional.

Aprovada em 14 de junho de 2013.

Banca Examinadora:

____________________________________________
Profa. Dra. Miriam Gomes Saraiva (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

____________________________________________
Profa. Dra. Maria Regina Soares de Lima
Instituto de Estudos Sociais e Políticos –UERJ

____________________________________________
Profa. Dra. Letícia de Abreu Pinheiro
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro

2013
DEDICATÓRIA

Ao meu avô, que dividia comigo o fascínio pelas bibliotecas.


AGRADECIMENTOS

À minha família, pelo apoio, pelo estímulo, pela compreensão, pela paciência e por
toda a confiança sempre depositada em mim. Sem eles, nada disso teria sido possível.
Agradecimentos saudosos também meus parentes e valiosos amigos que, se estão longe na
ensolarada Recife, torcem por mim.
À Prof.a Miriam Gomes Saraiva, minha orientadora, pela confiança, incentivo e ajuda
neste trabalho. Sua visão ímpar das relações internacionais e da política externa do país foi
basilar para que minhas ideias se consolidassem em papel. Sua orientação, além das
indicações bibliográficas sempre com fins de engrandecer a pesquisa, foi decisiva. A ajuda
durante o processo do estágio acadêmico também foi bastante valorosa. Foi um privilégio tê-
la como guia.
Ao Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI) da UERJ, por
ter-me aberto uma porta para o mundo acadêmico e contribuído imensamente, com
profissionalismo e propriedade, para minha iniciada trajetória acadêmica. Ao longo do
mestrado, pude constatar e corroborar a percepção de estar com pessoas que buscam
consolidar um programa sólido, multidisciplinar e necessário.
Aos professores do PPGRI-UERJ, especialmente, Lia Valls, Marcelo Valença, Ana
Paula Tostes e Williams Gonçalves, com quem cursei disciplinas nestes dois anos. Todos
colaboraram, em maior ou menor grau, para o andamento deste trabalho. Em especial, Lia
Valls e Marcelo Valença, pelos comentários, sugestões e críticas quando da qualificação. A
intensa ajuda do André Furtado, com quem partilho a paixão pelo clube da Estrela Solitária, e
da Cristiane Baptista não pode ser esquecida. Também agradeço à professora Letícia Pinheiro,
do IRI/PUC-Rio, por ter-me aberto os olhos para o mundo de possibilidades da análise de
política externa. In memoriam, agradeço a Antônio Carlos Peixoto, que, se deixou nosso
programa de forma súbita, certamente está cuidando de gerações de internacionalistas e
contando suas melhores histórias, onde quer que esteja.
Aos meus amigos do PPGRI-UERJ, os novos e os antigos, que me acompanharam
nessa jornada intelectual muitas vezes estafante. As sugestões bibliográficas, os livros
emprestados e a ajuda de Gustavo Bezerra em muitos momentos do curso foram
fundamentais; o apoio, as indicações de textos e os cafés nos corredores da UERJ não seriam
os mesmos sem Camila De’Carli e Guilherme Sorgine, que me incentivaram decisivamente a
fazer a inscrição no mestrado. À Débora Andelinovic, Tainã Novaes, Camila Machion,
Jonatas Torresan, Leandro Gavião e a todos os outros amigos do mestrado, por partilharem a
experiência comigo.
À Luiza Amorim, pelo apoio com fontes bibliográficas, contatos em Brasília e pela
leitura atenta do primeiro capítulo desta dissertação. À Ilana Boetger, por seus incentivos e
palavras sempre encorajadoras. Ao Fábio Leal, por seu apoio em minha participação em
seminário fora do Rio de Janeiro; e ao Paulo Valle, pelo mesmo motivo e pela ajuda no acesso
às fontes do Itamaraty. À Melina Lima e a Dhiego Mapa, por terem compartilhado suas
dissertações e ideias.
A todos os que concordaram em conceder-me entrevistas e informações, o que foi
absolutamente vital para a realização deste trabalho: Marco Farani (MRE); Mirlane Klimach
(CONSEA); Antônio Prado, Adriana Mesquita Bueno, Carlos Canesin e Osório Filho
(EMBRAPA); Francesco Pierri (MDA); Henrique Salles Pinto e Luis Carvalhal (MDS). A
presteza e paciência dos mesmos foram surpreendentes, o que mostra o interesse das
instituições públicas em se aproximarem da academia e auxiliarem nossa compreensão da
política externa.
Finalmente, agradeço à FAPERJ, pela bolsa concedida, o que permitiu a realização
deste mestrado e o desenvolvimento desta pesquisa.
Watching a coast as it slips by the ship is like thinking
about an enigma. There it is before you - smiling,
frowning, inviting, grand, mean, insipid, or savage, and
always mute with an air of whispering, 'Come and find
out’.
Joseph Conrad

When men die, they enter history. When statues die, they
enter art. These deaths are what we call culture.

Chris Marker
RESUMO

ALBUQUERQUE, Felipe Leal Ribeiro de. Atores e agendas da política externa brasileira
para a África e a instrumentalização da cooperação em segurança alimentar (2003-2010).
2013. 250 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

Durante os dois mandatos presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010),


percebeu-se, em virtude de pressões intra e extraburocráticas e de causalidades sistêmicas,
maior acentuação do esboroamento da histórica condição insular do Ministério das Relações
Exteriores (MRE). A participação de novos entes que não o Itamaraty na configuração da
política externa, notadamente em seu vetor de execução, enseja novas agendas cooperativas e
processos decisórios. Atores da burocracia federal, como os ministérios, vocalizam
preferências que influenciam o jogo interburocrático e têm o condão de estabelecer possíveis
“pontes” com a instituição diplomática, unidade de decisão por excelência. Na perspectiva
intraburocrática, a ascensão de corrente de ação e de pensamento dos autonomistas, frente aos
institucionalistas pragmáticos, permite escolhas de inserção internacional como o reforço da
perspectiva sul-sul, na qual se inserem as parcerias com a África, o que indica a inexistência
de monolitismo de opiniões no interior do MRE. Essa dinâmica faz-se presente e é necessária
para o entendimento da Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional (CBDI),
tipo de Cooperação Sul-Sul (CSS) do Brasil que tem na Cooperação Técnica, Científica e
Tecnológica (CTC&T) em segurança alimentar uma de suas modalidades mais atuantes e
complexas. Convencionada como instrumento de política externa durante a ascendência dos
autonomistas, corrente influenciada por quadros do Partido dos Trabalhadores, a cooperação
em segurança alimentar teve o continente africano como locus primordial de manifestação.
Embasado na internacionalização de políticas públicas domésticas, o compartilhamento de
conhecimentos nas agendas de combate à fome, de combate à pobreza e de desenvolvimento
agrário é fenômeno tributário da abertura da “caixa preta” estatal, o que ratifica o argumento
de que há correlação entre níveis de análise. As diversas iniciativas cooperativas para com
parceiros da outra margem do Atlântico Sul, eivadas de componente retórico de promoção de
ordem internacional menos assimétrica, donde também subjace a busca consecução de
interesses diretos e indiretos dos formuladores diplomáticos, guardam relação com as
diretrizes mais gerais da política externa articulada no período estudado nesta dissertação.

Palavras-chave: Política externa brasileira. Dinâmica interburocrática. Cooperação sul-sul.


Relações Brasil-África. Segurança alimentar.
ABSTRACT

ALBUQUERQUE, Felipe Leal Ribeiro de. Actors and agendas of the brazilian foreign policy
towards Africa and the instrumentalization of the cooperation on food security(2003-2010).
2013. 250 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

During Luiz Inácio Lula da Silva’s two presidential terms (2003-2010), it was
perceived, in reason of intra and extra-bureaucratic pressure, so as due to systemic causalities,
greater emphasis on the questioning of the Ministry of External Relations’ (MER) historic
insular condition. The participation of new entities other than Itamaraty in the foreign policy
configuration, especially in its implementation phase, props up new cooperative agendas and
decision processes. Actors of the federal bureaucracy, such as the ministries, vocalize
preferences that influence the inter-bureaucratic game and have the faculty of establishing
possible “bridges” with the diplomatic institution, the decision-unit par excellence. When it
comes to the intra-bureaucratic perspective, the ascension of the “autonomists” thought and
action grouping, against the “pragmatic institutionalists” one, has allowed choices of
international insertion such as the reinforcement of the South-South perspective, wherein lie
partnerships with Africa, which indicates the inexistence of monolithic opinions within the
MER. This dynamic composes and is necessary to understand the Brazilian Cooperation to
International Development (BCID), type of Brazil’s South-South Cooperation (SSC) that has
one of its more active and complex modalities in the Technical, Scientific and Technological
Cooperation on food security. Convened as a foreign policy tool during the ascendancy of the
autonomist group, school of thought and action which was influenced by names associated
with the Labor Party, the cooperation on food security had the African continent as a pivotal
locus of coming into view. Based on the internationalization of domestically developed public
policies, the sharing of know-how related to the agendas of hunger fighting, poverty fighting
and rural development is tributary to the opening of the state “black box”, which ratifies the
point that there is correlation between the levels of analysis. The many cooperative initiatives
alongside the partners of the other South-Atlantic margin, which hold a rhetoric component of
promoting a less asymmetric international order – where also rest the purpose of granting the
diplomatic formulators’ direct and indirect interests -, are related to the more general
directives of the foreign policy defined during the period.

Keywords: Brazilian foreign policy. Inter-bureaucratic dynamics. South-south cooperation.


Brazil-Africa relations. Food security.
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Evolução da CBDI de 2005-2009 ...................................................................... 144

Gráfico 2 – Percentual do total de recursos da CBDI (2005-2009)....................................... 146


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AAA Agenda de Ação de Acra

ABC Agência Brasileira de Cooperação

ABIMAQ Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos

ABRANDH Ação Brasileira para a Nutrição e os Direitos Humanos

AGNU Assembleia Geral das Nações Unidas

AHI Assistência Humanitária Internacional

ALADI Associação Latino-Americana de Integração

ALCA Área de Livre Comércio das Américas

AOD Ajuda Oficial ao Desenvolvimento

BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

BNDE Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico

BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

BNH Banco Nacional de Habitação

BRICS Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul

C-4 Cotton Four

CA/MS Comissão de Alimentos do MERCOSUL

CAI Complexo Agroindustrial

CAISAN Câmara Interministerial sobre Segurança Alimentar e Nutricional

CAMEX Câmara de Comércio Exterior

CAD Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento da OCDE

CBDI Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional

CBERS Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres

CCP Comissão de Construção da Paz

CECAT Centro de Estudos e Capacitação em Agricultura Tropical


CELAC Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos

CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e para o Caribe

CGFOME Coordenação-Geral de Ações Internacionais de Combate à Fome do


MRE

CID Cooperação Internacional para o Desenvolvimento

CLT Consolidação das Leis Trabalhistas

CMBEU Comissão Mista Brasil-Estados Unidos

CNAN Conferência Nutricional e Alimentar Nacional

CNAT Comissão Nacional de Assistência Técnica

CNSA Conferência Nacional sobre Segurança Alimentar

CMC Conselho Mercado Comum do MERCOSUL

COMISTAS Comissões Mistas

CONAB Companhia Nacional de Abastecimento

CONDRAF Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável

CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar da Presidência da


República

CPAI-CONDRAF Comitê Permanente de Assuntos Internacionais do CONDRAF

CPLP Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

CPT Comissão Pastoral da Terra

CRAS Centros de Referência para Assistência Social

CSN Companhia Siderúrgica Nacional

CSNU Conselho de Segurança das Nações Unidas

CSS Cooperação Sul-Sul

CTC&T Cooperação Técnica, Científica e Tecnológica

CTI Cooperação Técnica Internacional

CTPD Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento

DCOPT Divisão de Cooperação Técnica do MRE

DEM Democratas
DFID Department for International Development

DTS Divisão de Temas Sociais do Itamaraty

EC Emenda Constitucional

ECOSOC Conselho Econômico e Social das Nações Unidas

EMATER Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural

EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

EUA Estados Unidos da América

FAO Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação

FARA Forum for Agricultural Research in Africa

FBSAN Fórum Brasileiro em Segurança Alimentar e Nutricional

FGV Fundação Getúlio Vargas

FHC Fernando Henrique Cardoso

FIDA Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola

FOCEM Fundo de Convergência Estrutural e Institucional do MERCOSUL

FOD Financiamento Oficial ao Desenvolvimento

G20F G20 Financeiro

G77 Grupo dos 77

GATT Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas

HLF 4 4º High Level Forum on International Cooperation

IBAS Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IILP Instituto Internacional da Língua Portuguesa

IIRSA Iniciativa da Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

JICA Japan International Cooperation Agency

JA! Justiça Ambiental


LOSAN Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional

MAPA Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário

MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

MERCOSUL Mercado Comum do Sul

MESA Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar

MINUSTAH Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti

MNA Movimento Não Alinhado

MRE Ministério das Relações Exteriores

MTE Ministério do Trabalho e Emprego

NEPAD New Partnership for Africa’s Development

NOEI Nova Ordem Econômica Internacional

OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico

ODM Objetivos de Desenvolvimento do Milênio

OEA Organização dos Estados Americanos

OI Organização Internacional

OMC Organização Mundial do Comércio

ONG Organização Não Governamental

ONU Organização das Nações Unidas

OSC Órgão de Solução de Controvérsias da OMC

P4P Purchase for Progress

PAA Programa de Aquisição de Alimentos

PAA-África Programa de Aquisição de Alimentos África: Compra dos Africanos


para a África

PAC Programa de Aceleração do Crescimento

PAIF Programa de Atenção Integral à Família

PALOP Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa


PARLASUL Parlamento do MERCOSUL

PAT Programa de Amparo ao Trabalhador

PCC Partido Comunista da China

PEC Proposta de Emenda Constitucional

PEC-G Programa de Estudantes-Convênio de Graduação

PIB Produto Interno Bruto

PLANSEC Planos Setoriais de Qualificação

PMA Programa Mundial de Alimentos

PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar

PNAN Política Nacional em Alimentação e Nutrição

PNATER Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural

PNSAN Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PRODECER Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento dos


Cerrados

PRONAF Programa Nacional de Agricultura Familiar

PRONATER Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural

PROSAVANA Projeto de Desenvolvimento Agrícola da Savana Tropical de


Moçambique

PSDB Partido Social-Democrático Brasileiro

PT Partido dos Trabalhadores

REAF Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar do MERCOSUL

R2P Responsabilidade de Proteger

RWP Responsabilidade ao Proteger

SAN Segurança Alimentar e Nutricional

SEBRAE Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo

SEGIB Secretaria-Geral Ibero-Americana


SELA Sistema Econômico Latino-Americano

SENAR Serviço Nacional de Aprendizagem Rural

SGAP I Subsecretaria-Geral Política I do Itamaraty

SGP Sistema Geral de Preferências

SICD Sistema Internacional de Cooperação para o Desenvolvimento

SISAN Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

SISVAN Sistema Nacional de Vigilância Alimentar e Nutricional

SUBIN Subsecretaria de Cooperação Econômica e Técnica Internacional

TCA Tratado de Cooperação Amazônica

TPI Tribunal Penal Internacional

UA União Africana

UEMOA União Econômica e Monetária do Oeste Africano

UNAC União Nacional dos Camponeses

UNASUL União das Nações Sul-Americanas

UNCTAD Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o


Desenvolvimento

UNFSC United Nations Trust Fund for South-South Cooperation

UNILAB Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-


Brasileira

URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

USAID United States Agency for International Development

ZOPACAS Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................ 19

1 ATORES E AGENDAS DA POLÍTICA EXTERNA: APORTES


TEÓRICOS.............................................................................................................. 30

1.1 Para além do modelo de ator unitário.................................................................... 32

1.2 Abre-se a “caixa preta”: modelos de processo organizacional, de política


burocrática e as preferências da abordagem liberal............................................ 39

1.2.1 As burocracias importam........................................................................................... 40

1.2.2 As preferências não são dadas................................................................................... 47

1.2.3 Do que é feita a “caixa preta”: por uma síntese analítica.......................................... 52

1.3 Para além da “torre de marfim”: o conluio de política externa com políticas
públicas..................................................................................................................... 56

1.3.1 Política externa vs. políticas públicas: insulamento burocrático e interesse


nacional...................................................................................................................... 57

1.3.2 Política externa e políticas públicas: o fim do insulamento e a construção de


“pontes”...................................................................................................................... 63

1.4 Considerações Finais............................................................................................... 68

2 ATORES E AGENDAS DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA................. 71

2.1 A “especificidade” do Itamaraty: breve análise histórico-institucional............. 74

2.2 Da construção à ruptura relativa do insulamento................................................ 80

2.2.1 A construção do insulamento..................................................................................... 81

2.2.2 Rupturas ao insulamento............................................................................................ 84

2.3 O processo de horizontalização controlada, a relação com outros ministérios e


com a sociedade civil................................................................................................ 89

2.4 Rupturas intra-MRE: os grupos burocráticos no interior no ministério........... 98

2.4.1 Institucionalistas pragmáticos e suas agendas......................................................... 100


2.4.2 Autonomistas e suas agendas................................................................................... 104

2.4.2.1 A influência da corrente do Partido dos Trabalhadores........................................... 108

2.5 África na política externa : do silêncio atlântico à ênfase cooperativa............. 110

2.6 Considerações finais: do insulamento ao diálogo inter e intraburocrático –


impactos na política externa................................................................................. 118

3 COOPERAÇÃO E POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA.............................. 121

3.1 Cooperação norte-sul, cooperação sul-sul: estado das artes.............................. 123

3.1.1 AOD, CDI, CTPD, CTI, CSS, CBDI: siglas, agendas e indefinições
conceituais................................................................................................................ 124

3.2 A cooperação brasileira para o desenvolvimento internacional e suas


singularidades......................................................................................................... 132

3.2.1 Brasil como provedor de cooperação: breve histórico da cooperação internacional


brasileira................................................................................................................... 132

3.2.2 CBDI: principais características.............................................................................. 141

3.2.3 A cooperação técnica como vertente da CBDI........................................................ 149

3.3 Política externa, interesses e solidariedade.......................................................... 153

3.3.1 Solidariedade na CTC&T brasileira......................................................................... 154

3.3.2 A CTC&T como instrumento de PEB..................................................................... 160

3.4 Considerações finais............................................................................................... 166

4 COOPERAÇÃO EM SEGURANÇA ALIMENTAR COMO INSTRUMENTO


DE POLÍTICA EXTERNA................................................................................... 169

4.1 Segurança alimentar: conceito e agendas............................................................ 171

4.1.1 O conceito de segurança alimentar.......................................................................... 172

4.1.2 Segurança alimentar e Brasil................................................................................... 179

4.1.2 Um conceito, muitas agendas.................................................................................. 185

4.1.3 “Transbordamento” interno-externo........................................................................ 191


4.2 Atores do processo decisório da cooperação em segurança alimentar: dinâmica
interministerial....................................................................................................... 201

4.2.1 Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento: EMBRAPA........................ 202

4.2.2 Ministério do Desenvolvimento Agrário................................................................. 205

4.2.3 Ministério do Desenvolvimento Social.................................................................... 207

4.2.4 Itamaraty e ABC: horizontalização controlada e harmonização de discursos?....... 208

4.3 O lugar da cooperação em segurança alimentar nas relações Brasil-África.... 214

4.3.1 Afinal, por que cooperar com a África?.................................................................. 215

4.3.2 Segurança alimentar na relação bilateral Brasil-África........................................... 221

4.3.2.1 EMBRAPA e cooperação sul-sul na África............................................................. 222

4.3.2.2 MDA, MDS e África................................................................................................ 226

4.4 Considerações finais............................................................................................... 231

CONCLUSÃO........................................................................................................ 233

REFERÊNCIAS..................................................................................................... 239
19

INTRODUÇÃO

Ao longo dos dois mandatos presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e
2010, a Cooperação Sul-Sul (CSS) tornou-se um dos vetores de inserção internacional do
Brasil. Esse fenômeno trouxe novas variáveis e desafios para a análise da política externa,
para o papel do Ministério das Relações Exteriores (MRE) na sua configuração, bem como
para a atuação de outros atores, com capacidades distintas de influência no processo decisório.
Por ter sido considerada uma das estratégias prioritárias de condução das relações bilaterais
em âmbito sul-sul e recebido inédita atenção dos formuladores diplomáticos durante o período
em questão, este trabalho busca explicar o lugar da CSS na política externa brasileira
contemporânea, com especial destaque para as iniciativas de cooperação em segurança
alimentar1 encetadas junto a parceiros do continente africano.
Em primeiro lugar, defendemos que o estudo da política externa2 perpassa, além das
variáveis sistêmicas, a consideração das causalidades domésticas, visto que essas têm
relevância fundamental para o entendimento das escolhas em política externa. Apregoamos,
portanto, ao longo desta dissertação, abordagem que considera também o nível de análise
doméstico, o que nos permitiu ecoar o argumento de que Estados não são entidades fechadas,
unitárias e em posse de informações completas, buscando a maximização de poder em bases
estritamente pré-estabelecidas e com preferências dadas. A complementariedade dos níveis de
análise torna-se, assim, necessária (CARLSNAES, 1992).
Ao contrário de postulados comumente associados a teorias de cunho realista e que
tendem a reificar o comportamento internacional dos Estados, dificultando a compreensão de
possibilidades de mudança, preferimos olhar, também, para o que se passa no interior dessas
entidades. Ferramentas de análise de política externa nos foram especialmente caras, no
sentido de que auxiliam na identificação das variáveis componentes da arena decisória e no
entendimento de como a imbricada correlação de forças domésticas contribui para que as
escolhas de política externa não sejam necessariamente estáticas e previsíveis.

1
Como veremos, no capítulo 4 desta dissertação, “segurança alimentar” é termo ainda sem definição conceitual
precisa, em franco debate em instituições multilaterais, como a FAO, na academia e na prática da cooperação
entre Estados. Agendas as mais variadas – como de desenvolvimento agrário, de combate à fome e de combate à
pobreza – estão associadas a esse conceito, que guarda relação com a maior amplitude das questões de segurança
no período do pós Guerra Fria.
2
Quanto ao termo “política externa”, nos reportamos a Hill (2003), Pinheiro (2004) e Merke (2008).
20

Por isso, não vislumbramos o “interesse nacional” como algo imutável ou


autoevidente, posição que somente tenderia a personificar o Estado e a manter a política
externa como arena exclusiva e apartada das demais políticas públicas. Torna-se necessário
abrir a “caixa preta” e investigar atores, agendas e preferências que compõem os processos de
tomada de decisão, empreitada essa que deve ser intrínseca a estudos sobre cooperação
internacional.
Por implicar em custos e em benefícios distributivos, tributários de fenômenos como
interdependência, globalização, abertura econômica e democratização, a política externa
aproxima-se do entendimento relativo a políticas públicas, visto que é formulada e executada
pelas instituições componentes do Estado3. Isso corrobora a tese de que a divisão entre as
fronteiras doméstica e internacional – bem como entre high e low politics - está cada vez mais
porosa, o que contribui para o argumento de que há novas configurações de arenas decisórias.
Essa dinâmica vem dirimindo relativamente a caracterização do Itamaraty como
instituição insulada e apartada dos demais componentes da burocracia do Executivo e de
atores externos a ela, como entidades empresariais, imprensa, ONGs, etc. O que se observa é
que, respectivamente a um padrão histórico e sociológico de isolamento e de construção de
autoridade como unidade decisória única em política externa, as relações desse ministério
com os demais entes da burocracia e da sociedade vêm provendo, ainda que não de forma
contínua e organizada e tampouco como regra organizacional, certos canais de participação
decisória, a variar conforme a agenda e a negociação em curso.
Utilizamos a alegoria de “torre de marfim” para explicitar uma instituição estatal que,
ainda que se arvore no peso da tradição e da suposta diferenciação intelectual e burocrática de
seus membros, vem tendo seu status modificado. Erigido, entre outras coisas, sobre o legado
do patrono da diplomacia brasileira e sobre poderoso mecanismo uniformizador representado
pelo Instituto Rio Branco, o histórico insulamento do Itamaraty criou um “fosso” que impede
efetivo acesso e abertura a vozes e a pensamentos externos ao corpo diplomático. Mais
recentemente, “pontes” foram sendo erguidas sobre esse “fosso”, muitas das quais por
pressões exógenas de atores com interesses os mais diversos em âmbito internacional4.

3
“A politização da política externa e, portanto, a influência da política doméstica na sua formação, depende da
existência de impactos distributivos internos que ocorrem quando os resultados da ação externa deixam de ser
simétricos para os diversos segmentos sociais” (LIMA, 2000, p. 289).
4
Entendemos, conforme Pinheiro (2009), que esses outros atores não formulam a política externa e não são
decisores, mas têm algum poder de agência. Se fôssemos nos valer dos escritos de Hermann (2001), poderíamos
dizer que esses outros atores não se enquadrariam nas definições clássicas sobre unidades de decisão em política
externa. De qualquer forma, eles têm capacidades variadas de impactar no processo decisório. Segundo Wight
21

Se o comportamento do MRE ainda parece ser mais reativo e defensivo – sustentado,


por exemplo, sobre a pretensa lógica de coesão de grupo –, fato é que, com o adensamento
das práticas e das parcerias de cooperação internacional das quais o Brasil é parte, diversas
políticas públicas passaram a ser internacionalizadas e instrumentalizadas pelos formuladores
de política externa. Isso demandou a participação de outras entidades com expertise suficiente
para a garantia da transferência de conhecimentos associados a essas práticas; a dizer, para
assegurar a execução da política externa.
Daí decorrem variados questionamentos: como o MRE responde a esses movimentos?
Abrindo mais espaços de diálogo? Engendrando tentativas de coordenação que assegurem sua
ascendência decisória? Como fazer isso sem perder a capacidade de imprimir conteúdo à
política externa? A nosso ver, as respostas a essas perguntas – a maioria de difícil solução –
dependerão da agenda de política externa analisada e dos atores envolvidos em sua
consecução. Não parece haver uma única resposta que abarque todas as questões levantadas e
tampouco parece ser correto envolvê-las em um mesmo nexo causal. Pode-se afirmar,
contudo, que alguns desses processos inconclusos guardam relação com o adensamento
recente da política de cooperação internacional do Brasil.
A CSS ter se tornado elemento estratégico da inserção internacional do país5 tem
como uma de suas causalidades mais relevantes a transição governamental de Fernando
Henrique Cardoso para Lula da Silva, o que é comprovado não só pelo aumento no orçamento
da Agência Brasileira de Cooperação (ABC)6, mas também pelo número de parcerias
encetadas e pelos discursos dos formuladores diplomáticos quanto à pertinência da
cooperação. Dessa ênfase decorre a identificação hodierna do Brasil como recebedor e
também como provedor de cooperação internacional.
Concomitante à eleição de um governo e de um presidente de filiação ao Partido dos
Trabalhadores (PT), ascendeu à liderança decisória no Itamaraty a corrente de pensamento e
de ação dos autonomistas, o que ratifica a ideia de que o MRE não é instituição monolítica e

(2006): “agency now appears as layered and differentiated and inextricably linked to social contexts through the
relations in which it is embedded” (p. 213). O trecho correspondente na tradução é: “agência agora surge como
estratificada, diferenciada e conectada de forma intrínseca a contextos sociais por meio das relações nas quais
está inserida”. Milner (1997) traça algumas das possibilidades de ação e de controle da agenda de política
externa por parte desses atores.
5
Ver: M. Saraiva (2007).
6
ABC; IPEA (2010).
22

sem dissensos internos7. Com agendas e estratégias distintas dos institucionalistas


pragmáticos, mais identificados ao período de Fernando Henrique Cardoso (FHC), os
autonomistas – influenciados por quadros egressos do PT – empreenderam novas leituras do
sistema internacional e do papel do Brasil em uma ordem internacional em franca transição8.
Em virtude disso, é possível afirmar que além das “pontes” que vem amainando o
insulamento decisório do MRE perante a atores da burocracia federal e externos a ela, as
“rupturas” interna corporis estão mais visíveis e vocalizadas. As diferentes leituras do sistema
internacional e da posição do Brasil em momento de difusão de poder mundial e de ascensão
relativa de países emergentes geram políticas externas que não são uníssonas. É tributário
desse processo o entendimento de que a cooperação sul-sul, referenciada pelos formuladores
diplomáticos durante o período de Lula da Silva como Cooperação Brasileira para o
Desenvolvimento Internacional (CBDI), deveria ser incentivada e diversificada.
Embasada por retórica solidária e cosmopolita em prol do estabelecimento de uma
globalização mais justa e democrática, que reverbere as demandas das nações em
desenvolvimento, essa cooperação também está articulada ao atendimento a interesses
materiais dos formuladores diplomáticos e dos atores participantes das práticas cooperativas.
Se, de um lado, o discurso de solidariedade contribui para legitimar e diferenciar a cooperação
brasileira, de outro, há perspectiva pragmática de angariar ganhos econômicos e políticos que
contribuam para o projeto de desenvolvimento autônomo do país.
Da miríade de projetos encetados pelo Brasil, escolhemos estudar especificamente a
cooperação em segurança alimentar para com o continente africano. Essa opção vai ao
encontro do novo momento do sul-atlantismo da política externa brasileira. Depois de quase
uma década de “silêncio” relativo e de baixo perfil nos contatos com os parceiros da outra
margem do Atlântico Sul, a transição para a presidência de Lula da Silva e a chancelaria de
Celso Amorim deu renovado ensejo às relações bilaterais Brasil-África.
Com considerável peso político em votações realizadas em instâncias multilaterais, o
continente africano representa infindável potencial cultural, identitário, econômico e
comercial para o Brasil, ainda mais em contexto de crise econômica e financeira nas
economias centrais. Percebeu-se, durante a ascendência dos autonomistas, que o país não
poderia almejar seus objetivos mais latentes de política externa sem o apoio da África. Uma

7
Fazemos referência à M. Saraiva (2010).
8
Essa divisão no seio do Itamaraty é ilustrativa da ideia de que há, de fato, dissensos intraburocráticos e de que a
política externa brasileira não é marcada somente por continuidades. Além disso, auxilia na compreensão de que
o interesse nacional não é necessariamente dado.
23

das estratégias pensadas para adensar esse diálogo bilateral foi a consideração da cooperação
sul-sul como instrumento, ou seja, o uso da mesma para a consecução de perspectivas não
necessariamente imediatas de política externa9.
De fato, são centenas os projetos em curso nos quais o Brasil compartilha
conhecimentos com as contrapartes africanas10. Tida como horizontal, demand driven e
fortalecedora de critérios de execução nacional, a CBDI representa, em termos gerais, a
convergência de perspectivas entre as duas margens do Atlântico Sul. Projetos de concessão
de bolsas de estudos para estrangeiros, de ajuda humanitária internacional, de cooperação
técnica, científica e tecnológica (CTC&T), além de contribuições a organizações multilaterais
compõem o quadro mais amplo dessa cooperação “à brasileira” que, para ser
operacionalizada, depende da presença de atores com know-how ausente no Itamaraty.
A dinâmica cooperativa para com a África, por ser tão ampla, complexa e ainda pouco
explorada, nos levou ao estudo específico da cooperação em segurança alimentar, um tipo de
CTC&T. Tema fascinante e longe de estar pacífico na academia, esse vetor da CBDI é
notório, por ilustrar não só o rompimento relativo do insulamento do MRE, assim como por
representar a manifestação empírica da internacionalização de políticas públicas domésticas.
Alçada à condição de política de Estado durante a presidência de bandeira petista, a busca de
garantia da segurança alimentar logrou, em âmbito nacional, resultados expressivos no
combate à fome e à pobreza e no desenvolvimento da agricultura familiar, principal provedora
do abastecimento interno de alimentos no Brasil.
Os avanços aferidos no nível doméstico chamaram a atenção de parceiros os mais
diversos, entre os quais destacamos os africanos. Técnicas aplicadas no país, que compartilha
e padece de muitos desafios socioeconômicos enfrentados pelo mundo em desenvolvimento,
poderiam ser internacionalizadas para realidades semelhantes. Isso tem o condão de propiciar
o retorno da legitimidade ao programa de combate à fome e à pobreza no Brasil, representado
no Fome Zero e na Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e contribui para
aproximar duas regiões com passados comuns. Ademais, esse vetor cooperativo tornou-se
parte da política externa pela tomada de consciência dos decisores diplomáticos e pela
influência de quadros egressos do PT, de atores privados e da burocracia federal.
Neste trabalho, procuramos focar-nos somente em quatro ministérios federais –
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); Ministério da Agricultura, Pecuária e

9
Ver: Vizentini (2010) e J. Saraiva (2012).
10
IPEA; Banco Mundial (2011); ABC (2010).
24

Abastecimento (MAPA), especificamente quanto à atuação da Empresa Brasileira de Pesquisa


Agropecuária (EMBRAPA); Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS); e MRE – e na agenda de cooperação em segurança alimentar do Brasil para com seus
parceiros do continente africano. Isso não quer dizer que não foram abordadas as influências e
preferências de outros atores partes da burocracia do Executivo e externos a ela quando da
conveniência e necessidade da análise.
A opção pela dinâmica decisória entre esses quatro ministérios foi feita com vistas a
entendermos se há arregimentação das preferências, se há controle – formal ou informal – de
um ator sobre o outro e, com especial destaque, saber qual a posição e o poder do MRE nesse
conluio de forças burocráticas. A nossa empreitada, mesmo que introdutória, busca esclarecer
algumas lacunas na literatura sobre política externa e cooperação brasileiras.
A definição do marco cronológico de 2003 a 2010, correspondente aos dois mandatos
presidenciais de Lula da Silva, ocorreu por algumas razões. Primeiramente, porque a CBDI
foi convencionada oficialmente e tornada “política de Estado” durante esse período. Em
segundo lugar, porque as rupturas externas e internas ao MRE parecem ter se tornado mais
agudas durante a liderança dos autonomistas no processo decisório em política externa. Além
disso, em virtude do fato de políticas públicas relativas à segurança alimentar terem ganhado
ênfase inédita durante a administração de Lula da Silva, com o combate à fome e à pobreza,
duas das mais nefastas hipotecas socioeconômicas do país, recebendo fundamental atenção do
governo federal. Por último, pelo motivo de a África ter se tornado locus estratégico de
inserção internacional do Brasil no intervalo estudado.
Assim, determina-se que o ponto central desta dissertação é: analisar de que forma a
cooperação em segurança alimentar, em suas mais variadas agendas, é instrumentalizada
pelos formuladores diplomáticos nas relações bilaterais entre Brasil e África no marco
temporal de 2003 a 2010. Quais os objetivos de incentivar esse tipo de cooperação? Como os
outros ministérios federais estudados participam desse processo? Como essa cooperação
representa o conluio da política externa com a política doméstica? Por que a pertinência da
África? Essas e outras questões tentaram ser respondidas ao longo desta dissertação.
Para o esforço de esclarecer esses questionamentos, recorremos, além da pesquisa
bibliográfica, a entrevistas com gestores dos ministérios mencionados. O apoio concedido
pelas pastas foi primordial para que esta dissertação pudesse chegar a seu fechamento, visto
que não foi encontrado suficiente material que lidasse com cooperação em segurança
alimentar e dinâmica decisório-burocrática em política externa. Dessa forma, o que está
25

elencado e problematizado em nosso último capítulo é, em grande parte, resultado das


conversas e entrevistas realizadas com os representantes de MDA, MDS, MAPA/EMBRAPA
e MRE.
A escolha de nosso objeto de estudo, aparte as grandes dificuldades de reunião
bibliográfica – tendo em vista a pouca amplitude de estudos sobre a temática e a proximidade
do marco cronológico -, ocorre no sentido de contribuir para o crescente debate sobre
internacionalização de políticas públicas, processo decisório, cooperação e política externa
brasileira. Mais recentemente, o tema cooperação vem ganhando espaço na academia, em
cursos de graduação e de pós-graduação, o que indica que há interesse em se esclarecer
muitas das perguntas relativas à cooperação e a diversas dimensões da política externa ainda
nebulosas e pouco trabalhadas.
A dissertação foi estruturada em quatro capítulos, em que se partirá de abordagem
mais ampla, conceitual e teórica, para sua posterior aplicação no objeto do trabalho.
Entretanto, destaca-se que tal escolha não será cartesiana, a dizer, os capítulos iniciais
poderão contar com insumos não somente teóricos, mas também com abordagens empíricas
que sustentem os conceitos e que, em conjunto, contribuam para o entendimento do trabalho
como unidade. Deixamos claro que, nesta pesquisa, não teremos estudos de caso
constitutivos. Quando da consideração de casos no último capítulo, essa ocorrerá de modo
apenas ilustrativo; não nos focaremos em um exemplo específico ou exaustivo, mas
trabalharemos com iniciativas que auxiliem na verificação de nossas variáveis e hipóteses.
Quanto aos capítulos, o primeiro capítulo tem eminente conteúdo teórico, que guiará
todo o caminhar da dissertação. Com o recurso a aportes de análise de política externa e de
teoria das relações internacionais, esse momento inicial almeja asseverar que a política
externa é resultante do conluio de forças domésticas com as variáveis sistêmicas. Por
criticarmos a ideia de Estado como ator unitário e defendermos que disputas, barganhas e
composições burocráticas constituem a política externa, visamos, neste capítulo, a explicitar
que a política externa não está apartada das demais políticas públicas, o que traz
consequências para o processo decisório e para o papel do Itamaraty.
No que diz respeito à tomada de decisões em política externa, à internacionalização de
políticas públicas e à consideração de níveis de análise, nos valemos da contribuição de
autores como Allison e Zelikow (1999); Carlsnaes (1992); Hudson (2005); Lima (2000);
Milner (1997); Moravcsik (1997); Pinheiro e Milani (2012); e Wight (2006), somente para
citarmos alguns. Foi travada discussão relativa à abertura da “caixa preta” estatal, posição que
26

nos fez recorrer a modelos de política burocrática, de formação de preferências e também os


de matriz liberal de análise política externa. Nosso argumento a respeito da construção de
“pontes” sobre o “fosso” decisório do MRE é iniciado nesse momento. Deixamos claro,
contudo, que preferimos não nos prender a nenhum modelo analítico. Se isso poderia garantir
maior acuidade explanatória, acabaria, cremos, por limitar nossa capacidade de análise.
O segundo capítulo, por sua vez, visa a perscrutar de que forma as mudanças ocorridas
nas agendas de política externa no Brasil, ao longo do período de 2003 a 2010, possibilitaram
a distintiva ênfase cooperativa na política externa para com o continente africano. Buscamos
mostrar, a partir de breve análise histórica e institucional, que o insulamento do MRE foi, de
certa forma, combalido em virtude da existência de questionamentos e de interesses de atores
externos à comunidade diplomática em encetar parcerias internacionais. Considerações foram
feitas não só quanto à sociedade civil, mas também sobre o papel do Legislativo e do
Judiciário na configuração da política externa. Escritos de Barros (1986); Cason e Power
(2009); Cheibub (1984); Faria (2008); Filho (2007); Lima (2006); Pinheiro (2009); e M.
Saraiva (2010) foram essenciais para o desenho do capítulo.
O “conflito” intraburocrático entre autonomistas e institucionalistas pragmáticos será
uma das rupturas apontadas como componentes do processo decisório em política externa. Por
isso, traçamos, relativamente às duas correntes de ação e de pensamento, as principais
escolhas relativas à inserção internacional do Brasil, as respectivas agendas de política externa
e como isso transbordou nas relações para com o continente africano. Fez-se necessário fazê-
lo, pois só conseguiríamos abarcar a cooperação bilateral em segurança alimentar se
apontássemos, previamente, os principais elementos componentes do sul-atlantismo
brasileiro.
Como o diálogo – seja ele prospectivo, seja ela de “surdos” – do MRE com outros
ministérios é distintivo para trabalharmos a cooperação em segurança alimentar, seguimos a
contribuição de Pinheiro (2009), que afirma haver espécie de “horizontalização controlada”
da política externa. Aportes teóricos delineados no primeiro capítulo foram primordiais para
as discussões traçadas aqui. Compreende-se que a pluralização de atores e a diversificação das
agendas de política externa engendram modificações na definição de interesse nacional, que
deixaria de ser uno e se tornaria vários.

Essa pluralidade de atores e interesses decorre do fato de que tanto a ordem


internacional quanto a doméstica, apesar das desigualdades e das diferenças que
conformam suas estruturas, deixam em aberto – e de modo nem sempre previsível –
vários espaços para a ação política. Posta dessa maneira, a pluralidade acaba por
27

desafiar a nossa capacidade analítica de localizar com precisão absoluta o lócus


institucional e o agente par excellence da decisão em matéria de política externa. Da
pluralidade de atores e agendas da política externa brasileira emerge, de fato, uma
complexidade crescente do próprio processo decisório (PINHEIRO; MILANI, 2012,
p. 331).

Já o terceiro capítulo encaminha a gradação lógica da pesquisa em torno do lugar da


cooperação internacional, mais especificamente a cooperação técnica sul-sul, na política
externa brasileira. Como a CSS não surge de tabula rasa, empreendemos, na parte inicial do
capítulo, debate acerca dos mais variados conceitos relacionados à cooperação internacional.
Procuramos apontar como se consubstancia o Sistema Internacional de Cooperação para o
Desenvolvimento (SICD), a que tivemos que recorrer ao papel de instâncias multilaterais
como a ONU. Após distinguirmos as características do Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento
(CAD-OCDE) do arcabouço conceitual da CSS, pudemos debruçar-nos sobre os elementos
mais gerais da CBDI.
As singularidades das práticas e da retórica cooperativa foram delineadas nessa estapa
do trabalho. De histórico recebedor líquido de cooperação, o Brasil tornou-se também
provedor de conhecimentos e de técnicas em distintas agendas, enunciando o conluio com a
arena doméstica e a internacionalização de políticas públicas. Encontra-se o país em um novo
paradigma no SICD que, por sua novidade, ainda demanda maior volume de análises.
Na parte final desse capítulo, defendemos que a cooperação técnica do Brasil não está
somente eivada de conteúdo referente à solidariedade, mas também comporta elementos de
pragmatismo e de interesses, o que corrobora nosso posicionamento em prol de a cooperação
em segurança alimentar ter sido instrumentalizada pelos decisores diplomáticos11. O
argumento de Lengyel e Malacalza (2011), de que existem condicionalidades implícitas na

11
A ideia de promoção de ordem internacional menos assimétrica faz-se presente aqui. Conforme Burges,
“Brazil turned to a distributive approach to international negotiations masked in an integrative facade,
wrapping itself in a blanket South-South solidarity”. O trecho correspondente na tradução é: “O Brasil voltou-se
para uma abordagem distributiva em negociações internacionais mascaradas por uma fachada integrativa,
envolvendo-se em um espectro de solidariedade sul-sul”. Ao abordar uma das táticas negociais dos diplomatas
brasileiros, denominada de “propagate new thinking” e caracterizada como assertiva, o autor afirma que: “the
suggestion here is that, in part prodded by Brazilian ideas and examples, the South is rapidly developing the
confidence to express itself in global governance forums and in bilateral relations, taking more than just a
defensive attitude to their foreign relations and the evolution of international regimes. Keep in mind that Brazil
is also busy engaging these newly active states in rolling policy discussions to marshal them behind the
Brazilian vision”. (BURGES, 2012, p. 365). O trecho correspondente na tradução é: “a sugestão aqui é que, em
parte estimulado por ideias e exemplos brasileiros, o sul está rapidamente desenvolvendo a confiança de se
expressar em fóruns de governança global e em relações bilaterais, tomando mais que somente uma atitude
defensiva em suas relações exteriores e na evolução dos regimes internacionais. Tenha em mente que o Brasil
também está ocupado engajando esses Estados recém-ativos em discussões políticas em curso para guiá-los atrás
da visão brasileira”.
28

cooperação brasileira, foi notório para o encaminhar da pesquisa. Além desses autores,
recorremos a, entre outros nomes já citados, Ayllón e Leite (2010); e Fonseca (2008).
Finalmente, o quarto capítulo é sobre a cooperação em segurança alimentar para com
a África como instrumento de política externa. Se, no decorrer da dissertação, empreendemos,
entre outras coisas, análises sobre processo decisório; conluio de política doméstica com
política externa; rupturas relativas ao insulamento do MRE; dissensos e agendas de seus
grupos intraburocráticos; e como se comporta a cooperação técnica do Brasil, no último
capítulo aplicamos esses conhecimentos à prática das relações com o continente africano.
Procuramos apontar como a segurança alimentar – conceito fluido, amplo e polêmico
– foi internacionalizada para a perspectiva sul-atlântica da política externa. De termo que
dialoga com a horizontalização das abordagens sobre segurança a elemento fundamental da
agenda governamental, a segurança alimentar foi trabalhada como constituinte essencial das
relações Brasil-África. Seus componentes de desenvolvimento agrário, de combate à fome e
de combate à pobreza, justificados nessa última porção da pesquisa, foram os analisados mais
detidamente. Ademais, empreendemos discussão a respeito do processo decisório –
especificamente o entre os ministérios citados.
As interações entre MAPA, MDS e MDA com relação ao MRE foram apontadas e
problematizadas com vistas a entender se há hierarquias, coordenação ou conflito. Veremos
que a força da agenda política da correlação de forças que sustentou Lula da Silva determinou
relações marcadas majoritariamente por concordância e conjugação de esforços entre esses
atores ministeriais. Isso não quer dizer, contudo, que a cooperação em segurança alimentar
seja algo que suscite anuência plena, mesmo dos atores do Executivo. O posicionamento do
Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) é imensamente interessante, pois
mostra que mesmo parte da burocracia federal e tendo sido instituído pelo governo então no
poder, a entidade é demasiado crítica a essa vertente da cooperação sul-sul do Brasil.
Em sua última seção, trabalhamos com alguns exemplos da cooperação em segurança
alimentar realizada, como o Mais Alimentos África, o PAA-África, o PROSAVANA, o
Cotton Four e o Diálogo Brasil-África sobre Segurança Alimentar, Combate à Fome e
Desenvolvimento Rural12, todos consequência do período de Lula da Silva à frente da
presidência da república. Preferimos abordar com vários exemplos ao invés de somente um ou
dois, pois isso nos daria maiores possibilidades de investigar dinâmicas decisórias e também

12
ABC (2010).
29

de observamos de que forma essas iniciativas se relacionam com as perspectivas de


solidariedade e de interesses da política externa.
Como já mencionamos, a realização de entrevistas foi essencial para a escrita desse
derradeiro capítulo. Além delas, recorremos à contribuição de autores como Burges (2012);
Buzan (1991); Chmielewska e Souza (2011); FAO (2008); IPEA e Banco Mundial (2011); e
Vidigal (2010), para a composição dos argumentos presentes na parte final de nossa pesquisa.
Se, em cômputo geral, o Brasil tem, no período hodierno, a quinta maior presença diplomática
na África13 e interesses dos mais variados em curso, o componente da cooperação em
segurança alimentar é parte integrante desse renovado olhar para o outro lado do Atlântico
Sul.
Povoadas de enormes expectativas e leituras indefinidas – sujeitas que são a
interrupções e a mudanças de curso dos contatos bilaterais – as relações entre Brasil e África
são ilustrativas de um contexto em que são expostas renovadas atenções para a política
externa, desde sua formulação ao encaminhar dos contatos cooperativos. A cooperação em
segurança alimentar é apenas uma dessas dinâmicas. A citação de José Honório Rodrigues, de
1961, ainda que soe um tanto profética, cabe, sem objeções, ao momento atual:

Na verdade somos uma nação que deve pensar intercontinentalmente e o Atlântico


Sul nos conduz à África, a que tudo nos liga, desde as similitudes da geografia
(clima, solos, vegetação), até as forças étnicas, as precedências históricas e os
interesses econômicos. O Atlântico Sul nos une a quase toda a África Ocidental e
nos sugere uma política de esplanada, intercontinental, que melhore não somente
nossas condições de proteção e de segurança, mas nossas alianças econômicas e de
amizade. Somos, assim, pela nossa própria extensão e posição no Atlântico Sul uma
nação intercontinental e um protagonista das relações internacionais com o mundo
africano (RODRIGUES, 1961, p.345).

13
O Brasil possui 37 embaixadas no continente africano, com mais da metade delas tendo sido inaugurada na
presidência de Lula da Silva. Entre os países não africanos, o Brasil só possui menos legações na África que
Estados Unidos, China, França e Rússia. Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/10/111017_diplomacia_africa_br_jf.shtml, acesso em
04/05/2013.
30

1 ATORES E AGENDAS DA POLÍTICA EXTERNA: APORTES TEÓRICOS

A análise da política externa de um país perpassa não apenas as variáveis


internacionais, como também as suas contrapartes domésticas, que têm fundamental
relevância para a determinação dos comportamentos internacionais de um Estado. Este
capítulo almeja mostrar, por meio de recurso a diferentes correntes teóricas das relações
internacionais e a aportes de análise de política externa, como essa vai além de interpretações
deterministas e reducionistas que dão relevância uníssona aos aspectos estruturais e ao
entendimento do Estado como ator unitário, negligenciando as contribuições endógenas.
Reconhecer que a política externa é resultante de diferentes níveis de análise, bem como sua
relação, é importante para melhor compreensão da realidade. Isso não quer dizer que não
trataremos, também, ao longo da dissertação, de aspectos sistêmicos que sempre continuam
com sua validade e aplicabilidade teórica e prática. Nossa defesa é que eles não sejam
buscados em detrimento de suas contrapartes domésticas.
O objetivo deste capítulo é expor como a consideração do Estado como ator unitário é
ultrapassada, bem como corroborar a importância de atores domésticos no processo de
formação de preferências, suas disputas, barganhas e jogos a fim de procurarem fazer valer
seus interesses. O comportamento estatal resulta dessa dinâmica, o que implica que a política
externa é mutável e sujeita à politização em seu processo de formulação. No caso brasileiro,
ainda que o poder Executivo continue com preeminência na tomada de decisões, a crescente
consolidação da democracia, o avanço da globalização e da liberalização comercial, esses três
fatores implicando em ganhos distributivos desiguais, geram maiores espaços de diálogo do
governo com outros atores que compõem o espectro doméstico. Complexifica-se o processo
decisório no interior das próprias instituições governamentais, a exemplo do Itamaraty.
Entendemos, para fins deste capítulo, que, em virtude disso, a política externa é uma
política pública sujeita a escrutínios societários que remontam a uma imagem para além da
tradicional caracterização da diplomacia nacional como fruto de um quadro de insulamento
burocrático. As decisões de política exterior não são sempre previsíveis; as preferências dos
atores domésticos têm impacto, em maior e em menor grau, para a formalização das decisões.
Esses entendimentos nos auxiliarão na posterior consideração da política externa
desenvolvida durante os mandatos presidenciais de Lula da Silva.
31

Os embasamentos teóricos deste capítulo nos auxiliarão na observância de que há


distintas correntes de ação e de pensamento no interior do Ministério das Relações Exteriores
(MRE) e que, além disso, outros atores da burocracia estatal – especificamente, no nosso
caso, ministérios federais14 – têm participação na configuração da política externa, ainda que
de forma mais flagrante em sua execução que em sua formulação. Como trabalharemos com a
cooperação entre Brasil e África em segurança alimentar, conceito difuso que será trabalhado
no último capítulo, a consideração de distintos referenciais domésticos com impacto na
tomada de decisões e no encaminhamento das diretrizes de política externa, é importante.
Portanto, estudar os eixos fundamentais da política externa e sua vocação cooperativa
assumida no período Lula da Silva sem a análise de variáveis internas e sem a investigação do
processo decisório torna-se tarefa incompleta. Nesse sentido, para apreciarmos a cooperação
brasileira para com a África no campo da segurança alimentar, devemos, antes de tudo, nos
ater sobre um instrumental teórico que nos traga ferramentas explicativas suficientes a fim de
não se configurar um texto meramente descritivo ou de narrativa histórica.
Os apontamentos teóricos deste capítulo contribuirão para argumentos a serem
delineados posteriormente na pesquisa, referentes, entre outros, à abertura do Estado; ao
processo de tomada de decisões; ao “transbordamento” de políticas públicas da arena
doméstica para a internacional, por meio de sua instrumentalização pelos decisores de política
externa; e também ao fim relativo do insulamento burocrático do MRE na configuração da
política de cooperação sul-sul do Brasil para com a África.
Por último, queremos deixar claro que não nos prenderemos seminalmente a nenhum
modelo explicativo mostrado nesta parte inicial, no sentido de que não é objetivo deste
capítulo prover-nos um framework fechado e definitivo ao qual aplicaremos nossos
conhecimentos relativos à política externa e à cooperação empreendida. Entendemos que isso
limitaria sobremaneira a análise, podendo criar ambiguidades, e limitaria o potencial
explicativo a ser explorado nesta pesquisa. Entretanto, ainda que não nos subscrevamos de
forma decisiva aos paradigmas aqui discutidos, eles serão evocados nos capítulos
subsequentes quando sua aplicabilidade mostrar-se válida para nosso objeto de estudo.

14
No último capítulo desta dissertação abordaremos as inter-relações entre o Itamaraty e os ministérios da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA); Desenvolvimento Agrário (MDA); e Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS), na configuração da política de cooperação em segurança alimentar para com os
parceiros do continente africano.
32

1.1 Para além do modelo de ator unitário

A análise de política externa produziu, ao longo de seu processo de evolução, um


vasto grupo de teorias com o objetivo de investigar comportamentos estatais. Essas
contribuições buscam explicar a política externa, seus determinantes, expectativas, processos
decisórios e ações com vistas à implementação dessa política exterior. Trata-se de um campo
do conhecimento essencialmente Estado-cêntrico, pois se baseia na produção dos Estados,
ainda que considere as interações que as entidades de decisão estatais têm com atores outros
que influenciam a política externa e ajudam a formulá-la e a implementá-la.
Tomando por base as teorias de matriz realista, compreende-se que nenhuma delas têm
por foco primordial o processo de tomada de decisão ou os condicionantes domésticos que
determinam o porquê da realização de uma ação estatal. Para elas, o processo de tomada de
decisões é mais determinado que determinante, pois esses determinantes estariam presentes,
fundamentalmente, em comportamentos estatais imutáveis e repetitivos e/ou no sistema
internacional. Sua característica patente de anarquia, ainda que mediada por normas, valores,
regimes, etc. seria a condutora das decisões. Nesse sentido, as ações estatais seriam resultado
da interação de forças no âmbito externo, o que diminui exponencialmente o potencial de
análise das motivações dos Estados.
Ainda que teorias de matriz realista, por exemplo, levem em consideração aspectos da
natureza humana para explicar comportamentos estatais, a influência das variáveis sistêmicas
continua decisiva. Segundo Morgenthau (1948), os Estados, em face de uma estrutura
internacional anárquica e competitiva, agem com vistas a maximizar poder. A associação
teórica entre interesse nacional e maximização de poder garantiria uma explicação
pretensamente universal sobre os motivos de os Estados agirem.
Obviamente, o estudo de política externa não pode ignorar as variáveis sistêmicas;
entretanto, o foco quase que exclusivo nessas empobrece o entendimento das motivações para
as ações dos Estados. Entretanto, convencionou-se teoricamente que a origem da política
externa viria da perspectiva sistêmica, com o mecanismo da balança de poder sendo definidor.
As regras de comportamento dos Estados, independentemente de suas políticas públicas, de
suas burocracias, de atores e grupos internos, de condicionantes cognitivas dos tomadores de
decisões, entre outros fatores, seriam determinadas pela estrutura descentralizada do sistema
internacional.
33

Esse entendimento de política externa não está livre de problemas, a serem elencados a
seguir: (a) os conceitos básicos do realismo - poder, balança de poder e interesse nacional –
não podem ser definidos objetivamente e de modo científico, ainda que diversos autores
tentem quantificá-los, esforço notadamente observado em métodos behavioristas; (b) não há
conexões entre fatores domésticos e política externa, com as considerações domésticas sendo
apenas concernentes aos recursos de poder de cada Estado; (c) ao mesmo tempo em que
afirmam que a natureza humana é imutável, os realistas clássicos defendem que os
comportamentos estatais podem assumir diferentes formas, o que é explicitado unicamente
pela distribuição de poder (SMITH, 1986).

By eschewing any empirical concern with the domestic and internal variations
within the separate nations, the system-oriented approach tends to produce a sort of
“black box” or “billiard ball” concept of the national actors. By discounting – or
denying – the differences among nations, or by positing the near-impossibility of
observing many of these differences at work within them, one concludes with a
highly homogenized image of our nations in the international system (SINGER,
1969, p. 81-82)15.

Essa imagem cristalizada dos Estados é pouco útil para explicar porque atores
igualmente soberanos e com as mesmas capacidades agem de formas diferentes 16. David
Singer mostra-se cético quanto a afirmações de que as ações estatais são consequência das
implicações sistêmicas, pois isso conformaria a política externa como variável dependente,
enquanto que os aspectos estruturais seriam as variáveis independentes, num fluxo de
subordinação17. O mais correto, defende, seria o estabelecimento de bases correlativas entre
os níveis doméstico e internacional e não unicamente a definição de uma relação causal.
“What is thought to be the consequence of a given stimulus may only be a coincidence, and

15
O trecho correspondente na tradução é: “Por evitar qualquer preocupação empírica com as variações
doméstica e interna no interior das diferentes nações, a abordagem sistêmica tende a produzir uma espécie de
conceito de ‘caixa preta’ ou de ‘bola de bilhar’ dos atores nacionais. Por descontar – ou negar – as diferenças
entre as nações, ou por postular a quase impossibilidade de se observar muitas dessas diferenças no trabalho com
elas, conclui-se uma imagem altamente homogeneizada das nossas nações no sistema internacional”.
16
Para além das perspectivas realistas clássicas, ainda que Waltz (1996) tenha proclamado que o neorrealismo é
uma teoria de política internacional e não uma teoria de política externa, autores como Elman (1996) enquadram-
na como tal.
17
Isso não significa, entretanto, que iremos adotar a perspectiva de Wendt (1987), de tomar a co-constituição
entre agente e estrutura como base ontológica.
34

until one investigates the major elements in the causal link (…) one may speak only of
correlation, not of consequence” (SINGER, idem. p.82)18.
A resposta para esse desafio é encontrada na análise dos condicionantes domésticos.
Para além do extenso debate sobre a evolução do campo de análise de política externa19, é
importante sublinhar que a ideia de ator racional unitário, coeso, monolítico e pautado em um
interesse nacional “dado” e imutável é de pouca monta para o entendimento da política
externa e será combatida ao longo desta dissertação.
Questionar a pretensa caracterização do Estado como unitário, não significa, contudo,
a existência de uma crítica à ideia de racionalidade. Ao longo de todo este trabalho,
partiremos de postulados de causalidade próprios das correntes e das contribuições do campo
da análise de política externa. Ainda que de difícil demonstração, não vemos, entretanto,
como impossível a utilização de instrumentos analíticos que se baseiam em epistemologias
distintas. Os apontamentos de Kurki (2008) são profícuos, no sentido de que discutem as
posições de racionalistas e de reflexivistas a partir de considerações relativas à causalidade20.
Reconhecemos essa e outras contribuições, mas nossa abordagem permanecerá no campo
racionalista.
Para além de tais perspectivas, parece mais correto assumir que parte do que ocorre no
processo decisório dos Estados ou nas relações entre eles é derivado de decisões humanas
individuais ou de grupos específicos21. A política externa resulta, dessa forma, de processos
de tomada de decisões, o que tem considerável impacto na delimitação do interesse nacional.
“Typically, the horizon of interest is delimited to decision making performed by those with the

18
O trecho correspondente na tradução é: “O que foi pensado para ser a consequência de um estímulo dado pode
somente ser uma coincidência, e até que se investiguem os principais elementos no nexo da causalidade (...)
pode-se falar somente de correlação, não de consequência”.
19
Gerner (1995) e Carlsnaes (2001) trazem contribuição substantiva sobre a evolução dos estudos de análise de
política externa: suas bases de formação nos anos 1950; seu estabelecimento gradual durante o debate
mainstream entre tradicionalistas e behavioristas; o avanço para estudos de política externa comparada, com
objetivo claro de estabelecimento de uma teoria geral de política externa e forte influência behaviorista, e, como
contraparte, perspectivas pluralistas ligadas a teorias de médio alcance (é importante notar que há variadas
dessas contribuições que são, inclusive, mutuamente exclusivas); e a abertura a outros campos disciplinares,
como as abordagens cognitivas de política externa.
20
A proposta da obra em questão é reestabelecer o diálogo entre racionalistas e reflexivistas a partir de uma
análise do fenômeno das causalidades.
21
Padrões tradicionais de análise de política externa envolvem variáveis múltiplas, como personalidade dos
decisores, padrões organizacionais, barganhas entre grupos domésticos, etc.
35

authority to commit resources, usually but not always the legitimate authorities of nation-
states” (HUDSON, 2005, 2)22.
De acordo com essa autora, o valor da análise de política externa é o de identificar as
interseções teóricas entre os principais determinantes do comportamento estatal: os fatores
materiais e os ideacionais. As interseções teóricas entre esses fatores são os decisores
humanos. Sem a presença desses decisores, as teorias de relações internacionais teriam grande
dificuldade de prever ou de explicar a mudança e também como Estados em desenvolvimento
se inserem no sistema internacional. Além disso, compreende-se que os tomadores de decisão
são triplamente determinados, ou seja, por aspectos cognitivos/psicológicos e de âmbitos
doméstico e internacional23. Isso contribui para a constatação empírica de que os Estados
desenvolvem diferentes políticas externas e que um mesmo Estado pode realizar distintas
inserções internacionais em períodos históricos relativamente próximos. Pode, também,
auxiliar no entendimento de como o comportamento de um Estado pode mudar em um
sistema internacional relativamente em equilíbrio.
O Estado continua como sendo a unidade de análise fundamental, mas tal entidade é
descartada como sendo realidade monolítica e fechada, o que lhe aproximaria das análises
puramente realistas, e enfocada por meio dos determinantes do processo de tomada de
decisões e não somente por suas consequências (SNYDER; BRUCK; SAPIN, 1962). Ainda
que a tomada de decisões seja melhor apreendida em âmbitos de menor escala, como uma
negociação comercial, por exemplo, e envolva variáveis múltiplas que possam não ser
repetidas em outros âmbitos negociais, a importância destinada a esse outro vértice da
configuração da política externa contribui para tornar o debate mais substantivo. Ao optar por
essa escolha, ganha-se, ainda, profundidade na análise de políticas de cooperação.

Theories of “rational-actor” models are not favored by modern students of foreign


policy because of their assumption that governments consist of united, purposive
strategists who, in possession of full information, calculate and implement actions

22
O trecho correspondente na tradução é: “Tipicamente, o horizonte de interesse é delimitado à tomada de
decisão realizada por aqueles com a autoridade de comprometer recursos, normalmente, mas nem sempre, as
autoridades legítimas dos Estados nacionais”.
23
A contribuição de Putnam (1988), com seus jogos de dois níveis, é passível de críticas, mas tem grande
potencial explicativo para negociações internacionais. Além disso, a colocação de decisores de política externa
no centro da matriz teórica, como pretendem alguns autores, a exemplo de Hudson (2005), garante a
possibilidade de operacionalização de outros tipos de teorias, como as que envolvem fatores culturais e sociais
na definição do comportamento estatal, o que abre espaço para a matriz construtivista.
36

on the basis of how best to maximize power and security (HILL; LIGHT, 1985,
p.157) 24.

Essa mudança de percepção foi favorecida pelo fim da Guerra Fria, pois o conflito
bipolar trazia indeléveis vantagens à utilização de modelos comportamentais generalizantes
que caracterizassem atores que sofriam constrangimentos internacionais25. Com o fim do
arranjo bipolar, foram favorecidas análises que tinham por escopo aspectos intraestatais, como
estudos sobre burocracias; sobre a concepção do papel nacional e da identidade pelas elites
domésticas; sobre as características do líder; sobre o estudo dos agentes humanos quando eles
interagem em grupos nas relações internacionais; entre outras26.
Ainda que o contraste de características entre distintos Estados possa ser evocado em
análises sistêmicas, as comparações delineadas por essas normalmente revestem-se de
generalizações que, ao não levar em consideração a dinâmica intraestatal, procuram criar
verdades que não são aplicáveis. Ao mesmo tempo, a preferência por estudos centrados no
Estado como ator racional pode levar a exageros, seja pela definição de supostos padrões de
comportamento, o que pode criar dogmatismos e dificultar o entendimento de mudanças, seja
pelo risco de justificar toda e qualquer ação estatal tomando por base a ideia de interesse
nacional.
Mesmo o tímido esforço dos realistas neoclássicos em levar em consideração fatores
domésticos torna-se pouco efetivo. Ainda que busquem ir mais além do que os neorrealistas,
continuam compartilhando com esses a visão de que a política externa de um país é
primordialmente determinada por sua posição relativa no sistema internacional e por suas
capacidades de poder (ZAKARIA, 1998; SCHWELLER, 2004). A vantagem de suas análises,
em comparação com os neorrealistas, é que os realistas neoclássicos afirmam que o impacto
dos aspectos sistêmicos será múltiplo e não necessariamente ocorrerá a partir de respostas via
reordenamento da balança de poder. No entanto, eles somente trabalham com variáveis
domésticas em âmbito ad hoc e, além disso, sofrem severa crítica de autores liberais por

24
O trecho correspondente na tradução é: “Teorias de modelos de ‘ator-racional’ não são favorecidas por
estudantes modernos de política externa por causa de sua suposição que os governos consistem em estrategistas
unidos e decididos que, na posse de informações completas, calculam e implementam ações baseados em como
melhor maximizar poder e segurança”.
25
Também porque os processos domésticos da burocracia soviética eram um tanto opacos para análise mais
detalhada. Isso explica o foco em análises baseadas na teoria dos jogos e em modelagens que trabalham com
aspectos econométricos para a definição de preferências.
26
Tem-se, aqui sublinhados, um dos clássicos debates da análise de política externa, aquele que compreende as
teorias generalizantes (actor-general IR theory) e as teorias específicas (actor-specific theory of foreign policy).
37

considerarem que as preferências dos agentes estatais são dadas e sempre constrangidas por
questões relativas a poder27.
A compreensão da política externa de uma dada nação, portanto, não deve partir mera
e simplesmente da postulação de quais objetivos e motivações esse país possui, mas tentar
investigar a gênese e o processo pelo qual tais objetivos tornaram-se variáveis singulares a
ponto de serem imiscuídos no comportamento internacional daquele Estado28. Assim, reificar
a abstração Estado como ator coeso contraria a possibilidade de se observar as motivações de
grupos e de indivíduos – entre eles o próprio líder – que atuem dentro desse modelo
institucional e que participem do processo de elaboração da política externa.
Durante a evolução do estudo de política externa, tentou-se, inclusive, realizar
classificação da disciplina em dois grandes campos de análise: (a) Innenpolitik e (b)
Realpolitik. O primeiro seria referente a distintas abordagens de política externa, a exemplo de
fatores cognitivos, burocráticos, comportamento de crise, processos decisórios, etc. A
primazia, nesse caso, recairia sobre o papel de fatores domésticos na explicação da política
externa (Innenpolitik) e, mesmo considerando que cada um desses fatores favorece uma
variável doméstica específica, eles compartilham a assunção de que a política externa pode
ser entendida, grosso modo, como resultado de dinâmicas domésticas. Já o ramo da
Realpolitik, largamente associado à tradição realista, tem os fatores sistêmicos como
fundamentais. Ainda que variáveis domésticas não sejam completamente ignoradas, elas não
são decisivas para o entendimento de comportamentos estatais (CARLSNAES, 2001).
Utilizada como critério para diversos estudos de política externa, essa classificação é
baseada na assunção de uma linha divisória entre o que é doméstico e o que é internacional. A
existência de tal separação, entretanto, é questionável tanto como uma proposição teórica

27
Entendemos que, mesmo em processos de tomada de decisões que levem em consideração, por exemplo,
dinâmicas burocráticas, a perspectiva de poder, relativa à assimetria decisória, a barganhas e a possíveis
manipulações de informações no encaminhamento da formação de preferências, também se faz presente. Isso
não quer dizer, contudo, que isso promova uma mesma leitura de poder feita pelas teorias de matriz realista.
Primeiro porque, aqui, há a diferenciação já mencionada entre teorias generalizantes e teorias ator-específico.
Depois, em virtude de que a formação de preferências não buscará propiciar, necessariamente, as premissas
básicas das correntes realistas, como a maximização relativa de poder e a melhoria da posição estatal na balança
de poder.
28
Há considerável literatura que questiona a dita objetividade dessas motivações, assim como o caráter
puramente racional das decisões relativas à política externa. Jervis (1976) é um desses exemplos. Entretanto,
ainda que as abordagens cognitivas tragam crítica a esse racionalismo exacerbado, essa supõe que os decisores
buscam maximizar benefícios. As decisões podem ser tomadas em nome de crenças, de percepções equivocadas,
etc., mas ainda com o tino de angariar ganhos. Já a literatura de base racionalista questiona, em geral, a
possibilidade de se explicar, de modo acurado e sistemático, o comportamento externo de um Estado meramente
a partir de crenças e percepções.
38

como quanto empiria29. Por meio dela, ignoram-se as interações constantes e as interferências
mútuas entre os âmbitos interno e internacional; além disso, a capacidade de influência de
atores domésticos na formulação e na execução da política externa é minimizada30.
Interessante seria, portanto, considerar aspectos de complementariedade. “Both
domestic and international institutions are, if anything, structures constraining and enabling
foreign policy actions”31 (CARLSNAES, 1992, p.267). Dessa forma, pode-se afirmar: (i)
ainda que a unidade de análise básica seja o Estado, o estudo do que ocorre no interior dessa
abstração é vital para afastarmos o mencionado risco de reificação; (ii) mesmo que se tome
por base o Estado como unidade de análise, e aqui partindo de uma abordagem de ontologia,
isso não impede que esse seja relacionado com a estrutura, com essa sendo caracterizada
como nível de análise. Como bem afirma Wight (2006), agência e estrutura não são
antagônicas, podendo caminhar em prol de complementariedade.
Kenneth Waltz, ao definir os três níveis de análise, defende que balizar as relações
internacionais somente em termos de uma das três imagens (man, state, war) levaria a falhas
de diagnóstico. A crítica é destinada a analistas que se baseiam somente no nível de análise
estatal (state), notadamente identificados por ele como sendo liberais. Note-se que, na obra
em questão, o autor realiza questionamentos à ontologia centrada no Estado. “(...) no
prescription for international relations written entirely in terms of the second image can be
valid, that the approach itself is faulty” (WALTZ, 1959, p.122)32.
Aproximando-se da posição de Carlsnaes, pode-se sustentar que a visão de Waltz
tampouco é, no plano teórico, de busca por exclusivismos na escolha dos níveis de análise,
ainda que isso contribua decerto para a facilitação da pesquisa. “(...) the third image describes
29
Carlsnaes (2001) propõe outra classificação para a caracterização da política externa, baseada em ontologia e
epistemologia. De acordo com a proposta, haveria, dentro do campo da ontologia, uma divisão entre (i) holismo -
em que um sistema determina como se comportam as partes - e (ii) individualismo. A divisão epistemológica,
por sua vez, ocorreria entre (iii) objetivismo (racionalismo) e (iv) “interpretativismo” (reflexivismo). Partindo
dessa perspectiva, a escolha ontológica pelo individualismo permite que se faça tratamento dos atores de um
ponto de vista (iii) racional, cognitivo e/ou objetivo; ou de uma (iv) abordagem interpretativa e intersubjetiva. Da
mesma forma, a escolha ontológica pelo holismo pressupõe a definição de uma perspectiva racional ou, ao
contrário, de uma lente interpretativa.
30
Formulação é “a concepção de uma conduta que se expresse em atos ou palavras, com relação a um tema de
natureza internacional, por iniciativa ou reação, por parte de atores privilegiados na arena decisória” que se
traduz, “em última análise, como a posição do governo em questão”. Implementação ou execução é “a mera
aplicação de uma decisão, desde que neste processo não se acrescente ou se altere substantivamente o conteúdo
da mesma – caso em que se deve retomar à categoria de formulação” (PINHEIRO, 2000, p.453).
31
O trecho correspondente na tradução é: “Tanto as instituições domésticas e internacionais são, se alguma
coisa, estruturas constringindo e permitindo ações de política externa”.
32
O trecho correspondente na tradução é: “(...) nenhuma prescrição para relações internacionais escritas
inteiramente em termos da segunda imagem pode ser válida, que a abordagem em si é imperfeita”.
39

the framework of world politics, but without the first and the second images, there can be no
knowledge of the forces that determine policy”33 (Idem, p.238). Essas três categorias mestras
– divididas em níveis externo; doméstico; e individual - podem ser fragmentadas em outras
tantas, o que implica na patente complexidade dos processos de tomada de decisão e de
formulação de política externa.
Conforme os apontamentos de Thomas Risse-Kappen, são os integrantes do governo -
pelo poder derivado de seus cargos e de sua posição na burocracia, o que é acompanhado pelo
caráter de legitimidade eleitoral, no caso de regimes democráticos - que tomam as decisões
em nome do Estado (RISSE-KAPPEN, 1995). Por sua posição no estamento estatal, sofrem
influências e influenciam os demais grupos domésticos, o que compõe um quadro
multifacetado de explicação do quê consiste a política externa, de como as decisões são
estabelecidas e de qual ator tem o papel preponderante na defesa de suas demandas. Para tais
questionamentos, é importante que abramos a “caixa preta” do Estado e observemos as
motivações e as preferências dos grupos que o compõem institucionalmente.

1.2 Abre-se a “caixa preta”: modelos de processo organizacional, de política


burocrática e as preferências da abordagem liberal

São inúmeros os modelos de análise de política externa que estão à disposição do


investigador para perquirir o comportamento internacional de um Estado. Para além das
abordagens puramente de matriz realista34, a influência de fatores domésticos na formulação e
na execução da política externa está presente nas mais variadas perspectivas teóricas.
Reconhecemos a validade e a pertinência das mesmas; entretanto, em nome do
pragmatismo e da coerência, levaremos em consideração, nesta seção, os modelos de
procedimento organizacional e de política burocrática; e a visão liberal no tocante à formação

33
O trecho correspondente na tradução é: “(...) a terceira imagem descreve o quadro da política mundial, mas
sem a primeira e a segunda imagens, não pode haver conhecimento das forças que determinam a política”.
34
Autores como Moravcsik (1997) argumentam que abordagens institucionalistas neoliberais têm, em seu
âmago, proximidade inefável com o neorrealismo. Ambas as perspectivas teriam a estrutura internacional como
ontologia e defendem a ação estatal como de maximização de poder (realistas) e de utilidade (institucionalistas
neoliberais). No que diz respeito à política externa, as duas correntes têm por base que a capacidade de ação dos
Estados está limitada pelas prerrogativas sistêmicas.
40

de preferências. As relações entre essas ferramentas analíticas serão elencadas ao longo do


exposto.
Nosso objetivo é mostrar que, para além da “caixa preta”, alegoria de um Estado
comumente associado às visões realistas, há fatores domésticos que devem ser aventados no
entendimento da política externa. Veremos, nesta dissertação, que, para além do modelo de
ator racional, as burocracias estatais, os grupos extraburocráticos e as relações entre esses e os
tomadores de decisões são válidas para o estudo da cooperação brasileira em segurança
alimentar para com o continente africano no marco temporal estabelecido.

