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ROMÂNICA

R E V I S TA D E L I T E R AT U R A
ROMÂNICA
REVISTA DE LITERATURA

Departamento de Literaturas Românicas


Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

N.º 18

Redacção: Teresa Amado, Fernando Guerreiro,


João Figueiredo
Consultores: José Augusto Cardoso Bernardes (U. de Coimbra), Ettore
Finazzi-Agrò (U. di Roma “La Sapienza”), Silvina Rodrigues Lopes (U. Nova
de Lisboa), Elena Losada Soler (U. de Barcelona), Violante Magalhães (Esc.
Sup. de Educação João de Deus), Rosa Martelo (U. do Porto), Anne Marie
Quint (U. de Paris – Sorbonne Nouvelle)

Publicação Anual

© 2009 Departamento de Literaturas Românicas


da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
www.fl.ul.pt

Paginação e arte final: Inês Mateus


Impressão e acabamento: Textype
Tiragem: 300 exemplares

ISSN: 0872-5675
Depósito legal: ?????????????
Paratexto
11 Cristina Sobral A retórica do prólogo no Trautado da Vida do Infante
D. Fernando
27 Isabel Almeida O que dizem «licenças». Ecos da fama da Clavis
Prophetarum
59 Ernesto Rodrigues Dedicatória: relação e discurso
77 Maria das Graças Moreira de Sá O paratexto em Oliveira Martins
91 Maria do Céu Estibeira Uma perspectiva da Marginalia de Fernando
Pessoa
109 Luís Mourão De fora para dentro e outra vez para fora: operações
paratextuais no bairro de Gonçalo M. Tavares
127 João Almeida Flor Na Periferia da Tradução Literária
137 Pedro Flor Retratos e Miniaturas no Renascimento em Portugal
157 Fátima Ribeiro de Medeiros Caminhos da Ilustração Portuguesa do
Livro para Crianças e Jovens
188 Rita Taborda Duarte A Palavra Imagem

Outros Estudos
195 José Miguel Martínez Torrejón Víspera de la Batalla. El Hervidero
Manuscrito Portugués Ante la Invasión de Marruecos
218 Pablo Javier Pérez Lópes Fernando Pessoa, el nietzscheano involuntario
Recensões
247 White, Landeg, The Collected Lyric Poems of Luís de Camões, 2008 (João
Almeida Flor)
253 Patricia Anne Odber de Baubeta, The Anthology in Portugal: a new
approach to the history of Portuguese literature in the twentieth century,
2007 (João Almeida Flor)
257 António M. Machado Pires, Luz e Sombras no Século XIX em Portugal,
2007 (Maria das Graças Moreira de Sá)
260 Jovens ensaístas lêem jovens poetas, Pedro Eiras (coord.), 2008 (Ariadne
Nunes)
Paratexto
A retórica do prólogo no Trautado da Vida do Infante
D. Fernando
Cristina Sobral
Universidade de Lisboa

No contexto da guerra de conquista norte-africana levada a cabo pelos


reis da dinastia de Avis de Portugal, uma figura assumiu importância central
na construção de instrumentos ideológicos e simbólicos eficazes no
prosseguimento dos objectivos políticos delineados a partir de D. João I: o
Infante D. Fernando, seu quinto filho varão.
São sobejamente conhecidos os factos que levaram este Infante, em
colaboração com seu irmão D. Henrique, à empresa da conquista de Tânger
(1437) e ao desastre militar que motivou a sua prisão1. Tomado como refém
da entrega de Ceuta, viria a morrer em Fez, ao fim de seis anos de cativeiro,
que sofreu na companhia de alguns dos seus servidores. Entre eles estava o
seu secretário, João Álvares, que lhe sobreviveu e que foi resgatado pelo
Infante D. Pedro em 1448. Tomado sob a protecção de D. Henrique, é a João
Álvares que caberá escrever a memória dos acontecimentos passados em
Marrocos e integrá-los numa biografia edificante do Infante D. Fernando
que, legitimando o seu sofrimento e abandono, argumentasse o carácter
providencial do desastre de Tânger e a santidade martirial de um príncipe
que haveria, a partir de então, de ser elevado e venerado como um dos ícones
da guerra africana2.
O Trautado da vida e feitos do muito vertuoso senhor ifante Dom Fernando,
escrito por João Álvares pouco depois de 14513, constitui, assim, um dos mais
interessantes e férteis relatos memiorialistas do séc.XV ibérico e tem sido

1 A bibliografia sobre o assunto é muito vasta e pode ser consultada em Fontes, Percursos, pp. 72-73.
2 Sobre a promoção do seu culto v. Fontes, Percursos, pp. 196-198.
3 A edição crítica de Calado (Álvares, Trautado) cujas páginas citarei, toma como testemunho-base

um manuscrito (BITAGAP Manid 1065) copiado em Portugal, em 1451-60 (Calado, Frei João
Álvares, p. 74) e conservado na Biblioteca Nacional de Madrid (códice 8120).

Românica 18, 2009


12 Paratexto

objecto de diversos estudos. Ultrapassada a dificuldade da sua integração nos


géneros narrativos tradicionais4, a obra deve ler-se como uma narrativa de
historicidade comprovada documentalmente, que apresenta ao leitor uma
selecção e uma interpretação de factos históricos adequada à demonstração
da santidade da personagem biografada, linha de análise já seguida por
Fontes no seu estudo (pp. 163-167).
Neste género de textos, a tradição impõe quase sempre a presença de um
prólogo, cuja estrutura e tratamento tópico a teoria retórica previa5. Entende-
-se por prólogo o discurso autónomo que tem uma distribuição retórica e uma
significação próprias, constituindo uma unidade literária, situado no começo
da obra de carácter literário, cuja factura está orientada para cativar a atenção
do público numa atmosfera de entusiasmo emotivo e criar uma expectativa
nova e interessante, que o faz prosseguir na leitura ou audição6. Foi definido
por S. Isidoro pela sua natureza não narrativa e pela sua localização anterior
à narração7. No Trautado, correspondem a esta definição não uma mas três
unidades textuais (cinco páginas na edição, correspondentes a quase dois
fólios do testemunho), assinaladas no manuscrito com letrinas rubricadas e
decoradas. A primeira unidade paratextual (a que chamarei Prólogo I) inicia-
se no fl. 1 sem a anteposição de qualquer rubrica intituladora. A segunda
(Prólogo II) segue-se a uma epígrafe de incipit (“Começase o trautado da vida
e feitos do mujto virtuoso Senhor Ifante dõ fernãdo”), rubricada e demarcada
do texto por uma linha de espaço antes e outra depois, e a terceira (Prólogo
III) distingue-se de forma menos forte, sem espaçamento distintivo e apenas
introduzida pela letrina, que faz avançar duas linhas de texto.
Existem entre os três prólogos níveis de articulação diferentes: o segun-
do e o terceiro parecem mais interdependentes e mostram, pela anteposição

4 Alguns autores hesitaram em classificar o texto como relato historiográfico ou hagiográfico


(v. Calado, Frei João Álvares, pp. 261-264; Mattoso, “Le Portugal“, pp. 95-96; Krus, “Crónica”,
p. 174; Nascimento, “Hagiografia”, p. 309). Porém os estudos sobre hagiografia têm mostrado
que esta dicotomia não deve ser tida em conta quando tratamos de textos medievais (v. por
exemplo Heffernan, Sacred Biography; Lifshitz, “Beyond positivism”; Sobral, “O Modelo”).
5 Curtius, La Littérature Européenne, vol. I, pp. 108-110, 132-135; Janson, Latin prose prefaces;

Lausberg, Manual, vol. I, pp. 240-260; Minnis, Theory; Montoya Martinez, Riquer, El prologo;
Nascimento, “Hagiografia”, p. 307.
6 Montoya Martinez, Riquer, El prologo, p. 150.

7 “Prooemium est initium dicendi. Sunt enim prooemia principia librorum, quae ante causae

narrationem ad instruendas audientium aures coaptantur. Cuius nomen plerique latinitatis


periti sine translatione posuerunt. Hoc autem vocabulum apud nos interpretatum praefatio
nuncupatur, quasi praelocutio” (Isidoro de Sevilha, Etimologias, vol. I, p. 548).
Cristina Sobral 13
do incipit, manter uma relação mais estreita com a obra, enquanto o primeiro
parece manter uma maior exterioridade relativamente a ela8. O facto não
deixa de surpreender9, não só porque o seu estatuto paratextual o equipara
aos outros dois, como porque nos três a estrutura e a matéria se repetem
em termos gerais, colocando desde logo a questão da pertinência ou da con-
veniência de três prólogos à primeira vista redundantes, redundância que
parece mais notória entre o Prólogo II e o Prólogo III, em consonância com a
sua mais estreita articulação na estrutura externa do manuscrito.
Vejamos o Prólogo II10. Abre com uma afirmação sentenciosa (“Quanto
som dignos de perpetua memoria aqueles que neste mundo viverom e
obrarom vertuosamente a razom no.lo demonstra”), confirmada por uma
auctoritas (S. Gregório). A sentença, que afirma a importância exemplar da
memória, acolhe um tópico historiográfico muito comum11. Segue com a
apresentação das circunstâncias em que o autor se dispõe a escrever, descritas
em tom emotivo e realista, apontando desde logo, por um lado, para o valor
do seu relato testemunhal, e, por outro, para o enquadramento martirial em
que a narrativa será desenhada: “já esperto das temerosas visões em outro
tempo conseguidas sob poderio dos mouros, roubado da conversaçom
daquele Senhor vertuoso, em cuja conpanha, sem alheo costrangimento, me
somety ao pesado jugo do infiel cativeiro, e dey aa memoria aquelas cousas
que muyto contristom a minha alma”. Seguindo a tópica retórica tradicional,
João Álvares anuncia em seguida a obediência a uma encomenda superior
(“porque o mui alto e muy poderoso prinçepe ho Senhor Ifante dom Anrique
me mandou”) e apresenta a matéria tratada (“leixase em escripto o que sabia
da vida e feitos de seu irmãão o Ifante dom Fernando, o qual antre os mouros,

8 Isso mesmo reconheceu o editor, que interpretou a primeira unidade paratextual como Prólogo
e considerou, inadequadamente, as outras duas como “aquilo que Frei João Álvares escreveu no
sentido de traçar a biografia do Infante Santo” (Calado, Frei João Álvares, pp. 90-91), integrando-
-as na numeração sequencial dos capítulos, apesar de a matéria não ser narrativa.
9 A surpresa foi sentida também por Calado, que acaba por reconhecer que a matéria que

distingue como primeiro e segundo capítulos (Prólogos II e III) não é narrativa e que poderia ser
uma continuação do prólogo, apesar de separada dele pelo incipit. De forma algo confusa, acaba,
porém, por validar a sua primitiva leitura, considerando que “os dois primeiros capítulos ficam
perfeitamente limitados dentro dos seus objectivos”, os quais, porém, não define claramente
(Calado, Frei João Álvares, pp. 91-92).
10 Apresento em três quadros finais a estrutura retórica dos prólogos, no texto fixado por Calado

(Frei João Álvares). Por essa razão dispenso-me de mencionar número de página quando cito os
prólogos.
11 Bourgain, “Les prologues des textes narratifs”, p. 246.
14 Paratexto

neestes dias, por eixalçamento da santa ffe católica fez seu acabamento”).
Reafirmando a singularidade do seu testemunho (“por eu seer ao presente a
mais principal e achegada testymunha destes feitos”) e a obediência ao senhor
que o patrocina (“p[e]ra conprir mandado do dicto Senhor, me dispus ao
seguinte trabalho”), termina com a indispensável afirmação de modéstia
(“fraqueza e boto entender”, “fraquo entender”, “rudo engenho”), que reclama
auxílio divino (“ao todo poderoso Deus peço ajuda e favor, e graça aaquela
Senhora Virgem sua madre”).
Tal como o segundo, o terceiro prólogo abre igualmente com uma
sentença sobre a importância exemplar da memória. Não se encontra a
confirmação de autoridade mas, em seu lugar, uma amplificação do tema,
que sublinha a importância da escrita no conhecimento dos notáveis feitos
dos antigos, a lembrar ecos da historiografia afonsina, bem conhecida em
Portugal12. De novo são apresentadas as circunstâncias em que o autor se
dispõe a escrever, acentuando-se agora a emotividade do discurso através de
um expressivo paralelo entre o cativeiro do Infante e seus companheiros e a
última ceia de Jesus e seus apóstolos (Jo. 13.1; 15.16; 22. 26):
…eu, que fuy dos chamados e escolhidos pera o convite postumeiro,
onde em lugar de pam se comeu amargura e o bever com lagremas
foy mesturado, de que se escrepve que, como ho Senhor muito
amase os seus, na fim os amou muito mais e, feita a çeea e eu
avondado de tam tristes manjares, sobre o regaço do Senhor me
acostey, onde me muytos sagredos forom revelados.

Este paralelo, que constitui o núcleo central do Prólogo III, é rico em


significados:
1) implica desde logo o sentido martirial da morte do Infante, pela
evidente imitatio Christi;
2) credibiliza o discurso do autor, pelo testemunho directo e pela
partilha do sofrimento, emotivamente evocado, pela comparação
com S. João, o discípulo a quem segredos foram revelados e que
estava, portanto, na posse de informação privilegiada pela sua
intimidade com Jesus;
3) fundamenta o dever de prestar testemunho e de revelar uma
verdade inquestionável, que justifica a redacção da obra;

12 O tópico, presente na Primera Crónica General de Alfonso X (vol. I, p. 3) e na Crónica Geral de


Espanha de 1344 (vol. II, pp. 4-6), era bem conhecido pelos cronistas da dinastia de Avis (Zurara,
Guiné, pp. 5-6) e pelo próprio rei D. João I (Livro de Montaria, p. 2).
Cristina Sobral 15
4) capta a benevolência do público pela identificação emotiva;
5) constrói, pelo uso da imagem, a delectatio.
Assim, ao mesmo tempo que obtém a benevolentia compassiva do leitor
e que o seduz pelo deleite, João Álvares insere a narrativa num género concre-
to, as paixões dos mártires, condicionando a leitura que se seguirá e criando
um horizonte de expectativas favorável à matéria hagiográfica da obra.
O modus agendi, que os autores de prólogos normalmente declaram
explicando fontes e métodos de selecção ou compilação, simplifica-se pela
ausência de fontes escritas, provindo toda a informação de relatos ouvidos e
do conhecimento directo do autor (“apresento este trautado, primeiramente
do que me foy contado e depois do que vy”). A parte final do prólogo é
ocupada com a invocação do encomendador, ao qual a obra é dedicada (“com
reverença de vosa exçilente Senhoria e sob coreiçom e enmenda de vossa muy
nobre e vertuosa descripçom…espero que, pelo seu, este tractado vos seja
mais apto e graçioso”), intercalada com a inevitável invocação da ajuda divina
e modesta afirmação de “inorançia e sinpreza”.
O paralelismo estrutural dos Prólogos II e III é, assim, evidente (v. quadros
finais), tornando-se necessário explicar a duplicação. Na verdade, cumprem
diferentes funções. Ao contrário do segundo, onde o Infante aparece mencio-
nado na 3ª pessoa, no terceiro prólogo desaparece o tópico da obediência,
substituído pela dedicação da obra ao Infante D. Henrique, ao qual o autor se
dirige na 2ª pessoa, o que faz este prólogo equivaler a uma carta dedicatória.
O dever de registar a memória devida aos virtuosos, apresentado como a
utilitas da obra no exórdio de ambos os prólogos, torna-se uma motivação
mais premente no terceiro, pela antevisão das penas merecidas pelo silêncio
(“nom som ousado d·encobrir[…] o que eu, calando, de seer mereçedor de
muitas penas me nom poderia escusar”). Por fim, o paralelismo evangélico
construído no Prólogo III reafirma, agora mais poderosamente, o estatuto de
mártir do Infante, apenas enunciado no Prólogo II, e atribui ao autor um grau
de credibilidade inultrapassável devido à conotação sacral da sua própria
equiparação ao evangelista João, a que a coincidência do nome dá ainda maior
poder de sugestão, e que lhe permitirá conduzir a narrativa sem admitir
qualquer questionamento. O reforço obtém-se ainda pela explicitação, no
Prólogo III, do modus agendi, ausente do outro prólogo, e que neste usa o verbo
sensorial (“vy”), certificador da verdade. É interessante que em nenhum dos
dois prólogos a veracidade da narrativa seja explicitamente afirmada nem
argumentada, apesar de se contar entre os tópicos habituais dos prólogos,
16 Paratexto

nomeadamente dos hagiográficos13. Aparentemente, a credibilização do au-


tor construída, da qual se infere um grau absoluto de veracidade, é suficiente.
João Álvares terá planeado estes dois textos introdutórios para poder
dirigir-se a dois destinatários diferentes: o comum leitor, no Prólogo II, e, no
Prólogo III, o seu patrocinador, D. Henrique, a quem o conteúdo da obra
deveria agradar, não só pela necessidade de justificar o patrocínio mas
sobretudo por João Álvares ter plena consciência da importância política que
tinha a interpretação da morte de D. Fernando como um martírio e por saber
do empenho do Infante Navegador nessa interpretação. Assim, o prólogo que
lhe é dedicado parece ter sido pensado para cumprir também a função
de confirmatio da proposta apresentada no prólogo anterior, onde o “acaba-
mento” do “Ifante dom Fernando[…] antre os mouros” é declarado “por
eixalçamento da santa ffe catolica”.
Admitindo esta leitura, coloca-se em seguida a questão da funcionali-
dade do Prólogo I, aquele que apresenta, na estrutura externa do manuscrito,
uma maior independência. O que mais marcadamente distingue este prólogo
é, além da delimitação clara, na sua estrutura retórica, de uma refutatio, a
contaminação de todo o texto por um discurso notoriamente orientado para
a contradição dos opositores (v. quadro final). Aqui a sentença exordial toma
como tema a verdade, afirmando o mérito dos que dela dão testemunho e
vinculando-o ao mérito dos evangelistas. Evoca-se, portanto, a verdade
inquestionável, sancionada por Deus, que João Álvares articula causalmente
(“porende eu”) com o seu próprio testemunho. A credibilização da sua voz
autoral, também tratada nas causae compositionis dos dois outros prólogos,
assume neste pormenores biográficos inéditos, que traçam mais nitidamente
a linha tangencial das vidas do biógrafo e do biografado. O segmento textual
seguinte, a refutatio, aponta hostilmente o dedo aos “maldizentes” e “sofisma-
dores”, já não aqueles, abstractos, virtuais, de que João Álvares, enquanto
autor, se demarcara no exórdio, mas aqueles cujas vozes conhece e que, muito
concretamente, gostaria de poder calar (“posto que minha mãão abranjer
nom possa a poher.se sobre as bocas”), cujas línguas gostaria de “moderar e
refrear” e cujo poder é bem real, visto que, se apenas o desejo da fama o
movesse, encontraria nesse poder boas razões para receio (“nom por eu
desejar tanto o louvor desta obra que muito mais nom devese reçear de me
apoer aos contrairos sofismadores”). Mas, como afirmará também nos outros

13 Braga, “Prologhi delle opere in prosa”, pp. 122-123; Dolbeau, “Les prologues de légendiers
latins”, p. 345.
Cristina Sobral 17
prólogos, João Álvares obedece ao encargo que lhe fizera D. Henrique, senhor
sob cuja protecção crê estar a salvo. É à certificação de verdade, expressa
enfaticamente em triplicação de adjectivos (“cousas çertas e manifestas e em
todo vereficadas”) e enumeração verbal (“o vy e ouvy e assy o afirmo”), que
está subordinada a apresentação da materia, contaminada pela refutação
vigorosa do seu contrário (“nom em fingidas patranhas nem em ouçiosas
fabulas, que seguem empos dos ventos e careçem de toda verdade”, “nom
mento”, “do contrario me sento por pelegrim e estranho”). Ganha a propositio,
com a invocação do testemunho divino, um tom assertivo, categórico, que
não se encontra nos outros prólogos. É interessante notar que da conclusio
está ausente o motivo da humilitas, aliás escassamente presente no Prólogo I,
e que, além da petição de ajuda divina, vemos aparecer a evocação de outro
protector (ausente dos outros prólogos), capaz de se sobrepor ainda à
protecção do Infante D. Henrique, o próprio rei D. Afonso V, e repetir-se, pela
última vez, a invectiva contra os adversários. É também única neste prólogo
a identificação explícita do autor (“eu, frey Joham Alvarez”), amparado no
seu título (“cavaleiro da Ordem d’ Avis”) e na sua ligação institucional a um
grande senhor (“e da casa do Senhor Ifante dom Anrique”).
A certificação de verdade, a contradição dos opositores, a alegação de
protecção poderosa e o reforço da autoridade autoral, marcantes neste prólo-
go, esclarecem a razão da sua existência. Enquanto os outros dois podem ser
considerados prólogos a nostra persona, em que o autor apresenta as circuns-
tâncias pessoais que o impelem a escrever uma obra para a qual ninguém
estaria mais habilitado e nos quais procura captar a benevolência do público
pela identificação emotiva e pelo deleite, o Prólogo I é um prólogo ab
adversariorum persona, que visa o vitupério dos opositores14. A necessidade
de um prólogo assim parece apontar para um contexto de recepção de previ-
sível animosidade15. Não devemos deixar-nos iludir pelo facto de nos três
prólogos encontrarmos estruturas e tópicos da retórica tradicional. Apesar
de serem os prólogos muitas vezes vistos como lugares-comuns despidos de
referencialidade, creio, pelo contrário, que os moldes formais da retórica

14 Lausberg, Manual, vol. I, pp. 250, 252.


15 Podemos encontrar um caso similar num dos prólogos de Odão de Cluny à Vida de S. Geraldo
de Aurillac, de cujo estatuto de confessor duvidavam muitos, que não viam como um poderoso
conde o poderia ter alcançado. O hagiógrafo, prevendo as objecções, despende boa parte do pró-
logo, concebido para esse fim, explicando o método usado para apurar a verdade, e refutando os
que questionam a santidade de Geraldo (Braga, “Prologhi delle opere in prosa”, pp. 123-126).
18 Paratexto

ofereciam em muitos casos um modus dicendi, usado pelos autores para mais
eficazmente transmitirem ao público os conteúdos pretendidos.
Sabemos que, logo em 1437, o desastre de Tânger foi interpretado na
sociedade portuguesa sob diferentes perspectivas. Dos fidalgos que tinham
participado no cerco, alguns contestaram abertamente a actuação do Infante
D. Henrique, vendo na prisão de D. Fernando o resultado de uma desastrada
intervenção militar, interpretação refutada, aliás, pelo rei:
quamdo o Iffante Dom Hamrique ueo de Tamger, porque algúús
daquelles fidallguos que com elle forom, queremdo emcobrir seus
falleçimentos, deziam algúuas cousas comtra o Iffamte, aas quaaes
seu jrmãao nom quis dar nenhuúa ffe, amte dezia que seu jrmaão
nom poderia fazer cousa que nom fosse justa e boa. mas que elles o
deziam por se escusar, do que comtra elles rrazoadamente podia
seer dito.16
Outros adoptam oposta atitude, lançando as bases de uma interpretação
providencialista do cativeiro do Infante Santo:
o soberano não se deixou influenciar pelo clima de contestação às
decisões tomadas pelo Navegador, patente em parte nos homens
que regressavam de Tânger, elogiando mesmo a atitude de Álvaro
Vaz de Almada, que, antes de se apresentar ao rei, “logo de finos
panos e alegres coores se vestio, a sy e a todollos sseus[…] com sua
barba feyta e o rosto cheo d’alegria”, para depois, na sua presença,
enumerar as diversas razões pelas quais D. Duarte “devia seer muy
alegre e contente, estimando æ nada ho cativeiro do Ifante seu
irmãao, que era huum homem soo e mortal, em que avia muytos
remedios, em respecto da grande fama que naquelle fecto em seu
nome se ganhara”.17
O assunto da entrega de Ceuta e da libertação de D. Fernando é longa-
mente discutido, em Janeiro-Fevereiro de 1438, nas cortes de Leiria, onde os
partidos a favor e contra a entrega de Ceuta se manifestam, estando o Infante
D. Henrique entre os últimos. D. Duarte morre em Setembro de 1438, dei-
xando o reino mergulhado numa grave crise política que só virá a resolver-se,
depois da batalha de Alfarrobeira (1449), durante o reinado de D. Afonso V.
Em 1443, a notícia da morte do Infanto Santo desencadeia comoção social:
a “morte deste Yfante por sua calydade e desemparo foy muyto sentyda e

16 Zurara, Ceuta, p. 130.


17 Fontes, Percursos, p. 101, que cita Pina, D. Duarte, p. 563.
Cristina Sobral 19
pranteada neste Reyno, e priyncipalmente dos Yfantes seus Yrmãos, que lhe
mandaram fazer muy honrradas e sollenes exequyas e saymento”18. A ferida
não sarou facilmente e ainda sangrava quando, em 1451, durante as festas do
casamento da infanta Leonor com Frederico III, se fez um discurso público
relatando “de que modo Dom Fernando[…] se entregou à morte pela pátria e
libertação do seu povo em África”, desencadeando entre o povo “grande e
alto clamor” pelo príncipe “martirizado” e emocionando mesmo o embai-
xador Nicolau Lanckman19. Se considerarmos que este discurso se integrava
no programa oficial das festas oferecidas pelo rei para celebrar o casamento
de sua irmã com o imperador alemão, há que entendê-lo como elemento de
uma estratégia oficial, promovida pelo rei, para divulgar nos centros europeus
de poder político a figura do seu tio como mártir da Cristandade. No reino,
no final do século (1468-78), o valor sacrificial da morte do Infante tinha sido
assumido como o emblema do desastre de Tânger e encontra eco em textos
memorialistas20.
Entre os leitores de João Álvares contar-se-iam muitos dos que haviam
participado na tentativa falhada de conquistar Tânger e muitos dos que
haviam defendido a entrega de Ceuta como resgate pela vida do príncipe.
Entre eles, alguns estariam certamente dispostos a discutir a interpretação
providencialista promovida oficialmente. A estratégia do biógrafo previne
uma recepção desfavorável, estabelecendo assertivamente, no primeiro pró-
logo, a sua autoridade e revestindo-se de atributos morais, sociais e de ligação
política que tornam a sua posição inatacável. Isso permite-lhe, ao longo da
narrativa, acolhendo embora o desejo manifesto de D. Fernando de ser resga-
tado – desejo conhecido de todos pelas cartas enviadas ao reino nesse sentido
– ir atribuindo ao Infante gestos e sentimentos em que, progressivamente, o
espírito do martírio se vai manifestando por uma crescente indiferença pelo
sofrimento e pela aceitação da morte21. Não era possível a João Álvares,
narrando factos tão recentes e testemunhados, escamotear as várias diligên-
cias empreendidas por D. Fernando para obter o seu salvamento ou a fuga,

18 Pina, D. Afonso V, p. 691.


19 Leonor de Portugal, pp. 37-39.
20 Por exemplo em Paulo de Portalegre: “do devoto Senhor ho Imfante Dom Fernãdo que moreo

antre hos imfieis por livrar os seus”, “depos a primeira ida de Tangere, quando ficou laa e se deu
en arrefés por livrar a todos ho Imfante Dom Fernando” (Paulo de Portalegre, Novo Memorial,
pp. 152, 162).
21 Álvares, Trautado, pp. 42, 43, 58, 79.
20 Paratexto

nem o seu desejo de abreviar a dor22. Mas era-lhe possível transmitir aos
vindouros os segredos que só ao fiel secretário haviam sido revelados e que
lhe permitiam contar mais do que os gestos presenciados: os pensamentos
íntimos do Infante, as considerações interiores que haviam, afinal, pesado
nas suas decisões:
E nom enbargando que este Senhor conheçese o trabalho e perigoo
que lhe seriia poendo.se em mããos e poder de tam maa jente, como
aquele que de bõõa vontade consentyra de dar sua vida, logo aly,
por serviço de Deus e por livramento de todos, ele se ofereçeu e pos
em arrafem.23

Reserva-se, assim, a competência para interpretar correctamente – e não


“ao reves ou pello contrairo” – as intenções do Infante. Depois do eficiente
trabalho de persuasão a que os três prólogos o conduziram, não ousará o
leitor perguntar como sabia o biógrafo o que pensava o Infante no momento
em que aceitou entregar-se como refém nem por que planeia a sua fuga
alguém que, desde o primeiro momento (“logo aly”), “consentyra de dar sua
vida”, como o mártir que se entrega voluntariamente ao seu perseguidor.
Resta por explicar a singular anteposição do Prólogo I ao incipit.
Podemos encará-la como uma forma adoptada pelo autor para intensificar a
força persuasiva do primeiro paratexto, destacando-o visualmente dos outros
dois, ou propor uma outra interpretação. Considerando a severa acusação
aos “maldizentes”, apontados num tom de hostilidade que distingue este
prólogo dos restantes, e a menção clara à alta protecção de que goza o autor,
não poderíamos imaginar este prólogo como uma reacção directa e firme à
recepção prévia de um manuscrito antecedente? O manuscrito sobrevivente
é contemporâneo do autor (que vem a morrer entre 1485 e 1490). Poderia ele
ter escrito o Prólogo I para integrar pela primeira vez esta cópia, entregando-
-o ao copista juntamente com o manuscrito anterior, que serviria de
exemplar? Se assim fosse, o escriba poderia, depois de iniciar o novo manus-
crito com a cópia do novo prólogo, ter levado a sua fidelidade ao ponto de
reproduzir a rubrica de incipit no preciso lugar onde a encontrou no exemplar.
A situação de codex unicus do testemunho não nos permite aferir a hipótese
mas a sua consideração permite explicar coerentemente a posição material
do Prólogo I no códice e a singularidade do seu conteúdo.

22 Álvares, Trautado, pp. 38, 61, 73 ; p. 49.


23 Álvares, Trautado, p. 26.
Cristina Sobral 21
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24 Paratexto

Prólogo I (Álvares 1-2)


Exordium sententia Como o mereçimento dos evanjelistas nom pervenha aaqueles
que escondem o testemunho da verdade ou o manifestam per
contrairas e nom verdadeiras razõões com temor ou reçeeo dos
que murmuram ou prasmam os feitos alheos, tomando ao reves
ou pello contrairo antrepetando as tençõões dos outros

Narratio causa credibilitas, captatio benevolentiae


compositionis porende eu, frey Joham Alvarez, cavaleiro da Ordem d.Avis e da
casa do Senhor Ifante dom Anrique, que fuy criado e secretaryo
do muyto vertuoso Senhor Ifante dom Fernando, que Deus tem
em sua gloria, e porque me criou de hidade de x anos em sua
camara e o seguy e o servy senpre em maneira e carego muy
sengular ataa o seu cativeiro e em ele ata sua morte, e ficando
depois em cativo çinque anos e mais, e por eu seer ao presente a
mais çerta e chegada testemunha de sua vida e de seus feitos,

Refutatio humilitas
posto que minha mãão abranjer nom possa a poher.se sobre as
bocas dos susoditos nem seja sofiçiente pera, com tenperada
redea, moderar e refrear as lingoas dos maldizentes, nom por eu
desejar tanto o louvor desta obra que muito mais nom devese
reçear de me apoer aos contrairos sofismadores e dar.me por
autor de tam grandes cousas,

Propositio obedientia enpero todo me nom enbargando, poendo eu por iso as


espadoas no riyo esteo e soficando.me no firme fundamento e
animaçom do dito Senhor Ifante dom Henrique,

materia veritas
me atrevy d.abrir minha boca nom em fingidas patranhas nem
em ouçiosas fabulas, que seguem empos dos ventos e careçem de
toda verdade, mais [em] cousas çertas e manifestas e em todo
vereficadas, as quaaes propus de falar açerqua do meu
proposito. E tomo por testemunha Noso Senhor Deus, que he
caminho, verdade e vida, pelo qual quem quer que andar achará
folgança e repouso. Este sabe que nom mento e que todo o
contheudo no seguinte trautado eu o vy e ouvy e assy o afirmo e
do contrario me sento por pelegrim e estranho,

Conclusio petitio supplicatio


avendo iso meesmo respecto aas muitas grandes vertudes do
christianysimo dom Afonso, Rey e Senhor noso, sob reverença
do qual e por cujo serviço reçebo favor e tanta ousança pera hir
adiante com minha obra, nom çesando dela nem tornando
atras, ataa seer acabada
com ajuda do todo poderoso Deus, que aos seus prometeu de
dar boca e lingoa, a que seus adversarios nom podesem
contradizer.
Cristina Sobral 25
Prólogo II (Álvares 3-4)
Exordium sententia Quanto som dignos de perpetua memoria aqueles que neste
mundo viverom e obrarom vertuosamente a razom no.lo
demostra

confirmatio e ainda claramente o achamos per muitas santas autoridades,


antre as quaaes diz Sam Gregorio: «Justa cousa he de seer em
conthinuada memoria antre os homens o que mereçeo de seer
alojado e conpanhom com os angios».

Narratio causa credibilitas, captatio benevolentiae


compositionis Açerqua desta nenbrança estando eu ocupado, ja esperto das
temerosas visõões em outro tenpo conseguidas sob poderio dos
mouros, roubado da conversaçom daquele Senhor vertuoso, em
cuja conpanha, sem alheo costrangimento, me somety ao
pesado jugo do infiel cativeiro, e dey aa memoria aquelas cousas
que muyto contristom a minha aalma

Propositio obedientia Mas porque o mui alto e muy poderoso prinçepe ho Senhor
materia Ifante dom Anrique me mandou que, ante da minha partida
pera fora destes reignos, leixasse em escripto o que sabia da vida
e feitos de seu irmãão o Ifante dom Fernando, o qual antre os
mouros, neestes dias, por eixalçamento da santa ffe catolica fez
seu acabamento,

confirmatio credibilitas
e por eu seer ao presente a mais prinçipal e achegada testymunha
destes feitos, e p[e]ra conprir mandado do dicto Senhor, me
despus ao seguinte trabalho

Conclusio petitio humilitas, supplicatio


E, avedo conhecimento de minha fraqueza e boto entender pera
dar obra a semelhante obra, ao todo poderoso Deus peço ajuda
e favor, e graça aaquela Senhora Virgem sua madre, que meu
fraquo entender queiram afortelezar e adelguaçem meu rudo
engenho, segundo pera tal auto perteeçe.
26 Paratexto

Prólogo III (Álvares 4-5)


Exordium sententia A memoria das cousas pasadas dá conheçimento das que som por våår.
amplificat. E asy os notavees feitos dos antigos se põõem em escripturas pera suas
obras vertuosas seerem em nenbrança, por ensinança e doutrina de nós
outros e por seus autores pera senpre viverem no mundo per bõõa fama,
e ainda por tal que aqueles que os semelhar quyserem, seguyndo suas
peegadas, sejam mereçedores de perpetua memoria e de nome gloryoso
e imortal, e porquanto os que desfazem ou encobrem a fama ou no-
meada d.outrem encorem em nome e pena de roubadores e omeçidas,
ca verdadeira justiça nom consente que alghúú do seu seja roubado.
Narratio causa credibilitas, captatio benevolentiae
composit. Porende eu, que fuy dos chamados e escolhidos pera o convite postu-
meiro, onde em lugar de pam se comeu amargura e o bever com
lagremas foy mesturado, de que se escrepve que, como ho Senhor muito
amase os seus, na fim os amou muito mais e, feita a çeea e eu avondado
de tam tristes manjares, sobre o regaço do Senhor me acostey, onde me
muytos sagredos forom revelados,
Propositio materia polo que nom som ousado d.encobrir tanta claridade e lume de
modus mereçimento que em nossos dias o piadoso Deus fez esclareçer do
agendi linhajem reall dos portugueses, o que eu, calando, de seer mereçedor de
muitas penas me nom poderia escusar. Mais enpero como fameliar
criado e obediente servidor que som daquele muy vertuoso Senhor e
que desejo comer das migalhas dos sobre avondantes mereçimentos que
cããe da sua mesa, a vós, muy alto prinçepe e muito poderoso Senhor,
apresento este trautado, primeiramente do que me foy contado e depois
do que vy,
Conclusio petitio humilitas, supplicatio
com reverença da vossa exçilente Senhoria e sob coreiçom e enmenda
da vossa muy nobre e vertuosa descripçom, no qual, se achardes cousa
de bem e a vós prazível, seja dada honra e gloria a Deus e louvor aaquele
Senhor de que reçeby qualquer bõõa doutrina se em my ha, cuja merçee
e feitura me confesso. E o que vos pareçer digno de reprensom ou de
coregimento seja posto aa minha inorançia e sinpreza e nom a outro
maleçioso engano, julgando a obra segundo minha bõõa e direita tææçom,
exemplum
per enxenpro daquela molher prove e devota veuva, de que faz mææçom
o evanjelho, que deitou húa mealha no gazofilaçio do tenplo, a qual
Noso Senhor Jhesu Christo diz que lançou mais que todos que muito
mayor cantidade derom, porque de vontade bõõa ofereçeu quanto tiinha,
humilitas, supplicatio
ca o vosso bõõ animo, de todo mal isento, que senpre foy e he aparelha-
do pera todo bem fazer, me dá atrivimento pera com toda bõõa afeiçom
reçeb[er]des as cousas daquele Senhor, vosso verdadeiro amigo e irmãão,
a que vós senpre tanto amor e afeiçom mostrastes. E porque eu tenho
visto que suas cousas vos forom e som senpre muito prazivees, e que nom
com menos vontade galardoastes e fezestes merçees aos seus como aos
proprios vosos, espero que, pelo seu, este tractado vos seja mais apto e
graçioso.
O que dizem «licenças».
Ecos da fama da Clavis Prophetarum1
Isabel Almeida
Universidade de Lisboa

1. a leitura como problema


A leitura das licenças – do Santo Ofício, do Ordinário e do Paço – dos
Sermoens do Padre António Vieira pode dar a medida do peso atribuído, entre
finais do século XVII e o começo do século XVIII, a um conceito de autor2.
Valia a «reputação»3 de Vieira – «um tão insigne Sujeito»4 – como marca
individual: «todos os Sermões são grandes: porque todos são seus»5; «O
nome do seu Autor, que trazem na primeira página, basta para o maior elogio
desta obra»6. E porque se julgava reconhecível, i.e. singular, quanto Vieira
produzira, ressaltavam fortes expectativas: «As suas Obras são em tudo tão
iguais, que o mesmo juízo que se fez de úas, se deve fazer de todas»7.
Supérfluo enfatizar: sobre uma geral euforia, ergue-se especialmente
nestas aprovações o louvor da parenética; a atenção (que despertou no Jesuíta

1 Uma vez que são utilizadas várias edições de textos parenéticos de Vieira, a sua distinção, nas
indicações abreviadas em nota-de-rodapé, far-se-á pela data de publicação. No que toca à
epistolografia, o tomo III da edição setecentista será identificado também pela data (1746), a
qual se dispensa na citação das Cartas organizadas por João Lúcio de Azevedo. Na transcrição de
edições antigas, procede-se a uma actualização das grafias, mantendo apenas aquelas que
representam uma realidade fonética própria. São introduzidos ajustamentos na pontuação.
2 Trata-se de um fenómeno amplo, a uma escala europeia, e dele fornecem testemunho muitos

paratextos (ver Anne Cayuela, Le paratexte au siècle d’or).


3 «Censura do Illustrissimo, & R. D. Fr. Timotheo do Sacraméto […]», in Xavier Dormindo, e Xavier

Acordado […]. Oitava Parte, 1694.


4 «Censura do M.R.P.M. o Doutor Fr. Manoel da Graça […]», in Sermoens […]. Terceira Parte, 1683.

5 «Censura do M.R.P.M. Frey Joseph de Jesus Maria […]», in Sermoens […]. Quarta Parte, 1685.

6 «Censura do P.M. Manoel de Sousa […]», in Sermoens […]. Quinta Parte, 1689.

7 «Approvaçam do M.R.P.M. Fr. Ioam da Madre de Deos […]», in Sermoens […]. Segunda Parte,

1682.

Românica 18, 2009


28 Paratexto

uma retórica modéstia8…) incide no prestígio do pregador apostólico,


«grande Mestre»9, «Oráculo de todos os Pregadores»10, «o Salamão da
Prédica Portuguesa»11, «Rei de todos os engenhos»12. Por regra, não chegam
a ser referidos outros títulos nem outros géneros. Duas excepções, porém,
destacam mais vasta matéria e por isso mais importam: as licenças devidas,
na «undécima» e na «duodécima» partes dos Sermoens (publicadas em 1696
e 1699, respectivamente13), a D. Diogo da Anunciação Justiniano, Arcebispo
de Cranganor.
De que fala D. Diogo Justiniano? O teor das suas «qualificações» é tão
panegírico como o que adoptam seus pares; todavia, à habitual aclamação da
oratória de Vieira, o Arcebispo associa a exaltação da Clavis Prophetarum. Em
1696, escreve:
Praza a Deus, que dos Sermões do Padre Vieira vejamos nós o seu
último Benjamin, com que satisfaz a sua promessa no duodécimo
tomo, que nos falta; e então confessaremos, que este será o seu
duodécimo, e ditoso Filius dexterae; quando depois de sair à luz
deixe ainda vivo ao pai, para nos poder comunicar no seu célebre
Clavis Prophetarum, aquele monstruoso parto com que a sua ciência
tem suspensa a nossa expectação. Onde concluo, que Vossa
Majestade não só deve conceder a licença que se lhe pede, mas
ordenar ao Autor, que por crédito da nossa nação se anime a não
deixar enterrado em o pó do esquecimento ainda aqueles fragmen-
tos que tem apontado o seu incansável estudo, pois em cada um
deles se perderá um tesouro.14

8 Ao Marquês de Gouveia, declarava: «Sobre a aprovação do quarto, em que vejo tão demasiada-
mente encarecida a pobreza do meu engenho, não sei que diga a V. Ex.ª. A frase com que no
Brasil se declara que os engenhos não moem é dizer que pejaram; e eu verdadeiramente tenho
pejo de que se diga no frontespício do livro o que se não há-de achar nele. Já estava contente com
que, tendo-se passado o nosso Arcebispo a este outro mundo, não haveria nesse quem tanto me
envergonhasse; mas V. Ex.ª, pelo excesso da mercê com que sempre me honrou, não achando
sobre a terra quem o fizesse, o foi desencovar nas serras da Arrábida.» (Cartas, III, p. 504 – Baía,
5 de Agosto de 1684).
9 «Censura do M.R.P.M. Fr. João do Espirito Santo […]», in Sermoens […]. Sexta Parte, 1690.
10 «Approvaçam do M.R.P.M. Fr. Ioam da Madre de Deos […]», in Sermoens […]. Segunda Parte,

1682.
11 «Censura do P. Mestre Domingos Leitão […]», in Sermoens […]. Septima Parte, 1692.
12 «Censura do Illustrissimo Senhor Dom Diogo da Annunciação […]», in Sermoens […]. Undecima

Parte, 1696.
13 As datas das censuras são 14-3-1696 e 5-9-1698.
14 «Censura do Illustrissimo Senhor Dom Diogo da Annunciação […]», in Sermoens […]. Undecima

Parte, 1696.
Isabel Almeida 29
Argumentação similar, desenvolvê-la-ia, insistente, dois anos depois:
Se na sua Clavis Prophetarum falta algúa guarda para poder abrir em
algum Capítulo dos Profetas; do Padre António Vieira não há chave,
que não seja mestra, para poder abrir a fechadura de toda a dificul-
dade: e se ao último Tomo desta célebre obra, segundo me disseram,
faltam só duas disputas, melhor é que duas disputas nos faltem do
que pela falta de duas disputas ficarmos perdendo a dous Tomos,
que forçosamente devem ficar sem a última mão, porque só a lima
do Padre António Vieira pode aperfeiçoar condignamente a guarda
da sua chave.
Posso afirmar a Vossa Majestade pela notícia, que deu em
Roma, quem teve a fortuna de ver esta grande obra, e pelas conferên-
cias que tive na mesma Corte sobre a matéria do seu argumento, que
enquanto não aparecerem estes dous livros, ainda está no mundo
por saber quem é o Padre António Vieira […].15

Os elogios proferidos radicam na fama do autor e na convicção de que


sempre será sem preço qualquer obra sua. Não é alegado nenhum contacto
directo com a Clavis, e torna-se óbvio que, ao instar à sua divulgação, D.
Diogo Justiniano apela ao resgate de uma ilustre desconhecida em risco de
«naufrágio»16: «outro naufrágio foi o juízo que muitos fizeram desta
empresa, sem saberem, nem o que ela é, nem o que ela contém. E para Vossa
Majestade evitar segundo furto, e impor perpétuo silêncio a quem fala sem
saber o que diz, deve logo mandar publicar esta obra […]»17.
Se a história do livro ensina a não prescindir dos aparatos paratextuais,
a história da literatura prova a vantagem de articular paratextos, textos e
contextos, fazendo do cruzamento de informações e hipóteses um caminho
de compreensão. Processos de formação de perspectivas – seja de quem cria,
seja de quem lê –, há que indagá-los, nas suas bases, nas suas implicações, nas
suas consequências. Na verdade, o zelo de D. Diogo Justiniano em nada é
despiciendo, quase vinte anos após o comentário que, à entrada do tomo
inaugural dos Sermoens (1679), Vieira gravara no preâmbulo ao «Leitor»,

15 «Censura do Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor Dom Diogo Justiniano […]», in Sermoens


[…]. Parte Duodecima, 1699.
16 Ver Serafim Leite, S.I., «O P. António Vieira e as Ciências Sacras no Brasil. A famosa Clavis

Prophetarum e seus satélites».


17 «Censura do Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor Dom Diogo Justiniano […]», in Sermoens

[…]. Parte Duodecima, 1699.


30 Paratexto

lamentando que o tempo ameaçasse devorar «peças meio forjadas» da sua


«oficina de Vulcano»: «Só sentirei que este me falte para pôr a última mão
aos quatro Livros Latinos de Regno Christi in terris consummato, por outro
nome, Clavis Prophetarum, em que se abre nova estrada à fácil inteligência dos
Profetas, e tem sido o maior emprego de meus estudos»18. Fixemos os
trechos citados: entre o público desabafo que recenseia a «peça» inacabada,
e os entusiásticos alvitres do Arcebispo de Cranganor, cabem nexos que urge
explorar.
Surpreenderá assim, por um lado, o comportamento de Vieira, que, ao
arrepio de expectações e anúncios, nunca – nem em sua «extrema velhice»19
– pôs fim à Clavis; por outro lado, perceberemos o dinamismo do fenómeno
da recepção. Sem dúvida, Vieira muda, mas muda igualmente o quadro que
o rodeia, tanto que será lícito interrogar: no teatro do mundo, até que ponto
certa imagem do autor (filtro construído, desde logo pelo próprio) logrou
condicionar quanto se viu ou supôs existir na Clavis, e vice-versa?

2. a Clavis sonhada
Recapitulemos: dirigindo-se ao «leitor», no primeiro volume dos
Sermoens (ultimado em 1677, saído do prelo em 1679), Vieira aplicou-se a
mencionar os «livros latinos» da Clavis Prophetarum como sombra viva no
palco iluminado pela edição da parenética. Significava isso que não deixava
esquecer aquele trabalho empreendido ao cabo de duras penas: longe do que
sucede com um livro «ideado», «Pregador e ouvinte cristão»20, a Clavis surge,
apesar das escusas, dotada de contornos e mais prometida do que preterida
em face dos Sermoens – «Mas porque estes vulgares são mais universais, o
desejo de servir a todos, lhes dá por agora a preferência»21.
Saliente-se o justificativo da escolha do objecto a estampar («porque
estes vulgares são mais universais»); perscrute-se o carácter circunstancial
dessa opção (flexível, a cláusula «por agora»); note-se o encarecimento da
dupla obediência – de súbdito e de religioso – como móbil da iniciativa

18 Padre António Vieira, Sermões, I, 2008, p. 8.


19 Cartas, III, p. 675 (à Rainha D. Catarina de Inglaterra – Baía, 25 de Setembro de 1695).
20 «Se chegar a receber a última forma um Livro, que tenho ideado com título de Pregador, e Ouvinte

Cristão, nele verás as regras, não sei se da arte, se do génio, que me guiaram por este novo
caminho.» (Padre António Vieira, Sermões, I, 2008, p. 6).
21 Padre António Vieira, Sermões, I, 2008, p. 8.
Isabel Almeida 31
(à «obrigação» de «vassalo» de D. Pedro somava-se a grata vénia ao «Reve-
rendíssimo P. João Paulo Oliva, Prepósito Geral» da Companhia de Jesus22).
Pontificam, é nítido, critérios de impacto, questões de princípio.
Como quem teme, magoado, ou como quem, antecipando o mal, ambi-
ciona esconjurá-lo, Vieira não calava a insinuação de que, no concernente ao
Príncipe, débil se adivinhava o eco do seu empenho: «Mas porque os afectos
se não herdam com os Impérios»23… E imenso terá sido o dano desse
desencontro: porque não foi terminada a Clavis Prophetarum, cuja língua
era o universal latim? Quando, na década de 90, a rainha D. Maria Sofia
de Neubourg e o novo Geral da Companhia pressionaram Vieira para que
concluísse a obra profética24, não teria o Jesuíta modo de compatibilizar
estas solicitações com a obediência a D. Pedro e a fidelidade à memória de
Giovanni Paolo Oliva25? Que motivos o levaram a não agarrar a ocasião
proporcionada e a obstinar-se na editio dos Sermoens, procrastinando o
remate da Clavis que tão amiúde e superiormente lhe foi então requerido?