1.2.1 As burocracias importam

Partimos do princípio que as burocracias importam não somente para a compreensão


do processo de tomada de decisões, como também para a avaliação de como se dão as
relações entre os governos e os grupos burocráticos que o compõem. Entendemos que os
interesses desses grupos têm impacto substancial para a formalização de escolhas, como a
opção pela cooperação internacional com determinados parceiros e a ênfase em uma inserção
externa que privilegie uma região específica.
Quanto à questão das burocracias, não podemos ignorar os escritos de Allison (1971)
que, em sua análise da crise dos mísseis cubana de 1962, contribui para o debate ao propor
três modelos basilares para o entendimento da política externa: o modelo de ator unitário (I); o
modelo de processo organizacional (II); e o modelo de política burocrática (III).
Já delineado na seção anterior, o primeiro modelo é o de ator racional unitário (I), que
agiria de forma previsível e calculada, buscando maximizar sua utilidade e sem levar em
consideração disputas, barganhas ou acordos domésticos. Por essa definição, a política
externa estaria aparte da política e da correlação de forças domésticas e o Estado seria
ilustrado como uma instituição opaca e coesa. Os aportes teóricos de Allison fornecem
subsídios para o rompimento desse primeiro modelo, porque compreendem paradigmas
subjacentes que levam em consideração a existência de atores imersos na burocracia estatal; e
as próprias interações e barganhas entre os conformadores da burocracia, cada qual com
interesses e percepções próprios, o que gera consequentes impactos no comportamento
41

externo dos Estados. Esse arcabouço teórico ajuda na ruptura de relações unidirecionais de
causa e de efeito que somente partem de implicações sistêmicas.
O modelo de processo organizacional (II) tem por objetivo perquirir como as rotinas,
procedimentos e socialização organizacionais das burocracias e das agências intraestatais
podem impactar no processo de formulação da política externa e/ou levar à competição
intraburocrática. Por rotinas ou procedimentos organizacionais, tem-se que os fluxos de
informações aventados pela burocracia estatal geram procedimentos padronizados,
normalmente difíceis de serem modificados em curto prazo e pautados pela regularidade.
Ainda que tenha sido moldado inicialmente para a política externa dos Estados
Unidos, o modelo de processo organizacional possui potencial explicativo para as análises
referentes a outros países. De acordo com suas prerrogativas, o comportamento estatal será
definido pela estrutura doméstica. A dizer, trata-se de uma abordagem em nível “sub-
sistêmico”, com foco nas relações causais entre o Estado como abstração e suas agências - no
sentido de como o comportamento do primeiro corrobora ou não as demandas dessas últimas
-, e entre as agências e os indivíduos. Segundo o modelo de processo organizacional, os
decisores individuais não agiriam de forma plenamente independente e autônoma, mas
conforme as agências que fazem parte da burocracia. Esse modelo leva em consideração que
grupos de interesses econômicos, militares, sociais e políticos, além das organizações no
interior do Estado, definem rotinas para avaliar, no caso concreto, os custos e os benefícios da
assinatura de um acordo ou a pertinência da tomada de decisão.
As decisões em política externa seriam, portanto, produtos de padrões regulares de
comportamento, referidos pela abordagem como processos organizacionais. É possível utilizar
os escritos de Allison a fim de entender os processos de tomadas de decisão em política
externa em geral, assim como, em alguns casos, o papel de unidades de decisão e de
formulação de política externa, normalmente grupos autônomos, nesse processo35.
Segundo esse autor, os governos são abstrações que envolvem grandes organizações –
ou grupos – que possuem responsabilidades sobre determinados temas. Haveria, dessa forma,
uma “divisão de trabalho” no interior da burocracia, a fim de prover maior utilitarismo e
especificidade na tomada de decisões. Esses atores agiriam de forma semiautônoma e as ações
governamentais seriam o resultado da produção dos mesmos. “Government behavior reflects
the independent output of several organizations, partially coordinated by government
leaders”, que poderiam “substantially disturb, but not substantially control, the behavior of
35
O artigo de Pinheiro (2000) sobre a política externa dos diferentes governos do regime militar brasileiro é
bastante elucidativo ao utilizar o papel das unidades de decisão e de formulação para explicar a política externa.
42

these organizations”36 (ALLISON, 1971, p.67). Isso não impede, entretanto, que os líderes
governamentais também não possam estabelecer limites e influenciar as rotinas
organizacionais. “The decisions of government leaders trigger organizational routines (...) but
most of the behavior is determined by previously established procedures”37 (Idem, p.78-79).
Os grupos intragovernamentais agiriam, tal qual apontam as teorias microeconômicas,
a exemplo da teoria da firma, com o objetivo de maximizar suas utilidades, com a cooperação
ou o conflito entre eles não sendo colocados como o ponto focal. Por não haver arranjos
formalmente estabelecidos entre essas organizações, a responsabilidade pela tomada de
decisões não recai somente sobre um único ator, o que faz sentido, se considerarmos que se
leva em consideração que as partes do todo tratam de agendas específicas. O autor resume o
segundo paradigma da seguinte forma: “Model II’s explanatory power is achieved by
uncovering the organizational routines and repertoires that produced the outputs that
comprise the puzzling occurrence”38, no sentido de que o comportamento estatal é
determinado pelas organizações. (Idem, p.88).
O modelo de política burocrática (III), por sua vez, centra-se no argumento de que as
decisões e ações dos governos são resultantes da política intranacional. Política, aqui, envolve
a dinâmica entre essas partes da burocracia, suas disputas, barganhas, alianças, a fim de
atingirem seus objetivos. “What happens is not chosen as a solution to a problem but rather
results from compromise, conflict, and confusion of officials with diverse interests and
unequal influence”39 (ALLISON, 1971, p.162). Isso significa que, ao contrário do modelo II,
as rotinas organizacionais não terão, necessariamente, capacidade de moldar a tomada de
decisão, pois, além da posição do grupo dentro da burocracia, sua habilidade para fazer valer
seus interesses é levada em consideração.
Tomando por base a teoria dos jogos, tem-se que o arranjo hierárquico entre esses
atores burocráticos irá compor a estrutura do governo. Normalmente, as ações governamentais

36
O trecho correspondente na tradução é: “Comportamento governamental reflete a produção independente de
diversas organizações, parcialmente coordenadas por líderes governamentais”, que poderiam, “substancialmente
atrapalhar, mas não controlar, o comportamento dessas organizações”.
37
O trecho correspondente na tradução é: “As decisões de líderes governamentais ativam rotinas organizacionais
(...) mas a maior parte do comportamento é determinada por procedimentos previamente estabelecidos”.
38
O trecho correspondente na tradução é: “O poder explicativo do Modelo II é alcançado pela revelação das
rotinas e repertórios organizacionais que produziram os resultados que abrangem a difícil ocorrência”.
39
O trecho correspondente na tradução é: “O que acontece não é escolhido como uma solução para um
problema, mas resulta de compromisso, conflito e confusão de funcionários com interesses diversos e influências
desiguais”.
43

em arena externa são o resultado de decisões autônomas e independentes de indivíduos (como


o presidente da república) e de grupos da burocracia. Entretanto, ao contrário dessa visão
parcimoniosa, as decisões podem ser vistas como uma combinação das preferências e dos
interesses dos atores burocráticos mais poderosos, por exemplo, o ministério das relações
exteriores, o gabinete do presidente da república e as forças armadas, que alijariam os demais.
Além disso, as decisões podem ser consequência da capacidade de influência de grupos
minoritários e de indivíduos tenham sobre os demais, seja por meio de políticas de barganha,
seja pela formalização de alianças com outros membros da burocracia.
Isso seria uma ocorrência factível em um regime democrático, em que o presidente
precisa lograr-se legítimo aos olhos da burocracia e da sociedade para manter-se no poder.
Manobras políticas e estratégias de convencimento podem ser utilizadas para fazer valer um
posicionamento ou uma perspectiva quanto a determinado assunto, pois os atores burocráticos
têm capacidade de influência assimétrica e visões que nem sempre são convergentes. Por essa
razão, não são raros casos em que grupos minoritários da burocracia podem ter acesso aos
canais de formulação das decisões, o que complexifica a distribuição de poder decisório.
As contribuições de Allison não o eximiram de críticas. Argumenta-se que as suas três
classificações de realização de política externa, especialmente as de ator racional (I) e de
modelo organizacional (II), não são ferramentas cabíveis para se trabalhar com a possibilidade
de mudança na condução de política externa. Especificamente quanto ao modelo II, os
decisores estariam condicionados pelos processos organizacionais das rotinas em que estão
inseridos. Aponta-se também que as organizações agem de acordo com o aprendizado, ou
seja, por meio de práticas consolidadas e de padrões repetidos, mesmo em momentos de
situações novas (KRASNER, 1972). Critica-se, também, que o modelo não abarca as relações
entre Estado e sociedade e não examina corretamente as variáveis sistêmicas. Por fim, o poder
do presidente é minimizado frente aos demais atores da burocracia estatal, tendo o mesmo que
barganhar continuamente para fazer valer seus posicionamentos.
Robert Jervis, em seu trabalho sobre a importância da análise das percepções
individuais, parte de abordagem crítica parecida com a de Stephen Krasner. Ele afirma que o
comportamento humano não é racional, e, em vista disso, padrões organizacionais seriam
imprevisíveis e intrinsecamente falhos, o que poderia conformar políticas externas erráticas. A
ideia de que o comportamento internacional de um país seja explicado somente pelas disputas
intraburocráticas seria, portanto, de pouca monta (JERVIS, 1976).
44

A resposta aos críticos vem com a atualização da obra, em que Allison e Zelikow
(1999) argumentam que, ainda que as preferências dos indivíduos possam estar
invariavelmente engessadas pelos processos organizacionais, o terceiro modelo de política
externa – de política burocrática – tem maior maleabilidade à mudança, pois a política
externa, nesse caso, é uma resultante da barganha empreendida entre os diversos atores no
meio burocrático intraestatal40. Isso não levaria, decerto, a resultados idênticos no que diz
respeito à inserção internacional41. Nesse diapasão, o modelo de política burocrática teria
força explicativa para a compreensão da política externa de países desenvolvidos e em
desenvolvimento, como o Brasil42. Assim, as divisões e concordâncias na própria burocracia,
nos governos de FHC e de Luiz Inácio Lula da Silva, tanto no que diz respeito a dissensos
entre correntes de opinião e de ação no Itamaraty, quanto às relações dessas com as demais
agências estatais e ministérios, não podem ser olvidadas.
É válido lembrar que, conforme Carlsnaes (2001), a diferença básica entre o modelo II
e o modelo III é que o modelo de política burocrática parte de uma perspectiva de ontologia
centrada nos agentes individuais, ontologia essa contrária àquela do modelo de processo
organizacional, em que a análise está centrada numa perspectiva estrutural. No modelo II, a
estrutura burocrática engessa as preferências, sobrepondo-se a elas; no modelo III, a
explicação passa pelas relações políticas entre setores da burocracia e em sua capacidade de
afetar a política externa. Quando se trabalha com política burocrática, tem-se por base que as
preferências não são dadas, mas individuais e flexíveis. Uma parte da burocracia estatal pode
ter visões singulares quanto à adesão a regimes internacionais não comungadas por setores
mais afeitos a posicionamentos autônomos ou em prol de estratégias de cooperação

40
Karboo (1998) também é vista como complementação positiva ao modelo de política burocrática. A autora
trabalha com conceitos de poder, mais afeitos a líderes e a burocracias majoritárias, e influência – mais ligada a
grupos minoritários. Ela argumenta que há assimetria de poder e de influência entre os componentes da
burocracia e que isso tem impactos nas resultantes de política externa. A partir daí, procura tornar o modelo mais
adaptável a distintas realidades. Outros autores, como Drezner (2000), realizam diálogo entre interesses
materiais, ideias, identidade institucional e estrutura de poder, aproximando-se mais de abordagens
construtivistas.
41
A crítica dos reflexivistas, compreensivelmente, continua existente. Por não comungarem do escopo
racionalista de análise, afirmam que tais preferências seriam sempre recorrentes e dadas, o que empobreceria a
contribuição do modelo de política burocrática. Reconhecemos a pertinência dessas visões, mas essas não terão
seguimento neste trabalho.
42
Iremos problematizar, entretanto, à luz da realidade de política externa brasileira. Aderir enfaticamente a todos
os pressupostos iria fazer com que perdêssemos potencial explicativo e acuidade na análise da realidade
concreta. Portanto, a política burocrática – entre os ministérios que participam da tomada de decisões na
cooperação em segurança alimentar, no tocante à possibilidade de dissensos, de preferências distintas e de graus
de hierarquia entre os atores, sempre com relação ao MRE – será abordada, mas não estritamente de forma presa
ao modelo de Allison e de Zelikow.
45

internacional, por exemplo. Da mesma forma, a situação político-partidária de um país pode


fazer com que diferentes atores da burocracia estatal comunguem preferências semelhantes e
cooperem para a tomada de decisões compartilhada.
Juliet Karboo também contribui para a retomada de importância da perspectiva de
política burocrática. Com relação às críticas dos que advogam a necessidade de adição de
variáveis psicológicas para o entendimento da política externa, a autora afirma que, apesar de
sua contribuição, elas esvaziam o conteúdo propriamente político da análise. “While previous
work on bureaucratic politics may have been too political, current research seems to be too
apolitical”43 (KARBOO, 1998, p.4). Além disso, argumenta que a abordagem de política
burocrática pode ser combinada a outras para explicitar, de forma mais fiel à realidade, como
se dá o processo de configuração de política externa.
A autora traz mais subsídios para a arena decisória doméstica, pois acrescenta que,
apesar de o estudo de política externa ter se notabilizado pela análise dos grupos mais
poderosos no interior de um sistema político, minorias burocráticas - grupos menos poderosos
e subordinados a outros -, podem influenciar a política externa. Partindo da assunção de que
há disputas de poder intraburocráticas e de que existem relações de poder assimétricas, a
autora argumenta que grupos minoritários têm a opção de adotar estratégias baseadas em
custos e em benefícios, manipulação de procedimentos de decisão e de informação, inclusive
com a instrumentalização da opinião pública, para influenciar a definição da política. A
efetividade dessas manobras dependerá da posição da minoria no seio da burocracia e do
poder mobilizado por ela44.
Contrario senso, caso a divisão de poder entre as conformadoras da burocracia fosse
simétrica, como preferem alguns críticos, o poder de veto de qualquer proposta concernente à
política externa poderia ser utilizado por todos os departamentos burocráticos. Em uma
situação como essa, seria necessária unanimidade para a tomada de qualquer decisão,
argumento frágil se considerarmos o processo decisório no contexto hodierno e o crescente
interesse público pela política externa. Em virtude disso, disputas assimétricas parecem ser a
imagem mais próxima dos mecanismos de processamento decisório, tendo em vista que

43
O trecho correspondente na tradução é: “Enquanto trabalho anterior sobre política burocrática pode ter sido
muito político, a pesquisa corrente parece ser muito apolítica”.
44
Poder é definido pela autora como o controle de recursos e de posição hierárquica relativamente superior na
burocracia estatal. Influência é afetada pelo exercício do poder, mas também por outros fatores como relações
pessoais dos membros da burocracia, percepções, estratégias de boicote e de superação de freios impostos pela
estrutura hierárquica. Influência seria, portanto, um conceito mais fluido e maleável que poder.
46

numerosas decisões em política externa não contam com pleno apoio da burocracia
governamental e mesmo podem insuflar dissensos no interior do Estado.
Desse modo, pode-se ilustrar dois cenários limites: no primeiro, a assimetria de poder
seria tão grande entre os grupos majoritários (governo, presidência da república, ministérios
de relações exteriores, por exemplo) e os minoritários, que os rumos da política externa
seriam quase que exclusivamente levados a cabo pelos ditames governamentais. Nesse caso, a
capacidade de influência seria minimizada, assim como os arranjos institucionais e
extrainstitucionais que poderiam ser aventados pelos agentes em minoria. No segundo
extremo, as minorias burocráticas podem ser tão bem articuladas – dentro do aparato estatal,
com a sociedade civil e com atores transnacionais45 – que invariavelmente minariam o poder
instituído dos grupos majoritários e controlariam o processo decisório em política externa.
Assim, a ideia de que haveria um poder decisório em última instância, insulado das
pressões advindas da prerrogativa nacional, seria, portanto, profundamente abalada. Dessa
forma, uma agência governamental que busque seguir sua própria agenda internacional pode
ter impactos substantivos na continuidade ou não de uma dada política ou mesmo na ênfase
destinada à mesma. De mesmo modo, tal agência poderá buscar desenvolver relações
exteriores que, conectadas a sua rotina e a seus procedimentos organizacionais, podem estar
em desacordo com as linhas mestras de política externa de um país e mais ligadas aos
interesses específicos e individuais daquela agência, como garantir suas fontes de
financiamento, para citar um exemplo. Nesse caso, o poder Executivo, em seus grupos
majoritários, poderá atuar para fazer valer as diretrizes básicas da política externa do governo,
impedindo distorções que possam se mostrar deletérias.
Em contexto de crescente interdependência e de aumento das trocas transnacionais e
internacionais, a tendência é que essas interações relativas ao processo decisório sejam
intensificadas, com resultados que podem tender à convergência ou à divergência de posições,
o que certamente implica em impactos no processo de formulação e de implementação de
política externa. No entanto, focar a análise somente nos trâmites instrumentais da política
burocrática e não buscar analisar a formação das preferências dos atores impede visão mais

45
Quanto ao termo “relações transnacionais”, recorremos à definição de Risse-Kappen: “regular interactions
across national boundaries when at least one actor is a non-state agent or does not operate on behalf of a
national government or intergovernmental organization” (RISSE-KAPPEN, 1995, p.3). O trecho correspondente
na tradução é: “interações regulares através de fronteiras nacionais quando pelo menos um ator é um agente não
estatal, ou não opera em nome de um governo nacional ou organização intergovernamental”. Reconhecemos a
validade de abordagens que tratem de interações transnacionais ou subnacionais, assim como dos estudos
referentes à paradiplomacia. Ainda que possamos citar tais aspectos neste trabalho, eles não serão o nosso foco e
nem a base de nossos argumentos. Para maiores discussões sobre paradiplomacia e sua relação com o conceito
de “ação externa”, distinto daquele de política externa, ver Salomón (2012).
47

ampla e plural dos fatos. Nesse sentido, recorrer às abordagens liberais de análise de política
externa mostra-se estratégia que acrescenta profundidade à pesquisa.

1.2.2 As preferências não são dadas

A abordagem liberal de política externa, a exemplo da perspectiva de política


burocrática, também tem ontologia centrada nos agentes individuais e base epistemológica
racionalista, o que permite profícuas inter-relações entre os dois modelos. A contribuição do
liberalismo para a análise teórica de política externa é substantiva na medida em que imiscui
fatores de política doméstica como definidores dos comportamentos dos estados. Ideias,
instituições e disputas entre grupos dominantes e poderes políticos influem no
estabelecimento de preferências e no modo como cooperação e conflito serão conduzidos. A
corrente preocupa-se em analisar a maneira como as relações sociedade-estado podem ter
impacto fundamental no comportamento estatal em âmbito exterior46.
É importante demarcar que o conceito de preferência é distinto daqueles de estratégia,
tática ou política. As preferências são independentes da estratégia de outros atores e, por isso,
possuem antecedência ontológica às interações políticas entre os Estados, como ameaças
externas, incentivos, manipulação de informação ou outros expedientes que são comumente
utilizados para a consecução de algum objetivo. Já estratégias e táticas são opções políticas
definidas por meio de objetivos imediatos. “Liberal theory focuses on the consequences for
state behavior of shifts in fundamental preferences, not shifts in the strategic circumstances
under which states pursue them”47 (MORAVCSIK, 1997, p. 519)
De acordo com os pressupostos básicos da corrente liberal, tem-se que: (i) há primazia
de atores societários sobre as instituições políticas, o que garante uma visão bottom-up e
garante maior foco analítico em indivíduos e grupos sociais. Esses definem seus interesses de
46
Diferentemente do construtivismo, os autores liberais defendem que essas preferências formam-se por
interações de grupos domésticos e pelas inter-relações recíprocas oriundas de consequências dos cenários
externo e interno. A realidade doméstica teria impactos decisivos na exterior e vice-versa. Isso não levaria em
conta, entretanto, o caráter intersubjetivo de formulação dessas preferências. Uma elite poderia defender, por
exemplo, um complexo militar-industrial, mas isso não seria explicado por motivos caros aos construtivistas. Os
próprios autores liberais o reconhecem, ao afirmarem que o objetivo não é focar nesses processos, mas em como
as disputas internas levam a resultados distintos em arena internacional.
47
O trecho correspondente na tradução é: “A teoria liberal foca-se nas consequências para o comportamento
estatal de mudanças em preferências Fundamentals, não mudanças nas circunstâncias estratégias sob as quais os
estados as buscam”.
48

forma independente do jogo político, ao contrário, por exemplo, da perspectiva de política


burocrática. Além disso, (ii) as preferências e o correspondente posicionamento externo do
Estado serão resultado dos interesses de uma parcela da sociedade, mas, ao contrário de
visões realistas, essas preferências não serão dadas48. Por fim, modificando o nível de análise,
(iii) o comportamento estatal impõe preferências e é constrangido pelas preferências de outros
Estados no nível sistêmico.
O primeiro pressuposto é definido por Moravcsik (1997) como próprio de uma
variante do liberalismo caracterizada como “liberalismo ideacional”, que conecta o
comportamento estatal com concepções desejadas de ordem internacional. Em sua vertente
liberal ideacional, as ações estatais são meios de realizar preferências definidas por grupos
sociais. Esses dão suporte ao governo em troca da existência de instituições que estejam de
acordo com suas preferências particulares, baseadas em suas identidades. A cooperação é
mais provável nos casos em que, considerando a existência de contatos transnacionais, as
identidades sociais de um estado engendrarem preferências que estejam de acordo com as
preferências de outra figura estatal. Cita-se que diferentes percepções sobre legitimidade
política doméstica geram preferências de política externa com impactos definitivos em
conflito ou em cooperação.
O segundo é próprio de um “liberalismo comercial”, que elucida a existência de
interdependência econômica e comercial entre os Estados como resultante de fatores
domésticos. Daí a possibilidade de se argumentar, por exemplo, que acordos de preferências
comerciais são consequência de interesses subjacentes de grupos empresariais que, por sua
vez, são transpostos à política externa. Alguns argumentam tratar-se de um “sequestro” do
Estado pelas visões de mundo, preferências e interesses de porções da sociedade. Essa
vertente não ostenta que incentivos econômicos gerem, necessariamente, comércio e
cooperação, pois isso depende dos impactos distributivos sobre os grupos domésticos.
Haveria, em muitos casos, disjunção entre os benefícios gerados por interdependência e as
políticas nacionais. Um exemplo de como isso poderia ocorrer seria no caso de economias
fechadas em face à abertura econômica, em que custos podem superar benefícios.
A terceira variante, por sua vez, é definida como “liberalismo republicano”. Nela, o
papel das instituições representativas, elites, dinâmicas de liderança e relações entre
Executivo e Legislativo são privilegiadas. A variável chefe desse paradigma é a natureza da

48
As preferências que condicionam a tomada de decisões em política externa podem estar ligadas, por exemplo,
a um programa específico de governo. Citamos aqui a bandeira política do PT, quando da eleição de Lula da
Silva, voltada para o combate à fome e à pobreza.
49

organização política doméstica, que determinará as preferências de quais grupos dominarão a


política externa. A política tende a ser favorável em favor de coalizões no poder ou de
poderosos agrupamentos favorecidos por instituições estabelecidas, como partidos políticos,
agências ou ministérios. Em virtude disso, as preferências estatais refletirão os interesses
desses atores, com riscos e custos sendo repassados aos demais. Como a maioria dos
indivíduos é avessa ao risco, quanto mais representativos forem os grupos no poder, menores
as chances do Estado adotar atitudes como guerra ou conflito, visto que implicam em ônus
para a sociedade como um todo. Essa vertente também se aproxima das discussões
internacionais sobre paz democrática, o que foge ao escopo deste trabalho49.
A partir das três subdivisões do liberalismo, Andrew Moravcsik defende que a teoria
liberal explica fenômenos não abordados corretamente por outras teorias, como mudança
histórica, papel de política doméstica e conteúdo de política externa. Segundo ele, a força
fundamental do liberalismo é a premissa de que a relação entre os Estados e as sociedades
doméstica e transnacional na qual estão imersos molda comportamentos e preferências. Tal
premissa pode ser explicada em termos de três assunções básicas da teoria: (1) a natureza dos
atores sociais; (2) o Estado; e (3) o sistema internacional.
Quanto aos (1) atores sociais, são indivíduos e grupos privados racionais e avessos ao
risco, que organizam trocas e ação coletiva para promover interesses diferenciados em virtude
de cenário de escassez. Trata-se de uma visão teórica bottom-up, em que essas demandas
possuem prioridade analítica. A ideia de Estado unitário e monolítico, dos realistas estruturais,
por exemplo, é decisivamente contestada nesse momento. Moravcsik é cauteloso em apontar,
entretanto, que isso não levaria a um pensamento utopista de harmonia automática de
interesses oriundos da sociedade. Por haver escassez de recursos e preferências divergentes,
há reais possibilidades de competição na interação entre os atores domésticos.
Ao enfocar o (2) Estado, tem-se que os esses representam certas parcelas da sociedade
doméstica, uma representação sujeita à “captura”, construção e reconstrução. Logo, a política
governamental está sujeita às identidades, poderes e interesses de indivíduos ou grupos que
têm a capacidade de pressionar os central decision makers. Estados não maximizam de forma
automática concepções homogêneas de segurança ou de riqueza, como realistas e
institucionalistas tendem a assumir. Ao contrário, eles procuram interpretações e combinações
particulares de segurança, de bem estar e de soberania, preferidas por grupos domésticos

49
Tampouco iremos dar destaque, tanto no que diz respeito ao âmbito teórico, quanto no que diz respeito
especificamente ao caso brasileiro, para a influência legislativa na composição de política externa. Nosso foco é
o Executivo. Martin (2000) aborda com propriedade o tema.
50

poderosos encastelados em instituições representativas e em práticas dominantes. O apoio


nacional para um objetivo, mesmo que esse seja fundamental para o Estado, depende do
contexto social em que esse intuito de política externa está imbuído.
Por causa disso, pressões sociais transmitidas por instituições representativas e
práticas arraigadas por grupos ou indivíduos alteram as preferências estatais. A teoria liberal
observa quais as consequências para o comportamento estatal de mudanças nessas
preferências. Essas também poderiam ser modificadas pelo (3) sistema internacional, por
meio da interdependência. Isso ocorre, pois os Estados buscam realizar e definir suas
preferências distintas em cenário de constrangimentos variáveis impostos pelas preferências
de outros Estados. Peter Gourevicht (1978) denomina “segunda imagem reversa” os impactos
que as pressões internacionais podem auferir na política doméstica e as consequências que
essa terá, por sua vez, nas relações internacionais. Entendemos que essas interconexões
complexificam o processo de formação das preferências.
Vale lembrar que, nesse último âmbito, ao contrário dos realistas defensivos
(preferências normalmente dissonantes)50 e dos institucionalistas (preferências díspares
seriam um problema de ação coletiva), os liberais entendem variação na configuração dessas
preferências como regra. Aqui, não seria o sistema o causador dos constrangimentos na ação
dos atores internacionais, mas as escolhas preferenciais dos demais atores.
Gourevicht avança no debate com realistas e institucionalistas, a fim de defender que,
para os liberais, as preferências estatais importam, o que vai além da configuração de
capabilities ou de informações e de instituições, conforme apregoam, respectivamente,
realismo e institucionalismo neoliberal51. A força normativa do liberalismo estaria na
comunhão dessas três vertentes que, tomadas de forma unificada, poderiam explicar e/ou
corrigir falhas das demais. A teoria liberal teria, de tal modo, um argumento plausível para
explicar mudança no sistema internacional, ao realizar conexões entre transformações e

50
Carlsnaes define como “realistas defensivos” aqueles que, ao contrário os realistas clássicos de matriz
hobbesiana, defendem que o comportamento Estatal pode ser de mera manutenção do status quo e do relativo
equilíbrio. “(...) states pursuing security in a rational manner can on the whole afford to be relatively relaxed
except in rare stances; and that security can generally be achieved by balancing against threats in a timely way,
a policy that will effectively hinder most forms of actual conflict” (CARLSNAES, 2001, p.336). O trecho
correspondente na tradução é: “Estados buscando segurança de uma maneira racional podem, no conjunto, serem
relativamente relaxados exceto em situações raras; e que a segurança pode geralmente ser alcançada pelo
equilíbrio contra ameaças de uma maneira oportuna, uma política que irá efetivamente impedir a maioria das
formas de conflito real”.
51
Vale salientar que, para ele, as teorias de regimes internacionais (institucionalistas neoliberais) tomam
preferências estatais como fixas ou exógenas, o que geraria resultados causais subótimos. Teorias de regime,
portanto, seriam melhor classificadas como um realismo estrutural modificado que como coirmãs do liberalismo.
51

interações sociais, econômicas e políticas com o comportamento estatal. Isso refletiria


diretamente na análise de política externa e serviria, inclusive, para a explicação de regimes,
que, por limitação teórica, os institucionalistas neoliberais não conseguiriam explicar.
Regimes, para os liberais, somente seriam duradouros se aceitos em âmbito doméstico dos
estados, em ressonância à intrincada relação entre as esferas transnacional e interna52.
O apoio nacional para um objetivo, mesmo que esse seja fundamental para o Estado,
depende do contexto em que esse intuito de política externa está imbuído. Por causa disso,
pressões sociais transmitidas por instituições representativas e práticas arraigadas por grupos
ou indivíduos alteram as preferências estatais.

To motivate conflict, cooperation, or any other costly political foreign policy action,
states must possess sufficiently intense state preferences. Without such social
concerns that transcend borders, states would have no rational incentive to engage in
world politics at all, but would simply devote their resources to an autarkic and
isolated existence (MORAVCSIK, 2008, 234)53.

A tomada de decisões partiria de um processo em duas etapas: inicialmente, as


preferências estatais são definidas por meio das relações entre instâncias decisórias, grupos
sociais e burocráticos. Após esse primeiro momento, os Estados barganham e negociam em
prol de determinados acordos internacionais que reflitam os interesses dos constituintes de seu
processo decisório. A análise das interações estatais – sejam essas interações plausíveis de
serem caracterizadas como de matriz “realista” ou “institucionalista neoliberal”, por exemplo
– devem ocorrer somente após a identificação daquilo que conforma as preferências. Sem essa
observação cuidadosa, ocorreriam, somente, resultados que respondem a fatores
unidirecionais, o que afetaria o intuito de realização de investigação mais aprofundada.
Assim, regimes com ideologias, sistemas políticos e econômicos e organizações
sociais distintas poderão ter atitudes diferentes aos desafios impostos pelas interações
internacionais. Além disso, um mesmo Estado pode comportar-se de forma diversa, seja por
causa de uma mudança de composição de forças de governo ou de partido político no poder,

52
Pois isso garantiria legitimidade às normas e regras. Da mesma forma, políticas públicas desenvolvidas em
âmbito doméstico de um Estado e referenciadas por determinada instituição de referência de um regime
internacional – como no caso da FAO com referência à cooperação em segurança alimentar, por exemplo –
tendem a ter sua legitimidade reforçada.
53
O trecho correspondente na tradução é: “Para motivar conflito, cooperação ou qualquer outra ação custosa de
política externa, os Estados devem possuir preferências estatais suficientemente intensas. Sem essas
preocupações sociais que transcendem fronteiras, os Estados não teriam nenhum incentivo racional para se
engajarem na política mundial, mas simplesmente devotariam seus recursos para uma existência autárquica e
isolada”.
52

seja, em um mesmo regime governamental, por alterações nas preferências dos atores
domésticos. Isso explica porque, mesmo em casos em que há burocracias profissionais e um
legado diplomático estabelecido, os Estados possam agir de modo adaptável às circunstâncias
internas e externas e não de acordo com um receituário. Defender que a política externa
brasileira é marcada fundamentalmente pela continuidade, ainda que essa visão tenha
considerável aplicabilidade prática, parece ideia que vem perdendo espaço54.
O argumento é balizado pela premissa de que o conceito de Estado não é sinônimo de
governo. Conforme Thomas Risse-Kappen, “the state (...) should be distinguished from
governments and governmental actors taking decisions, negotiating treaties, and interacting
with society and other governments”55 (RISSE-KAPPEN, 1995, p.19). O comportamento
estatal, portanto, é definido pelas forças que agem em seu interior, grupos esses que tendem a
ser mais variados quando do grau de consolidação democrática. Atores intraestatais podem
ter, dessa forma, poder de agência56.

1.2.3 Do que é feita a “caixa preta”: por uma síntese analítica

54
A ascensão da corrente de ação e de pensamento dos autonomistas, no interior da burocracia do MRE,
conforme abordaremos no capítulo seguinte, foi determinante para a consideração da cooperação sul-sul como
um dos elementos estratégicos da política externa.
55
O trecho correspondente na tradução é: “O Estado (...) deve ser distinguido de governos e de atores
governamentais tomando decisões, negociando tratados e interagindo com a sociedade e outros governos”.
56
No caso brasileiro, identificamos, por exemplo, o Itamaraty como sendo unidade de análise básica da política
externa com poder de agência. Com relação à ideia de “unidade de análise”, Wight (2006) a define como: “the
unit-of-analysis refers to the object of inquiry” (p. 103). O trecho correspondente na tradução é: “A unidade de
análise refere-se ao objeto de investigação”. Hermann (2001) também traz leitura sobre a questão. Já sobre o
conceito de agência, Buzan; Little e Jones (1993) o definem como a capacidade ou o estado de agir ou exercer
poder. Se pensarmos que, no caso do Brasil, o MRE continua sendo o locus formulador da política externa,
entendemos que seu poder de agência continua sendo consideravelmente maior que o dos demais atores atuantes
em política doméstica. A visão de Bashkar (1978) é semelhante, ao afirmar que agentes são os atores que
conseguem mobilizar maiores recursos de poder para impor suas preferências e decisões. “By an agent I mean
simply anything which is capable of bringing about a change in something” (p. 109). O trecho correspondente na
tradução é: “Por agente eu entendo simplesmente qualquer coisa que seja capaz de acarretar uma mudança em
alguma coisa”. Wight (2006) argumenta que, para além dessa visão, que a visão de agência é multidimensional,
pois: “the activities of social agents are necessarily situated and constrained, although the determinants of
activity are multiple and contradictory and cannot be subsumed under the logic of a single monolithic system. At
the same time as social structures are reproduced or transformed by human agency” (p. 210). O trecho
correspondente na tradução é: “As atividades dos agentes sociais são necessariamente situadas e constrangidas,
apesar de seus determinantes serem múltiplos e contraditórios e não poderem ser subsumidos sob a lógica de um
único sistema monolítico. Ao mesmo tempo em que as estruturas sociais são reproduzidas ou transformadas pela
agência humana”. Wight afirma que o poder de agência também tem relação com a posição dos agentes no
contexto social. O próximo capítulo discutirá a possibilidade de outros atores atuarem e influenciarem a
configuração da política externa.
53

Se tomarmos por base o descrito pelos teóricos das abordagens de política burocrática
e pelos analistas de matriz liberal de política externa, podemos chegar a possíveis conclusões.
Inicialmente, temos que considerar as diferenças entre os dois matizes. Para além da escolha
de quais atores serão enfocados no âmbito individual, está a consideração de quem
instrumentaliza quem. No processo decisório de política burocrática, ainda que o presidente
da república certamente possa ter ascendência sobre as demais parcelas da burocracia e que,
dentro dessa burocracia alguns grupos se sobreponham a outros, os interesses societários são,
ao menos na teoria, acessórios às preferências burocráticas. Nesse sentido, as escolhas de um
grupo imerso em um ministério de relações exteriores, por exemplo, seriam menos definidas
pela influência da sociedade do que pela necessidade de fazer valer sua visão.
No que diz respeito ao processo advindo do âmbito liberal, a passagem das
preferências de atores domésticos para a política externa pode ocorrer ao largo da burocracia
(pela mídia, por manifestações populares, pelo sufrágio, entre outros canais), afetando
diretamente, a título de exemplo, o presidente da república, o que poderia, inclusive,
constranger a ação da burocracia e fazer valer o interesse social em detrimento das opções dos
burocratas. Nesses casos, o presidente pode optar por “trocar” apoios de base governamental
em nome de suporte de grupos sociais como as elites, classes empresariais ou sindicais.
Entretanto, por sua proximidade em terreno de ontologia (individualista) e de
epistemologia (racionalista/objetivista), existem possibilidades de convergência entre as duas
perspectivas para que o entendimento da política externa de um Estado torne-se mais próximo
da realidade57. Considerar somente aspectos teóricos em lugar da aplicabilidade prática
também traria sérios prejuízos à observação dos fatos. Em primeiro lugar, ambas as visões
trabalham com paradigmas bottom-up do sistema político doméstico. Enquanto que o modelo
de política burocrática afirma que os interesses individuais intraburocráticos conformam a
política externa, de baixo para cima, os autores liberais, da mesma forma, defendem que as
preferências societais determinam a condução dos negócios estrangeiros de um país. Isso
garante complementariedade, em variados graus, às duas visões.
Um segundo ponto seria que as burocracias intraestatais podem, certamente, em meio
a suas disputas burocráticas (em que, de fato, existe assimetria de poder), receberem as

57
Isso não significa que abordagens relativas a ideias e mesmo ao reflexivismo não possam ser válidas. Há
autores que argumentam que mesmo quando os atores agem de forma racional, eles estão influenciados por
ideias (Goldstein; Keohane, 1993). Contudo, isso não é pacífico na literatura, com alguns afirmando que, ainda
que possam pensar em ideias, autores racionalistas continuariam trabalhando com fatores de “naturalização” de
comportamentos (Koslowski; Kratochwil, 1995).
54

contribuições, críticas e/ou pressões de atores domésticos não burocráticos e isso pode ser
decisivo para a prevalência de suas posições dentro do processo de formulação de política
externa. Nesse diapasão, entende-se que as agendas das burocracias podem ou não serem
coadunadas com as preferências de atores individuais e de grupos sociais. Isso explicaria
processos de internacionalização de empresas, fortalecimento de políticas de cooperação e a
busca por acordos comerciais.
O conceito de Thomas Risse-Kappen de estruturas domésticas, ainda que com foco no
impacto que as relações transnacionais podem ter no campo doméstico, parece ser útil para
elucidar a questão. Segundo ele, as estruturas domésticas são divididas em estatais e
societárias. As primeiras tratam-se de arranjos normativos e organizacionais, a dizer,
instituições políticas oficiais, que formam o Estado; enquanto que as últimas são as interações
que conformam a estrutura da sociedade. Entre os dois polos, estabelecem-se redes e
conexões que articulam essas duas estruturas domésticas (RISSE-KAPPEN, 1995). A força e
a frequência dessas interações, bem como a capacidade de influência que um grupo terá sobre
o outro dependerá da análise do caso concreto. Pode-se afirmar, entretanto, que essa dupla
dinâmica poderá ser afetada pela formação de coalizões para transformar o rumo das políticas.
Numa situação hipotética em que a agenda da burocracia seja convergente com os
interesses de grupos sociais, uma burocracia – seja ela um grupo minoritário ou não - pode
suplantar as demais no processo de condução de política burocrática e na definição do
comportamento estatal, por meio do argumento de que tem apoios da sociedade civil e que,
por isso, em caso de negativa de sua proposta, a legitimidade dos demais grupos burocráticos
será certamente afetada frente à opinião pública. Esse mecanismo não nega a existência dos
conflitos de poder próprios à abordagem de política burocrática e tampouco ignora as
demandas sociais do campo liberal. Dessa forma, o papel de atores nacionais – estatais e da
sociedade – tem impacto substantivo na definição das preferências de política externa.
Ao partirmos do axioma de que as preferências não são dadas, poderemos, ao longo
desta dissertação, entender e apontar que o processo de formulação de política externa
brasileira está mais “aberto” a agentes da sociedade e a outros grupos componentes da
burocracia estatal que não constituem o núcleo decisório (presidência da república e MRE).
Por essa razão, é necessário que sejam apontadas e entendidas o processo de formação de
preferências e como essas preferências são confrontadas com outras. A análise das interações
pode permanecer no campo eminentemente teórico, ou, como pretendemos, ser aplicável ao
55

caso concreto, a dizer, no escrutínio da cooperação brasileira para a África no campo da


segurança alimentar.
O que se observa é que, com o uso das ferramentas proporcionadas pelas perspectivas
de política burocrática e de formação de preferências, ambas resultantes dos estudos de
análise de política externa, poderemos compreender de que forma uma decisão ou conjunto de
decisões – ou mesmo uma diretriz de política externa – pode chegar ao topo da agenda e ser
manifestada no comportamento estatal. São processos dinâmicos e não necessariamente
etapistas, de forma que não existe, a nosso ver, uma antecedência do interesse social ao
burocrático ou vice-versa. Não se trataria, portanto, de uma evolução procedimental
envolvendo política burocrática e formação de preferências sob um escopo liberal, com uma
ocorrendo depois da outra. A nossa perspectiva é que esses processos ocorrem
simultaneamente e que um pode influenciar o outro. Quanto mais aberto for o ministério das
relações exteriores de um país, mais o intercâmbio com a sociedade ocorrerá e mais atores
domésticos terão capacidade de influir na formação das preferências estatais e na tomada de
decisões. Isso torna o estudo da política externa um esforço multicausal.
Este trabalho mostrará que, ainda que a tomada de decisões no que diz respeito à
política externa brasileira possa ser polarizada pelas disputas ou ações de coordenação
intraburocráticas (no interior do MRE) e interburocráticas (entre o Itamaraty e outros atores
governamentais), é observada crescente participação e interesse de atores da sociedade civil
pelas questões externas. Isso se deve, em grande parte, aos seus impactos distributivos
internos em decorrência da maior participação do país em regimes e acordos internacionais,
pelas oportunidades aventadas pela internacionalização das atividades de empresas brasileiras
e, também, pelo próprio interesse do MRE em diversificar sua matriz de atuação por meio da
expertise de atores outros, que tenham conhecimentos específicos que possam ser úteis ao
Estado em suas relações externas. Esses argumentos ganham propriedade quando se estuda
cooperação internacional.
Essas interferências mútuas trazem novos desafios ao entendimento da política externa
e à análise do comportamento dos Estados. Por essa razão, orientam-se debates referentes à
definição de interesse nacional e à participação democrática; da relação e posição da política
externa frente às demais políticas públicas; do potencial de mudança da política externa; e de
como tais aportes operam em cenário de interdependência, de liberalização econômica e de
democratização. Esses questionamentos serão tratados na seção seguinte.
56

1.3 Para além da “torre de marfim”: o conluio de política externa com políticas
públicas

Historicamente, a maioria das análises sobre política externa tendeu a classificá-la em


domínio distinto ao das demais políticas públicas58, consagrando-a com certa singularidade e
excepcionalidade, diferindo seus fundamentos daqueles comuns às políticas públicas59
domésticas. Tratam-se de concepções que preveem caráter de primazia à política externa, pois
essa estaria relacionada a elementos basilares do interesse nacional. A concepção do interesse
nacional, eivada de racionalidade inata, não poderia ser “contaminada” pelas pressões da
sociedade, pois os anseios populares teriam uma visão muito mais estreita, de curto prazo,
identificada com o atendimento às necessidades particulares e não aos desígnios necessários
ao desenvolvimento do país.
Reações a esse pensamento datam do contexto da I Guerra Mundial, quando da
veiculação de perspectivas de matriz wilsoniana, contrárias à diplomacia secreta e à falta de
coordenação multilateral entre os Estados. Esse questionamento, de raiz liberal e democrática,
trouxe relevantes consequências para o estudo de política externa; entretanto, acabaria
minimizado pela predominância da visão realista, comumente associada à ideia de que a
política externa deve estar insulada das demais políticas públicas e resistente às mudanças
governamentais e às demandas sociais, como que em uma “torre de marfim”60.
Por conta disso, a política externa deveria ser objeto de estudo de especialistas,
burocratas com a capacidade de identificar as demandas nacionais e solucioná-las de acordo
com a mobilização das capacidades materiais dos Estados. Com visão não utilitarista e de
longo prazo, os tomadores de decisões poderiam, a partir das interações do Estado com o

58
Temos a definição de política pública como: “(...) o conjunto das atividades do governo que, agindo direta ou
indiretamente (por exemplo, por delegação ou pela ação de agentes não governamentais), acabam por influenciar
o cotidiano dos cidadãos. Tais ações do governo se inspiram em um modelo institucional e em uma tradição
histórica de Estado” (MILANI, 2012, p.36). Pode-se, também, entender política pública como a soma das
atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos
(PETERS, 1986).
59
Para um histórico da evolução do estudo das políticas públicas, ler Paixão e Castro Santos (1988).
60
Trata-se de expressão metafórica e literária para indicar distanciamento e indiferença, numa recusa de diálogo
com o mundo exterior. O termo parece, quando transladado para o campo das relações internacionais e de análise
de política externa, adequado se levarmos em consideração situações em que o processo de tomada de decisões é
completamente centralizado e insulado das circunstâncias de política doméstica.
57

exterior, proporcionar os recursos adequados para assegurar posição favorável relativamente


aos demais no sistema internacional. No entanto, entendemos que essa definição estanque e
dogmática de interesse nacional, identificada com o modelo de Estado como agente e ator
unitário, deve ser questionada. Vale lembrar que defender a existência de pluralismo de atores
na definição da política externa não significa dizer que os tradicionais lócus de formulação de
política externa – a dizer, os ministérios de relações exteriores e poder Executivo – tenham
perdido seu papel fundamental no exercício de elaboração dessa política.
O objetivo desta seção é, a partir do debate entre interesse nacional, políticas públicas
e política externa, desmistificar a ideia de que a política externa reveste-se de caráter
absolutamente distinto das políticas públicas. A discussão parece apropriada, após ser
realizado debate analítico sobre modelos de análise de política externa aplicáveis ao estudo do
comportamento estatal e aos processos de formação de preferências. Compreendemos que não
existiria um insulamento burocrático tal que as pressões sociais e as peculiaridades de cada
governo não poderiam influenciar o comportamento estatal. Globalização, liberalização
política e abertura econômica, além de outros fatores, tornam imperativo questionar a patente
divisão, que ignora a existência de custos distributivos, a formação das preferências e a
capacidade de influência dos atores domésticos no processo de formação da política externa.

1.3.1 Política externa vs. políticas públicas: insulamento burocrático e interesse nacional

O conceito de interesse nacional, de acordo com a corrente realista, parte da premissa


de que o comportamento estatal estaria determinado pela necessidade de maximizar poder em
um contexto anárquico e balizado por interações de autoajuda. O papel do Estado seria o de
manter a paz interna e a segurança de seus cidadãos.

In a world where a number of sovereign nations compete with and oppose each other
for power, the foreign policies of all nations must necessarily refer to their survival
as their minimum requirements. Thus all nations do what they cannot help but do:
protect their physical, political and cultural identity against encroachments by other
nations (MORGENTHAU, 1952, p.288)61.

61
O trecho correspondente na tradução é: “Em um mundo em que um número de nações soberanas compete
entre si e se opõe por poder, as políticas externas de todas as nações devem necessariamente se referir a sua
sobrevivência como requerimento mínimo. Por isso, todas as nações fazem o que podem para: proteger sua
identidade física, política e cultural contra violações de outras nações”.
58

Tais preceitos levariam a comportamentos e a motivações semelhantes por parte dos


Estados, no sentido de que, ao efetuarem ações de forma racional e uniforme, agiriam de
forma análoga em âmbito internacional. Em virtude disso, aspectos internos não teriam
relevância considerável e o conteúdo das decisões estatais seria apartado das questões de
natureza política. O Estado realista seria aquele marcado por indelével capacidade de agir de
forma autônoma às forças domésticas e de forma coerente com outras unidades análogas a ele
no sistema internacional. Por meio desse axioma, estabelece-se um modelo de decisor
unitário, em que a diplomacia torna-se tipo ideal nas relações interestatais. Dessa maneira:
“interesse nacional e interesse do Estado são sinônimos e o diplomata representa esse
interesse no plano externo, buscando maximizá-lo vis-à-vis os interesses dos demais Estados”
(LIMA, 2000, p.270).

The states that are the units of international-political systems are not formally
differentiated by the functions they perform. Anarchy entails relations of
coordination among a system’s units, and that implies their sameness. (…) the
functions of states are similar, and distinctions among them arise principally from
their varied capabilities. National politics consist of differentiated units performing
specified functions. International politics consists of like units duplicating one
another’s activities (WALTZ, 1979, p.93, 97)62.

O que se observa das considerações de Kenneth Waltz é que, segundo o pensamento


neorrealista, os Estados teriam, fundamentalmente, variações em suas capacidades materiais.
Em âmbito de política doméstica, esses Estados exerceriam políticas que, em virtude de suas
diferenciações, podem ser específicas e diferenciadas. Na arena internacional, ao contrário, as
atividades estatais seriam as mesmas. A dialética expressa na separação interno/externo
corrobora a avaliação de que a política externa teria uma diferenciação clara em relação às
demais políticas públicas desenvolvidas endogenamente.
Nessa representação, verifica-se supremacia decisória do Executivo, em que o decisor
teria autonomia para identificar e para implementar os ditos interesses nacionais,
independentemente da manifestação de vontade de atores domésticos em geral e,
especificamente, dos distintos nichos da burocracia. A formação de preferências seria dada,
verticalizada e hierarquizada, com o Estado tendo a capacidade de sobrepujar possíveis

62
O trecho correspondente na tradução é: “Os Estados que são unidades de sistemas políticos-internacionais não
são formalmente diferenciados pelas funções que executam. A anarquia ocasiona relações de coordenação entre
as unidades do sistema e isso implica em sua semelhança. (...) as funções dos Estados são similares, e distinções
entre eles surgem principalmente por suas capacidades variadas. Políticas nacionais consistem em unidades
diferenciadas realizando funções específicas. A política internacional consiste em unidades semelhantes
duplicando as atividades umas da outras”.
59

reações contrárias. Não haveria, portanto, espaço para a aplicação dos postulados liberais ou
variáveis condizentes aos modelos esquemáticos de política burocrática, tendo em vista que,
de acordo com a perspectiva ontológica do realismo, as fraturas intraestatais são
negligenciadas e, quando impossíveis de serem ignoradas, são neutralizadas pela coordenação
racional do decisor63.
Não haveria, portanto uma harmonia de interesses de toda a sociedade. O interesse
nacional, nesse caso, não seria a comunhão dos objetivos de distintos grupos domésticos, pois
a influência societária é nula e mesmo a capacidade das burocracias de imporem suas
demandas torna-se muito minimizada. “A doutrina da harmonia de interesses (...) tornou-se
(...) a ideologia de um grupo dominante, interessado em manter seu predomínio por
intermédio da tentativa de identificar seus interesses como os da comunidade como um todo”
(CARR, 1981, p.61).
Trata-se de posição que enxerga a política externa como transcendente às divisões
internas. Nesse caso, a política externa beneficiaria a toda a nação somente se estivesse acima
de interesses domésticos fragmentados, mas atrelada a desígnios ditos superiores. “Este
discurso asume que la política exterior no representa a una fracción de clase o una fracción
del poder político, sino que representa los intereses permanentes que van más allá de la
coyuntura política y las divisiones domésticas”64 (MERKE, 2008, p.44).
Mesmo que houvesse divisões internas, seja interburocráticas – a dizer, entre as
agências governamentais, entre os poderes instituídos, entre correntes de opinião dentro de
um ministério de relações exteriores ou da presidência da república – ou entre os distintos
atores da sociedade civil, elas não deveriam “aceder” à política externa. Desse modo, autores
que apregoam a excepcionalidade da política externa defendem que essas preferências devem
permanecer isoladas do processo de formulação e de implementação da política externa. O
processo decisório, portanto, estaria insulado das pressões que porventura pudessem surgir de
baixo para cima, pressões essas tidas como deletérias.
Isso garantiria caráter de continuidade à política externa que, por sua vez, seria
preservada de alterações na vida política e social do Estado. Uma mudança de governo não

63
Lima (2000), afirma que a representação do Estado como ator coeso e autônomo é consequência do modelo
germânico/prussiano de formação dos Estados nacionais. Outros autores caracterizam esse modelo como de
“modernização conservadora” ou “pelo alto”, de modo que o Estado, em sua razão suprema, poderia submeter as
vontades alheias em uma estrutura vertical de poder institucional.
64
O trecho correspondente na tradução é: “Este discurso assume que a política externa não representa uma
fração de classe ou uma fração do poder político, mas representa os interesses permanentes que vão além da
conjuntura política e das divisões domésticas”.
60

teria o pendão de modificar fundamentalmente os ditames de política externa, visto que essa,
por perseguir a consecução de interesses da coletividade, teria lastro de permanência. Da
mesma forma, a ascensão de grupos de oposição ao poder instituído não iria transformar
essencialmente a condução dos negócios externos, pois os desafios internacionais são mais
prementes que as disputas domésticas. Os conflitos entre os grupos no interior do Estado
seriam temporários, enquanto que as relações externas envolveriam objetivos permanentes,
como a garantia da segurança ou da paz. Alguns autores que trabalham com essa perspectiva
indicam que não haveria diferenças na política externa desenvolvida por governos diferentes,
pois as preferências dos atores em cargos diretivos seriam as mesmas, como garantia de
integridade das fronteiras e maximização do poder relativamente a outros Estados65.
Ao considerar a existência de uma clara separação entre política externa e políticas
públicas, os postulados realistas incorrem na distinção entre o que seria high politics e low
politics, com a primeira sendo cabível à diplomacia e à política externa, e a segunda articulada
às perspectivas domésticas. Essa convenção implica em empobrecimento da análise do
processo de tomada de decisões e gera dicotomia que, em tempos do pós Guerra Fria, torna-se
inapropriada, se levarmos em consideração a crescente interconexão entre diversas agendas
das relações internacionais. Além disso, promove uma cisão com os princípios de controle
institucional das democracias. Afirmar a separação entre baixa e alta política corrobora a
separação entre doméstico e internacional que acreditamos ser anacrônica para o estudo de
política externa no período hodierno.
Postulados caros aos realistas, como o de assegurar a segurança e a sobrevivência do
Estado, estão intrinsecamente articulados a motivações tidas até então como de baixa política.
Aspectos econômicos, sociais e culturais, entre outros, estão relacionados às preocupações
básicas do estadista, fenômeno que fica mais visível em tempos de relações globalizadas.
Trocas comerciais e financeiras em profundo desequilíbrio podem causar crises econômicas
com impactos substantivos nos fluxos migratórios, o que, por sua vez, pode acarretam riscos à
estabilidade política e territorial de um Estado. Da mesma forma, a ocorrência de

65
Essa visão é bastante comum, especialmente, em trabalhos que discutem a política externa brasileira do
Império (1822-1889) ou na literatura oficial do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Busca-se, na defesa
de uma continuidade da política externa, eivá-la de caráter de profissionalismo e de visão prospectiva, de modo
que mesmo que diferentes gabinetes assumissem o poder, a condução externa do país seria a mesma. Mesmo na
literatura de política externa sobre o regime militar brasileiro (1964-1985) essa perspectiva está presente. Cervo
e Bueno (2002, p.368), por exemplo, denominam a presidência de Castelo Branco (1964-1967) como de “passo
fora da cadência”, indicando que o comportamento estatal entre a Política Externa Independente e o
“universalismo” da presidência de João Baptista Figueiredo foi fundamentalmente o mesmo. Nosso
entendimento é que, ainda que traços gerais de política externa sejam definitivamente continuados, as rupturas
também são visíveis em diversos momentos da história diplomática brasileira.
61

desabastecimento severo ou de alta no preço de alimentos pode repercutir em conflitos


regionais, o que vem ocorrendo com frequência. Crescentes padrões de interações
mutuamente custosos de serem rompidos entre os Estados, como acordos comerciais e
cooperativos, dirimem a fronteira artificial entre o que seria “essencial” para os interesses
nacionais (KEOHANE; NYE, 2000).
A visão realista considera a opinião pública e os conflitos comuns ao universo da
política como nocivos à formulação dos interesses nacionais, no sentido de que eventuais
influências ou constrangimentos societários poderiam acarretar em perda de objetividade e de
racionalidade na condução da política externa. Suscetível a imediatismos e a particularismos,
a opinião pública não teria condições de vislumbrar interesses de longo prazo. Ter-se-ia uma
patente “irracionalidade da política democrática”, com a tomada de decisões confinada ao
Estado (LIMA, 2000, p.273). Sua burocracia, alheia a conflitos que se poderiam mostrar
disruptivos para a maximização dos interesses nacionais, seria arregimentada para além das
forças sociais, isolada como que em uma “torre de marfim”. Por causa disso, a existência de
conflitos inter e intraburocráticos tornar-se-ia minimizada ou eliminada pela coordenação de
um decisor central.
Essa realidade é comumente associada, na literatura, a Estados com regimes de
governo autoritários, com centralização do processo de tomada de decisões na burocracia
estatal e/ou nos ditames do líder. Em muitos desses casos, utiliza-se uma retórica nacionalista
a fim de neutralizar pressões contrárias e de justificar toda e qualquer política produzida pelo
Estado como de interesse nacional. Nesse sentido, o interesse nacional, como o próprio
adjetivo confere, é identificado com necessidades de toda a nação, sem levar em consideração
anseios de grupos sociais ou aspirações políticas específicos. Com isso, o processo de
formulação e de implementação de políticas não seria controlado ou efetivamente
influenciado por uma miríade de demandas emanadas da sociedade civil. “A exclusão
possibilitaria a emergência de objetivos e valores coletivos como princípio de coerência das
ações públicas ─ o desenvolvimento de um Estado-Nação moderno, por exemplo ─ acima de
interesses privados egoístas” (PAIXÃO; CASTRO SANTOS, 1988, p.2-3).
Mesmo em casos de fragmentação da estrutura burocrática de um Estado, o que
tenderia a induzir a conflito, barganhas e cooperação entre as diferentes agências estatais, o
discurso do interesse nacional seria unificador. Possíveis ações desviantes de facções com
interesses específicos seriam neutralizadas por um grupo ou indivíduo decisor central, com a
capacidade de “filtrar” o acesso às instâncias decisórias. Essa organização, comum a Estados
62

burocrático-autoritários, mas também passível de observação em democracias – notadamente


em tempos de conflito – esboroa as articulações sociais domésticas e personaliza o Estado.
“É suficiente lembrar que, se por um lado o autoritarismo é excludente e, portanto,
particularista, por outro ele é burocrático ─ concentra e centraliza o poder, condicionando o
seu exercício às normas impessoais da racionalidade instrumental” (PAIXÃO; CASTRO
SANTOS, 1988, p.2). A retórica autoritária formaliza-se, portanto, à imposição do caráter
nacionalista à formulação e à implementação das políticas, o que contribui para a sua
despolitização e consequente insulamento dos atores que as edificam.
Entretanto, essa perspectiva, própria aos alicerces teóricos do realismo, parece
anacrônica desde, pelo menos, a década de 1980. As críticas feitas pelos modelos de política
burocrática, de jogos de dois níveis, entre outros, postularam a insuficiência de se argumentar
que a política externa é uma arena à parte e diferenciada das demais políticas públicas.
Observa-se que “(…) political leaders are playing in the domestic and international arenas
simultaneously” (MILNER, 1997, p.4)66. Assim, ao contrário das teorias estadocêntricas, o
conflito e a coordenação domésticos também são marca da política externa. Isso vai de
encontro à assunção de que o interesse nacional seria dado e de incumbência de uma
burocracia coesa e insulada das pressões dos grupos sociais.
Além de o interesse nacional não ser dado, as burocracias não são coesas e o
insulamento às pressões sociais não é a regra. Ademais, a política externa não é a expressão
de uma vontade geral de toda a sociedade e tampouco tem impactos semelhantes em todo o
grupo social. Ao contrário da ideia de que o comportamento internacional de um Estado
visaria, necessariamente, a trazer o bem coletivo, entendemos que o resultado das interações
estatais tende a resultar em impactos distributivos distintos que podem desagradar a certas
parcelas de uma sociedade. Isso é particularmente perceptível, por exemplo, nas negociações
de acordos comerciais ou de processos de integração. Acordos de preferências comerciais ou
de livre comércio podem privilegiar determinados setores e prejudicar outros. A barganha
internacional para o fechamento de ditos acordos deve passar, também, por negociações
domésticas com numerosos grupos de interesse, a fim de que os trâmites comerciais sejam
viáveis e causem menos danos que benefícios.
Pelo conluio teórico que temos com as perspectivas de política burocrática de análise
de política externa e liberal de formação de preferências, compreendemos que o interesse

66
O trecho correspondente na tradução é: “(...) líderes políticos estão atuando nas arenas doméstica e
internacional simultaneamente”.
63

nacional não é dado, mas construído em meio a disputas domésticas. “El resultado es que
siempre el interés nacional va a ser una configuración hegemónica en donde una fracción
asume la representación de toda la sociedad”67 (MERKE, 2008, p.44). Com isso, fica claro
que existe um peso causal da política doméstica. As burocracias no poder, bem como suas
preferências, são inegavelmente decisivas para ações de política externa de um Estado. A
capacidade de influência de grupos sociais e sua habilidade na formação de coalizões também
são fatores que indicam que a política externa está sujeita ao escrutínio.
Dessa forma, argumentos em prol da incompatibilidade entre política externa e
democracia só se sustentam quando partem da premissa da existência de uma distinção
ontológica entre política interna e externa, divisão essa que é criticada ao longo de todo este
trabalho. “Se as diferenças entre política externa e doméstica deixam de existir, também não
mais se sustenta a alegação de um processo decisório distinto para as questões internas e
externas” (LIMA, 2000, p.276).
Argumentar que a diferença entre política externa e políticas públicas é essencialmente
de conteúdo, que a primeira seria referente aos assuntos externos e a segunda de âmbito
doméstico seria ratificar uma posição que é contrária ao que pensamos. Em cenário atual, o
que se observa é que a interação entre a política externa e as políticas públicas torna-se lugar
comum, com práticas de segurança pública, de saúde, de agricultura, entre outras, sendo
internacionalizadas pelo Estado, o que não só amplia sua capacidade de atuação em distintos
campos das relações internacionais, como também coaduna atividades realizadas
internamente com o conteúdo de sua política externa e mobiliza atores outros, para além dos
tradicionais, na consecução dos objetivos externos.

1.3.2 Política externa e políticas públicas: o fim do insulamento e a construção de “pontes”

A ideia de fim do insulamento burocrático de instituições como ministérios de relações


exteriores está intrinsecamente ligada com a tese de que a política externa é uma política
pública que está suscetível ao escrutínio e à influência da sociedade. A ideia de
questionamento do insulamento burocrático e do monopólio da formulação da política externa
aproxima-a do conceito de política pública e permite a existência de relações mútuas entre
67
O trecho correspondente na tradução é: “O resultado é que sempre o interesse nacional vai ser uma
configuração hegemônica em que uma fração assume a representação de toda a sociedade”.
64

essas políticas, o que engendra impactos no comportamento internacional dos Estados e em


suas dinâmicas domésticas.

(...) domestic politics and international relations are inextricably interrelated. A


country’s international position exerts an important impact on its internal politics
and economics. Conversely, its domestic situation shapes its behavior in foreign
relations (MILNER, 1997, p.3)68.

Conforme aponta Maria Regina Soares de Lima, dois fatores são fundamentais para
explicar a democratização das relações políticas: a liberalização política e a abertura
econômica. A partir dessas variáveis, que são normalmente associadas a uma nova realidade
de países em desenvolvimento marcados historicamente por regimes burocrático-autoritários,
pode-se entender que há espaço para a politização do processo de formação de políticas
públicas, para maior complexificação do processo decisório e para ampliação das agendas de
política externa (LIMA, 2000). O fenômeno da globalização, segundo ela, amplia as
demandas dos atores domésticos e erode o limite entre o que é internacional e o que é interno,
o que contribui para a assunção de efeitos democratizantes no processo de produção e de
implementação da política externa. Isso gera, inclusive, consequências na determinação das
preferências dos participantes do processo decisório.
Na definição de Helen Milner (1997), Estados são compostos por atores com
preferências variáveis, que compartilham e disputam influências no processo de tomada de
decisão. Não há um polo hierárquico e verticalizado no interior do Estado, em que as decisões
seriam tomadas pelos formuladores e implementadores de política externa, em larga medida
insulados dos demais. Tampouco existiria uma dialética claramente definida entre uma
suposta hierarquia doméstica, mais atinente às teses realistas, e a anarquia internacional. Ao
contrário, existiria uma espécie de “poliarquia”.
“The search for internal compromise becomes crucial in polyarchy. International
politics and foreign policy become part of the domestic struggle for power and the search for
internal compromise”69 (MILNER, 1997, p.11). Nessa estrutura, não haveria uma entidade
que ocupa o topo da tomada de decisões, como uma instituição de tomada de decisões no
modelo preteritamente discutido e nomeada de “torre de marfim”, mas, ao contrário, com as
68
O trecho correspondente na tradução é: “(...) política doméstica e relações internacionais estão intrinsecamente
inter-relacionadas. A posição internacional de um país exerce um importante impacto em sua política e economia
internas. Da mesma forma, sua situação doméstica molda seu comportamento em relações externas”.
69
O trecho correspondente na tradução é: “A busca por compromisso interno torna-se crucial em poliarquia.
Política internacional e política externa tornam-se parte da luta doméstica por poder e pela busca de
compromisso interno”.
65

relações conformadas em redes entrelaçadas entre atores domésticos e entre esses e seus
análogos externos. Em uma “poliarquia”, as preferências dos atores podem diferir, resultando
em políticas e comportamentos diferentes dos Estados em âmbito internacional.
De acordo com esse conceito, diversos atores nacionais atuam na definição da agenda
externa, sem haver uma hierarquia definida e marcada de funções, em que um líder teria a
capacidade de anular e/ou de coordenar plenamente as preferências dos demais atores, ou
tampouco uma anarquia aos moldes do que ocorre no nível sistêmico, em que a coordenação
de esforços e a cooperação entre os atores seriam improváveis. De acordo com a definição de
poliarquia, tem-se que grupos domésticos compartilham poder sobre processos de tomada de
decisão e que suas preferências são variáveis. Ministérios e agências estatais podem
desenvolver suas próprias políticas de internacionalização, havendo, nesse processo,
articulação de esforços junto ao ministério de relações exteriores e a presidência da república
ou não70. Um cenário de poliarquia nos permite dizer que essa coordenação pode ser possível,
o que seria inviável em descrição de contexto anárquico ou com hierarquia plena.
Segundo o conceito de poliarquia, aplicável para dinâmicas domésticas, não existiria
uma "hierarquia" instituída, em que único(s) tomador(es) de decisão definiriam o
comportamento estatal; tampouco haveria uma anarquia, sem qualquer ordenação do que se
entende por política externa e pelos processos que culminam em sua formalização. A ideia de
poliarquia seria um meio termo entre esses dois polos, anarquia e hierarquia..
O cenário de poliarquia seria caracterizado pelas disputas e “jogos” entre os atores
domésticos por maior poder de influência no processo de tomada de decisões. Helen Milner
(1997) argumenta, ao contrário de visões consagradas na literatura, que a ausência de
informações completas não levaria, necessariamente, ao fracasso de experiências de
cooperação em plano internacional. Entretanto, ela afirma que a distribuição equivocada de
informações, tanto a nível doméstico como a nível internacional - em negociações diretas, por
meio de organizações internacionais ou de regimes internacionais que sejam mal
compreendidos pelos atores - pode gerar, sim, problemas em ações cooperativas. Nesse
sentido, a existência de cooperação em suas múltiplas facetas implica no entendimento de que
exista diálogo entre os atores domésticos e seus análogos externos.
Em sistema internacional composto por Estados tidos como unitários, em que
prevaleceriam preferências divergentes, a cooperação seria dificultada ou impossibilitada. As
interações estatais tenderiam a se restringir a assuntos de alta política, pois o interesse
70
Internacionalização de ações não significa o mesmo que política externa. Muitos atores institucionais
desenvolvem ações externas, como acordos de cooperação técnica, mas não política externa.
66

nacional estaria restrito a questões relativas à segurança estatal e refratário a acordos que
pudessem gerar custos distributivos. Entretanto, a não consideração de dinâmicas domésticas
pode levar a compreensões equívocas da cooperação, visto que disputas intraestatais podem
dificultar sua operacionalização. Logo, não somente a existência de balanço de poder em
aspecto sistêmico explicaria a existência ou não de cooperação, mas também a realidade
interna dos Estados, o que tem direta relação com o entendimento de que o Estado não está
fechado às pressões domésticas. Em entidades em que haja maior coincidência de posições
entre os poderes domésticos instituídos, há maiores possibilidades de cooperação.
A anuência à premissa de que os níveis doméstico e internacional devem ser
considerados implica no entendimento de que os compromissos externos dos Estados têm
impactos distributivos. Dito isso, a causalidade doméstica explica como se dá, por exemplo, o
trâmite de aprovação de um tratado firmado externamente no ordenamento jurídico interno de
um Estado. Caso esse acordo traga mais custos que benefícios distributivos domésticos, a
tendência é que o referido país aja de forma menos atinente à cooperação. Conforme Maria
Regina Soares de Lima, “não é necessariamente verdadeiro que a política externa guarde
especificidade com respeito a outras políticas públicas, em particular quando tem implicações
distributivas domésticas” (LIMA, 2000, p.283).
Na medida em que a política externa, pelo aumento da amplitude de temas tratados e
pelo grau das parcerias encetadas, afeta mais diretamente o grupo social, maior interesse tende
a ser despertado nesses indivíduos quanto à condução do comportamento externo estatal, o
que enunciaria maiores pressões para a abertura de canais de diálogo e de influência entre os
tomadores de decisão em política externa e os demais atores domésticos, nas chamadas pontes
que serviram de título a esta seção. “O aumento de interesse e o debate público podem
conduzir a um processo lento e gradual de abertura e politização do campo da política externa,
embora ainda em termos bastante reduzidos quando esta se compara com outras políticas
públicas” (MILANI, 2012, p.38-39)71.
Entendemos que essa relativa abertura no campo da política externa é, certamente,
ainda menor que àquela existente no processo de formulação e de execução das outras
políticas públicas. Utilizamos a metáfora das “pontes” entre a sociedade e a torre de marfim

71
Milani (2012) divide os atores domésticos envolvidos na formulação e na implementação da política externa
brasileira em dois grupos. No primeiro nível, inclui os atores governamentais: poder Executivo; agências de
primeiro nível de relevância; agências de segundo nível de importância; entidades subnacionais; poder
Legislativo federal. No segundo nível, inclui: partidos políticos; ONGs, organizações empresariais e sindicatos;
meios de comunicação e opinião pública; e think tanks, grupos de pesquisa, organizações religiosas e grupos
étnicos.
67

desenvolvida na seção anterior para indicar que, ainda que os contatos entre os grupos sociais
e os órgãos decisórios tenha se tornado mais frequente com fenômenos de abertura política e
de integração econômica, isso ainda ocorreria de forma cadenciada. Por não estarem mais
completamente isoladas do cômputo geral dos assuntos nacionais, as instituições de tomada
de decisão em política externa passam a ter a chance de dialogar mais livremente com os
demais atores domésticos. A imagem das pontes nos parece interessante porque, por mais que
tendam a promover a interlocução entre atores externos ao processo decisório e atores imersos
no mesmo, elas podem ser levantadas, impedindo essa articulação.
Compreendemos, assim, que não existe uma via de mão dupla, claramente delineada,
entre as instâncias decisórias e os demais atores domésticos, mas que, gradualmente, em
termos teóricos, houve uma proximidade desses dois grupos72. Isso não significa que essas
conexões estabelecidas são permanentes ou que não possam ser descontinuadas. Tampouco
acreditamos que a influência doméstica ou de distintos nichos da burocracia federal irá, com
toda certeza, ter um impacto decisivo em política externa. Isso dependerá, claramente, dos
impactos distributivos que uma negociação internacional trará ao país e da temática a ser
levada em consideração73.
Quanto maiores os custos sociais de um acordo comercial ou de cooperação, por
exemplo, maior envolvimento será esperado da sociedade. Em contrapartida, assuntos que
tenham maior poder de mobilização nacional - como a resposta a um ataque armado -, ou que
sejam relacionados a interesses tidos como gerais e não de grupos específicos, tendem a ser
menos polarizadores de opiniões e de posições domésticas. “Quando as consequências da
política externa são distributivas, no sentido de que custos e benefícios não se distribuem
igualmente na sociedade, a política doméstica tem influência na formação da política externa”
(LIMA, 2000, p.287).
Ainda que possível em termos teóricos, a ideia de insulamento – ou de levantamento
das pontes que descrevemos anteriormente – nos parece mais propícia à teoria que à prática.
Encetar decisões sem levar em consideração questões de natureza doméstica é expediente
pouco crível em sociedades em que vigoram instâncias democráticas. Não ignoramos,
entretanto, que mesmo em regimes tidos como democráticos, um governo poderá tomar

72
Aqui, estamos considerando Estados democráticos, como o caso do Brasil, o que será discutido de forma
detida nos capítulos seguintes.
73
“Como ocorre na produção de outras políticas públicas, também na política externa podem ser necessários
recursos de autoridade e, simultaneamente, de representação e conciliação de interesses diversos e de
administração do conflito” (LIMA, 2000, p. 284).
68

decisões de forma virtualmente insulada e sem levar em consideração a dinâmica doméstica.