22 Padre António Vieira, Sermões, I, 2008, p. 5.


23 Padre António Vieira, Sermões, I, 2008, p. 3. São palavras da dedicatória a D. Pedro, datada de 21
de Julho de 1677. Vieira reiterá-las-ia treze anos mais tarde, numa carta ao cónego Francisco
Barreto, ao afirmar «que os filhos com as coroas não herdam os ânimos dos pais» (Cartas, III, p.
595).
24 Quer através do seu confessor, o P.e Leopold Fuess (S.I.), quer «por sua própria mão» redigindo

algumas linhas, datadas de 28 de Fevereiro de 1695, D. Maria Sofia fizera saber a Vieira do
agrado com que recebera Xavier Dormindo e Xavier Acordado (Cartas, 1746, pp. 421-423). A 28 de
Janeiro de 1696, era a vez de o P.e Tyrso González responder nestes termos ao pedido que lhe
endereçara a soberana: «ainda que eu e a Companhia não fôssemos tão interessados no crédito
que nos granjea um Varão tão douto e admirável pelos seus escritos, bastava o desejo de Vossa
Majestade para me obrigar a fazer todo o empenho para que esta obra, que justamente é a
expectação de toda Europa, saia à luz. A todos os particulares que Vossa Majestade me ordena,
dou inteiro e devido cumprimento. Ao mesmo Padre Vieira escrevo e encomendo muito
satisfaça ao gosto de Vossa Majestade; e para o mesmo fim lhe concedo permanentes quantos
Religiosos lhe forem necessários e ele pedir para seu alívio. No caso também, em que Deus o
chame a melhor vida, e fique o livro imperfeito, ordeno ao Provincial do Brasil, com preceito
grave de obediência, execute o que Vossa Majestade deseja e manda.» (pp. 433-434).
25 Em 22 de Julho de 1695, depois de contar uma queda que o teria deixado fisicamente muito

maltratado – «com uma ferida na cabeça e ambas as mãos estropeadas» (Cartas, III, p. 670) -,
Vieira escreve ao Padre Baltasar Duarte: «Mas nesta falta de forças de mim mesmo (em quem
propriamente se verifica Omnia fert aetas, animum quoque) me vejo de novo obrigado com duas
obediências, uma Real e outra da religião, a prosseguir e acabar a Clavis Prophetica, a que depois
de partida a frota me aplicarei do modo que for possível, entendendo que é vontade de Deus que
a morte me ache com esta obra de tanto serviço seu, ao menos no pensamento e na voz, já que
não pode ser nas mãos.» (Cartas, III, p. 671).
32 Paratexto

O gesto de Vieira, destemido a apregoar, em 1679 (época promissora,


por contas bandarristas: «já se cerram os setenta»26…), uma Clavis em
estaleiro, exige análise: lançada de Lisboa urbi et orbi, aquela declaração soa
como uma desforra, extravasando o limite discreto da confidência epistolar a
D. Rodrigo de Meneses, em 1672, sobre «um livro latino», «em grande
altura», «intitulado o Quinto Império, ou Império consumado de Cristo, que
vem a ser a Clavis Prophetarum». «Ninguém o lê sem admiração, e sem o
julgar por importantíssimo à inteligência das escrituras proféticas»27,
asseverava o Jesuíta nestas notícias enviadas de Roma, onde permaneceu de
1669 a 1675. Entende-se o seu orgulho: é que pela Clavis – ainda que tão-só
esboçada, arquitectada – respondera nos quatro amargos anos de interro-
gatórios do Santo Ofício, entre 1663 e 1667.
Reconstituamos essa história. Cedo, no segundo «Exame» (25-9-1663),
intimado a depor sobre «papéis» em preparação, Vieira arrolou: um livro
latino, «que determina intitular Clavis Prophetarum cujo principal assunto,
e matéria é, mostrar por algumas proposições, com lugares da Escritura, e
Santos, que na Igreja de Deus há de haver um novo estado diferente do que
até agora tem havido, em que todas as nações do Mundo hão de crer em Cristo
Senhor nosso, e abraçar nossa Santa Fé Católica […]»28. Até ao desfecho do
processo movido pela Inquisição, impressiona a resistência do réu, que, ansio-
so por advogar – contra mil admoestações – a inocência dos seus intentos29,
compôs no cárcere, numa dolorosa penúria de meios, a Representação perante
o Santo Ofício (1666), ali explanando, além de outros, «o assunto do livro que
t[e]ve pensamento escrever», «Clavis Prophetica» ou «De Regno Christi»30.
Ora, nesse arrazoado, ziguezagueante entre juras de humildade pessoal e

26 Cartas a Duarte Ribeiro de Macedo contêm repetidas evocações das trovas de Bandarra, base de
uma renovada esperança que Vieira projectava no remate da década de 70 (ver Cartas, III, p. 271,
p. 346, p. 395; 10-5-1678, 23-1 e 5-6 de 1679), ajustando assim conjecturas anteriores sobre os
«anos da era de sessenta» (Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 66).
27 Cartas, II, p. 516 (Roma, 22 de Outubro de 1672).
28 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 77.
29 Repare-se no título dado, no processo de Vieira, à sessão de interrogatório de 3 de Dezembro de

1666: «18º Exame, e intermédio, acerca de acabar por uma vez com tantos protestos, obséquios,
e submissões verbais somente, como o Réu faz, e obrigá-lo a que declare lisamente se quer estar
pelas censuras, e admoestações, e desistir da defesa, e mais razões, e filosofias.» (Adma Muhana,
Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 191).
30 Padre António Vieira, Representação perante o Tribunal do Santo Ofício, II, pp. 468, 469. Corro-

bora esta afirmação o teor da denúncia do Padre Fr. Jorge de Carvalho, com data de 5 de Abril de
1663 (ver Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 352; infra, nota 70).
Isabel Almeida 33
protestos de aflição pelo «crédito» jesuíta, era a sua fama que por fim
avultava. Receando um vexame que infligiria à Companhia um revés «tanto
maior quanto as resoluções deste sagrado tribunal são mais justificadas e
respeitadas do mundo», Vieira acrescentava, pressuroso: «do mundo, em
todo o qual eu sou conhecido»31. Com esta tendência para a hipertrofia do
EU («se em mim não houvera mais que eu»32…) condizia o que a Inquisição
classificava como «vaidade»33: a desenfreada lide bíblica, infractora de
decretos tridentinos34, a reivindicação bandarrista do estatuto de «alto
engenho»35, o deleite na caracterização do êxito surtido pelos planos de
urdidura da Clavis, quando relatados a «pessoas doutas»36. Não custa, pois,
de acordo com Adma Muhana37, descobrir na redacção, em plena e pródiga
Cidade Eterna, da obra (ou parte dela) designada Clavis Prophetarum, um
voto de defesa e uma tentativa de cura da honra ferida.
Vieira partira de Portugal, em 1669, proibido de «mais não tratar das
proposições conteúdas em sua sentença»38. Diferente foi o retorno de Itália,
em 1675: conseguiu regressar protegido pelo generoso e digno Breve que o
Papa Clemente X lhe outorgou, e, imune a qualquer jurisdição inquisitorial

31 Padre António Vieira, Representação perante o Tribunal do Santo Ofício, II, p. 472.
32 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 309.
33 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 324.

34 Leia-se o «6º Exame acerca de usar mal da Sagrada Escritura […]» ou a «Sentença» final (ver

Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, pp. 94-97, 310-332).


35 Na «Sentença» de Vieira, não é esquecido este pormenor (sinal do escândalo que terá

provocado): «E que em outra ocasião falando-se em Bandarra, dissera que tanto era certo ser
verdadeiro profeta, e por tal tido de muitas pessoas das mais autorizadas, que vendo algumas ao
Réu caído de certa privança e valimento, e com outras desconsolações, o animavam com lhe
dizerem, que necessariamente havia de melhorar de fortuna, pois o mesmo Bandarra assim o
havia profetizado em uns versos que dizem: Vejo um alto engenho em uma Roda triunfante;
entendendo pela Roda, a da dita fortuna, e pelo alto engenho, a ele Réu, a quem posto que então
estava abatido, tornaria ainda a levantar a própria Roda.» (Adma Muhana, Os Autos do Processo
de Vieira na Inquisição, p. 322).
36 Na «Petição ao Conselho Geral», Vieira dispõe-se a provar a bondade das suas intenções

invocando, entre outros meios, o testemunho de «pessoas doutas»: «E algum houve que
considerando a grandeza e importância de muitas das ditas matérias e a utilidade que do conhe-
cimento delas se pode seguir à universal Igreja e à conversão de muitas almas de Ateus, Gentios,
Judeus, e de todo o outro género de infiéis, e hereges, julgou e disse que eram merecedoras as
ditas matérias, de que na Igreja se fizesse um Concílio para maior qualificação delas.» (Adma
Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 126).
37 Ver Adma Muhana, «O processo de Vieira na Inquisição»; «Introdução», in Os Autos do Processo

de Vieira na Inquisição, pp. 26-27.


38 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 333.
34 Paratexto

que não fosse a romana, absolvido de quaisquer condenações prévias,


conquistou uma sólida margem de liberdade. De «pensamento de livro»39, a
Clavis ganhara entretanto corpo e aguardava – garantia o autor, provocatório
ou anelando estímulo40 – «a última mão». Que aconteceu, porém?
Presumivelmente a par do que a Parte I dos Sermoens ia, no seu preâm-
bulo, trazer a lume, ou alerta mercê de pistas fornecidas por Vieira, com
quem, sobretudo desde 1672, manteria uma estreita cumplicidade na espe-
culação sobre «comentos e profecias»41, Duarte Ribeiro de Macedo terá
aflorado a Clavis, em cartas da Primavera de 167942, mas do que foi um
ágil comércio epistolar, só as missivas do Jesuíta estão hoje disponíveis.
Redarguindo a Macedo, Vieira conta o acesso à obra do P. Tenorio,
Compendium Ideae et totius operis elaborati ab A. R. P. Fr. Gundisalvo Tenorio
Peruano, Ordinis S. Francisci, et filio conventus Limae, dignioreque P. Provinciae
duodecim Apostolorum, cujo «assunto» – frisa – «simboliza em parte com o da
minha Clavis Prophetarum»43. Ainda com o amigo, embaixador em Madrid,
partilha colóquios reservados: de «um frade franciscano português» teria
ouvido que Tenorio «falava muito no império universal, e que cria constan-
temente havia de ser em Portugal, de que é mui apaixonado»44. Sempre a
Ribeiro de Macedo, confia conjecturas e pedidos: «Se Deus quer fazer aqui
[Lisboa] o teatro de suas maravilhas, a disposição não pode ser mais universal
[…]. Espero com curiosidade o que V. S.ª colhe da conferência do P. Tenorio;
posto que as suas esperanças se não podem fundar em mais fortes e sólidos

39 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 279.


40 Sublinhe-se que na carta enviada a D. Rodrigo de Meneses, em 22 de Outubro de 1672, Vieira
expressava a vontade de «acabar» e «imprimir os [seus] livros, assim latinos como portugueses»
(Cartas, II, p. 515); a 3 de Janeiro de 1679, insinuaria, a Duarte Ribeiro de Macedo: «Farei tudo
o que puder na fraqueza em que me acho, e, se Deus der vida e forças, não serão só sermões.»
(Cartas, III, p. 339).
41 Cartas, II, p. 577 (7 de Março de 1673). Embora balançando entre o optimismo e o desânimo, ou

entre a convicção e a reticência («vaidades», «disparates», assim são designadas as menções de


profecias, nas cartas de 4-4 ou de 21-3-1673), Vieira toma Duarte Ribeiro de Macedo como
confidente dos seus sonhos bandarristas: «Muito me consola e anima dizer-me V. S.ª que de
todos os movimentos presentes tira V. S.ª consequências úteis e gloriosas para a nossa Pátria.
Também vejo que pode ser preocupação do amor, ou que a dor busque alívio na consideração de
bens futuros, e estima ter tão bom companheiro, ou tão grande exemplar para desculpa dos
meus que outros chamam delírios.» (Cartas, II, p. 451 – 31 de Maio de 1672).
42 Só a 15 de Setembro a Parte I dos Sermoens teve licença para correr.

43 Cartas, III, p. 360 (Lisboa, 6 de Março de 1679).

44 Cartas, III, p. 370 (Lisboa, 28 de Março de 1679).


Isabel Almeida 35
documentos que os que nós temos, salvo se fala por revelação»45. Não
obstante as recomendações de prudência do interlocutor («Enfim, como
V. S.ª diz, estas matérias são mais para a presença que para cartas»), expande-
-se em alusões ao «livro manuscrito» em que o Padre Fernão Queirós exalçava
«o Império Universal» – «que também espera e pretende provar há-de ser em
Portugal»46. E, galante sobre inclinações femininas47, saúda: «estimo muito
aprove [a senhora D. Maria] os discursos e esperanças do Padre Tenorio,
como tão conformes às das minhas culpas»48.
Se Vieira começou por destrinçar, da sua Clavis, o Compendium Ideae et
totius operis elaborati ab A. R. P. Fr. Gundisalvo Tenorio (só «em parte» aparen-
tados49…), depressa acomodou e converteu ao lusocentrismo a Ideia do
religioso peruano: promovia, assim, «esperanças de Portugal», aproximando
ao máximo o seu trabalho (reprovado) da obra do P.e Tenorio, que, decerto
por confusas informações, contrárias às suas perspicazes reticências

45 Cartas, III, p. 377 (Lisboa, 17 de Abril de 1679).


46 Cartas, III, p. 381 (Lisboa, 1 de Maio de 1679). Mais discreto, já em 12-1-1672, a Duarte Ribeiro
de Macedo, Vieira aludia a «outras cousas que também predisse, de muito maior expectação e
glória de Portugal e da Igreja» (Cartas, II, p. 407). A obra de Fernão Queirós – Historia da Vida
do Veneravel Irmaõ Pedro de Basto – saiu, após um compasso de espera de «nove anos», em 1689.
No seu Livro IV, cap. XIV (fls. 445-450), «Prova-se que este quinto Império terá por cabeça o
Reino de Portugal». Na «Dedicatória ao Sereníssimo Princepe Dom Pedro II. Rei de Portugal»,
prometia-se: «Nela achará V.R.M. as melhoras da Índia profetizadas, e o que mais é, os acrecen-
tamentos de Portugal, de Reino, a Império, sendo este o último do mundo, no último Ocidente,
depois dos cinco que nele houve, principiados os quatro no Oriente; e com particular rezão
Império de Cristo, pela conversão universal das nações do mundo, que se reduzem a Gentios,
Maometanos e Hebreus; e tão manifesto o patrocínio de Deus sobre o Reino de Portugal como
se deixa ver do cuidado com que nas multiplicadas revelações do V. Irmão Pedro de Basto lhe
assiste; e no favor que em suas repetidas visões achou sempre do Céu o felicíssimo Senhor Rei
Dom João IV, Pai de V. R. M.».
47 É admissível que Vieira aludisse assim à filha bastarda de D. João IV, D. Maria, que o honraria

com o seu interesse (ver Cartas, III, p. 336 – a Duarte Ribeiro de Macedo, 20-12-1678). A
confirmar-se esta hipótese, ressalta a curiosidade pela literatura profética, difundida também no
convento carmelita de Carnide. Avizinhando a Idea, bem recebida, e a sua Clavis, condenada,
Vieira denunciava a disparidade de critérios na avaliação de cada uma das obras – e sugeria que
um lugar ao sol era afinal merecido pelo seu trabalho.
48 Cartas, III, p. 401 (Lisboa, 13 de Junho de 1679).

49 Afirma Luisa Trias Folch, considerando a História do Futuro e o Livro Ante-primeiro da História do

Futuro de Vieira: «O jesuíta português profetizará a vinda do Quinto Império e oferecerá o poder
temporal do Império Universal ao rei de Portugal; o franciscano peruano oferecê-lo-á ao rei de
Espanha, mas, como crioulo que era, e dadas as circunstâncias de decadência do Império
espanhol, concede às Índias um papel primordial.» («O Quinto Império do mundo…», p. 382).
36 Paratexto

iniciais50, acabou por crer bafejado por sorte próspera. Recearia um desequi-
líbrio injusto, capaz de o secundarizar? Inconsolável, deplorava que a bitola
da Inquisição de Espanha e de Roma não norteasse a portuguesa: «houve cá
quem me condenasse por muito menos do que aí se não reprovou e em Roma
se deu licença para que se imprimisse»51. E, obsidiante na comparação, ao
registar uma dívida para com o tribunal espanhol, que deferira, benévolo,
requerimentos relativos à estampa de Sermões, afirmava – «Ao senhor Inqui-
sidor Geral, que parece já me conhecia por cúmplice em parte nos delitos do
Padre Tenorio, estou obrigadíssimo»52.
Portugal não era propício a tais «delitos», que contemplavam o destino
da gente de nação. Continuava efervescente a querela sobre os procedimen-
tos do Santo Ofício, com manobras diplomáticas e interferências de grupos
cristãos-novos e judaicos a espicaçar um duro braço-de-ferro entre o poder
da Inquisição lusa e a autoridade do Vaticano53. Escancarar interesse por
anatematizadas proposições de Vieira havia de redundar, entre 1670 e 1680,
em insensatez, e o aceno lavrado no prólogo dos Sermoens não obteve de
imediato réplicas públicas nem granjeou o amparo de D. Pedro – porventura
o mais pretendido pelo Jesuíta, que durante anos não voltou a falar da Clavis
Prophetarum.
«Tanto se mudam as cousas!»54 Num novo contexto («Toda a minha
desgraça esteve no tempo» – vincara já Vieira em 167255), terá sido a associa-
ção, à Clavis ou, melhor, à sua fama, de um fino e empolgante alcance polí-
tico, o factor decisivo da génese de manifestações análogas às de D. Diogo

50 Na primeira carta em que refere o Padre Gonzalo Tenorio, Vieira assevera a Duarte Ribeiro de
Macedo ter notícia de que os dezasseis tomos da obra do peruano esperavam por licença para
sair, e congemina: «Também me disseram que, estando estes livros reprovados pela Inquisição
de Espanha, o autor fora a Roma e de lá trouxera licença para os estampar, o que de nenhum
modo me parece verosímil, porque sem dúvida o dissera o mesmo autor, e a impressão desta Idea
não seria ao que parece furtiva.» (Cartas, III, p. 361 – Lisboa, 6 de Março de 1679).
51 Cartas, III, p. 380 (Lisboa, 1 de Maio de 1679).

52 Lembrando o «frade franciscano português» que lhe teria oferecido a leitura da obra do P.e

Tenorio, Vieira narra a Duarte Ribeiro de Macedo: «Disse-me mais o frade que, lendo no Porto
o extracto do Padre Tenório ao Bispo, irmão do nosso Secretário, ele fora com as mãos à cabeça
e tapara os ouvidos, dizendo que aquelas mesmas proposições eram as minhas, e que se não
havia de dar licença para que tais livros se lessem em Portugal. Em tudo procede coerentemente
a nossa singular ciência.» (Cartas, III, p. 371 – Lisboa, 28 de Março de 1679).
53 Ver Francisco Bethencourt, «A Inquisição», pp. 109-110; J. Lúcio de Azevedo, História de António

Vieira, vol. II, pp. 87-192.


54 Cartas, III, p. 408 (a Duarte Ribeiro de Macedo, Lisboa, 10 de Julho de 1679).

55 Cartas, II, p. 516 (a D. Rodrigo de Meneses, Roma, 22 de Outubro de 1672).


Isabel Almeida 37
Justiniano. Observem-se, por exemplo, as cartas que Sebastião de Matos e
Sousa, sacerdote e secretário do Duque de Cadaval, trocou com o Padre
António Vieira. Em 1688, ao rogar ao Jesuíta que acelerasse o ritmo de im-
pressão da sua obra, Matos e Sousa glosava-o, e contentava-se com decalcar:
«Essa Clavis, que sabemos, que está forjada, quem lhe há-de pôr a última
lima?»56 Diversamente, em 1690, deduzia no tom de quem domina os mean-
dros do jogo: «eu não sabia, que Vossa Paternidade era Profeta, e que de tão
longe, e tão antecipadamente via as nossas felicidades. […] Ora já que Vossa
Paternidade sabe prognosticar tanto ao certo, deve de ter a Clavis das profe-
cias bem limada»57. A viragem, que identifica a Clavis com a arte de prognos-
ticar «as nossas felicidades», e por isso reclama a sua divulgação, não é fruto
do acaso, antes dependerá da perícia estrategicamente exibida por Vieira no
«pequeno volume mas grande livro»58 baptizado Palavra de Deos59.
Alardeando o objectivo de desvendar arcanos divinos, no afã de celebrar
a dinastia robustecida pelo casamento fecundo de D. Pedro II com D. Maria
Sofia de Neubourg (Agosto de 1687), agregavam-se, na Palavra de Deos
(1690), além de dois sermões (a prédica de exéquias de D. Maria Francisca de
Sabóia e a de acção de graças pelo nascimento do primogénito do segundo
matrimónio do rei), um discurso oferecido «secretamente» a D. Maria Sofia
como consolação da perda desse primeiro filho, que expirara com escassos
dias de idade. Entre este texto e o «papel» de 1659 («Esperanças de Portugal.
Quinto Império do Mundo. Primeira, e segunda vida del-Rei Dom João
Quarto. Escritas por Gonçaliannes Bandarra»60) – escrito que tão graves
dissabores acarretara para Vieira61 –, a afinidade era indesmentível, e disso

56 Cartas, 1746, p. 340 (Lisboa, 3 de Março de 1688).


57 Cartas, 1746, p. 344 (Lisboa, 5 de Março de 1690).
58 [Licença do P. Mestre Fr. Thomé da Conceição], in Palavra de Deos […], 1690.

59 O volume terá começado a circular em Março de 1690, pois é do início do mês (dias 6 e 4,

respectivamente) a licença para correr e a atribuição de taxa. No entanto, Sebastião de Matos e


Sousa teve notícia da obra ainda em 1689. Vieira escreveu-lhe, dando conta da sua extraor-
dinária empresa («me atrevi a querer penetrar os arcanos da Providência divina») e insinuando:
«Se o Duque meu amo e senhor, tiver destes mistérios alguma revelação, ela chegará aos olhos
de V. M.cê, que estou muito certo lhe os porá com toda a benignidade.» (Cartas, III, pp. 576, 577
– 11 de Julho de 1689, Bahia).
60 Ver Cartas, I, pp. 488-547 (Camutá, 29 de Abril de 1659); Adma Muhana incluiu também a

edição deste texto em Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, pp. 39-70.


61 Apesar de existirem na Inquisição denúncias apresentadas já na década de 40, foi a Carta

endereçada em 1659 ao Bispo eleito do Japão, P.e André Fernandes, o grande pretexto do Santo
Ofício para mover a Vieira um processo.
38 Paratexto

tinha o Jesuíta consciência. Escutamo-lo declarar, com desembaraço (pois a


salvo do Santo Ofício português): «Não foi meu intento ressuscitar mortos,
mas só consolar os vivos»62. Flagrante, não menos, era a recuperação lusocên-
trica do conceito de Quinto Império: longe das afectadas concessões da carta
de desagravo remetida, em 1686, ao Padre Provincial Jácome Iquazafigo63, ou
da privada comunicação com o amigo Diogo Marchão Temudo64, Palavra de
Deos acendia, sem tergiversar, alentos pretéritos, recentrando em Portugal e
na casa brigantina a missão de reger uma perfeita harmonia ecuménica.
Escudado na mítica profecia de Cristo a D. Afonso Henriques, em Ouri-
que, Vieira desdobrava-se em elucubrações esfusiantes: «Que disse Cristo por
sua sagrada boca a el-rei D. Afonso? Volo in te, et in semine tuo imperium mihi
stabilire: quero em ti e na tua descendência fundar e estabelecer um império
para mim. Primeiramente já não fala de reino, senão de império, imperium; e
esse império em quem, e para quem? Em ti, e para mim, in te, mihi. Venham
agora todos os doutores do mundo e todos os intérpretes, mais sábios, mais
agudos, e mais escrupulosos, e casem-me este te, com este mihi, e este mihi
com este te. Hei-de fundar um império, diz Cristo, em ti, in te; mas para mim,
mihi: e que quer dizer em ti, e para mim? Quer dizer, que será império de
Cristo e do rei de Portugal juntamente»65. Assim rezava o «Sermão de Acção
de Graças». No «Discurso» – «a mais sistemática fundamentação do luso-
centrismo Quinto Imperial»66 –, revisitando o logos bíblico para enlaçar num

62 Cartas, III, pp. 576-577 (a Sebastião de Matos e Sousa – Baía, 11 de Julho de 1689). Ao Duque
de Cadaval, numa epístola de 14 de Julho de 1690, diria: «Dizem, por me condenar duas vezes,
que será este papel como o de El-rei; e eu, por me consolar de uma vez, imagino que pode ser o
de El-rei como este» (Cartas, III, p. 586). Note-se que em outras cartas, nomeadamente as que
endereça, a 15 de Julho de 1690, ao Cónego Francisco Barreto e a Diogo Marchão Temudo,
respectivamente, Vieira inclui afirmações similares (ver Cartas, III, pp. 596, 600).
63 «Aora me holgara yo mucho saber de nuestro Escoto Patavino que es lo que le descontenta en un

Emperador christiano, que lo sea de todo el mundo? Si no lo quiere Portuguès, como dizen
muchos de los Autores citados; si le desagrada por ser Español, hagalo Escocès, como el se haze,
tomandose el nombre de Escoto; ò Italiano, como Patavino, de quien tomò el sobrenome, que
esto no es mas, que question de vocabulo: lo que ciertamente importa poco, mientras logre la
Iglesia un Imperio de todo el mundo, estabelecido en un Principe Catholico, y subdito del
Romano Pontifice.» (Cartas, III, p. 763 – 30 de Abril de 1686).
64 Numa carta de 8 de Agosto de 1684, Vieira declarava: «O triunfo total e destruição do império

otomano está reservada para rei português; e podemos crer que será o presente […]» (Cartas, III,
p. 510).
65 Padre António Vieira, Sermões, XV, 1959, p. 205.

66 Paulo Alexandre Esteves Borges, A Plenificação da História em Padre António Vieira, p. 256.
Isabel Almeida 39
mesmo plano da Providência a morte do principezinho e um futuro de
portentos, o Jesuíta reiterava: «a vitória final do império do Turco e o uni-
versal de todo o Mundo está destinado por Deus para Portugal»67. D. Pedro
II seria chamado: «para substituir desde logo, e entrar à posse do primo-
génito morto, não é necessário esperar pelo irmão segundo, como sucessor,
senão recorrer ao pai como herdeiro do filho»68.
Por asserções sobre o Quinto Império, entre 1663 e 1667, os juízes inqui-
sitoriais haviam apodado Vieira de judaizante, «temerário, escandaloso, inju-
rioso, sacrílego, ofensivo piarum aurium, erróneo, e sapiente a heresia»69; em
1690, o próprio D. Veríssimo Lencastre (membro do Conselho Geral do
Santo Ofício, na época do processo70; Inquisidor-Geral, desde 1675) terá
contribuído para dar Palavra de Deos ao prelo71. E sem a demora que exas-
perara Vieira, quando da edição da Parte I dos Sermoens – vergado a suspirar
semanas pelo veredicto censório72 –, num prazo brevíssimo (quatro dias),
cada revedor não só leu como acarinhou a obra: «Em cada um destes três
assuntos reluz a delicadeza do juízo deste Autor, e a universal notícia que na
continuação de seus estudos tem adquirido das histórias divinas, e humanas,
das quais tira fundamentos para vaticinar a Portugal futuras felicidades por
desempenho da palavra de Deus dada no Campo de Ourique ao primeiro

67 Padre António Vieira, Sermões, XV, 1959, p. 72.


68 Padre António Vieira, Sermões, XV, 1959, p. 61.
69 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 191. Exactamente nestes anos, e

em Coimbra, pregadores como Fr. João de Deus (Qualificador do Santo Ofício) argumentavam
que era «conveniência de Deus ter Portugal sobre a terra o Império do Mundo» (João Francisco
Marques, A Utopia do Quinto Império e os Pregadores da Restauração, p. 545). Omisso ficava
(diferença crucial, em relação à obra de Vieira) o destino dos hebreus.
70 Perante a denúncia do Padre Jorge de Carvalho, que relatou ter-lhe dito Vieira «que tinha com-

posto na sua idéia um livro a que daria título de Clavis Prophetarum», «pareceu ao Inquisidor
Dom Veríssimo de Lancastre que ao presente se não lhe oferece coisa que se houvesse de fazer
por parte do Santo Ofício visto que o Padre Antônio Vieira não determina imprimir aquele livro,
e que em caso que resolva a fazê-lo imprimir então se verá e conforme a matéria dele e suas
proposições se procederá.» (Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, pp. 352
e 354, respectivamente).
71 Ver Cartas, III, p. 585.

72 A 28 de Junho de 1678, Vieira desabafa com Duarte Ribeiro de Macedo: «O meu livro, com todas

as recomendações de S. A., ainda não saiu da Inquisição, havendo perto de seis semanas que lá
está. Já me contentarei com que me o restituam, e com este desengano me resolverei, como já
signifiquei a V. S.ª, onde me será melhor buscar a sepultura.» (Cartas, III, p. 289). A 19 de Julho,
já satisfeito com o «nulla obstat» do Santo Ofício, refere «o cumprimento» que o Inquisidor
Geral tivera «da tardança», indo «dar[-lhe] as graças» (Cartas, III, p. 296).
40 Paratexto

Afonso»73; «este pequeno volume, mas grande livro, consigo leva sua
imortalidade na engenhosa explicação das futuras felicidades dos
Portugueses vaticinadas por desempenho da palavra de Deus dada no Campo
de Ourique ao primeiro Rei de Portugal, sem ofensa da Fé Católica, nem
cousa que aos bons costumes faça dissonância»74.
Uma malha de altos apoios (afeiçoada por Vieira, destro a espalhar entre
personagens gradas – o Duque de Cadaval, o Padre confessor Leopold Fuess,
D. Veríssimo Lencastre, o Cónego Francisco Barreto, o Juiz Diogo Marchão
Temudo… – textos alegadamente sigilosos) favoreceu Palavra de Deos75. E,
numa reacção a este «tributo» sui generis76 – autêntico marco crucial –,
acumularam-se, depois de 1690, incitamentos à publicação da Clavis. Foi a
partir daí que Sebastião de Matos e Sousa lembrou, assíduo, o assunto; foi
então que elementos de monta da hierarquia eclesiástica, como D. Diogo
Justiniano, ou do xadrez áulico, como o Duque de Cadaval, repercutiram essa
curiosidade. Por idêntico diapasão, Fr. Manoel Caetano de Sousa, na
«Oração Fúnebre nas Exéquias do Reverendíssimo Padre António Vieira» (17
de Dezembro de 1697) evocaria «aquele Pregador, que à imitação dos
Profetas antigos […] nos ajudava a estimar as felicidades presentes, que nos
animava a esperar as futuras, que nos consolava nas nossas perdas, que nos
fazia conhecidos e estimados das Nações estranhas»77. E Fr. José de Sousa,
qualificando a História do Futuro, em 1709, calculava: «Se com a impressão
deste faz divulgar a promessa, que ele contém, de se abrirem nos outros às
nossas esperanças as portas das profecias, que estão há tantos séculos
fechadas; já se obriga a entregar-nos em aqueles livros a chave dos Profetas,
para abrirmos as portas de nossas fortunas»78. Em suma: ao puxar para a

73 [Licença do P. Mestre Fr. Thomé da Conceição], in Palavra de Deos […], 1690.


74 [Licença do P. Mestre Fr. Francisco do Espírito Santo], in Palavra de Deos […], 1690.
75 Tentei dar conta destas ligações num trabalho anterior (ver Isabel Almeida, «Um pé na terra,

outro nas estrelas: a propósito de S. Francisco Xavier nos Sermoens de Vieira»).


76 Vieira apreciou a palavra «tributo» para se referir aos manuscritos de volumes de Sermoens que

remetia do Brasil para o Reino, praticamente numa cadência regular de um por ano. Em 11 de
Julho de 1689, porém, ao enviar o material estampado como Palavra de Deos, confidenciava a
Sebastião de Matos e Sousa uma saborosa excepção: «O de que mais me corro é que este ano
falto ao prelo com o costumado tributo, mas nem por isso estive ocioso.» (Cartas, III, p. 576).
77 «Oraçaõ Funebre […] disse-a o P. D. Manoel Caetano de Sousa», in Voz Sagrada, Politica,

Rhetorica, e Metrica […], 1748, p. 177.


78 «Censura do M.R.P.M. Fr. Joseph de Sousa, Qualificador do S. Officio», in Antonio Vieira,

Historia do Futuro, 1718.


Isabel Almeida 41
ribalta a Clavis Prophetarum, pronto a incensar um «Gigante» guiado pela
«honra da Pátria», «desejando de Reino, mudá-la em Império»79, o
Arcebispo de Cranganor era partícipe de um coro bem colocado80 e seguia na
esteira da propagação – aceite sem prurido, na década de 9081 – de uma ideia
lusocêntrica do «Império de Cristo».
Sem terem manuseado a Clavis, D. Diogo Justiniano ou Sebastião de
Matos e Sousa deviam concebê-la como uma assombrosa corroboração das
teses esgrimidas na Palavra de Deos – i.e., veiculando doutrina das Esperanças
de Portugal ou ousando rasgos como os que animam o Livro anteprimeiro da
História do Futuro. A vizinhança de títulos, junto com o leitmotiv «Quinto
império», concorreria para alimentar tais especulações82, e nesses vários
textos Vieira gizara um rumo de que nem as suas cartas discrepavam: além
das referências à Clavis que a irmanam de obras defensoras de um Império
«em Portugal», nas epístolas proliferam – qual espelho de um sonho cons-
tante – vestígios das trovas de Bandarra.

79 «Censura do Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor Dom Diogo Justiniano […]», in Sermoens


[…]. Parte Duodecima, 1699.
80 Afirmações contidas na licença de 1699 revelam que Sebastião de Matos e Sousa partilharia com

D. Diogo Justiniano as cartas que recebia de Vieira: o Bispo de Cranganor pede que os religiosos
da Companhia, «assim como nos comunicaram as notícias das choupanas, assim nos dem o
incomparável gosto de podermos admirar as ideias dos Palácios de um Arquitecto, que não teve
igual». Uma rede de contactos e relações devia concorrer, pois, para atiçar o interesse pela Clavis.
81 Saiu em 1689, dedicada a D. Pedro II, a Historia da Vida do Veneravel Irmaõ Pedro de Basto,

propalando convicções idênticas às que Vieira sustenta.


82 Lembremos que a carta ao Bispo eleito do Japão era intitulada no processo de Vieira como

«Esperanças de Portugal. Quinto Império do Mundo. Primeira, e segunda vida del-Rei Dom João
Quarto. Escritas por Gonçaliannes Bandarra». O Livro Anteprimeiro da História do Futuro, que
terá sido divulgado na corte, por influência de figuras como D. Rodrigo de Meneses ou D. João
da Silva, ainda em 1665, além de ter por título geral Historia do Futuro, Esperança de Portugal e
Quinto Império do Mundo, incluiria – ou assim faz pensar um manuscrito – uma remissão para a
Clavis: «Estes são os livros e questões de que consta o livro intitulado Clavis Prophetarum» (José
Van den Besselaar, «Introdução», in António Vieira, História do Futuro (Livro Anteprimeiro), p.
21). No próprio processo, aliás, Vieira associou as duas obras, afirmando, a 14 de Novembro de
1665, decerto para se defender de acusações que a Inquisição pudesse dirigir-lhe ao ser
conhecida a divulgação do Livro anteprimeiro da História do Futuro: «ele suplicante […] inventou
o título da História do Futuro, ou Quinto Império, para debaixo desse disfarce poder responder
por mão alheia aos pontos de sua causa sem violar o juramento de segredo que se lhe havia
posto, como com efeito se guardou.» (Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na
Inquisição, p. 137). Enfim, não esqueçamos que ao afirmar a «grande altura» da Clavis, em
Roma, Vieira fala, a D. Rodrigo de Meneses, de um livro «intitulado o Quinto Império, ou Império
consumado de Cristo, que vem a ser a Clavis Prophetarum» (Cartas, II, p. 516).
42 Paratexto

Há, pois, que considerar um ethos, densamente cultivado em diacronia e


no exercício de múltiplas possibilidades discursivas. Na sua persistência, o
Autor foi gerando uma imagem à qual os seus receptores o suporiam fiel e
que nem a tomada de posições demolidoras sobre o estado de Portugal fazia
desmoronar. Provam-no a atitude de D. Nuno Álvares Pereira de Melo, Duque
de Cadaval, e de D. Maria Sofia de Neubourg perante Xavier Dormindo, e Xavier
Acordado (1694) – quinze sermões encadeados, glorificando «o apóstolo do
Oriente», sim, mas implacáveis na denúncia do declínio do Império luso.
Ao comentar um dos textos mais acutilantes do conjunto – texto de uma
mordacidade que mergulha na lição de Tácito para excepcionalmente a
perfilhar –, o Duque preferiu termos de conotação bandarrista. Eis como
augura melhoras da mão doente de Vieira (abalado por uma queda):
[…] quisera que esta fosse incansável para encher o mundo com os
seus escritos, como espero que continue, publicando esses tesouros
antigos, ainda que os latinos não sejam tanto da minha profissão,
como os vulgares, nos quais sei muito bem construir o sermão
último da protecção do Santo Xavier, em que Vossa Paternidade
mudou de ofício, e tomando outro mecânico soube talhar e coser,
como se tivera tomado as medidas.83

Na constelação metafórica do trabalho «mecânico», une-se o rasto do


sapateiro de Trancoso84 e o perfil de um Vieira que, sagacíssimo no diagnós-
tico dos achaques do país, deslumbra enquanto voz de uma verdade solar.
Era este, para D. Nuno Álvares Pereira de Melo, o retrato do Jesuíta. Por isso
opinava, numa carta anterior, a respeito de queixas de Vieira sobre a situação
da Índia e do Brasil: nos «gemidos» das terras da América, «leio uma
invectiva contra os felices prognósticos, e admiráveis aumentos, que o seu
amor promete à Pátria»85. Por isso conciliava – e com vigor aforístico – estes
pólos antagónicos: «Se os grandes apertos são vésperas de grandes fortunas,
não só infiro os do tempo próximo futuro, mas estou para louvar os que
ajudam o estado presente»86.

83 Cartas, 1746, p. 407 (Lisboa, 10 de Fevereiro de 1695).


84 Na carta ao Bispo eleito do Japão, Vieira cita estes versos de Bandarra, sobejamente conhecidos:
«Sem medida sei talhar,/Em que vos assim pareça» (Adma Muhana, Os Autos do Processo de
Vieira na Inquisição, p. 70).
85 Cartas, 1746, p. 402 (Lisboa, 6 de Janeiro de 1693).

86 Cartas, 1746, p. 402 (Lisboa, 6 de Janeiro de 1693).


Isabel Almeida 43
O raciocínio aqui expendido, casando, numa solução anfibológica,
«grandes apertos» e «grandes fortunas», não se circunscreve às epístolas do
Duque: parte de uma forma mentis, é parte da cultura barroca, fascinada pelas
alianças de opostos, o embate de contrários. O lema aduzido por D. Nuno de
Melo atravessa textos de Vieira: «A maior fúria da tempestade é o mais certo
sinal que os marinheiros têm de se querer mudar o vento»87. Que verifica-
mos? Equacionado o problema por este ângulo, nunca o lugar das esperanças
se extingue, e por esse viés não espanta que o gosto da rainha pela obra
profética de Vieira se agudizasse após 1694, i.e., após a oferta de Xavier
Dormindo, e Xavier Acordado.
Nos textos desta série, traçados num período de gritante decepção pela
surdez de D. Pedro aos vaticínios da Palavra de Deos, mas também numa
atmosfera de angústia pela decadência da Monarquia portuguesa e pelas
transformações do Padroado, o Jesuíta valoriza uma ordem universal tute-
lada por Roma e pelo Papa. Não há quinto império lusocêntrico, em Xavier
Dormindo, e Xavier Acordado, e muito menos recebe ali D. Pedro II qualquer
nimbo. Contudo, iniludivelmente sensível à dedicatória deste livro, D. Maria
Sofia exerceu influência, inclusive junto de Tyrso González, Geral da Compa-
nhia, em Roma, para que Vieira terminasse a Clavis Prophetarum. Ignoramos
como viu a rainha os sermões de Xavier Dormindo, e Xavier Acordado: fervoro-
sa devota de S. Francisco, amiga e patrocinadora da Companhia, achá-los-ia
puros encómios da evangelização jesuíta? Ou, cativa do furor que sopra,
eufórico, na Palavra de Deos, entenderia as severas críticas acerca da decrepi-
tude do Império português como avisos que não anulavam a esperança de
«aumentos desta monarquia»88 – horizonte que postularia ser o da Clavis?
Dividido entre desejo e desencanto, num enleio de afectos que o público
seiscentista havia de interpretar como tempestade a vencer pela bonança,
Vieira parece – sem certezas… – admitir esta possibilidade. Nos derradeiros
passos da sua carreira, a fénix renasce das cinzas: data de 1695 a Voz de Deos
ao Mundo, a Portugal, & à Bahia; nos últimos tomos dos Sermoens, a inserção
de textos da inflamada década de 40 traz de volta o arauto de «bons anos»
para Portugal; a 12 de Julho de 1697, uma mensagem alvissareira visava
tranquilizar Tyrso González – «No livro De Regno Christi in terris consummato

87 Cartas, III, p. 588 (Baía, 14 de Julho de 1690 – a Sebastião de Matos e Sousa).


88 Cartas, 1746, p. 423 («Carta que a Sereníssima Rainha Dona Maria Sofia escreveu ao Padre
António Vieira em agradecimento do livro de Sermões de S. Francisco Xavier […]», 28 de
Fevereiro de 1695).
44 Paratexto

trabalha a meu lado com o maior empenho e diligência o P. Antonio Maria


Bonucci […] Assim espero, com o auxílio de seu estudo e actividade e princi-
palmente com a protecção de Deus, pôr, no ano que vem, a última demão e a
coroa em obra por tão largos anos elaborada»89.
Com a morte de Vieira, a 18 de Julho – seis dias volvidos sobre o ditado
desta carta –, a Clavis ficou, porém, imperfeita para sempre. «Aos quatro
Livros Latinos de Regno Christi in terris consummato, por outro nome, Clavis
Prophetarum», na forja em 1679, faltou, até 1697, «pôr a última mão».

3. dos sonhos que homem sonha


Nos manuscritos da Clavis Prophetarum, não raro a folha de rosto
ostenta, entre fórmulas apelativas: «opus […] desideratissimum»90. Dado
intrigante: as cópias – ao menos, as inventariadas – são todas póstumas,
como se a difusão deste texto, «desideratissimum», não pudesse ocorrer
antes do desaparecimento do seu autor.
A Clavis encerrava um inegável potencial polémico. Mesmo em
ambiente benigno e na onda de comoção pelo falecimento de Vieira, não se
pouparam restrições nem vigilância na transmissão do texto, do Brasil para a
Europa. Importaria tanto cuidar de um «tesouro» como controlar uma obra
melindrosa… Apesar de algumas opiniões abonatórias, Roma não consentiu
na impressão da Clavis ou do que dela existia: um livro I quase completo, um
livro II lacunar, o esboço de um livro III, bem como fragmentos cuja dispo-
sição ficara por definir91. O IV livro, referido por Vieira em 1679, recordado
no vago «meditabatur» do elenco bibliográfico estabelecido na Baía, dias
depois da sua morte, e reiterado por Antonio Maria Bonucci, não passaria de
um projecto92.
Investigações conduzidas por Margarida Vieira Mendes93 e apuradas
por Arnaldo do Espírito Santo94 garantem – tal como as pesquisas de António

89 Francisco Rodrigues, «O P. António Vieira. Contradicções e Applausos», p. 110.


90 Ver António Lopes, Vieira o Encoberto, pp. 172-178.
91 Ver Arnaldo do Espírito Santo, «Censuras da Clavis Prophetarum do Padre António Vieira».

92 Ver Francisco Rodrigues, «O P. António Vieira. Contradicções e Applausos», pp. 110-112; Arnaldo

do Espírito Santo, «A Clavis Prophetarum à luz das referências cronológicas intratextuais» (no
prelo). Agradeço ao Prof. Arnaldo do Espírito Santo a possibilidade de ler este ensaio.
93 Ver Margarida Vieira Mendes, «Chave dos Profetas: a edição em curso», pp. 32-35.

94 Arnaldo do Espírito Santo, «A Clavis Prophetarum à luz das referências cronológicas

intratextuais» (no prelo).


Isabel Almeida 45
Lopes95 ou Silvano Peloso96 – que os livros I e II desta longa e cansada obra
foram compostos em Roma, na década de 70, e que o esquisso do livro III
(eventualmente iniciado na Cidade Eterna) foi realizado no Brasil, na década
de 90. Ora, se em regime póstumo, por deliberação superior, a divulgação da
Clavis foi cerceada, durante a vida de Vieira, mas por sua vontade, a comuni-
cação do texto escrito terá sido diminuta. Há que distinguir, todavia, tempos
e modos: em Roma, compondo os Livros I e II, o Jesuíta permitiria a alguns
leitores aquilatar o fôlego da Clavis; em Portugal, como no Brasil, terá pri-
mado pelo recato.
Lembremos que foi em Roma que, em 1712, o embaixador de Portugal,
Marquês de Fontes, buscou para D. João V uma cópia da Clavis (sinal de que
o texto não circularia facilmente em Lisboa, nem estaria na posse de quem
frequentava a corte do Magnânimo97); não esqueçamos que D. Diogo
Justiniano apenas indirectamente falou da Clavis, escorado no que em Roma
havia coligido98; lembremos o silêncio de Vieira aos pedidos instantes do
secretário do duque de Cadaval, Sebastião de Matos e Sousa, que durante dez
anos, carta após carta, requereu sem êxito e – o que é mais – sem réplica o fim
da obra99; lembremos que, nas epístolas endereçadas a Duarte Ribeiro de
Macedo, não há qualquer indício de que Vieira tenha doado ao amigo um
exemplar (sequer um excerto…) do que produzira.
Em síntese: se em 1679, na Parte I dos Sermoens, mencionar a Clavis cons-
tituiu uma maneira de sondar interesses, maxime o de D. Pedro, a sua míngua
ou ausência terá resultado no teimoso abandono e na severa clausura da obra.
Esquivo a explicações, Vieira foi adiando a conclusão desta em que, parado-
xalmente, dizia residir a essência dos seus «estudos». De facto, ao contrapor
a esses «palácios» (símile cunhado por Sebastião de Matos e Sousa, aliás100)

95 António Lopes S.I., Vieira o encoberto, pp. 139-140.


96 Silvano Peloso, Antonio Vieira e l’impero universale, pp. 102-103.
97 Ver Margarida Vieira Mendes e Rita Marquilhas, «A Quarta Mão», p. 20.

98 D. Diogo Justiniano esteve em Roma, provavelmente na segunda metade da década de 90.

Agradeço a José Pedro Paiva esta informação.


99 Ver Cartas, 1746, pp. 332-385.

100 Sebastião de Matos e Sousa, porventura associando a Clavis à História do Futuro, faz uma lúcida

avaliação do caso de Vieira: «Ainda não logrei este livro de que Vossa Paternidade nos fez mercê;
entretanto dormindo e acordado sonho com os sonhos e com as vigias de Xavier, e também
sonho com o mais em que Vossa Paternidade parece que dorme com essas relíquias dos cuidados
de tantos anos, e com estes descuidos de relíquias tão preciosas; mas que há-de ser, se se conju-
ram doenças, quedas, aleijões, desgostos, negócios, consultas, visitas, contendas, anos, e mais
46 Paratexto

«choupanas», i.e. os Sermoens101, encenou, em 1696, um lamento estranho,


pois era à oratória sagrada que, com afinco e contra a corrente de muitos
admiradores, então se entregava. A Clavis tardou, e decerto por causa de uma
«ferida narcísica»102 que o alheamento do rei acirrava; pelo desgosto com
Portugal – fria «mátria»103, terra de «sombras»104; por melancolia, fadiga,
senectude105. Na «extrema velhice» de Vieira, não haviam de faltar can-
didatos a colaboradores no opus magnum106; sobejaria, porém, a relutância
do autor, cioso do seu nome e avesso a intromissões ou parcerias107.
Palavras de Vieira: os «compositores de livros» precisam de resolver «no
que absolutamente hão de dizer: e conforme a dita resolução, ou moderam
ou ampliam, ou mudam ou prosseguem; ou tiram ou acrescentam; e muitas
vezes riscam, e retractam as mesmas conclusões, que determinavam seguir:
não havendo cousa alguma tão exatamente escrita no primeiro correr da
pena, que não tenha sempre que emendar»108. «Summe inordinatum, extre-

que tudo uns futuros imperfeitos, que por Vossa Paternidade julgar por imperfeito tudo, os deixa
no estado de futuro, que nunca será? Paciência. Será esta obra como a maior parte dos palácios
da nossa Corte, grandes desígnios e nenhum acabado; mas neles o cabedal foi menos que o
ânimo. Donde tudo é grande, lástima é grande ficar obra não só imperfeita, mas desfeita, porque
sobre esses alicerces ninguém sabe edificar.» (Cartas, 1746, pp. 374-375 – Lisboa, 25 de Fevereiro
de 1696).
101 Cartas, III, p. 681 (Baía, 27 de Junho de 1696). Repare-se nas palavras dirigidas a Sebastião de

Matos e Sousa: «lembrado das instâncias de V. M.cê, muito mais do que posso me aplico àquela
fábrica que V. M.cê compara aos palácios da nossa corte. Lá não sei onde demonstrei eu que o
querer se devia medir com o poder, sobre a sentença tão limpa daquele leproso: Si vis, potes. E,
estando eu em Lisboa todo aplicado à obra, a força de Castela e Portugal me a tiraram das mãos,
querendo que em lugar de palácios altíssimos me ocupasse em fazer choupanas, que são os
discursos vulgares que atégora se imprimiram.»
102 Margarida Vieira Mendes, A Oratória Barroca de Vieira, p. 285.
103 Padre António Vieira, «Sermão de Nossa Senhora da Conceição», in Sermões, X, 1959, p. 256.
104 Padre António Vieira, «Sermão de Santo António», in Sermões, VII, 1959, pp. 81-118.
105 Ver Maria Lucília Gonçalves Pires, «Andanças missionárias em textos de Vieira», p. 195.
106 É geralmente recordada a recusa do Padre Valentim Estancel, a quem Vieira convidou para seu

colaborador (Cartas, III, pp. 678-679). Mas não é crível que Estancel fosse a única hipótese de
escolha, e sobretudo há que explorar esta relação, provavelmente crispada por um espírito de
mútua rivalidade (ver Francisco Rodrigues, «O P. Antonio Vieira. Contradicções e Applausos»,
pp. 109, 114, 115).
107 Faltam informações acerca do processo de selecção de um adjuvante. Note-se, porém, que foi

muito de leve que, numa carta de 9 de Setembro de 1687, Vieira acenou a Bonucci com a hipótese
de colaboração (Cartas, III, pp. 548-549). E se em 1695 Vieira falava de pedidos superiores de
conclusão da Clavis, só em 1697 Bonucci terá em pleno assumido funções nesse trabalho (ver
Francisco Rodrigues, «O P. Antonio Vieira. Contradicções e Applausos», p. 110).
108 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 280.
Isabel Almeida 47
me confusum, defectuosum, mutilatum, et imperfectum»109, na expressão
de Carlo Antonio Casnedi, o texto da Clavis arrasta, assim, um problema de
leitura: há nele o que se quis ver nele? A Clavis prolonga, sem quebras nem
diferenças, a rota profética de Vieira, que os Exercícios Espirituais de Santo
Inácio cedo terão inspirado110 e que a gesta das descobertas, a fundação e a
restauração prodigiosas da independência de Portugal, ou ainda a faina
apostólica no Oriente e no Ocidente incentivaram111?
Num esquema grosseiro, para captar «brevemente o dilatado»112 –
lances de «defesa pessoal», «ofertas ou serviços de vassalo»113 –, delinea-
ríamos essa trajectória a partir do «Sermão de S. Sebastião» (1634), onde
serpenteia o tema do Encoberto, que a Companhia muito prezou114 e que
sermões como o dos Bons anos ou de S. José, ambos da década de 40,
aproveitam, hábeis, em prol de D. João IV, cuja coroa, segundo Vieira, teria
«Deus guardado para possuir o império do mundo»115. Em 1659, sobressai a
Carta ao Bispo eleito do Japão: a exaltação de D. João IV (eco do perdido
sermão de Salvaterra?116) transborda com o sonho da sua ressurreição,
graças à qual se cumpriria a parusia cantada por Bandarra. Dos anos 60, e da
época do processo inquisitorial, datam, por um lado, textos em que Vieira,
actualizando tópicos já amadurecidos, procura ultrapassar barreiras do

109 Simone Celani, Carlo Antonio Casnedi e a Clavis Prophetarum de Antonio Vieira, p. 12.
110 Ver António Vaz Pinto S.J., «A imagem de Deus na obra e acção do Padre António Vieira», pp.
18, 20.
111 Sobre a importância da actividade missionária no Brasil na concepção da ordem ideal do

mundo, ver Thomas M. Cohen, The Fire of Tongues. A respeito do deslumbramento de Vieira com
a história de Portugal, ver Margarida Vieira Mendes, «Vieira no Cabo de Não»; Paulo Alexandre
Esteves Borges, A Plenificação da História em Padre António Vieira.
112 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 276.