Tal situação nos parece, no entanto, mais exceção do que regra. O que parece ocorrer,
ao contrário, é que esse processo de maior visibilidade da política externa – notadamente
pelos impactos que acordos internacionais trazem para a realidade doméstica - traz renovada
atenção para as políticas públicas desenvolvidas em âmbito doméstico. Desse modo, a política
externa tem impacto nas demais políticas públicas nacionais, assim como essas políticas
públicas causam impactos na consecução política externa, contribuindo para um quadro não
de exata complementariedade, mas de existência de interações entre elas.

O pressuposto geral é o de que políticas externas bem sucedidas, com real influência
sobre as negociações internacionais, são aquelas que trazem resultados positivos em
termos de políticas públicas domésticas. Da mesma forma, políticas públicas bem
sucedidas reforçam a posição negociadora brasileira. Em outras palavras, há uma
correspondência direta entre decisões tomadas no âmbito da política externa e os
seus efeitos sobre as preferências e os interesses das chamadas constituencies74
(OLIVEIRA; ONUKI; VEIGA, 2006, p.2).

Em virtude disso, os formuladores de política externa de um Estado podem valer-se de


logros de políticas públicas domésticas para compor os eixos de atuação internacional de um
país. As consequências podem ser variadas, como a consecução de uma parceria estratégica
que gere ganhos econômicos e políticos. Partindo de raciocínio análogo, um acordo de
cooperação técnica, por exemplo, pode ter como resultado a mudança de uma política pública
que, considerada inadequada, se modifique por meio do aprendizado adquirido pela vertente
cooperativa. Quanto maior o diálogo e a abertura das instâncias decisórias a outros atores
domésticos – as “pontes” - maior a tendência de efetividade do âmbito cooperativo em
política externa e mais próxima a política externa tende a ser das políticas públicas outras.

1.4 Considerações Finais

Delineamos, neste primeiro capítulo, o instrumental teórico e analítico relativo à


análise de política externa e à teoria de relações internacionais a ser aplicado e testado
empiricamente no estudo da política externa brasileira. A partir de apontamentos teóricos,

74
O termo constituency refere-se a qualquer grupo de indivíduos ligados por identidades, interesses, formações
culturais ou objetivos compartilhados. Pode referir-se a um conjunto de eleitores, empresários, organização da
sociedade civil, etc.
69

elencamos motivos para nosso argumento de que o pensamento realista, criticado ao longo
destas páginas, seria insuficiente para o ensejo de compreensão de uma política externa que se
complexifica e se diversifica como a brasileira.
Nesse sentido, posturas irredutíveis em favor da consideração do Estado como ator
unitário e do sistema como nível de análise individual tornar-se-iam indesejáveis para este
trabalho. As contribuições conceituais do modelo de política burocrática de análise de política
externa e dos aportes liberais de formação de preferências que moldam o comportamento
estatal são o cerne do entendimento de que o nível doméstico, bem como as interações que se
processam entre os atores componentes desse nível, é fundamental para a assunção das
motivações estatais.
O esforço de síntese entre o modelo de política burocrática, emanado dos estudos de
Graham Allison, e o pensamento liberal de formação de preferências, em grande medida fruto
dos escritos de Andrew Moravcsik, indica que a consideração dessas duas abordagens nos
parece cabível e aplicável ao caso concreto. Isso também embasa nosso argumento de que a
política externa não é uma política aparte das disputas domésticas e sem conteúdo
propriamente político. Seu suposto caráter de excepcionalidade torna-se questionado.
Por estar sujeita ao escrutínio da sociedade e dos grupos domésticos imersos na
burocracia e fora dela, a política externa não representa uma instituição estanque e imutável,
compartilhada por todos os Estados em suas interações internacionais. Os jogos e barganhas
realizados pelos atores domésticos – influenciados, obviamente, por fatores externos e
internos, assim como por motivações próprias – geram consequências no processo de tomada
de decisões e na definição do comportamento estatal. Dessa forma, dizer que existiria um
interesse nacional apartado dos interesses dos atores domésticos e restrito aos desígnios de
uma burocracia insulada e tida como bem preparada, iria de encontro a nossa proposição.
Não negamos, de forma alguma, que os atores tradicionais na definição da política
externa continuam como forças decisivas em sua determinação. Salientamos, entretanto, que a
escolha dessas ações estatais não é resultado unicamente da existência de um “interesse
nacional” alheio ao que ocorre na sociedade. Por isso, a política externa não é rígida ou
absolutamente previsível, podendo ser transformada ou ter modificada sua ênfase em algum
ponto específico da agenda internacional de acordo com o grupo que estiver no poder e em
função das distintas dinâmicas que operam no interior do Estado.
Utilizamos a alegoria da “torre de marfim” para explicitarmos um modelo de
insulamento burocrático acabado e próximo às máximas realistas que, a nosso ver, é pouco
70

útil para o estudo empírico. Por darmos relevo também aos aspectos domésticos, traçamos a
metáfora das “pontes” entre a sociedade e a burocracia estatal, de forma que as agendas de
política externa podem ter influência de atores outros que não os tradicionais. O grau com que
essas interações ocorrem, entretanto, dependerá do tema pesquisado pelo analista, não
havendo uma verdade científica que sirva a todas as situações.
Os condicionantes históricos, a tradição institucional e as orientações ideológicas, bem
como as disputas intraburocráticas no seio do MRE do Brasil resultam em diferenciadas
ênfases de política externas e em eixos de atuação internacional não necessariamente lineares.
No próximo capítulo analisar-se-ão, à luz das considerações traçadas neste primeiro momento,
os antecedentes, atores e agendas da política externa desenvolvida durante o governo de Lula
da Silva, bem como o foco nas relações com o continente africano durante esse período.
71

2 ATORES E AGENDAS DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA75

Na última década, a cooperação tornou-se vetor essencial da política externa brasileira,


sendo observado aumento no número e na variedade de projetos cooperativos, bem como na
quantidade de países recebedores da cooperação brasileira76. Parcerias foram encetadas em
regiões de Ásia, África e América Latina que até então não eram vistas com grande destaque
ou interesse pelos formuladores de política externa. Além disso, é factível argumentar que
essa ampliação numérica e qualitativa foi acompanhada por uma participação maior de outros
atores que não o Ministério das Relações Exteriores (MRE) no processo de formulação e,
principalmente, de execução dessas práticas.
Outros atores da burocracia estatal – e, aqui, preferimos focar-nos no Poder Executivo
-, como ministérios, agências da administração direta e indireta, além de empresas estatais,
ganharam maior espaço relativamente ao Itamaraty na consecução de diversos projetos de
cooperação. Ademais, empresas privadas, conselhos empresariais, entidades da sociedade
civil, como a imprensa, partidos políticos, sindicatos, entre outros exemplos, em maior ou
menor grau, colaboraram e colaboram para a complexificação dos estudos de política externa
no Brasil. A entrada de tais atores no processo de formulação de políticas cooperativas é
fenômeno em curso, incompleto, consoante à progressiva politização da política externa e à
tese de política externa como política pública, termos trabalhados no primeiro capítulo.
Torna-se necessário, portanto, questionar paradigmas clássicos referentes aos
processos de formulação e de execução da política externa, que marcaram historicamente os
estudos da disciplina no país e repercurtem em diversos trabalhos do gênero. A ideia de
insulamento burocrático como característica patente do Itamaraty, de que o ministério teria o
condão de definir os rumos da política externa de forma soberana e autônoma, isolado do
restante da sociedade e da burocracia, ainda que mantenha sua força explicativa e teórica, não
mais condiz com o momento atual pelo qual passa o país e o próprio ministério em questão.
Ressaltamos a escassez de trabalhos que enfocam essa temática, ainda que nos últimos anos o
número de autores interessados em discuti-la tenha aumentado.

75
Ainda que este trabalho não tenha relação com a Rede Expansão, Renovação e Fragmentação das Agendas e
Atores da Política Externa (chamada Rede AAPE), criada em 2006 e coordenada por Letícia Pinheiro,
referenciamos sua importância para os estudos de política externa no Brasil. Sobre a rede:
http://agendasdepoliticaexterna.com.br.
76
As principais características da cooperação internacional desenvolvida pelo Brasil serão temas tratados no
próximo capítulo.
72

Um dos argumentos a serem expostos neste capítulo é que, apesar da ainda existência
do insulamento, situação que levou à caracterização metafórica do Itamaraty como “torre de
marfim”, esse quadro vem mudando, mesmo que de forma não linear ou gradual.
Transformações no sistema internacional, como o advento da globalização, e o aumento da
interdependência, juntamente com mudanças em âmbito doméstico, como a abertura
econômica e a redemocratização, auxiliam no entendimento de que “pontes” foram sendo
erguidas ou “canais” sendo abertos entre outros atores que não o MRE e esse ministério.
Desse modo, defenderemos que a torre de marfim não estará tão mais isolada e alienada do
que se passa em seu entorno. Nosso argumento central é de que o insulamento dificulta –
quando não inviabiliza - uma política externa atuante no campo da cooperação internacional.
Para isso, partiremos de uma breve retrospectiva histórica e sociológica que procurará
entender as causas do insulamento burocrático do Itamaraty. Em quadro comparativo,
observar-se-á que tal característica, ainda que subsista, torna-se menos regra com as
alterações ocorridas no sistema internacional e na ordem doméstica, na passagem dos anos
1980 para os anos 1990. Os motivos para esse menor insulamento, bem como suas
consequências para as relações do MRE com os demais atores, serão rascunhados ao longo do
capítulo. A recorrência a autores e modelos de análise de política externa, como ferramentas
teóricas já enunciadas no capítulo anterior, será feita de acordo com a conveniência. No
entanto, ressaltamos que esse esforço de análise não encaminhará imediatamente conclusões
empíricas às nossas hipóteses. Aplicaremos esses preceitos, bem como apontaremos os atores
e as agendas envolvidos, no último e derradeiro capítulo, quando do estudo da política de
cooperação em segurança alimentar brasileira para o continente africano durante os dois
mandatos de Lula da Silva.
A argumentada abertura relativa, contudo, não está sozinha no tempo e no espaço. Ela
ocorre em consonância com o momento hodierno de consolidação democrática no país e com
a diversificação das frentes de atuação diplomática e de cooperação do Brasil. Tendo em
mente o marco temporal desta pesquisa (2003-2010), faz-se mister analisarmos as principais
agendas de política exterior do Brasil não só durante o período em questão, mas também no
momento anterior, na gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Será demonstrado
que, apesar do discurso de continuidade do Itamaraty, houve mudanças no comportamento
internacional na comparação de um período com o outro, o que teve impactos nas ações
internacionais.
73

A predominância da corrente dos institucionalistas pragmáticos no interior da


burocracia do MRE, durante os anos Cardoso, e dos autonomistas – influenciados por quadros
do Partido dos Trabalhadores (PT) -, no período Lula da Silva, será um dos motivos
explicativos para as mudanças de percepções quanto à inserção internacional do país e na
avaliação da importância de determinadas agendas de política externa. A inexistência de
monolitismo de opiniões no que diz respeito ao processo de formulação de política externa
brasileira é prova de que a burocracia desse ministério não é uníssona e pode, de fato, divergir
quanto a temas, agendas e ações. O processo de relativização do insulamento do MRE frente
aos demais atores da sociedade e do Estado brasileiro ocorre, portanto, paripasso às disputas
intraministeriais, a dizer, entre institucionalistas pragmáticos e autonomistas.
Não nos parece perfeitamente cabível apontar inexorável relação de causa e de efeito
entre esses eventos, visto que o insulamento refere-se à vinculação entre o Itamaraty e os
demais atores, burocráticos e societários, enquanto que as disputas intraministeriais,
fenômeno que não é recente, é assunto primordialmente daquela pasta ministerial. Entretanto,
esses processos guardam relação entre si e com as agendas de política externa. Nesse sentido,
os elementos domésticos, dentro da “caixa preta” do Estado - sem olvidarmos os impactos do
sistema internacional, obviamente - nos são basilares para a compreensão da inserção
internacional do Brasil em tempos atuais.
Ao mencionarmos a expressão elementos domésticos, nos referimos, essencialmente,
às relações do MRE com os demais atores; as ocorrências intra-MRE; e às mudanças de
políticas domésticas observadas na última década, como o estabalecimento de modelo de
crescimento baseado no mercado interno e os programas de transferência condicionada de
renda, por exemplo, o Bolsa Família e os voltados à facilitação de crédito para a pequena
lavoura. Esses três fatores, aliados a outros, de procedência externa, contribuem para o
entendimento de que a política externa na transição entre as gestões de Cardoso e Lula da
Silva não é exatamente linear ou de plena continuidade. Apesar de não ser de nossa pretensão
esgotá-los, esses temas serão abordados neste momento da dissertação.
As principais agendas de política externa durante as gestões dos dois mandatários
serão trabalhadas na última parte deste capítulo, o que nos fornecerá subsídios para o
argumento de que a ideia de continuidade plena na formulação de política externa é
subterfúgio muito mais retórico do que atinente à realidade dos fatos. Como o último capítulo
desta pesquisa trata da cooperação em segurança alimentar para o continente africano, o tema
África será o fechamento do capítulo atual. Mostraremos que houve, verdadeiramente,
74

diferenças quanto ao local da África e do sul-atlantismo na política externa brasileira, na


passagem presidencial de FHC para Lula da Silva e na ascendência dos autonomistas frente
aos institucionalistas pragmáticos no mesmo período. O enfoque dos primeiros na cooperação
sul-sul e em temáticas de interesse comum aos países em desenvolvimento trouxe notórios
impactos para as relações Brasil-África, que saíram de uma situação de incômodo silêncio
com iniciativas pontuais para se tornar eixo estratégico da política externa.

2.1 A “especificidade” do Itamaraty: breve análise histórico-institucional

Historicamente, o processo de institucionalização do Ministério das Relações


Exteriores, por meio da ativa cooptação de indivíduos egressos das elites nacionais e
centralizados em torno da figura de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio
Branco, contribuiu para a caracterização do Itamaraty como um órgão diferenciado dos
demais componentes da burocracia estatal, bem como para sua profissionalização e seu
insulamento. Ao argumentarmos que esse isolamento vem sendo questionado e erodido em
tempos recentes, processo esse ainda incompleto e incerto, faz-se necessário discutirmos,
brevemente, as causalidades históricas e sociológicas que levaram a esse insulamento77.
Defendemos, nesta seção, que a formação intelectual e burocrática do diplomata brasileiro,
partindo das raízes imperiais desses processos, propiciou a formalização do citado
insulamento, o que permitiu larga ascendência sobre a formulação da política externa
brasileira, processo esse que teve suas consequências resvalando em momentos
contemporâneos.
Inicialmente, tem-se que não são poucos os textos que tratam da existência de um
esprit de corps entre os funcionários do Itamaraty, consequência de fatores como: a origem
social comum a esses indivíduos, notadamente provenientes das elites imperiais e,
posteriormente, republicanas; os processos de socialização desses funcionários burocráticos
ao ingressarem na carreira diplomática; e a evocação do legado do patrono da diplomacia

77
Nosso objetivo não é analisar, em minúcia, as causalidades responsáveis pela formação da burocracia do MRE
e tampouco observar, em detalhes, todas as etapas dessa formalização, do Império até o período atual. Para tal
empreitada, ver os autores citados ao longo desta seção como fonte privilegiada de informações.
75

brasileira78 (BARROS, 1986; CHEIBUB, 1984; FARIA, 2008; FIGUEIRA, 2010;


PINHEIRO; VEDOVELI, 2010; BELÉM LOPES, 2011; PINHEIRO; MILANI, 2012,
somente para citarmos alguns).
José Murilo de Carvalho (1996) argumenta que a formação cultural comum das elites
brasileiras, de início, no curso de Direito da Universidade de Coimbra, em Portugal, e,
posteriormente, no Colégio Pedro II, obra do período do regresso conservador (1837-1840) e
nas faculdades de Direito de São Paulo e do Recife, foi fator fundamental para a solidificação
de um pensamento compartilhado em torno de agendas para as quais convergiam tanto
liberais como conservadores. O “interesse nacional”, nesse sentido, era definido por
indivíduos que, juntamente com o Imperador D. Pedro II, convergiam em temáticas caras à
garantia da governabilidade doméstica e da formação das bases de sustentação de uma política
externa autônoma.
Além da educação, a homogeneidade era garantida pela socialização, treinamento e
carreira, heranças legadas pela organização social da metrópole lusa. Isso permitiu capacidade
de controle e de aglutinação por parte do Estado imperial brasileiro, dirimindo conflitos
internos consoantes aos grupos no poder. De fato, as instituições imperiais eram celeiro
primordial para o suprimento de quadros para os cargos públicos, fenômeno que é consoante
com a consolidação do Estado nacional após as instabilidades regenciais, a insolvência
econômica e as pressões externas, em níveis simétrico e assimétrico.
Ainda que não se tenha convencionado um esprit de corps próprio na burocracia
monárquica, o que somente ocorrerá com a efetiva funcionalização das atividades do Estado,
já em épocas republicanas, a condicionalidade sociológica de formação cultural comum das
elites, em contrapartida com o ínfimo quantitativo de letrados na população brasileira no
século XIX, contribuiu para isolar as elites políticas dos demais nichos da sociedade,
formalizando a existência de processos decisórios insulados79. Em virtude do insuficiente
caráter técnico no curso das atividades burocráticas, essas eram pouco transparentes e não
seguiam critérios de lógica instrumental. O processo decisório era fechado hermeticamente e a

78
Alexandre Barros afirma que, à exceção as Forças Armadas, nenhum outro departamento ou ministério do
governo brasileiro dispõe de um símbolo histórico tão poderoso como elemento de aglutinação de posições
divergentes. O legado do Barão do Rio Branco teria força simbólica para auxiliar o corpo diplomático a agir
coerentemente e a enfrentar as incertezas da competição burocrática (BARROS, p. 29).
79
“É razoável supor que as decisões de política nacional eram tomadas pelas pessoas que ocupavam os cargos do
Executivo e do Legislativo, isto é, além do imperador, os conselheiros de Estado, os ministros, os senadores e os
deputados” (CARVALHO, p. 43, 1996).
76

tomada de decisões cabia a poucos, que confundiam suas posições no quadro político com
suas funções burocráticas.
O estreito relacionamento da elite política imperial com a burocracia estatal,
característica comum em países com capitalismo atrasado, fazia com que, na prática, esses
dois nichos se confundissem. Havia simbiose entre as atividades de rotina estatal e a ocupação
política. O burocrata era, em grande medida, um homem de Estado, sem haver distinção clara
de suas funções ou uma separação enunciada pela existência de racionalidade burocrática e
decisória, diferente, portanto, do tipo ideal weberiano de impessoalidade, de eficácia e de
regularidade funcional. Era aquele indivíduo, grosso modo, de formação bacharelesca que,
eivado das classes dominantes, tinha interseção nas estruturas de poder.
Essa situação facilitou, quando observamos especificamente a formação da burocracia
do Ministério das Relações Exteriores, além de seu isolamento da sociedade como um todo, o
surgimento da ideia do diplomata como um intelectual político, figura que Letícia Pinheiro e
Paula Vedoveli (2010) convencionaram chamar de intelectual enquanto diplomata. A
designação refere-se ao fato de que número expressivo dos quadros diplomáticos nacionais
era composto por intelectuais que utilizavam a função de diplomata como mecanismo de
manutenção do prestígio social e do privilégio de berço, muitas vezes exercendo outras
funções concomitantemente ao trabalho diplomático. Isso contribuiu para a elevação da
imagem do diplomata a um status de prestígio, o que reforçava as bases de sua origem social
normalmente elitista e distinta.
Mesmo abaladas nos anos anteriores ao 15 de novembro80 e, em sequência, com a
subida dos militares à condução dos negócios nacionais, a estrutura de poder e a tomada de
decisões continuavam restritas a poucos. Em sua maioria, quem questionava a elite era a
própria elite. Na prática, o nascente Estado republicano continuava a ser visto como uma
caixa preta aos olhos bestializados da sociedade brasileira. A passagem ao regime republicano
não implicaria em maior participação de outros quadros no processo decisório ou em diálogo
mais profícuo entre o Itamaraty, a sociedade e as demais burocracias do poder Executivo. O
processo de tomada de decisões mantinha-se, portanto, como arena exclusiva.
Os anos da primeira república (1889-1930) viram pouca mudança nesse quadro, com a
burocratização não sendo colocada como pauta essencial do Estado, o que garantia
institucionalização inadequada às funções estatais, de modo geral, e, especificamente, ao
MRE. Posteriormente, o avanço das ideias veiculadas por profissionais liberais na sociedade
80
Por exemplo, pelas “ideias fora do lugar”, emanadas pela Geração de 1870, que ampliaram o escopo cognitivo
e ideológico da época, gerando impactos na até então sólida homogeneidade das elites (CARVALHO, 1996).
77

brasileira nos anos 1910 e 1920, associado à presença de manifestações culturais e políticas,
como o surgimento do Modernismo, o movimento tenentista e a busca por maiores parcelas
de poder por parte de Estados excluídos do Pacto de Ouro Fino (1913), resultaram em um
novo projeto de Brasil, evidenciado na Revolução de 1930.
O grupo situado no entorno de Getúlio Vargas, questionador dos descaminhos
empreendidos pelas administrações oligárquicas na primeira república, não só cooptou
pensadores positivistas e modernistas ao seu séquito governista, como também realizou
mudanças na estrutura de organização do Estado, com impactos inclusive no corpo
diplomático. Essa incorporação permitiu, em meio a claro processo de centralização
autoritária de poder, a participação de intelectuais no encaminhamento de processos de
racionalização e de burocratização do serviço público brasileiro81.
No período, foram tomadas diversas medidas que refletiam a passagem do controle
estatal de um paradigma de poder das elites cafeicultoras para o domínio da emergente
burguesia industrial adepta ao ideário de modernização conservadora. Buscou-se a definição
de novos parâmetros operacionais, mais associados ao respeito à hierarquia e ao caráter
meritocrático das carreiras, a racionalização de métodos, além da busca de atendimento a
padrões de eficiência. O Estado andava, portanto, rumo à funcionalização e à celeridade
administrativa82.
A realidade do MRE, entretanto, era distinta do restante da burocracia brasileira.
Mesmo considerando que as mudanças no serviço público também tenham impactado o
Itamaraty e contribuído para a sua burocratização83, o ano de 1945, especialmente, marca o
início da notória singularidade que esse órgão apresentaria frente aos demais ministérios e
departamentos do Executivo, em virtude da criação do Instituto Rio Branco (IRBr). Trata-se,
portanto, de momento em que o modelo organizacional do ministério, até então praticamente

81
Pinheiro e Vedoveli argumentam que isso criou certa ambiguidade no trabalho intelectual desse período, visto
que, por estarem imersos na burocracia estatal, muitas obras desses intelectuais acabaram identificando-se como
elementos de legitimação cultural do novo regime (PINHEIRO; VEDOVELI, 2010).
82
Entre as medidas tomadas no período, cita-se: a Lei de Reajustamento de 1936, que estabelecia o ingresso no
serviço público por concurso e/ou indicação, diretiva voltada para diminuir a forte influência das classes
oligárquias na máquina estatal; a institucionalização do Conselho Federal do Serviço Civil (1937); e a criação do
Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), em 1938.
83
Citam-se, aqui, duas reformas que antecederam a criação do IRBr: (1) Reforma Afrânio de Mello Franco
(1930-1933), que assentou as bases para a unificação da estrutura do MRE e da carreira, que até então estava
dividida em Secretaria de Estado, Corpo Diplomático e Corpo Consular; (2) Reforma Oswaldo Aranha (1938-
1944) , que concluiu o processo de unificação da carreira e instituiu provas de ingresso no ministério.
78

idêntico ao das demais burocracias da administração direta, diferencia-se por sua coesão de
grupo (BARROS, 1986).
Com o IRBr, ainda que a racionalidade e a profissionalização tenham sido imiscuídas
na rotina do Itamaraty, o fato é que essa instituição possibilitou a perpetuação da aura
bacharelesca de prestígio e de diferenciação que marcava até então o universo mais amplo dos
servidores públicos brasileiros. Ao contrário dos demais, o burocrata do Itamaraty não deixa,
com o tempo, de ser intelectual para operar somente de acordo com os preceitos burocráticos;
ao contrário, ele concilia os dois papeis.
Isso propiciou a superação da imagem do intelectual como diplomata (e, por extensão,
como servidores públicos em geral) e a caracterização da figura do diplomata enquanto
intelectual (PINHEIRO; VEDOVELI, 2010). À diferença do período anterior, o diplomata
deixa de ser somente um intelectual que atuava no acervo de posições diplomáticas, para
tornar-se um burocrata que produz conhecimento e análises de política externa. Se há essa
modificação engendrada pelos gradativos processos de consolidação institucional, a atuação
desse ministério aparte dos demais setores da sociedade continua a ser regra.
Convergindo no interior do IRBr, os ingressos no corpo diplomático brasileiro
experienciam processos de socialização, de homogeneização e de perpetuação de sua figura
como a de intelectual que pensa a política externa84. Isso assegura o desenvolvimento de um
senso de unidade institucional que, ainda que não seja pleno e possa gerar diferentes posições
quanto ao comportamento internacional do Brasil, tendeu a preservar as linhas mestras da
política externa e a amainar possíveis tendências centrífugas. “O corpo diplomático é,
portanto, uma coletividade que se define em termos profissionais através da noção de carreira
e categoria funcional. É também um grupo de status que se distingue por um ethos e uma
visão de mundo compartilhados (MOURA, 2007, p. 109).
Esse ethos torna-se característica distintiva da burocracia do Itamaraty, no sentido de
que, com o IRBr, “os diplomatas garantiram coesão e coerência entre seus quadros, o que
gerou força e isolamento do Ministério das Relações Exteriores como principal instituição da
arena decisória de política externa” (PINHEIRO; VEDOVELI, 2010, p. 21, grifo das autoras).
Nesse sentido, a criação do IRBr foi fundamental para a autonomização do ministério na
definição da política externa e para o fortalecimento institucional desse como instituição

84
Citamos, como exemplos de contatos constantes com o meio acadêmico, a possibilidade de publicação de
trabalhos por meio da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG); os cursos de formação e de aperfeiçoamento
profissional (Curso de Preparação à Carreira Diplomática; Curso de Aperfeiçoamento de Diplomatas; Curso de
Altos Estudos) e pelo intercâmbio de professores com a Universidade de Brasília (UnB).
79

específica, alheia e isolada do efetivo diálogo com outros atores da sociedade civil e do
Estado brasileiro. Isso lhe garantiu maior poder de barganha e de respeitabilidade dentro do
aparelho estatal, além de integridade como burocracia especializada.

Este fortalecimento tende a aumentar progressivamente não apenas a capacidade de


controle desses atores sobre a condução da política externa, mas também a sua
própria formulação. Os diplomatas, que membros de uma instituição, tendem a
adquirir uma autonomia crescente em relação tanto ao sistema social quanto a
segmentos particulares deste sistema, e do próprio aparelho estatal. Esta situação
lhes confere crescente iniciativa na formulação e implementação da política externa
ao mesmo tempo em que lhes fornece uma certa capacidade de assegurar a
continuidade desta política ao longo do tempo através da resistência a mudanças
bruscas e indesejadas (CHEIBUB, 1984, p.30).

O corpo diplomático, como parcela da burocracia do Estado que é, utiliza-se, portanto,


dessa distinção para fazer valer seus pleitos de se manter como principal responsável pela
inserção internacional do país. Instrumentos de enquadramento e de socialização, como
códigos de conduta, escolha de vestimentas, respeito à hierarquia, além de outros mecanismos
simbólicos, a exemplo da criação do Dia do Diplomata, em 1970, e da separação dos
diplomatas de suas bases de sociabilidade pretéritas, com a transferência do IRBr para
Brasília, somaram-se para a definição desse ethos de carreira.
Ao argumentar que trabalha segundo critérios profissionais, racionais e historicamente
construídos em torno do legado do Barão do Rio Branco, essa burocracia protege-se de
pressões externas, sejam elas advindas de outros setores da burocracia, provenientes da
sociedade, ou mesmo originadas em âmbito internacional. A alegoria da existência de um
acervo cultural comum aos diplomatas, associada ao prestígio garantido por questões
subjetivas, como sua produção acadêmica e intelectual, funciona como um anteparo a
ameaças que possam vir a diminuir seu poder enquanto burocracia. Daí o insulamento foi, ao
longo do tempo, poderoso mecanismo institucionalmente embasado, utilizado e perpetuado
pelo Itamaraty.
Mesmo nas ocasiões em que foram realizadas tentativas de reforma administrativa
que, efetivamente, poderiam ter impactos substantivos na posição relativa das burocracias e
em seu peso político, o papel do MRE foi preservado. Durante a presidência de Juscelino
Kubitschek, foi articulada lei que visava ao estabelecimento de comissões interministeriais
para o tratamento de temas transversais. Apesar de seu irrelevante impacto na estrutura
organizacional do país, tratou-se da primeira vez em que setores organizados da sociedade
80

civil, para além de ministérios e de agências, compuseram centros de decisão em matéria de


política externa, notadamente, de comércio exterior (FIGUEIRA, 2010).
Vale mencionar que, aparte da formulação, mesmo a reflexão sobre a política externa
permaneceu concentrada majoritariamente nos círculos de diplomatas até, pelo menos, a
passagem da década de 1960 para a de 197085. Além do monopólio da atuação, o corpo
diplomático possuía, assim, a maior parcela de produção intelectual voltada a pensar a política
externa. Essa situação permitia que o feedback relativo à ação diplomática brasileira fosse
julgado e avaliado por aqueles mesmos que a formulavam. Havia, portanto, um quase
monopólio, simbólico, histórico, burocrático e mesmo intelectual que permitia a continuidade
do insulamento e dificultava a formalização de canais de diálogo.
A organicidade do MRE, construída com o tempo, tornaria o ministério mais forte e
respeitado que as demais burocracias federais, por ter adquirido reconhecimento como
instituição de notória competência para lidar com as questões internacionais. Em análise
retrospectiva, observa-se que o Itamaraty é o ministério que comporta menos cargos
comissionados e profissionais externos àqueles egressos por via do Concurso de Admissão à
Carreira Diplomática (CACD) dentro de sua composição funcional (FIGUEIRA, idem).
O que se observa é, portanto, que o insulamento do Ministério das Relações Exteriores
brasileiro tem raízes históricas e sociológicas, vinculadas desde os tempos imperiais, que
colaboraram para a conformação de um órgão insulado do restante da sociedade e cujos
processos decisórios estavam, em grande medida, fechados aos descaminhos externos,
mantidos restritos aos circuitos do poder político e referenciados ao poder Executivo. Os
processos de burocratização da carreira diplomática, por mais que tenham imiscuído o
ministério de racionalidade instrumental e funcional na condução de suas atividades, não
relativizou o lugar de prestígio do diplomata junto à sociedade e à burocracia estatal, e
tampouco permitiu a consecução de efetivo espaço de diálogo com outros atores. A
concentração da tomada de decisões e o controle dos processos de formulação da política
externa continuariam como lógica operacional do Itamaraty, quadro que somente viria a ser
relativizado de modo visível com a transição democrática e o fim da Guerra Fria.

2.2 Da construção à ruptura relativa do insulamento

85
Quando ocorre a institucionalização de cursos acadêmicos com disciplinas ligadas às Relações Internacionais e
cria-se o primeiro bacharelado de Relações Internacionais na UnB.
81

O insulamento burocrático e decisório do Itamaraty frente aos demais atores do


Executivo e também aos externos a esse poder instituído esteve, em grande medida, associado
não só à pretensa diferenciação de formação histórica e sociológica do MRE, mas também à
própria montagem e evolução institucional do Estado brasileiro. Ao longo do tempo, essa
instância ministerial viu-se fortalecida e individualizada, o que contribuiu para seu isolamento
relativo e para sua resiliência a mudanças. Isso reforçou argumentos que referenciam a
política externa como igualmente diferenciada, apartada das demais políticas públicas e
reativa à presença de outros atores.
Nesta seção, procuraremos apontar como esse insulamento foi, por fatores múltiplos,
sendo questionado e visto como estratégia utilizada pelo corpo diplomático para manter suas
prerrogativas no processo de tomada de decisões em política externa. De característica
inefável do MRE, o isolamento que o singularizava como “torre de marfim” foi sendo erodido
de forma relativa, processo esse inconcluso e que traz novos desafios ao entendimento da
tomada de decisões em política externa no país.

2.2.1 A construção do insulamento

O processo de construção do aparato burocrático do Estado brasileiro, conduzido


como política governamental desde a década de 1930, levou à progressiva centralização
institucional no poder Executivo, em geral, e ao insulamento do Ministério das Relações
Exteriores frente aos grupos sociais e aos demais ministérios, em particular. Entretanto, a
partir do fim dos anos 1970, em virtude do malogro do modelo do Milagre Econômico e da
incapacidade da máquina estatal de atender às demandas de uma sociedade cada vez mais
complexa, aventou-se a necessidade de se promoverem reformas na administração pública
nacional86. Isso tem intrínseca relação com o debate contemporâneo relativo à
horizontalização da formulação e da execução da política externa e com os pleitos de maior

86
Dentre essas reformas, cita-se, por exemplo, a criação do Serviço Federal de Processamento de Dados
(Serpro), vinculado ao Ministério da Fazenda, criado em 1964 com o objetivo de modernizar e dar agilidade à
administração pública. Já o Decreto 83.936 de 06/09/1979 criou o Ministério da Desburocratização, uma
secretaria do poder Executivo com o objetivo de diminuir o impacto da estrutura burocrática na economia e na
vida social brasileiras. O ministério operou de 1979 a 1986, não deixando significativo lastro de permanência,
mas enunciando a necessidade de mudanças no tocante à administração pública nacional.
82

diálogo entre o Itamaraty e outros atores do âmbito doméstico, temáticas essas que têm
associação com a cooperação internacional e que serão discutidas nesta seção.
A crescente inoperância do Estado brasileiro em atuar como provedor de políticas
públicas a seus cidadãos, aliada a um cenário restritivo e marcado por déficits fiscais onerosos
aos cofres públicos, notadamente nos anos 1980, trouxe questionamentos à sustentabilidade
do paradigma de centralização administrativa vigente até então. Se as burocracias passaram a
ser atores com grande capacidade de relevância e de influência no processo de tomada de
decisões, por sua expertise técnica e pela especialidade adquirida com a estabilidade no cargo,
as formas de controle e de fiscalização sobre essas burocracias não foram tomadas como
prioridade.
Isso aconteceu porque essas formas de supervisão eram débeis em sua essência. A
existência de um regime de exceção, ainda que com fachada de pluralidade partidária,
inviabilizava a correta fiscalização das atividades burocráticas e mesmo sua descentralização.
Valer-se dos mecanismos de freios e contrapesos da tripartição de poderes era expediente
improvável na vigência de presidências não democráticas. Em virtude disso, a possibilidade
de atuação do Legislativo nessa seara encontrava-se muito diminuta, para não dizer nula. O
que se tinha, ao contrário de uma divisão de funções e de capacidades poliárquica, era uma
estrutura governamental hierarquizada, com ascendência prática e política do Executivo sobre
os demais poderes.
Mesmo com a promulgação da Constituição de 1988, a autonomia do Executivo frente
ao Legislativo no que diz respeito às questões internacionais continuava patente, no que se
configurava, praticamente, numa delegação tácita do processo de formulação de política
externa do Legislativo ao Executivo87. O artigo 84 da Carta Magna, que trata da competência
privativa do presidente da República, em seus incisos VII e VIII, conformaria o que alguns
autores chamam de presidencialismo de caráter imperial, no sentido de que, paradoxalmente
ao surgimento de nova ordem democrática, a participação dos demais poderes na vida
internacional do país configurava-se como muito desequilibrada (LIMA; SANTOS, 1998;
FARIA, 2008; CASON; POWER, 2009).
Mesmo que a CF 1988 determine que, entre as competências exclusivas do Legislativo
está a de resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem

87
Exemplos dessa “delegação” podem ser encontrados em artigos como: art. 21 I; e, especialmente, o art. 84 VII
e VIII (BRASIL, 2005).
83

compromissos gravosos ao patrimônio nacional (art. 49, I)88, o que ocorre, ao menos até
meados dos anos 1990, é postura de alheamento dos parlamentares quanto aos assuntos
internacionais. Na prática, o Legislativo buscaria delegar ao Executivo o tratamento de temas
que naturalmente apresentam custos distributivos elevados, como comércio exterior, prática
que ganhou maior ímpeto com a abertura econômica prospectada no país89.
Além das questões da relação entre poderes e da existência de centralização
administrativa, o insulamento também é explicado pelo elemento imaterial, retórico, que,
conforme mencionamos, remonta historicamente ao processo de formação do corpo
diplomático brasileiro. A notória frase do discurso de posse do ex-ministro das Relações
Exteriores da presidência de Ernesto Geisel, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, de que “a
melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se” é autoexplicativa. Ao conjugar as palavras
tradição e renovação, o ex-ministro indica que o MRE busca, ao adaptar-se às transformações
em curso, manter-se fiel a suas origens, sem abalar de forma indelével as bases que sustentam
o legado diplomático brasileiro e, por extensão, a própria posição privilegiada da casa de Rio
Branco na formulação da política externa.
No fundo, tratar-se-ia de uma amostra de que o MRE encararia a política externa como
uma política de Estado e, como tal, concernente aos interesses da nação como um todo. Os
interesses internacionais do país começariam, portanto, onde terminasse a política doméstica,
com os dois fenômenos se comportando de forma apartada e não relacionada. Assim, por sua
expertise e prestígio, esse ministério teria as ferramentas necessárias para impedir arroubos
desviantes na inserção internacional do Brasil.
Quando analisamos as causalidades externas, entre outras razões que explicam o
insulamento, há o fato de que, com a vigência da Guerra Fria e sua retomada a partir de 1980,
os temas de high politics, menos tendentes a promover a interdependência internacional,
retornam ao âmago da política externa dos Estados. Por essa razão, a centralidade decisória
das burocracias do Executivo, e especificamente do MRE, não era questão incômoda. Suas
rotinas organizacionais e seu isolamento relativo em relação ao restante da sociedade e aos

88
Outras competências de interesse nacional do Legislativo podem ser vistas no art. 49 II e III; art. 50; art. 52 IV
e V.
89
Entendemos que a tese de delegação decisória do Legislativo ao Executivo, defendida por Lima e Santos
(1998), é útil quando analisamos o período corrente até, pelo menos, o fim dos anos 1990 e o início dos anos
2000. Entretanto, não acreditamos que ela seja plenamente válida se considerarmos a atualidade. Como veremos,
o Legislativo retoma, ainda que com menor peso, sua presença no processo decisório na ocasião de negociações
comerciais como a ALCA, e o Judiciário, por sua vez, ganha importância principalmente após a edição da
Emenda Constitucional 45/2004. Neves (2006), por exemplo, é um dos que argumentam que essa relação entre
os poderes tornou-se mais complexa.
84

demais ministérios não era questão premente, pois o Itamaraty gozava de autoridade e
legitimidade suficientes para manter-se como formulador e condutor da política externa.
Havia pouca variabilidade de temáticas relacionadas à política externa, com o país
comportando-se de modo mais reativo e soberanista que propositivo. Além disso, optou-se
por um modelo de desenvolvimento pautado pela endogenia, de indução da industrialização
por substituição de importações, o que diminuía a presença internacional do país e reduzia os
custos distributivos que normalmente são provocados por negociações comerciais. Desse
modo, o comportamento autônomo gerava não só o isolamento do país no sistema
internacional, como também o afastamento do MRE de uma série de dinâmicas que poderiam
requerer a participação de um número mais substantivo de atores.
Podemos pensar, ainda quando tratamos das causalidades externas, que, linhas gerais,
até a presidência de José Sarney, a dinâmica realista de jogo de soma zero e a pouca
visibilidade dada a projetos de integração regional contribuíam para a dinâmica insulada e
centralizada de tomada de decisões. Com o desenvolvimento institucional do MERCOSUL e
de outras iniciativas integracionistas posteriores, ao contrário, o que se observou foi maior
demanda por aproximação intersocietária e empresarial dos países componentes dessas
experiências compartilhadas, ainda que o modo como esse processo foi conduzido seja
matéria passível de inúmeras críticas.
A partir dessas variáveis, entende-se por que havia baixo grau de politização da
política externa brasileira, ou seja, pouco controle societário e dos demais poderes instituídos,
pouca interação entre o Itamaraty e os outros nichos da burocracia do Executivo e da
sociedade civil e grande centralização decisória na formulação dos posicionamentos
internacionais do país. Assim, houve convergência de dinâmicas domésticas e externas no
sentido de perpetuar o domínio decisório e o insulamento no processo de tomada de decisões
em política externa. Configurou-se modelo vertical, top-down, hierárquico, centrado no
Executivo, pouco permeável à articulação de interesses e de demandas de uma diversidade de
outros atores e com diminuta porosidade burocrática a influências. As imagens do Estado
funcionando como uma caixa preta e do Itamaraty como uma torre de marfim, apartada do
restante da estrutura social, eram, portanto, alegorias cabíveis.

2.2.2 Rupturas ao insulamento


85

Esse quadro tradicional tem sua transformação iniciada nos anos 1990, se
consideramos, novamente, as causalidades domésticas e as externas, com essa mudança
ganhando maior força nos anos 2000 e na década hodierna, o que teve impactos substantivos
nas iniciativas de cooperação internacional desenvolvidas pelo Brasil. Entretanto, ainda que
sejam significativos os indícios de maior porosidade no processo de formulação da política
externa brasileira, englobando número relativamente maior de atores no processo decisório e,
principalmente, na execução da política externa, parece cedo para afirmarmos que houve uma
transformação efetiva no paradigma decisório90. Argumentamos que a verticalização vem
caminhando, sem uma sequência lógica, organizada ou mesmo definitiva, para uma
horizontalização, com essa última ainda longe de ser regra e tampouco intocável a retrocessos.

A proximidade com o cidadão em detrimento do insulamento institucional, a


transparência nas ações públicas, a redução do aparato administrativo do Estado e as
parcerias público-privadas são algumas das características fundamentais do modelo
de administração gerencial que procuram superar os ditames que orientaram as ações
dos servidores públicos e do próprio aparato organizacional e funcional do Estado
Moderno até pelo menos finais do século XX (FIGUEIRA, 2010, p. 1, grifo
nosso)91.

Quando analisamos as causalidades externas, é preciso levar em consideração a


introdução dos chamados novos temas– como narcotráfico, meio ambiente, mudança
climática, desenvolvimento, etc. – e a retomada de outros na dinâmica da relação entre
Estados. O fim da Guerra Fria e as transformações sistêmicas daí decorrentes levam à
problematização dos processos decisórios insulados na burocracia estatal como um todo, e
particularmente no interior do MRE. A crescente inter-relação e complexidade das agendas de
políticas externa e doméstica demandava “com cada vez mais freqüência, uma dinâmica
interativa entre as burocracias federais, bem como um diálogo mais estreito entre os poderes
Executivo e Legislativo na conformação das posições internacionais do país” (Idem, p. 6).
Constatou-se, com o avanço dos processos de interdependência nas relações entre os
Estados, que as questões internacionais não estão, decerto, apartadas das dinâmicas

90
Estudos sobre o tema da porosidade burocrática, no entanto, não são novos na literatura nacional, como
comprova Paixão e Santos (1988).

91
Não enfocaremos, nesta pesquisa, a relação entre opinião pública e política externa. Para um apanhado sobre
essa temática, ver o trabalho de Faria (2008). Quanto a isso, vale a pena reproduzir um excerto do trabalho em
questão: “estudos sobre a opinião pública têm o potencial de produzir não apenas novas informações, mas
também maior accountability e responsividade por parte dos formuladores e operadores da política externa do
país, o que redundaria em maior legitimidade, credibilidade e poder de barganha para o Brasil” (p. 16). Outro
estudo sobre o assunto é o de Franco (2009).
86

domésticas e tampouco definidas separadamente, em “nichos”, sem haver sobreposição entre


as mesmas; ao contrário, os âmbitos doméstico e internacional são duas faces da mesma
moeda, atuando em campos concomitantes e complementares (HILL, 2003). Observa-se, cada
vez mais, a internacionalização de temáticas até então reclusas ao tratamento soberanista por
parte dos Estados, fenômeno esse que demanda não só conhecimentos e expertises
particulares, muitos dos quais ausentes da visão arraigada da máquina estatal, como também a
participação de um número mais variado, qualitativamente e em número, de atores que
possam contribuir em tais articulações (PINHEIRO; MILANI, 2012, p. 16)92.
Já quando consideramos as causalidades domésticas que contribuíram para a ruptura
do padrão de insulamento do Itamaraty, temos, inicialmente, a substituição de um modelo de
desenvolvimento econômico endógeno, baseado na industrialização por substituição de
importações, para a busca de uma inserção internacional competitiva. O que se observa é que,
com essa nova perspectiva de inserção internacional, ampliaram-se os canais de ressonância
da abertura econômica na dinâmica social doméstica. Os custos distributivos, antes mais
controlados por um Estado eminentemente fechado ao sistema internacional, tornam-se
amplificados em múltiplas arenas de negociação, bilateral, regional e multilateral.
Como consequência, tem-se pressão renovada para a politização da política externa e
para a ruptura da caixa preta que se convencionou caracterizar o Estado, sob termos realistas,
no que diz respeito a suas negociações comerciais internacionais. De fato, nas tratativas
relacionadas ao MERCOSUL; Rodada do Uruguai do GATT e posteriormente na OMC;
acordo-quadro MERCOSUL-União Europeia; e, principalmente, ALCA, o que se viu foram
vozes dissonantes e provenientes de setores da sociedade civil e empresarial que não
costumavam vocalizar suas demandas de forma assertiva no que diz respeito à inserção
internacional do Brasil93.

92
Daí termos realizado debate, no primeiro capítulo, envolvendo Análise de Política Externa, e crítica aos que
ainda advogam a validade plena dos preceitos realistas para o entendimento do comportamento internacional dos
Estados.

93
A institucionalização do MERCOSUL também é fator explicativo para a existência de certa porosidade
burocrática e decisória em política externa. Além do aspecto de desgravação tarifária e de estabelecimento de
uma tarifa externa comum, o bloco prevê a integração do ponto de vista intersocietário, o que propicia a
participação de outros atores que não o MRE na inserção internacional do país. Além disso, a eleição direta de
parlamentares para o Parlamento do MERCOSUL, processo que está previsto para ocorrer até 2014, pode
propiciar maior envolvimento do cidadão com o processo integrador. Nesse sentido, grupos de pressão abrigados
sob diferentes bandeiras políticas no interior do PARLASUL poderão articular demandas de suas bases de apoio
domésticas em nome do surgimento de determinadas normas mercosulinas, processo de produção de normas e de
cooperação entre os Estados que não passaria somente pela alçada dos respectivos poderes Executivos.
87

Além isso, há outro fator que corrobora essa multiplicação de vozes. O fato de que,
apesar de não ter propiciado uma equilibrada participação dos três poderes na determinação
da inserção internacional do país, com clara ascendência ao Executivo, a Constituição Federal
de 1988 ampliou significativamente os graus de autonomia dos governos subnacionais, no que
diz respeito à atuação de estados e de municípios. Empiricamente, observou-se multiplicação
no número de secretarias de relações internacionais em diversos estados da federação,
notadamente naqueles situados próximos às faixas de fronteira e no sul do país. Destarte,
esses atores passaram a ter canais institucionalizados para a definição e divulgação de seus
interesses externos.
Associada a esse processo de ruptura do insulamento do MRE está a existência de uma
agenda internacional renovada em inúmeras agências da burocracia estatal, especificamente
do Executivo. Diversos ministérios como, por exemplo, da Saúde; Agricultura, Pecuária e
Abastecimento; Cultura; Educação; Meio Ambiente; Desenvolvimento Social;
Desenvolvimento Agrário; Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; e Fazenda, só
para citarmos alguns, passaram a desenvolver relações externas profícuas com congêneres de
outros Estados e atores não estatais, em diversas circunstâncias passando ao largo do MRE.
Contando com expertise técnica que o Itamaraty não tem e por tratarem de temáticas
específicas, esses outros agentes da burocracia ganham relevância não só perante o Executivo,
por sua capacidade de lidar com questões de vulto e interessantes ao desenvolvimento
nacional, como também perante o próprio MRE, ampliando seu poder de barganha na
definição do comportamento internacional do país quanto a determinadas temáticas. Nesse
sentido, inúmeras políticas públicas antes definidas basicamente como atinentes à política
doméstica, foram internacionalizadas, a partir do recurso a projetos de cooperação.
Outra mostra de que o insulamento estaria sendo questionado e rompido é o fato de
que, com a maior visibilidade da política externa e do engajamento internacional do país em
tempos recentes, a tendência é que aumente o interesse e as discussões sobre temas
internacionais tanto na imprensa como na sociedade civil e nas campanhas presidenciais. Isso
decorre, entre outros fatores, do incremento da chamada diplomacia presidencial, em virtude
do maior envolvimento pessoal do chefe de Estado com a inserção do país no sistema
internacional, com a realização de cúpulas, viagens, declarações, etc. (FARIA, 2008;
CASON; POWER, 2009; DANESE, 1999)94.

94
Danese (1999) traz detalhamentos mais amplos sobre o conceito de diplomacia presidencial.
88

Por fim, é possível identificarmos, por meio da análise da ação do Legislativo e do


Judiciário brasileiros, que o argumento de que o insulamento vem sofrendo rupturas também é
perceptível na seara dos três poderes constituídos. Partindo dos apontamentos de Peter
Häberle (2007), temos que o Estado nacional não mais se reveste unicamente de sua
prerrogativa soberana. Ao consentir com normas internacionais e procurar defini-las sob ótica
cooperativa, o que se tem é o fortalecimento daquilo que o autor chama de Estado
constitucional cooperativo, no sentido de que essas entidades buscariam ampliar seus vínculos
externos. Essa permeabilidade do Direito Internacional às normas constitucionais domésticas,
o que envolve a atuação de Legislativo e de Judiciário, guarda relação intrínseca com o
momento de interdependência hodierno95.
Em primeiro lugar, cabe designar de que forma o Legislativo vem atuando de forma
mais assertiva no tratamento aos temas internacionais. Para além do art. 4º da Constituição
Federal, que rege os princípios das relações internacionais do Brasil, há alguns outros
mecanismos que comprovam o interesse renovado desse poder instituído. Cita-se, por
exemplo, a introdução do §3º ao art. 5º96 e do §4º ao art. 5º97, dispositivos que surgiram a
partir da edição da Emenda Constitucional 45/2004.
Já quanto ao Judiciário, temos, também, principalmente a partir da Emenda
Constitucional 45/04, uma revalorização de suas prerrogativas. A instituição do incidente de
deslocamento de competência (IDC), conforme o art. 109 §5º, permite que processos
relacionados a graves violações de direitos humanos em curso na esfera estadual sejam
“deslocados” para o âmbito federal, em casos em que a celeridade processual estiver
comprometida. Isso ocorre por meio de provocação do Procurador-Geral da República junto
ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Visa-se, dessa maneira, a garantir maior capacidade de

95
Häberle (2007) argumenta em prol de maior abertura dos Estados nacionais às normas do Direito
Internacional, com vistas a evitar o isolamento internacional dos Estados, a partir da edição de normas jurídicas
que privilegiem a cooperação. Além disso, defende que há interações recíprocas entre os dois Direitos, de forma
que se retroalimentam. O que se passa no âmbito doméstico dos Estados influencia a órbita internacional e vice-
versa.

96
Segundo esse parágrafo, “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. A partir do §3º, renova-se a importância das Casas
legislativas no que diz respeito à assunção brasileira a acordos cooperativos de direitos humanos. Até o presente
momento, somente a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo de
2007, conhecida como Convenção de Nova Iorque, ganhou status equivalente ao de Emenda Constitucional.
Mais detalhes estão disponíveis no Decreto Legislativo 186 de 09/07/2008.

97
Prevê a submissão do Brasil à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado
adesão. Essa inovação no ordenamento jurídico é fundamental em matérias de cooperação penal internacional.
89

resposta do Estado a possíveis atos inaceitáveis e a assegurar o cumprimento do Brasil a


obrigações decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos de que é parte98.
Um segundo exemplo é o julgamento do recurso extraordinário RE466343-SP, de
2008, que inaugurou no país o status da supralegalidade dos tratados de direitos humanos não
aprovados pelo Congresso Nacional conforme possibilidade prevista no art. 5º §3º. Por meio
do recurso extraordinário em questão, tratados de direitos humanos não internados com status
equivalente ao de Emenda Constitucional teriam força axiológica superior a das normas
legais, situando-se no ordenamento jurídico brasileiro, portanto, somente abaixo da
Constituição Federal, das Emendas Constitucionais e das normas equivalentes à EC99. Esses e
outros exemplos100 indicam que a supremacia do Executivo na configuração da política
externa, inegável mesmo em tempos atuais, vem sendo compartilhada com os outros dois
poderes instituídos, num indicativo de que o entendimento da política externa dos Estados não
pode imiscuir-se de compreender as dinâmicas domésticas e tampouco deve ser entendido
como monopólio estrito do MRE, especialmente no que tange à cooperação.

2.3 O processo de horizontalização controlada, a relação com outros ministérios e


com a sociedade civil

Parece-nos ser incorreto afirmar, pelas razões já apontadas anteriormente, que a tese
de insulamento burocrático do Ministério das Relações Exteriores continue sendo
absolutamente válida e acurada para o atual momento da política externa brasileira. Em
virtude de motivos que vão da abertura econômica à maior participação do Judiciário em
temáticas atinentes à inserção internacional do Brasil, o que se observa é que a política
externa, então confundida com política de Estado, não está mais apartada de pressões

98
Algumas críticas apontam que o IDC serve como um mecanismo de proteção do país contra eventuais
condenações na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Isso ocorre porque, ao utilizar o IDC, fica mais
difícil argumentar que o país está sendo negligente no tratamento a questões de violações de direitos humanos,
pretexto que poderia levá-las ao conhecimento da Comissão Interamericana e da Corte Interamericana de
Direitos Humanos.

99
A Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e sua internação no ordenamento jurídico
brasileiro é especialmente relevante quando tratamos da supralegalidade.

100
Lembramos do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 1625 (ADI 1625), que analisa eventual
necessidade de autorização prévia do Congresso Nacional para que o presidente da República possa denunciar
tratados internacionais que o Brasil seja parte.
90

múltiplas e recorrentes, como as avindas do âmbito interburocrático, das disputas no interior


do Itamaraty e das originadas fora da burocracia estatal.
Ao contrário das razões histórico-institucionais que explicam o insulamento da casa de
Rio Branco, aponta-se, no período hodierno, a existência de quatro dinâmicas domésticas
relativas à política externa que ajudam a entender o argumento de que há ruptura relativa do
isolamento do Itamaraty: duas delas relacionadas ao jogo burocrático no interior do
Executivo; uma relativa à relação do Executivo com os demais poderes instituídos; e uma
quarta, compreendendo as interações entre o Estado e a sociedade. Essas dinâmicas indicam a
existência de maior porosidade, interação, cooperação e conflito entre as burocracias do
Executivo; nas correntes de opinião e de ação dentro do MRE; na relação do Executivo com
Judiciário e Legislativo; e do Estado como um todo e a sociedade civil.
A primeira dessas dinâmicas, que será tratada com mais detimento na parte final deste
capítulo, em virtude de sua consequência para a formulação das agendas de política externa
brasileira, é a que aborda a exacerbação de opiniões divergentes no interior do Itamaraty.
Sabemos que, ao longo do tempo, não são incomuns posturas diferenciadas no seio do MRE.
Contudo, após a perda de fôlego do modelo de industrialização por substituição de
importações, seguida pela abertura econômica e, especialmente, pela transição presidencial
entre FHC e Lula da Silva, a quebra do pretenso monolitismo de pensamento tornou-se mais
clara. Essa ideia corrobora o posicionamento de que, se nem mesmo no interior desse
ministério há uma coesão sustentada em prol de uma estratégia de inserção internacional, fica
difícil argumentar que existe uma lógica uníssona de continuidade na política externa.
Ao mesmo tempo, por serem defendidos mais abertamente posicionamentos não
necessariamente convergentes – em seminários, em eventos e por meio da mídia, por exemplo
– configuram-se demonstrações de que a política externa torna-se mais politizada e menos
“blindada” a críticas. Além disso, por evocarem seus pensamentos em arenas de opinião
pública, muitos desses indivíduos, como ex-embaixadores, contribuem para desmistificar o
Itamaraty como uma instituição eminentemente isolada do restante da sociedade e imune a
visões contrárias a suas diretrizes.
Quanto à composição social desse órgão, ainda que, vista em retrospecto, a base social
da qual provém os diplomatas tenha se ampliado relativamente em número, em origem e em
curso de formação universitária, em virtude do aumento do número de vagas no concurso de
admissão à carreira diplomática durante os dois mandatos de Lula da Silva, essa se mantém
restrita. Isso decorre, principalmente, dos altos custos dos cursos preparatórios para o
91

concurso, fator restritivo à pluralização da representação social e racial e à ampliação das


vozes no ministério. Entende-se que, quanto mais plural for a composição profissional do
corpo diplomático, maior a capacidade que esse ministério terá de lidar com as circunstâncias
em curso, havendo, provavelmente, menor resistência organizacional às mudanças101.
A segunda dinâmica, ainda relativa ao que se passa no interior do Executivo e,
portanto, de especial importância para o objeto desta dissertação, é a que diz respeito à relação
entre o Itamaraty e os demais ministérios governamentais102. Trata-se de temática que será
analisada no último capítulo desta pesquisa, levando em consideração as interações entre o
MRE, o MDA, o MDS e o MAPA na consecução da política de cooperação em segurança
alimentar para com a África. Em termos gerais, as interações entre o MRE e os demais
ministérios podem não ser marcadas por completa convergência de posicionamentos, ainda
que a tendência em algumas agendas, como a de segurança alimentar, seja a de haver maior
coordenação. Teoricamente, dissensos podem ocorrer, e esses atores, envolvidos em

101
A introdução dos concursos de concessão de bolsas de ação afirmativa, forma encontrada pelo MRE para
mudar a “cara” e a “cor” de seu corpo diplomático, ainda, em larga medida, imagem e semelhança de seu
passado bacharelesco e elitista, rendeu, até então, parcos resultados.
102
Vale abrirmos um parêntese neste momento: os modelos de Allison (1971) – ator racional; processo
organizacional; e política governamental; já mencionados no primeiro capítulo desta dissertação –, mesmo que
incompletos e perfeitamente cediços a críticas, poderiam, por sua importância na bibliografia relativa às
burocracias, ser evocados (e de fato o são em diversos trabalhos de processo decisório e de análise de política
externa) para a análise da relação entre o Ministério das Relações Exteriores e seus congêneres do Executivo
nacional. Com relação a isso, deixamos claro que não somos cegamente partidários de nenhum desses três
modelos e tampouco iremos embasar nossa análise tendo por norte seus paradigmas. Nosso objetivo não é
involucrar, de maneira alguma, nosso encaminhamento lógico em suas premissas, apesar de reconhecermos sua
validade. Quanto a nosso objeto de estudo, referente ao lugar da cooperação em segurança alimentar na política
externa brasileira para a África – e aqui já nos adiantamos ao conteúdo do último capítulo -, se partíssemos da
leitura crítica de Hammond e Bendor (1992) dos três modelos de Allison, poderíamos identificar a interação do
Itamaraty com os demais ministérios na configuração da política externa como intermediária entre os modelos II
e III, tendendo mais para o modelo II. Nos casos em que os objetivos dos ministérios e do MRE fossem
compartilhados e coordenados, teríamos a classificação dos contatos interministeriais, grosso modo, no interior
do modelo II, que se foca nas rotinas organizacionais das burocracias. Já nos momentos em que esses objetivos
fossem distintos e conflitantes, o mais adequado pareceria ser evocar o modelo III, que trabalha com política
burocrática, jogos, barganhas e estratégias utilizados pelos atores burocráticos para fazer prevalecer suas
posições. Entretanto, apesar da crítica feita a Allison, com a qual concordamos, tampouco nos subscrevemos ao
pensamento de Hammond e Bendor, por não acreditarmos que, necessariamente, todo output fruto de
concordância e de coordenação de preferências seria oriundo de processos organizacionais convergentes (modelo
II). Entendemos que esse compartilhamento de visões pode ocorrer, também, por meio do jogo burocrático
(modelo III) e por influência direta da formação de preferências em política doméstica. Por outro lado,
concordamos que, aparte as falhas intrínsecas aos modelos de Allison e depois de Allison e Zelikow (1999), a
fronteira entre os quadros esquemáticos II e III é bastante tênue e complexa. Conforme Wagner: “it is not
entirely clear whether Model III is independent of Model II or an extension of it; certainly bureaucratic bargain
seems to be constrained by many of the factors discussed under Model II, and many of Allison’s readers seem to
mingle the two together” (WAGNER, 1974, p. 448). O trecho correspondente na tradução é: “não é totalmente
claro se o Modelo III é independente do Modelo II ou uma extensão dele; certamente, a barganha burocrática
parece ser constrangida por muitos dos fatores discutidos sob o Modelo II, e muitos dos leitores de Allison
parecem misturá-los”. Esses modelos seriam mais úteis, talvez, na análise de aspectos pontuais da política
externa de um país, tornando inacurada sua aplicação ao quadro geral da agenda diplomática de uma dada
conjuntura, como procuramos fazer aqui.
92

determinados processos decisórios, não apresentarão, de forma obrigatória, mesmos objetivos.


Políticas de barganhas burocráticas, por imposição, por convencimento ou por
contingenciamento de recursos, por exemplo, podem daí suceder, a fim de que uma visão seja
sobreposta à outra.
Deve-se salientar que seguimos o entendimento de Pinheiro e Beshara (2012) de que
os outros ministérios e agências que não o Itamaraty não possuem uma agenda própria de
política externa. Diferentemente, possuem “diplomacias”, que lhes garante capacidade de
encetar relações externas, normalmente práticas cooperativas, com congêneres de outros
Estados e com demais atores das relações internacionais; isso não é sinônimo de política
externa. Acrescenta-se que, no intrincado debate entre ator e agência no campo das relações
internacionais103, defendemos que ministérios e agências têm capacidade de agência, apesar
de não serem propriamente unidades de decisão. Aparte a isso, eles detêm condições de
alterar, de influenciar e de seguir ou não as diretrizes de política externa, dependendo da
conjuntura política doméstica, da força que possuam e de seu posicionamento na burocracia.
A terceira dessas dinâmicas, por sua vez, ocorre ainda no interior do Estado, e articula
as relações entre o Executivo e os demais poderes instituídos, a dizer, Judiciário e Legislativo.
Como vimos, esse intercâmbio é mais complexo do que parece e, com as alterações em curso,
especialmente após a Emenda Constitucional 45/04, o interesse de Legislativo e de Judiciário
pelas questões internacionais parece renovado, o que tende a gerar impactos subsequentes no
contato não só com o Executivo, mas também nos mecanismos decisórios e na anuência do
Brasil a tratados e negociações multilaterais, notadamente os relativos a direitos humanos.
A última dessas dinâmicas, tampouco ponto nevrálgico deste trabalho, envolve as
relações entre o Estado como um todo e a sociedade civil, organizada em sindicatos, grupos
empresariais, imprensa, etc., que, nos últimos anos, vêm se mostrando mais porosa e
frequente. Apesar de nem sempre fluidas e em grande medida incipientes, essas trocas
indicam que os caminhos para o diálogo entre os formuladores da política externa e a
sociedade não se encontram mais tão fechados. Menciona-se, também, que a proliferação de
cursos de graduação e de pós-graduação em Relações Internacionais no país, principalmente a
partir do no início dos anos 2000, demonstra renovado interesse da sociedade em
compreender e lidar com as questões internacionais.
Essas quatro peças, que montam um diagrama mais amplo, demonstram que, além de
não ser mais caracterizado como uma “caixa preta”, o Estado brasileiro da contemporaneidade

103
Rememoramos Wight (2006), Hermann (2001) e Bashkar (1978).
93

é visivelmente diferente daquele do período anterior aos anos 1990. Em virtude disso, está em
curso uma mudança no comportamento do MRE e a conformação de uma nova configuração
da arena decisória em política externa, pelo engajamento de outros ministérios em práticas
cooperativas, e também pelas fissuras identificáveis no interior da corporação diplomática.
“Junto com essa diversificação temática da agenda de política externa – seja como decorrente,
seja como promotora – surgem também novos atores e altera-se o arranjo institucional da
formulação e implementação da política externa” (PINHEIRO; BESHARA, 2012, p. 152).
Conforme defendem esses dois autores, a atual pluralização de atores, apontada como
causa e efeito da diversificação temática da política externa brasileira, deve ser pensada como
um elemento central no entendimento da política externa da atualidade. O termo
horizontalização controlada104, que titula esta seção, é acurado, pois denota que a dinâmica
de formulação e de implementação das ações internacionais do país não mais estão a cargo
exclusivo do Itamaraty, órgão reconhecido constitucionalmente como o responsável pela
política externa. (Dentre os autores que utilizam o termo de forma explícita, temos:
PINHEIRO, 2009; RATTON SANCHES; FRANÇA, 2009; e PINHEIRO; BESHARA,
2012).

A diversidade de vínculos intergovernamentais e intersocietais superam a


capacidade de gestão deste ator na condução cotidiana das relações do país com o
mundo. Seu desafio já não seria o de manter as rédeas sob controle, mas sim o de
evitar uma visão de mundo obsoleta (HIRST, 2012, p. 10).

Ademais, se a estrutura vertical e hierárquica do processo decisório não mais se aplica,


entende-se que tampouco haveria sua opositora, ou seja, plena horizontalização. Daí o
adjetivo controlada ser cabível, no sentido de que indica que há dinâmica inconclusa e sujeita
a revezes e a disputas na definição das agendas e dos atores participantes da política externa.
Como veremos, o quadro não se trata de plena vigência de poliarquia nas interações entre os
demais atores da burocracia e o Itamaraty, mas de cenário que caracterizaríamos como
intermediário entre um padrão decisório hierárquico e um outro, poliárquico em essência.
O novo cenário de horizontalização controlada pode ser caracterizado pela existência
de dois fenômenos simultâneos. O primeiro deles diz respeito à “participação crescente e
diversificada de atores na formulação e na implementação da política externa, concedendo
maior respaldo interno, legitimidade externa e eficiência às políticas e às decisões”
(PINHEIRO; BESHARA, 2012, p. 152). Mobilizam-se grupos de pressão e de interesse, com

104
Beshara (2008) utiliza o termo dispersão disciplinada.
94

objetivos distintos e nem sempre compartilhados, a fim de ecoarem suas demandas


relacionadas aos temas internacionais105. Dentro desse quadro, o rol de forças e de polos de
influência no processo de definição da política externa vem sendo alterado substantivamente,
com consequências, inclusive, para o papel institucional do Ministério das Relações
Exteriores.

This was due to both an increase in the number of actors who are influencing or
attempting to influence foreign-policy making (partly as a consequence of
democratization) and to an increase in presidential diplomacy. This does not mean
that Itamaraty has become impotent, but it does mean that Itamaraty has had to
accommodate these new dynamics and has seen its relative influence wane
(CASON; POWER, 2009, p. 118, grifo dos autores) 106.

O segundo fenômeno guarda relação com a postura do MRE frente a essa pluralização
de atores e de agendas, dizendo respeito às tentativas de controle e de coordenação por parte
do Itamaraty. Ainda que sua tradicional predominância na formulação e na implementação da
política externa tenha declinado, o fato é que esse órgão não ficou inerte a essas alterações e à
perda de espaço relativo. O novo cenário, ao contrário, motivou reações do ministério, no
sentido de se reposicionar e de revalorizar sua importância como burocracia especializada e
constitucionalmente responsável pela área da política externa.
“Toda esta mobilização doméstica tem gerado, de um lado, pressões no sentido da
reversão do padrão insulado de produção da política externa brasileira e, por outro, reações
adaptativas da presidência e do Itamaraty” (FARIA, 2008, p. 86). A consequente reação do
MRE a esses processos, que corroboram a ruptura do insulamento, a multiplicidade de vozes e
certa horizontalização na política externa, pode ser interpretada de três formas: (i) como uma
mera resposta, uma ação retardada e subsequente aos processos que já estão sendo colocados
em prática por outros atores; (ii) como uma tentativa de retomar as rédeas da configuração da
política externa, via restabelecimento da preeminência hierárquica do Itamaraty frente aos
demais atores; (iii) como meio de imiscuir o discurso retórico historicamente articulado pelo
corpo diplomático em projetos já em desenvolvimento por outros atores e que estão fora da
alçada do Itamaraty.

105
Sobre esse assunto, Onuki e Oliveira (2007) fazem interessante estudo sobre grupos de interesse e a política
comercial brasileira, com foco na arena legislativa.

106
O trecho correspondente na tradução é: “Isso ocorreu tanto por um aumento no número de atores que estão
influenciando ou tentando influenciar a realização da política externa (parcialmente como uma consequência da
democratização) e por um aumento na diplomacia presidencial. Isso não quer dizer que o Itamaraty tenha
tornado-se impotente, mas que o Itamaraty tem tido que acomodar essas novas dinâmicas e tem visto sua
influência relativa diminuir”.
95

Essas reações, em grande medida desencontradas, refletem o que J. Saraiva (2006)


definiu como a existência um conservadorismo corporativo no corpo diplomático, o que não
somente rememora os processos de socialização levados a cabo no Instituto Rio Branco e na
carreira, como também colabora para caracterizar o Itamaraty como um órgão não
completamente afeito a mudanças que ameacem sua posição de destaque na configuração da
política externa.
Para não perder esse espaço, o MRE buscaria empreender resposta adaptativa às
pressões intragovernamentais, parlamentares, provenientes dos governos subnacionais, de
grupos de interesse e de organizações da sociedade civil (FARIA, idem). Diversos exemplos
de contrapartidas por parte do Itamaraty, frente às demandas por maior porosidade, podem ser
identificados. Não percebemos, porém, um esforço claramente delineado e organizado por
parte desse ministério para ampliar seus contatos e a abertura de espaços juntamente aos
demais atores. Por não visualizarmos uma mudança estrutural, entendemos que essas reações
são, principalmente, de cunho mais reativo que propositivo, mais voltadas para a retomada
das rédeas sobre a política externa que iniciativa consciente e proativa de incluir mais atores
nos processos decisórios.
Como um primeiro exemplo de resposta, tem-se a criação da Assessoria de Relações
Federativas, em 1997, posteriormente substituída pela Assessoria Especial de Assuntos
Federativos, envolvendo também a abertura de escritórios regionais do ministério em estados
da Federação, tentativa de promover coordenação de ações do governo federal junto a entes
federados no que diz respeito a projetos de cooperação subnacionais. Como um segundo
exemplo, temos ações em prol do estabelecimento de canais de consulta com o empresariado,
que, insatisfeito com os poucos espaços junto ao governo, procuraria, em diversas ocasiões,
agir de forma independente, como no estabelecimento da Coalizão Empresarial Brasileira,
coordenada pela Confederação Nacional da Indústria em 1996.
Não é estranho vermos essa demanda da classe empresarial, especificamente porque a
temática comercial é, talvez, a que apresente maiores custos distributivos relacionados à
política externa. Na década de 1990, algumas iniciativas por parte do Itamaraty nessa seara
foram identificadas: Comitê Empresarial Permanente do Itamaraty (1992), Seção Nacional da
ALCA (1996), Fórum Consultivo Econômico e Social do MERCOSUL (1996) e o Grupo
Interministerial de Trabalho sobre Comércio Internacional de Mercadorias e Serviços (1999).
São respostas a um movimento que já vinha ocorrendo às margens do MRE, de modo a
96

articular as pressões difusas e externas a seu domínio, assim como de coordenar tantas
posturas descentralizadas.
Um questionamento que pode ser feito é o seguinte: esses são esforços de coordenação
ou de tutela? O Itamaraty estaria buscando, por esses mecanismos, efetivamente coordenar
posições e articular vozes distintas para formular posicionamentos ou estaria objetivando
minar as ações já desencadeadas por esses outros atores, por meio de estratégias de controle?
Acreditamos que ambos os questionamentos fazem sentido, tendo em vista que o MRE, por
sua estrutura historicamente enraizada e rígida a mudanças, seria incapaz de acompanhar na
mesma velocidade as transformações que vêm ocorrendo. Em virtude disso, agiria, de forma
retardada, posterior, de modo a, conformando posições com outros atores, revigorar sua
legitimidade e vigor como ente principal da política externa. Isso não afasta, contudo, a
hipótese de que, ao empreender esses esforços, o ministério também procuraria incentivar
aquelas iniciativas mais favoráveis a si e ao discurso geral da política externa, numa espécie
de tutela e incentivo àquilo que menos lhe ameaçasse.
Os interesses nacionais, portanto, não mais estariam “dados”, sendo passíveis de
modificação frente à politização crescente da política externa. “A politização ocorre quando a
coesão entre as elites ou o consenso com respeito às diretrizes de política externa desaparece,
tornando-se essa última a resultante do embate das forças político-sociais que buscam
definir”, por sua vez, os interesses nacionais (LIMA, 2009, p. 1).
Por fim, argumenta-se que, para compreendermos o grau de influência e de poder de
barganha que outros atores podem ter sobre a política externa dependemos de análise e de
comprovação empírica correspondentes. Nesta dissertação, estudamos a participação de
alguns ministérios federais no que diz respeito à agenda de cooperação em segurança
alimentar para com a África. Isso não quer dizer, sobremaneira, que as conclusões e as
hipóteses aventadas irão se repetir se analisarmos esse mesmo nicho de cooperação com
relação a outras regiões ou, mais ainda, se observarmos iniciativas diferentes de cooperação
internacional do Brasil que envolvam outros atores e agendas. O grau de influência e de
participação de outros atores dependerá da temática escolhida e do contexto a ser analisado.
Os novos tempos traduzem uma ainda tímida modificação do padrão decisório top-
down, centralizado e controlado absolutamente pelo MRE, para dinâmica menos verticalizada
e insulada. Não temos, obviamente, um processo decisório bottom-up, em que as demandas da
sociedade ascenderiam e sensibilizariam as esferas decisórias de forma a influenciar
inegavelmente a política externa. Tampouco acreditamos que esse seria o modelo ideal ou o
97

mais adequado para a condução das questões internacionais de um país em contexto de


temáticas cada vez mais interconectadas e complexas.
Ainda que o insulamento tenha sido amainado em distintos momentos da história
diplomática nacional, tendemos a acreditar que se trataram de acontecimentos pontuais e que
não transformaram em definitivo o funcionamento institucional da Casa de Rio Branco. Da
mesma forma, enquanto houve maior concordância de posições entre os grupos de opinião e
de ação no interior do MRE, maior foi a capacidade de “defesa” desse ministério contra o
assédio de atores externos, o que manteve seu poder decisório e evitou maior
horizontalização” do processo decisório.