113 Margarida Vieira Mendes, «Comportamento profético e comportamento retórico em Vieira»,

p. 66.
114 Repare-se no relato de um torneio que a Companhia organizou em Braga: «Entrou pela posta no

último lugar o ventureiro da fortuna acompanhado de quatro lacaios, armado de todas as peças,
sobre um fermoso ginete. O traje (além de úas luzidas e bem gravadas armas brancas, e sobre o
elmo rica plumagem) era um faldão de veludo negro, com larga franja de negro e ouro, calças
largas golpeadas de cetim ricamente assoguilhadas entreforradas de ouro, guarnição de prata,
botas curtas abotoadas de botões de cristal fino. O mote que espalhava seu padrinho, dizia assi:
“Sombra sou de Portugal/Como tal venho encoberto./Não tive em esforço igual,/Muito há que
me vai mal,/Mas ando do bem mui perto.”» (Relacam Geral das festas que fez a Religiaõ da
Companhia de Iesus na Provincia de Portugal…, f. 137).
115 «Papel a favor da entrega de Pernambuco aos Holandeses», p. 106.

116 Ver Cartas, III, 745-746 (Carta apologética ao Padre Jacome Iquazafigo, 30-4-1686).
48 Paratexto

Santo Ofício, apostado em fazer ouvir na corte «esperanças de Portugal» e


em eleger como foco da sua homenagem o rei D. Afonso VI. Nesse esforço
convergem o Livro Anteprimeiro da História do Futuro («retalho» de uma mais
vasta «peça», que o Jesuíta se terá precipitado a ceder117…); tudo quanto veio
a ser impresso, postumamente, como História do Futuro; múltiplos
fragmentos de discurso, de catalogação controversa (rascunhos da História do
Futuro? borrões de uma Apologia das Coisas Profetizadas?118). Por outro lado,
uma vez confinado ao cárcere (Outubro de 1665), Vieira escreve a Represen-
tação perante o Santo Ofício, perseverando em bandarristas «esperanças de
Portugal» e bíblicos anseios de mutação ecuménica, que em 1686 admitia
merecedores de impressão119. 1690: Palavra de Deos propalaria «esperanças»
similares, passando a aplaudir D. Pedro II e sua descendência. E é desta direc-
ção que a Clavis parece desviar-se, não porque rejeite matéria comum120, mas
porque não contém pistas para uma identificação da origem do Imperador
universal previsto no tratado. Diversamente do que nos séculos XVII e XVIII
se julgou, entronizando a Clavis como pregão de arreigadas «esperanças de
Portugal», o texto não as confirma.
Inferir-se-á que nunca iria considerá-las? E se em vez da experiência da
ingratidão (fermento de esterilidade121; terrível remedium amoris122) Vieira
tivesse encontrado em D. Pedro um destinatário grato? Não sabemos, caso a

117 Cartas, II, p. 143 (a D. Rodrigo de Meneses – 23 de Março de 1665).


118 Interpretações distintas são propostas, por um lado, por Adma Muhana, responsável pela edição
de um livro que intitulou Apologia das coisas profetizadas, e, por outro, por Ana Paula Banza, que
retomando hipóteses formuladas por José van den Besselaar, defende que esses trechos
pertenceriam à História do Futuro (ver Ana Paula Banza, «Introdução», in Representação perante
o Tribunal do Santo Ofício, I, pp. LIV-LXII).
119 Na carta a Jácome Iquazafigo (30-4-1686), Vieira frisa que nos dois anos de prisão inquisitorial

«sin libro alguno, y solo con papel y pluma, compuso entonces quarenta y quatro questiones no
tratadas, que huvieran ya salido à luz publica, si por satisfacer a otros deseos no se huvieran
anticipado otros vulgares.» (Cartas, III, p. 791).
120 Em síntese, José van den Besselaar enfatiza «uma ideia dinâmica, inalterável na sua substância,

mas sempre sujeita a correcções nos pormenores e sempre admitindo novas aplicações.» (José
van den Besselaar, «Introdução», in António Vieira, História do Futuro (Livro Anteprimeiro), p. 2).
121 A ingratidão esteriliza, repetiu Vieira no «Sermão de Acção de Graças» pelo nascimento do

infante D. António (Sermões, XV, 1959, pp. 126, 127).


122 Vieira foi leitor – assumido – de Ovídio. Para lá de abundantes exemplos, é possível detectar a

presença da lição do poeta latino no travejamento do «Sermão do Mandato» (Lisboa, Hospital


Real, 1643), em que se desenvolve a ideia de que «o terceiro remédio do amor é a ingratidão»
(Sermões, IV, 1959, p. 303). Devo esta indicação à Professora Maria Cristina Pimentel, a quem
agradeço.
Isabel Almeida 49
Clavis tivesse progredido, como desenvolveria linhas suspensas acerca da
hierarquia imperial: «Addit pagina tertia, versículo “Quod si”, quod tunc
omnes reges uni Supremo Monarchae subdentur; de quo puncto infra
spondet se disputaturum»123. Não sabemos por inteiro como seria, mas
sabemos das suas afinidades com outros textos de Vieira, muito em
particular com a Representação perante o Santo Ofício, que atingiu forma total
e convida, por isso, a especiais cotejos.
A «Representação Primeira» espraia um bandarrismo e um lusocen-
trismo inequívocos; a «Segunda» privilegia o conceito de Império de Cristo e
apenas nos capítulos finais envereda por estas ponderações cautelosas:
«tenho por muito provável que a terra e nação deste futuro Emperador e
Império é a terra e nação portuguesa […]»124. Tivesse Vieira deixado por
rematar o texto, diríamos que a «Representação Segunda» suprimia esta
questão? Note-se que ambas as partes foram submetidas, como um díptico,
ao olhar do Santo Ofício. Ora, sendo o núcleo dos Livros I e II da Clavis
equiparável ao da «Representação Segunda», resta aceitar – em teoria – que
ali podia caber o lusocentrismo, e essa era, explicitamente, em 1679, a pers-
pectiva perfilhada na correspondência com Ribeiro de Macedo, tal como o
fora no «Memorial» de 1667125. Na Clavis, porém, a teoria dista da prática,
e cava-se um fosso entre o que poderia ser e o que é dito: argumentos investi-
dos na «Representação Segunda», onde o Jesuíta consagrava o rei de Portugal
como paladino da Igreja e da missionação, transitaram, como lastro, para
«De Universale Praedicatione» (c. 1695126), mas também aqui só o encómio

123 Simone Celani, Carlo Antonio Casnedi e a Clavis Prophetarum de Antonio Vieira, p. 32. «Acrescenta

na terceira página, no parágrafo que diz “Porque se”, que naquele tempo todos os reis serão
submetidos a um único monarca, ponto sobre o qual promete discutir mais além» (p. 84).
124 Padre António Vieira, Representação perante o Santo Ofício, II, p. 442.

125 «O argumento ou assunto do livro, que quis há muitos anos escrever, e do qual totalmente tinha

desistido depois que me dediquei às missões, era o Império consumado de Cristo, debaixo do
nome de Quinto Império, conforme o cômputo dos impérios de Daniel». Enfatizando que não
se tratava de novidade, Vieira dizia: «acrescentava eu, ou pretendia acrescentar ao argumento
geral dos ditos Autores, a acomodação e aplicação particular do Reino e Rei, para que Deus tinha
guardado aquela empresa e Império, interpretando, em honra de nossa nação, que seria Rei
Português, e do Reino de Portugal […]» (Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na
Inquisição, p. 277).
126 Este tratado constitui parte do Livro III da Clavis. Sobre a datação do texto, ver Margarida Vieira

Mendes, «Chave dos Profetas: a edição em curso», p. 32; Arnaldo do Espírito Santo, «A Clavis
Prophetarum à luz das referências cronológicas intratextuais» (no prelo).
50 Paratexto

às «rainhas» insinua uma engenhosa reverência a D. Maria Sofia127.


Movendo-se em estrada batida e debatida, na Clavis Prophetarum Vieira não
vai mais longe.
Esta tensão entre potência e acto carrega-se de sentido, porquanto o
Jesuíta nem desistiu de ser apocalíptico nem de, ao sê-lo, destacar Portugal.
O que tudo indica é que o seu lusocentrismo (ou a expressão desse
lusocentrismo) flutuou com o seu arbítrio – não segundo o que sabia ou
podia, mas segundo o que queria dizer, fazendo «seu o querer, e seu o naõ
querer»128, como salientou ao reeditar em 1692 o «Sermão do Esposo da
Mãe de Deus S. José».
Repare-se: nos anos 90, Vieira revitalizou o seu ethos profético, disposto
a acordar arrebatamentos de longa data. Apresentada como reacção ao
aparecimento de um cometa, a «Voz a Portugal, à Bahia, ao Mundo» realça,
em 1695, a figura do pregador profeta, cujo discurso paira, vacilante, entre o
desvelo por Portugal e a repreensão de vícios que o desfeiam. Vieira recrimi-
na o luxo e o desconcerto, preconizando, como necessários, «açoites» mori-
geradores. A ideia tinha tradição na sua obra, pois logo na carta «Esperanças
de Portugal» perorara: «posto que todos devem aceitar estes castigos como
da mão de quem os dá e procura aplacar sua divina justiça tão merecida-
mente provocada, saibam porém os portugueses (para que os não desanime
nenhum trabalho por grande que seja) que o mesmo Deus que os castiga os
ama, antes porque os ama os castiga, e que, depois de castigados e purifi-
cados com esta tribulação, os há de fazer vasos escolhidos de sua glória»129.
E foi em função deste credo que Vieira veio a incluir nos Sermoens textos que
tematizavam uma missão divina para Portugal: o «Sermão dos Bons Anos»,
proferido em 1642 e por várias vezes impresso em folheto avulso130, entrou,

127 Padre António Vieira, Clavis Prophetarum/Chave dos Profetas, p. 589. Aos «reis», Vieira dirige
uma advertência: «“Saibam pois os reis, comenta Alápide, que de si depende a fé, a piedade e a
santidade de todo o reino, e que na sua mão está o tornar santo todo o reino, sujeitá-lo à Igreja e
conduzi-lo à eterna salvação. Não sejam pois negligentes em pô-lo em prática, se amam a sua
salvação e a dos seus. No grande dia do Juízo Final do mundo, Deus há-de pedir-lhes contas
dela”» (pp. 589-591).
128 Maria de Fátima Brauer-Figueiredo, António Vieiras «Sermão do Esposo da Mãe de Deus S. José»,

p. 67.
129 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 68.

130 Sobre a difusão deste sermão, pleno de «conteúdo político» (Aníbal Pinto de Castro, António

Vieira, p. 59), ver José Pedro Paiva (coord.), Padre António Vieira. 1608-1697. Bibliografia,
pp. 263-267.
Isabel Almeida 51
com algumas variantes, na Parte undecima (1696)131, em cuja dedicatória, a
D. Catarina, o «pregador de Sua Majestade» enfatizava, nostálgico, a antiga
intimidade que o unia a D. João IV e à família real; o «Sermão de S. José»,
pronunciado, outrossim, em 1642, em dia de aniversário do soberano
Restaurador, ou o «Sermão de S. Roque», de 1644, figuram na Duodecima
Parte (1699). Aí, trazendo à colação a profecia de Ourique, o Jesuíta repete
que «o Império de Cristo na Igreja militante somos nós»132, e deduz, acerca
de D. João IV: «Príncipe que gasta com seus vassalos tudo o que recebe deles,
não lhe compete menos conquista que a do mundo, menos Monarquia que a
do universo. Assim o prometem as nossas profecias, o confessam as nossas
esperanças fundadas no exemplo de tal Rei […]»133.
Estes textos foram seleccionados por Vieira após 1695, quando sobre ele
incidia o duplo assédio de D. Maria Sofia e do Geral dos Jesuítas. Claro é que,
no termo da sua vida, burilando (só então?134) o «Sermão dos Bons Anos»,
polindo o «Sermão de S. José» ou o «Sermão de S. Roque», tratava de corres-
ponder à fama de profeta das «esperanças de Portugal». Óbvio, porém, é que,
ao resgatar essas «esperanças», homenageava D. João IV, não enaltecia D.
Pedro II, cujo poder só fugazmente, no «Sermão Gratulatório e Panegírico»
pelo nascimento de D. Isabel, se insinua como o de um Quinto Império135.

131 Ver Raymond Cantel, Les Sermons de Vieira, pp. 485-487. A importância da recuperação deste
texto foi observada por este estudioso (ver Prophétisme et Messianisme dans l’Oeuvre d’Antonio
Vieira, p. 186).
132 Sermoens […]. Parte Duodecima, p. 379. Corrijo um erro que cometi em trabalho anterior («Um pé

na terra, outro nas estrelas», n. 57, p. 403): o «Sermão do Esposo da Mãe de Deus S. José»
apresenta apenas ligeiras variantes na sua transmissão; é o «Sermão de S. José», impresso em
1699 e de que não há tradição em folheto, o texto em cujo final vibra, sim, um encarecimento
lusocêntrico de Portugal e do monarca D. João IV.
133 Padre António Vieira, Sermões, VIII, pp. 69-70.

134 No intróito da Parte I dos Sermoens, Vieira prometia ao leitor: «irão saindo diante, e à desfilada,

os que estiverem mais prontos» (Padre António Vieira, Sermões, I, 2008, p. 7). Atendendo a que
o «Sermão dos Bons Anos» estava «pronto» (e não terá sido custosa a intervenção cirúrgica com
que o Jesuíta retirou da versão primordial vários passos anti-castelhanos), que motivo o manteve
tantos anos fora da edição definitiva dos Sermoens?
135 Vincando o alcance mundial da expansão dos «Portugueses», Vieira pergunta: «Houve algum

filho de Noé, houve alguma nação outra nas idades, por belicosa e numerosa que fosse, e cele-
brada nas trombetas da fama, que se dilatasse e estendesse tanto por todas as quatro partes da
Terra? Nenhuma. Nem os Assírios, nem os Persas, nem os Gregos, nem os Romanos. E porquê?
Porque esta bênção, esta herança, este morgado, este património, era só devido aos Portugueses
[…]. Não posso deixar de confirmar esta bênção ou doação (porque me não ponham pleito) com
uma escritura pública, e também sagrada.» (Sermões, XV, p. 6). Neste caso, a escritura não
52 Paratexto

«Lisonjas são de um Filho as felicidades de um grande Pai»136? O caso é


ambíguo e apetece interrogar se a incompletude da Clavis, mais ou menos
voluntária, não conviria a um Vieira que, ávido de ethos profético, o ancorou
ostensivamente no passado, fosse para patentear a idade e a autoridade desse
seu estatuto, fosse para frisar o desengano pela «ingratidão» que o
martirizava no presente137: mostrando que, melhor que ninguém, saberia ser
o Daniel de qualquer Baltasar, o Jesuíta guardou para si a chave maior. Como
advertiu Margarida Vieira Mendes: a Clavis Prophetarum não foi a derradeira
obra do autor («Os Sermões também são a sua derradeira obra e ficou
completa»138); ali pulsa um edifício in fieri, sujeito a um ritmo e um
calendário atribulados, e, como sempre em cada texto de Vieira, ao sabor de
muita intenção, muita circunstância139.

é o famoso testamento de Afonso Henriques, o que não será despiciendo, dado o peso que o
texto assume, na obra de Vieira, na defesa das «esperanças de Portugal». E o aparte irónico do
pregador («porque me não ponham pleito») pode aludir ao processo inquisitorial, cuja memó-
ria recente terá levado o Jesuíta a adoptar aqui uma posição mais discreta. Significativo se
afigura, também por isso, que, ao preparar a XII Parte dos Sermoens (ultimada em 1697), Vieira
tenha mantido o texto tal como ele foi difundido, em folheto, logo no ano da sua pregação, em
1669 (ver Raymond Cantel, Les Sermons de Vieira, p. 490).
136 «Dedicatória ao Sereníssimo Príncepe Dom Pedro II. Rei de Portugal», Historia da Vida do

Veneravel Irmaõ Pedro de Basto, s/f.


137 Tenhamos em conta a ironia de comentários formulados no «Sermão de Acção de Graças» pelo

nascimento do Infante D. António (publicado em 1696; erradamente, no Índice, lê-se «pelo


nacimento do Infante D. João, quarto filho do Sereníssimo Rei D. Pedro II de Portugal»), sobre
profecias auspiciosas: «Portugal é tão pouco ambicioso, e está tão cheio de si, que se contenta
com o seu. Fiquem estes contos para as fadas, que os cantem ao nosso infante quando lhe emba-
larem o berço e animarem o sono» (Sermões, XV, p. 121). Não menos eloquente se afigura a inser-
ção, na duodécima parte dos Sermoens (preparada em 1697, postumamente impressa em 1699)
do «Sermão de Santo António» – duríssimo na denúncia de Portugal como «terra das sombras»
-, o qual, por conselho do Marquês de Gouveia, em 1683, Vieira deixara de incluir na terceira
parte dos Sermoens (ver Margarida Vieira Mendes, A oratória barroca de Vieira, pp. 311-317).
138 Margarida Vieira Mendes, «Chave dos Profetas: a edição em curso», p. 32.

139 Ver Margarida Vieira Mendes, «Chave dos Profetas: a edição em curso», pp. 33-34. Subli-

nhemos: a obra profética de Vieira desenvolveu-se sempre à medida da contingência. Para lá do


«pensamento» da Clavis, cedo desenhado, a escrita de textos ficou marcada por parâmetros
contextuais, e associa-se à busca de altas protecções: a Carta de 1659 radica no conflito com os
colonos do Brasil, e é a rainha regente que pretende comover; durante o processo inquisitorial,
Vieira admite que D. Afonso VI teria um papel estupendo a desempenhar; na Palavra de Deos,
numa autêntica captatio benevolentiae, dirige as expectativas para D. Pedro II e sua progénie; na
Clavis, porém, se a necessidade de responder ao Santo Ofício português era imensa, as condições
em que se achava Vieira não o impeliriam a designar de imediato a cabeça do Reino de Cristo.
Isabel Almeida 53
A expectativa gerada nos séculos XVII e XVIII sobre a Clavis poderia
constituir objecto de um ensaio como o de Pierre Bayard, Comment parler des
livres que l’on n’a pas lus. Ao contrário do que apressadamente se congemina
por este título iconoclasta, o autor não faculta receitas para usos sociais de mais
ou menos leve ou irresponsável hipocrisia; procura compreender modos de
ler, atento à influência de preconceitos na percepção e na interpretação de
uma obra. «Parler des livres que l’on n’a pas lus» – demonstra Bayard – não
se confunde com desonestidade ou propósito fraudulento: nasce de equí-
vocos, miragens, suposições, crença, fé; é parte da aventura hermenêutica.
Se leitores de Seiscentos e de Setecentos falaram de uma Clavis que
nunca leram, projectaram nesse texto imaginado uma imagem do seu autor
– a de profeta de «esperanças de Portugal». Como vimos, a força desta
construção é evidenciada, a par de testemunhos copiosos, por paratextos, e
desde logo pelo que dizem «licenças», sobre as quais há que pensar: entre o
que presumem e o que a vária e metamórfica obra de Vieira revela, emerge a
complexidade da leitura.

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Espírito Santo, Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel, Ana
Paula Banza, I, Lisboa: CEFi – Centro de Estudos de Filosofia/Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2008
Dedicatória: relação e discurso
Ernesto Rodrigues
Universidade de Lisboa

Inscrição peculiar do universo artístico, tem a dedicatória mais largo


curso no domínio bibliográfico. Em artigo no número 13 de Românica
(Rodrigues, 2004, pp. 18-19), esbocei um esquema sobre o assunto em
epígrafe agora refundido:
1. Dedicatória impressa; 2. dedicatória manuscrita
1. introdução: dedicatória de obra e de exemplar; pública e privada; 1. 1.
como parte integrante da épica; 1. 1. 1. lugar e extensão da dedicatória; 1. 2.
como elemento peritextual; 1. 2. 1. título-dedicatória (ou título dedicatório); 1. 2.
2. prólogo, proémio e prefácio-dedicatória; 1. 2. 3. carta-dedicatória; 1. 2. 4.
formas em verso; 1. 2. 5. lugar; 1. 2. 6. língua; 1. 3. momento; 1. 3. 1. razão e
função da dedicatória: necessidade e reconhecimento, admiração e proximidade;
1. 3. 2. relações dedicador (autor, impressor, editor, editor literário…)-
dedicatário, e caracterização destes: mecenas, senhor, poderoso; 1. 3. 3. dupla
dedicação, e dobrada ou multiplicada; 1. 3. 4. subscrição; 1. 4. na moderna lírica;
1. 4. 1. estrutura organizacional; composição avulsa; 1. 4. 2. cultores; 1. 4. 2. 1.
na ficção; 1. 5. trocas e rasuras; 1. 6. conclusão.
2. ementas para a história da dedicatória manuscrita: de D. Pedro (início em
1418) a exemplos pós-oitocentistas; 2. 1. local, data e assinatura; 2. 1. 1.
falsificações; 2. 1. 2. valor da dedicatória e da assinatura; 2. 2. o modo
institucional; 2. 2. 1. sessões de autógrafos; 2. 2. 2. indicações de catálogo e
outras; 2. 3. dedicatória-inédito (poema, carta…), à entrada e no texto; noutros
suportes; 2. 3. 1. artísticas; 2. 3. 2. dedicatória rasgada, riscada.
1. Esta proposta diverge da avançada por Gérard Genette em Seuils
(1987, p. 110-133), que distingue entre «dédicace d’œuvre» – o verbo é dédier
– e «dédicace d’exemplaire» – o verbo é dédicacer1. Maria José Meira (1999,

1 Maurice Couturier (1995, p. 45) não aceita esta diferença, pelo que escreve «dédicacer son
livre», «dédicaçant son œuvre»…

Românica 18, 2009


60 Paratexto

col. 1409) propôs dedicatória pública («o dedicador indica o dedicatário») e


privada, ou de exemplar. Maria Isabel Faria e Maria da Graça Pericão (1999,
p. 175) oferecem ‘dedicatória’ autoral e ‘dedicatória autografada’, sendo esta
«da autoria do próprio autor da obra ou de uma pessoa que a oferece a
outra».
Espanto maior ao ler G. Genette não é que o seu capítulo «Les dédica-
ces» nos sirva exemplos pouco liminares; mas que não aprofunde a riqueza
da forma (que será género traduzido por Jorge de Sena em Dedicácias2, termo
ausente, como ausente está ‘dedicatário’, dos melhores dicionários) enquanto
elemento fora do paratexto.
1. 1. A dedicatória é parte indissociável de alguma épica, avulsa ou
integradamente recuperada na lírica moderna, mas o ensaísta limita-se a
quatro linhas sobre Orlando Furioso e Jerusalém Libertada. Se evocarmos o
molde camoniano, algumas questões ficam de pé: quem dedica, autor ou
narrador? A que Rei se dirige? Se D. Sebastião, não há mostras de desrespeito
que confundem o sentido – seja, o que não é indicado – deste terceiro gesto na
ordem das quatro partes? Como perceberemos treze estâncias (I, 6-18) em
vésperas de Gerusalemme Liberata (1575), somente com duas (I, 4-5) em vinte
cantos? Onde e quando foi o Poema redigido, e, especificamente, as três
partes iniciais? Das não-épicas Geórgicas virgilianas a Valério Flaco, de
Ariosto à Araucana (três partes – 1569, 1578, 1589 – reunidas em Madrid,
1590), de Alonso de Ercilla, dirigida a Filipe II; de Luís Pereira Brandão
(Elegíada, Lisboa, 1588, dedicada ao cardeal Alberto, governador filipino de
Portugal) e Francisco de Andrade (O Primeiro Cerco Que os Turcos Puseram à
Fortaleza de Diu nas Partes da Índia, Coimbra, 1589) a Gabriel Pereira de
Castro, cuja Ulisseia ou Lisboa Edificada (Lisboa, 1636) não exagera no preito
a Filipe IV (I, 3-8), há um trabalho a empreender, que reverte aquela
tipologia, ou limita o estudo da dedicatória enquanto segmento peritextual.
1. 2. A dedicatória é título e género (por exemplo, na carta em verso
Epistola ad Pisones) ou, para celebrar mecenas nem sempre confirmado,
acrescenta o nome deste ao título, repetido em frontispício. Grosso modo, a
tradição aristocrática viria até à queda do Antigo Regime, quando a dedica-
tória se perfila manifesto ou apologia, capaz de substituir prefácio, prólogo,

2 Lisboa: Três Sinais, 1999. Lamento a impossibilidade de, por limitação de espaço, não tratar, via
dedicatória, a relação de Sena com José Régio, Vergílio Ferreira e José-Augusto França. Os
volumes da Correspondência, em Lisboa: INCM, 1986, 1987 e 2007, são rico manancial para
análise discursiva.
Ernesto Rodrigues 61
etc. Num terceiro momento, a dedicatória simplifica-se, reduzida a parcas
linhas em mostras de afecto, amizade, admiração, camaradagem literária.
Ora, estas modalidades confundem-se nos tempos, pelo que não nos serve
tão fácil cronologia. As dedicatórias fictícias, as paródicas e as que agravam
quem, alegadamente, seduziriam, também diluem a diacronia.
A designação simples – Dedicatória, à cabeça – é poucas vezes declarada,
por tautológica: se Francisco de Sá de Miranda abre a égloga Basto com
informação saturada, mas, ao tempo, compreensível – «Dedicatória / A Nuno
Alvares Pereira», em quatro ou cinco décimas3 – e semelhantemente Matias
Pereira da Silva, que edita os póstumos Apólogos Dialogais (1721) de D. Fran-
cisco Manuel de Melo, inscrevendo «Ao Senhor D. Antonio Estêvão da Costa
/ […] / Dedicatória», já Herberto Helder opera marcação que só à segunda o
satisfaz: assim, ao reunir poemas «De “Photomaton & Vox”» em Poesia Toda
(Lisboa, 1990, p. 403), o primeiro texto avisa: «(é uma dedicatória)». Ao
refundir aquela em Ou o Poema Contínuo (Lisboa, 2004, p. 359), substitui a
parte Photomaton & Vox por Dedicatória, sem mais avisos.
A par, existem as designações compostas, proémio-dedicatória, prólogo-
-dedicatória e carta-dedicatória. Há, também, sequência de dedicatória e
carta-dedicatória, como em António de Oliveira Cadornega, Descrição de Vila
Viçosa: ao nome do destinatário, lugar e data de 1683, num oferecimento
neutro, sucede o nome completo do autor após quatro parágrafos de
justificação dirigidos ao «Excelentíssimo Senhor, da Ericeira Conde».
O prólogo-dedicatória é uma especialidade seiscentista, geralmente
reduzida a ‘Prólogo’. Separados os termos, distinguem-se pela destinação,
respectivamente, colectiva e individual, olhando, além, ao leitor ou leitores
coloquialmente atraídos, e, aqui, ao ilustre hiperbolizado. Alguns exemplos
em regime de captatio benevolentiæ ilustrariam Garrett: «Aos beneuolos
leitores», «Ao Pio Leitor», «Ao Deuoto Lector», «Prologo ao agradecido
Leitor». Lucília Gonçalves Pires (1980, pp. 47-48) analisou «dois textos em
que confluem características destes dois géneros». Desejado explicitamente
indiviso, aí está Compendio das mais notaveis cousas qve no reyno de Portugal
acontecerão desde a perda del Rey D. Sebastião até o anno de 1627. […] //
Composto por Lvis de Torres de Lyma. / Em Coimbra / […] 1654. Prologo /

3 Tudo vai dos respectivos manuscritos: ver Miranda, 1989, pp. 153-155; já exclui a designação das
églogas «Célia», «Ao Infante Dom Luis», em sete oitavas, «Andrés», «Ao duque d’Aveiro. /
Neto de el Rei dom João o segundo de Portugal», «Egloga Encantamento», «A Dom Manuel de
Portugal», em cinco oitavas.
62 Paratexto

dedicatorio ao Rey- / no, & Nobresa delle. Em Catastrophe de Portvgal na


deposição d’El Rei D. Afonso o Sexto, […], por / Leando Dorea Caceres e Faria
(Lisboa, 1669), nome que esconde o de Fernando Correia de Lacerda já em
«Dedicatoria / ao / Leitor: Esta he a primeira vez que o prologo, & a Dedica-
toria Se naõ separão, ou he dedicatoria o mesmo prologo» (p. 3).
Enquanto forma explicitada, o proémio-dedicatória é raro; assim, em
Lusitânia Transformada (Lisboa, 1607), temos: «Ao marquês de Vila Real /
Proémio Dedicatório». Seguem nove oitavas.
Entre as mais famosas cartas-dedicatórias, temos uma de Erasmo a D.
João III, datada de Basileia, 24 de Março de 1527, anteposta à 1.ª ed. das
Chrysostomi Lucubrationes, e já traduzida do latim. É uma prática regular do
segundo quartel de Quinhentos. Centrando-nos em Sá de Miranda, a
comédia em prosa Os Estrangeiros, escrita por 1527-1528 (1559), cria a incer-
teza do dedicatário, se o infante D. Henrique, se D. Duarte, como assinala
Carolina Michaëlis de Vasconcelos (p. XVII, nota). De facto, a edição de 1561
ou a inclusa nas citadas Comedias Famosas Portvguesas explicitam o «Iffante
Cardeal Dom Anrique» (1561). Mas a verdade é que, na seara de nomes, de
títulos nobiliárquicos, militares, religiosos, etc., persiste, não raro, a indefi-
nição. Aliás, não menos ambiguamente o verbo dirigir substitui dedicar em
manuscrito das Obras de Francisco de Sá de Miranda Dirigidas ao príncipe
nosso senhor que lhas mandou pedir (p. 1), sendo logo o «Soneto I. / Ao
príncipe nosso senhor» (p. 3) –, por onde se vê que não há só obra e exemplar,
mas se alcança, já, forma ou espécie particular, podendo esta assumir-se obra
quando mais extensa. «Dirigidos a Este Reino» é o que consta em D.
Francisco Child Rolim de Moura, Os Novíssimos do Homem / Poema em
Quatro Cantos (Lisboa, 1623), entre muitos outros. Reforça-se a fórmula em
«oferecido e dedicado», ou «que dedica, & offerece» [«Á Soberana e Clemen-
tissima Senhora de Todas as Creaturas / Maria»], para citar Luz e Calor
(Lisboa, 1696), de Manuel Bernardes.
São epístolas em verso, justamente, as que mais dedicatórias compor-
tam em Sá de Miranda: seis cartas referem destinatários precisos, que
problematizam a distinção genetteana dos dedicatários privados e públicos:
J’entends par dédicataire privé une personne, connue ou non du
public, à qui une œuvre est dédiée au nom d’une relation personelle;
amicale, familiale ou autre. […] Le dédicateur public est une personne
plus ou moins connue, mais avec qui l’auteur manifeste, par sa dédi-
cace, une relation d’ordre public: intellectuel, artistique, politique
ou autre. (p. 123)
Ernesto Rodrigues 63
Além de se não compreender o exclusivo de «une personne», quando
animais irracionais, nomes colectivos e abstractos se disputam, nem se aten-
der a jogos de fingimento e protocolos narrativos (como autor, pseudónimo,
heterónimo ou personagem dedicarem obra a personagem, autor, amigo,
etc.), fica ainda a imprecisão daquele «plus ou moins connue»… A incerteza
quanto à relação de ordem pessoal ou pública não é menor em leitura de hoje:
qual seria a de Miranda com «El Rei nosso senhor» (regressado na «Fabula
do Mondego»), João Roiz de Sá de Meneses (que merecerá carta-dedicatória
em verso), Pero Carvalho, seu irmão Mem de Sá, António Pereira (retomado
na égloga «Nemoroso» e em epístola solta) e Dom Fernando de Meneses?
Que reputação teriam estes, efectivamente?
Eis algumas razões para a dedicatória mudar frequentemente de lugar,
desobrigada do título e de frontispício, ora avançando para a página ímpar
após este, ou, hoje, inclusive, para o verso da folha de rosto ou das guardas.
Mais: doravante, encontramo-la em final de poema, romance, ensaio, etc.
Tomaz de Figueiredo, em A Toca do Lobo (2005), fecha com dedicatória
«À Memória, que sempre em mim vive, da nossa criada Maria Rodrigues
[…]» (p. 577). Quando um volume reúne ‘livros’, o lugar varia, naturalmente.
O mesmo pode acontecer em obra de vários tomos: as Memórias (Lisboa, I,
1919, II, 1925, III, 1933) de Raul Brandão são dedicadas «Aos Mortos», «A
Teixeira de Pascoaes», «A Luís da Câmara Reys».
Entre lugar e momento, a língua tem desmaios e canta dobres: André
Falcão de Resende soneteia «À vila de Madrid, em quatro línguas» – latim,
italiano, castelhano, francês –, idioma este regular no Cavaleiro de Oliveira,
caso de Mémoires de Portugal avec la Bibliothèque Lusitane de Diez…
(Amsterdam, 1741), e em Júlio de Castilho, Memorias de Castilho (Coimbra,
1928, 2ª ed., p. 142), com soneto em francês.

1. 3. O momento é questão mais sensível. Engloba o tempo da edição em


vida, póstuma, reedição e refundição, mudança de título e lapso da redacção.
Perfilam-se reis; na falta de um rei nacional, emerge a nobreza próxima da
Casa Real, em minoria face aos Filipes da monarquia dual. Alguns exemplos.
A Crónica do Imperador Clarimundo (1522) é prologada «Ao mui alto, e
poderoso rei D. João III, deste nome, por João de Barros, seu criado».
Não espanta que o neto, em curto reinado, seja tão epigrafado: há carta
em António Tenreiro, Itinerário… (Coimbra, 1560); no Memorial das Proezas
da Segunda Tauola Redonda (Coimbra, 1567), Vasconcelos esclarece de vez
que é «Prologo a el-Rei, nosso senhor»; outro prólogo «De Andre de Burgos
64 Paratexto

impressor ao muito alto e poderoso Rei dom Sebastiam […]», no Tratado…


(Évora, 1569) de Frei Gaspar da Cruz; esse «mvito poderoso» está noutro
prólogo de Jerónimo Corte Real, Sucesso do Segundo Cerco de Diu (Lisboa,
1574).
Na falta de rei natural, pode ir «Dirigido ao excelentíssimo príncipe D.
Theodosio Duque de Bragança», como em, do mesmo Corte Real, Naufragio
e Lastimoso Svcesso da Perdiçam de Manoel de Sousa de Sepulveda… (Lisboa,
1594), edição da responsabilidade do sogro, António de Sousa, «com obri-
gação que tenho de criado» – o que o desculpabiliza face a castelhanizantes.
Outros resignam-se: assim Bernardo de Brito, na Monarchia Lvsytana.
Parte primeira. Que contém as histórias de Portugal desde a criação do mundo té
o nascimento no nosso sñr Jesu Christo. Dirigida ao Catholico Rey Dõ Philippe
segundo do nome, Rey de Espanha etc. (Alcobaça, 1597); Fernão Mendes não
podia ser tido nem achado para obstar ao nome de Filipe III na Peregrinação
(Lisboa, 1614; e de Richelieu, na tradução francesa de 1628, cardeal também
dedicatário em Manuel Fernandes de Vila Real, Epítome Genealógico do
Eminentíssimo Cardeal Duque de Richelieu…, primeiro, em castelhano,
Pamplona, 1641); Manuel de Faria e Sousa, aculturado, oferta a Filipe IV
Lusiadas de Camões, principe de los poetas de España. Al Rey nuestro señor Felipe
Quarto, el grande. Comentados, etc. (Madrid, 1639).
Desde Barros, criado dizia assaz. Durante séculos, artistas houve simples
serviçais de uma casa fidalga. Se o labor intelectual era retribuído, a necessi-
dade económica tingia-se de reconhecimento, forma pessoal de agradeci-
mento ou declaração pública das virtudes do senhor. Com as editoras de
Setecentos, a literatura engana a fome fora de portas senhoriais, e Bocage
troca versos por comida, sem outras louvações. Mas escrever o nome ao lado
do de um patrono ilustre pode trazer proveito. Por isso, quando, na viragem
para Oitocentos, se opta pela subscrição (Rodrigues, 1999, pp. 7-11), o autor
deseja trocar um produto – a edição que vai pagar, e cujo preço de capa é mais
favorável ao subscritor do que ao comprador em livraria (seja, o rico paga
menos) – e não uma actividade ainda há pouco sujeita às incertezas de
dependências pessoais. Os subscritores, designados um a um, convivem
numa dedicação colectiva, além de, eventualmente, receberem dedicatória
manuscrita. Seria dobrada.
Não creio que os dois últimos séculos tenham posto fim à dedicatória
interessada, agora, sob múltiplos disfarces. Ou que, antes, ela visasse neces-
sariamente a pedinchice. Razão e função podem divergir, compareça ou não
motivação, como homologar a fortaleza ou heroicidade do interpelado, nem
Ernesto Rodrigues 65
sempre tido e achado na história em que o precipitam. Oliveira Cadornega
fica descansado, não pela obra em si e sua indignidade autoral, mas pelo
respeito que lhe votarão enquanto obra «favorecida e emparada da valerosa
mão e grandeza de Vossa Senhoria […]» (1982, p. 21).
Ofuscados pela imprensa recente, os quinhentistas enredam-se num
jogo em que irrompe a variedade de relações. Ora, pormenor mirandino é
servir-se de um pretexto inédito, qual nas redondilhas I e II: «A Antonio de
Sá na fugida de ums [sic] seus criados» (1989, p. 60) e «Sobre a prisão d’um
seu galego. A seu cunhado Manuel Machado […]» (p. 61; este reaparece em
carta); ou, na esparsa X, segundo manuscrito: «A Pero Carvalho mandando
úas luvas em Evora ardendo em calmas» (p. 63). Mau grado razões, sequer
inócuas, interessa a função, mesmo reconhecendo que «Canção. / A nossa
senhora» (p. 87) possa ter outro alcance. «Prologo Á Rainha Nossa Senhora»
dará Trancoso nos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575).
Epigrafa-se nome alheio aquando de uma oferta ou de carta recebida.
Certos corpora de propósito teórico viram ‘resposta’, maneira de dialogar por
interposto verso com quem, fingidamente ou não, nos interpela; agradece-se
num soneto «A Diogo Bernardes» (p. 453), com elegia «A Antonio Ferreira
em resposta de outra sua» (p. 461). Líricos homenageiam Sá de Miranda na
parte quinta das Poesias, servindo-se de églogas, sonetos, cartas, elegias,
carmina e epitáfios: Bernardim, Dom Manoel de Portugal, Diogo Bernardes,
António Ferreira, Jorge de Montemayor, Pedro de Andrade Caminha, André
Falcão de Resende, Manoel Machado de Azevedo, Sebastião d’Alfaro,
Martim Gonçalves da Camara. A rede relacional mais completa estará em
António Ferreira, que inaugura Poemas Lusitanos com ciclo de sonetos «Aos
bons ingenhos» e convoca meia centena de nomes régios e literários –
mortos, inclusive – até aos epitáfios terminais.
Percebemos, por conseguinte, uma ligação de dependência, familiari-
dade, admiração ou respeito de vassalo, uma dedicação que pede a sinónima
dedicatória, e leva António Coimbra Martins, ao editar Diogo do Couto, O
Primeiro Soldado Prático, a desconfiar «da falta de epístola dedicatória nos
livros seus que não a ostentam» (2001, p. 277). O momento político explicá-
-lo-á? Um sentimento de patriota?
Entretanto, observa-se flagrantemente esse olhar para cima nos editores
tipógrafos de Setecentos reeditando clássicos. Ao repegar em Duarte Galvão,
Chronica d’El-Rei D. Affonso Henriques (Lisboa, 1726), o editor literário
Miguel Lopes Ferreira dirige-a ao monarca, D. João V, e a Fernão Teles da
Silva (marquês de Alegrete), subrogando neste o ofertório ao rei. O mesmo ao
66 Paratexto

reeditar Francisco Soares Toscano, Parallelos de Principes e Varoens Illustres


Antigos (Évora, 1623), dedicado, antes, «Ao Excellentissimo senhor / D.
Theodosio / segundo de nome, […]», e, agora (Lisboa, 1733), «Ao Excellen-
tissimo senhor / D. Francisco / Xavier de Menezes». Pereniza-se o sentido
originário da ‘dedicatio’, enquanto ‘acto de dedicar, de consagrar aos deuses’,
desta feita, terrenos. Com algumas ironias, como oferecer a Nuno da Cunha
e Ataíde, inquisidor-geral, o tomo primeiro das Cartas (Lisboa, 1735) de
Vieira…
Na dedicatória, seguida de prólogo, à edição de Lisboa, 1785, de Rui
Gonçalves, Dos Privilegios & Praerogativas… (Lisboa?, 1557), o «humilde
capelão» J. A. opera adaptação (até suprime Dos), e não esconde ao que vem:
Senhora
Este livro que ofereço a Vossa Magestade [sic] há duzentos e
vinte sete anos foi dedicado à Sereníssima Rainha de Portugal,
a Senhora D. Catarina de gloriosa memória, pelo licenciado Rui
Gonçalves, lente da Universidade de Coimbra; e desejando eu
que tornasse agora a ser impresso em obséquio a todas as Senhoras
Portuguesas, me lembrei consagrá-lo a Vossa Majestade por que
[sic] seria repreensível descuido não o fazer assim, […]. / Eu nesta
dedicatória não tenho por principal objecto os interesses, as
riquezas ou honras com que Vossa Majestade me pode fazer feliz.
Obsequiar a minha Augusta Rainha, mostrar aos vindouros que foi
Protectora do seu sexo contra as mentirosas opiniões dos antigos
escritores é todo o meu empenho. (Gonçalves, 1992, p. 19)

Acrescente-se que, em 1557, a dedicatória está encimada por ‘Prologo’.


A Historia da Prouincia Sãcta Cruz…(1576), de Magalhães de Gândavo,
comporta, precedendo ‘Prologo ao Lector’, dedicatória «Ao Mvito illustre
Senhor / Dom Lionis Pereira, / Epistola de Pero de Magalhães», conjunto
precedido por tercetos e soneto de Camões, duplicando ofertório: «Ao muito
illustre senhor Dom / Lionis Pereira sobre o liuro que lhe / offerece Pero de
Magalhães: […]». A tal excesso de nomeação, que dá um singular dobrado,
contrapõe-se rasura de nomes, qual no dedicador Francisco Rodrigues Lobo,
ora explicitando interlocutores, ora escondendo nomes de amigos nas
epístolas das peças bucólicas.
Caso diverso é termos dois dedicadores e dois dedicatários, simultanea-
mente, que G. Genette e demais não prevêem: a Copilaçam de 1562 é exemplo
de dedicatória dupla. Abre com «Prologo deregido ao muito alto e poderoso
rei nosso senhor Dom Sebastião o primeiro do nome, per Luís Vicente»
Ernesto Rodrigues 67
(Vicente, 2002, p. 11), seguindo-se «Prologo em que o autor deregia esta
cópia de suas obras ao muito excelso príncipe El Rei Dom João o Terceiro
deste nome em Portugal» (p. 13).
Em contraponto, viceja a falta de identificação, em que se especializam
barrocos, anunciados por elegia «A úa senhora muito lida em nome de um
seu servidor» (Miranda, 1989, p. 341) ou soneto «A úa dama áspera e
fermosa» (p. 421). Soneto «Ao tempo» (p. 422) desloca a interlocução para
cambiantes mais profundas, em séculos de incremento do relógio. Mas a rede
de confrades é prioritária, retomada em maneiristas: Agostinho da Cruz,
André Falcão de Resende, Baltasar Estaço, António de Abreu, Jerónimo Corte
Real, Manuel de Portugal, Manuel Soares de Albergaria, Caminha, Quevedo
Castelbranco – este encontrou modo de dirigir Discvrso sobre a Vida, e Morte,
de Santa Isabel Rainha de Portugal, & Outras Varias Rimas (Lisboa, 1596) a D.
Álvaro de Lencastre, 3.º duque de Aveiro. Da falange seiscentista, retenho D.
Francisco Manuel de Melo.
Vai com o tempo: as Epanaphoras de Varia Historia Portvgueza (Lisboa,
1660) são para Afonso VI; as Obras Métricas (Lyon, 1665), para o infante D.
Pedro. No limiar da Carta de Guia de Casados […] A Hvm Amigo (Lisboa, 1651),
dedicada ao primo D. Francisco de Melo, teoriza: «Para haver no mundo uma
dedicatória perfeita, assim havia de ser feita ao descuido.» (Melo, 1965, p. 21)
O impressor Craesbeeck rogava-lhe urgência: «[…] que ou a dedique eu por
mim mesmo, ou lhe deixe fazer dela convite a quem a estime e lha agradeça».
Eis a utilidade, também, de um paratexto. Mas há uma surpresa: «Escrevi a
um amigo estas observações» (p. 22). Ou seja: dirigiu a amigo o que dedica a
primo, e que os tratadistas não prevêem. É um descaminho na matéria, em
que ‘dirigir’ não significa ‘dedicar’.
Outro caso. Escrevendo da «Torre, em 6 de Janeiro de 1650», a Luís de
Azevedo, pede-lhe introdução às cartas que intenta reunir, já «prólogo e
introdução, ou prólogo que o fosse; e que V. M. houvesse por bem descrever
úa dedicatória da obra ao senhor Rui de Moura Teles, […]» (Melo, 1981, p.
311). É o momento, a prisão que pesa na decisão de Melo: a confiança suscita
uma dedicatória alógrafa, que se autorizam muitos tradutores e editores. De
chofre, abre a Primeira Parte das Cartas Familiares, Roma, 1664: «À insigne
Academia dos Generosos de Lisboa António Luís de Azevedo, seu académico,
deseja perpétua felicidade», assinando no fim. Segue-se, não assinado, em
terceira pessoa, «Aos Discretos» – será dedicatória dobrada –, e, logo, «Carta
do autor aos leitores de suas cartas». O tempo derruiu, como se vê, os mereci-
mentos de Rui de Moura Teles… Tem algumas afinidades o caso da Ulisseia
68 Paratexto