Este insulamento, porém, tende a ser disfuncional na medida em que a agenda


externa se modifique com a introdução de novos temas e novos atores e a própria
internalização dos acordos internacionais politizem a política externa. (...) Este dado
é um indicador de que a mudança de natureza da política exterior, em função de sua
maior politização, possa induzir à modernização dos arranjos institucionais
existentes, de modo a levar em conta os novos atores e interesses domésticos com
orientação internacional (LIMA, 2005a, p. 7-8).

Não é coincidência apontarmos que isso auxiliou no raciocínio de que a coesão do


Itamaraty manteve-se mais como conveniência histórica e institucional do que por força dos
fatos. Nas duas presidências de Lula da Silva, o espaço de atuação de atores externos
ampliou-se, especialmente no que diz respeito à cooperação internacional. Era de se esperar,
se analisássemos somente as condicionalidades domésticas e a evolução histórica do MRE,
que a liberdade concedida pelo presidente ao ministro Amorim para configurar a política
externa tenderia a caracterizar um ministério eminentemente coeso e alheio às pressões
externas. Entretanto, não foi isso que ocorreu.
Os conflitos próprios ao corpo diplomático, entoados na mídia por meio da opinião de
ex-embaixadores e de ex-ministros, abalaram essa capacidade decisória. Isso aconteceu tanto
pela influência de atores externos ao MRE, quanto por sua perda relativa de legitimidade, em
virtude do fato de ser visto menos como uma burocracia apartada das demais e mais como um
locus em que barganhas, disputas de preferências, de estratégias de conquista da agenda e de
influência sobre os decisores tomaram parte.
De qualquer forma, o que se observa empiricamente com o desenvolvimento de
projetos de cooperação, pela ênfase recente nas práticas de cooperação sul-sul nas gestões
presidenciais de Lula da Silva, é a participação mais acentuada de outros atores que não
98

somente o Itamaraty na política externa. Em menor grau, na sua formulação, arena ainda
muito presa ao MRE; em maior grau, na sua execução.

2.4 Rupturas intra-MRE: os grupos burocráticos no interior no ministério

A cooperação internacional desenvolvida pelo Brasil no período hodierno guarda


relação com duas dinâmicas. A primeira delas foi discutida até o momento, envolvendo
pressões por maior participação de outros atores que não o MRE – ministérios, agências
governamentais, sociedade civil, etc. - em processos de cooperação internacional. Com esses
atores ganhando maior influência relativa na configuração da política externa, notadamente
em sua execução, o Itamaraty obrigou-se a agir a fim de manter seu poder institucional e sua
legitimidade como unidade decisória e agente da política externa. Caracterizou-se a existência
de rupturas no histórico processo de insulamento frente aos demais atores do aparelho
burocrático e à sociedade civil como um todo.
Já segunda dessas rupturas é a referente à existência, mais factível na transição do
governo de FHC para o de Lula da Silva, e mais especificamente nos dois mandatos
presidenciais desse último, de correntes de opinião e de ação distintas no interior do
Itamaraty. Esse fenômeno é indicativo do fato de que não mais existe plena convergência
nesse ministério. Se anteriormente o argumento da coesão era mais forte, e ainda que hoje ele
se mantenha em discursos oficiais, entrevistas e publicações, essa coesão parece ser mais
instrumento retórico que realidade. Tal ruptura intra-MRE é de fundamental importância, pois
conduziu a diferentes ênfases de política externa e a distintas agendas a serem perseguidas.
Incluímos essa segunda dinâmica neste capítulo para assegurar o correto encadeamento lógico
da argumentação traçada até o momento, pois analisar as agendas atreladas às práticas
cooperativas atuais sem considerar os grupos responsáveis por formulá-las é lacuna que
queremos evitar.
Veremos que, com a predominância da corrente dos institucionalistas pragmáticos
durante a gestão de FHC, determinada foi a visão concernente à inserção internacional e às
parcerias do país. Isso teve resultados práticos que, com a transição para o governo de Lula da
Silva, não necessariamente foram mantidos. Algumas dessas posturas foram revistas enquanto
que outras foram modificadas e ganharam maior ênfase, processo que foi atribuído à presença
99

do grupo dos autonomistas no topo da hierarquia do Itamaraty. Exercendo influência na


configuração dessa não linearidade, tem-se, também, a presença da corrente do Partido dos
Trabalhadores (PT). Por ser oriunda fundamentalmente de um partido político, o mesmo do
presidente da república, essa corrente é uma amostra interessante de como um ator externo ao
MRE conseguiu fazer valer algumas de suas demandas, ao influenciar posições e ações do
Itamaraty, marca da existência de certa porosidade burocrática.
A divergência de posicionamentos no interior do MRE é importante porque quebra o
argumento de continuidade plena da política externa, argumento que tende a identificá-la
como política de Estado e que, por isso, está mais próximo dos patamares teóricos realistas de
análise de política externa. Entendemos que a política externa não é imune a mudanças e
tampouco é sinônimo de “política de Estado”. Conforme argumentamos no primeiro capítulo
desta dissertação, nosso pensamento é o de que a política externa é uma política pública,
característica essa que vem sendo ressaltada pela participação e pelo interesse mais ativo de
atores outros por assuntos que correm no interior do MRE e por possibilidades propiciadas
pela cooperação internacional.
Conforme aponta M. Saraiva (2010a), o processo de formulação de política externa no
Brasil é marcado, grosso modo, pela continuidade desde o período da Política Externa
Independente (1961-1964), com exceção do hiato de maior intervenção presidencial durante o
mandato de Castelo Branco (1964-1967), até o governo de Collor de Mello. Nesse período, o
Itamaraty teria concentrado o processo de formulação da política externa em torno de
princípios como pacifismo, não intervenção, igualdade soberana, respeito ao Direito
Internacional, valores esses que comporiam o acervo diplomático brasileiro e teriam
contribuído para manter o insulamento do MRE.
Essas crenças, historicamente formuladas, embasaram comportamentos internacionais
normalmente associados a preceitos realistas, com ações externas de caráter em grande
medida hobbesiano, voltados para a obtenção de ganhos relativos, mas, em certos momentos,
também grotiano, se orientando para a determinação de vantagens absolutas e mais
generalizadas (PINHEIRO, 2000). Tomando por base os escritos de Lima (1990), M. Saraiva
(idem) demonstra que o Brasil adota uma inserção internacional multifacetada, ora podendo
atuar como free rider, ora buscando remodelar as normas vigentes com o intuito de beneficiar
a si e aos países do sul. Acrescenta-se a isso a dimensão regional da política externa, em que a
construção de liderança no âmbito mercosulino ocupa lugar prioritário.
100

Em virtude disso, a perspectiva de continuidade convive com descontinuidades, ou


seja, os vetores da continuidade, amplamente amparados em premissas de longa data e com
grande flexibilidade adaptativa, convivem com mudanças de ênfase e de programa quanto ao
modo de operacionalizar as principais agendas externas do país. Nesse sentido, ao se observar
a transição presidencial de FHC para Lula da Silva, ver-se-á que, ainda que os elementos
axiológicos da política externa estejam presentes em ambos os momentos, eles não engessam
a atuação diplomática brasileira, podendo ser atualizados de acordo com os interesses e as
visões do grupo com maior ascendência sobre o processo decisório no interior do Itamaraty.
Não é coincidência que a predominância dos institucionalistas pragmáticos e dos
autonomistas, cada qual a seu tempo, tenha resultado em inserções internacionais distintas.
Além disso, quando formos analisar a cooperação brasileira (capítulo 3), em linhas
gerais, e a cooperação brasileira em segurança alimentar para com a África (capítulo 4), em
específico, veremos que a transição presidencial de FHC para Lula da Silva foi causalidade
ímpar, determinando mudanças perceptíveis. A predominância dos autonomistas nas gestões
de Lula da Silva engendrou posturas diferentes, no que tange à cooperação, em especial no
que diz respeito à cooperação sul-sul, o que determinou ações inovadoras em política externa
e o fomento a parcerias que não vinham recebendo a mesma atenção no momento anterior.
Ademais, de um relativo silêncio marcado por iniciativas pontuais no período FHC, a África
passaria a ser alicerce estratégico na política externa brasileira de 2003 a 2010.

2.4.1 Institucionalistas pragmáticos e suas agendas

Os institucionalistas pragmáticos são uma corrente de pensamento e de ação no


interior do MRE que obteve maior ascendência sobre a formulação e o conteúdo da política
externa durante os dois mandatos presidenciais de FHC. Suas posturas influenciaram a
inserção internacional do Brasil e as principais agendas de política externa no período de 1995
a 2002. Vale salientar que, ainda que os enquadremos cronologicamente nesse espaço de
tempo, quando sua importância relativa foi maior, os institucionalistas pragmáticos tiveram
sua consubstanciação como grupo no contexto de democratização e de abertura relativa da
101

economia, no passar dos anos 1980 para a década de 1990, e continuaram com poder de
influência nos anos subsequentes107.
Segundo Miriam Saraiva (2010), esse grupo consolidou-se durante a gestão de Luiz
Felipe Lampreia à frente da chancelaria. Quanto à agenda econômica, é favorável a um
processo de liberalização condicionada da economia. Em espectro partidário, seus quadros
diplomáticos encontram identidade, em termos gerais, principalmente no PSDB e também no
DEM. A denominação dessa corrente de pensamento e de ação como institucionalistas
pragmáticos é referente à prioridade que confere à adesão do Brasil aos principais regimes
internacionais em vigência, como os de não proliferação, meio ambiente, desarmamento,
comércio, direitos humanos e desenvolvimento108. Isso não quer dizer, como o adjetivo
pragmático indica, que essa participação seja feita de forma acrítica, sendo, ao contrário, é
vislumbrada com vistas a prover ganhos reais ao país.

Sem chegar a negar algumas premissas básicas do realismo, como a visão do sistema
internacional como anáquico, o princípio da auto-ajuda e a centralidade – embora
não a exclusividade – do Estado nas relações internacionais, a política externa do
Brasil reveste-se de uma visão que justifica e estimula a adesão aos regimes
internacionais e às instituições que os incorporam como solução para os problemas
de ação coletiva (PINHEIRO, 2000, p. 321).

A presença do Brasil nos principais regimes internacionais, atuando de forma


cooperativa e propositiva na construção e na manutenção das normas emanadas desses
regimes seria uma forma de o país fazer valer seus interesses. Ao invés de optar pelo
isolamento internacional, muito do qual sustentado pela ideia de soberania, a postura
institucionalista pragmática é a de que, em um sistema internacional em transição e no qual
temas complexos exigem maiores interações entre os Estados, o estabelecimento de regras
válidas a todos é a estratégia mais adequada. Em lugar de se inserir internacionalmente
pautado pela lógica de autonomia pela distância, marca da política externa até os anos de José
Sarney na presidência, dever-se-ia apostar em uma autonomia pela integração (VIGEVANI;
OLIVEIRA; CINTRA, 2003).

107
Vigevani, Oliveira e Cintra (2003) identificam a evolução do grupo dos institucionalistas pragmáticos de
forma paulatina, tendo-se ampliado no final da gestão do chanceler de José Sarney, Abreu Sodré, continuado na
chancelaria de Francisco Rezek, na presidência de Fernando Collor de Mello, e se “refinado” durante a gestão de
Celso Lafer, em 1992. O grupo viria a ganhar proeminência nos quadros do Itamaraty durante a chancelaria de
Luiz Felipe Lampreia, já durante Fernando Henrique Cardoso.

108
Os chamados “novos temas”, articulados com as teses de interdependência complexa desenvolvidas por
Keohane e Nye (1989).
102

A autonomia, hoje, não significa mais “distância” dos temas polêmicos para
resguardar o país de alinhamentos indesejáveis. Ao contrário, a autonomia se traduz
por “participação”, por um desejo de influenciar a agenda aberta com valores que
exprimem tradição diplomática e capacidade de ver os rumos da ordem internacional
com olhos próprios (FONSECA JR., 1998, p. 368).

É interessante notar que esses valores tradicionais não foram alterados de forma
substantiva. Historicamente estabelecidos – muito do qual em virtude da capacidade
discursiva do Itamaraty -, os objetivos continuariam em torno de princípios basilares da
política externa, como a autonomia, o universalismo, o destino de grandeza e a utilização da
política externa como instrumento para a promoção do desenvolvimento109. A mudança
observável na estratégia dos institucionalistas pragmáticos era sentida nos meios de ação e
não nos fins, argumento institucional de que existiria mudança com continuidade, o que
remonta à estratégia discursiva do ministério para fazer valer seu papel privilegiado como
condutor da política externa.

Essa postura, porém, não significa uma aliança a priori com países industrializados,
mas sim a identificação da regulamentação das relações internacionais como um
cenário favorável ao desenvolvimento econômico brasileiro uma vez que as regras
do jogo devem ser seguidas por todos os países incluindo os mais ricos (SARAIVA,
M., 2010, p. 47).

Esse enfoque na dimensão grotiana do multilateralismo, de acordo com Ruggie


(1993), é baseado em três elementos básicos: (1) os objetivos das partes participantes dos
regimes multilaterais devem ser indivisíveis, como, por exemplo, os afeitos aos direitos
humanos; (2) os princípios gerais de conduta devem prevalecer para todos os membros, com
normas privilegiando aspectos universais e não exclusivistas; (3) deve-se fazer valer a ideia de
reciprocidade difusa, ou seja, os ganhos aos envolvidos na vivência multilateral
consubstanciam-se ao longo do tempo e não de forma imediata em todas as arenas negociais.
Ao contrário da lógica do realismo periférico da diplomacia argentina, a visão dos
institucionalistas pragmáticos não era de subserviência aos interesses das grandes potências,
mas de o Brasil manter-se autônomo, ainda que de forma integrada aos regimes
internacionais. “Este cenário abriria espaços para o Brasil – numa busca de mecanismos para
ampliar sua capacidade de atuação internacional – adotar uma posição que não significasse

109
Vigevani, Oliveira e Cintra (2003) identificam eixos tradicionais da política externa que foram seguidos
durante os dois mandatos de FHC: pacifismo, respeito ao Direito Internacional, defesa da autodeterminação e da
não intervenção e o pragmatismo.
103

nem alinhamento aos Estados Unidos e nem postura de free rider” (SARAIVA, M., idem).
Em termos concretos, porém, a aposta mostrou-se insuficiente para as expectativas brasileiras.
Se, no âmbito multilateral, o caráter globalista grotiano da política externa 110 mostrou-
se mais claro, na esfera regional, ao contrário, observou-se menor ímpeto para o
desenvolvimento de uma soberania compartilhada. Em virtude do diferencial de poder real
entre as nações da América do Sul, com claro diferencial em favor do Brasil, erigir normas e
fortalecer regimes em âmbito subr-regional poderia ser fator de engessamento à capacidade de
ação do país. Dessa forma, observou-se a existência de uma dicotomia de comportamentos,
que iria de posturas mais parelhas à visão grotiana para outras, mais afeitas ao realismo,
ligadas à construção de liderança.
Por isso, quando se fala da política externa brasileira para a América do Sul durante os
anos de FHC, o que se viu foram iniciativas de integração embasadas nos conceitos de
estabilidade democrática e de desenvolvimento da infraestrutura, como são prova,
respectivamente, o protocolo mercosulino de Ushuaia (1997) e o planejamento em eixos da
IIRSA (2000). Salienta-se que o modelo de integração previsto deveria possibilitar maiores
capacidades competitivas aos países da América do Sul em cenário de crises econômicas e
financeiras recorrentes, e o MERCOSUL deveria operar sob o manto do regionalismo aberto,
como uma plataforma para a inserção do Brasil. O eixo regional da política externa não
deveria obstaculizar, entretanto, a liberdade de ação do país em outras esferas negociais.
As relações com os parceiros da América do Sul ganhariam maior ímpeto no segundo
mandato de FHC, em que se articulou discurso em prol da convergência das agendas de
democracia, de desenvolvimento e de integração. O objetivo era mostrar que o país não só
atuava de forma convergente às normas internacionais, como também promovia a estabilidade
de seu entorno regional, o que lhe legitimaria a participar de diversas instâncias da
governança internacional. Esperava-se que o Brasil se comportasse como global player, no
que tange a sua atuação sem amarras e com foco nos foros multilaterais, e como global
trader, por identificar-se como país que buscava ampliar e diversificar seus contatos
comerciais.
No âmbito das parcerias bilaterais, houve privilégio para as relações com os parceiros
que pudessem garantir insumos ao desenvolvimento nacional, o que era mais comumente
relacionado aos países desenvolvidos. Em virtude disso, as parcerias com os atores do Sul

110
Vigevani Oliveira e Cintra (2003) caracterizam a postura internacional do Brasil como intermediária entre o
paradigma grotiano e o paradigma kantiano. Pinheiro (2000) interpreta a autonomia pela participação como
tributária de uma conotação mais principista e moral da política externa.
104

tiveram menor ênfase na prática da política externa. O maior destaque coube às parcerias com
grandes países emergentes, como China, Índia e África do Sul, além da Rússia, que mais tarde
constituiriam o BRICS. Além disso, como veremos, a política externa brasileira para a África
foi marcada por um incômodo silêncio e relativo distanciamento. Afora África do Sul,
Angola, Moçambique e os países exportadores de petróleo, as relações com o continente
africano foram de baixo perfil político e não ocuparam destaque na agenda de política externa.
Ao longo do segundo mandato de FHC e, principalmente, no seu ocaso, observou-se
maior influência relativa dos autonomistas na configuração da política externa, corrente que
passaria a ter posição central na gestão de Lula da Silva.

2.4.2 Autonomistas e suas agendas

Além dos institucionalistas pragmáticos, a outra corrente de opinião e de ação


comumente apontada como predominante no interior da burocracia do Itamaraty é a dos
autonomistas111. Esse grupo teve ascendência na configuração da política externa durante os
dois mandatos de Lula da Silva e influenciou mudanças de rumos em algumas agendas da
política externa, como a de cooperação internacional, além das relações com o continente
africano. Assim como ocorre com os institucionalistas pragmáticos, a gênese deste grupo não
é concomitante à transição na chefia de Estado. Suas demandas não são novas no pensamento
diplomático brasileiro, com algumas das ideias principais defendidas por eles sendo
identificáveis desde os anos de 1930. O que se observa, porém, é que sua relevância conduziu
a alterações perceptíveis no comportamento internacional do país e no processo decisório em
política externa entre 2003 e 2010.
Diferentemente dos institucionalistas pragmáticos, os autonomistas são mais
identificados com a defesa de teses desenvolvimentistas e, em termos políticos, mais
próximos de grupos nacionalistas, esses não necessariamente quadros do PT, mas que
mantiveram interlocução com o Planalto durante os dois mandatos presidenciais de Lula da
Silva. Além disso, “dão maior destaque para as crenças sobre a autonomia, o universalismo e,

111
M. Saraiva (2010) aponta que os autonomistas também são conhecidos como “nacionalistas” (p. 48).
105

acima de tudo, o fortalecimento da presença brasileira na política internacional” (SARAIVA,


M., 2010, p. 48).
À semelhança da corrente de opinião e de ação predominante no período FHC, os
autonomistas entendem que a participação nacional junto aos principais regimes não deve ser
acrítica; são céticos, porém, quanto aos ganhos possíveis dessa adesão, a julgar pelos
resultados colhidos de 1995 a 2002 e pelas escolhas de política externa que tenderam a
privilegiar mais alguns parceiros em detrimento de outros. Por isso, argumentam a
necessidade de diversificação e de adensamento das parcerias externas, sem exclusivismos, a
fim de serem aumentados a capacidade negocial e os ganhos do país. Nesse sentido, afastam-
se do pensamento institucionalista pragmático de que, com a adesão a normas internacionais,
o perfil internacional e a barganha brasileira necessariamente seriam elevados, tendo em vista
ganhos de legitimidade.
O ex-chanceler, Celso Amorim, e o ex-secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro
Guimarães, são identificados como os principais responsáveis pela ascensão e pela
consolidação da influência dos autonomistas. Algumas das principais agendas desse grupo,
como, por exemplo, a defesa da autonomia; da diversificação de parceiras; do relacionamento
com países do sul geopolítico; e da temática do desenvolvimento, encontram relação com
momentos dos mais afirmativos da política externa brasileira, como a Política Externa
Independente (1961-1964) e o Pragmatismo Responsável e Ecumênico (1974-1979).
No momento de predominância dos autonomistas, pode-se dizer que houve tendência a
flexibilizar a perspectiva multilateral grotiana em prol de posturas mais hobbesianas. Isso, é
claro, quando tomamos a política externa em termos gerais. Pode-se afirmar que, por ter
auferido crescimento econômico e projeção internacional relativamente mais representativos
que nos dois mandatos de FHC112, o Brasil de Lula da Silva tinha maior espaço de manobra
para assumir posições defensivas – muitas das quais por meio da formalização de coalizões de
geometria variável com outros países em desenvolvimento – e contestadoras da ordem
vigente. Trata-se da transição entre um pensamento de autonomia pela participação para
outro, mais propositivo, de autonomia pela diversificação (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007).
Durante a predominância dos autonomistas, houve mudança no entendimento sobre a
identidade internacional do Brasil. Se, anteriormente, o país era identificado como uma nação
que compartilhava dos principais valores do Ocidente, especialmente a democracia, a política
externa subsequente passaria a delinear forte lógica de coalizões sul-sul, com vistas a ampliar
112
Não ignoramos que essa elevação de perfil internacional é decorrente, também, das reformas
macroeconômicas estabilizadoras da economia realizadas após o Plano Real.
106

a participação em fóruns internacionais e objetivando a democratização dos principais temas


da agenda contemporânea, atendendo, além de seus próprios interesses, aos anseios e às
necessidades dos países em desenvolvimento. “A diplomacia do governo Lula caracterizou-se
pelo esforço articulado visando tornar o país uma liderança regional e incrementar sua
ascensão para a posição de potência global” (SARAIVA, M., 2010, p. 49).
Nesse período, o agrupamento do BRICS, tratou-se de espaço para legitimação de
pleitos e de posições da diplomacia brasileira. Por apresentar-se como locus para a
dinamização do comércio e dos investimentos em âmbito sul-sul, a coalizão de geometria
variável coaduna-se com a lógica de diversificação de parcerias e de internacionalização de
empresas brasileiras. Além disso, apresenta oportunidades no campo da cooperação em
ciência e tecnologia e na defesa da retórica – e também da prática, como os contatos entre
bancos de desenvolvimento indicam – da temática do desenvolvimento, legitimando o país
como uma das lideranças do sul em contexto de difusão de poder após a crise de 2008.
Ao identificar seus interesses como sendo comuns aos dos demais países em
desenvolvimento, o Brasil atua no sentido de se legitimar como nação que busca ordem
marcada por multilateralismo de reciprocidade, algo mais próximo do que Ruggie (1993)
chamara de reciprocidade difusa, com ações concretas, nitidamente as de cooperação sul-sul
(ALMEIDA, 2004). Se o componente grotiano está presente nesse posicionamento, é clara,
também, a existência de postura hobbesiana, pois, ao agir em determinadas circunstâncias em
prol de revisionismo soft e por meio das coalizões de geometria variável, o país objetiva
reformar as normas vigentes de acordo com suas próprias perspectivas113.
De acordo com a visão dos autonomistas, o Brasil deve mostrar-se como uma
liderança positiva, que, ao compartilhar interesses com um número representativo de países,
teria condições promover reformas em prol de políticas mais distributivas de comércio
internacional e de combate à fome e à pobreza. A candidatura ao assento permanente do
Conselho de Segurança das Nações Unidas, reforçada durante os dois mandatos de Lula da
Silva, seria uma forma de operacionalizar esses interesses ditos universais, que refletem os
anseios da diplomacia pátria.
Quanto às iniciativas regionais, a diferenciação em relação aos institucionalistas
pragmáticos diz respeito ao fato de que, no período FHC, o foco da política externa era a
América do Sul. Já no período de Lula da Silva, a dimensão sul-americana da política externa
convive com recente redirecionamento de esforços para a América Central e para o Caribe, a

113
Burges (2012) discute essa e outras estratégias da diplomacia brasileira durante Lula da Silva.
107

exemplo da ênfase no relacionamento com Cuba; da liderança brasileira da MINUSTAH, no


Haiti; e da entrada da Venezuela no MERCOSUL.
No âmbito mercosulino, especialmente a partir do segundo mandato, houve alteração
da lógica de integração de regionalismo aberto para a busca de integração produtiva, com
iniciativas em prol da mitigação de assimetrias por meio do Fundo para a Convergência
Estrutural e Fortalecimento Institucional do MERCOSUL (FOCEM). Foi reforçada a agenda
social, com a criação do Plano Estratégico de Ação Social do MERCOSUL e do Estatuto da
Cidadania, o que denota que o projeto de construção de liderança na região suplanta as
aspirações meramente comercialistas do início da experiência integradora. Quanto à
perspectiva institucional, os autonomistas preservaram muito do defendido pelos
institucionalistas pragmáticos, de certa aversão à institucionalização e à criação de
mecanismos de supranacionalidade.
No âmbito das parcerias bilaterais, aponta-se que a principal diferença com relação aos
institucionalistas pragmáticos, no que diz respeito ao relacionamento com os Estados Unidos,
é que os autonomistas atuam com viés mais competitivo quanto à configuração de poder na
América do Sul. Se não há enfrentamentos, o Brasil atua sem amarras hemisféricas, tentando
prover estabilidade às relações sub-regionais. Entretanto, “a participação mais autônoma do
Brasil na política internacional e os impulsos reformistas da ordem internacional criam novas
áreas de atrito entre os dois países” (SARAIVA, M., 2010, p. 49), a exemplo de dissensos no
campo da segurança internacional. No âmbito geral, contudo, a relação é marcada por um
diálogo estratégico, com maior equilíbrio no tratamento a temas de interesse comum.
À diferença do período FHC, houve busca mais enfática no adensamento de parcerias
bilaterais com atores do sul geopolítico. Isso não significou, entretanto, que foi tomada uma
escolha de política externa em detrimento da outra, visto que foi mantido alto nível político e
diplomático tanto com os parceiros tradicionais como com os principais atores do mundo em
desenvolvimento.
As relações com a China, apesar de envolverem desafios a serem superados,
corroboram o enfoque na parceria estratégica com países emergentes que possam prover
insumos ao desenvolvimento do país e na conformação de maior poder de barganha em
negociações internacionais, dentro de uma ordem crescentemente multipolar. Em 2011, o
Brasil foi o maior destino de investimento estrangeiro direto chinês no mundo, e o fluxo de
comércio atingiu US$ 77 bilhões, com o país tornando-se o maior parceiro comercial do
Brasil desde 2009.
108

Durante a predominância dos autonomistas, a cooperação sul-sul tornou-se mais


claramente instrumento de política externa, por meio de crescente internacionalização de
políticas públicas domésticas. Esse espaço, decididamente maior, concedido à cooperação,
guarda relação com duas dinâmicas concomitantes: o aumento das práticas de cooperação
internacional levadas a cabo por múltiplos atores domésticos, o que remonta a nosso
argumento de insuficiência decisória do modelo de Estado de caixa preta; e uma segunda
dinâmica, em que os decisores intra-MRE, tendo consciência de que tais processos vinham
ocorrendo e se avolumando, percebem que o Itamaraty deveria se posicionar a fim de se
manter como autoridade em política externa.
Nos dois mandados presidenciais de Lula da Silva, houve a conjugação dessas duas
vertentes. Associadas a elas, viu-se uma maior porosidade burocrática – maior participação de
outros ministérios em projetos de cooperação; menor insulamento relativo do Itamaraty; e
maior influência de uma corrente de opinião e de ação no interior do MRE, ainda que,
também podendo ter atuado de forma reativa frente ao rumo dos acontecimentos. Essa
convergência de fatores mostra que não há completa sinergia decisória e monolitismo de
posicionamento nesse ministério.

2.4.2.1 A influência da corrente do partido dos trabalhadores

Durante o período compreendido entre 2003 e 2010, observou-se, além da


predominância decisória da corrente de opinião e de ação dos autonomistas no interior da
burocracia do Itamaraty, influência de quadros do PT, não por acaso, a filiação política do
presidente da república. Inicialmente, o que se distingue do período anterior de vigência
presidencial dos institucionalistas pragmáticos é que, nesse segundo momento, a porosidade
decisória e burocrática no MRE ficou mais evidente.
Ainda que a corrente do PT não seja uma corrente de opinião e de ação tal qual as
outras duas e tampouco tenha prerrogativas constitucionais para formular a política externa
brasileira, sua ligação com a filiação partidária do presidente Lula da Silva e sua influência
temática e pontual junto aos autonomistas é fator a ser notado. Além de indicar o relativo
questionamento ao insulamento do MRE, a que já nos referimos, a presença de quadros do PT
109

também denota que o próprio processo de tomada de decisões foi afetado. Conforme aponta
M. Saraiva (2010), trata-se de um grupo com caráter mais ideológico e com poucos vínculos
históricos com a diplomacia, mas que estabeleceu um diálogo importante com o Itamaraty e
exerceu influência em decisões de política externa, notadamente sobre temas sul-americanos.
A concentração do processo decisório em política externa, comum à formação
histórico-institucional do MRE, foi relativizada, portanto, com a convocação de Marco
Aurélio Garcia como assessor de relações internacionais da presidência da república. Então
secretário de relações internacionais do PT, Garcia teria interlocução sobre algumas temáticas
de política externa. Sob ponto de vista crítico, poder-se-ia interpretar sua postura dentro do
governo como forma de o presidente, ao convocá-lo, buscar arregimentar e controlar a
configuração da política externa.

A agenda proposta para a política externa brasileira a partir de 2003 retomaria, em


suas grandes linhas, as diretrizes contidas no programa do Partido dos Trabalhadores
e destacaria a necessidade de reforçar uma política sul-sul com países como a China,
Índia, Rússia e África do Sul, bem como os países de língua portuguesa. De modo
geral, a nova diplomacia proposta não se distinguiria, na sua essência, da
tradicionalmente adotada pelo Itamaraty, não fosse uma ênfase maior colocada na
defesa dos interesses nacionais e da soberania, sobretudo em nível regional, de modo
a introduzir políticas comuns não só para o desenvolvimento, mas que oferecessem
soluções aos graves problemas sociais latino-americanos (FILHO, 2007, p. 222).

Esse grupo, cuja origem está em lideranças políticas e acadêmicas que colaboraram na
campanha presidencial e/ou ganharam espaços na vigência do governo, pensa a integração
sul-americana do ponto de vista do adensamento das relações sociais e políticas do
subcontinente, de forma a fortalecer uma identidade sul-americana comum. Os projetos
relacionados ao MERCOSUL social, a criação do FOCEM, do Parlamento do MERCOSUL,
além de UNASUL e CELAC, podem ser relacionados com essa postura identitária e
ideológica no conteúdo de política externa.
É tributária da corrente petista a mudança de comportamento brasileiro no que diz
respeito à institucionalização, ainda muito incipiente, da integração regional sul-americana. É
curioso notar que, como nem os autonomistas e nem os institucionalistas pragmáticos
defendem claramente a criação de mecanismos de governança supranacionais, a influência
dos quadros do PT, centralizados em Garcia e no presidente Lula da Silva, foi fundamental
para que projetos como o FOCEM saíssem do papel. Nesse sentido, posturas eminentemente
hobbesianas das duas correntes intra-MRE para o escopo regional foram amainadas pela
influência de um ator externo ao Itamaraty.
110

Isso nos remete à ideia de que houve relativa maior porosidade decisória no Itamaraty
durante o período de Lula da Silva, a que é marco a influência da corrente petista nos assuntos
de integração regional. Queremos rememorar aqui que não acreditamos que essa
transformação de perspectiva se deu somente por causa da influência dessa corrente.
Entretanto, ter a sua presença, ainda que no plano das ideias, no processo decisório
intraburocrático do MRE indica que houve abertura relativa a atores de fora do círculo
tradicional de tomada de decisões em política externa, composto pelo presidente da república
e pelo Itamaraty.
“Esta posição teve influência sobre os autonomistas do Itamaraty, convergindo no
sentido de um comportamento brasileiro mais proativo na cooperação com os países vizinhos,
e na aceitação das diferentes opções políticas que se abrem na região” (SARAIVA, M., 2010,
p. 51). O pensamento de solidariedade difusa, que parece não negar a ideia de autonomia, cara
tanto aos autonomistas como aos institucionalistas pragmáticos, parece alterá-la, no sentido de
que, como advoga avanço nas práticas integracionistas, vê a autonomia também como
compartilhada. O Brasil não seria autônomo frente aos seus vizinhos, preservando seus
espaços de atuação no sistema internacional; ao contrário, com os esforços no âmbito sul-
americano e a coesão proveniente daí, a autonomia do Brasil seria reforçada e estabelecida em
bases legítimas quanto aos países fronteiriços.
Além da perspectiva sul-americana, essa corrente também contribuiu para a
internacionalização das políticas públicas desenvolvidas em âmbito doméstico em projetos de
cooperação com regiões como a África, pois não só objetivava promover coesão nacional
frente aos projetos empreendidos sob sua bandeira política, como também buscava
legitimidade doméstica e externa para suas iniciativas. Nesse sentido, a cooperação em
segurança alimentar com o continente africano, por exemplo, pode ser, em parte, atribuída à
presença desse ente no processo decisório de política externa brasileira.

2.5 África na política externa114: do silêncio atlântico à ênfase cooperativa

114
Para histórico detalhado sobre as relações Brasil-África, ver: J. Saraiva (1997; 2012), Alencastre (1980);
Costa e Silva (2003); Penha (2011).
111

Em seu discurso de posse no Congresso Nacional, o presidente Lula da Silva recorreu


à relevância da África para a inserção internacional do Brasil. “Reafirmamos os laços
profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa disposição de contribuir
ativamente para que ele desenvolva suas enormes potencialidades”115.
O retorno do continente como tema relevante para a agenda de política externa
brasileira ocorreu depois de quase uma década de ações de baixo perfil político para com os
países da região. Durante os anos de 1990, houve diminuição do número de diplomatas
brasileiros na África e deslocamento dos mesmos para postos considerados mais efetivos para
a inserção externa do Brasil, notadamente aqueles localizados em países desenvolvidos e os
ligados às instituições internacionais, o que remonta à ênfase de política externa empreendida
pelos institucionalistas pragmáticos. Ainda que algumas iniciativas para o continente tenham
sido realizadas ao longo dos dois mandatos da gestão FHC, elas não enunciavam
essencialidade à relação.
As opções de política externa durante esse período ocasionaram impacto nas relações
com o mundo em desenvolvimento e em especial com o continente africano. O baixo perfil
político no contato com a região revelou-se na escolha de iniciativas pontuais, especialmente
para com a África do Sul e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Houve a
formalização dos Acordos de Pretória e do Acordo-Quadro entre MERCOSUL e a África do
Sul, a contribuição para missões de paz em Angola e em outras regiões, além do sucesso na
iniciativa de licenciamento compulsório de fármacos na OMC, fruto de esforços capitaneados
por Brasil e Índia, o que constituiu um dos pilares do Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África
do Sul (IBAS). Cita-se, também, o aumento relativo da presença cultural brasileira na África,
principalmente por meio das novelas e de igrejas evangélicas.
Entretanto, ao realizarmos análise retrospectiva, observa-se que houve um equívoco de
fins na política externa para a África. A postura institucionalista pragmática levou à
diminuição do ímpeto da política de substituição de importações e de incentivo às
exportações, uma das bases históricas da parceria com o continente africano, o que ocasionou
certa perda de propósito no relacionamento.

A reversão do comércio exterior, amparado no preconceito de que certo


protecionismo do mercado interno emperrava o crescimento econômico e de que o
comércio exterior perdera sua função de gerar saldos, mataram as matrizes que
davam materialidade à política atlântica do Brasil. (...) A erosão do modelo
universalista de inserção internacional do Brasil substituiu a África pelo Mercosul,

115
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u44275.shtml, acesso em 21/07/2011.
112

quando o ideal teria sido manter a África e abrir a brecha do Mercosul (SARAIVA,
J., 2002, p.11).

O conteúdo restrito da relação fica patente na análise das viagens presidenciais de


FHC ao continente. Em seus oito anos de mandato, FHC realizou apenas duas visitas oficiais
bilaterais à África: uma para Angola e outra para a África do Sul, ambas em 1996. Em âmbito
de visitas relacionadas a encontros multilaterais, houve uma a Moçambique, em cúpula da
CPLP, em 2000, e outra à África do Sul, durante a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Sustentável, em 2002116. Os dados enunciam a pouca relevância dos países da região para os
interesses brasileiros, o que foi largamente modificado na presidência de Lula da Silva. Com
outra percepção, a atenção voltou-se para as amplas possibilidades da relação.
Para efeito comparativo, de 2003 a 2010, o presidente Lula realizou 28 viagens
oficiais de caráter bilateral a países do continente africano, número atrás somente de América
do Sul (62) e de Europa (39)117. Dessas 28 viagens, observa-se que o presidente visitou 23
países da África, número que corresponde praticamente à metade dos membros da União
Africana, num total de visitas que supera o somatório das realizadas por todos os presidentes
anteriores. Houve, também, a reversão da política de fechamento de embaixadas, com a
abertura ou reabertura de representações brasileiras em 17 países, o que denota o retorno da
dimensão atlântica à concepção universalista da política externa.
Houve necessidade de aproximação e de cooperação, o que refletiu em nova postura,
baseada em cálculos político, econômico e cultural/imaterial. Como consequência, operou-se
um salto qualitativo na relação em quadro e houve aumento expressivo de ações de caráter
multidimensional, com apoio da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), o que garantiu

116
Dados disponíveis em: http://www4.planalto.gov.br/informacoespresidenciais/fernando-henrique-
cardoso/viagens, acesso em 26/04/2013.

117
Dentre os países africanos que o presidente visitou em seus dois mandatos, estão: África do Sul (3 visitas),
Líbia (3), Moçambique (3), Angola (2), Cabo Verde (1), Gana (1), Nigéria (1), São Tomé e Príncipe (1), Argélia
(1), Benin (1), Botsuana (1), Burkina Faso (1), Camarões (1), Congo (1), Egito (1), Gabão (1), Guiné-Bissau (1),
Guiné Equatorial (1), Namíbia (1), Quênia (1), Senegal (1), Tanzânia (1) e Zâmbia (1). Para este trabalho, por
questões metodológicas e documentais, não foram contabilizadas as visitas multilaterais durante o período de
Lula da Silva, classificação do Ministério das Relações Exteriores para as visitas em que não houve nenhum
registro de encontro com autoridades locais. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/temas/balanco-de-
politica-externa-2003-2010/visitas-internacionais-do-presidente-lula-e-visitas-ao-brasil-de-chefes-de-estado-e-
de-chefes-de-governo-2003-a-2010/view, acesso em 26/04/2013.
113

certa internacionalização de políticas setoriais. A temática do desenvolvimento tornou-se a


tônica desse novo momento118.
Nesse sentido, uma das principais linhas de cooperação técnica junto à África119
envolveu, na predominância dos autonomistas no processo decisório do MRE, os países de
língua oficial portuguesa (PALOP). Dentre as iniciativas encetadas, está, por exemplo, o
estabelecimento da fábrica de medicamentos antirretrovirais da Fundação Oswaldo Cruz
(FIOCRUZ), em Moçambique, onde também se situa o primeiro escritório internacional da
FIOCRUZ, criado em 2008 e com objetivo de produção comum de vacinas. Esse projeto visa
a auxiliar a estruturação de projetos de saúde no país e também prevê a formação de recursos
humanos, com cursos de capacitação em doenças infectocontagiosas.
Além disso, no campo da cooperação em saúde, atualmente, o Brasil possui 53 atos
bilaterais com 22 países; 5 memorandos de entendimento; 1 acordo de cooperação na área
sanitária e fitossanitária com Moçambique; 31 ajustes complementares; 10 protocolos de
intenção de cooperação; 4 programas executivos; e 1 carta de intenções sobre cooperação. Na
área de educação, há 55 atos bilaterais firmados, sendo destaque o Programa de Estudantes-
Convênio de Graduação (PEC-G), em que várias universidades privadas brasileiras
disponibilizaram vagas para alunos africanos. Iniciativas de mesmo porte também são
tomadas em âmbito de pós-graduação.
A cooperação no campo dos biocombustíveis também foi largamente enfocada nas
parcerias articuladas com o continente africano, a exemplo de acordo de cooperação para
financiar estudos na área de bioenergia em países da África, firmado entre o MRE e o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Benim, Burkina Faso, Costa do
Marfim, Guiné-Bissau, Mali, Níger, Senegal e Togo, todos integrantes da União Econômica e
Monetária do Oeste Africano (UEMOA), serão beneficiados. O acordo visa a ajudar a
diversificar a matriz energética desses países.
Além disso, usinas brasileiras de etanol foram instaladas no Sudão e no Zimbábue,
com outras previstas para Gana e para Angola. A parceria trilateral entre Brasil, Suécia e
Tanzânia, por sua vez, visa à implementação, ao aumento de escala e à comercialização do

118
A diplomacia brasileira no período de Lula da Silva imiscuiu a temática do desenvolvimento em agendas das
mais variadas como meio ambiente, segurança, não proliferação, direitos humanos, comércio internacional,
terrorismo, entre outras.

119
A cooperação técnica brasileira para a África será analisada em detalhes nos próximos capítulos desta
dissertação. Neste momento, ao citarmos a mesma e mencionarmos algumas ações resultantes, não buscamos
esgotar a temática da cooperação. Queremos apenas mostrar os traços mais gerais da política externa brasileira
para com a África.
114

produto na contraparte africana120. Apesar desses exemplos e da importância conferida pela


diplomacia brasileira ao tema – tratado, inclusive, pelo IBAS -, as potencialidades da
cooperação no campo dos biocombustíveis ainda são pouco exploradas no continente121.
Busca-se, através da difusão da produção e da utilização dos biocombustíveis como
fonte privilegiada da matriz energética, a criação de um mercado internacional estável, que
envolva distintos insumos agroenergéticos como o bioetanol e o biodiesel. Pelas vantagens
comparativas do Brasil, segundo maior produtor mundial atrás dos Estados Unidos, o país
teria legitimidade no estabelecimento de novas regras voltadas à transformação dos
biocombustíveis em commodity global. Aparte a agenda energética, mais ampla, alguns
acordos de cooperação com países africanos nessa temática têm por base elementos de
transformação social, caracterizando o etanol como “combustível social” – o que respalda o
discurso brasileiro de desenvolvimento interno e externo.
A participação da EMBRAPA122, essencial para esse tipo de ensejo, é sugestiva da
presença mais acentuada de outros atores que não o MRE na execução da política externa. A
instituição investe em centros de pesquisa internacionais e em recursos humanos - 74% dos
mais de 2.200 funcionários têm doutorado -, o que possibilita avanços científicos e técnicos
que podem ser compartilhados, posteriormente, por meio da cooperação sul-sul. As
semelhanças geográficas e geológicas entre porções do território brasileiro e do continente
africano ampliam as possibilidades de transferência de tecnologias relativas a diversas
culturas, como é o caso da produção de cana-de-açúcar123.
Além da EMBRAPA e da FIOCRUZ, outros atores não estatais também são
protagonistas do renovado relacionamento sul-atlântico. A companhia Vale do Rio Doce
pretende investir entre US$ 15 e US$ 20 bilhões, até 2016, em países como Moçambique,
Zâmbia, Gabão, Congo, Angola e África do Sul. A empresa pretende tornar-se a terceira
maior produtora de minério de ferro do continente, aumentando substancialmente os US$ 2,5

120
Outras iniciativas podem ser vistas no Resumo Executivo do Balanço de Política Externa (2003/2010), no
sítio do Ministério das Relações Exteriores: http://www.itamaraty.gov.br/temas/balanco-de-politica-externa-
2003-2010/resumo-executivo/view, acesso em 15/12/2012.

121
Um memorando de entendimento foi assinado com a Comunidade Econômica dos Estados da África
Ocidental (ECOWAS) e o Banco Mundial em fevereiro. Disponível em:
http://bioenergy.checkbiotech.org/news/brazil_launches_new_bioenergy_initiative_africa, acesso em
13/01/2013.

122
A EMBRAPA será tratada com especial atenção no último capítulo desta dissertação, quando analisaremos
especificamente a cooperação em segurança alimentar entre Brasil e África.
123
Menciona-se importante acordo Brasil-União Europeia-Moçambique relativo à parceria de desenvolvimento
sustentável de bioenergia.
115

bilhões destinados atualmente à região. Já a construtora Odebrecht opera em Angola, Líbia,


Libéria, Moçambique e Gana, tendo completado projetos recentes em Botsuana, África do
Sul, Gabão, Djibuti e no Congo. No ano de 2009, os negócios do conglomerado na África
responderam por 10% das receitas do grupo124. Esses investimentos não são novos; tem sido
percebido, entretanto, maior auxílio do governo e de instituições de crédito nacionais para
promoção comercial, além de maior receptividade de formuladores e de executores de política
externa quanto ao envolvimento de empresas brasileiras nas parcerias bilaterais.
A PETROBRAS planeja investir cerca de US$ 3 bilhões até o fim de 2013,
fundamentalmente em Angola e na Nigéria. As descobertas das reservas de petróleo e de gás
do pré-sal em 2009 aumentaram o interesse da empresa em ampliar seus investimentos na
costa ocidental africana, pela semelhança geológica com o litoral brasileiro. Na Nigéria, a
companhia opera um bloco de exploração petrolífero e é parceira de operação em outros dois.
No início de 2011, a estatal anunciou a compra de metade de um bloco de exploração no
Benin, com o objetivo de encontrar óleo leve. A empresa também mantém atividades na Líbia
e na Tanzânia.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também tem
papel de relevo no apoio à internacionalização de empresas nacionais no continente africano.
Por meio da concessão de linhas de crédito voltadas à aquisição de máquinas, de bens de
capital e de serviços brasileiros destinados a obras de infraestrutura, o banco dinamiza a
presença de atores privados na África e abre espaços para a diversificação de parcerias
comerciais. Desde 2006, o BNDES negocia linhas de crédito com Angola, num total de US$
5,2 bilhões. Entre 2013 e 2017, será estabelecido o quinto desses financiamentos, um
montante de US$ 2 bilhões tendo como contrapartida, em caso de inadimplência, garantias
recebíveis de petróleo equivalentes a 20 mil barris/dia.
Com Moçambique, o BNDES desembolsa recursos para o projeto de carvão de
Moatize, da Vale, e para a construção de um aeroporto em Nacala, sob responsabilidade da
Odebrecht, área privilegiada em projetos de cooperação executados pela EMBRAPA. A
aquisição dos bens e dos serviços associados à obra, que serão de origem brasileira, será
financiada pelo banco, a exemplo do que ocorre com Angola. Há também o prognóstico de
estabelecimento de linha de crédito de US$ 1 bilhão com Gana, voltada para projetos de
infraestrutura. Como esse país recém descobriu reservas de petróleo, poderá oferecer garantias
em recebíveis, conforme requisita o banco para seus desembolsos na África.
124
Outras empresas como Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, OAS e Queiroz Galvão também atuam no
continente.
116

Essa ampliação de atividades e de parceiros possibilitou resultados comerciais


expressivos, como comprova a evolução dos fluxos entre Brasil e África no período de 2002 a
2009, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior
(MDIC). Se em 2002 o fluxo de comércio entre as duas margens do Atlântico Sul somava
US$ 5 bilhões, em 2009 alcançou US$ 17 bilhões, com pico de quase US$ 26 bilhões em
2008, queda anotada em virtude da crise econômica desse ano e da desafiadora presença
chinesa, que empreende agressiva política de aumento do intercâmbio com a África, o que
deve ampliar o deslocamento mercados do Brasil. Em 2011, o fluxo bilateral de comércio
atingiu US$ 27,6 bilhões.
Para além das cifras, o mercado africano é diferenciado para as exportações
brasileiras, pois, do total exportado em 2009, 57% corresponderam a produtos manufaturados,
representando espaço potencial de comercialização de bens com maior valor agregado, a
exemplo do que ocorre nos intercâmbios com a América do Sul. Em cômputo geral, o Brasil
foi 11º parceiro comercial da África em 2010. Considerando apenas os países em
desenvolvimento, o Brasil encontrar-se-ia na terceira colocação, em posição atrás de China e
de Índia (UNCTAD, 2010).
No que diz respeito à cooperação bilateral em defesa, companhias como a Empresa
Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER) e a Empresa Gerencial de Projetos Navais
(EMGEPRON) têm parcerias comerciais com países da região, tendo sua atuação ampliada
em virtude da assinatura de acordos de cooperação em matéria defensiva, da venda de
equipamentos e de material bélico e de programas de capacitação profissional e técnica. A
indústria de defesa tem se beneficiado do adensamento dos contatos, com o registro de venda
de navio-patrulha para a Namíbia, além de contratos assinados para a compra de quatro
lanchas-patrulha por esse país e de seis aviões Super Tucano por Angola, acrescentando-se
também protocolo de intenções para venda de corveta para a Guiné Bissau125.
No campo de capacitação de pessoal, são oferecidos cursos de formação militar nas
academias militares brasileiras para profissionais africanos, em especial aqueles oriundos de
países da CPLP. Em Guiné-Bissau foi criado o Centro de Formação de Forças de Segurança e
está em instalação a Missão Brasileira de Cooperação Técnico-Militar (MBCTM). A Marinha
contribuiu com a formação do corpo de fuzileiros navais da Namíbia e com ações de
desminagem e de despoluição no Benin.

125
De certa forma, pode-se ver uma retomada dos interesses de comercialização de equipamentos de defesa para
o continente africano, o que reverbera ações realizadas nas décadas de 1970 e de 1980.
117

O levantamento das características da plataforma continental de Namíbia e de Angola,


realizado por meio de acordo comercial e de assinatura de protocolo de intenções entre
ministérios da Defesa, propicia ao Brasil conhecimentos privilegiados para a atuação de
empresas como a Petrobras na costa da África. De forma similar, acordos de cooperação em
áreas de ciência e de tecnologia militar com a África do Sul geram condições propícias para o
desenvolvimento e para a adaptação de tecnologias nacionais à realidade africana.
Ainda no campo da segurança, a diplomacia brasileira logrou, em 2007, a presidência
do mandato da Comissão de Construção da Paz para a Guiné-Bissau, a única presidida no
sistema das Nações Unidas por um país em desenvolvimento, o que garante credenciais do
Brasil para seus pleitos a membro permanente do Conselho de Segurança da organização. A
iniciativa visa à consolidação da paz num país assolado por ameaças à estabilidade
democrática, tema que foi aventado pela representação brasileira na ONU na ocasião de
membro rotativo do conselho em 2010.
Em todos esses casos, o Brasil atuou por convite das contrapartes africanas,
enaltecendo a não intervenção nos assuntos internos dos demais países e a igualdade soberana
entre as nações, asseverando postura de contribuir para a formação de condições favoráveis ao
desenvolvimento dos parceiros.

Em suma, o Brasil ganha na empatia e no jeitinho (no bom sentido), mas perde de
longe nos recursos investidos. E para quem nunca se deu ao trabalho de olhar, além
do interesse comercial (a África seria hoje, tomada como país individual, o nosso
quarto parceiro comercial, à frente do Japão e da Alemanha), o continente africano é
um vizinho muito próximo com o qual temos interesses estratégicos. A distância do
Recife ou de Natal a Dacar é menor que a dessas cidades a Porto Velho ou Rio
Branco. Nossa zona marítima exclusiva praticamente toca aquela de Cabo Verde.
Isso sem falar no enorme benefício que uma maior relação com o Brasil traria para a
África, contribuindo para afastar a sombra do colonialismo renascente, agora
movido não só por capitais, mas por tanques e helicópteros de combate (AMORIM,
2011)126.

Essa aproximação com a África dá-se também por vias multilaterais, em que o Brasil
vale-se da União Africana (UA) para facilitar a implementação de seus projetos de
cooperação. A UA atua como interlocutor das iniciativas brasileiras, servindo como ponte
para a região e promovendo articulações com países com os quais o Brasil não tem acordos-
quadro de cooperação.

126
Artigo à revista Carta Capital, disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-
de-noticias/midias-nacionais/brasil/carta-capital/2011/05/30/a-africa-tem-sede-de-brasil-coluna-celso-amorim,
acesso em 24/07/2011.
118

Outro caso é o da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), criada em


1986 e com 24 membros, em que foram estabelecidos grupos de trabalho empreendendo áreas
como manutenção da paz; combate à atividades ilícitas e crime organizado; pesquisa
científica, meio ambiente e questões marítimas; e cooperação econômica, mais uma vez
denotando a interdependência de assuntos de cooperação sul-sul e de interesses comerciais na
agenda externa do Brasil para a África.
A Cúpula América do Sul-África (ASA), por sua vez, criada em 2006 e congregando
65 países, deu origem a instrumentos como o Fórum de Cooperação América do Sul-África.
A coalizão visa a promover maior aproximação, conhecimento mútuo, diálogo político e
cooperação entre os Estados membros, refletindo o interesse comum de países em
desenvolvimento em democratizar as instâncias decisórias multilaterais e objetivando a
construção de ordem menos centralizada e mais multipolar.
Analisando o elemento de liderança nas relações com a região africana na alvorada da
presidência de Lula da Silva, Paulo Roberto de Almeida (2004) afirma que, à diferença do
período de Cardoso, “o governo Lula não apenas passou a proclamar sua política de ativa
solidariedade com a África, mas também prometeu passar à ação concreta” (p. 171). Desde o
início de sua gestão, estava clara a importância concedida ao continente africano, que se
consubstanciou em vertente indispensável à inserção internacional do Brasil.
Em suma, o relacionamento com os países da região envolve agendas múltiplas, com
maior escopo de atuação e de envolvimento de atores que conferem uma realidade mais
complexa e diversificada à política externa. Apoiado em retórica de solidariedade, em
projetos de cooperação técnica e na prospecção de parcerias comerciais e políticas, o Brasil
buscou, durante a predominância dos autonomistas no processo decisório do MRE –
influenciados por quadros do PT -, revitalização e aprofundamento dos contatos com a África,
considerada atual palco de competição internacional por recursos minerais, por mercados
consumidores e por apoio político.

2.6 Considerações finais: do insulamento ao diálogo inter e intraburocrático –


impactos na política externa
119

Inicialmente, neste capítulo, apontou-se a existência de causalidades histórico-


institucionais que explicam a pretensa especificidade do Itamaraty frente aos demais órgãos e
atores da administração pública brasileira. Procuramos demonstrar, sucintamente, que tanto a
base social de recrutamento dos diplomatas, como a estrutura organizacional do Estado
brasileiro foram elementos que permitiram caracterizar o MRE como ator insulado.
Essa característica foi reforçada, em 1946, com a criação do IRBr. A partir do mesmo,
os mecanismos de socialização e de imersão na cultura organizacional, até então com certo
grau de informalidade, ganham caráter permanente. Com capacidade de reproduzir sua
própria burocracia, de acordo com seus ditames, o MRE iria, por meio do IRBr, assentar as
bases que lhe garantiriam o controle formal sobre a formulação e a condução da política
externa nos anos posteriores.
Tal cenário não encontrou mudança nem mesmo com a inauguração do
constitucionalismo de 1988, o que comprova seu arraigado lastro de permanência e a
capacidade adaptativa do Itamaraty de se manter coeso em conjunturas diletantes.
Encontrando guarida em sua expertise retórica, esse ministério continuaria operando como se
torre de marfim fosse, inclusive em contexto de redefinição das forças sociais e de pressões
domésticas acentuadas depois de cerca de 20 anos de regime ditatorial.
Ancorando-se na ideia de que a política externa era uma política de Estado, o que se
tinha era a ratificação, na prática, da separação entre política externa e política doméstica, no
sentido de que, por não envolver os constrangimentos da arena nacional, a formulação da
política externa poderia ser feita de forma singular e não suscetível à politização. Trata-se da
corporificação da alegoria do Estado como caixa preta, em que os processos decisórios são
pouco transparentes e inclusivos.
As mudanças viriam, com maior força, por meio dos processos de alterações
sistêmicas e pelo desenvolvimento dos preceitos democráticos e de participação da sociedade
civil nos processos políticos domésticos. A crescente internacionalização das políticas
públicas brasileiras demandou a presença mais atuante de atores outros que não o MRE.
Nesse cenário em curso, o que observou foram duas dinâmicas: (1) a relativa ruptura do
insulamento; e (2) certa polarização no interior do Itamaraty, com correntes como a dos
institucionalistas pragmáticos e a dos autonomistas disputando influência e capacidade de
conduzir a política externa de acordo com suas perspectivas.
Quanto ao primeiro ponto, ainda que a estrutura decisória esteja centrada no Itamaraty,
o processo de formulação da política externa vem passando por mudanças. Para fazer frente
120

aos desafios advindos da globalização e da inter-relação de agendas, transbordantes do nível


sistêmico ao doméstico e vice-versa, o MRE diversificou suas ações no sentido de incorporar
outros atores nas dinâmicas de política externa, especificamente no que diz respeito à sua
execução. As ações descentralizadas de cooperação internacional – em diversos níveis
federativos – levaram o MRE a buscar retomar o controle sobre essas atividades. Ao permitir
maior participação de elementos extraburocráticos junto a seus processos decisórios, esse
ministério estaria objetivando formalizar as ações externas já existentes e imiscuir nas
mesmas sua marca e discurso, de modo a mostrar-se ator condizente com o novo momento
por qual passa o país.
Sobre o segundo ponto, argumentamos que, especialmente após a liberalização relativa
da economia e a abertura democrática, acentuaram-se posicionamentos divergentes no interior
do MRE. Nesse sentido, o ethos corporativo teria sido abalado e a coesão não mais se
apresentaria como característica uníssona do ministério. Por se articularem segundo
estratégias distintas, as correntes de opinião e de ação burocráticas promoveram distintos
modelos de inserção internacional. Isso refletiu na agenda de política externa em geral e,
especificamente, no relacionamento com a África.
De fato, o que se observa é que ainda não houve reformas estruturantes, com lastro de
continuidade, que corroborem a ideia de que o modelo de configuração da política externa
tenha transacionado de um processo decisório vertical, hierarquizado, historicamente
constituído, para outro, horizontalizado, plural e aberto à participação de outros atores. Houve
mudanças perceptíveis, ainda que tópicas e conjunturais na relação do MRE com as demais
pastas do Executivo; com os outros poderes instituídos; e com a sociedade civil. Isso teve
impacto substantivo na cooperação internacional desenvolvida pelo Brasil, tema que será
trabalhado no próximo capítulo.
121

3 COOPERAÇÃO E POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA

Na última década, a cooperação internacional tornou-se um dos principais vetores da


política externa brasileira. Observou-se aumento exponencial dos aportes financeiros, assim
como das parceiras, do número e do tipo de projetos. Articulações bilaterais, trilaterais e
multilaterais foram promovidas com países em diferenciados graus de desenvolvimento,
contando com o suporte de atores da política doméstica. A cooperativa foi, durante os dois
mandatos presidenciais de Lula da Silva, elevada à condição de política de Estado, tornando-
se parte dos posicionamentos decisórios em política externa realizados no país.
Neste capítulo iremos, brevemente, nortear o assunto da cooperação dentro de uma
perspectiva histórica, que remonta à formalização das bases de desenvolvimento do Estado
brasileiro e da conformação do sistema internacional de cooperação. Essa breve análise faz-se
importante, pois, de recebedor de aportes técnicos e financeiros de cooperação, notadamente
oriundos de países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
(OCDE), o Brasil tornou-se, também, provedor de cooperação internacional127. Trata-se de
mudança de paradigma com consequências ainda em curso para o sistema internacional e para
a política externa brasileira.
Contribuindo com países em desenvolvimento situados em seu entorno regional,
especialmente na América do Sul, o Brasil também ampliou esforços cooperativos para
parceiros em áreas como África e Ásia. Esse movimento, é notório perceber, acompanha a
diversificação das agendas de política externa e dos atores da arena doméstica envolvidos em
sua consecução. Durante a gestão de Lula da Silva, a cooperação foi alicerçada como
instrumento de política externa, o que foi associado ao aumento dos fluxos comerciais e
financeiros do país com nações em desenvolvimento, com a internacionalização de empresas
brasileiras e com a difusão de poder após os atentados terroristas de 11 de setembro e a crise
de 2008, cujos efeitos ainda estão em curso.
Em virtude desse novo momento da política de cooperação nacional, é mister
analisarmos, em seguida, as principais características da cooperação brasileira. Procuraremos,
ao longo do capítulo, mostrar: suas singularidades; as distinções em relação à cooperação
prestada pelos membros da OCDE; os principais países e regiões recebedores de cooperação

127
Almeida (2008) afirma que o Brasil tornou-se provedor líquido de cooperação em algumas agendas, posição
que é secundada por J. Silva (2011).
122

do Brasil; e como isso impacta o processo decisório em política externa. O Itamaraty,


referenciado principalmente pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC), prega ser a
cooperação brasileira fenômeno apartado das experiências tradicionais de cooperação norte-
sul, tendo objetivo de promoção do desenvolvimento internacional sem a imposição de
condicionalidades e desvinculado de interesses comerciais.
Trata-se de posicionamento com forte conteúdo retórico, embasado por
pronunciamentos oficiais da chancelaria, que busca caracterizar a cooperação brasileira como
legítima e não interessada, com intuito solidário e voltado para a promoção do
desenvolvimento. Como veremos, ainda que a dimensão solidária e cosmopolita esteja
presente na cooperação brasileira, essa não se operacionaliza sem intrínseco conteúdo de
interesses. A política externa não se produz sem componente prático que justifique as ações e
os posicionamentos de seus decisores. Da mesma forma, revestir a cooperação com caráter
eminentemente solidário não deixa de ser a sinalização prática de um objetivo de política
externa: mostrar o Brasil como parceiro diferente dos doadores tradicionais. Argumentaremos
que o elemento discursivo que procura justificar a cooperação é acompanhado de vetor
pragmático, relacionado com o atendimento aos interesses brasileiros.
Em nosso entendimento, a prática cooperativa demanda a participação de outros atores
que não o MRE. São entidades que, por contar com expertise que o Itamaraty não tem,
tornam-se essenciais para a realização da cooperação. No processo de configuração da política
externa, esses atores – ONGs, ministérios, empresas privadas e públicas, entidades
subnacionais, etc. – ganham relevo na execução da política externa, pois são eles que
implementam as práticas e têm o contato direto com o parceiro recebedor ou provedor da
cooperação. Nesse sentido, são explicativos de fenômeno em andamento nos estudos de
política externa, a dizer, de erosão do monopólio do MRE na condução dos interesses do
Brasil. Isso ocorre porque ditos interesses não são uníssonos ou impassíveis de críticas, sendo
necessário, para a operacionalização de distintas práticas, haver concordância ou barganha a
fim da consecução de objetivos de política externa. Nem sempre é pacífico, portanto, o
processo decisório em cooperação e, especificamente no nosso caso, em cooperação sul-sul.
Isso impacta não só o relacionamento do MRE com esses outros atores, assim como a
própria organicidade do Itamaraty como grupo coeso, visto que divergências de
posicionamentos interna corporis tornaram-se claras e ecoadas mais fortemente durante os
dois mandatos de Lula da Silva. Ademais, isso provoca reações desse ministério, que percebe
estar perdendo seu papel central e até então sem rivais na configuração da política externa.
123

É inegável o interesse crescente da comunidade acadêmica pela política de cooperação


sul-sul encetada pelo Brasil. Artigos, dissertações, teses, livros e conferências são realizados
com cada vez mais frequência em prol do esforço de melhor compreender o que caracteriza a
cooperação brasileira, o que a singulariza e como interpretá-la a luz de conceitos e teorias das
relações internacionais. Ainda que este campo esteja longe de estar resolvido, frente aos
desafios impostos por sua ênfase mais recente como elemento e instrumento de política
externa, buscaremos problematizá-lo ao longo deste capítulo.

3.1 Cooperação norte-sul, cooperação sul-sul: estado das artes

Os estudos sobre cooperação internacional128 vêm ganhando força nos últimos anos, a
julgar pelo interesse de pesquisadores, graduandos, mestrandos e doutorandos sobre a
temática. A bibliografia sobre o tema, ainda bastante escassa, principalmente quando
consideramos as produções escritas no Brasil e na América do Sul, passa, apesar disso, por
momento de expansão quantitativa e qualitativa. Cursos de curta duração, de extensão e de
pós-graduação que enfocam cooperação e desenvolvimento129 tornam-se cada vez mais
comuns nos centros de pensamento brasileiros.
A crescente interdependência das agendas internacionais no período posterior à Guerra
Fria, em consonância com patente difusão do poder mundial, assim como iniciativas até então
inéditas de países em desenvolvimento no que diz respeito à cooperação técnica, entre os
quais se destacam Brasil, China, Índia, África do Sul, Venezuela e Indonésia, para citarmos
alguns, podem ser apontadas como fatores explicativos do redobrado interesse no arcabouço
teórico e prático da cooperação.
Observa-se, entretanto, talvez pela proximidade cronológica dos fatos em questão e/ou
pela falta de normatização dos estudos sobre cooperação, que o termo encontra-se em franco e
128
Não entraremos na discussão sobre o modo como as teorias de Relações Internacionais se relacionam com
termo cooperação. Preferimos realizar discussão teórica mais aprofundada no primeiro capítulo desta pesquisa
para, neste momento, focar-nos em aspectos conceituais que se mostrarão mais úteis em nosso encaminhamento
de estudo da política externa.
129
A definição do termo está longe de ser pacífica na literatura especializada. Nossa visão sobre o que é
desenvolvimento é holística, envolvendo não só o aspecto de crescimento econômico, mas também de inclusão e
de promoção do progresso social, cultural e político dos povos. Acreditamos que as agendas de direitos humanos
– em suas distintas gerações –, direito à alimentação, combate à fome e à pobreza, entre outras, são parte do
debate sobre desenvolvimento. A política externa brasileira durante Lula da Silva abordou o tema
desenvolvimento nesse sentido.
124

aberto debate na literatura especializada. Nosso objetivo neste capítulo é continuar


fomentando, ainda que brevemente, essa discussão para que possamos, em seguida, trabalhar
com a cooperação brasileira.

3.1.1 AOD, CDI, CTPD, CTI, CSS, CBDI: siglas, agendas e indefinições conceituais

Em perspectiva histórica, o desenvolvimento da cooperação internacional passa por


dois grandes momentos. O primeiro deles, no contexto do período posterior à II Guerra
Mundial e intrinsecamente relacionado com o acirramento das tensões entre Estados Unidos e
União Soviética, e o segundo a partir da década de 1960. Em ambos os marcos temporais, é
de relevo a importância das Nações Unidas e de suas agências especializadas para o avanço da
temática da cooperação como expediente frequente nas relações entre os Estados130.
Sobre o primeiro momento, trata-se de cenário em que o objetivo era reconstruir os
países destruídos pelo conflito sistêmico e influenciar politicamente, por meio de práticas
cooperativas, nações que poderiam estar suscetíveis a ideologias rivais131. Centralizado, de
início, na Europa, como são exemplos a ajuda financeira norte-americana à Grécia e à Itália, a
partir do Plano Marshall132, e o apoio institucional da URSS ao leste europeu, esse tipo de
cooperação seria ampliado para outras regiões.
Em 1948, desenvolveu-se, no seio da ONU, debate, consubstanciado na Resolução
200 da Assembleia Geral, relativo à assistência técnica internacional. Na ocasião, entendeu-se
assistência técnica como um tipo de intercâmbio norte-sul, em que haveria a transferência, por
meio de parcerias balizadas pela ONU, de conhecimentos e de técnicas não associadas a
compensações comerciais ou financeiras.
Com o avançar dos processos de descolonização na África e na Ásia, a ascensão
organizada do Terceiro Mundo em agrupamentos como as Conferências de Bandung (1955) e
130
Os artigos 55 e 56 do capítulo IX Carta de São Francisco trazem duas balizas para a incipiente definição do
tema da cooperação: a igualdade de direitos e a autodeterminação dos povos. O art. 1º §3º menciona o objetivo
de promover e estimular o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais sem distinção de raça, de
sexo, de língua ou de religião. A discussão sobre quais são, de fato, os direitos humanos a serem assegurados, em
níveis doméstico e internacional, decorreria daí.
131
De fato, o lançamento, em 1949, do I Programa de Assistência Técnica Bilateral dos Estados Unidos para os
Países Subdesenvolvidos era claro exemplo de como a ajuda internacional era instrumentalizada como forma de
propagação de interesses ideológicos e como mecanismo de containment.
132
Nesse momento, entendia-se desenvolvimento e cooperação como reconstrução econômica.
125

de Belgrado (1961), que resultaram no Movimento Não Alinhado (MNA), e o surgimento de


conflitos como a Guerra da Coreia (1950-1953), a Revolução Cubana (1959) e a Guerra do
Vietnã (1964-1979), somente para citarmos alguns exemplos, as iniciativas de cooperação
alicerçadas aos interesses internacionais de EUA e URSS ganham escala global (AYLLÓN,
2007). Houve aumento de acordos de cooperação técnica vinculados a auxílio financeiro,
compra de equipamentos, maquinário e serviços das nações provedoras.
Vale salientar que esse tipo de cooperação técnica, norte-sul, comumente classificada
pela literatura norte-americana como ajuda internacional (ou aid, no inglês), não tem sua
denominação clara no campo de estudos de política internacional. Termos como Cooperação
Internacional para o Desenvolvimento (CID) e Ajuda Oficial ao Desenvolvimento (AOD)133,
esse último denominação oficial da OCDE em seu Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento
(CAD), são tratados como se iguais fossem. Entendemos que, ainda que conservem
similaridades, esses conceitos precisam ser problematizados quando levamos em consideração
a existência de um Sistema Internacional de Cooperação para o Desenvolvimento (SICD)134.
O termo AOD é definido como a concessão de membros da OCDE para países da
parte 1 da lista do CAD, os chamados recebedores ajuda. Tratam-se de financiamentos de
projetos de cooperação internacional, diferentes de empréstimos facilitados concedidos por
instituições financeiras como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID). Segundo o conceito de AOD, a concessão é realizada de forma
bilateral, país-país, envolvendo o setor público de cada Estado, o que vislumbra manter certo
controle e accountability sobre os recursos transferidos. Essa ajuda pode ser realizada sob a
forma de cooperação técnica e de empréstimos financeiros, desde que haja um elemento de
concessionalidade de pelo menos 25%, assim como juros facilitados e prazos de amortizações
mais longos. Dessa forma, caso um país da OCDE doe US$ 100 milhões para outro,
recipiendário, ao menos US$ 25 milhões devem ser a fundo perdido. De acordo com o CAD,
as ajudas militar e humanitária estão excluídas da ideia de AOD.
Próximo do conceito de AOD é o de Cooperação Internacional para o
Desenvolvimento (CID). A maior diferença, contudo, é revelada na transição do termo

133
Ayllón (2007) também identifica o conceito de Financiamento Oficial ao Desenvolvimento (FOD), que
envolveria fluxos que ainda cumprem os critérios de concessionalidade da AOD, mas que não têm o mesmo grau
de liberalidade. Como exemplo, citam-se os casos de operações de reescalonamento de dívidas externas de
países devedores.
134
O SICD pode ser identificado por meio da utilização do arcabouço teórico neoinstitucionalista sobre regimes
que tangenciam as agendas de cooperação. O SIDC funcionaria como um termo guarda-chuva para a temática da
cooperação.
126

“ajuda” para “cooperação”. A palavra ajuda tende a revelar caráter unidirecional, direto, sem
contrapartidas, tendendo a assegurar, em sua maioria, os interesses da parte doadora.
Em 1959, data que marca os dez anos de existência do Programa Expandido de
Assistência Técnica da ONU, a Assembleia Geral aprovou a Resolução 1383, que passa a
adotar o conceito de “cooperação” no lugar de “ajuda”. O conceito de cooperação técnica
internacional alicerçava a ideia de direito ao desenvolvimento dos países com menor
desenvolvimento relativo ao dever dos países industrializados de prestarem, por meio da
cooperação técnica, aportes necessários à consecução do direito enunciado.
Isso não fez superar as indefinições conceituais sobre o que de fato viria a ser
cooperação ou cooperação técnica135. Tampouco proveu maior espaço para os anseios das
nações em desenvolvimento. Segundo o texto da Resolução 1383, “the General Assembly
considers that, in the present circumstances, the term ‘technical cooperation would more
accurately describe the nature of the assistance provided by the specialized agencies under
the technical assistance programmes”136. Na prática, a cooperação dava-se mais para mitigar
possíveis efeitos do estado de subdesenvolvimento do que para combater as suas causalidades.
De acordo com o entendimento da ONU, a ideia de Cooperação Técnica Internacional
(CTI), que é uma modalidade de CID, engloba atividades de cooperação que não envolvam
ajuda financeira, mas apenas a transferência de técnicas e de boas práticas, de instituições
oficiais de um país para outro. O intuito da CTI é o de criar condições para a eliminação de
entraves ao crescimento e para garantir o estabelecimento de bases estruturais sólidas para a
superação do estágio de subdesenvolvimento. Bolsas de estudos, intercâmbio e treinamento de
especialistas, aquisição de equipamentos e realização de pesquisas conjuntas são alguns
exemplos do que a ONU considerava cooperação técnica internacional137.

135
Para Rafael Grasa (2010), cooperar não envolveria, necessariamente, fazer valer aportes e auxílio técnico,
podendo englobar, também, a inclusão de uma nação em desenvolvimento em sistemas de preferências
comerciais. Para ele, ainda que a ONU citasse nominalmente o adjetivo “técnica” como associado à cooperação,
o Sistema Geral de Preferências (SGP) também seria demonstrativo de cooperação. “A política de cooperação
para o desenvolvimento não implica necessariamente transferências materiais ou humanas do Norte ao Sul, mas
pode consistir em atividades comerciais como a concessão de sistemas de preferências generalizadas” (GRASA,
2000, p. 60). A defesa da SGP como forma de cooperação internacional não é majoritária.
136
O trecho correspondente na tradução é: “A Assembleia Geral considera que, nas circunstâncias presentes, o
termo ‘cooperação técnica’ descreveria mais acuradamente a natureza da assistência provida por agências
especializadas em programas de assistência técnica”. ONU. Assembleia Geral das Nações Unidas. Resolução
1383. Reunião plenária número 841. 20/11/1959. Disponível em: http://daccess-
ddsny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/142/06/IMG/NR014206.pdf?OpenElement, acesso em 27/04/2013.
137
O entendimento do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, país historicamente grande receptor de
projetos de cooperação técnica, é semelhante. Segundo a portaria 12/2001, a CTI é definida como “transferência
127

O fato é que essa cooperação técnica tradicional conviveu, a partir dos anos 1960, com
o segundo tipo mais frequente de cooperação, de cunho sul-sul, entre países em
desenvolvimento, o que deu ensejo à formação do SICD. Não necessariamente se tratando de
uma contraposição à cooperação norte-sul, as articulações entre as nações do sul refletiam o
ganho relativo de importância desses países num momento em que o conflito bipolar era
amainado. Além disso, o fenômeno era possibilitado pelo crescimento econômico e pela
diversificação da política externa de países como Brasil e China. Nações essas que, se desde
os anos 1940 haviam recebido apoio de seus pares no norte, passariam a integrar o grupo de
provedores de boas práticas, sendo denominados “novos doadores” (new donors, no inglês).
Ao longo do tempo, essa nova perspectiva de cooperação que, vale salientar, nunca
gerou o ocaso das formas de cooperação norte-sul tradicionais, foi ganhando certa
institucionalização, em virtude da realização de foros multilaterais nos anos 1960 e 1970,
deixando de ser, portanto, estratégia isolada. A Comissão Econômica para a América Latina e
para o Caribe (CEPAL); a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o
Desenvolvimento138 (UNCTAD); a defesa de uma Nova Ordem Econômica Internacional
(NOEI); os Acordos de Lomé (1975); o G77 (criado em 1964); o G24, especialmente a partir
da Rodada Tóquio do GATT (1974-1979); são exemplos de como a convergência
intergovernamental, seja em instâncias multilaterais, seja no estabelecimento de coalizões sul-
sul, denotam uma progressiva diversificação do entendimento do que representa a cooperação.
É nos anos 1970 que a cooperação entre países em desenvolvimento passa a ser
orientada a ganhar maior relevo conceitual e prático, por esforços tanto bilaterais como
regionais e multilaterais139. O Plano de Ação de Buenos Aires de 1978, por exemplo, foi
resultado de Conferência da ONU para a Cooperação Técnica entre Países em
Desenvolvimento (CTPD), que envolveu 133 nações140. O conceito de CTPD foi adotado,

de tecnologia, conhecimentos e experiências de aplicação prática no processo de desenvolvimento


socioeconômico a um país, ou o apoio à sua geração local”.
138
A UNCTAD advogava uma nova divisão internacional do trabalho, associada à defesa de comércio
internacional mais justo e equitativo, que permitisse o avanço do desenvolvimento industrial nos países em
desenvolvimento. Teve clara influência das teses cepalinas.
139
A Resolução 2.974, de 1972, aprovada pela Assembleia Geral da ONU, determinou a criação de um grupo de
trabalho ad hoc para avaliar mecanismos que fortalecessem e promovessem a cooperação técnica em âmbitos
regional e multilateral.
140
O Plano de Ação de Buenos Aires foi resultado da Resolução 33/134 de 1978, aprovada pela Assembleia
Geral da ONU.
128

posteriormente, em resoluções da Assembleia Geral, então composta majoritariamente por


atores diretamente interessados em sua disseminação.
Também em 1978, a Unidade Especial de Cooperação Sul-Sul, substituta da Unidade
Especial para a Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento, foi criada pela
AGNU, sob a administração do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD)141, com o objetivo de fomentar a CTPD por meio do recurso a fóruns multilaterais e
a mecanismos financeiros. A realização de encontros bianuais do Comitê de Alto-Nível sobre
Cooperação Sul-Sul, e a organização de fundos como o United Nations Trust Fund for South-
South Cooperation (UNFSC), são resultantes imediatas e que indicam que a cooperação
tradicional mostrava-se insuficiente para os anseios dos países em desenvolvimento.
Além disso, ficava patente que os objetivos enunciados pela NOEI eram ilusórios e de
pouca operacionalidade prática, de modo que iniciativas como as capitaneadas pelo PNUD
deveriam ser reforçadas. A superação do estágio de subdesenvolvimento precisaria ser
conduzida por meio de parcerias voltadas para a superação das assimetrias, notadamente as de
cunho econômico e tecnológico.

A partir de ese momento la Cooperación Técnica entre Países en Desarrollo adquiere


una mayor relevancia pues los países pasan a considerarla como un elemento cada
vez más importante para la promoción del desarrollo. En concreto, la CTPD pasa a
entenderse como una dimensión más dentro da Cooperación Internacional, una
modalidad de cooperación al desarrollo que complementa a la Cooperación Técnica
tradicional (XALMA, 2008, p.14)142.

Esforços de cooperação bilaterais (entre dois países em desenvolvimento), ou


trilaterais (envolvendo, normalmente, dois países em desenvolvimento e um país
desenvolvido, mas também podendo incluir OIs) são parte da atividade da CTPD. Mais
recentemente, a CTPD passou a ser chamada de Cooperação Sul-Sul (CSS), termo que passou

141
A Unidade Especial para Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento foi criada em 1972, resultado
de um grupo de trabalho no seio da ONU sobre a temática. Originalmente, o mandato do PNUD nessa seara era
somente voltado para CTPD. Esse termo foi substituído por “cooperação sul-sul”, no seio dessa unidade,
somente em 2004.
142
O trecho correspondente na tradução é: “A partir desse momento, a Cooperação Técnica entre Países em
Desenvolvimento adquire uma maior relevância, pois os países passam a considerá-la como um elemento cada
vez mais importante para a promoção do desenvolvimento. Em concreto, a CTPD passa a ser entendida como
uma dimensão mais dentro da Cooperação Internacional, uma modalidade de cooperação ao desenvolvimento
que complementa a Cooperação Técnica tradicional”.
129

a vigorar no vocabulário da Unidade Especial para Cooperação Técnica entre Países em


Desenvolvimento, do PNUD, e no discurso de política externa brasileira143.
Em 2000, por ocasião da Cúpula do Milênio da ONU, foi assinada a Declaração do
Milênio, ambicioso compromisso de garantia do desenvolvimento e de erradicação da pobreza
no mundo. A declaração retomou objetivos já presentes em documentos de relevo como o
Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 e seus Protocolos Adicionais de
1977; a Declaração das Nações Unidas sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986); e as
conferências temáticas da ONU realizadas nos anos de 1990. Foram elencados oito Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio (ODM) a serem perseguidos até 2015144.
Como se tratam de iniciativas que demandam conhecimentos técnicos em campos
distintos e que envolvem o aporte de recursos que muitos países em desenvolvimento não
disponibilizam, a consecução dos ODM está intimamente relacionada à prática da atual
cooperação internacional, envolvendo, em seus pilares bilateral, trilateral, regional e
multilateral, tanto a cooperação tradicional, norte-sul, como a CSS. É observável, porém, que
a consecução desses interesses vem sendo atingida de forma desigual, reflexo da ainda pouca
institucionalização da cooperação e de seu papel subsidiário nas relações entre Estados.
Essa busca de institucionalização, mesmo que tímida e descentralizada, indica que há
dificuldades na classificação dos novos provedores e na identificação dos fluxos de recursos.
A heterogeneidade das nações do sul geopolítico, assim como a falta de um sistema normativo
específico para essa cooperação, conforme ocorre com o CAD, traz empecilhos à
normatização das práticas, bem como à aferição de seus resultados. É válido salientar que, por
não ser constrangida por regras como as do CAD, a CSS torna-se, de um lado, mais fluida e
flexível, mas, por outro, menos previsível.
De fato, o SICD continua balizado, em sua maioria, por diretrizes definidas pelo CAD,
por ser órgão considerado, ainda que isso esteja em franco processo de questionamento,
referência para os assuntos de cooperação internacional. Essa visão não é uníssona, pois, com
a frequência cada vez maior de fluxos de CSS e o crescimento relativo dos grandes países
emergentes, a validade dos aportes norte-sul passa a não ser mais tida como a única adequada.

143
A partir deste momento, utilizaremos o termo CSS no lugar de CTPD, de acordo com a postura da ONU e da
diplomacia brasileira. Entendemos que os dois conceitos não são sinônimos, já que a CSS pode envolver uma
miríade de práticas que a CTPD não. Além disso, o termo CSS, ao menos em teoria, tende a indicar que existe
componente político mais explícito que a pretensão eminentemente técnica da CTPD.
144
Os oito ODM referem-se ao combate à pobreza e à fome; à promoção da educação; da igualdade de gênero;
de políticas de saúde; saneamento; habitação e meio ambiente. A ONU estabeleceu 18 metas, que serão
monitoradas por 48 indicadores, a fim de que os ODM sejam plenamente atingidos.
130

Presentes desafios econômicos e financeiros também suscitam dificuldades para a


continuidade e a manutenção de fluxos de transferência de técnicas e de aportes financeiros
não só no âmbito norte-sul, como também no eixo sul-sul145.
A ascensão dos emergentes foi acompanhada pela amplificação das iniciativas de CSS.
Essa cooperação, legitimada pela ONU, tampouco se mostrará una e sem diferenciações. Por
ser praticada por um grupo de nações heterogêneas, em distintos estágios de desenvolvimento,
com concepções estratégicas e de política externa dissonantes, além de inseridas em contextos
regionais específicos, a CSS não deixa de ser uma denominação genérica.
De acordo com a Agenda de Ação de Acra (AAA), firmada em 2008, a “cooperação
sul-sul para o desenvolvimento deve observar o princípio de não interferir nos assuntos
internos, estabelecer igualdade entre os associados em desenvolvimento e respeitar sua
independência, soberania nacional, diversidade e identidade cultural e conteúdo local” (AAA,
2008, § 19e). A inserção do trecho no documento final foi considerada uma vitória do “grupo
de consenso”, formado por países em desenvolvimento. A AAA também rogou papel
reforçado do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) e de seu Fórum de
Cooperação para o Desenvolvimento nas iniciativas internacionais sobre a temática.
Foi somente em 2009, na ocasião da Conferência de Alto Nível da ONU, em
comemoração ao trigésimo aniversário da Declaração de Buenos Aires, que se definiu que a
CSS deveria ser vista de forma diferenciada da cooperação norte-sul. O embasamento da
plenária foi o de que a CSS é estabelecida por meio de uma “parceria entre iguais”, ao
contrário da cooperação tradicional.
Isso não quer dizer, entretanto, que o termo CSS seja homogêneo e determinado.
Países como China, Brasil e Índia, por exemplo, ainda que tenham na CSS um de seus pilares
de inserção internacional e um instrumento de política externa, não praticam o mesmo tipo de
cooperação e a não observam, quanto a seus objetivos, meios e parceiros, estritamente da
mesma forma. Isso implica que há, na prática, diversos tipos de CSS146. Tampouco

145
A agenda hodierna de cooperação, essa também é marcada por debates metodológicos relativos à arquitetura
da cooperação, a dizer, por enfoque claramente economicista e tecnocrata, muito do qual embazado em normas
técnicas das agências ONU e na terminologia do CAD. De fato, a ascendência do CAD ainda continua clara, se
levarmos em consideração, por exemplo, as bases sob as quais se assentaram a Conferência de Monterrey (2002)
e a Declaração de Paris sobre a Eficácia da Ajuda ao Desenvolvimento, resultado de Fórum de Alto Nível
realizado em 2005. Cita-se, também, o Fórum de Alto Nível sobre a Harmonização de práticas cooperativas,
realizado em Roma (2003) e a Mesa Redonda de Marrakech (2004).
146
Lengyel e Malacalza (2011) definem a CSS como um conjunto de ações que inclui: (a) fluxos financeiros; (b)
investimentos patrocinados por governos federais; (c) acordos para fornecimento de energia; e (d) cooperação
técnica. Esses autores argumentam que a CSS não seria exatamente oposta à cooperação norte-sul. Para eles,
131

entendemos a CSS como uma parceria entre “iguais”, visto a heterogeneidade dos níveis de
desenvolvimento das nações do sul.
Mais recentemente, durante a Conferência de Buzan (2011), no 4º Painel de Alto Nível
sobre Cooperação Internacional147, corroborou-se a importância adquirida pela CSS, ainda
que com o reconhecimento de que o conceito engloba numerosas modalidades e práticas.
“SSC has become a tangible source of development cooperation, with middle‐income
countries (MICs) building horizontal partnerships to share development experiences, but
more needs to be learned about SSC modalities and practices”148.
No caso da cooperação sul-sul articulada oficialmente pelo Brasil, os formuladores de
política externa, especialmente durante a gestão Lula da Silva, convencionaram chamá-la de
Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional (CBDI), por ter essa
determinadas características e elementos diferenciadores. Ao procurar singularizar sua
cooperação, o país tenderia, além da oposição com o praticado pelo CAD149, implicar que sua
cooperação não seria exatamente a mesma que a de outras nações em desenvolvimento. Como
veremos nas seções seguintes, a CBDI foi convencionada por uma série de fatores
conjunturais e estruturais, como: o processo que fez com que o Brasil se tornasse, além de
receptor, provedor de cooperação; seu o crescimento econômico e de representatividade; a
busca por uma identidade cooperativa própria; o interesse retórico e de busca de legitimação
na configuração de uma política de cooperação pretensamente marcada por horizontalidade.

tanto a CSS quanto a cooperação tradicional são duas faces da mesma moeda, a da cooperação para o
desenvolvimento internacional. O que as diferencia são seus métodos.
147
Partner countries’ vision and priority issues for HLF 4. Position Paper. Buzan International Conference, 2011.
148
O trecho correspondente na tradução é: “A CSS tornou-se uma fonte tangível de cooperação para o
desenvolvimento, com países de renda média construindo parcerias horizontais para compartilhar experiências
em prol do desenvolvimento, mas mais é preciso ser aprendido sobre as modalidades e práticas da CSS”.
149
“La CTPD practicada por Brasil constituye un acto soberano de solidaridad y, por eso, no debe someterse a
reglas que se destinan a países donantes, en el ámbito de la asistencia Norte-Sur. (...). No obstante, es verdad que
Brasil estimula la aplicación de los principios – defendidos no solamente en la Declaración de París, sino
también en documentos de la propia ONU – como, entre otros, los de apropiación o dominio (ownership) y los
de responsabilidad (accountability) de los países en desarrollo sobre los programas de cooperación técnica”
(FONSECA, 2008, p. 76). O trecho correspondente na tradução é: “A CTPD praticada pelo Brasil constitui um
ato soberano de solidariedade e, por isso, não deve submeter-se a regras que se destinam a países doadores, no
âmbito da assistência Norte-Sul. (...). Não obstante, é verdade que o Brasil estimula a aplicação dos princípios –
defendidos não somente na Declaração de Paris, mas também em documentos da própria ONU – como, entre
outros, os de apropriação ou domínio (ownership) e os de responsabilidade (accountability) dos países em
desenvolvimento sobre os programas de cooperação técnica”.
132

3.2 A cooperação brasileira para o desenvolvimento internacional e suas


singularidades

O termo Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional (CBDI), já


utilizado com certa frequência em discursos e documentos pelo corpo diplomático brasileiro,
foi consubstanciado e sustentado por exemplos, convergentes com a prática de política
externa, somente em dezembro de 2010, com a edição de estudo específico sobre a temática e
que contou com a participação de IPEA150 e de ABC151. Em seu preâmbulo, o ex-presidente
Luís Inácio Lula da Silva afirmou:

Em um mundo cada vez mais interdependente, a paz, a prosperidade e a dignidade


humana não dependem apenas de ações em âmbito nacional, e a cooperação para o
desenvolvimento internacional é a peça chave para o estabelecimento de uma ordem
internacional mais justa e pacífica (SILVA, L., 2010, prefácio).

O argumento que inicia o estudo evidencia preocupação de cunho eminentemente


solidarista e pró-ativo na cooperação, a ser voltada para o compartilhamento de agendas
internacionais e para a consolidação de esforços em prol do desenvolvimento. Essa retórica,
como veremos, faz-se presente na visão brasileira quanto a sua modalidade de CSS,
justificada e definida como inédita, atuante e original. A valorização da CBDI como um
instrumental da política externa durante a gestão Lula da Silva, quando o Brasil passou a ser
também provedor de cooperação internacional não é coincidência.
Nesta seção, estudaremos de que forma o conceito de CBDI foi desenvolvido; qual sua
relação com a política externa brasileira e com o processo decisório no interior do Itamaraty,
que hodiernamente é questionado em seu insulamento; bem como os componentes de
interesses e de solidariedade que se imiscuem na dimensão conceitual da CBDI.

3.2.1 Brasil como provedor de cooperação: breve histórico da cooperação internacional


brasileira

150
Ao longo do tempo, o IPEA teve substancial importância, notadamente de viés economicista, no
estabelecimento de programas de consolidação da infraestrutura nacional, estando articulado, principalmente, à
cooperação recebida.
151
Trata-se da primeira tentativa do governo federal de sistematizar todos os dados da cooperação brasileira.
133

Historicamente, o Brasil foi grande recebedor de iniciativas cooperação de parceiros


tradicionais. Projetos de cooperação técnica em campos tão distintos como os de educação
universitária, de produção agrícola e de construção de infraestrutura, articulados por meio de
apoios externos, geraram externalidades para o país. Esses auxílios, que datam desde pelo
menos a década de 1930, manifestaram-se sob a forma de aportes financeiros e também como
compartilhamento de técnicas e de boas práticas, que foram adaptadas e incorporadas.
Dentro de uma lógica de utilização instrumental da política externa para o recebimento
de ajuda, o que pode ser associado à definição que fizemos do conceito de AOD na seção
anterior, o país conseguiria, por exemplo, por meio de barganha, espaço de manobra para a
implantação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda. Nos anos 1940,
quando da vinda das missões Cooke (1943) e Abbink (1949), ambas de origem norte-
americana, foram estabelecidas diretrizes para auxiliar e balizar o desenvolvimento
econômico do país152. Em 1950, a estratégia foi repetida com o estabelecimento da Comissão
Mista Brasil-Estados Unidos (CMBEU), sob a égide do Ponto IV.
Dentre as consequências mais importantes da comissão está a institucionalização do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), um ano depois, e do Conselho de
Desenvolvimento para a Coordenação Econômico e Financeira, em 1956. O BNDE tornar-se-
ia, ao longo dos anos 1960 e 1970, um dos mais importantes propulsores do
desenvolvimentismo, com impactos em infraestrutura e provimento de crédito para atividades
produtivas, tendo consequências também em áreas sociais.

As instituições nacionais adquiriram novo impulso com a aceleração do processo de


desenvolvimento e procuraram definir com congêneres estrangeiras programas de
intercâmbio, a fim de trazerem para o país os conhecimentos técnicos e tecnológicos
que complementassem o esforço interno de modernização. A existência de
instrumentos governamentais, privados ou para-governamentais, tais como
convênios e acordos, passariam a exigir uma coordenação mais ordenada por parte
dos órgãos centrais, que assegurasse, por um lado, a eficiência do mecanismos e, por
outro, compatibilizasse as atividades com o esforço nacional de desenvolvimento
(FILHO, 2007, p. 66).

152
A cooperação era balizada, tanto internacionalmente, quanto no entendimento dos formuladores de política
externa sob a forma de auxílios eminentemente financeiros, a exemplo do Plano Marshall. Tanto é que, em 1950,
durante o governo Gaspar Dutra, o então chanceler Raul Fernandes enviou ao embaixador dos Estados Unidos
no Rio de Janeiro, Herschel Johnson, o chamado “memorando da frustração”, em que deixava clara a
insatisfação do país em não ser recompensado com o apoio financeiro, técnico e tecnológico do parceiro
hemisférico após o esforço de guerra ao lado dos aliados.
134

Prova disso é a criação da Comissão Nacional de Assistência Técnica (CNAT), em


1953, que tinha o objetivo de posicionar favoravelmente as entidades brasileiras que
solicitassem apoio técnico de parceiros externos. Acordos nas áreas de indústria pesada,
metalurgia, produção de soja e de minérios foram fomentados, possibilitando o contato e a
utilização de técnicas que se mostrariam úteis ao projeto desenvolvimentista, à estratégia de
ocupação dos “vazios territoriais” do país-continente (como o Norte do Paraná, regiões da
Amazônia e o oeste de São Paulo) e à busca de inserir o Brasil em um novo patamar de
desenvolvimento no sistema internacional153.
Isso não significou, entretanto, que a ajuda internacional fosse uma constante, visto
que estava condicionada aos interesses de política externa dos Estados Unidos para a América
Latina como um todo, e em virtude do conflito com a URSS. Prova disso é que, durante os
anos de Dwight Eisenhower na presidência norte-americana (1953-1961), a CMBEU foi
extinta unilateralmente e o fluxo de cooperação – em volume de recursos e em quantidade e
variedade de projetos – diminuiu drasticamente.
Iniciativas como a Operação Pan-Americana (1958)154 tentaram reverter esse quadro,
articulando a possibilidade de “subversão” como uma decorrência factível da falta de apoio
norte-americano ao desenvolvimento das Américas. A menção à necessidade de investimentos
e à assistência técnica norte-sul era um dos componentes da proposta dirigida a
Eisenhower155.
Apesar da existência de constrangimentos, o fluxo de cooperação internacional
posterior obrigou as estruturas governamentais a se adaptarem e a se modernizarem em
função das exigências dos parceiros externos quanto à prestação de contas e à avaliação dos
projetos iniciados e já em curso. Em 1969 seria assinado o Decreto 65.476, que dispunha

153
As influências da corrente cepalina, personificada no Brasil sob a figura de Celso Furtado, de promover a
industrialização por substituição de importações como forma de superar a estrutural deteriorização dos termos de
intercâmbio, eram notórias. Além de Furtado, podemos citar Sousa Costa, ex-ministro da Fazenda de Getúlio
Vargas, que estipulou projeto macroeconômico de crescimento incentivado pela demanda doméstica como saída
para a crise que se abatia sobre o Brasil no início dos anos 1930.
154
Pode-se apontar, como consequências da OPA, a criação do Comitê dos 21 da Organização dos Estados
Americanos (OEA), encarregado de estudar modalidades de cooperação econômica, de onde surgiria o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), responsável pelo financiamento de projetos de desenvolvimento e de
cooperação técnica na América Latina. Essa instituição, assim como a adoção da Ata de Bogotá (1960), pela
OEA, que reconhece a dependência e inter-relação entre os problemas econômicos e sociais; e da Aliança para o
Progresso (1961), durante os anos Kennedy; sofreram a influência da reação norte-americana à Revolução
Cubana (1959).
155
É interessante observar como, mais de cinquenta anos depois, a base discursiva da OPA é, de certa maneira,
resgatada pela chancelaria de Celso Amorim e pela presidência de Lula da Silva. Em seus discursos em prol de
uma globalização mais justa e inclusiva, Lula advogava que uma das causas das instabilidades sistêmicas era a
má distribuição mundial de poder.
135

sobre atividades de cooperação técnica e criava novos órgãos, determinando, ainda, que os
diferentes departamentos da administração direta e indireta criassem repartições para dar
seguimento às práticas cooperativas.
Nesse mesmo ano, o art. 3º do Ato Institucional 16 estabelecia uma “política interna
de cooperação técnica e a coordenação de sua execução, incluindo a definição de prioridades
e a integração com o plano global de governo”, em que caberia ao MRE formular uma política
externa de cooperação voltada para o encaminhamento de demandas a organismos
multilaterais e às agências de cooperação de governos estrangeiros. “Ainda nesse momento,
nenhuma menção seria feita à cooperação prestada pelo país” (FILHO, 2007, p. 67-68)
O decreto visava a consolidar a política de recebimento de cooperação no jugo dos
ministérios das Relações Exteriores e do Planejamento e Coordenação Geral, no sentido de
que a negociação e o encaminhamento dos projetos ficariam a cargo dessas duas pastas,
reforçando a concentração decisória. Essa escolha reforça o argumento que trabalhamos no
capítulo anterior, de que o Itamaraty buscava insular-se como burocracia especializada,
advogando-se, por meio da instrumentalização da diplomacia como meio de angariar o
desenvolvimento pátrio, como responsável principal pela configuração da política externa.
A postura do Brasil frente à cooperação tornar-se-ia, a partir desse período,
multifacetada. Se até o fim dos anos 1960 a cooperação brasileira era essencialmente aquela
recebida, nos anos 1970, esse quadro passaria por certa inflexão, pois o Brasil começaria a
utilizar a cooperação internacional com objetivos políticos junto a parceiros da América
Latina e aos países recém-independentes da África. Compreendia-se, pela primeira vez, que a
política externa poderia valer-se da cooperação como forma de assegurar e de difundir a
imagem do país, além de angariar oportunidades comerciais e econômicas junto a parceiros
ainda com baixa representatividade para o corpo diplomático.

Os objetivos da cooperação passariam, então, a ser duplos. Enquanto cooperação


prestada, seria instrumento de política externa que visava ao mesmo tempo objetivos
políticos e econômicos. Afirmava-se o Brasil como potência emergente,
estreitamente vinculado à promoção de exportações e abrindo mercado para
consultores e equipamentos brasileiros. E como cooperação recebida, tanto
multilateral quanto bilateral, com o objetivo de trazer para o País tecnologia e
conhecimentos necessários aos projetos nacionais de desenvolvimento (FILHO,
idem).

A cooperação seria, portanto, vista como forma pragmática de se obter a autonomia.


Em contexto sistêmico de diminuição relativa das tensões entre as grandes potências, de
avanço dos processos de descolonização e de transformações na configuração geopolítica do
136

mundo, o Brasil, já se encontrando em outro patamar de desenvolvimento e de


representatividade internacionais, entenderia a cooperação, tanto a recebida como a prestada,
como ferramenta útil de sua política externa. Por caminhos multilaterais e especialmente os
bilaterais156, o país encetaria múltiplos programas de capacitação técnica.
No eixo das parcerias de cooperação em que o Brasil comportava-se como provedor,
esperava-se aprofundar as relações com países em desenvolvimento, o que poderia reforçar os
pleitos brasileiros em foros como o GATT, a UNCTAD e a Assembleia Geral da ONU; e
também mostrar o país, uma ex-colônia, como nação em franco progresso, uma potência em
ascensão capaz de influenciar o tabuleiro internacional.
Inúmeros acordos de cooperação técnica foram firmados com nações africanas, por
consequência do périplo africanista do ex-chanceler Gibson Barbosa. “Dentro do programa
africano, a diplomacia brasileira conferia prioridade às demandas das ex-colônias
portuguesas, com bolsas de estudo oferecidas a estudantes, ao tempo em que eram
estruturados planos de contingência para atender a esses países157” (FILHO, 2007, p. 69). No
âmbito sul-americano, México, Peru, Uruguai, Paraguai, Colômbia, Venezuela e Bolívia
foram beneficiados com projetos de matriz brasileira.
Para implementá-los, o MRE requisitava a presença de entidades como SENAI,
EMBRAPA, ELETROBRAS e BNH, bem como de ministérios como os da Saúde e da
Educação, num sinal claro de que, desde àquele momento, arvorava-se como formulador e
não executor da política externa, buscando-se mostrar como articulador e organizador dessas
demandas frente aos demais atores domésticos. Essas iniciativas cooperativas, no entanto,
apesar de serem novidade na composição das ações de política externa, não deixavam de ser
tópicas, ainda ensaios de uma nação que buscava meios de se projetar de forma mais
afirmativa e pragmática.
Já quanto à cooperação técnica recebida, norte-sul, o Programa de Cooperação Nipo-
Brasileiro para o Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER), fruto de parceria entre o país
e a Agência Japonesa de Cooperação Internacional (JICA), assinada em 1970, é considerado
um dos mais representativos. O projeto, que envolveu a adaptação dos solos do Centro-Oeste,

156
Isso é especialmente válido para a política externa durante Garrastazu Médici, em que o Brasil preferiu
engajar-se, no nível simétrico, por meio de parcerias bilaterais, por meio das quais poderia exercer maior poder
de barganha.
157
Tampouco estavam claros, nesse momento do governo Médici, os objetivos brasileiros para as ex-colônias
portuguesas no continente africano. Ainda que realizasse um périplo histórico, o país firmaria, em 1972 a
Convenção sobre Igualdade de Direitos e Deveres entre Brasileiros e Portugueses, com apelo à relação
“fraternal” entre os dois países (CERVO, 2012).
137

ácidos, para a produção de culturas como a soja, por meio da aplicação do processo da
calagem, permitiu a maturação do complexo agroindustrial brasileiro (CAI) e o avanço da
urbanização para o interior do país, sendo hoje replicado com parceiros em desenvolvimento,
seja por meio de parcerias trilaterais, seja por meio de acordos bilaterais158.
Nos anos 1980, período de crise econômica e de deteriorização dos preços relativos, o
país continuaria vendo a cooperação sul-sul como forma de auxiliar na prospecção de
mercados e na manutenção das importações de combustíveis energéticos e de apoios em
instâncias multilaterais. As vendas de armamentos para países do Oriente Médio, em contexto
de conflito Irã-Iraque, era prova de que, aparte possíveis vozes contrárias, a cooperação e a
diplomacia eram utilizadas com fins de contribuir para o desenvolvimento nacional159. Mesma
preocupação realista estava presente no estabelecimento da ZOPACAS, em que havia
preocupação com a potencial ameaça da África do Sul do apartheid sobre seus vizinhos –
notadamente Angola e Namíbia, com os quais o Brasil buscava relação mais assertiva. A
iniciativa cooperativa, portanto, não pode ser dissociada de seu componente de segurança.
É notório acentuar que, além das iniciativas de caráter bilateral em que o Brasil era
contribuidor, o país foi a primeiro, no continente sul-americano a contribuir com recursos
próprios para o PNUD, voltados para o provimento de cooperação técnica alhures. Isso
ocorreu porque o Brasil foi “graduado” no organismo multilateral, passando a ser considerado
de renda média, o que o obrigava a realizar maiores contrapartidas nacionais aos recursos
advindos da organização.
Entretanto, foi só a partir da criação da ABC160, no âmbito do MRE, em 1987, que
foram estabelecidas as bases para a efetiva inclusão da cooperação como uma das vertentes da
política externa. A agência foi estruturada com atribuições legais de negociar, coordenar,
implementar e acompanhar programas e projetos brasileiros de cooperação técnica,
executados com base em acordos firmados entre o Brasil e outros países e instituições
internacionais. O surgimento da ABC deu-se em contexto de redemocratização e da
manutenção de uma estratégia diplomática universalista, com continuidades, de modo geral,
entre Geisel e Sarney.

158
Então a principal vertente da política de cooperação brasileira, as técnicas internalizadas tinham íntima
ligação com os os setores privilegiados nos planos nacionais de desenvolvimento como o I e o II PND.
159
Isso não significava que o conteúdo eminentemente político-diplomático também não estivesse presente nas
iniciativas de cooperação, como nas reuniões do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA, assinado em 1978).
160
O PNUD teve importante papel, principalmente na capacitação de seus quadros, no processo de
institucionalização da ABC.
138

O estabelecimento da ABC foi concomitante à realização de reforma administrativa e


ministerial e à necessidade de se reorganizar a estrutura de cooperação brasileira, tanto no
vértice norte-sul, quando no eixo sul-sul. A partir da ABC, o tema da cooperação, até então
coordenado por duas instâncias, o MRE e o Ministério do Planejamento, ficaria a cargo
exclusivo do Itamaraty. Inicialmente vinculada à Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG),
a ABC unificou as funções da antiga Subsecretaria de Cooperação Econômica e Técnica
Internacional (SUBIN), ligada ao Planejamento, e da Divisão de Cooperação Técnica
(DCOPT), do MRE, ganhando maior autonomia financeira e centralidade na gestão.
A partir da ABC, foi modificado o objetivo primordial até então de destinar a
cooperação técnica recebida para o apoio a instituições técnicas nacionais, vinculadas a
setores produtivos brasileiros. Com a agência já instituída, estabeleceu-se, de início, um
modelo sem perfil ou estratégia definidos, mas pautado em expectativas de curto prazo,
associadas às novas demandas trazidas pela Carta de 1988, pela estabilização
macroeconômica dos anos 1990 e pela realização das conferências sobre temas
socioeconômicos ligadas à ONU nesse período (FONSECA, 2008).
A complexidade de uma nação recém-saída de um regime de exceção e em um
processo claudicante de tentativa de estabilização de sua economia representava enorme
desafio para não só para os gestores públicos brasileiros, como também para os formuladores
da política externa. Principalmente após o sucesso do tripé macroeconômico de âncora
cambial, metas de inflação e metas de superávit primário, o país passaria a ter condições de
aperfeiçoar as ferramentas de ação estatal em prol do desenvolvimento e passíveis de serem
utilizadas, também, como fontes domésticas para projetos de cooperação.
A partir desse momento, a cooperação técnica multilateral recebida pelo Brasil, que
até então tinha caráter unilateral, pautado por ações pontuais, modifica-se. Torna-se praxe o
desenvolvimento conjunto de novos conceitos e de práticas, em que as organizações
internacionais atuam muito mais como catalisadores de processos de transformação
endógenos do que como meios de transmissão de conhecimentos. Como o Brasil foi
“graduado” em seu nível de desenvolvimento – inclusive, em sistemas de preferências
comerciais de alguns países –, e o componente nacional da execução de projetos de
cooperação passaria a ser mais valorizado, a contrapartida doméstica seria mais incentivada.
O termo “associação” integrou-se à ideia de “cooperação multilateral recebida”.
No âmbito bilateral, a ABC passaria a receber, com frequência cada vez maior,
demandas de parceiros em desenvolvimento interessados em exemplos de sucesso técnico do
139

país, em áreas como desenvolvimento agrário, educação e saúde. Esses pedidos passariam,
então, a ser encaminhados aos órgãos nacionais com o know-how específico, em um processo
de reconhecimento de que a presença de outros atores que não o MRE era necessária. Isso não
quer dizer, no entanto, que eles tivessem poder decisório sobre a cooperação ou mesmo
capacidade de influência na tomada de decisões. Como a estrutura decisora, negociadora e
articuladora estava centralizada no Itamaraty, o ministério mantinha-se soberano na definição
dos rumos da política de cooperação brasileira, tanto no aspecto norte-sul como no de CSS161.
Com o processo de “renovação de credenciais” em política externa162, levado a cabo
na transição para os anos 1990, o Brasil buscaria integrar-se de forma competitiva em um
cenário de globalização, de desregulamentação econômica e de formação de blocos regionais,
por meio da quitação de suas “hipotecas”, a exemplo das agendas de meio ambiente e de
direitos humanos. A cooperação com instâncias multilaterais e com parceiros bilaterais
provou-se um dos meios de atingir esses objetivos.
Além disso, a institucionalização do MERCOSUL, um novo tabuleiro de atuação
externa do Brasil, fez com que as iniciativas de CSS se concentrassem mais no âmbito sul-
americano163. Durante as presidências de Collor de Mello e de Itamar Franco, Argentina,
Paraguai e Uruguai, se tornariam os destinatários principais de acordos bilaterais de
cooperação. Nesse momento, a lógica de solidariedade terceiro-mundista viria a ser
efetivamente abandonada, em momento de redefinição das estratégias de inserção do país.
Durante a gestão de FHC, o Brasil buscou consentir com os principais regimes
internacionais em voga, em uma lógica de contribuir para o estabelecimento de um
multilateralismo limitado. Nesse sentido, o conceito de desenvolvimento ampliar-se-ia,
abarcando temas de agendas como meio ambiente, comércio internacional, investimentos,
desarmamento, etc. Com o país identificando-se como uma nação ocidental, defensora de um
multilateralismo previsível e buscando angariar logros da globalização, a cooperação deveria
ser a garantidora de uma ordem internacional pacífica e estável.

161
A exemplo do programa de construção conjunta de satélites espaciais entre Brasil e China (CBERS),
destinado ao monitoramento de recursos terrestres e que seria renovado posteriormente, mostra de como a
estratégia de CSS viria a complementar os esforços nacionais de estruturação da competitividade. As imagens
geradas pelo CBERS seriam, posteriormente, durante o governo de Lula da Silva, providas, como meios de
cooperação técnica, para países africanos monitorarem seus recursos naturais.
162
O termo é creditado a Fonseca Jr. (1998).
163
No período Collor de Mello, o Brasil fez opção de aproximar-se dos Estados Unidos e dos sócios do
MERCOSUL, abrindo mão, relativamente, das relações que vinha mantendo com o continente africano e que até
então eram um dos destinos prioritários da CSS brasileira.
140

Em seu segundo mandato, o Brasil obteria importante vitória nas negociações relativas
à produção de medicamentos antirretrovirais contra o HIV/AIDS, feito que foi possível, em
2001, pelo ativismo do país em parceria com a Índia. A possibilidade de licenciamento
compulsório de fármacos, consequência do engajamento em coalizões sul-sul, ensejaria o
posterior desenvolvimento de acordos de cooperação nesse campo, com ações de combate ao
vírus e de capacitação de funcionários dos sistemas de saúde pública de países,
principalmente, africanos e sul-americanos.
Se, durante FHC as relações com os parceiros do sul teriam menos relevância relativa,
em comparação com o período do universalismo e com os anos de Lula da Silva, é possível
afirmar que, nesse quadro, a CSS não era uma ferramenta claramente institucionalizada a
serviço dos interesses do país. Postura contrária era a relativa à cooperação recebida, tanto
bilateral como multilateral que, decerto, pode ser articulada à ênfase dada nas relações do
Brasil com atores desenvolvidos.
Com a chegada de Lula da Silva à presidência e de Celso Amorim à chancelaria, as
relações sul-sul foram elevadas a eixo estratégico para a inserção do Brasil, o que traria por
consequência o aumento do número e do tipo de projetos de CSS capitaneados pelas
instituições nacionais sob a coordenação da ABC164. Associando discurso de solidariedade
com a perspectiva de ampliar a presença internacional do país, o período de 2003 a 2010
permitiu que o Brasil complexificasse sua posição no SICD, deixando de ser majoritariamente
recebedor, para também ser classificado como provedor de boas práticas.
Nesse intervalo de tempo, tantas foram as iniciativas de CSS que tinham o Brasil
como provedor da cooperação que a identidade do país como recebedor líquido de cooperação
técnica foi modificada para a de uma nação que recebe a cooperação, mas que também
comporta-se como provedora. Acompanhando o crescimento econômico, a diminuição
relativa da pobreza e da miséria e a mudança do reconhecimento externo quanto ao Brasil,
houve aumento expressivo no volume de recursos destinados para os projetos supervisionados
pela ABC. Mais notável que isso, o entendimento quanto à CSS foi substancialmente
modificado, deixando de privilegiar operações pontuais para tornar-se contínuo.
Em âmbito institucional, é criada, em 2004, a Subsecretaria-Geral de Cooperação e
Comunidades Brasileiras no Exterior (SGEC), englobando a ABC, o Departamento de
Promoção Comercial e o Departamento Cultural. Essa própria disposição da burocracia
intraministerial é digna de nota. Situada sob um mesmo guarda-chuva organizacional que as

164
Em 1996, a ABC é integrada à Secretaria-Geral do Ministério das Relações Exteriores.
141

áreas de promoção comercial e de difusão cultural, a cooperação técnica brasileira estaria


associada, desde sua gênese, às dimensões de hard power e de soft power da diplomacia
brasileira. A própria organização do ministério indicaria isso.
O orçamento da ABC, que em 2001 era de R$ 450 mil, passaria para R$ 4,5 milhões
em 2003, R$ 8 milhões; R$ 32 milhões, em 2005; e R$ 92 milhões em 2009, com esse salto
quantitativo devendo-se, inicialmente, ao engajamento brasileiro na MINUSTAH165 e às
ações de cooperação que acompanharam o envio do contingente militar para operações de
campo.
Como veremos neste trabalho, a CSS do Brasil, mais tarde chamada de Cooperação
Brasileira para o Desenvolvimento Internacional (CBDI) conjuga perspectiva pragmática da
política externa, - como seu próprio posicionamento na burocracia indica -, involucrada por
um manto retórico que não pode ser ignorado. Indo além de seu mero caráter técnico, a CBDI
por envolver as contribuições brasileiras para organizações internacionais, concessões de
bolsas de estudo e de ajuda humanitária, englobou, de 2005 a 2009, uma soma de R$ 2,89
bilhões, saltando de R$ 384 milhões (2005) para R$ 724 milhões (2009) (ABC; IPEA, 2010).
O breve histórico é indicativo de que o lugar da cooperação internacional – tanto a
recebida, como a prestada – na política externa não é novo, tendo raízes históricas no primeiro
quartil do século passado. O que se observa, na passagem de FHC para Lula da Silva na
presidência, com respectivas mudanças em suas chancelarias e na arregimentação de forças
intra-MRE, foi que a cooperação, especialmente a CSS, torna-se um viés reconhecidamente
estratégico pelos formuladores diplomáticos, passando a nortear ações externas brasileiras em
regiões nas quais os interesses de atores domésticos estivessem presentes.

3.2.2 CBDI: principais características

A CBDI, vertente da cooperação sul-sul empreendida pelo país e que considera outras
modalidades além da cooperação técnica, é definida, no discurso oficial da diplomacia
brasileira, como especializada, participativa, horizontal, não indiferente e articuladora das
políticas públicas domésticas com a política externa. O termo CBDI é explicado como:

165
O orçamento da ABC é ínfimo se comparado com os valores totais da CBDI, pois essa envolve modalidades
outras, como, por exemplo, as contribuições brasileiras – diretamente via governo federal – para OIs ou para
ajuda humanitária internacional. A ABC atua principalmente no campo da cooperação técnica.
142

A totalidade de recursos investidos pelo governo federal brasileiro, totalmente a


fundo perdido, no governo de outros países, em nacionais de outros países em
território brasileiro, ou em organizações internacionais com o propósito de
contribuir para o desenvolvimento internacional, entendido como o fortalecimento
das capacidades das organizações internacionais e de grupos ou populações de
outros países para a melhoria de suas condições socioeconômicas (ABC; IPEA,
2010, p. 17)166.

Essa definição institucional, ainda que como delimitação conceitual que é – e, por sê-
lo, implica na escolha de algumas variáveis explicativas e na negação de outras -, nos permite
tecer alguns argumentos. Primeiramente, ao explicitar que a CBDI é a forma de cooperação
que envolve recursos investidos “pelo governo federal”167, o Itamaraty, atendo-se
especificamente às fontes federais de financiamentos, deixa de lado qualquer tipo de
cooperação cuja fonte de recursos seja oriunda de particulares, de empresas privadas e de
governos subnacionais168.
Isso corrobora a posição de que, por convencionar a cooperação oficial prestada pelo
governo brasileiro como sendo, exclusivamente, aquela cujas fontes de financiamento são
federais e cuja coordenação passa necessariamente pela ABC, o MRE reforça seu ensejo de
arregimentação da cooperação brasileira e de limitação do escopo de participação de outros
atores, que possam vir a atuar sem o seu crivo169.
Em segundo lugar, quanto à menção à expressão “totalmente à fundo perdido”170,
entende-se que se trata de clara marcação de posição contrária ao conceito de AOD.
Diferentemente da AOD, que destina pelo menos 25% dos aportes a fundo perdido171, os
recursos envoltos nas atividades de CBDI são descritos como totalmente a fundo perdido, ou

166
O levantamento foi realizado com 66 instituições federais.
167
A ideia de financiamentos “oficiais” também é a que marca o conceito de AOD.
168
Fronzaglia define a inserção internacional de entidades subnacionais, sustentada pela paradiplomacia, como:
“o conjunto de atividades desevolvidas pelas unidades subnacionais – de maneira isolada ou conjunta –
conforme seu grau de autonomia e que visam sua inserção internacional, podendo ser complementares, paralelas
ou conflitantes com a diplomacia conduzida pelo governo central” (FRONZAGLIA, 2004, p. 50).
169
Isso não significa, sobremaneira, que esses outros atores não realizem cooperação descentralizada, muita da
qual à margem dos mecanismos oficiais. O que ocorre é que, limitando o conceito chave da CBDI ao elemento
de governo federal, o ministério diminui, pela via do não financiamento, as possibilidades de ação independente
dessas entidades subnacionais.
170
Leia-se: fundos não reembolsáveis.
171
Exclui-se, desse cálculo, os empréstimos de agências de créditos à exportação cujo único propósito seja o de
promover as exportações de países em desenvolvimento para mercados desenvolvidos.
143

seja, sem a necessidade de contrapartidas financeiras posteriores – mesmo que com prazos de
financiamentos estendidos e juros abaixo do valor de mercado172.
Os recursos da CBDI, além de poder serem destinados a governos federais de outros
países, podem ter como destino nacionais de outros países em território brasileiro – como, por
exemplo, o recente fluxo de migrantes haitianos na região amazônica -, ou organizações
internacionais para as quais o Brasil comumente contribua, como é o caso do PNUD e bancos
internacionais voltados para o desenvolvimento.
Uma das bases da CBDI é a valorização do componente de “execução nacional” dos
projetos de cooperação técnica recebidos. Até o fim dos anos 1980, vigorava a chamada
“execução direta” dos projetos cooperação técnica implementados por meio do sistema ONU,
em que tanto a responsabilidade da gestão administrativa e financeira quanto a condução
técnica – e daí o adjetivo direta – eram realizadas pelas próprias organizações componentes
das Nações Unidas. A partir de estudos capitaneados pela ONU, em parceria com nações em
desenvolvimento, amadureceu-se, ao longo dos anos 1990, o conceito de “execução
nacional”. De acordo com ele, os projetos de cooperação técnica devem ser implementados
pelos próprios governos dos países recipiendários, de modo a permitir maior envolvimento
desses Estados na condução das práticas cooperativas e também promover maior domínio
(ownership) e responsabilidade (accountability) desses atores (FILHO, 2007).
O componente de execução nacional, parte integrante dos projetos de cooperação
técnica realizados pelo Brasil foi delimitado em 2004, conforme consta o Decreto 5.151. De
acordo com seu art. 2º:

A Execução Nacional define-se como a modalidade de gestão de projetos de


cooperação técnica internacional acordados com organismos ou agências
multilaterais pela qual a condução e direção de suas atividades estão a cargo de
instituições brasileiras ainda que a parcela de recursos orçamentários de
contrapartida da União esteja sob a guarda de organismo ou agência internacional
cooperante.

A CBDI envolve atividades para além somente das de cooperação técnica, envolvendo
ajuda humanitária, concessão de bolsas de estudo para estudantes e pesquisadores e
contribuições para OIs. O próprio termo “cooperação técnica” é definido, no posicionamento
oficial, como “cooperação técnica, científica e tecnológica”. A inclusão desses outros

172
Durante o Terceiro Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda (2008), em que se firmou a Agenda de
Ação de Acra, o Brasil rechaçou fortemente ser designado como “novo doador”. Trata-se de marcação de
posição que reverbera as críticas da diplomacia brasileira feitas quando da adoção da Declaração de Paris (2005).
Essas críticas são mais identificáveis com a corrente autonomista no interior da burocracia decisória do MRE.
144

elementos terminológicos permite que um leque mais amplo de ações esteja à disposição dos
formuladores de política externa, conformando uma forma de CSS “à brasileira”.
Com isso, o governo brasileiro não só obtém a oportunidade de “inflar” os números
relativos ao volume total de recursos destinados à cooperação, o que lhe garante a imagem de
país pró-ativo, como também deixa claro que sua perspectiva quanto à cooperação é mais
ampla do que a adotada pelo CAD e mesmo pelo sistema onusiano. Além disso, essa postura
legitima e busca convergir a atuação de outros atores da burocracia governamental já com
certa tradição de cooperação, como é o caso do Ministério da Educação, um dos participantes
necessários quando consideramos, por exemplo, a concessão de bolsas de estudos.
De 2005 a 2009, ou seja, majoritariamente durante o segundo governo de Lula da
Silva, R$ 2,89 bilhões foram destinados para as práticas de CSS prestadas pelo Brasil. Se
considerarmos o total de recursos governamentais, do ano de início e do marco final do
levantamento, observaremos que houve um aumento de 88% no volume total de dispêndios,
passando de R$ 384 milhões, em 2005, para R$ 724 milhões, em 2009.

Gráfico 1 – Evolução da CBDI de 2005-2009

Evolução da CBDI de 2005-2009


(em R$ milhões)

724

604 616
569

384

2005 2006 2007 2008 2009

É particularmente relevante o salto de 57% no volume total de recursos no intervalo


entre 2005 e 2006, em que houve aumento de R$ 384 milhões para R$ 604 milhões. Ao
145

considerarmos todo o período em questão, observamos que se trata de um aumento


sustentado, apesar de queda relativa (6%) no intervalo entre 2006 e 2007173.
Não é coincidência, porém, que o salto de 57% (2005-2006) tenha ocorrido no
contexto de engajamento na MINUSTAH e na renovação dos pleitos brasileiros a um assento
permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Em 2005, do total de R$ 384
milhões voltados para a CBDI, R$ 299 milhões (77%) foram destinados a contribuições para
organizações internacionais, com especial destaque para a ONU. Já no ano subsequente, do
montante de R$ 604 milhões, R$ 509 milhões (84%) também tiveram o sistema onusiano,
considerado como um todo, como principal destino.
Das práticas implementadas pelo Brasil, por meio da CBDI, no período em questão, há
quatro tipos de parcerias: (i) bilaterais, em que o país atua com mais de 70 nações em
desenvolvimento; (ii) regionais, a exemplo de instâncias como UNASUL, MERCOSUL,
Sistema Econômico Latino-Americano (SELA), Associação Latino-Americana de Integração
(ALADI) e OEA; (iii) intergovernamentais, como a CPLP e a Secretaria-Geral Ibero-
Americana (SEGIB); e (iv) multilaterais, que envolvem os recursos destinados a OIs como a
FAO.
Dos R$ 2,89 bilhões destinados às iniciativas que compõem a CBDI, tem-se174: R$
155 milhões (5,3%) destinados à assistência humanitária internacional (AHI); R$ 284 milhões
(9,8%) à concessão de bolsas de estudo para estrangeiros; R$ 252 milhões (8,7%) para
cooperação técnica, científica e tecnológica; e R$ 2.2 bilhões (76%) referentes às
contribuições para organizações internacionais.

Gráfico 2 – Percentual do total de recursos da CBDI (2005-2009)

173
No levantamento de IPEA e ABC não são definidos os motivos para a existência dessas variações. O que é
cabível afirmar é que esses dados não têm relação com o crescimento do PIB, visto que as taxas de crescimento
do PIB brasileiro foram completamente dissonantes das relativas à CBDI. As variações na taxa de crescimento
do PIB entre 2005 e 2009 foram: 2,3% (2005); 2,9% (2006); 5,4% (2007); 5,1% (2008); -0,2% (2009). Fonte:
IBGE.
174
Valores aproximados.
146

Percentual do total de recursos da CBDI (2005-2009)

5%
10% Assistência Humanitária

9% Bolsas de Estudo

Cooperação Técnica,
Científica e Tecnológica
Contribuições a OI
76%

Inicialmente, ao considerarmos cada uma das rúbricas componentes da CBDI, temos


que a AHI é definida oficialmente como a “ajuda do Brasil a países ou regiões que se
encontrem, momentaneamente ou não, em situações de emergência ou de calamidade
pública”175. Entre 2005 e 2009, a assistência humanitária somou R$ 155 milhões,
representando 5,3% do total de recursos coordenados pelo Itamaraty por meio da ABC. No
entanto, se observamos todo o intervalo pesquisado, teremos um aumento expressivo,
passando de R$ 1,1 milhão em 2005 para R$ 87 milhões em 2009. Trata-se de um
crescimento de 73 vezes. Ainda, se apenas levarmos em consideração o ano de 2009, temos
que a AHI foi responsável por 12% do total dos valores correntes da CBDI, à frente do
volume destinado a bolsas de estudos (ABC; IPEA, 2010, p. 20-22).
É interessante notar que houve mudança na estratégia de canalização dos recursos, de
distribuição via organizações internacionais para assistência direta aos territórios afetados por
desastres ou calamidades. Em 2005, a maior parte dos valores (57%) tinha distribuição
realizada por meio de OIs. Em 2009, isso muda de forma drástica, com 97% dos recursos
sendo alocados diretamente, sem a existência de intermediários.
Ao preferir a abordagem de aplicação direta de recursos, abre-se menos espaço para
ingerência externa. Além disso, o país ganha maior poder de barganha e condições para poder

175
De acordo com o levantamento, a AHI envolve: a) cooperação financeira; b) custos administrativos
associados; c) doações em espécie (suprimentos); d) horas técnicas; e) materiais e equipamentos; (f) e passagens
e diárias. Os maiores percentuais do total de recursos voltados para AIH são os relativos à cooperação financeira
e doações em espécie.
147

convergir os aportes financeiros com seus objetivos mais gerais de política externa, visto que
a negociação passa a ser de governo a governo. Em terceiro lugar, pode-se argumentar que,
com a canalização direta das contribuições, o Brasil estaria reconhecendo o papel do país
parceiro como esse sendo capaz de autogerir a cooperação recebida e dar seguimento a suas
próprias necessidades, o que amplia o componente ownership da execução nacional.
Quanto à distribuição por regiões, as principais destinatárias foram América Latina e
Caribe (76%), Ásia (16%)176 e África (7%)177. Já os principais países receptores da AIH
brasileira foram Cuba (21%), Haiti (19%), territórios palestinos (12%) e Honduras (10%).
O segundo componente da CBDI refere-se à concessão de bolsas de estudo para
estrangeiros que realizam estudos no Brasil e para diplomatas de países em desenvolvimento,
especialmente os de língua portuguesa e da América do Sul, que complementam sua formação
no IRBr. Entre 2005 e 2009, a modalidade envolveu R$ 284 milhões (9,8% dos recursos).
Apesar de ser uma das modalidades de cooperação mais tradicionais, realizada desde
1950, por meio da CNAT, a concessão de bolsas de estudo teve queda percentual acentuada
no intervalo entre 2005 e 2009. Se em 2005 a modalidade respondia por 14% do total de
recursos destinados à CBDI (R$ 56 milhões), em 2009 passou a representar cerca de 6,1% do
total dispendido (R$ 44 milhões)178. Mesmo assim, se considerarmos todo o período estudado,
em números absolutos, a concessão de bolsas de estudo apresenta-se como o segundo
principal instrumento de CBDI, situando-se atrás das contribuições para OIs.
Os quatro principais atores envolvidos nessa modalidade de cooperação sul-sul são os
ministérios da Ciência e Tecnologia (MCT), da Educação (MEC) e das Relações Exteriores,
além da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Nota-se que,
do total de recursos investidos na modalidade, apenas 2% têm como origem o MRE, o que
indica que o Itamaraty, apesar de atuar como formulador e também como executor dessa
atividade de cooperação internacional, não detém a liderança no encaminhamento desse tipo
de CBDI.
De 2005 a 2009, o MCT, por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), respondeu por 50% dos recursos (R$ 140 milhões)

176
Especialmente em função do conflito árabe-israelense e do envio de fundos para áreas afetadas dos territórios
palestinos.
177
Mais da metade dos recursos foram destinados à Guiné Bissau.
178
Entre 2007 e 2008, contudo, houve aumento relativo de recursos, o que indica que não houve uma política
progressiva de incremento de investimentos nessa modalidade.
148

destinados à concessão de bolsas de estudos para estrangeiros179. A atenção voltada para os


PALOP – dos principais destinatários da CBDI – é reforçada quando consideramos o volume
de recursos investidos pela CAPES, que somou R$ 79 milhões (28% do total) no período em
questão. Em 2009, essa instituição tornou-se a principal fornecedora de recursos para essa
modalidade de cooperação, respondendo por 46% dos aportes180.
O MEC foi o terceiro principal responsável pelos recursos investidos na concessão de
bolsas de estudos entre 2005 e 2009. Foram R$ 57 milhões (20% do total), mas com aumento
expressivo ao longo do período analisado. De R$ 9,7 milhões (2005), a pasta passou a
responder por R$ 14 milhões (2009), com 80% desses recursos destinados à América Latina e
à África por meio do Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação (PEC-PG).
Quanto ao MRE, com apenas 2% do total (R$ 5,5 milhões), a principal destinação dos
recursos também é para nações africanas e sul-americanas. Destaca-se o Programa de
Incentivo à Formação Científica, uma parceria entre o Departamento de África do Itamaraty e
a CAPES, voltado para o oferecimento de cursos de curta duração para estudantes dos
PALOP.
Já o terceiro componente da CBDI refere-se às contribuições brasileiras para
organizações internacionais. Trata-se da principal modalidade de cooperação sul-sul
brasileira, em volume absoluto de recursos, respondendo por R$ 2,2 bilhões entre 2005 e
2009. Percentualmente, compreende 76% do total destinado à CBDI.
Na consideração de IPEA e ABC, a rubrica “contribuições às organizações
internacionais” envolve, de fato, a integralização de capital dos bancos regionais 181 e as
próprias contribuições para as OI. Se considerarmos somente essas últimas, excetuando os
bancos regionais, o volume de recursos duplica-se, passando de R$ 134 milhões (2005) para
R$ 361 milhões (2009).

179
Entretanto, é preciso ponderar que, em 2009, houve queda substancial na participação do MCT, que passou de
59% do total (em 2006 e 2007) para apenas 18% do total de recursos investidos.
180
O Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua Portuguesa com o Timor Leste representa 37%
dos recursos dispendidos pela CAPES. Além do histórico da presença do Brasil naquele país, por meio da
Missão das Nações Unidas no Timor Leste (UNAMET), após a invasão da Indonésia em 1999, o parceiro é parte
da CPLP e tem o português como uma de suas línguas oficiais. Os esforços brasileiros, em, através de iniciativas
como essa da CAPES, disseminar o estudo e o ensino do idioma, são parte das ações de política externa do
período de Lula da Silva à frente da presidência. A língua é um dos elementos de difusão cultural e de
estreitamento de laços, possibilitando a construção de confiança mútua e a valorização do soft power (NYE,
2004).
181
Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento e Banco Africano de Desenvolvimento foram os
principais recebedores de fundos brasileiros.
149

A opção de política externa de angariar uma postura mais ativa nas arenas
multilaterais é causalidade a ser apontada para esse aumento. “O crescimento dos recursos
destinados à contribuição com organismos internacionais (...) resulta das novas adesões feitas
pelo país a outras organizações e se alinha à crescente relevância do Brasil junto à OMS, à
Opas e à ONU” (ABC; IPEA, 2010, p. 38).
Quanto à ONU, mencionam-se os recursos para a MINUSTAH, além dos destinados à
FAO e ao ACNUR. No que diz respeito ao MERCOSUL, o Fundo para a Convergência
Estrutural e Fortalecimento Institucional (FOCEM) do bloco, voltado para combater as
assimetrias entre os sócios, respondeu por R$ 430 milhões entre 2005 e 2009. A FAO está
especificamente relacionada com o objeto de estudo dessa dissertação, a cooperação
brasileiro-africana em segurança alimentar. De acordo com o Levantamento de IPEA e ABC,
a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação recebeu R$ 103 milhões
do Brasil entre 2005 e 2009.
Em 2005, a FAO sequer era parte da lista das dez OI que mais recebiam recursos
brasileiros. Em 2006, passou a ocupar o segundo lugar da lista, com um montante de R$ 70
milhões, estando atrás apenas do MERCOSUL (R$ 76 milhões). Nos anos seguintes, de 2007
a 2009, a FAO, agência com maior orçamento do sistema ONU, sempre esteve entre as oito
principais OI recebedoras de recursos brasileiros182.
Os dados ilustram uma realidade que será discutida no último capítulo desta pesquisa,
em que defenderemos a hipótese de que a cooperação em segurança alimentar foi
instrumentalizada, durante a gestão de Lula da Silva, na política externa para o continente
africano. É possível argumentarmos, também, que o aumento no volume de recursos tem
relação com o pleito brasileiro – apoiado pessoalmente pelo ex-presidente – de eleição de José
Graziano da Silva ao cargo máximo da FAO, o que de fato aconteceu em 2011.

3.2.3 A cooperação técnica como vertente da CBDI

A cooperação técnica, científica e tecnológica, - ou simplesmente cooperação técnica -


, nos é especialmente cara, visto que o nosso objeto de estudo, a cooperação em segurança
alimentar entre Brasil e África é uma manifestação dessa cooperação. Ainda que essa
182
MERCOSUL e ONU foram os principais destinos, seguidos por OMS e Organização Pan-Americana de
Saúde, o que corrobora a relevância da saúde como tema da política de cooperação do país.
150

modalidade de CBDI seja a terceira em volume de recursos entre 2005 e 2009 (R$ 252
milhões ou 8,7% do total), ela vem ganhando espaço relativo na agenda cooperativa externa
brasileira. Se em 2005 ela respondia por R$ 27 milhões (7% do total de recursos daquele ano),
em 2009 ela passou para R$ 97 milhões (13%), um aumento proporcional de 259%.
Sobre esse tipo de CSS, argumenta-se que: “a atuação do governo brasileiro é balizada
fundamentalmente pela missão de contribuir para o adensamento de suas relações com os
países em desenvolvimento” (ABC; IPEA, 2010, p. 32). Em termos práticos, ocorre o
compartilhamento de conhecimentos – por exemplo, técnicas de cultivo agrícola em
determinados tipos de solo – entre o Brasil e suas contrapartes em desenvolvimento. A
cooperação técnica compreende a transferência e o intercâmbio de tecnologias aplicadas a
serviços básicos de educação, saúde, saneamento, segurança pública, entre outros; e também
ao apoio à realização de pesquisas (AYLLÓN, 2006).
Do total de recursos dispendidos entre 2005 e 2009 para cooperação técnica, científica
e tecnológica, R$ 174 milhões (69%) foram destinados a treinamentos e capacitações; R$ 70
milhões (28%) para custos administrativos associados; e R$ 7 milhões (3%) para a compra de
equipamentos (ABC; IPEA, 2010, p. 58). Assim como ocorre com a concessão de bolsas de
estudo a estudantes estrangeiros e com a assistência humanitária internacional empreendida
pelo Brasil, a maior parte dos recursos destinados à cooperação técnica privilegiou a opção
pela cooperação direta bilateral183 no lugar da multilateral.

La cooperación bilateral tiende a concentrarse en socios privilegiados: países


vecinos más próximos de menor desarrollo relativo, la comunidad africana de lengua
portuguesa y Timor Oriental. En ese caso, la cooperación con países ricos también
es buscada, por medio de esquemas innovadores que potencien los recursos
disponibles. (...) Las iniciativas sudamericanas, junto con las demás acciones en la
dimensión Sur–Sur, deberían servir, justamente, de test-case para el ejercicio del
liderazgo regional brasileño, con pretensiones de extensión al plano global, siempre
en un sentido alternativo a las modalidades tradicionales de cooperación política,
generalmente dominadas por los países más ricos. Después de cinco o seis años de
activismo diplomático, los resultados de esas acciones aún precisan ser evaluados
con cuidado, separando ganancias efectivas de la retórica diplomática, siempre
optimista o unilateral en términos de balance y presentación (ALMEIDA, 2008, p.
111-113)184.

183
As contrapartidas brasileiras em cooperação técnica, científica e tecnológica trilateral foram incluídas, no
levantamento oficial, na rubrica bilateral.
184
O trecho correspondente na tradução é: “A cooperação bilateral tende a concentrar-se em sócios
privilegiados: países vizinhos mais próximos de menor desenvolvimento relativo, a comunidade africana de
língua portuguesa e Timor Leste. Nesse caso, a cooperação com países ricos também é buscada, por meio de
esquemas inovadores que potenciem os recursos disponíveis. (...) As iniciativas sul-americanas, junto com as
demais ações na dimensão sul-sul, deveriam servir, justamente, de test-case para o exercício da liderança
regional brasileira, com pretensões de extensão ao plano global, sempre em um sentido alternativo às
modalidades tradicionais de cooperação política, geralmente dominadas pelos países mais ricos. Depois de cinco
151

De fato, a cooperação por via bilateral envolveu 92% dos recursos dispendidos nessa
modalidade, com Argentina (8% do total); Guiné Bissau (6%); Timor Leste, Cuba e
Moçambique (4% cada) recebendo o maior volume relativo de aportes. Já o valor investido
em cooperação técnica, científica e tecnológica, por via multilateral, - por intermédio de uma
OI -, respondeu por apenas 8% do total, sendo 20% dessa quantia referentes à CPLP; 16% à
OMS; e 11% ao Programa Conjunto da ONU sobre HIV/AIDS. Novamente, interpreta-se a
escolha bilateral como forma dos formuladores de política externa estarem menos sujeitos à
tutela das OI.
Com relação ao MERCOSUL, tem-se que os sócios mercosulinos receberam 15% do
total de recursos dispendidos pelo Brasil nessa modalidade de CBDI185. Contudo, ainda que
haja contrapartidas brasileiras para projetos de cunho multilateral, viabilizados pela atuação
de instâncias do bloco, a maior parte dos financiamentos foi garantida por via bilateral. O
dado não é de se estranhar, visto a predileção dos formuladores de política externa por uma
inserção mais intergovernamental – tanto no período de ascendência dos institucionalistas
pragmáticos como no subsequente, dos autonomistas – em âmbito sub-regional.
Com a cooperação técnica, científica e tecnológica, há uma internacionalização de
políticas públicas empreendidas em âmbito doméstico. Conforme discutimos na primeira
seção deste capítulo, a cooperação técnica norte-sul recebida pelo país ao longo das últimas
décadas foi importante para a formação de instituições de referência e para a internalização de
práticas que hoje são replicadas e compartilhadas com outras nações.

A CTC&T do Brasil faz uso das boas práticas de desenvolvimento econômico e


social – testadas e bem-sucedidas em âmbito nacional – para adaptá-las a outros
países em desenvolvimento com realidades semelhantes, e com os quais o Brasil
compartilha aspectos históricos e culturais. Nesse sentido, a distribuição geográfica
da CTC&C do Brasil ilustra a prioridade conferida aos vizinhos da América do Sul e
aos países de língua portuguesa (ABC; IPEA, 2010, p. 35).

Dessa forma, há um “transbordamento” da política interna para a política externa, pois


questões anteriormente tratadas como assunto doméstico tornaram-se vértices de projeção

ou seis anos de ativismo diplomático, os resultados dessas ações ainda precisam ser avaliados com cuidado,
separando ganâncias efetivas da retórica diplomática, sempre otimista ou unilateral em termos de balanço e
apresentação”.
185
Aqui, lembramos, não se incluem os recursos do FOCEM.
152

internacional do Brasil, estando articuladas com as diretrizes de formulação da política


externa186.

Não se trata de exportação de políticas públicas e sim de um movimento de


internacionalização. A diferença entre uma e outra modalidade se encontra no fato
de a internacionalização, ao contrário da exportação, pressupor um alto grau de
aceitação e legitimidade, uma prática em geral estimulada por uma afinidade real ou
construída entre os atores envolvidos, e não como imposição de experiências de fora
para dentro (PINHEIRO; MILANI, 2012, p. 336).

O interesse e a participação de atores outros que não o Itamaraty nas diferentes searas
de cooperação técnica, assim como a acentuação da interdependência entre as agendas
doméstica e internacional, são fatores que contribuem para esse quadro.

As metas globais que a sociedade brasileira persegue – democracia, respeito aos


direitos humanos, desenvolvimento, equilíbrio social, erradicação da pobreza –
refletem-se, portanto, na ação externa do País. Essas são as constantes a partir das
quais a diplomacia atua, levando em consideração, ademais, a junção entre as
dimensões interna e externa da vida nacional, inclusive o monopólio declinante do
Estado em matéria de política externa e a crescente afirmação da democracia
brasileira. O Itamaraty busca organizar o debate sobre o processo internacional e
estabelece, a cada passo da formulação diplomática, alianças com diversos
segmentos da sociedade e da burocracia governamental, de tal forma que as opções
concretas tenham base real de apoio ao refletirem interesses profundos da sociedade
civil (FILHO, 2007, p. 47, grifo nosso).

Faz sentido, portanto, que 62% do total de recursos da CTC&T alocados pelo Brasil,
no período em análise, tivessem como destino a África Subsaariana, a América Latina e o
Caribe. Entre 2005 e 2009, a América Latina e o Caribe somaram R$ 90 milhões do total da
CTC&T brasileira, com a África permanecendo na segunda colocação, com R$ 64 milhões. É
mister observarmos, contudo, o salto quantitativo realizado nos aportes ao continente
africano. Se em 2006 a África respondia por apenas R$ 3 milhões em valores correntes, esse
número alcançaria R$ 31 milhões em 2009. O valor encontra-se superado apenas pelos
recursos destinados à América Latina e ao Caribe nesse ano, que somam R$ 32 milhões.

Brasil busca disponibilizar la transferencia de sus experiencias exitosas y los


conocimientos técnicos adquiridos, prioritariamente para los demás países de
Suramérica, Centroamérica y Caribe (sobre todo Haití), y de África (principalmente
los de lengua portuguesa), y así mismo con aquellos con los cuales tenemos lazos

186
E aqui rememoramos toda a discussão traçada no capítulo inicial desta dissertação sobre a existência de
fronteiras cada vez mais porosas na separação entre o que é doméstico e o que é internacional.
153

históricos y culturales, como es el caso de Timor Oriental y el Líbano (FONSECA,


2008, p. 66)187.

Assim, em 2009, África e América Latina e Caribe188 responderam por percentuais


praticamente iguais do total de capital brasileiro com vistas a financiar projetos de cooperação
técnica. Isso vai ao encontro do discurso de formuladores da política externa de retomada da
importância do africanismo na inserção internacional do país. Também é tributário do
contexto de valorização da cooperação sul-sul como um dos marcos mais relevantes da gestão
de Lula da Silva (SARAIVA, M., 2007).
Quando analisadas em conjunto, tratam-se de regiões que, tal qual a realidade
brasileira, também padecem entraves ao desenvolvimento. Por compartilharem problemas
comuns, podem fazer uso do know-how adquirido pelo Brasil desde meados do século
passado, de forma a implementarem suas estratégias de superação do subdesenvolvimento.
Em suma, aplicar-se-ia a lógica de soluções comuns para desafios semelhantes.

3.3 Política externa, interesses e solidariedade

O cerne desta seção é discutirmos a validade dos argumentos de interesses e de


solidariedade na CBDI, com especial atenção para sua modalidade de cooperação técnica.
Nosso argumento é o de que os Estados, entre eles o Brasil, não agem de forma desinteressada
na formalização de coalizões ou de parcerias internacionais. Há objetivos, muitos deles não
definidos claramente, de médio e de longo prazos, nas articulações externas encetadas. Ao
cooperarem, fazem valer seus interesses nacionais, ou, conforme nossa digressão no primeiro
capítulo desta dissertação, os posicionamentos, preferências e agendas dos atores que
influenciam – por barganhas, por composição de posições, etc. - a política externa.
Dessa forma quando mencionarmos os termos “interesse” ou “interesses”, estaremos
nos referindo não a um Estado visto tal qual “bola de bilhar”, fechado, isolado de pressões
societárias; fazemos menção, ao contrário, às posturas de política externa que refletem não

187
O trecho correspondente na tradução é: “O Brasil busca disponibilizar a transferência de suas experiências
exitosas e os conhecimentos técnicos adquiridos, prioritariamente para os demais países da América do Sul,
América Central e Caribe (sobretudo Haiti), e da África (principalmente os de língua portuguesa), e também com
aqueles com os quais temos laços históricos e culturais, como é o caso do Timor Leste e do Líbano”.
188
Em 2007, a SEGIB afirmou, em documento, que o Brasil é um dos mais ativos provedores de cooperação sul-
sul nas Américas.
154

interesses uníssonos ou pacificamente construídos pela arregimentação de forças domésticas,


mas das resultantes desses processos. Assim, nosso entendimento passa pela ideia de que as
práticas de cooperação estão intimamente relacionadas com “interesses” concebidos pelos
formuladores de política externa, frente às pressões que sofrem na configuração do
comportamento internacional.
Interesses, aqui, são vistos em sentido amplo, e não necessariamente como projeções
egoístas, de jogos de soma zero nas relações entre Estados. Compreendemos que construir
uma ordem mais justa e inclusiva é um interesse, assim como angariar apoios em votações em
instituições multilaterais também é um interesse. O que os diferencia, entretanto, é que o
primeiro deles consubstancia-se por um viés discursivo mais solidarista e cosmopolita, de que
um país não agiria unicamente para atender às próprias aspirações. Esse matiz retórico tende a
dirimir possíveis críticas internacionais de que um Estado estaria agindo em termos
eminentemente individuais, mas isso não impede que, de fato, justificar uma ação cooperativa
como de ganho comum das nações em desenvolvimento não tenha, subjacente a ela, o
atendimento a uma demanda tipicamente nacional.
Já o segundo exemplo de “interesse” é mais voltado para o atendimento de demandas
individuais mais imediatas, relativamente, podendo não contar com a mesma “blindagem”
discursiva contra críticas provenientes de setores de opinião domésticos e internacionais. Ao
considerarmos esse norteamento conceitual, não iremos nos imiscuir em discussões
exaustivamente teóricas sobre qual dos interesses é mais “realista”, “cosmopolita”, “liberal” e
afins. Isso estancaria nossa evolução argumentativa. Entendemos que os comportamentos
externos de um país mudam de acordo com a coalizão de forças que se encontrar no poder e
que isso, respondendo ao jogo de forças domésticas e influenciado por considerações
sistêmicas, gera um output decisório que prevê a consecução de dados objetivos – os
interesses. A estratégia para alcançá-los, entretanto, é variável.