castriana: postumamente editada pelo irmão, Luís Pereira de Castro, que a


dedica a Filipe IV, já, na 2.ª ed. (s. l., 1642), pós-Restauração, dedica-a ao
príncipe D. Teodósio, e triplica no novidoso «Prefácio-Dedicatória» a D. João
V da 3.ª ed., por Matias Pereira da Silva. Caso para, em vez de momento,
preferir oportunidade.
Não entrevejo novidade em Oitocentos, se não é a introdução maciça da
Imprensa periódica, aspecto desprezado em G. Genette, que lhe complicaria
a tipologia: artigos em jornal, revista, potenciais obras em folhetim e alma-
naques, repletos de iniciais e nomes correntes. Tal quantidade, reforçada em
volume, apaga a memória de lembretes significativos: Antero de Quental cha-
mado por Guilherme de Azevedo, em A Alma Nova (Lisboa, 1874); Junqueiro,
antes de A Farsa brandoniana (1903; «Ao grande Poeta / Guerra Junqueiro»)
e acompanhando «O sentimento dum ocidental» – pano para larga prosa,
pois Junqueiro desapareceu no novo livro de Cesário Verde (2006; pelo
mesmo Cesário Verde, «Ele» era dedicado «Ao Diário Ilustrado»). A propósi-
to, veja-se «Dedicatória» de A Musa em Férias (Lisboa, 1879) e «Aos simples»
de A Velhice do Padre Eterno (Porto, 1885), de que se inspirará título de obra
(Os Simples, Porto, 1892). Desde finais do séc. XIX, cuida-se do in memoriam,
a par de «À memória de», conjugando respeito e saudade. Não sendo pionei-
ro, Anthero de Quental: In Memoriam (Porto, 1896) é o mais conhecido.
O teor programático e de manifesto, ao ataque e à defesa, circula pelos
prefácios, mas não só. Camilo Castelo Branco exigia parte de leão, em matéria
de dedicatória, desde O Juízo Final e O Sonho do Inferno (Porto, 1845) à cedên-
cia institucional, ao nomear o Imperador D. Pedro II no Livro de Consolação
(Porto, 1872). Veja-se, tão-só, a de Eusébio Macário (Porto, 1879), interro-
gando «querida amiga» sobre se «um velho escritor de antigas novelas pode-
ria escrever, segundo os processos novos, um romance com todos os ‘tiques’
do estilo realista». Desafio aceite, diz perdida a aposta quem sabe de ante-
mão ter lucrado com essa coisa «oca e fútil» (Castelo Branco, 1975, p. 446),
alvejando o realismo ainda no berço. Simula-se uma adesão que vira sarcas-
mo contra os cultores da Ideia Nova, reduzidos a «uma adjectivação de casta
estrangeira» («Prefácio da segunda edição», Castelo Branco, s. d. [1992],
p. 39-40). Neste, de Setembro de 1879, a leitora amiga da «Dedicatória»,
lugar-comum na ficção romântica, é retratada como «pessoa de minha
família», ciente daqueles ‘tiques’: «É a tua velha escola com uma adjectivação
de casta estrangeira e uma profusão de ciência compreendida na “Introdução
aos três reinos”. Além disso tens de pôr a fisiologia onde os românticos
punham a sentimentalidade: derivar a moral das bossas, e subordinar à fata-
Ernesto Rodrigues 69
lidade o que, pelos velhos processos, se imputava à educação e à responsa-
bilidade» (p. 40).
1. 4. A estrutura épica hodierna tem um bom exemplo em Manuel
Gusmão, que, desde «A mesa (d) o mar (preparativos de viagem)», no
colectivo Mar (Lisboa, 1979), investia na sintaxe camoniana: proposição,
invocação, dedicatória, narração. Em Dois Sóis, a Rosa: Arquitectura do Mundo
(Lisboa, 1990) e Teatros do Tempo (Lisboa, 2001), refaz esse percurso.
Avulso, «Dedicatória» é título em lugares vários. Título-dedicatória
recobre poemário Dedicado a Eva (s. l., 1983), de Júlio Conrado. Já, em página
ímpar inicial, miríade de lusos comunga da fórmula. Alguns nomes de
Novecentos: Alfredo Brochado, Régio, Carlos Cochofel, Nemésio (para carta-
-dedicatória em Paço do Milhafre [Coimbra, 1924], ver Marques, 2002, p. 223
ss), Namora, Vergílio Ferreira, Sophia4, Almeida Faria, A. Oliveira Cruz, Irene
Lucília, José Viale Moutinho, José Manuel Mendes, Fernando-António
Almeida, José António Gonçalves, Maria Helena Salgado (= Maria do Rosário
Pedreira), Luís Quintais… Em catálogos da BN sobre Adolfo Casais Monteiro
e Camilo Pessanha (ambos de 2008), correm novos exemplos.
Ficção recente encena-a: no conto «A dedicatória», Teolinda Gersão
(2002, pp. 31-41) dá-nos adquirente que fica para o fim na sessão de
autógrafos e, a sós, requer «uma dedicatória, mas não exactamente igual às
outras» (p. 33). Crente no sortilégio da palavra, acrescenta: «Com a data de
hoje bem visível – porque faz hoje precisamente um ano que ela se foi
embora» (p. 40). Final: «[…] se não voltar é porque a senhora não lhe soube
dizer quanto eu a quero e escreveu a dedicatória errada» (p. 41). Com outra
distância, A Blusa Romena, de António Mega Ferreira (2008, p. 13), faz o
processo de «uma lenga-lenga que lembrava as dedicatórias setecentistas:
“Ao Senhor Vasco de Almeida-França (o hífen inventou-o ela), insigne
Escritor […], que tanto dignifica a República das Letras e, com isso, em muito
honra os seus confrades, entre os quais modestamente se conta a autora
destes versos, etc.”»
1. 5. Aspecto menos edificante, que pudéramos tratar no momento ou no
quadro das relações, é o das supressões, trocas e rasuras de dedicatória. A
matéria é dolorosa. Se um novo amor apaga antigo, ainda vá: «À Isabel,
sempre.» era retórica do coração; mas ser ingrato para a generosidade de

4 Dedicatórias manuscritas de Sophia a amigos brasileiros são reproduzidas em Metamorfoses, 1,


Rio de Janeiro: Cátedra Jorge de Sena / UFRJ, 2002, passim.
70 Paratexto

dezasseis camponeses, sem os quais «não teria sido escrito este livro»,
Levantado do Chão (Lisboa, 1980), custa a admitir. Some-se a terceira parte:
«À memória de Germano Vidigal e José dos Santos, assassinados.», única
mantida por José Saramago. É, também, um caso singular de redução.
1. 6. Aqui chegados, vimos o protector secular em figura de dedicatário,
requerendo discurso à altura, eloquente, figurado; se possível, motivador do
que lhe é oferecido, seja por qualidades declaradas, seja por heroicidade,
ainda que de empréstimo. Não se imagina quão presente está, assim, o conde
de Oeiras e marquês de Pombal. Daí, a lista dos títulos de glória, que envol-
vem o nome do ilustre: Manuel de Galhegos tem que os reduzir em Templo da
Memoria: poema epithalamico nas felicíssimas bodas do Excelentíssimo Sr. Duque
de Bragança e de Barcellos, Marquez de Villa-Viçosa, Conde de Ourém, etc…
(Lisboa, 1635), e o mesmo João Soares de Brito, em Apologia em que se defende
a poesia do príncipe dos poetas de Hespanha Luís de Camões, no canto IV, da
estancia 67 a 75, e canto I, estancia 21; e responde ás censuras de um critico destes
tempos. A João Rodrigues de Sá Menezes, cavalheiro da Ordem de Santiago,
Camareiro-mor d’el-rei D. João IV, etc., etc… (Lisboa, 1641). A prática é corrente.
Quando se lhe atribuem méritos no próprio texto, porque o inspirou ou
facilitou, essa espécie de co-autoria envaidece um e segura o outro, inclusive,
nas relações entre literatos, cujas invejas fuzilam. Em era inquisitorial, a
dedicatória representa segurança, tença, emprego; contra eventual castigo
público, significa reconhecimento e molde de integração. Se necessário,
acaricia-se inquisidor, qual obrou livreiro com Os Lusíadas do grande Luís de
Camoens, Príncipe da poesia heróica. Commentadas pelo licenciado Manuel
Corrêa. Dedicadas ao doutor D. Rodrigo d’Acunha, inquisidor apostólico do
Sancto Officio de Lisboa. Por Domingos Fernandes, seu livreiro (Lisboa, 1613).
Convém olhar a destinações especiais: entidades civis, como em Frei
Luís de Sousa, Vida de Dom Frei Bertolameu dos Martyres… (Viana [do Castelo],
1619), «À Câmara e Governo da Notável Vila de Viana»; feminina, para lá de
Nossa Senhora: v. g., «Á Illvstrissima / Senhora Dona Lvisa / Covtinha,
Condessa do Sabvgal, &c.», em Duarte Pacheco, Epitome da Vida Apostolica,
e Milagres de S. Thomas de Villa Nova, […] (Lisboa, 1629); familiar: seja filial,
como em Os Novíssimos do Homem, ou conjugal, como em El-Rei Junot
(Lisboa, 1912), de R. Brandão, «A Maria Angelina», já reverenciando avô em
Os Pescadores (Paris, 1923): «À memória de meu avô, morto no mar»;
discipular, «Ao Mestre Columbano», no Húmus (Porto, 1917).
Impresso ou manuscrito, é um jogo de reciprocidades, que o editor
substitui, no século XVIII, ao afixar na portada as suas insígnias e permi-
Ernesto Rodrigues 71
tindo-se dedicatórias, timidamente assumidas nos séculos anteriores. Neste
trânsito da aristocracia para o livre comércio, não isento de enganos e roubos
em tiragens e contrafacções, entreabre-se a questão dos direitos de autor, que
revê a propriedade literária, em vigor desde Quinhentos.
A dedicatória pode, agora, reduzir-se ao mínimo, a misteriosas iniciais e
personagens, ou nome aleatório, e, até, desaparecer. Este «degré zero» não
significará, parafraseando G. Genette (p. 126), que ninguém merece esta obra
ou que a obra não merece ninguém?
2. Não é o caso do manuscrito, mesmo se alguns adquirem a impor-
tância do impresso, ou lhe são superiores, se caligraficamente retrabalhados
por autor ou artista emérito. Em manuscrito, é-se escritor; autor, no impresso.
Mas em manuscrito também se cria uma identidade e se confere autoridade
ao texto – seja embora entre nome próprio e fingido, ou entre dois fingidos
acrescidos de nome próprio, Tomé Pinheiro da Veiga. Assim é na «Dedica-
tória» sobre a amizade de Fastigínia (1605; impressão de manuscrito desco-
nhecido, Porto, 1911), reiterando uma autoficção: Fr. Pantaleão, que houve
achamento das histórias, dirige-se a Jorge Calepino.
A história manuscrita talvez comece em 1418, quando se inicia a
redacção de Dos Benefícios, pelo infante D. Pedro (1994), que até 1433 frei
João Verba refundiu como Livro da Vertuosa Benfeytoria, contendo no fol. 1r:
«Muy alto príncipe, de grande poderio, e muyto honrado e prezado senhor
iffante Eduarte, primogénito herdeyro dos reynos de Portugal e do Algarve»
–, e prosseguindo até 2r, antes da tavoa. Por 1437-1438, D. Duarte compõe o
Leal Conselheiro e extensa carta à rainha D. Leonor, sua mulher.
Na fronteira do manuscrito potenciando impresso está «Incendio»
(1914), soneto autógrafo de Augusto Santa-Rita, reproduzido no Catálogo de
Um Seleccionado Leilão de Manuscritos, Autógrafos e Fotografias (p. 113),
realizado em Lisboa (13-XII-2008). Interessa a particular autodedicatória, «A
mim mesmo», que alegraria G. Genette: «[…] je ne vois manquer, dans cet
ensemble un peu déviant, et sans doute ludique, que l’autodédicace, ou
dédicace à l’auteur par l’auteur lui-même» (p. 25).
Posto o que, desde, ao menos, os anos 40 de Oitocentos, de A. F. de
Castilho e A. P. Lopes de Mendonça a Camilo, é fácil encontrar a fórmula
repetida contaminando frontispícios, qual um de António Augusto Teixeira
de Vasconcelos, em exemplar de A Ermida de Castromino (Lisboa, 1870): «Ao
seu excellente amigo / Conego Lima / em testemunho de affectuosa saud.e /
offerece / A. A. Teixeira de Vasconcellos». Troca-se o poder ou sangue azul
pela nobreza de coração e de carácter. O copista quase desaparece; e, mau
72 Paratexto

grado discurso pobre, comove a letra de intelectuais que quase vimos nascer…
Os cuidados a haver não são poucos, a tal ponto uma dedicatória nos
compromete. No calor da Questão Coimbrã, escreve Castilho a Camilo, em
20-I-1866: «Ramalho Ortigão remetteu-me um exemplar do seu opusculo
precedido d’um oferecimento muito cortez. Ainda o não pude lêr. Mas se é
como me informão em termos urbanos, hei-de tomar conhecimento d’elle, e
responder ao autor. Seria confundil-o com os Theophilos e Antheros, […].»
(Costa, 1924, p. 47). Dois dias depois, nova carta e transcrição de dedicatória:
«Ao seu inegualável mestre o Ex.mo Sr. Antonio Feliciano de Castilho em
testemunho de lealdade litteraria offerece respeitosamente o auctor» (p. 48).
Em ar de balanço, Castilho concluirá, nesse 22-I-1866, que «as palavrinhas
melifluas do offerecimento» escondiam «o rancor de um malcreado»! E a
estocada: «Era o Ramalho a desfarçar o Ortigão» (p. 49).
2. 1. Se a assinatura é fundamental, a par do nome de quem recebe (sem
o qual há mero autógrafo; agora, Deus, a Virgem Maria e os mortos não são
convidados), lugar e data dir-se-iam convenientes; em última instância, só o
lugar é prescindível. Outra condição é a legibilidade. Aproveita-se a folha de
rosto para sintaxar, eventualmente, com o título, e mesmo, para as mais
longas, a folha de guarda. Não há regra na escolha da lauda (de ‘laudare’, que
serve para louvar dedicatário, impresso ou manuscrito).
Além dos exemplares contratualmente oferecidos ao autor e tradutor, há
um certo número a remeter à crítica e autores ou amigos da editora. Mara-
tona desagradável, segundo a fórmula ‘A / Para X com a admiração de Y’ – em
que só a ‘admiração’ varia, eventualmente justificada em prosa breve –,
treina-se este numa assinatura, que alguns saberão falsificar, depois de outros
autógrafos forjados.
O negócio da dedicatória (às vezes, do simples autógrafo) é rendoso,
multiplicando o preço.
2. 2. Daí, as regulares sessões de lançamento e de autógrafos, abertas a
todos, num ou vários locais, dentro e fora do país. A escolha do dia foge a cons-
trangimentos sociais, caindo, sobretudo, numa terça ou quinta-feira. A socie-
dade do ‘croquete’ faz sala; em casos restritos, há repasto só para jornalistas.
No ciclo do livro, chega, um dia, a vez do alfarrabista, mesmo se algumas
livrarias podem assegurar exemplares dedicados. As indicações de catálogo
procuram valorizar exemplar dito «Com uma dedicatória autografada do
autor», justificando, assim, os preços. Desde notícia em papel à Internet, a
sedução desliza.
Ernesto Rodrigues 73
2. 3. Mas não é nesse frenesi que encontramos as melhores espécies.
Reunir dezenas de formulários debitados em horas de tortura pessoal não é
instrutivo; resulta melhor quando no silêncio da dedicatória única. Nascem,
deste modo, verdadeiros inéditos – seja poema, carta, etc. –, geralmente, à
entrada do impresso, que também pode ser alterado na perspectiva de
variantes. A Livraria Antiquária do Calhariz anunciou, no 4.º Boletim
Bibliográfico (Lisboa, 2008, p. 45), a 2.ª ed. de Do Tempo ao Coração (Lisboa,
1966), de David Mourão-Ferreira, «valorizada pela extensa dedicatória pelo
autor, ao jeito de carta, a um casal de amigos pessoais. Esta edição é
constituída por uma versão inteiramente nova do trecho incluído na página
29, sob o título de “Coração”». Cada exemplar diverso completa a obra, mais
evidente em exercícios antigos de Herberto Helder, corrigindo-se à mão, em
exemplares impressos: o momento da dedicatória é o de outra escrita.
Não nos restrinjamos, contudo, aos suportes consabidos. Mostrei a van-
tagem de estudar almanaques, álbuns, leques, carteiras, objectos de cerâmica
(Rodrigues, 1999, pp. 37-64), onde também cristalizam dedicatórias. Repro-
duzidos em As Mãos da Escrita (Duarte; Oliveira, 2007, p. 344 ss), juntemos
convites e menus, agendas, etc. A páginas 357-358, deparamos com diário
dedicado, em 11. 4. 73, «À menina Margarida Victória, “luz dos meus olhos”
(como se dizia em tempos): […]», por V. Nemésio.
Doloroso é quando as relações azedam, e se rasga ou risca dedicatória.
Se o livro é vendido com aquela, degradando-se na rua, deve o dedicador
adquiri-lo e reenviá-lo ao ingrato, com segunda dedicatória…
Luís Amaro, cujo Diário Íntimo (Lisboa, 2006) é alfobre de sinais amigos,
tornou-se, entre nós, dos principais dedicatários, com largas saudações do
estrangeiro. Entre algumas de página cheia, realço as de Régio, e, destas, um
desenho a cores de menina (Vila do Conde, Março de 1968) acompanhando
texto contíguo ao título de Histórias de Mulheres. O poeta brasileiro Ribeiro
Couto dedicou-lhe Dia Longo (Poesias Escolhidas): «A Luís Amaro, pai,
parteiro e padrinho desta criança manhosa – artista de rara sensibilidade,
amigo seguro, colaborador perfeito, com a gratidão do Ribeiro Couto /
Lisboa, 24-X-1944». Vergílio Ferreira dedicou-lhe exemplar da 3.ª edição de
Mudança: «Ao Luís Amaro / que não sendo “pai” dos meus livros, é todavia
quase “tio” ou “padrinho” pela assistência que lhes tem dado, / com o abraço
amigo / do Vergílio Ferreira / Lxª, 5 Maio 969». Eugénio Lisboa fê-lo, de
forma impressa, «colaborador» de José Régio. A Obra e o Homem (Lisboa,
1976) e, em dedicatória manuscrita na edição de 1987, «primus inter pares
regianos». Com Luís Amaro fecha-se o círculo antigo do ‘protector’, não
74 Paratexto

financeira ou politicamente forte, mas companheiro atento e generoso. Este


ensaio – necessariamente reduzido e pouco exemplificativo quanto à
dedicatória manuscrita, por razões de espaço – é-lhe dedicado.

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O paratexto em Oliveira Martins
Maria das Graças Moreira de Sá
Universidade de Lisboa

A trilogia de Oliveira Martins, História da Civilização Ibérica (1879),


História de Portugal (1879) e Portugal Contemporâneo (1881), merece do autor
cinco paratextos, um sob a forma de uma epígrafe, e quatro sob a forma
de prefácios a estes volumes, um na História de Portugal, em que se alude
à História da Civilização Ibérica, e três no Portugal Contemporâneo, que
acompanham as três primeiras edições desta obra. Estes paratextos, tendo
sempre como destinatário o leitor, possuem, simultaneamente, um papel
introdutório e explicativo em relação a um novo conceito de História, que o
escritor introduz na historiografia portuguesa, uma função defensiva no que
diz respeito às reacções que tal inovação poderá provocar ou provocou no
espírito dos seus leitores e uma interpretação prospectiva do futuro pátrio.
Assim, na «Advertência» à História de Portugal, depois de uma epígrafe
retirada da Coronica do Condestabre, espécie de síntese do pensamento do
crítico em que se avança que, nos estudos históricos, se deve fazer memória
dos erros, para não se repetirem, e dos nobres feitos, para lhes seguir o exem-
plo, abre o texto uma afirmação curta e revolucionária de Oliveira Martins a
que não é estranha a influência de Michelet – «A história é sobretudo uma
lição moral»1–, ligando-a aos progressos realizados no campo das Ciências
Sociais. Expressões como “observação directa”, “pintura verdadeira”, “descri-
ção fiel”, “frieza impassível”, “critério racional” preenchem os requisitos
dessa nova ideia de História como um género novo, assente em pressupostos
científicos e racionais, perfeitamente de acordo com o ideário da geração
realista, a Geração de 70, da qual o historiador é um dos principais mentores,

1 Oliveira Martins, “Advertência”, História de Portugal, p. 7. As páginas desta edição serão, dora-
vante, indicadas no corpo do texto.

Românica 18, 2009


78 Paratexto

aplicando à história os princípios por esta defendidos, os únicos capazes de


lerem, com verdade e justiça, a “realidade”.
Não nega Oliveira Martins o contributo do que chama os discursos
morais sobre a História à maneira do século XVII, nem os doutrinarismos
secos do século XVIII, que construíram sistemas gerais quiméricos, nem a
opinião contemporânea do autor, que considera a História nos seus aspectos
exteriores pela averiguação erudita das épocas. Condições indispensáveis
para a compreensão da História, faltava-lhes, porém, em seu entender, o
essencial (o “íntimo”, nas suas palavras), que consiste no sistema das insti-
tuições e no sistema das ideias colectivas, “que são para a sociedade como os
órgãos e os sentimentos são para o indivíduo” (p.8). Desenhada a sua teoria
organicista, acrescenta ainda que essa História, a História verdadeira, se
funda no “desenho real dos costumes e dos caracteres, na pintura animada
dos lugares e acessórios que formam o cenário do teatro histórico” (p.8, itálico
nosso).
Cenário do teatro histórico: não admira que Oliveira Martins tenha
organizado a História de Portugal como uma série de quadros, retratando –
contrariamente à História da Civilização Ibérica, em que estudara o sistema
das instituições e de ideias da sociedade peninsular – o que há de particular
na História portuguesa, fazendo «viver os seus homens, e representar de um
modo real a cena em que se agitam» (p.10, itálico nosso). A isotopia do teatro
dramático invade a tessitura vocabular de toda a História, a que se deve
aliar, na sua perspectiva, «um faro especial de intuição histórica» (p.10, itá-
lico nosso) e um «estilo que traduza a animação própria das coisas vivas»
(p.10, itálico nosso), que «merecem antes a nossa reprovação do que o nosso
aplauso» (p.10). A tão estudada «Retórica da decadência em Oliveira
Martins» por António Machado Pires2, conhece aqui a sua primeira formu-
lação. Retórica, porque o historiador utiliza processos literários que avivam o
que diz, atento como está, sobretudo, ao modo como diz; decadência, porque,
mais reprovando do que aplaudindo, como vimos, o retrato de Portugal
deixado por Oliveira Martins, tal como todos os da sua geração, é uma
acusação que, se se pretendia regeneradora, não deixou de marcar o País com
uma profunda imagem de decadência nacional, verdadeira «pintura» de

2 Cf. António Manuel Bettencourt Machado Pires, «A simbólica de Oliveira Martins» e «Uma
Retórica da decadência em Oliveira Martins», A Ideia de Decadência na Geração de 70.
Maria das Graças Moreira de Sá 79
caracteres e de dramatizações com inegáveis aspirações estéticas que o
distanciam, por vezes, por excesso de imaginação e de retórica, da História
positiva dos factos. Por tudo isto, e retomando as primeiras palavras do
escritor, é que «a história é uma lição moral»: «Nos vícios e nas virtudes, nos
erros e nos acertos, na perversidade e na nobreza dos indivíduos que foram
há um meio de prevenir e encaminhar a direcção dos actos futuros. A história
é, nesse sentido, a grande mestra da vida» (p.12). Tal como Eça de Queirós
apontara os erros da sociedade sua contemporânea como forma de a regene-
rar, assim Oliveira Martins afirma, no final desta «Advertência»: «Apresen-
tar crua e realmente a verdade é o melhor modo de educar» (p.12). Embora,
como salienta Joel Serrão3, as raízes do projecto do autor sejam sobretudo
portuguesas, em que Herculano e a experiência do liberalismo surgem como
paradigma exemplar, não deixa, quanto a nós, Oliveira Martins de introduzir
na sua mundividência, tal como Antero, o socialismo de feição proudhonia-
na, e a influência de Michelet surge, pujante, no desejo de inculcar na sua
escrita uma verdadeira «ressurreição de épocas»4.
Já no Portugal Contemporâneo, são três os paratextos que encontramos:
uma «Advertência (na primeira edição)» (1881), «Explicações (na segunda
edição)» (1883) e «Ao leitor (na terceira edição)» (1894).
Na «Advertência (na primeira edição)», Oliveira Martins explicita a sua
posição como historiador perante o fenómeno histórico da contemporanei-
dade e contrapõe, à partida, as suas razões contra as críticas que julga que
surgirão perante uma obra com os pressupostos como aqueles que defende.
Assim, começa por enumerar os dois principais atributos que considera
credíveis para a escrita de uma História contemporânea: o isolamento, como
situação que convém ao escritor, ou seja, o facto de este não pertencer a
nenhum partido nem escola laureada, e a consequente independência, como
processo necessário da crítica, trabalhando por amor à História e obede-
cendo apenas à razão, como os artistas obedecem apenas à estética. Estes
princípios, que considera inabaláveis e raros no seu tempo, são tanto mais
importantes quanto se trata de redigir uma História contemporânea, de

3 Joel Serrão, «Oliveira Martins», Dicionário de História de Portugal.


4 António Machado Pires, «Oliveira Martins», Dicionário do Romantismo Literário Português
(itálico nosso).
5 Oliveira Martins, «Advertência (na primeira edição)», Portugal Contemporâneo. As páginas desta

edição serão indicadas, a partir de agora, no corpo do texto.