3.3.1 Solidariedade na CTC&T brasileira

Quando analisamos especificamente a CBDI, o discurso comumente repetido é o de


que essa cooperação técnica é inspirada no conceito de diplomacia solidária, não tendo fins
lucrativos e estando desvinculada de interesses comerciais, imposições ou condicionalidades
155

políticas (BARRETO, 2012; ABC; IPEA, 2010; FONSECA, 2008; XALMA, 2008; FILHO,
2007). Além disso, o Brasil agiria somente a partir de demandas provenientes de seus
parceiros, o que fortaleceria o componente de execução nacional. Assim, o país atuaria
conforme sua disponibilidade de recursos e a necessidade dos parceiros externos.
Tratar-se-ia de contribuir para o fortalecimento das capacidades das organizações
governamentais estrangeiras e de grupos ou populações de outros países para a melhoria de
suas condições socioeconômicas. “O objetivo último do Brasil é o desenvolvimento integral
dos parceiros, que impulsione mudanças estruturais em suas economias, levando a um
crescimento sustentável que garanta, igualmente, inclusão social e respeito ao meio ambiente”
(ABC; IPEA, 2010, p. 32-33).
Esse elemento idealista, identificado por Fonseca (2008), seria compatível
teoricamente com as tradições cosmopolitas e liberais das relações internacionais, nas quais a
cooperação para o desenvolvimento é vinculada aos imperativos humanitários e ao
compromisso ético, e está desvinculada de interesses imediatos e de ganhos relativos. O
componente moral-liberal desse posicionamento, de raíz kantiana, também nortearia os
discursos em prol de mais solidariedade nas relações entre os Estados, comuns no
posicionamento retórico do corpo diplomático brasileiro durante Lula da Silva.
Alguns autores, como Xalma (2008), acompanhados pelo posicionamento oficial da
ABC, argumentam que essa modalidade de cooperação é caracterizada por horizontalidade, a
dizer, promovida sem condicionalidades e interesses subjacentes, voltada para o progresso
comum das partes. Essa seria consensual, articulada de acordo com as necessidades dos atores
envolvidos, com distribuição de custos e de benefícios.
Por ser multidimensional, buscar-se-ia garantir resultados sustentáveis a médio e longo
prazos. O componente “estrutural” da cooperação tem o objetivo de fazer com que essa não
seja apenas uma ocorrência casuística ou pontual, mas que possa promover ganhos
prospectivos e continuados para o receptor das boas práticas, de forma a prover-lhe condições
de, ao internalizar o conhecimento recebido, dar continuidade ao seu desenvolvimento.
“SSC was originally created as a comprehensive mechanism of solidarity between
developing countries and has, therefore, a cooperative philosophy based on the creation,
adaptation and transfer of knowledge and experience for human development”189
(LENGYEL; MALACALZA, 2011, p. 18). Assim, ainda que passível de questionamento, é

189
O trecho correspondente na tradução é: “A CSS foi originalmente criada como um mecanismo amplo de
solidariedade entre países em desenvolvimento e tem, por causa disso, uma filosofia cooperativa baseada na
criação, adaptação e transferência de conhecimento e de experiência para o desenvolvimento humano”.
156

possível afirmar que existe componente de solidariedade intrínseco na CSS, em âmbito geral
e, especificamente, naquela empreendida pelo Brasil. Seja por sua origem e
institucionalização no seio da ONU; seja como intuito de se diferenciar da cooperação
tradicional; seja por genuíno anseio de promoção de ganhos coletivos; a solidariedade é
elemento a ser considerado nas parcerias em âmbito sul-sul.
Em termos práticos, a CSS do Brasil trata-se de um modelo em construção, com forte
conteúdo retórico e prático em prol de argumentos solidaristas e cosmopolitas, ditos
preocupados com o desenvolvimento das nações de menor desenvolvimento relativo e com o
estabelecimento de um sistema internacional mais justo, equânime e democrático em suas
instâncias decisórias.

A ajuda aos países pobres é muito importante, mas não é suficiente. Cooperação,
investimento, transferência de tecnologia, compartilhamento de conhecimento e
treinamento profissional são centrais para promover uma globalização mais justa e
inclusiva. (...) Os esforços de cooperação Sul-Sul promovidos pelo Brasil, mas
também por outros países, seguem nessa direção. Por que eu enfatizo a cooperação
Sul-Sul? Porque não se trata apenas de dinheiro, se trata de compartilhar
experiências (AMORIM, 2009190).

O pleito em prol de uma globalização mais justa e inclusiva, contudo, não deixa
enunciar o interesse brasileiro em conformar, com o apoio de seus parceiros em
desenvolvimento, ordem internacional mais democrática e afeita ao contexto de ascensão de
países emergentes. Justifica-se, portanto, por via do argumento da solidariedade, o objetivo de
política externa de angariar maior representatividade num cenário externo em transição e com
“polaridades ainda indefinidas” (LAFER; FONSECA JR. 1997).
Esse objetivo, quando revestido pelo argumento moral e humanitário de “justiça”,
angariaria legitimidade para a posição brasileira, de modo que essa teria como consequência
benesses para todo o mundo em desenvolvimento, e não somente para os anseios nacionais.
Assim, ainda que busque participar das instâncias decisórias de foros multilaterais por razões
também de política doméstica, o Brasil o justificaria, entre outros motivos, por sua vocação de
ecoar demandas de nações com dilemas estruturais semelhantes. A solidariedade, portanto,
tida institucionalmente como marca da cooperação empreendida pelo país, responderia a uma
estratégia mais ampla, de marcação de posição para a consecução de um objetivo instrumental
de política externa.

190
Discurso do Ministro Celso Amorim na Reunião do Grupo de Trabalho sobre a Dimensão Social da
Globalização - 306ª Sessão do Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho. Genebra,
16 de novembro de 2009 (MRE, 2010).
157

Dessa forma, ao ser defendida retoricamente como solidária, a cooperação brasileira


teria o condão de aferir legitimidade ao comportamento internacional do país. Justamente por
ser “solidário”, o Brasil não se mostraria como “predatório”, “egoísta” ou desrespeitoso à
soberania dos parceiros. Nesse sentido, a busca por reconhecimento internacional seria um
dos objetivos dessa atuação dita “desinteressada” e voltada - em teoria – para o
desenvolvimento de parcerias conjuntas.

O principal desafio é assegurar que os projetos de cooperação apoiados pelo Brasil


atendam às necessidades dos países com os quais cooperamos e que resultem em
benefícios duradouros. Há, ainda, a preocupação de que a cooperação prestada não
seja interpretada erroneamente como “moeda de troca” relativa a apoios em fóruns
internacionais ou em privilégios de caráter econômico-comercial. Ao contrário
disso, a cooperação brasileira é instrumento que possibilita a criação de uma pauta
positiva de relações com os países vizinhos (FARANI, 2012, entrevista ao autor) 191.

Conforme argumentam Ayllón e Leite (2010), a solidariedade envolveria também a


existência de identidade entre as partes, identidade essa que pode ser associada com a
condição de países emergentes, o que ecoaria as bases, ainda que com mudanças perceptíveis,
do terceiro-mundismo. Além disso, o Brasil compartilharia desafios com esses países, muito
dos quais poderiam ser melhor enfrentados a partir de soluções nacionais, e não de técnicas
adaptadas de receituários vindos de países desenvolvidos ou sem passar por modificação de
bases. A ideia de passado colonial comum e de luta contra o imperialismo é outro elemento
que pode ser levado em consideração na composição do argumento solidarista.
A partir do incentivo institucional à atuação externa cooperativa, o Brasil buscou
mostrar-se como um ator articulado com a ordem internacional vigente, mas com condições
de assumir maiores responsabilidades e de lidar de forma diferenciada, com um olhar do sul,
para questões de vulto na seara internacional. Isso se coaduna com seu crescimento
econômico relativo; com sua maior resiliência frente à crise de 2008, em comparação com os
países europeus e com os Estados Unidos; e com seus esforços de ser percebido como um
player global que defende regimes e normas.
O rol de modalidades associadas à CBDI é articulado a três componentes
conformadores do objetivo de política externa de o Brasil obter papel internacional de maior
relevo: (1) reconhecer-se como um ator capaz de assumir responsabilidades internacionais
múltiplas e mostrar-se como país pró-ativo e que “age pelo exemplo”; (2) ser líder do mundo
periférico, tendo condições de levar suas demandas às instâncias decisórias multilaterais, o

191
Entrevista do ministro Marco Farani, ex-diretor da ABC, no período 2008-2012, ao autor. Entrevista realizada
em 2012.
158

que garante legitimidade ao país e reforça a ideia de responsabilidade; (3) obter o


reconhecimento das grandes potências de que é Estado conformado às normas e às regras em
vigor, não ameaçando decisivamente o jogo de forças sistêmico e não tendo comportamento
revisionista absoluto.
De fato, o conceito de legitimidade é fundamental para entendimento dessa tripla
dimensão conceitual da solidariedade da CBDI, de modo que conforma, respectivamente, três
visões: a própria; a dos parceiros do sul; e a dos principais poderes, arquitetos de uma ordem
contemporânea que se encontra em transformação.
Tem-se: (1) a visão própria do Brasil e de seus formuladores e implementadores de
política externa sobre suas capacidades frente a um sistema anárquico, mas matizado por
regras de conduta e de convivência mínimas. Durante os dois mandatos de Lula da Silva foi
ressaltada essa mudança em política externa, de que o país não deveria somente se conformar
com os regimes, como apregoava a autonomia pela participação do período FHC, mas de que
a legitimidade internacional deveria ser angariada por ações concretas, notadamente as de
cooperação sul-sul (ALMEIDA, 2004).
Por meio da internacionalização de políticas públicas, o Brasil buscaria adensar as
relações com seus pares do sul e colocar-se como um ator que conforma retórica em ações,
voltadas para gerar ganhos absolutos em prol de uma governança compartilhada. Não
podemos ignorar o argumento, também, de que, ao internacionalizar cases de sucesso
desenvolvidos em âmbito doméstico – como as práticas de combate à fome e à pobreza –
essas práticas estariam ganhando reforço em sua validade.
De fato, quando países sul-americanos, por exemplo, requisitam a expertise técnica
brasileira em programas de transferência condicionada de renda, como é o caso do Bolsa
Família, a iniciativa governamental empreendida em âmbito doméstico adquire importância
regional e internacional. Por mais que existam posicionamentos críticos contrários à
internacionalização dessas práticas – principalmente por o Brasil continuar com níveis
relevantes de pobreza e de desigualdade192 -, o fato é que o transbordamento de uma política

192
“Brasil es un país que, aunque tenga el PIB más alto de América del Sur, no tiene la renta per cápita más alta
ni tampoco una distribución de renta equilibrada. Al contrario, la alta desigualdad socio-económica provoca
pobreza y una deuda social que hace políticamente difícil defender la ayuda al desarrollo para el exterior. La
ayuda al desarrollo para los países vecinos recibe críticas de parlamentarios, de los medios y de parte de la
burocracia estatal” (SARAIVA, M., 2008). O trecho correspondente na tradução é: “O Brasil é um país que,
ainda que tenha o PIB mais alto da América do Sul, não tem renda per capita mais alta nem tampouco uma
distribuição de renda equilibrada. Ao contrário, a alta desigualdade socioeconômica provoca pobreza e uma
dívida social que torna politicamente difícil defender a ajuda ao desenvolvimento para o exterior. A ajuda ao
desenvolvimento para os países vizinhos recebe críticas de parlamentares, dos meios de comunicação e de parte
159

pública nacional para o eixo externo tende a corroborar sua propriedade e aplicabilidade,
legitimando a burocracia governamental.
Além disso, (2) deve-se considerar que há a percepção oriunda dos Estados receptores
da CBDI, de que o Brasil seria um ator legítimo, diferente dos defensores das prerrogativas do
CAD-OCDE193 e também de outros grandes países emergentes194, dimensão essa que será
melhor discutida no próximo capítulo, em que abordaremos a cooperação brasileira para o
desenvolvimento agrário no continente africano.
Leva-se em consideração, também, (3) a visão de que o Brasil é legítimo pelos olhos
dos países mais poderosos, capaz de manter a estabilidade da ordem ao assumir mais
responsabilidades, atuando para o fortalecimento de regimes. Esses não devem ser alterados
drasticamente, mas apenas no sentido de propiciarem espaço para a inclusão de mais
demandas do sul. Trata-se de um componente de “revisionismo soft” da diplomacia brasileira
(LIMA, 2010)195.
Lengyel e Malacalza (2011), em interessante esforço analítico de definir o conceito de
CSS e as diferentes formas de sua operacionalização por distintos países emergentes, afirmam
que a agenda política da cooperação sul-sul é centralizada em dois objetivos específicos: a
reforma da ordem e do sistema econômico. Essa percepção está de acordo com o argumento
revisionista soft, de que, ao involucrar retoricamente sua projeção como a de uma potência
solidária, o Brasil almejaria modificar algumas bases normativas da ordem atual.

A cooperação Sul-Sul é um aspecto fundamental da política externa brasileira. A


construção de uma ordem internacional mais democrática não é somente produto de

da burocracia estatal”. Disponível em: http://foroaod.org/2008/09/11/brasil-en-accra-una-apuesta-firme-por-la-


cooperacion-sur-sur, acesso em: 20/03/2013.
193
Segundo Sousa (2008), essa necessidade de diferenciar-se é resultado da posição híbrida do Brasil entre o
Norte e o Sul. “Brasil es sin duda un actor global que apoya los valores de democracia y derechos humanos,
formando, a su vez, parte del Sur. Brasil proyecta su papel de “puente” entre Norte y Sur – caracterizándose a la
vez como defensor de los países en vías de desarrollo y socio estratégico de potencias como la Unión Europea y
los Estados Unidos”. O trecho correspondente na tradução é: “O Brasil é, sem dúvida, um ator global que apoia
os valores de democracia e direitos humanos, formando, por sua vez, parte do sul. O Brasil projeta seu papel de
‘ponte’ entre o norte e o sul – caracterizando-se tanto como defensor dos países em desenvolvimento como sócio
estratégico de potências como a União Europeia e os Estados Unidos”. Disponível em:
http://foroaod.org/2008/09/11/brasil-en-accra-una-apuesta-firme-por-la-cooperacion-sur-sur, acesso em
20/03/2013.
194
“Os africanos sentem que, com os brasileiros, participam de uma conversa entre iguais, o que jamais ocorrerá
com os chineses”, frase de um executivo sul-africano. Disponível em:
http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,brasil-tem-5-maior-presenca-diplomatica-na-
africa,786550,0.htm?p=4, acesso em 31/10/2011.
195
Segundo Lima (2010), trata-se de um revisionismo pragmático, calcado antes em interesses concretos que em
princípios gerais norteadores das relações interestatais.
160

uma necessidade de natureza moral. Interessa ao Brasil que as relações


internacionais estejam assentadas em regras equânimes. É necessário traduzir as
mudanças estruturais em transformações institucionais (AMORIM, 2009).

Conforme afirma Gelson Fonseca Jr., “a legitimidade ganha força quando se sustenta
em valores que são consensuais para a comunidade que os cria e têm, portanto, o condão de
servir como base firme para normas” (FONSECA JR., 1998, p. 161). O autor acrescenta que
esses valores deveriam, idealmente, servir toda a sociedade de Estados e não somente a
interesses particulares. A menção ao caráter ideal, entretanto, não deixa de representar uma
realidade em que os objetivos particulares estão presentes. Conforme atestam Nye e Keohane,
“if a state can make its power legitimate (…) and establish international institutions that
encourage others to define their interests in compatible ways, it may not need to expend as
many costly traditional resources”196 (KEOHANE; NYE, 2000, p. 4).

3.3.2 A CTC&T como instrumento de PEB197

A CTC&T, mesmo marcada pela base solidarista, seria reconhecida como


“instrumento de política externa” (ABC; IPEA, 2010, sumário executivo). Corroborando a
realidade fática da preferência por acordos bilaterais em que o Brasil possa fazer valer mais
claramente seus objetivos e o controle sobre os processos cooperativos de que é parte, “as
diretrizes da atuação do Brasil em diferentes modalidades de intercâmbio internacional foram
construídas e são aplicadas a partir de uma diplomacia independente, sem subserviência e
respeitosa de seus parceiros” (Idem, apresentação).
Autonomia e universalismo, duas das características da política externa sob a
chancelaria de Celso Amorim, norteariam, dessa forma, a CBDI, em sua lógica mais
operacional. O princípio da não indiferença198, articulado que é com o aspecto solidarista da

196
O trecho correspondente na tradução é: “Se um Estado torna seu poder legítimo (...) e estabelece instituições
internacionais que encorajam outros a definir seus interesses de modos compatíveis, talvez não precise despender
tantos recursos tradicionais custosos”.
197
Optamos por criar uma nova subseção não por considerarmos os aspectos de solidariedade e de interesses
como apartados. Entendemos que solidariedade e interesses são duas facetas complementares do comportamento
internacional do Brasil. Fizemos a distinção nesta nova subseção somente para facilitar a leitura.
198
O conceito parece ter sido utilizado pela primeira vez em 2004, em discurso do presidente Lula da Silva na
China, em que argumentava sobre as iniciativas brasileiras no campo da segurança no cenário sul-americano. “A
crescente aproximação e a consolidação das relações do Brasil com a sua região requerem que as situações de
161

cooperação, inspiraria a CBDI. Entretanto, ainda que o componente humanitário faça parte
das iniciativas brasileiras – pelo menos no ponto de vista retórico -, o comportamento do
Brasil na seara da cooperação seria caracterizado por convergência de vertentes de
solidariedade e de interesses.
Nos dois mandatos de Lula da Silva, a postura diplomática atuou no sentido de não
somente promover a manutenção e a preservação de “fronteiras de cooperação”199 existentes
com os vizinhos sul-americanos, como também ampliá-las para regiões que não eram
tradicionais recebedoras da cooperação brasileira, como a América Central, o Caribe e a
África. Entendeu-se que o lugar do Brasil no mundo deixou de ser a América do Sul, o
continente americano ou o hemisfério ocidental e tornou-se muitos.

A partir de 2004, a CGPD200 brasileira tem-se pautado pelas seguintes diretrizes:


priorizar programas de cooperação técnica que favoreçam a intensificação das
relações do Brasil com seus parceiros em desenvolvimento, principalmente com os
países de interesse prioritário para a política exterior brasileira; apoiar projetos
vinculados, sobretudo a programas e prioridades nacionais de desenvolvimento dos
países recipiendários; canalizar os esforços de CGPD para projetos de maior
repercussão e âmbito de influência, com efeito multiplicador mais intenso;
privilegiar projetos com maior alcance de resultados; apoiar, sempre que possível,
projetos com contrapartida nacional e/ou com participação efetiva de instituições
parceiras; estabelecer parcerias preferencialmente com instituições genuinamente
nacionais (ABC, 2012)201.

O que ocorre, na realidade dos fatos e discursos da diplomacia brasileira, é que os


interesses associados às práticas cooperativas não costumam ser claramente identificados ou
evocados. No entanto, nenhum Estado age sem levar em consideração seus interesses. Uma
das respostas para esse aparente paradoxo pode ser a ideia de legitimidade, tratada na seção
anterior. Parece-nos que, para os formuladores de política externa, aliar um comportamento

instabilidade em países do continente mereçam um acompanhamento mais atento por parte do governo
brasileiro, orientado pelo princípio da não intervenção, mas também por uma atitude de ‘não indiferença’”
(MRE, 2007). Alguns autores o relacionam o conceito de não indiferença como inspirador da ideia de
responsabilidade de proteger, no contexto da ocorrência do massacre de Darfur, conforme Murithi (2009). Lima
(2005b) associa o conceito de não indiferença com as teses de intervenção humanitária e de promoção da
democracia.
199
O termo é de Lafer (2000) e originalmente referente às relações entre o Brasil e seus vizinhos no entorno
regional sul-americano. O ex-chanceler o cunhou em substituição à ideia de “fronteiras de separação”, que
contém a perspectiva de afastamento como característica intrínseca da relação sub-regional. Ao defender o
comportamento brasileiro para com seus vizinhos como cooperativo, o autor argumentou que isso permitiria
maiores oportunidades para que o tema do desenvolvimento estivesse presente na pauta das relações bilaterais
sul-americanas. Nós entendemos que as “fronteiras da cooperação” estiveram, durante a gestão Lula da Silva,
além do âmbito sub-regional.
200
Coordenação Geral de Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento.
201
Disponível em: http://www.abc.gov.br/abc_por/webforms/interna.aspx?secao_id=90, acesso em: 20/03/2013.
162

cooperativo de fim dito solidário e idealista com uma prática marcadamente instrumental,
seria algo negativo para a imagem do país.
Podemos pensar também que, caso definisse claramente quais seus interesses em uma
determinada ação de CSS – para além do mero argumento de “solidariedade” -, o Brasil
poderia estar “desequilibrando” o aspecto ideal de horizontalidade na cooperação. Talvez, se
isso ocorresse, os pleitos de liderança brasileiros poderiam se enfraquecer frente aos de outros
países emergentes. Se em dada situação o país afirmasse categoricamente que coopera com
seus vizinhos para, por exemplo, angariar votos em foros multilaterais e/ou para ampliar os
espaços de atuação das empresas brasileiras, isso poderia fazer emergir desconfianças.
Da mesma forma, essa opção poderia dificultar a manutenção do status – em grande
parte autodeclarado – brasileiro de ser uma potência normativa, que contribui para a
atualização conceitual dos regimes internacionais em prol do sul. Ao colocar-se mais próximo
de uma perspectiva “realista”, poder-se-ia enxergar a cooperação simplesmente como um
meio para se atingir um fim, do que um fim per se.
Contrario senso, parece-nos que, caso o país assumisse claramente seus interesses – se
é que esses estão definidos de forma organizada – com os atos de cooperação, a crítica
doméstica contra essas iniciativas tenderia a se amainar. Quando do envio do contingente
militar brasileiro para a MINUSTAH, foram questionados os motivos pelos quais o Brasil o
fazia, já que ainda há inúmeros passivos socioeconômicos e de segurança pública a serem
solucionados em âmbito doméstico. Caso os objetivos ficassem mais transparentes, talvez o
público interno tendesse a compreender melhor essas ações de política externa.
Nosso argumento é de que, por considerarmos a CBDI um instrumento, entendemos a
mesma como um meio, um caminho pelo qual o Brasil visa a atender seus interesses dos mais
variados. Isso não quer dizer, conforme já mencionamos neste capítulo, que isso isenta
completamente o aspecto solidário e humanitário das ações brasileiras202. Essa dimensão
também é parte das motivações dos formuladores de política externa; explicar tão complexo
assunto por viés maniqueísta e excludente seria, portanto, exercício falho.
Partindo dessa consideração norteadora, tem-se que a política de CSS brasileira
também possui dimensão estratégica e reflete os interesses do corpo diplomático e de setores
das elites nacionais.

202
David Lumsdaine (1993), afirma que a ajuda externa pode não ser exclusivamente explicada por meio de
argumentos que se focam em interesses políticos e econômicos dos doadores, mas mais próxima de convicções
humanitárias e igualitárias. Esse autor mostra como as normas internas configuram regimes.
163

As ações de cooperação podem ser consideradas como investimentos que,


futuramente, resultariam, em ganhos de segurança, ao promover estabilidade de
regiões vizinhas e de interesse nacional; em ganhos econômicos e comerciais, com a
aproximação internacional como fator propulsor para negócios; e em ganhos
políticos, ao possibilitar a concertação de decisões em arenas internacionais, com a
inclusão de temas caros aos países do eixo do sul, como o do desenvolvimento.
Além disso, as trocas de experiências e a transmissão de conhecimento adquirido
por meio de políticas públicas bem sucedidas ajudam a consolidar posições comuns
em diversos setores (SCHMITZ, 2011, p. 57).

Para Lengyel e Malacalza (2011), há considerações geopolíticas no direcionamento


dos fluxos de CSS por determinado país, o que, no caso do Brasil, teria forte correlação com a
preferência por destinar bilateralmente a CTC&T para a América Latina, para os PALOP e
para o Timor Leste. Segundo esses autores, há três dimensões setoriais da cooperação sul-sul:
a social, ligada principalmente à saúde e à educação; a econômica, que envolve a prestação de
serviços econômicos, o provimento de infraestrutura e o desenvolvimento de setores
produtivos dos países recebedores; e a classificada como “outros”, que podem ser iniciativas
cooperativas de prevenção de desastres ambientais, voltadas para questões de gênero e de
direitos humanos, etc.
De acordo com eles, a CSS do Brasil seria indefinida, pois articula, em sua maioria,
ações de fundo social, econômico e também envolvendo outras agendas que não essas. Por ser
um modelo em construção, a CBDI não se encontra pertencente a nicho específico, como
ocorre com a CSS proporcionada, por exemplo, por Venezuela ou por China. Cooperação
agrícola (econômica), no combate ao vírus do HIV/AIDS (social) e na área de administração
pública (outros) seriam exemplos desse comportamento multifacetado do país.
No entanto, a CBDI, assim como a CSS praticada por países como Argentina, África
do Sul, China, Índia e México teria condicionalidades203. Essas seriam divididas em três tipos:

203
A literatura tende a identificar a CSS como tendo menos condicionalidades que a cooperação norte-sul.
“South-South cooperation is also appreciated because it has lower transaction costs, is less donor-driven and
comes with fewer conditions than assistance from many ‘traditional donors’” (DAVIES, 2010, p. 12).
Entretanto, isso não quer dizer que não existam problemas identificáveis nessas práticas: “Concerns expressed by
partner countries when cooperating with non-DAC donors include lack of information and transparency on the
terms and conditions of agreements. Development assistance agreements are often concluded at the highest
political level, bypassing national aid management systems. This inhibits a broad-based ownership of
development policies” (Idem). O trecho correspondente na tradução é: “A cooperação sul-sul também é
apreciada porque tem menores custos de transação, é menos orientada por interesses dos doadores e tem menos
condicionalidades que a assistência de muitos ‘doadores tradicionais’ (...) Preocupações expressadas por países
parceiros quando cooperando com doadores não membros do CAD incluem a falta de informação e de
transparência nos termos e condições dos acordos. Acordos de assistência ao desenvolvimento são normalmente
concluídos no mais alto nível político, ignorando sistemas nacionais de administração de ajuda. Isso inibe um
mais amplo controle das políticas de desenvolvimento”.
164

(a) policy conditionalities204; (b) procedural conditionalities; e (c) political conditionalities.


Nem todos os países as adotam e não há uniformidade na associação das mesmas à
cooperação prestada por nações emergentes. Contudo, tratam-se de linkages que têm relação
próxima com nosso argumento de que há, de fato, o componente de interesses na CSS.
As policy conditionalities seriam situação na qual o início do provimento da
cooperação está condicionado à adaptação do país recebedor a determinado tipo de política
pública. Esse tipo de condicionalidade estaria ausente na CSS, visto que pode ser interpretada
como uma afronta direta ao princípio da não intervenção205. As procedural conditionalities,
por sua vez, normalmente precedem o início empírico da cooperação e envolvem aspectos
jurídicos do acordo, e/ou, um exemplo, a necessidade de o país recebedor contratar mão de
obra e equipamentos do provedor.
O terceiro tipo de condicionalidades identificado por Lengyel e Malacalza – e o mais
significativo para o caso brasileiro – é o das political conditionalities206. Tratar-se-ia do
componente político da cooperação, envolvendo desde o apoio a pleitos do país doador em
foros multilaterais, até o provimento de tropas pelo país recebedor para missões de paz
coordenadas pela nação provedora do aporte cooperativo. Por seu elemento político, esse tipo
de condicionalidade tende a variar de acordo com o grupo que se encontra no poder no
momento em que é firmado o compromisso.

The empirical evidence allows us to state that Southern relations also apply political
conditionality of the donor (not necessarily exposed to the public) that comes from
the use of SSC as an instrument of foreign policy. It is therefore, a tacit
conditionality related to the donor's foreign policy, in many cases, it may take the
form of an appeal for international support of a particular case, the support to a
peacekeeping mission or simply a fulfillment of a particular diplomatic issue by the
host/recipient country (…) Brazil tends to tie aid with foreign policy objectives. For
instance, the goal of getting support from developing countries to its candidature as
permanent member of the UN Security Council (LENGYEL; MALACALZA, 2011,
p. 15-17, grifos nossos)207.

204
Os termos poderiam ser traduzidos como: condicionalidades de elaboração de políticas (policy
conditionalities); condicionalidades procedimentais (procedural conditionalities); e condicionalidades políticas
(political conditionalities).
205
Esse princípio parece ser o principal elemento aglutinador, ao menos em âmbito retórico, dos países
emergentes quanto à cooperação.
206
Segundo esses autores, a China se utilizaria de political conditionalities e de procedural conditionalities.
Índia e África do Sul, por sua vez, fariam uso de procedural conditionalities.
207
O trecho correspondente na tradução é: “A evidência empírica permite-nos constatar que as relações do sul
também utilizam condicionalidade política do doador (não necessariamente exposta ao público) que vem do uso
da CSS como um instrumento de política externa. Dessa forma, uma condicionalidade tácita relacionada com a
política externa do doador, em muitos casos, pode tomar a forma de um apelo por apoio internacional para uma
165

Trata-se de uma condicionalidade tácita, normalmente não revelada e ausente nos


contratos oficiais de cooperação técnica. Por não serem abertamente delimitada e expressa, as
political conditionalities tendem a permanecer no terreno da negociação diplomática, em que
os decisores relacionam, posteriormente, a cooperação prestada com a consecução de
determinado objetivo de política externa. A reciprocidade, portanto, não seria imediata, mas,
ao contrário difusa208.
A ideia de reciprocidade difusa guarda relação com resultados esperados não
imediatos, visto que os ganhos aferidos pelo Brasil podem ser obtidos, para citarmos alguns
exemplos, por meio de maior proximidade diplomática; de maior espaço para atuação de
multinacionais brasileiras; por apoios em votações multilaterais; por utilização de know-how
técnico nacional que futuramente poderá render outros contratos de cooperação com
contrapartidas à expertise do país em algumas agendas, etc. Em grande medida, a CBDI tem
como metas esperadas resultados de médio e de longo prazo.
Assim, por não definir claramente seus interesses quando da realização da CBDI,
entendemos que a reciprocidade angariada pelo Brasil tende a ser difusa, de modo que ela não
é linkada a, por exemplo, procedural conditionalities ou a policy conditionalities. Por nos
subscrevermos ao argumento de que o país realiza political conditionalities, acreditamos que,
em virtude disso, a resposta política da nação parceira não necessariamente será imediata ou
mesmo da forma esperada pelos formuladores de política externa brasileira.
Isso não significa que os interesses brasileiros deixem de ser preservados ou que a
cooperação perca seu caráter instrumental. Lima (2010) defende argumento parecido quando
analisa as relações do Brasil com seus parceiros da América do Sul: “fomentar relações de
boa convivência política com os vizinhos é antes uma demonstração de visão estratégica de
longo prazo, que renuncia aos ganhos mais imediatos, do que mera generosidade” (p. 6).

A pesar de que la CSS brasileña se funda en la filosofía de la asociación para el


desarrollo y en los principios de solidaridad y corresponsabilidad, los propósitos

causa particular, o apoio uma missão de manutenção da paz, ou simplesmente o cumprimento de uma questão
diplomática particular pelo país recipiendário (...) o Brasil tende a relacionar ajuda com objetivos de política
externa. Por exemplo, o objetivo de angariar suporte de países em desenvolvimento para sua candidatura como
membro permanente do Conselho de Segurança da ONU”.
208
Quando mencionamos reciprocidade difusa, não nos referimos ao conceito de reciprocidade comumente
utilizado na literatura de relações internacionais que estuda a tomada de decisões e game theory, como em
Keohane (1986). Nessa abordagem, normalmente, a ideia de “reciprocidade” na cooperação está relacionada
com acordos pontuais entre dois ou mais Estados, em estratégias de teoria dos jogos, sobre defecção e
cooperação. Nosso entendimento é mais amplo.
166

vinculados a ella no se resumen, de manera exclusiva, al objetivo de contribuir al


desarrollo de los países beneficiados. En resumen, como vimos, la cooperación
brasileña, como instrumento de la política exterior, desempeña tres funciones
adicionales: la preservación de los intereses del país, la competición por mercados y
la obtención de prestigio (AYLLÓN; LEITE, 2010, p. 25)209.

A visão é compartilhada por Fonseca (2008). Segundo o ex-embaixador-diretor da


ABC, a CBDI teria três matrizes motivadoras: (1) idealista; (2) estruturalista; e (3) realista.
Assim, a CSS brasileira seria mobilizada por idealismo, no sentido de que não é necessário
que uma nação seja desenvolvida para que possa praticar a cooperação; teria um componente
estrutural, pois a realidade dos países do sul tem matizes comuns e, por isso, eles podem ser
agentes de sua própria transformação; e um vértice realista, em virtude do fato de que a CSS,
com componente intrínseco de soft power e de interesses subjacentes, garante ao país uma
melhor inserção internacional.

3.4 Considerações finais

Ao longo deste capítulo estimulamos o debate de como a cooperação brasileira para o


desenvolvimento internacional é tida, com substantivo destaque na última década, como um
dos vértices de atuação diplomática do país e convergente às linhas gerais da política externa,
por meio da atividade prioritária da ABC. De receptor majoritário, a experiência história
mostra que o país também se tornou propositor e provedor de ações cooperativas.
As iniciativas de cooperação técnica voltadas para parceiros de América do Sul, de
Caribe e de África, as principais regiões destinatárias dos aportes de cooperação nacionais no
período 2003-2010, não estão desarticuladas do interesse do Itamaraty e de atores de política
doméstica de promover a vertente sul-sul da política externa. Pensada como um conjunto, a
CBDI se trata de um relevante instrumento de projeção internacional e de formalização de
alianças que promovem ganhos difusos ao Brasil em contexto de mudanças na ordem.
Essas empreitadas, além de garantirem ganhos materiais ao país, também legitimam o
Brasil como ator capaz de compartilhar boas práticas com foco no desenvolvimento. Isso atrai

209
O trecho correspondente na tradução é: “Apesar de a CSS brasileira se fundar na filosofia da associação para
o desenvolvimento e nos princípios de solidariedade e de corresponsabilidade, os propósitos vinculados a ela não
se resumem, de maneira exclusiva, ao objetivo de contribuir para o desenvolvimento dos países beneficiados.
Em resumo, como vimos, a cooperação brasileira, como instrumento da política externa, desempenha três
funções adicionais: a preservação dos interesses do país, a competição por mercados e a obtenção de prestígio”.
167

a atenção e o interesse de nações e de instituições internacionais, como as agências do sistema


das Nações Unidas, para a experiência brasileira, e compõe um quadro de crescente relevância
das nações emergentes para a temática da cooperação.
Por último, vimos que a ênfase conferida à CSS, especialmente durante o segundo
mandato de Lula da Silva, foi tributária da participação de atores outros que não o Itamaraty
na configuração – especialmente a execução – da política externa. Se, em grande medida, essa
é conformada por verniz retórico da solidariedade, assegurado pelo MRE, sua aplicabilidade
prática depende da expertise de outros participantes da burocracia federal.
Conforme defendemos, as atividades das outras pastas ministeriais já vinham sendo
internacionalizadas em momento pretérito a nosso marco cronológico de estudo. Contudo,
essa dinâmica ficou mais visível quando, por receio de perda de capacidade decisória e, ao
mesmo tempo, por tentar fazer valer seu posto constitucional de decisor central da política
externa, o MRE tenha atuado em conjunção com muitos desses outros ministérios210. A
expertise técnica das outras pastas, ausente no Itamaraty, foi vista como essencial e estratégica
para fazer valer as parcerias cooperativas com atores do mundo em desenvolvimento. Nesse
sentido, foi simbólico o aumento da verba disponível da ABC durante a presidência de Lula
da Silva. No momento atual, mais de uma centena de instituições federais brasileiras estão
diretamente envolvidas nas ações de cooperação internacional (ABC; IPEA, 2010).
Por contarem com capacidade de implementação de políticas públicas na esfera
doméstica, que podem ser aproveitadas e replicadas em acordos de cooperação internacional,
ministérios como da Defesa, Desenvolvimento Agrário, Saúde, Meio Ambiente, entre outros,
passaram a chamar mais a atenção do Itamaraty. Não descartamos que essa reação do MRE ao
ver contínua internacionalização de seus homólogos tenha sido um tanto defensiva, de poder
induzir o conteúdo de política externa nessas ações já em curso e diversificar a agenda
diplomática do país.
Parece perceptível que os quadros do Itamaraty compreenderam que, em vigência de
regime democrático e de choques de demandas entre grupos de opinião heterogêneos, torna-se
necessário agir em consonância com seus pares para angariar ganhos – ainda que difusos – em
distintas searas do tabuleiro internacional. Por outro lado, não é só o MRE que afere ganhos
na conformação dessas novas dinâmicas, o que nos ajuda a argumentar que a política
burocrática em curso para as iniciativas de cooperação internacional, ainda que um tanto

210
Um dos exemplos desse processo foi a constituição, em 2006, de um grupo de trabalho interministerial para
coordenar as ações de assistência humanitária internacional do governo brasileiro (GTI-AHI), sob a presidência
do MRE.
168

quanto errática e não estabelecida como política de Estado, não diz respeito somente a
posicionamentos utilitaristas, trazendo benefícios também para as nações recipendárias da
CBDI.
169

4 COOPERAÇÃO EM SEGURANÇA ALIMENTAR COMO INSTRUMENTO


DE POLÍTICA EXTERNA

A cooperação em segurança alimentar é uma das principais e mais frequentes formas


de implementação da cooperação técnica, científica e tecnológica (CTC&T) empreendida pelo
Brasil. Durante a presidência de Lula da Silva e a chancelaria de Celso Amorim, práticas e
conhecimentos relacionados a essa temática foram instrumentalizados pelos formuladores de
política externa em suas relações com parceiros em desenvolvimento, entre eles, os do
continente africano. Argumentar-se-á, ao longo deste capítulo, que o lugar da África, para os
decisores nacionais, está indissociado das ações no campo da segurança alimentar.
Um dos vértices empíricos da Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento
Internacional (CBDI), a segurança alimentar é conceito que apresenta diversas facetas, não
sendo pacífico o seu entendimento na literatura de Relações Internacionais. Por envolver
agendas distintas como as de desenvolvimento agrícola, de desenvolvimento econômico, de
combate à fome211 e à pobreza, entre outras, escolher essa temática torna-se instigante desafio,
frente a sua complexidade e à proximidade cronológica de nosso marco temporal.
De qualquer forma, os subsídios teórico-conceituais trabalhados até então nesta
dissertação e aqueles a serem discutidos neste capítulo, juntamente com a perspectiva
empírica do lugar da segurança alimentar na política externa para a África, garantem
subsídios válidos para a escolha do nosso objeto de estudo. Apesar de muito pouco estudada e
das dificuldades em sua investigação bibliográfica, essa vertente da ação diplomática do
Brasil não pode ser ignorada, devendo ser objeto cada vez mais constante nos debates sobre
política externa e sobre relações internacionais.
Este último capítulo envolve aspectos já abordados nos outros três momentos da
pesquisa, articulando-os de modo a embasar e a confirmar os nossos argumentos. As
ferramentas de análise de política externa, discutidas no primeiro capítulo desta dissertação,
nos serão úteis, pois a cooperação em segurança alimentar nada mais é do que exemplo de
como políticas públicas domésticas ganham espaço no rol de iniciativas internacionais do
Brasil. Não faz sentido, portanto, defender a máxima realista de que a “política doméstica
começa onde termina a política externa”.

211
Os estudos de fome e de pobreza não são nenhuma novidade para a academia brasileira. A obra de Josué de
Castro, “Geografia da Fome” (2001) é uma das pioneiras em seu estudo. Castro foi, por duas vezes, presidente
do Conselho da FAO, de 1952 a 1956, e recebeu duas indicações ao Nobel da Paz.
170

A validade desse argumento é tamanha que algumas críticas sofridas pelo modelo de
desenvolvimento agrário brasileiro – em larga medida dividido entre agricultura familiar e
agronegócio, como a própria composição ministerial do período de Lula da Silva exemplifica
– são replicadas quando da análise de alguns exemplos da cooperação em segurança alimentar
para com o continente africano. Por refletir práticas realizadas em âmbito doméstico que estão
cada vez mais associadas à cooperação internacional, esse exemplo de CTC&T não está
imune a visões contestadoras, inclusive oriundas da própria burocracia governamental.
Em um segundo momento deste capítulo, abordaremos a dinâmica decisória relativa à
cooperação em segurança alimentar. Nosso esforço de análise é o de procurar determinar se
existe algum locus formulador e executor das decisões. Por estarmos trabalhando apenas com
a cooperação sul-sul prestada pelo governo federal, o que está de acordo com a metodologia
aplicada à CBDI, abordaremos apenas as interações de atores da burocracia governamental,
especificamente os ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA);
Desenvolvimento Agrário (MDA); Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS); e
Relações Exteriores (MRE)212. Isso não significa que outros atores não possam ser
mencionados e problematizados como forma de enriquecer nossos argumentos.
Procuraremos entender se há arregimentação de alguma pasta ministerial pela outra e,
mais importante, qual o papel do Itamaraty nesse processo. Nesse sentido, a discussão travada
no capítulo dois desta pesquisa torna-se extremamente relevante, em virtude do fato de
entendemos a política externa como política pública. Isso implica afirmar que o MRE não é
soberano ou completamente autônomo, estando “blindado” a influências externas à sua
burocracia, no processo de tomada de decisões. Além disso, as rupturas intraministeriais,
ilustradas na separação entre institucionalistas pragmáticos e autonomistas, têm
consequências para o processo decisório e para a transformação de intenções em práticas.
Quanto ao nosso objeto específico de estudo, parece-nos que a tendência é a de
relativa harmonização de interesses entre os demais ministérios e o Itamaraty na composição e
na execução das decisões. Isso não significa, entretanto, que não existam críticas pertinentes a
essas escolhas. Nesse sentido, o posicionamento do Conselho Nacional de Segurança
Alimentar da Presidência da República (CONSEA), um ator imerso na burocracia estatal e

212
A escassez bibliográfica nesse campo era tanta que tivemos que construir esse conhecimento basicamente a
partir de entrevistas realizadas com gestores desses órgãos. Felizmente, muitas foram as informações providas.
Queremos deixar claro que outros ministérios como Pesca e Aquicultura e Saúde, também relacionados com as
agendas de segurança alimentar, não foram incluídos em nosso levantamento, pois nosso foco é primordialmente
centrado em cooperação agrícola. Já o Ministério de Minas e Energia (MTE), que poderia ser discutido pela
questão dos biocombustíveis, foi visto apenas en passant, pois se buscou limitar conceitualmente e
operacionalmente a ideia de segurança alimentar.
171

pretensamente convergente com o MRE, mostra-se extremamente crítico à cooperação em


segurança alimentar empreendida pelo Brasil. Essa perspectiva é importante e necessária, pois
colabora com nosso argumento de que a tomada de decisões não é pacífica ou linear,
envolvendo posicionamentos de outros atores da dinâmica doméstica.
Na última parte deste capítulo, trataremos da cooperação em segurança alimentar
como instrumento de política externa para a África. Conforme delineamos no terceiro
capítulo, essas iniciativas, que envolvem o componente retórico da solidariedade, estão
associadas aos crescentes interesses do país no continente africano. Iremos traçar, em
cômputo geral, alguns desses interesses e, em perspectiva mais específica, observar como eles
se relacionam com alguns exemplos da CSS em segurança alimentar empreendida pelo Brasil.
Aqui, abordaremos tanto práticas de cooperação bilateral como as de cooperação
trilateral, visto que a metodologia da CBDI considera essa última como parte integrante da
primeira. Projetos como o Diálogo Brasil-África em Segurança Alimentar, o Cotton Four e o
PROSAVANA, todos realizados com parceiros do continente africano e indicativos do novo
momento do sul-atlantismo brasileiro, serão discutidos brevemente, a fim de corroborarem o
encaminhamento lógico desta pesquisa.

4.1 Segurança alimentar: conceito e agendas

Segurança alimentar é tema que passou a fazer parte dos discursos e das iniciativas à
disposição dos decisores de política externa. Especialmente a partir do avanço dos debates
sobre cooperação sul-sul e sobre desenvolvimento humano, engendrados com certo vigor nos
estertores da Guerra Fria e com maior fôlego nos anos 1990, a temática da segurança
alimentar deixou de permanecer à sombra e tornou-se agenda com impacto relevante nas
agendas domésticas e externas dos Estados.
Para além do escopo institucional, no qual se encontrava até então, o assunto
segurança alimentar passou a reverberar preocupação crescente com a ordem internacional em
transição. Crescimento populacional; urbanização acelerada em áreas como África e Ásia;
aumento da expectativa de vida; ascensão de milhões de pessoas à classe consumidora; crises
ambiental e agrícola; entre outros, são alguns fatores explicativos de o tema ter deixado de
172

ecoar apenas vozes isoladas em agências especializadas do sistema ONU, como é o caso da
FAO, para compor um dos eixos temáticos a serem mais discutidos no século XXI.
Além de traduzir práticas realizadas no âmbito doméstico dos Estados, a segurança
alimentar passou a ser instrumentalizada também no escopo de cooperação, seja ela norte-sul,
seja ela sul-sul. O transbordamento de políticas públicas internas para as relações interestatais,
por meio da cooperação, ocorre, sem constrangimentos, quando analisamos essa perspectiva.
Somado a isso está o fato de a FAO ser hoje a agência especializada da ONU com o
maior orçamento, o que indica que uma discussão que permanecia enclausurada à baila
institucional ganhou a atenção também dos agentes principais das relações internacionais.
Esse spill-over é indicativo de que não só seus interesses passaram a ser diretamente afetados
pelas questões relativas à segurança alimentar, como também que essa agenda pode lhes
trazer ganhos efetivos – vantagens essas muito mais identificadas com nossa discussão
pretérita sobre legitimidade e sobre reciprocidade difusa travada no capítulo anterior do que
com ganhos imediatos e previsíveis.
Entretanto, segurança alimentar é assunto ainda em franca discussão tanto no meio
acadêmico como no abrigo das discussões domésticas e multilaterais sobre o que significa,
quais seus limites conceituais e em que medida ele se insere na cooperação técnica. Como
veremos, o entendimento da FAO não é replicado necessariamente pelos países e tampouco é
repetido sem questionamentos pelo meio acadêmico. Ainda que isso dificulte sobremaneira
nosso trabalho, iremos realizar esforço analítico, nesta seção, de identificar as visões
majoritárias sobre o conceito e mostrar como ele é lido pela diplomacia brasileira.

4.1.1 O conceito de segurança alimentar

Ampliando o escopo da segurança


Para chegarmos à ideia de segurança alimentar e a suas implicações, é mister que
abordemos, inicialmente, o termo “segurança”. Conforme demos a entender ao longo desta
dissertação, nosso entendimento sobre segurança é amplo e vai além das explicações
ortodoxas e eminentemente realistas sobre o que representa213. Nesse sentido, seguimos o

213
Abordagens críticas sobre segurança tendem a identificar as visões realistas mais como parte do problema do
que como a solução. “The field of security studies, constructed out of political realism, continues to offer its
students one image of reality, with predefined answers to key global questions” (BOOTH, 2005, p. 4). “Security
173

argumento central de Barry Buzan: “Security is taken to be about the pursuit of freedom from
threat and the ability of states and societies to maintain their independent identity and their
functional integrity against forces of change which they see as hostile”214 (BUZAN, 1991, p.
432).
A contribuição da Escola de Copenhague é notória para essa discussão, pois distinguiu
diversos matizes sobre o que consistiria segurança e introduziu a ideia de securitização 215, que
consiste no ato – retórico ou prático – de determinar que algo se tornou uma ameaça a ser
combatida. Partindo da garantia de mera sobrevivência até a busca de manutenção da
identidade de Estados, de indivíduos e de sociedades, segurança tornou-se um conceito fluido
e atrelado a temáticas outras que não somente a militar216.
Com a mudança do que seria o objeto da segurança, acelerada também pela maior
visibilidade conferida a fenômenos como o terrorismo, houve a reformulação do que
constituiria uma ameaça. Não só o próprio Estado passou a ser visto como a fonte primordial
das inseguranças em níveis doméstico e externo, como também a perspectiva multilateral e
mesmo a individual passaram a ganhar espaço no tratamento e na denúncia dessas violações,
muitas das quais sistemáticas e recorrentes.
O termo clássico das relações internacionais e um dos elementos basilares da teoria
realista, “segurança”, se difundiria, portanto, em adjetivações como segurança humana,
segurança econômica, etc. As múltiplas definições estando de acordo, sempre, com o que se

is not synonymous simply with survival. It is survival-plus, the plus being the possibility to explore human
becoming” (Idem, p. 22). Além disso, “Realism’s agenda is narrow. Political realism offers a massive but
nonetheless narrow agenda for world politics. It is an agenda based on the perceived interests of states (and
therefore their elites); this so-called national interest is concerned with maximizing state security”. (Idem, p. 7).
O trecho correspondente na tradução é: “O campo de estudos da segurança, construído a partir do realismo
político, continua a oferecer a seus estudantes uma imagem de realidade com respostas pré-definidas para
questões globais fundamentais. (...) Segurança não é simplesmente sinônimo de sobrevivência. É extra
sobrevivência, o extra sendo a possibilidade de explorar o desenvolvimento humano. (...) A agenda do realismo é
estreita. O realismo político oferece uma agenda ampla, no entanto, insuficiente, para a política mundial. Trata-
se de uma agenda baseada nos interesses percebidos dos Estados (e, por causa disso, de suas elites); esses ditos
interesses nacionais estão preocupados com a maximização da segurança estatal”.
214
O trecho correspondente na tradução é: “A segurança é tida como a busca por liberdade de ameaças e a
habilidade dos Estados e das sociedades de manterem suas identidades independentes e suas integridades
funcionais contra forças de mudanças que vejam como hostis”.
215
O termo é de Wæver (1995) e tem relação com tornar algo como de segurança, passível de medidas urgentes
e à margem do processo político tradicional.
216
Buzan (1991) identifica cinco tipos ideais de segurança: (i) militar, que envolve as dimensões de guerra e de
paz; (ii) política, acerca da estabilidade institucional dos Estados e sua governabilidade; (iii) econômica, relativa
ao acesso a recursos, finanças e mercados necessários à manutenção do bem-estar; (iv) social, que é relativa à
habilidade das sociedades de reproduzirem seus padrões de linguagem, cultura, crenças religiosas e
nacionalidade; e (v) ambiental, de acordo com a necessidade de manutenção da biosfera planetária contra
possíveis ameaças. Não iremos nos subscrever a essa divisão.
174

define como ameaça, num indicativo de que há novos referentes ontológicos de análise. Esses
novos modelos de estudo de segurança não se encontram, entretanto, dissociados ou não
relacionados. A investigação empírica corrobora o argumento de há conexões indeléveis entre
as mais variadas esferas analíticas relativas à segurança (BUZAN; WÆVER; WILDE, 1998).
Com a horizontalização da segurança217, e, contrário sensu, da insegurança, agendas
até então consideradas em separado tornam-se articuladas no estudo das relações interestatais,
influenciando a tomada de decisões de política externa. De fato, uma crise econômica pode ter
impactos substantivos em, por exemplo, movimentos de fluxos migratórios, o que, por sua
vez, podem vir a engendrar conflitos armados. Segurança torna-se, portanto, tema mais fluido
e complexo.
A mudança de escopo do conceito de segurança tem, entre suas vertentes principais, a
noção de segurança humana. Por meio dela, segurança não seria somente assunto dos Estados,
mas também, em sentido amplo, dos indivíduos. Isso se relaciona com o contexto de
reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos e de obrigações internacionais, o que é
corroborado pela possibilidade de acesso individual a mecanismos de proteção de direitos
humanos, assim como de serem imputados por fatos ilícitos internacionais.
Essa maior amplitude do que seria segurança, envolvendo a ideia de “segurança
humana”, se parece mais adequada ao momento atual de (i) maior interdependência nas
relações entre Estados; (ii) conexão de temáticas até então consideradas apartadas,
notadamente as de fundo socioeconômico; (iii) atuação mais proeminente de atores não
estatais; e (iv) de difusão relativa de poder, com crescimento relativo dos emergentes, que
tendem a defender a ideia de segurança como associada a espectros de direitos econômicos,
sociais e culturais. Isso não significa, entretanto, que tais visões sobre securitização e
segurança não estejam imune a críticas.
Em primeiro lugar, a definição ainda muito pouco precisa do que seria segurança pode
causar instabilidade jurídica internacional e abrir espaços para intervenções humanitárias
improcedentes e motivadas por interesses outros que não a proteção de civis. Utilizar-se-ia,
nesse caso específico, de argumento em prol da segurança humana para fazer valer interesses
individuais dos Estados. Assim, se fôssemos concordar inteiramente com o que implica a
horizontalização da segurança e a securitização, estaríamos corroborando a possibilidade de
Estados sem capacidades institucionais de garantirem condições mínimas a suas populações
terem suas soberanias desrespeitadas.

217
Entende-se, conforme Buzan (1991), horizontalização como o aumento do número e do tipo de ameaças.
175

Dessa forma, ainda que a horizontalização da insegurança tenha validade teórica e


prática, não entendemos que todo assunto político deva tornar-se passível de securitização.
Ironicamente, “abraçar” acriticamente as múltiplas derivações do que seria segurança poderia
gerar, ao contrário do defendido, possibilidades para exercício de power politics218. A crítica
ao realismo e a seus alicerces teóricos sobre segurança seria nada menos que ferramenta para
reproduzi-lo em termos empíricos. Afirmar, portanto, que toda forma de insegurança é válida,
permitindo ações contundentes da sociedade de Estados, é um risco a ser questionado219.
Se fôssemos rememorar a discussão que traçamos no último capítulo sobre interesses e
solidariedade na política externa, poder-se-ia argumentar, se considerássemos prioritariamente
a dimensão de “interesses” que, na prática das relações interestatais, as questões a serem
securitizadas seriam aquelas que mais precisamente refletiriam seus interesses externos.
“Conceptualizations of security are therefore the product of different understandings
of what policies is and should be about. Consequently, security in world politics is neither a
neutral nor a simple idea”220 (BOOTH, 2005, p. 21). Como esse autor defende, não existe
definição de novos objetos de segurança sem conteúdo político por trás. Ao estipular a agenda
ambiental como passível de securitização, alguns Estados estariam deixando claro seus
objetivos naquela seara. O mesmo ocorre com países como o Brasil, quando assumem a
segurança alimentar como uma das formas instrumentais de manifestar a CSS.
Essa ampliação do escopo da segurança está relacionada com concepções teóricas
sobre o que seria “segurança humana”. Nesse diapasão, a contribuição das instâncias
multilaterais é fundamental. De acordo com a posição do PNUD, “human security is not a

218
Alguns autores, como Smith (2005), ainda que acreditem e elogiem a importância da corrente, argumentam
que, por centrar-se na figura do Estado, a Escola de Copenhague não passaria de uma evolução teórica das
perspectivas neorrealistas sobre segurança. Outra crítica comumente aventada é a de McSweeney (1998), que
rebate a maneira objetiva e positivista com que a Escola de Copenhague trabalha com os conceitos de identidade
e de sociedade.
219
O Brasil endossa em sua política externa temas outros para além da segurança militar estrita, mas não
compactua completamente com ideia de segurança humana como conceito irrestrito. O país apóia, como é nosso
caso de estudo, a segurança alimentar, conceito que é parte não só do discurso diplomático e de ações
cooperativas pátrios, como também do arcabouço normativo de organizações como a FAO. No entanto, a
política externa brasileira não corrobora de forma plena outras vertentes sobre segurança, pois isso poderia
permitir intervenções externas e desrespeito à soberania nacional em prol da defesa de prerrogativas
humanitárias. O próprio conceito de “responsabilidade ao proteger”, RWP, complementar à responsabilidade de
proteger R2P, e trazido à tona pelo país no contexto de intervenção dita humanitária na Líbia (2011), que poderia
ser evocado neste momento, é dúbio quanto à segurança humana. Ainda que a defenda, o país o faz em termos
condicionais.
220
O trecho correspondente na tradução é: “Conceituações de segurança são, portanto, o produto de diferentes
entendimentos do que políticas são e devem ser. Consequentemente, segurança na política internacional não é
uma ideia neutra e tampouco simples”.
176

concern with weapons – it is a concern with human life and dignitiy”221 (PNUD, 1994, p.22).
Conforme a ONU, há quatro pilares na definição da segurança humana: (a) trata-se de uma
preocupação universal, pois as ameaças são comuns; (b) é algo interdependente, em virtude de
ir além das fronteiras nacionais; (c) garantir essa segurança é mais fácil por meio de
iniciativas preventivas do que remediadoras; e (d) é centrada em indivíduos, o que já denota
uma posição ontológica diferenciada daquela da Escola de Copenhague222.
Esse conceito englobaria sete áreas de atuação: segurança econômica; segurança
alimentar; segurança de saúde; segurança ambiental; segurança pessoal; segurança
comunitária e segurança política (Idem, grifo nosso). Indo além da preocupação com a
garantia da segurança em momentos de conflito, essa visão holística do conceito facilitou a
conexão temática dos estudos sobre segurança com os relativos ao desenvolvimento
socioeconômico. Essa aproximação foi especialmente relevante quando se observa os
posicionamentos de países em desenvolvimento (THOMAS, 1987).

Segurança alimentar: âmbito institucional


A ampliação do escopo da segurança está diretamente relacionada com o conceito de
segurança alimentar, uma das vertentes relativas à ideia de segurança humana. Assim como a
própria significação do que seria segurança, o termo segurança alimentar igualmente suscita
debates e reflete visões múltiplas, não havendo uma posição uníssona do que representaria.
Em virtude disso, iremos apresentar alguns desses entendimentos, com especial destaque para
os provenientes da FAO e do governo brasileiro.
De acordo com a Declaração de Roma sobre a Segurança Alimentar Mundial, “food
security exists when all people, at all times, have physical and economic access to sufficient
safe and nutritious food that meets their dietary needs and food preferences for an active and
healthy life”223 (FAO, 2003, p. 29). Essa definição, que se tornou parte do Plano de Ação da
Conferência Mundial da Alimentação, envolve quatro dimensões do que significa segurança

221
O trecho correspondente na tradução é: “A segurança humana não é uma preocupação com armas – é uma
preocupação com a vida e a dignidade humanas”.
222
Na concepção do PNUD, o conceito de segurança humana é intrinsecamente relacionado, porém mais estreito
que o de desenvolvimento humano; esse último tem relação a um leque maior de opções e de escolhas que os
indivíduos podem fazer.
223
O trecho correspondente na tradução é: “A segurança alimentar existe quando todas as pessoas, em todos os
tempos, têm acesso físico e econômico a alimentos nutritivos e em quantidades suficientes que estejam de acordo
com suas necessidades e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável”.
177

alimentar: (i) disponibilidade física de alimentos; (ii) acesso econômico e físico aos
alimentos; (iii) utilização dos mesmos224; e (iv) estabilidade das primeiras três dimensões ao
longo do tempo.
Disponibilidade alimentar tem relação a oferta de alimentos e é determinada pelo nível
de produção, da existência de estoques regulatórios e do volume comercializado. Acesso, por
sua vez, implica que uma adequada produção de alimentos em níveis nacional e internacional
não necessariamente garante que existirá segurança alimentar. Em virtude disso, torna-se
necessário facilitar o acesso – e aqui a perspectiva da demanda é mais visível – aos alimentos,
relacionando a prática com preços, mercados e renda.
O componente de utilização está articulado com a ideia de “direito à alimentação 225” e
com a perspectiva nutricional da segurança alimentar. Tem ligação com o consumo. Dessa
forma, o direito à alimentação não pode ser garantido sem que haja, previamente, a conquista
de certo grau de segurança alimentar. Por último, o quarto pilar do conceito, segundo a FAO,
é o de estabilidade. De acordo com ele, é preciso haver sustentabilidade na produção, no
acesso e no consumo de alimentos, em âmbitos doméstico e internacional, evitando condições
adversas. Instabilidade política, crises climáticas, aumento dos preços de alimentos no
mercado externo, desemprego, pragas, etc., são alguns desses possíveis fatores (FAO, 2008).
Essas quatro dimensões precisam ser asseguradas de forma simultânea a fim de que a
segurança alimentar seja realidade estrutural e não transitória. A impossibilidade dessa
garantia geraria, por conseguinte, cenário de insegurança alimentar. Em sua classificação, a
FAO graduou as situações relativas à segurança alimentar em: (i) segurança alimentar; (ii)
insegurança alimentar crônica; (iii) crise alimentar aguda; (iv) emergência humanitária; (v)
fome/catástrofe humana.
Importante, também, é a relação entre fome, malnutrição e pobreza com o conceito de
segurança alimentar. Fome é normalmente entendida como consequência do consumo
insuficiente de energia proveniente de alimentos226. Conforme a FAO, todas as pessoas que
têm fome sofrem de insegurança alimentar; nem todos os indivíduos que enfrentam

224
Esses três primeiros pontos foram definidos pelo Comitê sobre Segurança Alimentar Mundial, criado em
1975 pela Conferência Mundial da Alimentação da ONU.
225
A ideia de direito à alimentação não é recente. O Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e
Culturais de 1966 já faria menção ao tema como parte do rol de medidas a serem tomadas pelos Estados na
consecução dos direitos humanos. Refere-se ao direito individual de acesso, seja por meios financeiros, seja
diretamente, a alimentos em quantidade e qualidade adequada a fim de suprir as necessidades nutricionais de
cada indivíduo.
226
Sen (1981) também discute o conceito de fome.
178

insegurança alimentar, entretanto, têm fome, em virtude de que há outras causas para a
insegurança alimentar, como uma dieta nutricional pobre em nutrientes. Malnutrição, por sua
vez, tende a ser um resultado da insegurança alimentar, pois envolve deficiências, excessos e
desequilíbrios no consumo de gêneros alimentícios.
O conceito de pobreza guarda relação próxima com a agenda da segurança alimentar,
estando essa inter-relação inclusive presente em iniciativas de cooperação sul-sul. “While
poverty is undoubtedly a cause of hunger, lack of adequate and proper nutrition itself is an
underlying cause of poverty”227 (FAO, 2008, p. 3). No entendimento da organização, existe
um ciclo vicioso: pobreza gera insegurança alimentar, fome e malnutrição que, por sua vez,
inviabilizam o desenvolvimento físico e cognitivo das populações. Isso implica em baixa
produtividade, o que promove e multiplica a situação de pobreza.
Nesse sentido, ações em prol do combate à fome e à pobreza estão intimamente
relacionadas com a preocupação de combater à insegurança alimentar. “It is argued that a
strategy for attacking poverty in conjunction with policies to ensure food security offers the
best hope of swiftly reducing mass poverty and hunger”228 (Idem). A consecução desses
objetivos deve perpassar dinâmica sistemática, permitindo o desenvolvimento de condições de
sustentabilidade nos países que enfrentam essas insuficiências.
A crise mundial de alimentos de 2007-2008, em que ocorreu elevado aumento nos
preços do milho, da soja e do trigo nos mercados internacionais, em comparação com os
patamares de 1998, acentuou a necessidade de debate sobre a segurança alimentar e sobre as
implicações que a alta nos preços de gêneros alimentícios poderiam causar à estabilidade
global. Em virtude de diminuição nos níveis de produção e nos volumes dos estoques,
diversos países levantaram uma série de restrições a exportações, ao consumo e também
passaram a conceber e a implementar subsídios – muitos deles proibidos pela OMC229.

227
O trecho correspondente na tradução é: “A Enquanto a pobreza é indubitavelmente uma causa da fome, a falta
de nutrição adequada é, em si, uma causa subjacente da pobreza”.
228
O trecho correspondente na tradução é: “Argumenta-se que uma estratégia para combater a pobreza em
conjunção com políticas de garantia de segurança alimentar oferece a melhor esperança para uma rápida redução
da pobreza e da fome em massa”.
229
Entre as causas para essa crise mundial dos alimentos, fenômeno não solucionado, aponta-se: elevação no
preço do barril do petróleo, com impactos no valor de insumos agrícolas como fertilizantes; crescimento da
demanda, especialmente em virtude da ascensão de parcelas milionárias de população em China, Índia, Brasil e
nações africanas; uso de áreas que poderiam ser destinadas à produção de gêneros alimentícios para culturas
como a de cana-de-açúcar e de soja, não associadas ao combate à insegurança alimentar; catástrofes naturais;
distribuição desigual de técnicas agrícolas; especulação no mercado de commodities; deficiências na distribuição
dos alimentos, que aumentam seu custo e dificultam a absorção por mercados; barreiras comerciais impostas por
179

Em momentos de crônica insegurança alimentar podem derivar convulsões sociais


severas, com ameaças à própria governabilidade. Nesse caso, tão imbricada é o conceito de
segurança alimentar, que sua perspectiva eminentemente humanitarista tem impactos para o
nível estatal. Assim, é plenamente possível uma ameaça exemplar à segurança humana ter
impactos substantivos na própria segurança do Estado. Assegurar a segurança alimentar,
portanto, perpassa não só o próprio interesse do país em manter condições adequadas a sua
população como também a sua própria existência como tal.

Food security is a multi-faceted concept, variously defined and interpreted. At one


end of the spectrum food security implies the availability of adequate supplies at a
global and national level; at the other end, the concern is with adequate nutrition and
well-being (FAO, 2003, p. 22)230.

4.1.2 Segurança alimentar e Brasil

O conceito de segurança alimentar231, na ótica doméstica brasileira, está definido na


Lei 11.346/2006, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que cria o
Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN)232, com vistas a assegurar o
direito humano à alimentação adequada. Seu art. 3º dispõe que:

A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao


acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente,
sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base

países que visam à proteção do produtor local e acabam, contrário sensu, provocando uma subida dos preços no
mercado internacional, práticas essas associadas à concessão de subsídios proibidos destinados à exportação; etc.
230
Mais indicativos sobre o conceito – como produção de cereais, indicadores nutricionais, nível de produção,
entre outros - podem ser vistos nesta publicação. O trecho correspondente na tradução é: “Segurança alimentar é
um conceito multifacetado, variadamente definido e interpretado. Por um lado do espectro, a segurança alimentar
implica na disponibilidade de suprimentos adequados em níveis global e nacional; por outro lado, a preocupação
é com a adequada nutrição e bem-estar”.
231
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar da Presidência da República (CONSEA) também define o
termo “soberania alimentar”, que seria o direito de um grupo social de definir suas próprias políticas e estratégias
de produção, de distribuição e de consumo de alimentos (CONSEA, 2009). Entendemos que ele compõe o
conceito mais amplo de segurança alimentar.
232
O SISAN, de acordo com o art. 1º da Lei, deve ser instância por meio da qual o poder público, conjuntamente
com a sociedade civil organizada, deverá formular e implementar políticas, planos, programas e ações com vistas
a assegurar o direito humano à alimentação adequada.
180

práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que


sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (BRASIL, 2006)233.

Trata-se de preocupação que, durante a gestão presidencial de Lula da Silva, tornou-se


política de Estado, reverberando o fato de o direito à alimentação adequada já ser parte dos
direitos sociais estipulados na Carta 1988. “A alimentação adequada é direito fundamental do
ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos
consagrados na Constituição Federal” (Idem). Um dos sustentáculos que permitiram sua
eleição em 2002 e posterior reeleição em 2006 foi a defesa da promoção dos direitos
socioeconômicos – entre os quais à alimentação adequada – da população brasileira.
Indo no mesmo sentido do entendimento da FAO, a legislação brasileira percebe o
direito à alimentação como uma consequência da garantia da segurança alimentar. Dessa
forma, sem o acesso, a disponibilidade e a utilização adequada dos alimentos por determinado
grupo social, o direito à alimentação tornar-se-ia letra morta. O desenvolvimento do conceito
de segurança alimentar no contexto doméstico brasileiro – o que implica em seu
transbordamento posterior para o âmbito internacional – consubstanciado na promulgação da
Lei 11.346/2006, entretanto, não ocorreu sem continuidades e descontinuidades, no que diz
respeito às prioridades políticas e às iniciativas engendradas em âmbito nacional.
Historicamente, diversas ações foram tomadas em prol do desenvolvimento da
segurança alimentar, considerando a visão holística que se tem sobre a temática, a exemplo
de: institucionalização do salário mínimo nos anos 1940; a institucionalização da CLT;
criação de programas de incentivo à produção de alimentos; o estabelecimento de merendas
escolares no ensino público; projetos de suplementação alimentar nos anos 1970, etc. Essas
ações tratavam-se, contudo, muito mais de iniciativas pontuais do que algo estruturado.
Um projeto de modelo organizado viria a tomar certa forma nos anos 1980, a partir do
documento produzido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento denominado
“Proposta de Segurança Alimentar para uma Política de Combate à Fome”. Esse geraria, em
1986, a primeira Conferência Nutricional e Alimentar Nacional (CNAN), que envolveu
setores do governo e da sociedade civil em suas discussões (CONSEA, 2009).
Durante o governo Itamar Franco (1992-1994), o combate à fome foi elevado à
condição de prioridade política, o que resultou no assentamento das bases para o
estabelecimento de uma Política de Segurança Alimentar Nacional. Um desses alicerces deu-

233
Lei 11.346, de 15/09/2006. Disponível em:
http://www.legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei11346-2006?OpenDocument,
acesso em: 02/04/2013.
181

se em 1993, quando o IPEA criou um primeiro “mapa da fome”, em que se observou que
cerca de 20% da população brasileira, ou 32 milhões de pessoas à época, encontravam-se em
situação de desnutrição. A partir desse documento, foi preparado o Plano Nacional de
Combate à Fome e à Pobreza, lançado no mesmo ano.
Nesse contexto, foi criado o CONSEA, um órgão com função de assessoramento da
presidência da república e contando com representantes governamentais e da sociedade civil
com conhecimentos sobre a matéria. Além disso, em 1994 ocorreu a primeira Conferência
Nacional sobre Segurança Alimentar (CNSA), tornando-se um marco institucional para
encontros futuros (CONSEA, 2009).
Apesar desses avanços iniciais, o que se observou na presidência de FHC foi uma
alteração institucional e de conteúdo sobre a segurança alimentar brasileira. Como primeiro e
mais relevante ponto, o CONSEA foi descontinuado em 1995. Em segundo lugar, a prioridade
política deixou de ser o combate à fome para tornar-se o enfrentamento da pobreza, quando
ambas as dimensões devem, a fim de que se solucionem as causalidades profundas do
problema, estar conexas. Nesse sentido, ainda que não tenha deixado de ser parte das ações
governamentais, o debate sobre segurança alimentar e nutricional perdeu força, em
comparação com o período anterior234. “The issue nearly disappeared from the governmental
sphere during Cardoso’s second presidential term”235 (CHMIELEWSKA; SOUZA, 2011, p.
5).
Apesar da pouca ênfase da presidência no estabelecimento de marcos institucionais,
outros atores tiveram importante papel nas discussões sobre a temática. Em 1999, o
Ministério da Saúde aprovou a Política Nacional em Alimentação e Nutrição (PNAN),
movimento que ecoou as demandas do primeiro Fórum Brasileiro em Segurança Alimentar e
Nutricional (FBSAN), organizado em 1998. De seus debates, reforçou-se o caráter
multidimensional do conceito, que deveria encampar, também, problemáticas relativas à
reforma agrária, ao desenvolvimento rural, a aspectos relativos à saúde, etc.
Com a eleição de Lula da Silva, a agenda de segurança alimentar e nutricional tornou-
se central nas preocupações do governo de bandeira petista. Egressa de um partido político de
arregimentação de massas trabalhadoras e ligadas a movimentos sociais, a nova administração

234
As iniciativas mais relevantes, nesse diapasão, articuladas durante o período FHC foram: a edição da posição
brasileira, com apoio do Itamaraty, para a Conferência Alimentar Mundial (1996); a proposta de criar um
sistema de monitoramento para a segurança alimentar e nutricional; e a organização de diálogos e debates sobre
essa temática no escopo do projeto Comunidade Solidária, que envolvia ações nacionais de combate à pobreza.
235
O trecho correspondente na tradução é: “A questão praticamente desapareceu da esfera governamental
durante o segundo mandato presidencial de Cardoso”.
182

encaminhou ações e reformas como meio de legitimar sua posição junto aos eleitores. Mostra
disso foi o estabelecimento do programa Fome Zero, em 2003, voltado para assegurar o
direito à alimentação e para minimizar o quadro de fome no Brasil, e a edição da Política
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), que deu origem à Lei de 2006 que
rege a temática236.
Outro marco importante foi a proposta de emenda constitucional 047/2003, que visou
ao estabelecimento do direito à alimentação como direito social. A PEC, aprovada pelo
Congresso Nacional somente em 2010 e promulgada como a EC 64, alterou o art. 6º da
Constituição Federal. Com a mudança, o direito social à alimentação passou a vigorar no
texto da lei máxima do Brasil, tornando-se parte do rol de dispositivos referentes aos direitos
humanos a serem defendidos no país.
A combinação de iniciativas como o Fome Zero e a PNSAN ensejaram a valorização
do entendimento da segurança alimentar como conceito holístico, que envolve mudanças
estruturais, de médio e de longo prazos, e intervenções de curto prazo, emergenciais. Percebe-
se, dessa forma, que a solução do quadro de insegurança alimentar brasileiro deveria passar
não só por ações voltadas para mitigar as consequências da fome, mas, tão ou mais
importante, para assegurar o combate a suas causas.
Dividido em quatro eixos e envolvendo mais de 20 iniciativas, o Fome Zero inova em
propostas, englobando também ações já em curso. Formalizou-se, institucionalmente, uma
arquitetura de gestão que perpassava práticas existentes, como o Programa de Amparo ao
Trabalhador (PAT, de 1977) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE, de
1955), e outras novas, como é o caso do Bolsa Família237. Os quatro eixos temáticos do Fome
Zero são divididos em: (a) acesso à alimentação; (b) fortalecimento da agricultura familiar; (c)
geração de renda; e (d) articulação, mobilização e controle social (ARANHA, 2009)238.

236
Alguns indicadores de como medir e calcular o estado de segurança ou insegurança alimentar e nutricional
podem ser vistos em Chmielewska e Sousa (2011). Entre eles, menciona-se a Escala Brasileira de Insegurança
Alimentar (EBIA), aplicada pela primeira vez em 2004, como parte da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD), do IBGE; a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), também do IBGE; o Sistema Nacional
de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), entre outros.
237
O Bolsa Família trata-se da unificação de quatro programas de transferência condicionada de renda: bolsa-
escola, bolsa-alimentação, auxílio-gás e cartão alimentação, sendo previsto como projeto emergencial e
temporário.
238
Os três objetivos principais do Fome Zero são: avaliar a situação dos programas de combate à fome no Brasil;
retomar a mobilização social em torno da segurança alimentar; e envolver os governos federal, estadual e
municipal, além de segmentos da sociedade civil, no combate à fome (BELIK; DEL GROSSI, 2003).
183

A primeira vertente do Fome Zero envolve programas de alimentação como o PNAE;


a distribuição de complementos vitamínicos para populações específicas; as redes locais e
regionais de segurança alimentar e nutricional; o Sistema Nacional de Vigilância Alimentar e
Nutricional (SISVAN); restaurantes populares; cozinhas comunitárias; bancos de alimentos;
etc. Sua iniciativa mais importante, no entanto, é o Bolsa Família, voltado para a transferência
condicionada de renda – muita da qual para a compra de alimentos - e que somou orçamento
de cerca de R$ 16 bilhões em 2010.
O segundo eixo do Fome Zero é composto por ações de financiamento à agricultura
familiar, como são exemplos o Programa Nacional de Agricultura Familiar (PRONAF) e o
Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que financia a compra de alimentos com
recursos do MDS. Os dois programas vão ao encontro do fato de que a maior parte da
produção de alimentos para consumo interno no país provém do setor da agricultura familiar,
que também é o maior empregador de mão de obra no campo brasileiro, envolvendo
percentual empregado muito maior que o do agronegócio. Cita-se, também, para além do
Fome Zero, a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER).
A terceira vertente do Fome Zero, por sua vez, envolve os Planos Setoriais de
Qualificação (PLANSEC), destinados à qualificação profissional dos beneficiários do Bolsa
Família; projetos sobre economia solidária; inclusão produtiva; e microcrédito. Além disso,
inclui o Territórios da Cidadania, programa voltado para a universalização de programas
básicos de cidadania. O apoio à distribuição de alimentos oriundos da agricultura familiar é
uma de suas mais importantes previsões.
A quarta e última divisão do Fome Zero é referente à articulação, mobilização e
controle social. Articula os Centros de Referência para Assistência Social (CRAS) e o
Programa de Atenção Integral à Família (PAIF), além de comitês e conselhos sociais,
propostas de formalização de parcerias com empresas e entidades privadas e programas de
mobilização social e cidadã.
Conforme argumentam Chmielewska e Sousa (2011), ainda que existam críticas
pertinentes quanto à sustentabilidade da implementação do Fome Zero ao longo dos dois
mandatos de Lula da Silva, é inegável que a segurança alimentar e nutricional foi dos pontos
focais de sua agenda política. Entre os dissensos identificados, cita-se a escala de recursos do
Bolsa Família, que poderia modificar seu caráter de combate à fome para combate à pobreza;
a ênfase no âmbito emergencial e não estruturante do Fome Zero (SOUZA; FILHO, 2005); e
184

o aumento das responsabilidades do MDS, que passou a envolver, além da segurança


alimentar, a formulação de ações em prol da assistência social239.
Não devemos ignorar, ainda, que, ao privilegiar um programa como o Fome Zero, o
governo buscava gerir uma estratégia de crescimento orientada pela demanda interna, de
forma a promover o crescimento econômico por meio do consumo. Isso diminuiria a
necessidade de gerar excedentes exportáveis e atrair investimentos para fazer crescer o PIB.
Com os gastos do governo, por exemplo, pelo Bolsa Família, parcela da população até então
marginalizada do mercado consumidor seria incorporada a esse.
A organização do programa Fome Zero envolve ações estruturantes, de médio e de
longo prazos – como as de qualificação profissional e de desenvolvimento agrário -, com
outras, emergenciais, tópicas, sem a previsão de serem implementadas por tempo indefinido.
Dessa forma, se, por um lado, há a insuficiência de renda disponível para que parcelas da
população tenham acesso à alimentação adequada, por outro, os preços de vários desses
gêneros alimentícios são inadequados, o que suscita a readequação da oferta.
Além do Fome Zero, o segundo principal conjunto de iniciativas voltadas para a
garantia de segurança alimentar e nutricional no Brasil é identificado pela Política Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), que ensejou a criação do Plano Nacional
sobre a temática. A PNSAN foi criada em 2010, pelo Decreto 7.272/2010, o mesmo que
estabeleceu o SISAN240.
Entre os principais pontos da PNSAN, há: (i) identificar, disseminar e agir nos fatores
que influenciam a insegurança alimentar e nutricional no país; (ii) conectar programas e ações
de setores variados para promover o direito humano à alimentação adequada; (iii) promover a
sustentabilidade dos sistemas agroecológicos para a produção e distribuição de alimentos,
juntamente com o fortalecimento da agricultura familiar; e (iv) tornar o respeito à soberania
alimentar e à garantia ao direito à alimentação uma política de Estado.
Por prever a edição de mecanismos de monitoramento, a PNSAN é considerada um
complemento em relação ao Fome Zero241. Sua principal contribuição, como marco legal, foi

239
O MDS foi criado em 2004, a partir da extinção do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar
(MESA), incorporando e ampliando suas responsabilidades.
240
De acordo com o decreto, a PNSAN será implementada por meio do Plano Nacional de Segurança Alimentar
e Nutricional. Com previsão de quatro anos, o plano será definido pela Câmara Inter-Ministerial sobre Segurança
Alimentar e Nutricional (CAISAN), de acordo com os parâmetros definidos pelo CONSEA e pelas Conferências
Nacionais sobre Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN).
241
A criação de mecanismo de monitoramento unificado é medida prevista pela PNSAN, visto que, mesmo sob o
Fome Zero, as mais diversas iniciativas utilizam critérios de avaliação individuais.
185

a previsão de que a segurança alimentar e nutricional seja uma preocupação perene na


formulação de políticas públicas, não permanecendo discricionária das disposições políticas
dos governos eleitos, mas sendo projeto de Estado242.
Interessante notar que, por considerar a segurança alimentar como algo multipropósito
e que demanda intervenções multi-setoriais, o governo brasileiro deu espaço a diversos atores
das burocracias federal, estadual e municipal, e também de fora da máquina pública, para o
encaminhamento da questão. Ministérios como os da Saúde, do Desenvolvimento Agrário
(MDA), e do Trabalho e Emprego (MTE); instâncias como o CONSEA e a Companhia
Nacional de Abastecimento (CONAB); e entidades não governamentais como, por exemplo, a
Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Ação Brasileira para a Nutrição e os Direitos Humanos
(ABRANDH), frente a essa possibilidade de ação conjugada, encontraram espaço suficiente
para influenciar a tomada de decisões e a formulação de políticas públicas243.

4.1.2 Um conceito, muitas agendas

Conforme já enunciamos, o conceito de segurança alimentar – ou de segurança


alimentar e nutricional, como é normalmente aventado no âmbito doméstico brasileiro – não é
um termo imune a dissensos. Por sua amplitude, permite a incorporação de numerosas
agendas tais como de desenvolvimento rural, de preservação ambiental e de desenvolvimento
energético, somente para citarmos algumas. Trata-se de um conceito “coringa”, por assim
dizer, que tem o condão de ser instrumentalizado de acordo com as perspectivas e os
interesses dos Estados.
Por sua abrangência e pouca especificidade, a segurança alimentar é exemplo de como
as questões internacionais encontram-se, no momento hodierno, interdependentes. Essas

242
O IBGE aferiu, em 2010, por meio da PNAD, que 65,5 milhões de pessoas em 17,7 milhões de domicílios
estavam em algum grau de insegurança alimentar. Esse montante envolveu pessoas que enfrentavam algum
constrangimento no consumo de alimentos ou, pelo menos, alguma preocupação quanto à possibilidade de não
haver renda suficiente para esse consumo. A mesma pesquisa avaliou que 18,7% da população nacional vivem
em insegurança alimentar branda; 6,5% em insegurança alimentar moderada; e 5% em insegurança alimentar
severa. O levantamento identificou que a área rural do país apresentou índices de insegurança alimentar
superiores aos da área urbana (IBGE, 2010).
243
Em âmbito nacional, a coordenação das inúmeras iniciativas levadas a cabo por atores governamentais, nos
três níveis federativos, coube ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). O papel da
sociedade civil nesse processo é visível quando se observa a composição do CONSEA e do próprio sistema,
além da realização periódica das CNSAN.
186

interconexões ocorrem tanto no “transbordamento” da dinâmica doméstica para a externa (e


vice versa) quanto na incapacidade de o analista definir um conceito sem levar em
consideração que é cada vez mais difícil limitá-los por barreiras teóricas. Assim, o tratamento
da problemática implica abordagem igualmente sistemática, plural, não reducionista.

A ordem mundial passa por momento de transformação. Vivemos crises e tensões


que se entrelaçam: a crise alimentar, a insegurança energética, a mudança do clima,
a violência e os conflitos internos, os obstáculos a um comércio verdadeiramente
livre, etc. A tudo isso veio somar-se a crise financeira, gerada pelas ações
especulativas no centro do capitalismo mundial, mas que terminam por afetar todo o
planeta. Não resolveremos um problema sem necessariamente solucionar ou ao
menos mitigar o outro. (...) Neste mundo globalizado, a cooperação internacional é
uma necessidade. Ricos ou pobres, grandes ou pequenos, poderosos ou fracos, todos
estão envolvidos. O Brasil está naturalmente atento a tudo isso (AMORIM, 2009) 244.

Como se observa, os decisores de política externa também percebem essas interações


como contingenciamentos e oportunidades nas escolhas de comportamento internacional. Por
estar inserida dentro de espectro virtualmente ilimitado de ameaças que perpassam a vida
internacional, a segurança alimentar, tem, em seu âmago, a perspectiva de não estar confinada
a uma agenda específica.
Identificamos, ecoando a avaliação brasileira, o conceito de segurança alimentar como
dividido, fundamentalmente, em uma tríade de agendas: a de combate à fome; a de combate à
pobreza; e a de desenvolvimento agrário, referente à agricultura familiar. Isso não significa
que não existam outros referentes a serem considerados e tampouco que o conceito resuma-se
nesses três fatores componentes. De fato, discussões relativas a comércio internacional, à
geopolítica, à energia e ao meio ambiente estarão presentes, mesmo que transversais, em
nossos argumentos. Foram escolhidos esses três pontos em virtude de, acredita-se, melhor
ilustrarem o intuito de analisar a experiência de cooperação sul-sul do Brasil com a África.
De acordo com o já defendido anteriormente, fome não é o mesmo que pobreza. Nesse
sentido, como os referentes ontológicos são distintos, não se convenciona para eles a mesma
solução. Entretanto, o programa brasileiro de promoção da segurança alimentar, em todas as
suas subdivisões e instâncias - federais, estaduais e municipais -, engloba as duas dimensões,
a de combate à fome e a de combate à pobreza, pois aponta que não se resolve o problema da
pobreza sem haver solução para a fome.

244
“Por uma nova arquitetura internacional”. Palestra do ex-ministro Celso Amorim como convidado de honra
do Seminário Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal. Lisboa, 5 de janeiro de 2009
(BRASIL, 2010).
187

Assim, a fome não seria causada por insuficiência na oferta de alimentos, mas, pelo
contrário, pela impossibilidade do consumo pela ausência de renda. Assim, para o governo
brasileiro sob Lula da Silva, essas duas agendas são conexas e não podem ser avaliadas sem
que sejam tratadas de forma conjugada. Prova disso é a natureza multifacetada e intersetorial
do Fome Zero e da PNSAN.
Elevado à bandeira primordial do período entre 2003 e 2010, o combate à fome e à
pobreza obteve resultados expressivos. Durante a gestão Lula da Silva, anotou-se queda de
50,64% nos índices de pobreza (FGV, 2011)245, o que vai ao encontro dos compromissos
firmados quando da anuência do Brasil à Declaração do Milênio das Nações Unidas 246. Em
2010, a renda média do brasileiro cresceu 9,6%, enquanto o PIB em 7,5%, o que representou
um ganho real às famílias, que, entre outras coisas, foi revertido no consumo de alimentos.
Entre 2003 e 2008, cerca de 31 milhões de brasileiros ascenderam socialmente. Desse
total, 19,4 milhões deixaram a linha de pobreza, que é referente à classe E, representando
quem tem renda domiciliar inferior a R$ 768. Programas de transferência condicionada de
renda como o Bolsa Família foram os maiores responsáveis por essa melhora de índice. Já
outros 1,5 milhão deixaram a classe D (renda até R$ 1.114), beneficiados principalmente por
aumentos reais no salário mínimo. Combinadas, as políticas de combate à fome e à pobreza –
e aqui não entraremos no mérito de se a pobreza é causadora da fome ou o contrário;
entendemos que as duas dinâmicas funcionam concomitantemente – representaram logro nas
escolhas de desenvolvimento nacional nos oito anos de presidência petista.
O terceiro ponto da estratégia nacional de enfrentamento da insegurança alimentar diz
respeito à agenda de desenvolvimento agrário. Sua relevância é muita, tendo em vista que a
agricultura familiar produz cerca de 70% do alimento consumido internamente (feijão, leite,
aves, por exemplo); emprega 74% da mão de obra no campo (4,4 milhões de famílias); e
representa um percentual de 24% das terras ocupadas por atividades agricultáveis,
respondendo por somente 14% do crédito disponível (IBGE, 2009). Como a garantia da

245
Pesquisa realizada pelo economista Marcelo Neri, da FGV, com base nos dados divulgados pelo IBGE
(2010). Disponível em: http://oglobo.globo.com/politica/governo-lula-reduziu-pobreza-do-pais-em-506-mostra-
estudo-2775537, acesso em: 05/04/2013.
246
Durante o período FHC, a queda na pobreza foi de 31,9%.
188

segurança alimentar de um país, depende, necessariamente, da produção e da disponibilidade


de gêneros alimentícios, o enfoque na agricultura familiar247 faz-se extremamente necessário.
Além de contribuir para a manutenção de mão de obra no campo, o desenvolvimento
agrário é medida estrutural no rol de ações sobre segurança alimentar. Por envolver questões
como regularização fundiária; compartilhamento de técnicas agricultáveis; garantia de
crédito248; capacitação profissional249; provimento de máquinas e sementes; auxílio à
comercialização e à manutenção de preços adequados; a garantia continuada da oferta de
alimentos; entre outras, essa terceira agenda da segurança alimentar apresenta enormes
desafios para um país com passivos socioeconômicos ainda não solucionados250.
A reforma fundiária está intrinsecamente associada à garantia da segurança alimentar,
fazendo parte da perspectiva estrutural do conceito. Documento produzido pelo relator
especial das ONU sobre direito à alimentação reforçou que o direito à alimentação e o direito
à terra são objetivos a serem assegurados de forma complementar (DE SCHUTTER, 2009).
Há, entretanto, um impertinente paradoxo: a agricultura familiar, principal responsável
pelo abastecimento doméstico de gêneros alimentícios, é, de longe, a mais associada à
existência de insegurança alimentar. Em 2008, 12,5% da população rural sobrevivia com
menos de US$ 1.25 por dia, ao passo que a média nacional era de 4,9% (IPEA, 2010).
Ademais, o percentual de população no campo que tinha acesso à alimentação insuficiente ou
irregular era de 45,6% contra 35,5% de média nacional (IBGE, 2010a)251.
A PNSAN, associada ao eixo relativo à agricultura familiar do Fome Zero, visa a
amenizar esse quadro, já tendo conseguido alcançar resultados notáveis. Os 12,5% de
população rural com menos de US$ 1.25 por dia representam grande avanço frente ao
alarmante patamar de 51,3% em 1990. Quanto à proporção de famílias no campo vivendo
com alguma restrição no acesso e consumo de alimentos, o índice caiu de 56,9% para os
atuais 45,6%. São ganhos que indicam que a segurança alimentar tornou-se questão central no
planejamento das políticas públicas no Brasil.

247
A agricultura familiar envolve propriedades de até quatro módulos fiscais, não sendo, por isso,
necessariamente, minifúndios. O tamanho desses módulos, contudo, irá variar de acordo com a sua localização
no território brasileiro.
248
Especialmente por meio do PRONAF.
249
O Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PRONATER) é o principal programa federal.
250
Apesar do aumento de verba do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) durante o
período de Lula da Silva na presidência, as dificuldades de assentamento rural no país são imensuráveis.
251
Aqui, fazemos referência ao levantamento de Chmielewska e Souza (2011).
189

Ainda do ponto de vista da produção agrícola, é preciso deter-se na diferenciação entre


agricultura familiar e agronegócio. Tratam-se de dois nichos relativos à agricultura brasileira
essencialmente diferentes, mesmo que contendo inúmeros pontos de contato. Em primeiro
lugar, a própria dinâmica ministerial federal revela que existe uma dicotomia entre o que é
agricultura familiar, assunto primordial do MDA, e o que é agronegócio, normalmente
associado ao MAPA. Dessa forma, cada divisão temática acaba por ficar confinada, grosso
modo, a uma burocracia específica, com interesses nem sempre convergentes.
Pela existência dessa dicotomia, é fundamental saber quem produz o que e para quem.
Quando analisados separadamente, vemos que a agricultura familiar e o agronegócio
costumam receber tratamentos específicos e nem sempre integrados por parte do governo.
Isso implica em diferentes dinâmicas e em posicionamentos críticos, inclusive no que diz
respeito à cooperação técnica brasileira com o continente africano. Em termos gerais, pode-se
dizer que o agronegócio responde pelas exportações de gêneros agrícolas pelo país, enquanto
que a agricultura familiar é a principal responsável pelo abastecimento interno de alimentos e
emprego de mão de obra rural.
O agronegócio envolve, normalmente, porções de terra destinadas a cultivos de
monoculturas, com forte apuro da técnica, o que causou aumento, inicialmente, da
concentração fundiária no Brasil252. Esse processo viabilizou o desenvolvimento de produtos
como a cana-de-açúcar e a soja na pauta de exportações brasileiras, essa última, cultura que
hoje avança para áreas no oeste da Bahia e sul do Pará e do Amazonas 253. Outras culturas,
como a de café e a de laranja, além da pecuária também são comumente associadas ao
agronegócio254.
A agricultura familiar, por sua vez, aparte as características já elencadas, responde por
áreas fundamentalmente menores e tem distribuição geográfica comumente localizada no
Nordeste e no Sul. Vale lembrar que, por serem menores, essas porções fundiárias necessitam
de maior inversão da técnica para garantirem, via maior produtividade, incremento de
produção, o que aumenta a dependência de programas de crédito de origem pública, ao
252
Hoje, o fenômeno da concentração fundiária vem diminuindo em algumas áreas do campo brasileiro,
principalmente pelo aumento do preço da terra – em função de fatores como especulação – e, podemos citar, por
limitações ambientais que dificultam a incorporação de novas porções de terra.
253
Há cerca de 5,5 milhões de estabelecimentos agrícolas no Brasil, a enorme maioria deles com menos de 100
ha de área.
254
O Brasil é classificado pela OMC como o terceiro maior exportador agrícola do mundo, atrás dos Estados
Unidos e da União Europeia. O país também é o maior exportador mundial de carne bovina, tendo o segundo
maior rebanho do mundo, depois da Índia. Além disso, o Brasil é o maior exportador mundial de cana-de-açúcar,
frango, café, suco de laranja e etanol; segundo maior exportador de soja e quarto de tabaco e de algodão.
190

contrário do agronegócio. Atualmente, apesar dos variados programas voltados para o


pequeno agricultor, a política agrária nesse diapasão ainda é frágil, havendo pouco alcance de
mercado e irregular apoio governamental por meio de crédito.
É notável observar, entretanto, que, mesmo havendo essa dicotomia, a diplomacia
brasileira justifica, quando necessário, suas ações de CSS no campo da agricultura latu senso
como sendo voltadas para a segurança alimentar. Ainda que o agronegócio não integre,
sobremaneira, o conceito de segurança alimentar ecoado pela FAO, pelo governo, ou por
entidades especializadas da sociedade civil, ele não deixa de ser aglutinado à agenda mais
ampla de segurança alimentar quando assim for interessante aos decisores de política externa.
Desse modo, os projetos de cooperação sul-sul que dizem respeito ao
compartilhamento de técnicas relativas a culturas principalmente como as de soja e as de
cana-de-açúcar, relacionadas intimamente ao agronegócio, podem, dependendo da ocasião,
serem inseridos dentro de uma lógica de segurança alimentar. A estratégia retórica é simples:
como a cooperação agrícola contribui, em geral, para o incremento da técnica e para o
consequente aumento da produtividade, isso tem o condão de colaborar para uma mudança
estrutural no processo de produção agrícola nos países recipiendários, o que, por sua vez,
auxiliaria na sustentação da segurança alimentar.
Como um dos pilares da segurança alimentar é referente à modificação estrutural, em
âmbito socioeconômico, das nações, o argumento amplo, de que a cooperação agrícola
poderia envolver, dependendo do caso, a agricultura familiar e mesmo o agronegócio, tornar-
se-ia, na visão os formuladores nacionais, pertinente. Um país com suficientes conhecimentos
na produção de uma cultura “x”, voltada para a exportação, poderia, então, utilizar aquela
expertise para melhorar o cultivo de gêneros alimentares voltados para o abastecimento do
mercado doméstico e para ações conjugadas de combate à fome e à pobreza.
O caminho discursivo, possível, em virtude da plasticidade do conceito de segurança
alimentar, serve a um duplo propósito: o de legitimar a cooperação agrícola relativa a gêneros
exportáveis, como a soja, como sendo indiretamente válida para o desenvolvimento estrutural
das nações parceiras; e, segundo ponto, o de caracterizar o Brasil como um ator preocupado
com o desenvolvimento de seus parceiros. O que ocorre, contudo, na prática, é que essas duas
agendas não parecem tão imiscuídas, e tampouco que as técnicas vinculadas ao agronegócio
seriam “adaptáveis” aos termos relativos ao combate à insegurança alimentar.
191

As críticas a essa maleabilidade discursiva são muitas, emanadas principalmente por


atores de fora da máquina estatal, como ONGs e sindicatos rurais, mas também perpassando
setores da própria burocracia governamental. O posicionamento do CONSEA é notável:

O agronegócio não promove a segurança alimentar e nutricional porque concentra


terra, não visa a diversidade de produção de alimentos para consumo interno, é
motivado pelo lucro e não pelo direito humano à alimentação, usa agrotóxicos e
transgênicos e não é sustentável do ponto de vista ambiental e climático. (...) Existe
uma incoerência entre a política interna e externa brasileira quanto à promoção da
segurança alimentar e nutricional. Há uma demanda crescente dos países pela
experiência brasileira de construção participativa das políticas públicas de segurança
alimentar e nutricional. Porém, o governo brasileiro ainda oferece cooperação
técnica internacional que fere os princípios da segurança alimentar e nutricional
contidos na Lei n° 11.346/2006 (KLIMACH, 2012)255.

Entretanto, como veremos, o CONSEA tem dificuldades de se fazer ouvir e de


influenciar a tomada de decisões em política externa, visto que congrega funções muito mais
recomendatórias que práticas, acabando por ser uma voz um tanto isolada na burocracia
estatal que atua sobre a cooperação em segurança alimentar.

4.1.3 “Transbordamento” interno-externo

O art. 6º da Lei 11.346/2006, que estabeleceu o entendimento nacional sobre


segurança alimentar e nutricional, é taxativo no que diz respeito à necessidade de incentivo à
cooperação em segurança alimentar: “o Estado brasileiro deve empenhar-se na promoção de
cooperação técnica com países estrangeiros, contribuindo assim para a realização do direito
humano à alimentação adequada no plano internacional” (BRASIL, 2006).
Trata-se de um “transbordamento” de políticas públicas desenvolvidas em âmbito até
então eminentemente doméstico para a seara internacional, compondo o rol de iniciativas e
possibilidades de ação em política externa. Por fazer parte da vasta gama de processos
cooperativos componentes da CBDI, a cooperação em segurança alimentar, em suas mais
variadas vertentes, incorpora as características da cooperação sul-sul articulada pelo Brasil. A
dizer: argumentos em prol de horizontalidade, execução nacional, composição estruturante e

255
Entrevista de Mirlane Klimach, assessora internacional do CONSEA, ao autor. Entrevista realizada em 2012.
192

não indiferença; além do caráter relativo à conformação dos interesses – ainda que difusos e
não necessariamente de curto prazo – relativos à inserção internacional do país.
Preferimos trabalhar, quando da análise das causalidades domésticas, com as teorias
Estado-centradas, que identificam as origens do comportamento de política externa no interior
do aparato decisório no âmbito do poder Executivo (MORAVCSIK, 1993)256. Isso se torna
efetivamente útil, tendo em vista que as técnicas compartilhadas pelo Brasil referentes ao
combate à fome e à pobreza e ao desenvolvimento agrário são continuações dos processos em
curso no interior do Estado. Assim, podemos argumentar que a cooperação não diz respeito
somente ao que se passa no plano internacional.
Conjugada a fatores de origem sistêmica, essa abordagem de cunho doméstico tem o
condão de favorecer o entendimento dos processos que compõem a tomada de decisões
quanto à política de cooperação brasileira. Quando analisamos como a composição de forças e
de formação de preferências no interior da burocracia estatal, isso contribui para a formulação
de uma política externa orientada para a cooperação sul-sul, especificamente, no nosso caso,
para com o continente africano. Nesse sentido, estamos procurando não repetir os estudos –
que devem ser considerados por sua relevância, é claro – que preferem somente dar cabo das
causalidades externas.

The possibility of international accords, as well as their content, is jointly


determined by domestic and international factors. This basic perspective underlies
an integrative approach to thinking about international relations and domestic
politics. (…) Deals at the international level change the character of domestic
constraints, while the movement of domestic politics opens up new possibilities for
international accords (EVANS, 1993, p. 397)257.

256
Moravcsik (1993) divide as teorias de cunho doméstico em três tipos: (i) teorias sociedade-centradas, em que
as pressões de grupos sociais domésticos, por meio de legislaturas, grupos de interesses, eleições e opinião
pública interferem na tomada de decisões; (ii) teorias Estado-centradas, conforme mencionamos; e (iii) teorias de
relações Estado-sociedade, que enfatizam as instituições de representação, educação e administração que
conectam Estado e sociedade. O trecho correspondente na tradução é: “A possibilidade de acordos
internacionais, assim como seu conteúdo, é conjuntamente determinada por fatores domésticos e internacionais.
Essa perspectiva básica salienta uma abordagem integrativa para pensar as relações internacionais e a política
doméstica. (...) Acordos no nível internacional mudam o caráter dos constrangimentos domésticos, enquanto que
o movimento da política doméstica abre novas possibilidades para acordos internacionais”.
257
Rosenau (1980) reconhece e valoriza a ideia de “transbordamento”, mas argumenta ser difícil prover uma
teoria generalizante e sistemática sobre as linkagens entre as dinâmicas doméstica e internacional. Em virtude
disso, o autor advoga pelo desenvolvimento de teorias de médio alcance sobre a temática. Segundo ele, uma
teoria geral across-systems seria inviável pela quantidade de atores, conexões e interações envolvidos na
conformação do comportamento internacional dos Estados. É preciso, pois, ter parcimônia na definição das
relações entre as esferas doméstica e externa – os níveis de análise – que compõem a política externa.
193

Nesse sentido, além de haver um dispositivo legal que prevê que a cooperação em
segurança alimentar seja uma constante na política externa, existem ações práticas no que diz
respeito à internacionalização das políticas públicas nacionais nesta seara. Essas iniciativas
indicam que determinados atores domésticos têm interesse em negociar o compartilhamento
de técnicas e de conhecimentos autóctones com outros Estados. Isso nos leva a crer, portanto,
que as origens da política externa são, decisivamente, também, as causalidades domésticas.
Argumentar que o Brasil coopera nas arenas relativas à segurança alimentar com
parceiros múltiplos, no âmbito sul-sul, é sinal de três fatos. O primeiro deles, de que há
disposição dos decisores domésticos para negociar; caso essa pré-condição inexistisse, seria
mais provável que o transbordamento interno-externo não ocorresse e que a cooperação
permanecesse somente no campo da retórica, sem traduzir-se em exemplos comprobatórios de
um dito interesse brasileiro em assumir maiores responsabilidades em prol de ordem
internacional mais equânime. Não negamos, aqui, que os interesses dos atores domésticos são
os mais variados e variáveis, não permanecendo imutáveis e dados, estando sujeitos a
alterações em função de barganhas, disputas e coalizões compostas em plano doméstico.
O segundo, de que o Brasil coopera porque, efetivamente, tem know-how para tanto.
Se considerarmos que a CBDI é construída de acordo com as requisições dos países
recipiendários (demand driven)258, temos que esses Estados procuram internalizar políticas e
técnicas que de fato existem e que efetivamente possam contribuir para seu desenvolvimento.
Assim, além de ter suas políticas de desenvolvimento agrário e de combate à fome e à pobreza
referenciadas por instituições multilaterais como a FAO, o Banco Mundial259 e o BID, e
sustentadas em estatísticas comprobatórias dos avanços domésticos, o Brasil ser requisitado

258
A apresentação de uma proposta de projeto pode ser feita diretamente pelo Governo estrangeiro à Embaixada
brasileira situada na capital do outro país, ou durante a realização de reuniões periódicas de discussão de temas
bilaterais de cooperação, conhecidas como Comissões Mistas (Comistas). A proposta, cujo modelo encontra-se
na página de internet da ABC é, então, encaminhada à agência para análise e aprovação. Caso não seja
identificada pelo outro país qual a instituição brasileira com a qual se deseja trabalhar, a ABC atua na definição
de órgãos nacionais capazes de atender à demanda.
259
“Banco Mundial vê Bolsa Família como modelo”. Para a instituição, transferências condicionais de renda
contribuem para a formação e fortalecimento do “capital humano” de uma nação. O programa, parte da
estratégia do Fome Zero, seria uma “revolução silenciosa” em curso no Brasil. Disponível em:
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI906421-EI6578,00.html, acesso em: 04/04/2013. Também em:
“Brazil’s Bolsa Familia Program celebrates progress in lifting families out of poverty”. O trecho correspondente
na tradução é: “O Programa Bolsa Família do Brasil celebra progresso em retirar famílias da pobreza”. Na
ocasião, o então presidente do Banco Mundial, Paul Wolfowitz, afirmou que o “Bolsa Família já se tornou um
modelo altamente elogiado de políticas sociais. Países, ao redor do mundo, estão aprendendo lições com a
experiência brasileira e estão tentando reproduzir os mesmos resultados para suas populações”. Disponível em:
http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/NEWS/0,,contentMDK:20702063~pagePK:64257043~piPK:4
37376~theSitePK:4607,00.html, acesso em: 04/04/2013.
194

externamente por países de América Latina, de África e de Ásia, é mostra de que o programa
nacional de segurança alimentar tem trunfos que não podem ser negligenciados.
Um terceiro ponto é o de, por ter consciência da crescente atenção despertada pela
agenda macro de segurança alimentar no cenário internacional, os formuladores de política
externa buscam imiscuí-la nas mais distintas parcerias e coalizões das quais o Brasil participa.
Isso não deixa de ser verdadeiramente interessante para o país, tendo em vista que possui – e
aqui assumimos certo viés utilitarista – “vantagens comparativas” na instrumentalização dessa
temática. Ao procurar difundir e fortalecer o conceito à luz da experiência nacional, os
decisores objetivam reforçar as credenciais brasileiras e rememorá-la como marca a ser
replicada por nações que enfrentem problemas relativos à fome e à pobreza.
Burges (2012) afirma que isso faz parte de uma estratégia negocial que, se aparenta ser
“integrativa”, prevendo ganhos absolutos para todos os stakelhoders, mais parecer ser
“distributiva”, buscando maximizar benefícios individuais, em prol da manutenção da
autonomia de política externa. Segundo ele, uma das abordagens estratégicas do Brasil em
foros e regimes internacionais “is to collectivise its position on a particular international
issue, allowing its diplomats to claim with reasonable legitimacy that they are bringing a
larger agglomeration of interests to the table and acting as a positive international policy
entrepreneur” (BURGES, 2012, p. 354)260.
Dessa forma, o Brasil colocar-se como ator propenso a assumir maiores
responsabilidades em uma ordem transitória e indefinida, não ocorreu sem a levada em
consideração das vantagens que poderiam embasar seus pleitos. Porque legitimidade –
doméstica e internacional – sem ação é algo insustentável mesmo em curto prazo. Houve
cálculo diplomático no processo de valorização e de consequente fortalecimento da agenda de
segurança alimentar nos foros internacionais. Não é à toa a escolha de um brasileiro para a
FAO, pleiteante esse que foi o coordenador do Fome Zero na gestão Lula da Silva261.
Essa interconexão entre os eixos interno e internacional guarda relação, também, com
a dinâmica decisória no interior do MRE. Conforme argumentamos, a ascendência da corrente
de pensamento e de ação dos autonomistas sobre os institucionalistas pragmáticos foi

260
O trecho correspondente na tradução é: “é coletivizar seu posicionamento sobre uma questão internacional
particular, permitindo a seus diplomatas reivindicarem, com razoável legitimidade, que eles estão trazendo uma
maior aglomeração de interesses para a mesa e atuando como um ator político internacional positivo”. Ainda
que a leitura desse autor seja mais aplicável a negociações internacionais como as da OMC, da ALCA e do
MERCOSUL, sua visão crítica sobre as estratégias negociais brasileiras é extremamente válida.
261
Assim como a criação em 2011 do Centro de Excelência contra a Fome do PMA em Brasília, numa parceria
do PMA com a ABC. Também citamos o prêmio “Campeão do Mundo na Batalha Contra a Fome”, concedido
pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA), ao ex-presidente Lula da Silva, em 2010.
195

causalidade importante para o reforço nas ações de cooperação em segurança alimentar. Esse
grupo compreendeu que ampliar o rol de parcerias cooperativas em eixo sul-sul seria basilar
para o reforço do papel internacional do Brasil.
Podemos imaginar que a influência da corrente do PT, ator de fora da burocracia do
Itamaraty, mas que ganhou proeminência pela figura de Marco Aurélio Garcia, fez-se
presente. Defendemos tal argumento porque a agenda de segurança alimentar é bandeira
claramente identificável com o novo governo de Lula da Silva. A construção de um sistema
integrado de práticas nacionais, associado à criação do MDS e centralizado no Fome Zero e
na PNSAN, foi projeto alçado à condição de política de Estado justamente em sua gestão.
Se a realização de reformas colocou-se como uma das principais expectativas do
governo de orientação petista – até por pura estratégia de política partidária e de marcação de
posição em relação à presidência peessedebista anterior-, não é de se estranhar que a
internacionalização de políticas relativas a questões socioeconômicas tornar-se-ia uma das
formas de ação encontrada pela corrente autonomista para dinamizar a política externa.
Por isso, não existe impropriedade em falarmos que o transbordamento doméstico-
internacional da agenda de segurança alimentar seja fenômeno claramente articulado à
existência de certa porosidade decisória no Itamaraty. Como os autonomistas recebem
influência dos quadros petistas – especialmente quanto à integração regional e à cooperação
sul-sul (SARAIVA, M., 2007) -, podemos referendar que dificilmente o escopo de cooperação
seria tamanho se não houvesse essa conjugação de fatores explicativos e permissivos.
Da mesma forma, veremos na próxima seção que a participação de outros atores da
burocracia federal – notadamente os ministérios – foi fundamental para que as políticas
públicas implementadas e formuladas por esses mesmos ministérios pudessem ser
instrumentalizadas pelo Itamaraty. A quebra relativa de monolitismo decisório e da imagem
de torre de marfim do MRE, por meio de certa horizontalização, foi importante para que a
política de cooperação sul-sul em segurança alimentar fosse viabilizada.
Interessante é a constatação de que, para que esse transbordamento das esferas
doméstica e externa tornar-se realidade fática, a multiplicação de atores com interesses,
capacidades de mobilização de demandas e expertises diferentes é realidade necessária. Se o
Itamaraty não pode cooperar sem a colaboração das demais pastas ministeriais, isso torna-se
ainda mais agudo se considerarmos que o objeto da cooperação requer justamente a
transposição de conhecimentos aplicados até então nacionalmente.
196

Quando observamos o discurso do ex-presidente Lula da Silva, em 2011, de que “a


fome é a maior arma de destruição em massa que a humanidade já inventou”, na ocasião do
recebimento do prêmio World Food Prize, criado em 1970, vemos que o Brasil colocar-se
como um proponente de cooperação sul-sul é algo que vai de acordo com o modelo de
inserção dos autonomistas. Sem alinhamentos restritivos e pautado em universalismo,
diversificação de parcerias e orientado para a lógica do desenvolvimento, a visão desse grupo
quanto ao lugar do Brasil no mundo passa pela ideia de o país deve compartilhar suas práticas
de sucesso e procurar angariar benefícios – ainda que difusos – desses procedimentos.
Muitas foram as formas encontradas pelos decisores de política externa para reforçar a
importância da segurança alimentar em um sistema internacional caracterizado pela ascensão
de emergentes com passivos sociais alarmantes. Por se tratarem de desafios complexos, que
demandam esforços compartilhados, procurou-se promover a cooperação não só em parcerias
bilaterais, mas também em perspectivas trilateral e multilateral.
Nesse âmbito, em 2003, a diplomacia brasileira defendeu, durante o Fórum de Davos,
a criação de um fundo composto por contribuições de países desenvolvidos e voltados para
financiar programas de combate à fome. Posteriormente, ganhou forma a Ação contra a Fome
e a Pobreza, protagonizada pelo país, em 2004, juntamente com o reforço das metas definidas
nos ODM. A Declaração do Milênio menciona que os governos "não economizariam esforços
para libertar nossos homens, mulheres e crianças das condições abjetas e desumanas da
pobreza extrema" (ONU, 2000, p. 6).
Durante a confecção do documento final do Consenso de Monterrey (2004), relativo a
discutir mecanismos de promoção e financiamento da cooperação internacional, a posição
brasileira foi a de que, ainda que os esforços para o combate à fome e à pobreza devam ser
realizados primordialmente pelos Estados, a sociedade internacional deve favorecer, por meio
da cooperação, o desenvolvimento socioeconômico de nações em dificuldades. Esse
posicionamento tem intrínseca relação com a postura de promover uma governança mais
democrática, a dizer, com o componente de solidariedade da política cooperativa do país.
Nesse mesmo ano, a FAO aprovou, com apoio do Brasil, as Diretrizes Voluntárias,
destinadas a orientar os Estados a progressivamente promoverem o direito humano à
alimentação adequada. Em consonância com a iniciativa multilateral, o CONSEA sugeriu que
o governo ampliasse o foco de suas ações de âmbito internacional relativas a questões de
segurança alimentar e nutricional. A defesa da soberania alimentar dos povos e da associação
do uso responsável da água fizeram parte das propostas do conselho ao governo federal.
197

No documento, o CONSEA afirma que a segurança e a soberania alimentares do


Brasil requerem considerar as várias negociações internacionais em curso, tanto no que se
refere aos temas como na natureza multilateral ou regional, em razão da importância de cada
uma delas e das interfaces existentes entre elas (CONSEA, 2004)262. As escolhas de políticas
públicas deveriam perpassar a consideração da dinâmica externa, numa manifestação de que
os atores da burocracia reconhecem a necessidade de diálogo permanente com a perspectiva
multilateral e com outros Estados com os quais possam compartilhar boas práticas263.
Tratar desafios comuns como somente passíveis de soluções compartilhadas é mostra
de que o multilateralismo deve ser reforçado, com tal perspectiva prevendo a democratização
das instâncias decisórias e a incorporação das agendas do “mundo em desenvolvimento”, o
que vai ao encontro das diretrizes de política externa. A segurança alimentar é uma dessas
temáticas que, por dizerem respeito principalmente aos países com menor desenvolvimento
relativo, são trazidas por atores como o Brasil ao cerne das discussões do ECOSOC, da
AGNU, do CSNU e das agências especializadas do sistema ONU.
Deve-se lembrar que isso não ocorreu por mero proselitismo ou oportunismo.
Reformas estruturais socioeconômicas já vinham tomando forma no escopo doméstico
brasileiro, colaborando como provas práticas da retórica. Para além de discurso vazio, os
formuladores de política externa – com o apoio de atores outros da dinâmica decisória –
buscaram legitimar seus pleitos por meio de amostras de como a segurança alimentar era,
realmente, uma questão central a ser solucionada.
Além disso, por ser um conceito amplo e englobar distintas agendas, a segurança
alimentar possibilita sua instrumentalização sob a forma de inúmeros projetos de CSS e de
valorização da imagem do país. Da internacionalização dos biocombustíveis até a
transferência de políticas públicas nacionais como o Bolsa Família, os exemplos são os mais
variados quando se observa o rol de interações cooperativas engendrados pelo Brasil.
Durante a cúpula de Ecaterimburgo dos BRICS, em 2009, então presidente Lula da
Silva, ao comentar quais agendas deveriam ser objetos prioritários de atuação do
agrupamento, citou reforma da ONU, mudança do clima, Metas de Desenvolvimento do
Milênio e debate sobre segurança alimentar. O discurso de encerramento da Conferência

262
Discurso da conselheira e coordenadora da CT 1, Maria Emília Pacheco, na 5ª reunião do CONSEA – Gestão
2004-2005. Disponível em: http//www4.planalto.gov.br/consea/noticias/discursos/2004/10/discurso-da-
conselheira-e-coordenadora-da-ct-1-maria-emilia-pacheco-na-5a-reuniao-do-consea-gestao-2004-2005.html,
acesso em: 16/04/2013.
263
Lembramos, aqui, a nossa menção a Häberle (2007), que cunhou o conceito de Estados constitucionais
cooperativos.
198

Internacional sobre Biocombustíveis, 2008, foi na mesma direção: reforçar a ideia de que há
inter-relação entre as agendas de segurança, de que o Brasil tem um papel claro a ser
demonstrado por meio de exemplos práticos e de que a cooperação e o multilateralismo são as
chaves para os dissensos. “São claros os sinais de ameaça em temas como mudança do clima,
segurança energética e segurança alimentar. Se quisermos evitar catástrofes, temos que mudar
(...) adotando regras mais transparentes e decisões mais democráticas”264.
No espectro mercosulino, a Carta de Buenos Aires sobre o Compromisso Social, de
2000, é a pedra basilar que demarca a necessidade de criação de políticas comuns voltadas
para o combate à exclusão social e à superação da fome. Atualmente, existe uma área de
segurança alimentar no projeto integrador, representada por discussões no Parlamento do
MERCOSUL relativas a manejo de recursos hídricos; produção e estoques estratégicos de
alimentos; crédito rural e agricultura familiar265. A Comissão de Alimentos do MERCOSUL
(CA/MS) é instância que atua na harmonização de regulamentos sobre a comercialização de
gêneros agrícolas no interior do bloco.
Durante a XXXV cúpula do MERCOSUL, na Argentina, em 2008, o Brasil endossou
a proposta de criação de um Grupo de Alto Nível para discussão sobre segurança alimentar no
bloco, defendendo sua ampliação também para o PARLASUL e para a UNASUL266. Essa
reunião mercosulina também decidiu pela participação de ministros de assuntos sociais dos
membros do bloco nas futuras reuniões do Conselho Mercado Comum (CMC) que tratarão,
entre outros temas, da cooperação em segurança alimentar. As comissões de Direitos
Humanos e de Meio Ambiente do PARLASUL também têm destinado maior atenção ao tema,
ainda procurando ganhar institucionalização no bloco sub-regional. O que se observa é que as
temáticas relativas à segurança alimentar vêm ganhando espaço não só na dimensão de
integração regional, como também, em sentido amplo, em iniciativas multilaterais.
Quando analisamos as mais diversas parcerias bilaterais – e trilaterais – relacionadas à
cooperação em segurança alimentar, uma miríade de acordos pode ser apontada para além
daqueles travados com as nações do continente africano, tema da parte final deste capítulo.

264
Discurso do Presidente Lula durante sessão plenária de encerramento da Conferência Internacional sobre
Biocombustíveis. São Paulo, 21 de novembro de 2008.
265
Em 2008, o Paraguai fez proposta de estabelecer diálogo com o Parlamento do MERCOSUL sobre o tema da
agricultura familiar. A proposta do Brasil foi no sentido de que as políticas de agricultura familiar nos países do
bloco fossem informadas aos parlamentos nacionais – por meio do PARLASUL -, a fins de promover maior
convergência de experiências.
266
Cita-se também a decisão para criar um fundo para a agricultura familiar do MERCOSUL, que foi concebida
em 2013, pelo colegiado da Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar do MERCOSUL (REAF).
199

Citamos, por exemplo, o compartilhamento de programas voltados para o desenvolvimento de


agricultura familiar, recuperação de lençóis freáticos, composição de bancos de leite267,
elaboração de estratégias de alimentação escolar, e para transferência de renda firmados com
Paraguai, Honduras268, Cuba, Haiti, Bolívia, Timor Leste, Camboja, Indonésia, Paquistão e
Irã269, nações que se imiscuem na dimensão sul-sul da política externa sob os autonomistas270.
“Nossa cooperação se pauta por levar as tecnologias e políticas públicas que estão
tendo bons resultados no Brasil para os países em desenvolvimento que o solicitam, sempre
elaborando e empreendendo os projetos junto com eles” (FARANI, 2011)271. Esse processo
de contatos bilaterais, ainda que possa ocorrer de forma direta, nação-nação, também está
imbricado na chancela multilateral, mostra de que a política cooperativa do Itamaraty tem a
preocupação de associar os esforços de promoção do desenvolvimento ao reforço de um
multilateralismo marcado por menores assimetrias.
As contribuições brasileiras junto ao Programa Mundial de Alimentos (PMA) das
Nações Unidas, o principal programa humanitário do sistema ONU, são realizadas não só pelo
compartilhamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), como também por
meio de doações a países assolados por emergências humanitárias. No período 2011-2012, o
Brasil doou, através do PMA, cerca de 300 mil toneladas de alimentos a 35 países 272. Isso foi
acompanhado por aumento dos repasses, que passaram de US$ 1 milhão, em 2007, para US$
75 milhões em 2012, tornando o Brasil um dos mais relevantes contribuidores individuais.

267
“Nos últimos cinco anos, a experiência brasileira serviu de modelo para a implantação de bancos de leite
humano em 24 países da América Latina, África e até Europa” (IPEA, 2011, p.45).
268
Desde 2010, Honduras mantém um programa de transferência de renda condicionada inspirado no Bolsa
Família, denominado “Bono”. Já o projeto “Vaso de Leche”, que visa fortalecer a economia de pequenos e
médios produtores rurais, vem sendo fortalecido por meio da cooperação técnica prestada pelo Brasil.
269
No caso iraniano, as discussões referentes à transferência de técnicas de transferência condicionada de renda e
de cooperação em desenvolvimento rural ocorrem em contexto de imposição de sanções por parte do CSNU. É
cabível elocubrar que as autoridades persas temem que uma crise alimentar possa contribuir para insuflar
protestos e instabilidade. Lembramos que a queda de Ben Ali, na Tunísia, o primeiro país a passar pela chamada
“primavera árabe”, em 2011, teve relação com a alta dos preços dos gêneros alimentícios.
270
Há outros exemplos inusitados, como o da municipalidade de Nova Iorque, que, em 2007, criou o programa
Opportunity New York, que se inspira nos programas de transferência condicionada de México e de Brasil.
271
Entrevista do ministro Marco Farani, ex-diretor da ABC, no período 2008-2012 (IPEA, 2011).
272
Bolívia, Congo, Etiópia, Gambia, Somália, Honduras, Uganda, Moçambique, Níger, Senegal, Zimbábue,
Haiti, El Salvador, Guatemala e Nicarágua foram os principais destinos das doações de alimentos do Brasil, em
sua maior parte de arroz. Várias dessas iniciativas foram apoiadas por parceiros desenvolvidos como Austrália e
Espanha.
200

O Fórum IBAS tem, como um de seus pontos focais, o desenvolvimento da


cooperação técnica setorial entre seus membros e desses com outras nações273. Envolvendo
três democracias multiétnicas, líderes em suas regiões e com desafios semelhantes, o IBAS
articula estratégia de inserção internacional pautada, entre outras coisas, em um dos estertores
do discurso e da prática da diplomacia brasileira: o combate à fome e a à pobreza.
O Fundo IBAS para o Alívio da Fome e da Pobreza, criado em 2004 e situado sob a
estrutura institucional do PNUD, prevê a colaboração de US$ 1 milhão anuais de cada um dos
três membros do grupo, podendo haver contribuições extras. Os projetos apoiados pelo Fundo
IBAS274 balizam-se pelos ODM, devendo ser ambientalmente sustentáveis e passíveis de
reprodução por outras nações275. Trata-se de um fórum estratégico para a política externa
brasileira, por corporificar algumas de suas diretrizes como cooperação sul-sul,
desenvolvimento, diversificação de parcerias e democratização de fóruns multilaterais.
Ao contribuir, via compartilhamento de técnicas, seja por estratégias multilaterais,
trilaterais, bilaterais ou mistas, com o desenvolvimento institucional de seus parceiros, a
perspectiva da diplomacia brasileira é de que esses passem a ter melhores condições de fazer
frente aos fatores causadores da insegurança alimentar. Isso não está dissociado da ideia de
que a porosidade entre as dinâmicas doméstica e externa é cada vez maior e mais
interdependente. Conforme Andrew Hurrel, “a lot of global order is also about what goes
inside” (HURRELL, 2012)276.

273
Entre os grupos de trabalho temáticos voltados à cooperação setorial do IBAS, há um sobre agricultura e
outro sobre desenvolvimento social.
274
Sob a alçada do Fundo IBAS, deu-se o projeto de “desenvolvimento da agricultura e da pecuária” de Guiné
Bissau, com primeira fase concluída em 2007 e com a segunda em 2011. Em fase de execução, cita-se o projeto
de “dessalinização para o aprovisionamento de água potável”, em Cabo Verde, com objetivo de instalar
equipamento de dessalinização de água, contribuindo para a ampliação da irrigação agrícola da ilha. Outras duas
iniciativas encontram-se em curso na Guiné Bissau. A primeira, de “apoio à reabilitação de bolanhas e ao
processamento de produtos de origem agrícola e animal”, com intuito de melhorar o controle e o manejo de
recursos hídricos para diminuir a acidez dos solos pantanosos (bolanhas), possibilitando a ampliação de renda
das comunidades de agricultores locais produtores de arroz. A segunda é referente à “eletrificação rural com
sistemas de energia solar”, que complementa os processos estruturantes no campo caboverdense.
275
O Fundo IBAS já aportou recursos em países como Haiti, Guiné Bissau, Cabo Verde, Burundi e Palestina.
Outros projetos estão sendo implementados em Cabo Verde, Camboja, Guiné Bissau, Laos, Palestina, Serra Leoa
e Vietnã. É interessante notar que os destinatários dos recursos do fundo são nações que, além de enfrentarem
problemas estruturais de insegurança alimentar, fazem parte dos interesses mais diretos de política externa de
Brasil (Guiné Bissau, Haiti, Palestina, Cabo Verde); África do Sul (Serra Leoa, Cabo Verde, Guiné Bissau,
Burundi e Palestina); e Índia (Camboja, Laos e Palestina).
276
O trecho correspondente na tradução é: “Muito da ordem internacional é também sobre o que se passa
dentro”. Conferência concedida por Andrew Hurrell, no Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGRI-UERJ), em 10/12/2012.
201

4.2 Atores do processo decisório da cooperação em segurança alimentar: dinâmica


interministerial

O ponto de partida desta seção, em que abordaremos como se dão as interações entre
os principais ministérios responsáveis pela configuração da política de cooperação em
segurança alimentar do Brasil para com o continente africano, é que as preferências desses
atores não são dadas ou imunes a influências, barganhas e arregimentações277. Nesse sentido,
reforçamos que não vemos o Estado como entidade com capacidade fixa de mobilizar as
forças domésticas para a consecução de objetivos de política externa.
Conforme já observamos no momento inicial deste capítulo, a mudança de ênfase
quanto à questão da segurança alimentar, que, tratada com certa negligência durante a gestão
de FHC, tornou-se vertente estratégica do governo de Lula da Silva, é indicativo de que a
formação de preferências não é rígida. Ela varia conforme a coalizão no poder, de acordo com
os interesses dos grupos de opinião no interior da burocracia estatal e também segundo a
corrente de opinião e de ação com maior relevância no interior do MRE.
Essa formação de preferências ocorre simultaneamente por influência de fatores
domésticos e internacionais, o que reverbera na definição da política de CSS. Por colocar-se
como ator não interessado, que age sem a imposição de condicionalidades e privilegiando a
formalização de parcerias horizontais, o país busca singularizar-se, ganhando espaço para
fazer valer, não necessariamente de forma direta ou condicional, seus interesses.
Por termos utilizado a expressão “instrumentalização”, quando nos referimos à CBDI,
deixamos claro que os objetivos de política externa no continente africano são enunciados –
ainda que não escancarados - por meio da cooperação técnica. Isso vai ao encontro, em

277
“For a systemic theory to be useful, it is not essential that the state actually be unitary, but it must function in
important respects, both domestically and internationally, as if it were. (…) Factors highlighted by systemic
theories are certainly necessary to any satisfactory account of international affairs, but doubts have grown that
these astringent theories are, by themselves, sufficient to the task” (MORAVCSIK,1993, p. 7-9, grifos do autor).
E também: “variance in state preferences poses the most fundamental challenge to international explanations”
(Idem, p. 11). O trecho correspondente na tradução é: “Para que uma teoria sistêmica seja útil, não é essencial
que o Estado seja efetivamente unitário, mas ele deve funcionar, em aspectos importantes, tanto domesticamente
quanto internacionalmente, como se fosse. (...) Fatores ressaltados por teorias sistêmicas são certamente
necessários para qualquer explicação satisfatória das relações internacionais, mas dúvidas têm aumentado de que
essas teorias adstringentes sejam, sozinhas, suficientes para a empreitada. (…) Variações nas preferências
estatais apresentam o desafio mais fundamental para as explicações sistêmicas”. “The strategies pursued
domestically by negotiators may make an important difference to the ratifiability of an agreement” (MILNER,
1993, p.229). O trecho correspondente na tradução é: “As estratégias buscadas domesticamente pelos
negociadores podem causar uma importante diferença para a possibilidade de ratificação de um acordo”.
202

primeiro lugar, das causalidades internacionais, como a ascensão dos emergentes, o que
permitiu o questionamento das estratégias tradicionais do CAD-OCDE; a “concorrência”
entre eles na cooperação com seus parceiros; a busca por liderança em ordem internacional
em transição; além de outras oportunidades que possam advir da cooperação.
Além disso, realizaremos esforço de análise para entender de que forma MDS, MAPA
e MDA catalizaram ou não suas agendas como formas de influenciar o processo decisório. A
presença desses ministérios indica quão complexo e amplo é o entendimento sobre segurança
alimentar. Como nosso objeto de estudo é referente às relações internacionais, veremos como
isso se dá com relação ao MRE e as recentes mostras de existência de relativa porosidade
burocrática em sua composição.
Argumentaremos que, ao contrário do processo histórico-sociológico que conformou o
insulamento relativo do MRE, o que vem se observando com maior destaque nos últimos anos
é que esse isolamento vem sendo contestado. De um lado, tem-se a própria necessidade do
Itamaraty de responder a pressões múltiplas: as extraburocráticas; as provenientes da própria
burocracia federal; e também as oriundas de disputas no próprio ministério, o que reforça a
posição de que a política externa não é estática, mas, ainda que com singularidades,
aproximada da ideia de política pública278.
De outro, fica cada vez mais claro que a configuração de políticas de cooperação
demanda a participação coordenada de entidades com expertise técnica, capacidade de
mobilização de recursos e interesse necessário para permitir que a retórica diplomática torne-
se prática. “The transnational perspective has one other advantage worth highlighting. By
allowing for a multiplicity of actors who sustain global politics, it facilitates attention to the
roles played by bureaucratic agencies within governments”279 (ROSENAU, 1980, p.4).

4.2.1 Ministério da agricultura, pecuária e abastecimento: EMBRAPA

Um dos principais atores da política de cooperação agrícola do Brasil para com o


continente africano é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Sua

278
Aqui, fazemos referência a Lima (2000).
279
O trecho correspondente na tradução é: “A perspectiva transnacional tem uma outra vantagem a ser
ressaltada. Por permitir uma multiplicidade de atores que sustentam políticas globais, ela chama a atenção para
os papeis exercidos por agências burocráticas no interior de governos”.
203

atuação dá-se, principalmente, por meio da EMBRAPA, instituição que encontra guarida em
sua estrutura organizacional e executa diversas ações de cooperação junto a parceiros em
desenvolvimento, principalmente nas Américas do Sul e Central, no Caribe e na África.
A menção anterior à “cooperação agrícola” e não à “cooperação em segurança
alimentar” não é leviana, visto que a EMBRAPA afirma não possuir posição institucional
sobre o conceito de segurança alimentar280, mesmo realizando tanto iniciativas voltadas para o
agronegócio quanto para o fomento à agricultura familiar no plano doméstico. Isso decorre,
talvez, da própria amplitude dos projetos levados a cabo pela instituição, o que pode,
inclusive, contribuir para a já citada “dicotomia” da política agrícola brasileira.
Quanto à relação do MAPA com o MRE, tem-se que, ainda que a EMBRAPA tenha
mandato específico de atuação nacional e internacional, desenvolvendo sua própria política de
cooperação científica e tecnológica com diversos centros de excelência, a instituição é
executora dos projetos coordenados pela ABC. Nesse sentido, se formos considerar os dois
extremos da política externa – de formulação e de implementação -, a EMBRAPA posicionar-
se-ia como ator executor, seguindo as orientações e as diretrizes do MRE.
Enquanto que a articulação política e o aporte financeiro necessários para o
desenvolvimento de ações cooperativas de cunho agrícola dependem da vontade do Itamaraty,
esse ministério não tem condições técnicas ou de pessoal para realizar a transferência do
conhecimento para as nações recipiendárias. Nesse sentido, procurar entender a política de
cooperação em segurança alimentar sem compreender o papel da EMBRAPA seria tarefa
inviável. No entanto, como o componente político e diplomático da cooperação cabe ao
Itamaraty, é inegável sua importância na provisão de incentivos à presença do MAPA.
Se ocorre essa “divisão de tarefas” entre os dois ministérios, é possível dizer que
existe anuência e concordância de ambos os atores quanto à política de cooperação sul-sul em
segurança alimentar. Ainda que disputas burocráticas possam surgir no desenho de um projeto
ou no encaminhamento de uma negociação, a própria realidade de a EMBRAPA consentir
com o fato de o MRE ser o formulador da política externa e a ABC a coordenadora macro dos
projetos, dá a entender que as relações entre os loci formulador e executor é pacífica.
A instrumentalização do processo cooperativo – que se repetirá com todos os outros
ministérios estudados - ocorre por meio do recebimento de demandas de outras nações pela

280
Entrevista concedida por Antônio Prado, coordenador de Cooperação Técnica da EMBRAPA, ao autor. O
entrevistado menciona, entretanto, estudo de pesquisadores da própria EMBRAPA sobre o tema, como o de
Maluf e Menezes (2000). Além de Prado, a entrevista, realizada em 2012, contou com o suporte de profissionais
da Coordenadoria de Cooperação Técnica da EMBRAPA: Adriana Mesquita Bueno, Carlos Canesin e Osório
Filho.
204

ABC ou por legações brasileiras no exterior. Encaminhado o pedido à ABC, ele é avaliado
por essa agência, que faz o chamamento à participação de órgãos como a EMBRAPA.
Salienta-se que como os projetos são confeccionados sob requisição de parceiros estrangeiros,
os desenhos de cada iniciativa são feitos de forma personalizada, de acordo com a necessidade
exposta e com o tipo de auxílio a ser efetivado.
Sua negociação e institucionalização passa pelo envolvimento das partes – a dizer:
MRE, MAPA, país parceiro, podendo abarcar mais de um país e/ou instituição multilateral.
Isso implica que quaisquer alterações futuras nos termos do projeto de cooperação também
precisam ser negociadas e aprovadas por todos os participantes.
Assim, caso um projeto “x”, que congregue alguma das agendas de segurança
alimentar, requeira, por exemplo, a transferência de conhecimentos técnicos relativos à
produção de algum gênero alimentício, os conhecimentos da EMBRAPA tornam-se
fundamentais para que a cooperação deixe o espaço da formulação – muito mais associado ao
componente diplomático – e ganhe substância como instrumento da política externa.
Quanto ao recebimento dos aportes técnicos, eles ocorrem governo a governo,
conforme as diretrizes que demarcaram a CBDI durante a presidência de Lula da Silva. A
transferência de conhecimentos sobre agricultura tropical é destinada diretamente aos órgãos
oficiais dos países recipiendários, como é o caso das nações africanas. “A EMBRAPA não
atua em extensão rural ou apoio a quaisquer grupos privados brasileiros ou estrangeiros em
sua atuação internacional e sim como instituição do Estado brasileiro”281.
No que diz respeito às fontes de financiamento dos projetos, a maior parte dos
recursos é oriunda da ABC, do governo federal, e também do convênio da agência com o
PNUD. Os recursos também podem ser originados de agências de cooperação de países
desenvolvidos, participantes de cooperação trilateral, e de fontes multilaterais. A EMBRAPA,
por sua vez, contribui com o valor das horas técnicas de seus especialistas e com a
manutenção de sua estrutura operacional para atender a essas demandas. “Apenas em casos
muito específicos a EMBRAPA executa projetos sem a participação da ABC; no entanto, o
financiamento dos mesmos é sempre externo ao orçamento da empresa”282.
A EMBRAPA torna-se “parte” no processo de negociação da cooperação brasileira, de
forma que adquire importância fática ao propiciar a consecução das iniciativas, visto que é
executora de muitos dos instrumentos utilizados pelo Itamaraty para a definição dos objetivos

281
Entrevista concedida por Antônio Prado, coordenador de Cooperação Técnica da EMBRAPA, ao autor.
282
Idem.
205

de política externa. É notório observar que isso condiz com nosso argumento de que há, de
fato, certa porosidade burocrática do MRE frente a atores outros da burocracia federal.

4.2.2 Ministério do desenvolvimento agrário

Além do MAPA, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), criado em 1999,


é ator da burocracia federal com basilar importância no processo de internacionalização de
políticas públicas por meio da cooperação sul-sul. O conjunto de políticas direcionadas para o
campo da segurança alimentar em âmbito doméstico, concebido e implementado pelo MDA,
vem, conforme vimos, despertando crescentes interesses de parceiros internacionais e de
agências especializadas como a FAO e o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola
(FIDA), que tem o objetivo de fornecer financiamento direto e de mobilizar recursos para
programas de melhoramento da produtividade agrícola.
Esse processo de reconhecimento das práticas nacionais é concomitante à crise
mundial de alimentos, ainda em curso, e ao renovado interesse externo sobre a temática.
Conferências como a Cúpula Mundial Sobre Segurança Alimentar da FAO de 2008, a Cúpula
da União Africana de 2009, a Cúpula do G20F de 2011 e propostas como o Plano de Ação
2012-2016 para Cooperação Agrícola dos BRICS283 indicam que as discussões das agendas
relacionadas à segurança alimentar ocorrem em contexto em que as políticas de combate à
fome e à pobreza e de desenvolvimento agrário do Brasil são consideradas referências.
Como era de se esperar, o aumento da visibilidade das políticas públicas
implementadas em âmbito doméstico passou a requisitar um perfil mais atuante do MDA na
execução de determinados projetos de CSS. A pasta também atua como condutora da Seção
Nacional da Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar do MERCOSUL
(REAF/MERCOSUL); no Comitê Permanente de Assuntos Internacionais do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CPAI-CONDRAF); na formulação e no
acompanhamento da agenda do Grupo de Trabalho de Cooperação Agrícola dos BRICS; e no
acompanhamento dos trabalhos do Comitê Mundial de Segurança Alimentar da FAO.
Vem existindo, de forma crescente, um incremento da internacionalização das
atividades e das funções do MDA. Como a cooperação implica a intrínseca relação entre as

283
Rascunhado durante a 2ª conferência de ministros da agricultura dos BRICS (2011), realizada na China.
206

duas esferas componentes do Estado, em suas relações domésticas e com outras entidades de
direitos e obrigações internacionais, o papel do MDA como burocracia especializada e voltada
para a provisão técnica é reforçado.
Isso não quer dizer, tal qual ocorre com o MAPA, que este ministério tenha a
capacidade de atuar sem estar associado ao locus de formulação da política externa. Como
não existem iniciativas autônomas do MDA284, a pasta age quando requisitada pelo Itamaraty,
por meio da ABC, provendo suas competências técnicas. O financiamento integral e a
coordenação do projeto cooperativo, entretanto, permanecem sob guarida da ABC285.
Compondo o quadro de abertura relativa do Estado brasileiro em seu processo
decisório para a presença de outros atores, o MDA tem papel ativo na formulação dos projetos
de cooperação para com outros parceiros em desenvolvimento, o que pode contar com a
colaboração de outros atores governamentais como FNDE, CONAB, EMBRAPA e MDS.
Ainda que siga o “chamamento” do MRE de forma frequente, o MDA não tem papel
substantivo na formulação da política externa, atuando quando requisitado e seguindo as
diretrizes consideradas prioritárias pelo corpo diplomático286.
Isso não quer dizer, contudo, que o MDA não tenha certo grau de influência também
na formulação dessa política, visto que exerce poder para definir e articular os projetos de
cooperação em segurança alimentar, especialmente aqueles que envolvem agricultura familiar
e capacitação de trabalhadores rurais. Diversas demandas de cooperação que nascem no
âmbito da REAF/MERCOSUL são originadas no MDA, o que pode ter como consequência,
dependendo do projeto, a levada dessa demanda ao MRE.
No processo de formação das preferências do MDA, portanto, certos posicionamentos
podem ser encaminhados ao Itamaraty. Assim, interesses formulados fora da Casa de Rio
Branco e que digam respeito, inicialmente, ao rol de assuntos sob supervisão do MDA podem
ser prospectados, por meio do jogo burocrático federal de tomada de decisões e de
sensibilização dos formuladores e decisores centrais, para a agenda mais geral da diplomacia.

284
Entrevista de Francesco Maria Pierri, chefe da assessoria para assuntos internacionais e de promoção
comercial do Ministério do Desenvolvimento Agrário, ao autor. Entrevista realizada em 2012.
285
Via ABC, o MDA repassa recursos financeiros para o escritório da FAO para a América Latina e o Caribe,
situado em Santiago do Chile. Esses aportes integram o “Fundo Brasil-FAO”, que busca promover o
desenvolvimento rural sustentável, a agricultura familiar e a segurança alimentar. O fundo financia projetos
relativos a esses temas na América Latina e no Caribe em áreas como alimentação escolar, cooperação
humanitária, fortalecimento da sociedade civil, compras da agricultura familiar e rede de pesca e aquicultura das
Américas.
286
Entrevista de Francesco Pierri, chefe da assessoria para assuntos internacionais e de promoção comercial do
MDA, ao autor.
207

Isso fica claro quando observamos que os projetos de cooperação técnica – e aqui não
mais a configuração da política externa estrito senso - que envolvem o MDA são
normalmente elaborados de forma a conjugar as atribuições desse ministério e da ABC. “Há
outros, formulados pela ABC e para a implementação dos quais a agência pede a colaboração
do MDA. Nesse caso, o MDA avalia sua capacidade e pertinência em relação ao projeto
demandado”287. Tendemos a crer que, por ser dotado de conhecimentos e de capacidade de
execução que o Itamaraty não tem, o MDA poderia, no caso de um projeto ser considerado
não pertinente, modificá-lo ou mesmo objetá-lo ainda em sua fase de configuração.
É mister mencionarmos, corroborando nosso argumento de que a segurança alimentar
é pauta de abrangência ampla e não definitiva, que o MDA desenvolve, para além somente do
apoio da ABC, iniciativas de cooperação que contam com a participação e o necessário
envolvimento de órgãos outros da burocracia federal como a EMBRAPA, o CONSEA e o
CONDRAF. Nota-se, contudo, que tantas são as agendas que permanecem sob a ascendência
do termo “segurança alimentar”, que mesmo essas composições intraburocráticas podem
enunciar possíveis dicotomias no programa de cooperação sul-sul do Brasil.
Enquanto os dois conselhos federais, CONSEA e CONDRAF assessoram o MDA em
alguns projetos de cooperação em agricultura familiar, as conjugações dessa pasta ministerial
com a EMBRAPA são distintas, envolvendo iniciativas de desenvolvimento agrário que não
guardam, em tese, a mesma preocupação seminal com a garantia da segurança alimentar das
regiões em que são executadas.
Em suma, conforme ocorre com o MAPA, ainda que não tenha o poder de formular a
política externa, o MDA pode - o que normalmente ocorre por meio de interações
coordenadas – atuar de forma concomitante com o Itamaraty na cooperação em segurança
alimentar.

4.2.3 Ministério do desenvolvimento social

A criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em


2004, é claro exemplo – institucional e prático – de como a segurança alimentar tornou-se
ponto focal do programa político de Lula da Silva. Convergindo as principais ações, em plano

287
Idem.
208

doméstico, destinadas à transferência condicionada de renda, a exemplo do Bolsa Família, o


MDS também é ator da burocracia federal atuante em projetos de cooperação sul-sul.
A repercussão das iniciativas de proteção social relacionadas ao programa de
desenvolvimento socioeconômico durante a presidência petista fez com que, conforme vimos,
governos estrangeiros e instituições multilaterais buscassem ter acesso ao know-how de
políticas públicas nacionais. Nesse processo, tal qual ocorre com o MDA, o MDS contribui
com a formulação dos projetos de CSS, mas não tem papel determinante na definição das
parcerias ou na palavra final da tomada de decisões, função que cabe à ABC/MRE.
Agindo de acordo com as características gerais da CBDI, o MDS costuma formular os
projetos cooperativos juntamente com o Estado requisitor, executando-os tal qual as diretrizes
da inserção internacional do Brasil. Assim como ocorre com os demais ministérios estudados,
o financiamento das ações de cooperação em segurança alimentar cabe à ABC288, prerrogativa
que, como veremos, lhe garante certo grau de controle de todas as fases da parceria
cooperativa, desde a formulação à execução.
Ao longo de sua breve vida institucional, o MDS contou com a presença de um
diplomata de carreira cedido como Chefe da Assessoria Internacional, não havendo, até então,
o movimento contrário, de cessão de quadros ministeriais para o Itamaraty. Isso indica, ao
menos no ponto de vista funcional, que houve, durante determinado período, preocupação do
MRE em supervisionar e dar as diretrizes norteadoras das atividades internacionais do MDS.
O fato é que, para além da ascendência da ABC, o MDS manteve, durante os anos de Lula da
Silva na presidência, diálogo constante com a Divisão de Temas Sociais (DTS) e com a
Coordenação-Geral de Ações Internacionais de Combate à Fome (CGFOME) do Itamaraty.
Os pontos de contato do MDS com o MRE são tributários de um governo cuja
orientação de política doméstica e de política externa foi no sentido de se promover o
desenvolvimento social e o combate à fome e à pobreza. Essas agendas, não por acaso, além
de terem sido parte da estratégia de governabilidade interna da coalizão presidencial petista-
peemedebista, também foi defendida durante a ascendência burocrática dos autonomistas no
interior do Itamaraty.

4.2.4 Itamaraty e ABC: horizontalização controlada e harmonização de discursos?

288
Alguns doadores internacionais como o Department for International Development (DFID), do Reino Unido,
também costumam financiar projetos de cooperação técnica nos quais a expertise do MDS é requisitada.
209

A relação do MRE, sob a figura da ABC, com as demais pastas ministeriais da


burocracia federal é explicativa do processo decisório garantidor das iniciativas que compõem
a CBDI. Do ponto de vista específico da segurança alimentar, nossa opção em trabalhar com
MAPA, MDS e MDA, frente ao Itamaraty, nos forneceu informações valiosas para o
entendimento desses processos, que possibilitam a internacionalização de práticas domésticas.
Em termos gerais, o que foi possível observar, de acordo com nosso levantamento, é
que: (i) existe o reconhecimento da “autoridade” do Itamaraty na política de cooperação; (ii)
isso não implica, necessariamente, na existência de hierarquia funcional; (iii) o
relacionamento do MRE com os demais ministérios tende a ser pacífico e coordenado; e (iv) o
“chamamento” à participação de outros atores na cooperação sul-sul em segurança alimentar
não implica em uma relação completamente horizontal na formulação política.
Quanto à ideia de “autoridade” do Itamaraty (i), nos referimos ao fato de que, tanto
por questões constitucionais289, como por fatores imateriais – como a conformação histórica,
sociológica e profissional desse ministério -, o MRE mantém-se na posição de formulador da
política de CSS. Ainda que, nos anos de Lula da Silva, a quantidade e a variedade de projetos
e parcerias cooperativas tenham aumentado, como comprovam o aumento no orçamento da
ABC e o Levantamento sobre a Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional,
a posição da Casa de Rio Branco como locus formulador continua assegurada.
Temos, com a existência de maior interdependência e de pressões por maior
participação de outros atores na política externa, um duplo processo: um referente à ascensão
do Executivo, quando observamos o âmbito doméstico como um todo; e outro, paripasso, que
tem relação com a relativa supremacia do MRE sobre os demais setores da burocracia federal.
Conforme Helen Milner, “in general, asymmetries of information domestically work in favor
of the executive. The executive’s dominance over the foreign policy process is likely to be a
function of how great her private information in this area is”290 (MILNER, 1997, p.21).
Além dessa dominância do Executivo na tomada de decisões, argumentamos que
também há a perpetuação de uma disparidade de poder entre o Itamaraty e os outros nichos da
burocracia do Estado brasileiro, o que impede o rompimento mais expressivo do insulamento

289
Mesmo a elaboração, tramitação e aprovação dos atos de Direito Internacional Público necessários à
formalização das ações oficiais de cooperação internacional são atribuições da ABC enquanto agente legítimo da
União para tal.
290
O trecho correspondente na tradução é: “Em geral, assimetrias de informação domésticas atuam em favor do
Executivo. A dominância do Executivo sobre o processo de política externa é normalmente uma função do quão
grande é sua informação privada nessa área”.
210

desse ministério. “Pluralization departs from a unique baseline: the quasi-monopolistic


reputation of Itamaraty” (CASON; POWER, 2009, p.8)291. Se essa situação vem sendo
relativizada mais recentemente, não é possível afirmar, ainda, que tenha havido uma
transformação relevante desse quadro292.
Isso é perceptível porque, ao menos na cooperação em segurança alimentar, nenhum
dos outros ministérios estudados busca rivalizar com o Itamaraty na formulação da política
externa ou mesmo questionar frontalmente as diretrizes emanadas da corrente de opinião e de
ação dessa burocracia. A não existência de conflitos patentes, que poderiam suscitar o reforço
de relações marcadas por hierarquia, dá a entender que a coordenação é a mais relevante
característica das relações entre MRE, MAPA, MDS e MDA (ii).

Nota-se se não o protagonismo, pelo menos a permanência de uma destacada


centralidade do Ministério das Relações Exteriores na política externa brasleira, o
qual procura manter seu status de gatekeeper. (...) A condução dos assuntos de
política externa permaneceu fortemente centralizada no âmbito das instituições do
Estado, em particular – embora não mais exclusivamente – no Itamaraty
(PINHEIRO; MILANI, 2012, p. 337).

Se tivéssemos algum grau de hierarquia formal, essa seria visível pelo controle
orçamentário e financeiro da ABC293 que, por tal situação, tem o condão tácito de vetar
quaisquer possíveis projetos cooperativos que não sejam de seu interesse. Como a esmagadora
maioria das iniciativas de cooperação em segurança alimentar passa pelo repasse de verbas
provenientes do governo federal – via ABC – o que se observa é que, institucionalmente, a
julgar pelo dispositivo de financiamento, a burocracia governamental é organizada sob o viés
de que o Itamaraty é o órgão controlador das perspectivas oficiais de cooperação.
Ao conjugarmos esse argumento com a constatação de que a corrente dos
autonomistas é a mais relevante para o processo decisório intra-MRE, temos que o grau de
repasse de recursos para projetos de cooperação dependerá não só do chefe de Estado como
291
O trecho correspondente na tradução é: “A pluralização parte de um patamar único: a reputação quase
monopolística do Itamaraty”. Esses autores argumentam que o poder do presidente da república tende a se
manifestar de forma mais clara, quanto ao processo decisório, quando esse se vê confrontado pelas burocracias, o
que não ocorreu nesse nosso caso.
292
Cason e Power (2009) também argumentam que as recentes tendências de exercício de “diplomacia
presidencial” durante FHC e Lula da Silva tenderam a contribuir para a diminuição desse fechamento do MRE,
tendo em vista que o modelo de delegação do presidente da república ao Itamaraty seria relativizado. Não
concordamos integralmente com esse ponto, visto que, em outros momentos da história diplomática brasileira, o
presidente teve maior ou menor grau de envolvimento com a política externa e nem por isso o padrão de
insulamento foi alterado. Veja-se o período do Pragmatismo Responsável e Ecumênico, dos Círculos
Concêntricos ou mesmo durante a Política Externa Independente.
293
Os recursos da ABC são providos pelo Orçamento Geral da União, frutos de arrecadação tributária.
211

também da corrente de opinião e de ação com maior poder organizacional no Itamaraty.


Durante o período de Lula da Silva, houve coincidência de um presidente com projeto político
voltado para o desenvolvimento agrário e o combate à fome e à pobreza com um grupo
diplomático que passou a entender – influenciado pelo PT – a cooperação sul-sul como
estratégica para a inserção internacional do Brasil.

O Itamaraty é uma instituição de Estado, não de governo. No entanto, os


governantes são eleitos democraticamente a partir de agendas e propostas escolhidas
pela população o que, naturalmente, influencia os Ministérios na formulação de
suas políticas. Não é diferente no caso do Itamaraty. No caso do Presidente Lula,
sendo o primeiro presidente eleito pelo PT sua plataforma foi claramente
incorporada na formulação das políticas públicas brasileiras (FARANI, 2012, grifo
nosso)294.

Dessa forma, se não se observa uma hierarquia claramente constituída entre os atores
da cooperação, é possível identificar que existe, pelo menos, uma divisão de funções entre os
ministérios na configuração da CBDI. Note-se que, no campo de formulação da política
externa, nos parece notório que essa continue, sem rivais, sob a tutela do MRE, o que não
impede que esse ministério seja influenciado pelos demais, como de fato ocorre, por meio da
sugestão de projetos de cooperação com distintos parceiros internacionais295.
A própria institucionalização da CGFOME296 no interior de um MRE controlado pelos
autonomistas297 pode ser interpretada como forma desse ministério não só convergir com as
mudanças socioeconômicas – e consequentemente políticas – em âmbito doméstico, como
também como meio encontrado de se incentivar a formação de diplomatas com capacidade de
deliberar mais especificamente sobre temas relacionados às agendas de segurança alimentar.

294
Entrevista do ministro Marco Farani, ex-diretor da ABC, no período 2008-2012, ao autor. Entrevista realizada
em 2012.
295
Além dos ministérios, os novos atores – como os partidos políticos, por exemplo - com presença crescente em
assuntos de relevância internacional, ainda que não se configurem em tomadores de decisões, passam a ter maior
capacidade de ação doméstica, com possibilidades de influenciar o corpo diplomático. Por não terem o poder de
agência “clássico”, em campo externo, eles, ao menos, ampliariam sua seara de interesses, podendo barganhar
mais decisivamente na esfera doméstica. Rememoramos, entretanto, que nosso foco não é sobre esses outros
atores de fora da burocracia federal.
296
As atribuições da CGFOME, criada durante o governo de Lula da Silva, são múltiplas, relacionadas aos
seguintes temas: segurança alimentar e nutricional, inclusive direito à alimentação; desenvolvimento agrário
(reforma agrária e agricultura familiar); pesca artesanal; Instituto Social Brasil-Argentina; FIDA; PMA; Fórum
Social Mundial; diálogo com a sociedade civil; e assistência humanitária internacional. Disponível em:
http://www.mre.gov.br/cgfome, acesso em: 10/04/2013.
297
Pensamento semelhante é cabível quando vemos a Divisão de Temas Sociais (DTS) ser valorizada justamente
nesse período. Lembramos que tanto a DTS quanto a CGFOME são divisões sob a Subsecretaria-Geral Política I
(SGAP I), uma das mais desejadas e concorridas por egressos do curso de formação de diplomatas do IRBr
quando iniciam seus estágios.
212

O controle desses processos de cooperação torna-se facilitado quando o locus formulador não
está completamente dissociado das temáticas em discussão e conhece minimamente o tema a
ser tratado. Com maior domínio sobre a circulação das informações, os tomadores de decisões
podem barganhar com maior propriedade suas preferências.
Já quanto à execução dessa política externa, nos parece que aqui sim o MRE permite,
não sem exercer controle, participação maior dos demais ministérios. Nesse sentido, existiria
uma horizontalização controlada que, embora indique a existência de porosidade burocrática
na configuração da política externa, não quer dizer sobremaneira que o Itamaraty tenha
perdido sua supremacia (PINHEIRO, 2009). Grosso modo, quanto aos ministérios estudados,
aponta-se que as relações deles com o Itamaraty são “pacíficas” (iii), havendo limitados
espaços para jogos de barganha, arregimentação e tentativas de dominação de um sobre o
outro.
Ainda que a política organizacional do MRE venha sendo transformada com o passar
o tempo, trata-se de um processo errático, em curso e não necessariamente continuado. Essa
“coordenação” de múltiplos atores sobre um decisor burocrático maior tende a ocorrer porque
os objetivos são compartilhados e normalmente não contestados. Não negamos, no entanto,
que a existência desses outros atores – ainda que seja difícil caracterizá-los como “decisores”
– permita, na teoria e na prática, o jogo de barganhas para a tomada de decisões. O que ocorre
é que esse simplesmente não costuma ocorrer nas interações entre MDA, MDS e MAPA
referentes à conformação da cooperação em segurança alimentar.
Assim, a falta de enfrentamento entre os ministérios e o MRE, nesse diapasão, poderia
ser explicada pela própria natureza governamental do Brasil, em que há o controle político,
pelo menos em tese, exercido pelos ministros sobre cada burocracia da Esplanada. Como
esses são nomeados pela presidência, a tendência, em um presidencialismo de coalizão, é que
os objetivos tendam à convergência. Um segundo ponto é que, no nosso objeto de estudo, o
MDS foi criado depois da subida de Lula da Silva ao poder, o que o ligaria seminalmente ao
projeto político petista. Já quanto ao MDA e MAPA, os dois ganharam bastante espaço entre
2003-2010, tantas foram as ações domésticas e internacionais referentes à agricultura.
Mesmo que haja dissensos entre a visão do MRE sobre o que significa a cooperação
em segurança alimentar e a de outros atores, inclusive da própria burocracia federal, como é o
caso do CONSEA, essas divergências não conseguem efetivamente afetar a capacidade
decisória e polarizadora do Itamaraty. Por ter função muito mais recomendatória e consultiva,
o conselho não é propriamente um “decisor”. Esse órgão poderia, contudo, tentar fazer valer
213

suas conexões legislativas e intersocietárias298 para questionar algumas práticas de CBDI que
possam imiscuir o agronegócio como algo passível de ser abarcado pela segurança alimentar.
Isso, na prática, não ocorre, em virtude não só da distribuição de poder decisório em
política externa pelo Executivo, como também pelo grau de coesão entre MDA, MDS, MAPA
e MRE. Além disso, o CONSEA não realiza projetos de cooperação técnica, visto que sua
missão é a de dar visibilidade à importância da participação social para a construção das
políticas de SAN no Brasil e em outros países. É nesse âmbito que enumera muitas de suas
críticas, por considerar que, em algumas ocasiões, a cooperação agrícola brasileira com seus
parceiros não gera externalidades positivas às populações locais, internacionalizando a
dicotomia entre agronegócio e agricultura familiar para outros países em desenvolvimento.
Quando analisamos a configuração dos projetos de cooperação, temos quadro distinto
daquele relativo à configuração da política externa. Sobre esses, a capacidade de influência e
de ação de MAPA, MDS e MDA é imensamente maior, com esses órgãos dividindo a
condução das iniciativas com a ABC desde a origem. Isso ocorre de forma majoritariamente
coordenada, com as pastas ministeriais atuando conforme as diretrizes de política externa em
curso no momento político em questão. Como o Itamaraty depende dos conhecimentos
técnicos das outras burocracias, ele precisa ceder certo espaço de manobra para as mesmas na
conjunção de esforços relativos às iniciativas, tanto de formulação quanto de execução (iv).
No cenário descrito, argumenta-se que a formação das preferências que condicionaram
o processo decisório em política externa relativo à cooperação em segurança alimentar tendeu
à minimização de conflitos interburocráticos e ao chamamento à participação de outros atores
ministeriais necessários à implementação dessa cooperação. As preferências inatas de cada
ministério em se perpetuarem na burocracia – angariando recursos para a execução de suas
políticas públicas e prestígio frente à chefia do Executivo -, tenderam a ser conformadas pelas
diretrizes dos autonomistas quanto à inserção internacional do Brasil.
Em suma, é possível identificar a horizontalização controlada existindo especialmente
na execução da política externa, processo de interesse instrumental não só ao MRE como
também das demais burocracias. “Some of the agencies are primarily concerned with the
execution of policy and with the carrying out of routine duties”299 (SNYDER; BRUCK;

298
“A política externa brasileira ainda não é aberta para a participação da sociedade civil, mas aos poucos o
CONSEA tem ganhado visibilidade internacional e tem sido referência para muitos países, o que faz pressão
para a abertura do MRE à participação social”. Entrevista de Mirlane Klimach ao autor.
299
O trecho correspondente na tradução é: “Algumas das agências estão prioritariamente preocupadas com a
execução da política e com o cumprimento de obrigações rotineiras”.
214

SAPIN, 2002, p.84). Já no que diz respeito aos projetos de cooperação e não mais à política
externa em si, o espaço de atuação dos demais ministérios tende a ser substancialmente maior
do que aquele disponível na configuração da política externa300.
Essas variáveis ajudam a explicar a ideia de contestação do insulamento do MRE e da
própria política externa hodierna.

A politização da política externa se realiza, em grande parte, pela via do alargamento


da participação ministerial. Nesse sentido, mesmo que ainda fosse possível falar de
um relativo insulamento da agência diplomática, certamente não se pode falar de um
insulamento da política externa (PINHEIRO; MILANI, 2012, p.341).

4.3 O lugar da cooperação em segurança alimentar nas relações Brasil-África

Conforme vimos ao longo dos capítulos dois e três desta pesquisa, a África ocupa,
hodiernamente, um lugar de destaque na política externa brasileira. Essa relação, que envolve
perspectivas culturais, históricas, políticas, geopolíticas e econômicas, também é caracterizada
pelo adensamento dos projetos de cooperação técnica, científica e tecnológica entre as duas
margens do Atlântico Sul. Analisar Brasil e África sem levar em consideração a dimensão
cooperativa seria relegar um importante elemento das relações bilaterais a segundo plano.
Durante os anos de Lula da Silva à frente da presidência e da ascendência da corrente
dos autonomistas no processo decisório do MRE, o Brasil articulou diversas iniciativas
cooperativas, que envolveram a participação de atores domésticos, notadamente no processo
de execução das provisões dos acordos de cooperação para com o continente africano. Essas
atividades são ilustrativas da crescente internacionalização das políticas públicas nacionais
formuladas nos últimos anos, o que denota que há, de fato, em algumas agendas, o
transbordamento de práticas domésticas para o eixo internacional.
Para tanto, foi preciso haver a participação coordenada de agentes múltiplos na
consecução dos projetos. No nosso caso, observamos que MAPA, MDS e MDA atuaram de
forma conjugada ao MRE no processamento empírico da cooperação. Isso está inserido nas

300
Conforme nota-se não buscamos enclausurar a argumentação em algum modelo de análise de política externa,
ainda que nos tenhamos utilizado de ferramentas discutidas no primeiro capítulo desta dissertação. “Any
conceptual scheme can be a ‘blinder’ which only permits the observer to see what he wants to see and find what
he expects to find” (SNYDER, BRUCK & SAPIN, 2002, p.27). O trecho correspondente na tradução é:
“Qualquer esquema conceitual pode ser uma ‘cortina’ que somente permite que o observador veja o que ele quer
ver e encontre o que ele espera encontrar”.
215

linhas gerais da política externa que, conjugando posicionamentos realistas e solidários, visa,
por meio da cooperação no campo do desenvolvimento, a ganhar apoios para acelerar
mudanças já em curso na ordem internacional.
Essa retomada do sul-atlantismo como um dos eixos norteadores da inserção
internacional do Brasil não é leviana, coincidindo com diversas possíveis causalidades que
explicam o interesse renovado do país pela África, depois de anos de relativo distanciamento.

4.3.1 Afinal, por que cooperar com a África?

Em primeiro lugar, por razões sociológico-históricas, no sentido de que, ainda que


com incômodos silêncios e construindo uma relação de forma errática, o Brasil constitui-se
orientado geograficamente em direção à África, o que é corroborado pelo passado geológico
de união entre as duas margens do Atlântico Sul (PENHA, 2011)301. Esse pensamento é
complementado pela inexorável importância do elemento negro-escravo na conformação do
povo brasileiro, o que nos remete às contribuições de Sérgio Buarque de Holanda e de
Gilberto Freyre.
Isso não quer dizer que seguimos os argumentos de discurso culturalista, que
emanaram de interpretações dessas duas obras e de tantas outras que buscaram analisar a
conformação da sociedade brasileira com base na consideração do elemento mestiço. Ao
contrário, procuramos nos associar ao argumento de José Flávio Sombra Saraiva, de que o
país voltar-se para a África não decorre de causalidades advindas do culturalismo, mas de
considerações pragmáticas dos formuladores de política externa. “Preside hoje o atlantismo da
estratégia sul-sul das relações internacionais do Brasil” (SARAIVA, J., 2012, p. 15).

Existem inovações tanto conceituais como práticas na nova política de


reaproximação do Brasil com a África. Uma delas é abandonar atitudes
discriminatórias do ponto de vista cultural em favor de uma abordagem mais
pragmática e estrutural de cooperação com as novas elites africanas. A outra é o
ativismo da sociedade civil, tanto no Brasil como na África, em que grupos não
governamentais desenvolvem novos e inovadores canais de cooperação para o
desenvolvimento. A terceira inovação é a ênfase no comércio, cooperação e
intercâmbios políticos entre estados democráticos estáveis, sem esquecer a dívida

301
Rememora-se, aqui, a preocupação portuguesa e inglesa de, ao acordar o tratado de reconhecimento da
independência do Brasil por Portugal, evitar que as colônias portuguesas na África se unissem ao Brasil recém-
independente.
216

política e emocional do Brasil com a África, incorrida durante o tráfico de escravos


que durou séculos (IPEA; BANCO MUNDIAL, 2011, p.34).

Em segundo lugar, há uma razão de fundo “moral” para o sul-atlantismo, decorrente


da dívida histórica brasileira em virtude da escravidão e do racismo que fizeram parte da
montagem do Estado imperial agrário-exportador. O elemento discursivo de solidariedade nos
pronunciamentos oficiais durante a gestão de Lula da Silva também abarcava a necessidade de
recuperação desse passivo que marcou negativamente as relações bilaterais.
Em terceiro lugar, há fatores geopolíticos, ligados aos circuitos de pensamento das
academias militares, bem como do corpo diplomático, que identificam o Atlântico Sul como
arena de projeção de poder marítimo. Nesse sentido, a promoção de relações adensadas com a
outra margem do mare nostrum visaria a manter a região atlântica como pacífica e livre de
interesses externos aos dos países que a compartilham. A ZOPACAS é um dos resultados
dessa perspectiva. Cita-se, também, que o Atlântico Sul é a porta de entrada para a Antártida,
área ainda “protegida”, sob os termos do Direito das Gentes, à exploração internacional.
O que se observa, contudo, é que esse posicionamento geopolítico foi complementado
por outro, em prol da cooperação, objetivando a incluir o Atlântico Sul na área de interesses
mais ampla do país, compondo quadro de diversificação e de inclusão de novas variáveis de
inserção internacional. Voltar-se para a África, por meio, entre outras estratégias, da
cooperação, é algo necessário para as aspirações de um país como o Brasil (VIZENTINI,
2010).
Em quarto lugar, a África é notória por concentrar parte considerável dos recursos
minerais do mundo, parcela deles ainda não explorada. Especula-se que o continente abarque
66% do diamante, 58% do ouro, 45% do cobalto, 17% do manganês, 15% da bauxita, 15% do
zinco e de 10 a 15% do petróleo mundiais (SARAIVA, J., 2012).
Citamos, também, a disponibilidade de terras aráveis (de um território total de cerca de
30 milhões de km²), clima favorável na maior parte da África subsaariana e a proximidade dos
principais mercados consumidores de commodities, o que torna a África um hub estratégico
do escoamento de mercadorias e de produtos. Quanto aos recursos energéticos, a plataforma
continental brasileira guarda semelhanças geológicas com as da costa ocidental da África, o
que garante ao Brasil vantagens comparativas na extração dos recursos e no
compartilhamento das tecnologias relacionadas a esse processo.
Em quinto lugar, porque existem fatores imateriais que não só aproximam Brasil e
África, mas que também facilitam o adensamento das relações. José Honório Rodrigues, já
217

apontava alguns deles como sendo a miscigenação e o passado de luta contra o colonialismo
(RODRIGUES, 1961). Além deles, existe o fato de o Brasil compartilhar o português como
língua nativa com os PALOP, o que garante ao país facilidades maiores nos trâmites de
negociação diplomática. A institucionalização da CPLP e a assinatura do Acordo Ortográfico
têm como um de seus motivos comuns a salvaguarda e a promoção da língua de Camões302.
Outro desses elementos “imateriais”, que também podem ser traduzidos como soft
power, é o discurso do desenvolvimento, corroborado que é por práticas em prol do combate à
fome e à pobreza e de melhoria de condições socioeconômicas. As reformas observadas no
Brasil nas últimas duas décadas despertaram o interesse de nações em desenvolvimento que
enfrentam desafios semelhantes303. “A articulação de programas brasileiros, voltados para a
mitigação da miséria, ou de elevação da renda dos mais frágeis, como o Bolsa Família, vem
sendo estudada pelos grupos da NEPAD africana” (SARAIVA, J., 2012, p.102).

A cooperação brasileira é instrumento de política externa voltado à construção de


uma agenda positiva com os países parceiros. Visa, sobretudo, a fortalecer a imagem
do Brasil como país de vanguarda na implantação de políticas públicas eficazes na
conciliação do crescimento econômico com o desenvolvimento social. Ao apoiar o
fortalecimento das instituições públicas dos países em desenvolvimento, o Brasil
atua na consolidação de uma nova ordem internacional, na qual os emergentes têm
voz e representatividade adequadas ao contexto atual (FARANI, 2012)304.

Acoplado à proposta de estabelecimento de uma globalização mais justa e inclusiva,


voltada para as demandas de Estados em desenvolvimento, esse âmbito da política externa
costuma ser visto com simpatia pelos parceiros dos processos cooperativos. Ademais, quando
propostas em prol do desenvolvimento, a exemplo das políticas públicas brasileiras de
combate à fome e à miséria, são encampadas por nações africanas, notadamente as que
enfrentam os piores indicadores socioeconômicos atuais, há o retorno da legitimidade305.
Vidigal (2010) aponta que a política externa brasileira contém elemento de
“cordialidade” que é visível na ação cooperativa sul-sul e que diferencia o país dos demais
emergentes. Essa postura estaria imersa nos três “d”, ou o trinômio definidor da inserção

302
O Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) e a Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), situada em Redenção, no Ceará, são sinais da importância do componente
linguístico como elemento imaterial de conexão entre os membros da CPLP.
303
Vizentini (2010) também menciona a influência exercida pelas novelas e pelas igrejas evangélicas brasileiras
como a Igreja Universal do Reino de Deus em países africanos, especialmente os de língua portuguesa e na
África do Sul.
304
Entrevista do ministro Marco Farani, ex-diretor da ABC, no período 2008-2012, ao autor.
305
O Brasil também adota postura de perdoar a dívida externa de contrapartes africanas.
218

internacional do Brasil: desenvolvimento, democracia e diversificação. “The three views


reveal the emphasis often placed on international cooperation as an instrument for
developing the country, multilateral negotiations, respect for international law and the
diversification of the country’s interlocutors”306 (VIDIGAL, 2010, p. 38).
De acordo com esse autor, a política externa durante Lula da Silva estaria marcada por
quatro fatores básicos: internacionalização das empresas brasileiras; diversificação dos
parceiros externos; atuação mais enfática em organismos multilaterais e o princípio da não
indiferença. Esses quatro fatores são demonstrativos de que a cooperação internacional, ainda
que associada à ideia normativa de construção de ordem justa, não está dissociada do
atendimento a interesses, mesmo que indiretos, dos formuladores de política externa. Isso não
quer dizer, contudo, que haja imposição desses interesses aos parceiros africanos. Pelo
contrário, observa-se confluência por ambas as partes.

The theme of provided cooperation is undoubtedly linked to the building of the


nation’s image abroad – the image of a cordial power – and the use of soft power,
albeit with a limited range. The increase in the cooperation provided by Brazil over
the last decades has accompanied the country’s greater international presence,
whether in the commercial area or as a capitals exporter (Idem, p. 39) 307.

A sexta razão para a ênfase na cooperação recente com o continente africano guarda
relação com a própria diretriz estratégica de política externa de ir ao encontro da África, o que
está associado à chancelaria de Celso Amorim e às escolhas dos formuladores mais
identificados com a corrente de opinião e de ação dos autonomistas. O interesse pessoal do
ex-presidente Lula da Silva e a influência de quadros do PT no incentivo às políticas de
cooperação não podem ser desprezados.
A sétima razão está relacionada às transformações recentes no continente africano, que
abrem espaço para a operacionalização dos interesses econômicos que subjacem a CBDI.
Desde 2003, a África cresce entre 5% e 6% ao ano, quadro complementado pelo avanço das
exportações, em 2006 e em 2007, na proporção de 43% a 45% do PIB continental. A classe
média africana também aumenta de forma acelerada, com parcela significativa (cerca de 40%)
de uma população de cerca de 1 bilhão de pessoas ainda no campo, o que indica que essas

306
O trecho correspondente na tradução é: “As três visões revelam a ênfase normalmente colocada na
cooperação internacional como um instrumento para desenvolver o país, negociações multilaterais, respeito pelo
Direito Internacional e a diversificação dos interlocutores do país”.
307
O trecho correspondente na tradução é: “O tema da cooperação prestada está indubitavelmente conectado
com a construção externa da imagem da nação – a imagem de um poder cordial – e o uso do soft power, ainda
que com alcance limitado. O aumento na cooperação provida pelo Brasil nas últimas décadas tem acompanhado
a maior presença internacional do país, seja na área comercial, ou como um exportador de capitais”.
219

mudanças estruturais ainda estão longe de terem se assentado. “Historical experience shows
that only political will and a rhetorical solidarity are insufficient without been economic links
solid established”308 (VIZENTINI, 2010, p. 82).
Reformas econômicas liberalizantes, o avanço da democracia na maioria dos países e
o arrefecimento de conflitos endógenos e sectaristas possibilitam maiores oportunidades para
os parceiros estrangeiros. O movimento de internacionalização de empresas brasileiras no
continente vai ao encontro desse novo momentum africano.
A oitava razão diz respeito à importância político-diplomática da África, que, com 54
nações (considerando o Sudão do Sul) tem peso considerável nas votações em instâncias
multilaterais. Pode-se dizer que, atualmente, é assaz complicado um país conseguir eleger um
nacional seu para um cargo diretivo de agência ou de foro sem o apoio da UA, que vota em
bloco. A eleição de José Graziano da Silva para o cargo de diretor-geral FAO, com diferença
de quatro votos contra o segundo colocado, seria improvável sem o apoio africano.

Laços econômicos e políticos mais fortes com a África já levaram a algumas


importantes vitórias para o Brasil na arena mundial, como por exemplo a posição do
país como futura sede dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo e a eleição recente
de um brasileiro (José Graziano da Silva) para o cargo de novo Diretor Geral da
FAO. Nos três casos, parece que um número enorme de países africanos votou a
favor do Brasil. O Brasil também faz uso de suas relações com os países africanos
em fóruns como a Organização Mundial de Comércio e também na ONU, onde o
objetivo é obter um acento permanente no Conselho de Segurança (IPEA; BANCO
MUNDIAL, 2011, p.106).

Além disso, as expectativas dos formuladores de política externa de situarem o Brasil


como um “articulador de consensos” e uma potência emergente cuja atuação se baseia no
diálogo entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, dependem, também, do
reconhecimento de tal papel por parte das nações que hoje compõem o sul geopolítico, grande
parte delas situadas na África. O novo lugar do sul-atlantismo colaborou para o
estabelecimento de um “projeto cooperativo sul-sul em bases modernas, a engendrar alguma
liderança nas novas rodadas de negociação de temas globais, na reformulação do Conselho de
Segurança e na busca de parcerias estratégias” (Idem, p.105).

A cooperação internacional é um dos instrumentos utilizados pela diplomacia


brasileira para ampliar a presença do País no cenário mundial. A consequência da
cooperação prestada pode levar ao maior apoio em votações importantes, à
valorização do etanol, à internacionalização do know-how especializado brasileiro e
a um futuro ambiente de confiança nas relações com os parceiros, o que traria maior

308
O trecho correspondente na tradução é: “A experiência história mostra que somente vontade política e
solidariedade retórica são insuficientes sem que os laços econômicos estejam solidamente estabelecidos”.
220

multilateralização e democratização das relações internacionais, que são objetivos da


política externa brasileira (PRADO, 2012)309.

Como nona razão para o reforço da cooperação e da aproximação com a África,


citamos a concorrência com outros emergentes, especialmente a China310, que também se
coloca como representante do mundo em desenvolvimento e que desde 1989, na ocasião dos
protestos na Praça da Paz Celestial, promove crescentes atenções às nações africanas. Para
autores como José Flávio Sombra Saraiva, trata-se de um movimento que está relacionado a
uma “nova partilha”, pacífica e silenciosa, tendo em vista ser a África a última fronteira do
capitalismo.

Whereas Chinese and, most recently, Indian actions are orientated by economic
goals, in spite of their help in infrastructural works, and the North American
presence is focused on geopolitics and security issues, Brazil´s agenda of
cooperation brings new elements, added to the clear material purposes ones
(VIZENTINI, 2010, p.71)311.

Além da busca de acesso a mercados, associada a aportes da ordem de US$ 9,3 bilhões
em investimento direto, em 2010 (ECONOMIST, 2012), o crescente envolvimento da China
na África também é associado à própria necessidade do Partido Comunista da China (PCC) de
administrar sua “diáspora” no continente africano. Quanto à Rússia, está em curso um
processo de reavaliação do seu envolvimento com relação àquele da Guerra Fria, o que teve
impacto no estabelecimento de novos programas de assistência. A Índia, como o Brasil, busca
diversificar mercados e aprimorar seus laços históricos com o lado oriental da África, também
banhado pelo Índico.
Como décima e última razão, argumentamos que existe uma vontade africana em
dialogar e em cooperar com o Brasil, o que reflete a CBDI ser orientada por meio de
demandas dos parceiros internacionais. Não se trata de cooperação imposta ou top-down
conforme os modelos tradicionais de transferência de conhecimentos.

309
Entrevista concedida por Antônio Prado, coordenador de Cooperação Técnica da EMBRAPA, ao autor.
310
A Índia teria muito mais convergências de política externa e de projeto de ordem internacional com o Brasil
que a China, compondo, por exemplo, o IBAS. Isso não significa que não existam projetos cooperativos que
unam Brasil e China na África, como é o caso da cessão gratuita das imagens do Satélite Sino-Brasileiro de
Recursos Terrestres (CBERS) para que os governos africanos monitorem catástrofes naturais, secas,
desertificação e outras ameaças à segurança alimentar.
311
O trecho correspondente na tradução é: “Enquanto que as ações chinesas e, mais recentemente, indianas são
orientadas por objetivos econômicos, apesar de sua ajuda em trabalhos de infraestrutura, e a presença norte-
americana é focada em questões geopolíticas e de segurança, a agenda de cooperação do Brasil traz novos
elementos, adicionados aos claros propósitos materiais”.
221

4.3.2 Segurança alimentar na relação bilateral Brasil-África

O interesse despertado por nações africanas quanto a determinadas políticas públicas


brasileiras empreendidas nos últimos anos é indicativo de que há esforços mútuos no sentido
do reforço aos fluxos de cooperação sul-sul entre as duas margens do Atlântico Sul. Isso vai
ao encontro da nova política externa do país para o continente africano, que está associada à
participação de diversos atores da política doméstica na internacionalização de práticas de
combate à fome e à pobreza e de desenvolvimento agrário, a exemplo do envolvimento de
ministérios outros que não o MRE.
O interesse da África no compartilhamento de conhecimentos brasileiros no campo da
agricultura é notável, visto que, ao contrário da produtividade observada no Brasil, várias
nações africanas são importadoras de alimentos, o que onera não só suas balanças comerciais,
como também dificulta seu desenvolvimento socioeconômico. Baixa produtividade312, mão de
obra desqualificada, infraestrutura deficiente e pouco apuro da técnica são algumas das
características do modelo agrícola africano, que impacta direta e indiretamente cerca de 60%
da população do continente (IPEA; BANCO MUNDIAL, 2011)313.
O compartilhamento de técnicas entre Brasil e África diz respeito, também, não só ao
mero interesse africano, mas também à própria aplicabilidade dessas tecnologias. A
similaridade de condições climáticas e geológicas é fator que garante maiores possibilidades
de sucesso aos acordos bilaterais. A mencionada semelhança do bioma cerrado com a savana
é complementada pelo fato de que áreas como Moçambique, por exemplo, sofrem a influência
de correntes quentes e úmidas, tal como ocorre em grandes porções do território brasileiro314.
A dinâmica agrícola africana está intimamente relacionada com os prospectos de
melhoria da insegurança alimentar do continente e com projetos estruturantes de transferência

312
Apenas 4% da agricultura africana é irrigada; cerca de 40% da população vivem em áreas áridas ou
semiáridas; 50 milhões de pessoas na África Subsaariana e 200 milhões no norte da África e no Oriente Médio
vivem em áreas com escassez hídrica; 75% da área cultivada são afetadas pela retirada de nutrientes do solo
(JUMA, 2011). Esse autor traz uma visão geral sobre a agricultura africana.
313
A agricultura continua sendo a principal fonte de empregos e receitas de exportação da África Subsaariana,
respondendo por cerca de 30% do PIB da sub-região.
314
Angola e Namíbia, também detentoras do bioma savana, sofrem a influência da corrente de Benguela, fria e
seca, o que cria alguns entraves, mas não inviabiliza, ao desenvolvimento da cooperação agrícola.
222

de rendas, de aquisição de alimentos e de combate à fome e à pobreza. Em virtude disso,


quando da consideração da cooperação sul-sul bilateral Brasil-África, a análise das principais
iniciativas levadas a cabo pelos ministérios considerados neste estudo pretende mostrar o
intenso grau de envolvimento entre as duas margens sul-oceânicas.

4.3.2.1 EMBRAPA e cooperação sul-sul na África

A EMBRAPA315 desenvolve atualmente 32 projetos de cooperação técnica em 18


países africanos. Desses, seis são denominados estruturantes (ou de longa duração), 15 são de
curta duração e 11 são implementados pela iniciativa Plataforma África-Brasil de Inovação
Agropecuária316. São ações articuladas à instância de cooperação técnica oficial da CBDI,
articulando diretamente o MAPA à ABC e aos Estados recipiendários.
Das três principais vértices de atuação da EMBRAPA, a Plataforma África-Brasil de
Inovação Agropecuária configura-se como um mecanismo competitivo para financiamento de
projetos de cooperação articulados diretamente entre as instituições africanas e pesquisadores
da EMBRAPA, contando com recursos do DFID, do Forum for Agricultural Research in
Africa (FARA), do Banco Mundial, da Fundação Bill & Melinda Gates, do FIDA, e do
governo brasileiro. Em 2010, mais de uma centena de pesquisadores africanos reuniu-se em
Brasília para a defesa de inúmeros projetos de desenvolvimento agrícola. Os selecionados
poderiam receber até US$ 80 mil para a implementação das iniciativas317.
Já os projetos estruturantes são considerados os mais complexos, visto que atuam no
sentido de promoverem externalidades com lastro de permanência. Eles estão associados à
ideia de promoção da execução local e de horizontalidade na CBDI, pois buscam apontar

315
A EMBRAPA conta com 78 acordos de cooperação técnica com 56 países e instituições estrangeiras, além de
20 acordos multilaterais com OIs. Em 2006, foi instituída a EMBRAPA África, com escritório em Acra, com
mandato de coordenar as demandas de cooperação técnica de parceiros no continente africano. Em virtude do
foco em projetos estruturantes e das dificuldades operacionais e logísticas da manutenção de apenas uma base
coordenadora, a EMBRAPA ampliou suas instalações físicas para outros países, havendo campos experimentais
em Moçambique, Mali, Benim, Chade, Burkina Faso e Senegal. Trata-se de um processo de internacionalização
de ator doméstico, do MAPA, com o aval e apoio da ABC/MRE.
316
Dados de 2012. Entrevista de Antônio Prado, coordenador de Cooperação Técnica da EMBRAPA, ao autor.
317
A EMBRAPA também atua por meio do Centro de Estudos e Capacitação em Agricultura Tropical (CECAT),
que oferece capacitação técnica e conta com a participação de parceiros africanos.
223

conjuntamente desafios e potencialidades, identificando possibilidades de criação de efeitos


de longo prazo, como a instalação de fazendas-modelo ou de centros profissionalizantes.
Como principais exemplos desses projetos, tem-se a estação experimental Coton Four,
no Mali, que recebe técnicos de Burkina Faso, Chade e Benim; a estação de desenvolvimento
da rizicultura no Senegal; e o Apoio Técnico para o Desenvolvimento da Inovação
Tecnológica em Moçambique, iniciativas que, por serem instrumentalizadas pelos decisores
diplomáticos, guardam relação com as diretrizes de política externa.
O Cotton Four (C-4) foi concebido em 2008 como mecanismo de promover o apoio
técnico ao setor algodoeiro de Mali, Chade, Burkina Faso e Benim, países que dependem das
exportações do produto, que emprega parcela considerável de suas populações. Ainda que
tenham certas vantagens climáticas e geológicas no cultivo do algodão, esses Estados
padecem de baixos níveis de produtividade e sofrem a concorrência internacional dos
subsídios concedidos por países como os Estados Unidos a seus produtores domésticos.
Pelo programa, distintas variedades de algodão brasileiro desenvolvidos pela
EMBRAPA foram testados e implantados no Centro de Pesquisa Agrícola de Sotuba, no
Mali. Foi construído nesse país um laboratório de biotecnologia que será equipado com o
apoio da ABC, sendo previsto, também, um segundo laboratório, a ser implementado pela
EMBRAPA. Com técnicas como a de gestão de pragas, a expectativa é a de que se possa
iniciar produção em larga escala que permita, posteriormente, o transbordamento das técnicas
para outros países, como Uganda e Gana, que já solicitaram participação no projeto C-4.
Tendo como ponto focal a produção de algodão, o manejo das técnicas compartilhadas
com as contrapartes africanas prevê sua utilização para outras áreas relacionadas, como
pecuária, artesanato e cereais, o que reforça o caráter estruturante da iniciativa bilateral e a
preocupação – prática e retórica - com a garantia da segurança alimentar, visto que, ainda que
não seja gênero alimentício, a cultura do algodão tem o condão de contribuir para o âmbito
mais geral da produção agrícola nesses quatro países (IPEA; BANCO MUNDIAL, 2011).
Além disso, tecnologias para a melhoria do solo foram articuladas com a proposta de que as
colheitas algodoeiras estejam associadas aos interesses dos mercados locais.
As vantagens concedidas aos produtores norte-americanos motivaram o pedido de
consultas do Brasil ao Órgão de Solução de Controvérsias OSC da OMC, em 2002. Alegou-se
que os subsídios distorciam o mercado internacional do algodão, deploravam preços,
deslocavam mercados e afetavam a economia de países em desenvolvimento produtores
algodoeiros, prejudicando também o acesso a terceiros mercados. Unindo pressão diplomática
224

com o apoio e votos dos C-4, que contribuíam para o pleito brasileiro de que os subsídios às
exportações minavam seu desenvolvimento socioeconômico, o Brasil saiu vitorioso.
Os subsídios norte-americanos foram considerados incompatíveis às regras
multilaterais de comércio pelo painel e pelo Órgão de Apelação da OMC. Como a prática não
foi suspensa, o Brasil foi autorizado a aplicar retaliações cruzadas, o que forçou os Estados
Unidos a firmarem um Acordo-Quadro com o Brasil, envolvendo compensações de US$ 147
milhões por ano até a eliminação completa dos subsídios.
Com o status de vencedor conquistado na arena multilateral e com as compensações
obtidas, o Brasil utilizou a verba para fomentar o Instituto Brasileiro do Algodão e também
para promover cooperação técnica com parceiros do MERCOSUL, Haiti e os C-4, num claro
exemplo de como a dinâmica multilateral de promoção de uma ordem pautada por um
multilateralismo de reciprocidade e por uma globalização mais justa tem relação com a CBDI
e com a política externa brasileira para a África.
Além do Cotton Four, um segundo exemplo de projeto estruturante é o Projeto de
Desenvolvimento da Rizicultura, articulado entre a EMBRAPA e o Instituto Senegalês de
Pesquisas Agrícolas. Orçado em US$ 2,4 milhões, prevê tornar o Senegal autossuficiente na
produção de arroz, readequando suas estruturas produtivas por meio da transferência de
conhecimentos técnicos brasileiros. Item básico da alimentação da população senegalesa, o
cultivo local de arroz é descontinuado e frágil.
Um terceiro exemplo de projeto estruturante é a iniciativa de Apoio Técnico para o
Desenvolvimento da Inovação Tecnológica em Moçambique. A iniciativa, resultado da
parceria trilateral entre a EMBRAPA, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento
Internacional (USAID) e o Instituto de Investigação Agrária de Moçambique, é implementada
desde 2010 no país africano e centra-se em cinco eixos: reforço institucional do Instituto de
Investigação Agrária de Moçambique; sistema de sementes; gestão territorial; monitoramento;
e informações e comunicações (IPEA; BANCO MUNDIAL, 2011).
Moçambique também irá receber outro projeto estruturante, ainda em fase de
planejamento, denominado Apoio Técnico a Projeto de Segurança Alimentar e Nutricional,
voltado para o fortalecimento na capacidade de cultivo, produção e comercialização de
hortaliças. Com vinculação à agricultura familiar (que ocupa mais de 90% dos quase 6
milhões de ha cultivados) e à formação de capacidades que envolvam os produtores locais, o
projeto está associado à Iniciativa Global para a Segurança Alimentar e Nutricional.
225

Novamente em parceria com a USAID, a EMBRAPA objetiva realizar iniciativa que


tem por base o PNAE do Brasil. O projeto atuará nas vertentes de fornecimento de alimentos
e de educação em alimentação e nutrição escolar, com vistas a fornecer alimentos a estudantes
moçambicanos, além do desenvolvimento de projetos pedagógicos ligados a bons hábitos
alimentares (ABC, 2010b) 318.
Os exemplos acima indicam a relevância de Moçambique como case de
implementação de sucesso dos programas brasileiros voltados à segurança alimentar e
nutricional, em suas mais variadas vertentes. Esse país também recebe outros projetos de
origem brasileira, como é o caso do Projeto de Desenvolvimento Agrícola da Savana Tropical
de Moçambique (PROSAVANA), originário de parceria trilateral entre a EMBRAPA, a JICA
(Agência de Cooperação Internacional do Japão) e instituições parcerias do governo de
Moçambique, com o apoio do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR)319 e da
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER),
Mais voltado para a estruturação da produção agrícola de determinados gêneros
comumente associados a exportações, o PROSAVANA visa a replicar a parceria realizada
entre a JICA e a EMBRAPA nos cerrados brasileiros. Prevê-se a aplicação de tecnologias
agrícolas na região do Corredor de Nacala – entre os paralelos 13 e 17 sul – por meio de
investigações locacionais, instalação de laboratórios de sementes e capacitação de técnicos320.
Na prática, ainda que involucrado no discurso da segurança alimentar, mais legítimo e
palatável sob os véus do solidarismo, o que se observa é que o PROSAVANA convencionou-
se em projeto de desenvolvimento do agronegócio moçambicano, notadamente para a
produção de soja voltada para os mercados asiáticos. Essa dicotomia temática nas iniciativas
de cooperação agrícola do Brasil para com Moçambique, seja em desenvolvimento agrário,
seja em promoção do agronegócio, repete as disfunções encontradas em âmbito doméstico321.

318
Há muitos outros, como o Programa de Educação Alimentar e Nutricional – Cozinha Brasil-Moçambique; a
Elaboração do Programa Nacional de Alimentação Escolar de Moçambique; e o projeto de Capacitação Técnica
de Moçambicanos em Agricultura de Conservação. Está em negociação a implantação de programa de Apoio ao
Desenvolvimento da Aquicultura e Pesca de Pequena Escala, entre outros.
319
Até 2010, 70 técnicos africanos de 35 países participaram das atividades de capacitação do Serviço Nacional
de Aprendizagem Rural (SENAR).
320
O interesse japonês no PROSAVANA é claro: propiciar o aumento relativo da produção e da comercialização
de produtos como soja e milho, o que tenderá a deprimir os preços do mercado mundial e, consequentemente,
baratear as compras do país asiático, severamente dependente da importação de gêneros agrícolas.
321
Não associados à EMBRAPA, mas indo a reboque das mudanças aceleradas empreendidas em Moçambique,
o governo local ofereceu uma área de 6 milhões de ha, equivalente a três estados de Sergipe, para que
agricultores brasileiros plantem soja, algodão e feijão. A maioria dos agricultures é proveniente do Mato Grosso.
226

Isso reverbera a dualidade no manejo da agricultura brasileira e as críticas de


instituições como o CONSEA. Para o conselho, parcerias como a que originou o
PROSAVANA desvirtuam o conceito de desenvolvimento, impedindo a garantia de equidade
e de realização de direitos à alimentação adequada322.
É importante demarcar que várias iniciativas como o PROSAVANA e outras,
articuladas por particulares para o arrendamento de porções de terras na África, são
incentivadas pelos governos locais, muitas delas não contando com avaliação de impactos
adequada. Igualmente, são iniciativas que raramente tem passado por processos de consultas
junto às populações africanas interessadas. Essas dimensões deveriam ser necessariamente
contempladas, ainda mais se levarmos em consideração que o Brasil foi um dos articuladores,
na FAO, de documentos recomendatórios nesse sentido, como as “Diretrizes Voluntarias para
a Governança Responsável da Posse da Terra, dos Recursos Pesqueiros e Florestais em um
Contexto de Segurança Alimentar Nacional”, de 2012323.

4.3.2.2 MDA, MDS e África

O MDA é um dos atores mais atuantes na execução da CSS em segurança alimentar e


nutricional levada a cabo pelo Brasil com parceiros africanos. Em 2010, mais de 300 projetos
de cooperação estavam em curso com 37 nações africanas, somando um orçamento de US$ 65
milhões e um tempo médio de execução de três anos. De todas as iniciativas que estão sob a
alçada do MDA, as relativas à agricultura familiar são as mais frequentes.
Da carteira de projetos empreendidos pelo MDA em âmbito doméstico, há diversos
relacionados com as áreas de crédito e de geração de renda; assistência técnica; reforma
agrária; e extensão rural para a agricultura familiar. As principais iniciativas coordenadas pelo
ministério são o programa Mais Alimentos África, no Zimbábue, no Senegal, no Quênia, em

A condição imposta pelo governo moçambicano é que 90% da mão de obra seja local. “Moçambique oferece ao
Brasil área de três Sergipes”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/959518-mocambique-
oferece-area-de-tres-sergipes-a-soja-brasileira.shtml , acesso em: 08/12/2012.
322
Entrevista de Mirlane Klimach, assessora internacional do CONSEA, ao autor.
323
O PROSAVANA é criticado por organizações da sociedade civil como a União Nacional dos Camponeses
(UNAC), a Justiça Ambiental (JA!), e a Plataforma Provincial da Sociedade Civil de Nampula, todas
moçambicanas.
227

Gana e em Moçambique; e o programa de Compras Institucionais da Agricultura Familiar,


realizado em Gana, no Quênia, em Ruanda, no Zimbábue e na Costa do Marfim.
O programa Mais Alimentos África também é iniciativa que agrega a dimensão de
solidariedade com a de interesses na CBDI. Pautado em dois vértices, o Mais Alimentos
conjuga um projeto de cooperação técnica com o estabelecimento de uma linha de crédito
pelo governo federal, voltada para o financiamento de compras de maquinário brasileiro. O
objetivo do programa é aumentar – por meio da agricultura familiar – a produção e a oferta de
alimentos, assim como a criação de empregos no meio rural nos países em que é aplicado.
Exemplo claro da internacionalização de políticas públicas nacionais, o Mais
Alimentos África é réplica do nacional Programa Mais Alimentos, que mobiliza e concede
empréstimos para a aquisição de maquinário e de outros insumos agrícolas por produtores
brasileiros. Os empréstimos têm prazo de amortizações facilitado e juros mais baixos que os
de mercado, viabilizando sua sustentabilidade.
O braço creditício do Mais Alimentos África, aprovado pela Câmara de Comércio
Exterior (CAMEX), é voltado para o financiamento de tratores, máquinas, implementos
agrícolas, colheitadeiras, veículos de carga e transportes, construção de armazéns e silos,
cercamento elétrico, isolamento de rebanho, etc. O montante total aprovado é de US$ 640
milhões, destinado a viabilizar o financiamento das importações de equipamentos agrícolas
brasileiros por parte dos parceiros africanos.

Se nós conseguirmos fazer a África produzir comida para si própria, significa que
ela vai deixar de importar alimentos, passando, assim, a ter reservas para importar a
tecnologia brasileira. E tecnologia eu falo de uma maneira geral: genética,
tecnologia agrícola, conhecimento, nossos equipamentos, como maquinários,
tratores, implementos agrícolas, plantio direto em solos tropicais - que só nós
dominamos. Hoje o Brasil goza desse prestígio da marca Brasil (MATOS, 2010)324.

Nesse sentido, além de estar sob o guarda-chuva simbólico da segurança alimentar e


do desenvolvimento da agricultura familiar, o Mais Alimentos também tem claro componente
de estímulo à indústria nacional325. Os acordos de cooperação firmados determinam que os
equipamentos financiados devem se enquadrar nos critérios de nacionalização da produção,
necessitando a maior parte de seus componentes ser produzida em solo brasileiro. A compra

324
Entrevista de Leovegildo Lopes de Matos, que foi responsável pela coordenação do escritório da EMBRAPA
em Gana, entre 2010 e 2012. Disponível em: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-missao-da-embrapa-na-
africa, acesso em: 12/04/2013.
325
Não é à toa que o MDA congrega, sobre a mesma divisão institucional, as atividades de assessoria
internacional e de promoção comercial.
228

de maquinário é contrapartida que atende a estratégias da Associação Brasileira da Indústria


de Máquinas e Equipamentos (ABIMAQ).

Acho que a cooperação, o alinhamento em votações multilaterais e a promoção de


atividades comerciais compõem, juntos, a política externa de qualquer país. Há
casos em que essa combinação resulta na imposição de condicionalidades, na busca
de um mero interesse comercial e no aprofundamento de laços de dependência. Há
outros casos em que, juntos, esses fatores convergem num âmbito de solidariedade.
Esse é caso do Mais Alimentos África, onde, por exemplo, há condições bem como
interesses comerciais, declarados e compartilhados com os países africanos, mas que
acabam, na minha opinião, em apoiar as aspirações dos países africanos em se tornar
menos dependentes das importações de alimentos e em começar a compartilhar uma
base de tecnologias agrícolas (PIERRI, 2012)326.

Com relação ao programa de Compras Institucionais da Agricultura Familiar 327, trata-


se de uma oportunidade de ampliar as oportunidades para a pequena produção agrícola,
permitindo que órgãos da administração direta e indireta da União, dos estados, do Distrito
Federal e dos municípios comprem, com seus próprios recursos, alimentos para atender a
demandas de instituições de ensino, presídios, academias, etc. A compra dispensa licitação.
De acordo com o programa, agricultores familiares, assentados da reforma agrária,
silvicultores, extrativistas, pescadores artesanais, comunidades indígenas e integrantes de
comunidades quilombolas organizados em cooperativas podem vender até R$ 8 mil por ano
para entidades públicas nacionais.
Seguindo a lógica de internacionalização de projetos ligados ao desenvolvimento da
agricultura familiar, o MDA vem realizando a fase inicial de compartilhamento dos
conhecimentos associados ao Compras Institucionais para com cinco parceiros africanos –a
ser iniciado pelo Zimbábue -, além de países do MERCOSUL. Trata-se de inserir os
produtores da agricultura familiar na cadeia produtiva, garantindo sustentação a esses rincões
onde a lógica mercado nem sempre atua. A ideia básica é a de diminuir as assimetrias
Além do Compras Institucionais e do Mais Alimentos África, executados pelo MDA,
o MDS desenvolve o projeto de assistência humanitária “Programa de Aquisição de
Alimentos África: Compra dos Africanos para a África”, ou simplesmente PAA-África. A
iniciativa, compartilhada atualmente com cinco países da outra margem do Atlântico Sul, é
resultado da demanda externa pelos conhecimentos desenvolvidos no projeto homólogo, o

326
Entrevista de Francesco Maria Pierri, chefe da assessoria para assuntos internacionais e de promoção
comercial do MDA, ao autor.
327
Em âmbito nacional, o Compras Institucionais trata-se de uma modalidade do Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA) do governo federal.
229

Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) brasileiro que, em âmbito nacional, é tocado,


além do MDS, pelo MDA e pela CONAB, instituição integrante do MAPA.
O PAA-África se trata da internacionalização do PAA brasileiro, criado pelo art. 19 da
Lei 10.696/2003, no âmbito do Fome Zero, e contendo duas atribuições básicas: promover o
acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar, duas prerrogativas ligadas ao conceito
de segurança alimentar. Em suma, o PAA é referente à compra de produção da agricultura
familiar diretamente pelo governo, para a formação de estoques estratégicos e distribuição de
gêneros alimentícios para populações em situação de vulnerabilidade social. As doações
ocorrem por meio da rede de atenção social do governo, envolvendo, por exemplo,
restaurantes populares e cozinhas comunitárias.
O objetivo é garantir a demanda para a produção da agricultura familiar e, no caso de
mercados deprimidos, auxiliar no estocamento para posterior venda em cenário mais
favorável. No Brasil, entre 2003 e 2009, o PAA aplicou R$ 2,7 bilhões para a compra de mais
de 2,6 milhões de toneladas alimentos de 110 mil agricultores em média anual. Em 2009,
mais de 13 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade foram beneficiadas pelos
alimentos adquiridos. O estímulo ao cooperativismo é um dos sustentáculos do PAA, cujo
orçamento, nacionalmente, é composto por recursos do MDS e do MDA.
Internacionalmente, conforme vimos, o financiamento do PAA-África328 cabe à ABC,
o que corrobora o argumento de que, na passagem das políticas públicas do plano doméstico
para o externo, existe controle do Itamaraty. Apoiado pela FAO, que proporciona equipes de
campo; pelo DFID, que atua como apoio consultivo e complementação do financiamento; e
pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA)329, o PAA-África é executado pelo MDS, que
provê apoio técnico e a coordenação das atividades de aprendizagem do programa.
O PAA-África vem sendo executado em cinco países - Etiópia, Malaui, Moçambique,
Níger e Senegal -, por meio da realização de atividades que auxiliam na capacitação de grupos
de pequenos produtores em processos de produção e de comercialização de alimentos, além
de contribuir para a compra do produzido a fim de dinamizar a economia local e envolver a
sociedade civil. São atividades de assistência social que, além de contarem com pleno apoio
multilateral e dos governos recebedores da cooperação sul-sul, contribuem para referendar o
PAA brasileiro e os avanços proporcionados pelo combate à fome e à miséria no país.

328
http://paa-africa.org/, acesso em 30/04/2013.
329
O PMA coordena o programa Purchase for Progress (P4P), que promove o acesso aos mercados para
pequenos produtores em mais de 20 países. Alguns países do PAA-África também são parte do P4P.
230

Destaca-se, também, o Diálogo Brasil-África sobre Segurança Alimentar, Combate à


Fome e Desenvolvimento Rural, encetado em 2010, em Brasília, após reunião de autoridades
brasileiras com representantes de 45 países africanos, além de Timor Leste, organismos
multilaterais e entidades da sociedade civil330. O encontro, que propiciou discussão sobre
temas relativos à CSS e ao avanço das iniciativas já em curso, é um marco na política externa
para o continente africano.
A reunião resultou no estabelecimento de um diálogo permanente entre o Brasil e seus
parceiros africanos com o objetivo de promover iniciativas de caráter bilateral, multilateral e
regional. Das diversas atividades que o diálogo prevê, menciona-se o compromisso brasileiro
de intensificar os esforços de cooperação realizados por MDA, MPA, MDS, MAPA, MRE,
EMBRAPA, CONAB, ABC, FNDE, SENAR e SEBRAE, além de outras agências, de acordo
com as demandas africanas. Entre as iniciativas previstas, está a de criação de um centro
brasileiro-africano de excelência em bioenergia, sinal de que a produção de biocombustíveis
também está na pauta das relações bilaterais como meio de desenvolvimento331.
O componente político do Diálogo Brasil-África é bastante claro quando se observa
que um dos objetivos do encontro é o incentivo à ação coordenada em fóruns agrícolas,
comerciais e financeiros, com vistas a obter decisões favoráveis a países em desenvolvimento,
especialmente às nações africanas. As previsões incluem acesso a recursos financeiros e a
mercados, redução das barreiras comerciais e não tarifárias e eliminação de subsídios, o que
insere a concertação nas coalizões existentes, por exemplo, na OMC, na OMS e na FAO.
Por último, mencionam-se os projetos de compartilhamento das experiências exitosas
do Bolsa Família com parceiros africanos, executadas pelo MDS e parte do Programa África-

330
A proposta de lançamento do Diálogo Brasil-África foi brasileira, surgida após o discurso de Lula da Silva na
abertura da 13ª Assembleia da União Africana em Sirte, na Líbia, em 2009. Na ocasião, o ex-presidente disse
que “não é necessário ser rico para ser solidário. É minha preocupação permanente que a cooperação com a
África tenha um forte caráter de solidariedade”. Além disso, também fez menções à necessidade democratização
da ordem internacional: “A ordem mundial não é mais pautada por algumas poucas economias dominantes. Sem
os países em desenvolvimento não será possível a abertura de um novo ciclo de expansão que combine
crescimento, combate à fome e à pobreza, redução das desigualdades, preservação ambiental e maior equilíbrio
entre as nações. Essas devem ser as prioridades da nova agenda internacional. Esta é a hora para reconstruir as
instituições globais em bases mais democráticas. Contamos com a África para redefinir as governanças das
instituições multilaterais, para torná-las mais representativas, legítimas e eficazes”. Disponível em:
http://www.imprensa.planalto.gov.br, acesso em: 13/04/2013.
331
A cooperação em agroenergia, ainda que possa, discursivamente, ser enquadrada como uma das agendas do
conceito de segurança alimentar, mostra-se, em nosso entendimento, mais distante do termo original do que as
trabalhadas nesta pesquisa, de acordo com a discussão que travamos no início deste capítulo. Isso não impede,
entretanto, que a cooperação em biocombustíveis não seja um dos elementos de destaque da pauta das relações
Brasil-África.
231

Brasil de Cooperação em Desenvolvimento Social, que é referenciado pelo PNUD332. Em


2006, com o apoio do DFID, o MDS recebeu autoridades de Gana, Moçambique, Nigéria,
Guiné Bissau, África do Sul e Zâmbia para apresentações relativas aos programas de combate
à fome e à pobreza em curso no Brasil.
Técnicas voltadas para transferência condicionada de renda são replicadas, atualmente,
no Benim, em projeto que envolve cerca de 3 mil famílias, além de Angola, Quênia, Gana,
Malaui, Etiópia e no Senegal. O nível de condicionalidades dos programas, no caso das
parcerias com a África, é menor que aqueles definidos no Bolsa Família brasileiro, o que
indica que o componente de execução nacional da CBDI encontra-se presente. As práticas do
Bolsa-Escola, por sua vez, são compartilhadas com Moçambique e com São Tomé e Príncipe.

4.4 Considerações finais

Este capítulo procurou mostrar que o tema da segurança alimentar, ainda que
suscitando polêmicas quanto a sua definição teórica e incorporando agendas múltiplas que
dizem respeito às relações internacionais, é caro à política externa brasileira. Entre 2003 e
2010, inúmeros projetos ligados ao combate à fome e à pobreza e ao desenvolvimento
socioeconômico da agricultura rural foram articulados, segundo uma política de governo que
guarda relação com a subida ao poder de grupo político associado ao PT.
Muitas dessas iniciativas obtiveram relativo sucesso em sua implementação, o que
legitimou a base governista e despertou a atenção não só de organizações multilaterais, como
também de parceiros externos. Com o argumento moralizador e solidário de promoção de
ordem internacional mais justa e representativa para essas nações, os formuladores de política
externa compreenderam a cooperação sul-sul como um poderoso instrumento de política
externa, voltado para a inserção internacional do Brasil como país emergente que não agiria
somente em prol de seus próprios interesses nacionais.
A internacionalização de práticas como as associadas ao programa Fome Zero,
articuladas à CBDI, é exemplar de fenômeno que ganha cada vez mais força na consideração
do contexto atual das relações internacionais: a internacionalização de políticas públicas até
então confinadas em âmbito doméstico para o campo externo. Como vimos, a participação de

332
http://www.ipc-undp.org/ipc/PageAfrica-Brazil2.do?id=29, acesso em: 30/04/2013.
232

ministérios como o MDS, o MDA e o MAPA, cada qual com sua especificidade, vai ao
encontro desse movimento de inserção internacional por meio da cooperação, coordenado
pelo MRE na figura da ABC.
Nesse diapasão, a presença do continente africano como um dos principais
destinatários da política de cooperação sul-sul do Brasil é pertinente, pois corrobora a
convergência entre aspectos de solidariedade e de interesses dos atores envolvidos na
internacionalização de práticas domésticas. Ações como o Mais Alimentos África, o
PROSAVANA e o PAA-África visam a criar externalidades positivas nos países recebedores,
justificadas como ações horizontais e não interessadas.
Algumas dessas ações, que não deixam de sofrer críticas mesmo no interior da
burocracia governamental, ilustram um movimento recente de retorno do Brasil à África, o
que pode não só contribuir para o desenvolvimento da outra margem do Atlântico, mas
também trazer ganhos não imediatos para a identidade e para a posição do país no cenário
internacional em transição.
233

CONCLUSÃO

Buscamos, ao longo dos quatro capítulos desta dissertação, investigar como se dá a


cooperação brasileira em segurança alimentar para com a África. Nesse processo, objetivamos
apontar quais os atores envolvidos em sua consecução, qual seu lugar na política externa
brasileira, qual o papel do Ministério das Relações Exteriores e de que forma é
operacionalizado o processo decisório que permite o compartilhamento de conhecimentos e
de práticas domésticas entre o Brasil e seus parceiros da outra margem sul-atlântica.
Por ser temática pouco estudada e trabalhada na literatura de Relações Internacionais
do país, esse vetor de cooperação internacional demandou-nos a organização de entrevistas
com representantes dos quatro ministérios estudados: MDA, MDS, MAPA/EMBRAPA e
MRE. Além da provisão de um sem número de informações, esses contatos foram felizes
indicativos de que o diálogo entre a academia e o poder público deve ser uma constante, visto
que não só acarreta maior accountability para os órgãos federais e suas políticas públicas,
assim como permite maior segurança no tratamento aos dados compilados que, obviamente,
devem ser problematizados e vislumbrados de forma crítica e não passiva.
Conforme já delineamos ao longo desta dissertação, nossa posição é de que o
questionamento ao insulamento do MRE, ocorrido com maior vigor a partir dos anos 1990,
foi fenômeno fundamental para o estabelecimento da cooperação como um dos elementos
basilares da política externa brasileira durante a gestão de Lula da Silva.
Em virtude disso, acreditamos que a imagem do Itamaraty como “torre de marfim”,
crítica comum ao ministério articulada na etapa inicial deste trabalho e com a qual, em sua
maioria, concordamos, vem deixando de ser a regra para dar espaço a novos contatos do corpo
diplomático com outros atores com papéis importantes em políticas de cooperação
internacional. Aos poucos, em um processo que não é contínuo e que é sujeito a retrocessos e
a oposições, ocorrendo de forma irregular, observa-se que são erigidas “pontes” ligando o
“mundo exterior” com a estrutura organizacional do MRE. As rupturas intra e
extraministeriais colaboram na composição desse quadro.
Isso corrobora nossas escolhas teóricas, no sentido de que as variáveis domésticas
também devem ter seu peso causal considerado quando da análise da política externa. Como
essa não está apartada das demais políticas públicas, foi cabível argumentarmos que o
insulamento vem perdendo relativamente sua força explicativa como característica hodierna
234

do Itamaraty. As disputas intraestatais determinam uma política externa passível de mudanças


e, ainda que conserve seus traços gerais, e sujeita à politização. Especificamente quanto ao
objeto de estudo desta pesquisa, vimos que possíveis dissensos na formação de preferências
dos ministérios trabalhados foram contidos pela configuração político-partidária interna, pela
compatibilização das agendas ministeriais e pela conservação da autoridade do MRE como
decisor central.
A formulação da política externa entre 2003 e 2010, a nosso ver, continuou como
quasi monopólio do Itamaraty. Isso não significa que não tenha havido certas inflexões nesse
processo, com a presença de outros atores principalmente no extremo de implementação. A
temática da Cooperação Sul-Sul (CSS) ter ganhado tamanha força durante a gestão de Lula da
Silva e Celso Amorim é mostra de que a influência da corrente petista, juntamente com a
capacidade de articulação e de ação de outros atores, especialmente dos ministérios federais,
foi clara.
Nesse sentido, a dinâmica do processo de tomada de decisões em política externa
também foi alterada, pois, ao assumirmos a política externa como uma política pública,
estamos “reconhecendo que sua formulação e implementação se inserem na dinâmica das
escolhas de governo que, por sua vez, resultam de coalizões, barganhas, disputas, acordos
entre porta-vozes de interesses diversos”, no sentido de não ser a política externa uma política
de “autointeresse esclarecido”, mas resultante de uma dinâmica doméstica complexa.
(PINHEIRO; MILANI, 2012, p. 334).
Em face a essas considerações, é mister a academia dar seguimento e aprofundamento
– o que de fato já vem ocorrendo com cada vez mais frequência – a análises que busquem
apontar algumas questões: a tendência de ruptura do insulamento, com o amadurecimento do
processo democrático e a aceleração imposta por trocas transnacionais, é estrutural? Quais as
consequências mais amplas desse processo para a formulação da política externa em geral e
para relações bilaterais específicas do país? A tendência reativa do corpo diplomático à
participação de outros atores na política de cooperação tende a diminuir com a chegada a
postos mais avançados na carreira das “turmas de cem” do Instituto Rio Branco da gestão de
Amorim?
Além disso, como nosso enfoque foi a cooperação em segurança alimentar para com a
África, muitos outros estudos podem ser feitos não só a problematizar o nosso, mas também
com respeito a outras regiões e a outras agendas de cooperação internacional do Brasil. Isso
nos remete a outra provocação: a cooperação sul-sul como instrumento de política externa é
235

fenômeno que foi decisivamente introjetado no corpo diplomático ou tende a ser conjuntural?
Tornar-se-á o Brasil provedor líquido de cooperação, em âmbito geral?
A grande maioria desses questionamentos parece ainda sem resposta, a aguardar o
desenrolar dos fatos e o distanciamento cronológico necessários. De qualquer forma,
consequências indeléveis para a compreensão da política externa serão prospectadas.
Advogamos, também, que frente à complexidade da dinâmica doméstica e seus
transbordamentos internacionais, o estudo de processos decisórios é interessante ferramenta
com o condão de clarificar algumas interações intraestatais ainda pouco trabalhadas.
Já é possível observarmos algumas decorrências empíricas desta dissertação, como a
eleição de José Graziano da Silva, ex-coordenador do Programa Fome Zero, um dos
principais pontos da campanha presidencial de Lula da Silva, para o cargo de diretor-geral da
FAO. O logro – que contou com ativo engajamento da diplomacia brasileira e do ex-
presidente – foi assegurado por votação em bloco da União Africana. Não é de se estranhar
que o compartilhamento de técnicas relativas à segurança alimentar com os parceiros do
continente, a pedido desses, foi essencial para a vitória no pleito da instituição multilateral.
Tão logo assumiu o cargo, Graziano afirmou que a prioridade de sua gestão é o
combate à fome e à pobreza no continente africano333, o desenvolvimento rural e a
interlocução adequada entre as distintas agendas do conceito de segurança alimentar. A
legitimidade conferida ao Brasil pela votação conjunta da África - das principais regiões
interessadas na adoção de programas de origem brasileira - é sinal de que a cooperação sul-sul
é poderoso instrumento de política externa com a perspectiva de gerar resultados. Cita-se,
também, a vitória brasileira no contencioso do algodão na OMC.
Com apoio ativo do Cotton Four, o sucesso diplomático brasileiro assegurou mais um
capítulo nas imbricadas discussões de liberalização do comércio agrícola mundial, um dos
entraves mais severos ao desenvolvimento de um sem número de nações. Se isso ocorre com
forte elemento de retórica, donde subjacem interesses mais diretos do Brasil, não deixa de ter,
alinhado, componente de ganhos absolutos e de promoção de alterações soft na ordem
internacional que privilegie também o sul geopolítico.
A escolha do Brasil para sede da Copa do Mundo e do Rio de Janeiro como cidade
organizadora das Olimpíadas também são dois exemplos de que a formalização de consensos
– respectivos ao adensamento prévio de relações bilaterais e inter-regionais – são uma
constante na dinâmica sul-atlântica. Parece-nos claro que durante Lula da Silva o discurso de
333
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-africa-sera-minha--prioridade-diz-graziano-
,818301,0.htm, acesso em: 04/05/2013.
236

revisionismo soft foi sustentado na costura dos mais distintos arranjos de coalizão sul-sul que
provessem o Brasil de sustentação em seus pleitos multilaterais e em sua “ascensão pacífica”
como potência emergente e global player.
Além disso, pode-se mencionar a vitória do embaixador Roberto Azevêdo na disputa
pelo cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, em maio de 2013.
Superando candidato mexicano Herminio Blanco, mais identificado com os interesses de
Estados Unidos, França e Reino Unido, Azevêdo contou com o apoio substancial de países de
América Latina, Ásia, BRICS, Caribe, CPLP e União Africana. Ao longo da disputa, o
brasileiro visitou 47 países e acompanhou a presidente Dilma Rousseff em seus encontros
com líderes do sul geopolítico, processo que foi decisivo para o logro em âmbito multilateral
e consoante à ideia de que a composição de consensos com vistas ao revisionismo soft deve
continuar uma constante durante o a presidência da mandatária334.
O governo de Dilma Rousseff (2010-2014) parece ter dado continuidade aos esforços
endógenos de superação da insegurança alimentar, nas suas diversas vertentes. Mantendo
ênfase em programas como o PAA e o PRONAF nacionais, essa administração petista – a
terceira em sequência – lançou o Plano Brasil sem Miséria335, que consiste numa ampliação
de algumas diretrizes do Fome Zero oriundas do período de Lula da Silva, com abordagem
sistêmica e intersetorial da segurança alimentar. Com vistas à inclusão produtiva de parcelas
da população que vivem abaixo da linha de pobreza extrema (R$ 70 per capita), esse
programa, tal qual na gestão anterior, envolve a articulação entre MDA e MDS.
Notório perceber que, ainda que a administração Rousseff não tenha dispendido a
mesma atenção – em análise geral da política externa – para com o continente africano que
durante a presidência de Lula da Silva, no que diz respeito à cooperação em segurança

334
Azevêdo teria recebido 93 dos 159 votos possíveis. “Mr Azevêdo reportedly used a Brazilian air force jet to
fly around Africa and Central America – at one stage visiting three African countries in a day. (…) Ms
Rousseff’s most recent lobbying came at a meeting of South American and African countries. After each meeting
with an African leader, with Mr Azevêdo at her side, she is said to have raised one finger in triumph – meaning
one more vote”. O trecho correspondente na tradução é: “O Sr. Azevedo declaradamente utilizou um avião da
Força Aérea Brasileira para voar pela África e pela América Central – em um momento visitando três países
africanos em um dia. (...) O mais recente lobby da Sra. Rousseff veio após um encontro entre países sul-
americanos e africanos. Depois de cada encontro com um líder africano, com o Sr. Azevedo ao seu lado, foi dito
que ela teria levantado um dedo em triunfo – significando mais um voto”. Disponível em:
http://www.ft.com/intl/cms/s/0/35be20de-b7e9-11e2-9f1a-00144feabdc0.html#axzz2T148zzjE, acesso em:
11/05/2013.
335
Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/06/dilma-lanca-programa-brasil-sem-miseria-e-
amplia-bolsa-familia.html, acesso em: 02/05/2013.
237

alimentar, das 80 delegações estrangeiras recebidas pelo MDS em 2011, 11336 demonstraram
interesse específico nas práticas e nos conhecimentos associados ao Plano Brasil sem
Miséria337. Isso indica que mesmo que o MRE não atue com semelhante afinco nas relações
bilaterais sul-atlânticas, as preferências e influências dos outros ministérios continuarão a ser
de necessária consideração e importância para o processo decisório.
Talvez mais do que durante o período Lula da Silva, quando a corrente de ação e de
pensamento dos autonomistas e a chancelaria de Celso Amorim tenderam a valorizar a África
como componente essencial da inserção internacional do Brasil, o que levou à maior força
decisória de ABC e MRE na condução da política de cooperação, no mandato de Rousseff
exista certa inflexão. Por não ter sido encarado da mesma maneira o diálogo cooperativo para
com o continente africano em aspecto amplo da política externa, MDA, MDS e MAPA
podem ter vislumbrado maior capacidade de influência no processo decisório, visto que a
cooperação em segurança alimentar tem sido continuada – ao menos até este momento.
Outra visão possível é a de que o governo Rousseff tenha se focado em rever o
africanismo da política externa brasileira, de forma a prover maior capacidade de gestão das
iniciativas de cooperação sul-sul colocadas em marcha no período anterior. De fato, até
fevereiro de 2013, a mandatária realizou apenas três visitas a parceiros africanos: África do
Sul, Moçambique e Angola. Isso não impediu, contudo, a continuidade na provisão de
recursos da ABC para a região. De 2012 a 2014, dos R$ 263 milhões de orçamento da
agência, R$ 138 milhões serão destinados a 42 nações africanas; esses dispêndios, entretanto,
vêm ocorrendo sem mesma a proliferação de projetos conforme ocorria anteriormente338.
Apesar do menor ensejo às parcerias sul-sul como estratégicas para a consecução dos
pleitos e dos interesses internacionais do Brasil durante o período de Rousseff, a dinâmica de
atuação interministerial continua como uma constante na internacionalização de políticas
públicas nacionais. Essa diferenciada postura de política externa – o que nos permite dizer que
houve alteração nas escolhas dos formuladores diplomáticos no interior do Itamaraty,
possivelmente com relativa perda de força dos autonomistas – poderá propiciar mudanças
mais visíveis na política de cooperação com a África. Em que medida isso poderá ocorrer é
algo que ainda não nos parece claro.

336
Guatemala, Colômbia, Inglaterra, Paquistão, África do Sul, Alemanha, entre outros.
337
Disponível em: http://www.brasilsemmiseria.gov.br/relacoes-internacionais, acesso em: 04 de maio de 2013.
338
Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/02/130219_dilma_africa_apresentacao_jp_jf.shtml, acesso em:
04 de maio de 2013.
238

A tendência, aparentemente, é que a temática da CSS e seu lugar na política externa


brasileira continuem a ser assuntos a atrair a atenção dos estudiosos da área. As conexões
entre essas práticas cooperativas, a formulação diplomática e as relações bilaterais devem ser
valorizadas a fim de que compreendamos os passos já realizados e os futuros a serem
empreendidos pelo Brasil em sua dimensão internacional. Advoga-se que, realizá-lo sem levar
em consideração a perspectiva africanista seria algo fadado à incompletude. Olhar esse, que é
um dos vetores mais poderosos e tributários da construção da identidade nacional, é condição
básica para melhor perceber o que vem adiante.
239

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