80 Paratexto

actos recentes e de pessoas, por vezes ainda vivas. Daí a necessidade da


impessoalidade da crítica, que deve ser fria, «como que morta por ser impes-
soal»5. Deixa-se assim levar pela utopia, que caracterizou a sua geração, que
pretendia apagar, em determinada altura do seu percurso (no seu momento
mais realista dos anos 70), qualquer subjectividade do narrador, como se a
linguagem pudesse agarrar a realidade e analisá-la sem subjectivismo, tanto
mais quanto o narrador é, em geral, um narrador omnisciente, que tudo sabe
e tudo explica. De qualquer modo, Oliveira Martins reserva-se o direito de
utilizar expressões de sentimentos que, segundo ele, são compatíveis com
esta suposta serenidade da crítica. Diz-nos o autor: «Ironia, compaixão, sim-
patia, respeito, moderadas emoções» (p. 24) podem acompanhar o estudo
sem «prejudicar a lucidez da vista» (p. 24).
De tudo isto, tira Oliveira Martins uma primeira conclusão:
Concebido assim, e melhor ou pior assim executado, o Portugal
Contemporâneo, sem ser miguelista nem liberal, nem cartista nem
setembrista, nem regenerador nem histórico, nem monárquico
nem republicano, decerto não satisfaz à opinião de nenhum grupo,
ao sistema de nenhuma doutrina; mas por isso mesmo servirá
melhor à História, se o autor pôde desempenhar-se da tarefa
concebida. (pp. 24-25)
Tarefa considerada dura e sujeita a perigos numerosos, as palavras
seguintes dirigem-se às personagens ainda vivas do seu tempo, a quem apela
para lhe apontarem erros que minimizem a visão triste, melancólica e pessi-
mista da obra. Mas pede-lhes provas e documentos, e não acusações ou,
acrescenta não sem ironia, «vagas afirmações correntes acerca da grandeza
das nossas façanhas e da excelência e prosperidade do nosso estado actual»
(p. 25).
Mas a principal advertência e atitude defensiva do historiador prendem-
-se com um aspecto que pode tornar o Portugal Contemporâneo ainda mais
hostil ao virtual leitor: a negação do liberalismo individualista como forma
definitiva e adequada à constituição das sociedades e, portanto, à sociedade
portuguesa em particular. Quase meio século depois da vitória liberal de 34,
Oliveira Martins sente-se autorizado a criticar não só as falências do regime
em si mesmo, mas também as consequências nefastas da implantação desse
regime em Portugal, onde estas são mais visíveis do que em qualquer outro
país da Europa, por terem destruído inteiramente, a seu ver, as antigas
instituições e ideias:
Maria das Graças Moreira de Sá 81
País nenhum da Europa é, com efeito, neste sentido, mais liberal:
se até o clero entre nós é progressista! Mas também por isso, acaso
em parte alguma se encontrará tanta pobreza de gente, tanta
escassez de carácter. As classes conservadoras, cépticas, vivendo
numa apatia moral entorpecedora da dignidade e até da inteligên-
cia, ficam pardas, banais e mesquinhas. Os revolucionários, sem a
boa disciplina de inimigos pujantes e sábios, baixam igualmente,
apresentando, na extravagância dos seus actos, a desorientação dos
seus pensamentos, o vazio dos seus cérebros, e uma virulência que
demonstra a ausência de verdadeira força, quando não demonstra
igualmente a inferioridade dos caracteres. (p. 27)

Perante este retrato decadente do Portugal liberal seu contemporâneo,


apresenta Oliveira Martins, como proposta alternativa, uma fórmula
paradoxal – «a máxima revolução, na máxima conservação» (p.27) –, cuja
explicação lhe permite inserir no texto a ideia de índole socialista de igual-
dade, de nítida influência proudhoniana. A História da civilização mostra-
-nos, explica o historiador, que o caminho crescente das sociedades é sempre
o da aproximação das condições dos homens em todos os níveis da vida
social, política e humana, a diminuição, pois, das diferenças e a validação
dessa palavra-chave das sociedades modernas: a Igualdade, expressão
concreta da civilização, com a palavra política que a exprime – Democracia.
Desta forma, termina este prefácio com o anúncio do seu ideário político-
-social e com a prospecção, então utópica, de uma sociedade mais justa e
equilibrada. Acerca de um povo infeliz, a quem souberem ensinar a virtude e
distribuir a ciência e a riqueza, diz Oliveira Martins: “Tratai dele e vê-lo-eis
crescer e medrar – até ao dia em que dispense a tutela historicamente indis-
pensável de classes privilegiadas […]. Então a democracia será uma verdade e
não uma ficção; a liberdade um facto, não uma fórmula; a sociedade uma
harmonia, e não um caos (p. 29).
Quanto às «Explicações (na segunda edição)»6, estas já não são uma
suposta justificação a virtuais questões surgidas com a publicação do Portugal
Contemporâneo, mas uma defesa real às críticas então sobrevindas aquando
da primeira edição dessa obra, que serve também de pretexto ao escritor para
completar aspectos da sua visão da História mas, desta vez, direccionada

6 Oliveira Martins, «Explicações (na segunda Edição)», Portugal Contemporâneo. As páginas desta
edição serão indicadas, a partir de agora, no corpo do texto.
82 Paratexto

para Portugal, avançando com propostas e soluções que, na sua perspectiva,


urgia implantar no país.
Em primeiro lugar, a constatação do seu presságio de que o livro, pela
sua isenção, não agradaria a ninguém, nem a conservadores, nem a revolu-
cionários. Seguem-se, depois, respostas directas a questões levantadas a
propósito das suas posições perante factos da nossa História. É o caso, por
exemplo, da forma como Oliveira Martins descreve o carácter pessoal de D.
Miguel, por quem confessa nutrir uma certa simpatia e a quem procurara
deslindar de lendas a que chama «absurdas» (p.17). Considerando não haver,
porém, uma contestação legítima desse nome, afirma manter, tal como o
concebeu, o retrato do príncipe, negando que dele fizera uma apologia,
convencido que estava de que a História vindoura lhe viria dar razão. Dife-
rente é a sua posição em relação à crítica que o acusara de atribuir pouco
alcance à Carta de 26. Embora não concordando com a censura, achou útil
desenvolver certos pontos e «retocou», como diz, essa parte da obra. Já ao
reparo de que o seu livro era «um quadro pitoresco» (p.18), ao qual faltava a
«linha lógica» (p.18) iniciada na tradição revolucionária de 20, confirma,
justificando, a sua posição, tanto mais não sendo ele nem «individualista»
(p.18), nem politicamente «liberal» (p.18). Assistimos, pois, a um Oliveira
Martins atento e aberto aos juízos tecidos sobre a sua obra, procurando
discutir seriamente os que lhe pareceram melhor fundamentados.
Mas o que pareceu ofender mais os leitores de então foi o tom pessimista
do volume, para alguns «injusto na sua severidade» (p.19), para outros
carregado de mais no «quadro da situação (então) presente» (p.19). À funda-
mentação da sua atitude, dedica Oliveira Martins as últimas páginas deste
prefácio. Próprio da visão decadentista da geração a que pertence, como já
dissemos, o seu pessimismo é por ele considerado uma consequência da sua
«missão de crítico» (p.19), que «não pode alterar a significação dos factos»
históricos (p.19). Sublinhe-se, desde já, a utilização do vocábulo missão, que
implica uma incumbência transpessoal, e a de crítico, com o sentido já por
nós analisado no início deste estudo, donde não está ausente a ideia de uma
interpretação tida como única e verdadeira («não pode alterar a significação
dos factos» históricos). A grande questão, para o autor, não é a de saber se o
País progrediu economicamente neste ou naquele aspecto específico na sua
história mais recente. Apresenta, para justificar, duas razões de peso: em
primeiro lugar, porque, bem ao gosto dos da sua geração, o modelo a seguir
é o da Europa – é com ela que nos devemos comparar e medir o atraso do
nosso suposto progresso económico; em segundo lugar, porque esse
Maria das Graças Moreira de Sá 83
progresso económico nunca pode ser considerado um fim, mas apenas um
meio. E não é sem ironia que desafia os seus adversários:
Antes pobres com ideias e carácter, do que chatins vulgares e
dinheirosos.
Ora eu desafio quem quer que seja a provar-me o nosso progres-
so intelectual e moral. Eu vejo – não vêem todos? – uma decadência
no carácter e uma desnacionalização na cultura. Dos costumes
políticos não falemos. Literariamente a língua perde-se, e mais de
um tem alegado como documento os meus próprios livros! […]
Há muito, porém, quem assegure que desvario e sonho, que tudo
marcha razoável, regular e optimamente. Se assim é, não há razão
para temer o meu pessimismo, extravagância inocente e sem
alcance. […] Ria-se Portugal do que eu digo, se é capaz…(p. 20)
Associado ao juízo sobre o pessimismo da obra, surge a acusação, por
parte de alguns, de Oliveira Martins não a terminar com soluções para as
doenças da pátria. Também aqui o historiador segue os preceitos da sua
geração, a qual, na acusação regeneradora com que pretendia reabilitar a
pátria, acaba por deixar no imaginário cultural português a imagem deca-
dentista do País. Mais uma vez, é a ironia a dar o compasso na resposta do
autor – não é sua ambição a de ser «curandeiro» (p.20):
Eu não apresentei récipe, pelo motivo simples de que o Portugal
Contemporâneo não é um livro de partido, nem de polémica, nem de
revolução: é um livro de História, conforme eu entendo que a
História se deve escrever, como quem escreve um drama. (p. 21)
A última parte do texto é, no entanto, preenchida com uma listagem das
necessidades urgentes de Portugal, nos vários campos da sua vida moral,
política, social e económica, apoiada a nação, em seu entender, numa dita-
dura que terá de encontrar no novo soberano uma adesão sincera. Recor-
rendo a uma construção anafórica, Oliveira Martins sublinha a urgência do
acto e o vigor da sua convicção: «urge reformar» os sofismas que corrompem
o corpo desta sociedade; «urge moralizar» a administração e extirpar o parasi-
tismo; «urge pôr ponto» nas finanças e no regime absurdo do imposto; «urge
suster» na queda a navegação e as indústrias; «urge povoar» territórios meio
desertos; «urge acabar» com a agiotagem; «urge moralizar» uma política
desvairada; e, por fim, «urge restaurar» as forças económicas e morais do País
(pp. 21-22). As suas derradeiras palavras não são, porém, encorajadoras.
Interroga-se sobre até que ponto «o egoísmo, a cegueira, o interesse vil, a
indolência, a ignorância, a veniaga de que os políticos abusam em particular,
84 Paratexto

e o servilismo que em público distingue a Imprensa» não poderão mais do


que «as ambições nobres de uma minoria de gente ingénua e boa» (p. 22).
De facto, no último prefácio que acompanha a terceira edição do
Portugal Contemporâneo, intitulado, como dissemos, «Ao leitor (na terceira
edição)»7, não é sem tristeza que Oliveira Martins confirma as previsões
pessimistas do seu livro («Antes os seus juízos tivessem provado erróneos e
temerários!» (p. 9). A verdade é que, entre a segunda e a terceira edição da
obra, já de 1894, pós-Ultimatum, portanto, ocorreram factos graves, sobre-
tudo a nível económico, que o autor sintetiza em breves linhas. Foi, como
lembra, a crise financeira com o malogro dos empréstimos de 1890 e 91; foi a
falência dos bancos de especulação e da companhia dos caminhos de ferro;
foi, enfim, a revolução brasileira do fim de 1889. Com tudo isto se instalou
uma das maiores crises económicas no País, com o consequente desenvolvi-
mento da desordem política e da anarquia social. Não é, pois, sem propósito
que Oliveira Martins corporiza este prefácio com um texto da sua autoria
publicado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, e sintomaticamente
intitulado Portugal, em que, analisando o percurso moral, intelectual, mas,
sobretudo, económico da nação, se chega a interrogar, de forma dramática,
sobre a viabilidade da existência de Portugal como País autónomo. Ora, não
querendo nós desvalorizar a crise económica então vivida, a verdade é que o
Ultimatum de 1890, sentido como um vexame nacional, veio agravar o senti-
mento profundo da fragilidade portuguesa, actuando não apenas num plano
meramente político, mas, como sublinha Eduardo Lourenço, num plano
cultural e simbólico, constituindo, para Portugal, um autêntico «traumatismo
patriótico»8. A este se devem as visões mais sombrias do futuro pátrio em
final de século, e é nesta conjuntura que também se pode e deve ler o presente
texto do historiador.
Começa, assim, Oliveira Martins por considerar ter chegado o terceiro
momento em que a nação portuguesa se encontra perante uma interrogação
«vital» (repare-se no adjectivo, que coloca a questão em termos de vida ou
morte de Portugal): «Há ou não há recursos bastantes, intelectuais, morais,
sobretudo económicos, para subsistir como povo autónomo, dentro das
estreitas fronteiras portuguesas?» (p.10). Esta interrogação, repetida, com

7 Oliveira Martins, «Ao leitor (na terceira edição)», Portugal Contemporâneo. As páginas desta
edição serão indicadas, a partir de agora, no corpo do texto.
8 Eduardo Lourenço, Portugal como Destino Seguido de Mitologia da Saudade, p. 56.
Maria das Graças Moreira de Sá 85
pequenas variantes, ciclicamente no texto, sublinha os três aspectos que
estão verdadeiramente em causa: as condições de subsistência autónoma do
País com os seus próprios recursos; a interacção entre os valores intelectuais,
morais e económicos, com predominância destes últimos; e a confinação do
território português ao Portugal continental de origem («estreitas fronteiras
portuguesas»).
A construção mental do texto segue, pois, uma lógica sobretudo econó-
mica, e assim se entende que Oliveira Martins aponte como o primeiro desses
momentos, não a data da nossa perda de Independência (1580), mas, preci-
samente, a data da nossa Restauração (1640), já que esta, para vingar, repre-
sentou a perda completa dos restos do Império Oriental com que salariámos
«opiparamente» os nossos defensores. Como afirma, «Portugal salvara-se
das garras da Espanha, para cair nas da Inglaterra» (p.10). Como afiança
ainda, nesta situação não havia forças morais e intelectuais para assegurarem
a autonomia, e não é sem ironia que lembra as condições traçadas pelo
tratado de Methwen.
A cada um dos momentos de interrogação vital sobre a viabilidade da
existência do nosso país como nação independente, faz corresponder Olivei-
ra Martins aquilo a que chama «tábuas de salvação», ou seja, o encontrar
soluções por meios «anormais» (no sentido de fugirem à «normalidade» da
vida de uma nação) de subsistência que, no nosso caso, se caracterizam por
nos virarmos para fora do nosso território, em vez de nele investirmos. Desta
forma, perdida a Índia (os restos do Império Oriental), «descobriu-se», como
«tábua de salvação», o Brasil. Termos da teoria organicista do historiador
invadem o texto e, de novo, se articulam as forças morais, intelectuais e
económicas: «O ouro e os diamantes do Brasil foram como a transfusão de
sangue em um organismo anémico. O sol da riqueza voltou a raiar no hori-
zonte português; e com a autonomia económica, restaurou-se, quanto
possível, a energia moral e intelectual» (p.11). Efectivada, aparentemente, a
autonomia portuguesa como antes de 1580, D. João V pôde tornar Portugal
«uma cena de ópera ao divino» (p.11) e Pombal «o teatro trágico de uma
revolução teórica» (p.11). A situação dramática só ressurge cada vez que,
mudado o contexto político-económico da sua «tábua de salvação», Portugal
se vê, mais uma vez, confrontado com a sua questão vital. Por isso, quando,
em consequência do tumulto napoleónico, foi necessário ao rei fugir para o
Brasil, quando houve que assinar os tratados de 1810 para a Inglaterra, de
novo, nos assegurar a independência, e tivemos que reconhecer a separação
do Império Brasileiro, “outra vez dobravam para Portugal os sinos de finados
86 Paratexto

e, pela segunda vez, se inquiria se Portugal, reduzido aos recursos próprios


do seu território, tinha ou não recursos para subsistir como Nação indepen-
dente» (p.11). «No primeiro quartel deste século» – conclui o historiador –
«repetia-se a situação do meado do século XVII» (p.11).
Oliveira Martins não poupa a violência que se seguiu com o fermento
das ideias novas do liberalismo, com a guerra civil e as revoluções mais ou
menos fúnebres (1826-1851), e, principalmente, com as resistências ofere-
cidas pela sociedade-velha, aliada às divergências das gentes novas quanto às
vias de regeneração do País. Agora – diz ele –, os políticos «agitavam-se
tontamente em um duplo vazio; um vazio absoluto de riqueza, outro o vazio
de autoridade para reger um povo ainda incapaz de se reger a si próprio,
representativamente, conforme a doutrina» (p.12, sublinhado nosso). O
retrato da nação não podia ser mais pungente:
Era o tesouro falido, a bancarrota do papel-moeda, os juros da
dívida por pagar, os campos incultos, a propriedade sem valor, a
mendicidade universal, e como comentário, ou consequência da
agitação febril das revoltas, o comunismo burocrático substituindo
o antigo comunismo monástico: o caldo das secretarias, distribuído
pelos Governos, como o caldo das portarias o fora outrora pelas
comunidades. (p.12)
À visão dos mais realistas ou pessimistas – «Quem raciocinava, concluía
que tudo ia acabar» (p.12) – junta-se a voz de alguns que se deixam vibrar
pelo «messianismo ingénito na alma portuguesa» (p.12). Mais uma vez, a
ironia do escritor sobreleva-se no texto – «E os tempos deram razão aos
sebastianistas» (p.12). Em meados do século, o programa de fomento só foi
exequível porque, na sua interpretação, este coincidiu com o período de
máxima expansão do capitalismo europeu do século XIX. Portugal pareceu
por largos anos um bom País a explorar e «as bolsas europeias, passando a
esponja do esquecimento sobre as bancarrotas passadas, abriram os seus
cofres. Outras minas se tinham achado, outro Brasil surgiu» (p.12). A estas se
junta o saldo derivado da emigração para o Brasil, a que Oliveira Martins
apelida, criticamente, de «exportação de gado humano», que representava
uma fatia considerável na conta económica da nação. Note-se que é o próprio
crítico que coloca, ao mesmo nível, enquanto «tábuas de salvação», tanto a
«anormalidade» da exploração económica de territórios exteriores ao nosso,
como os recursos dos emigrantes e os empréstimos europeus, que vieram
dar a Portugal a «aparência» (p.13) – como insiste em sublinhar – de um
País rico.
Maria das Graças Moreira de Sá 87
Depois de remeter o leitor para um livro seu, Política e economia nacional,
publicado oito anos antes, em 1885, o qual, em seu entender, continha
medidas que, se aplicadas na devida altura, teriam dado consistência e estabi-
lidade económica a Portugal, Oliveira Martins regressa ao seu raciocínio,
apontando o terceiro momento com que começara o texto. Na verdade, falida
esta segunda «tábua de salvação» – secou a corrente das remessas da emigração
e a ruína do crédito estancou os empréstimos –, o País depara, pela terceira
vez, com a mesma interrogação vital: «Há já três anos que soou para Portugal
o quarto de hora de Rabelais. […]. Em tão críticas circunstâncias, tem o País,
dentro das suas fronteiras, com os seus recursos próprios, meios de manter o
equilíbrio económico?» (p.15). A solução apontada pelo historiador, pros-
pectiva do futuro pátrio, não é, pois, a que ele subscreveria, criticada desde o
início do texto, mas a que, no momento, lhe parece ser a única possível:
Mais uma vez ainda, a tábua de salvação está no mundo ultra-
marino e na vida airada e aventurosa cuja sorte já salvou Portugal
no século XVII e neste. […]
Salvar-nos-á, no século XIX, Angola, como nos salvou o Brasil
no século XVII? Caber-nos-á essa fortuna a tempo de prevenirmos o
esfacelamento pela fome? Virá antes que nos assaltem complicações
graves de ordem externa?
Nestas perguntas, parece-me, está hoje resumido o problema
português; e pouco viverá quem não lhe assistir ao desenlace.
(pp.15-16)

Esta visão de Oliveira Martins, crítica, como dissemos (note-se a adjecti-


vação em «vida airada e aventurosa»), vem, aliás, ao encontro do imaginário
colectivo da época. Só após o Ultimatum e a perda do hinterland ultramarino,
os portugueses olharam África como um novo continente a explorar e como
se nele estivesse a solução para os problemas nacionais. É quase impossível
não equacionar este final do texto com as derradeiras páginas de A Ilustre
Casa de Ramires, de Eça de Queirós, que, com mais ou menos ironia, retrata
um Gonçalo Ramires enquanto modelo do português reconvertido, que
embarca, num navio não por acaso chamado «Portugal», para essa África que
fora a causa da humilhação perante os ingleses, mas que era preciso agora
recuperar, povoar, situar no destino português como uma nova epopeia9.

9 Cf. António Quadros, «O ‘Ultimatum’ e a reacção nacionalista. Da Geração de 70 à Geração de


90», p. 69.
88 Paratexto

A mais de cem anos de distância, pode o leitor de hoje responder à


dramática interrogação que encerra o último prefácio da trilogia de Oliveira
Martins que escolhemos para tentar mostrar a importância do paratexto.
E pode, da mesma forma, marcar a data do momento em que se perdeu essa
nova «tábua de salvação», e se recorreu a outras, até ao presente momento
histórico… Mas o mais interessante nestes paratextos de Oliveira Martins é a
forma como neles o historiador revela, em simultâneo, pela sua atitude expli-
cativa, defensiva e prospectiva, um novo conceito de História e um senti-
mento de amargura, e até de desconfiança10, este último apanágio da geração
a que pertence, em relação ao futuro do País, o que o leva, nalguns casos, a
propor enérgicas alterações económico-político-sociais, ou seja, a apontar
uma alteração profunda da mentalidade portuguesa a todos os níveis. A sua
concepção de História, singular no panorama cultural português, se não con-
tribuiu para os avanços científicos da nossa historiografia, de base positivista,
reservou-lhe, contudo, um lugar ímpar nessa mesma História, do qual os
paratextos analisados são prova evidente.

Referências BibliogrÁficas
Lourenço, Eduardo, Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade,
Lisboa: Gradiva, 1999
Lourenço, Eduardo, «Da literatura como interpretação de Portugal»,
O Labirinto da Saudade, 2ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982,
pp. 85-126
Martins, Oliveira, «Advertência», História de Portugal, Lisboa: Guimarães
Editores, 1972, pp. 7-12
Martins, Oliveira, «Advertência (na primeira edição)», Portugal
Contemporâneo, Lisboa: Guimarães Editores, 1976, pp. 23-29
Martins, Oliveira, «Explicações (na segunda edição)», Portugal
Contemporâneo, Lisboa: Guimarães Editores, 1976, pp.17-22
Martins, Oliveira, «Ao leitor (na terceira edição», Portugal Contemporâneo,
Lisboa: Guimarães Editores, 1976, pp. 9-16

10 Eduardo Lourenço, «Da literatura como interpretação de Portugal», O Labirinto da Saudade, p.


96.
Maria das Graças Moreira de Sá 89
Pires, António Manuel Bettencourt, Machado, «A simbólica de Oliveira
Martins», A Ideia de Decadência na Geração de 70, Ponta Delgada:
Instituto Universitário dos Açores, 1980, pp. 295-300
Pires, António Manuel Bettencourt, Machado, «Uma Retórica da decadência
em Oliveira Martins», A Ideia da Decadência na Geração de 70, Ponta
Delgada: Instituto Universitário dos Açores, 1980, pp. 301-312
Pires, António Manuel Bettencourt, Machado, «Oliveira Martins», Dicio-
nário do Romantismo Literário Português, coord. Helena Carvalhão
Buescu, Lisboa: Caminho, 1977, pp. 308-310
Quadros, António, «O ‘Ultimatum’ e a reacção nacionalista. Da Geração de
70 à Geração de 90», A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos
Últimos 100 Anos, Lisboa: Fundação Lusíada, 1989, pp. 63-69
Serrão, Joel, «Oliveira Martins», Dicionário de História de Portugal, Porto:
Figueirinhas, 1985, pp. 210-217
Uma perspectiva da Marginalia de Fernando Pessoa
Maria do Céu Estibeira
Universidade de Lisboa

Sublinhar um livro, destacar as suas partes mais importantes, escrever


comentários nas margens são, entre outros, alguns dos procedimentos
comuns a que um leitor pode recorrer para registar os processos mentais e
valorativos do seu acto de leitura. Cada livro e cada texto estimulam, deste
modo, uma dupla realidade: a inerente ao processo de leitura e a que dela
advém, como estímulo ao processo de escrita acerca de uma escrita primeira.
Sempre que anota um livro, o leitor acaba por revelar algo de si próprio
– aquilo em que acredita, aquilo que o distrai ou que o apaixona, aquilo que
o perturba ou irrita, ou até aquilo que anteriormente leu – exibindo também
pormenores fascinantes relativos à época ou ao contexto em que foram
produzidas as anotações e conferindo à leitura uma função interactiva, na
medida em que o sentido não é apenas pertença de um texto mas é repro-
duzido pelo leitor em conjunção com as estruturas verbais do mesmo.
O termo marginalia, do adjectivo latino marginalis, significando “à
margem de”, refere-se, portanto, aos comentários ou às notas escritas nas
margens ou noutros espaços em branco junto do texto de uma página
impressa, nas folhas em branco ou nas folhas de guarda de um livro, e foi
importado de Coleridge, o qual veio a revelar-se um mestre exímio desta
técnica e a tornar-se numa referência na história da anotação. Para além das
tradicionais marginalia, devemos considerar ainda de extremo interesse as
notas escritas em folhas de papel soltas, em caderninhos de leitura ou ainda
em pequenos papéis deixados dentro das folhas dos livros, sendo que as
mesmas podem também ser consideradas como uma forma de marginalia
paralela, desde que se refiram claramente ao texto do livro a que
correspondem ou onde foram encontradas1.

1 George Whalley, editor de The Collected Works of Samuel Taylor Coleridge – Marginalia I,
considera este tipo de notas como «quasi-marginalia», pois poderiam ter sido directamente
incluídas no livro a que se referem, embora tenham sido escritas em cadernos, blocos de notas
ou folhas soltas.

Românica 18, 2009


92 Paratexto

Para além de Coleridge, outros nomes ficaram conhecidos pela impor-


tância da sua marginalia: Erasmo (que aconselhava a anotação dos livros
para tornar a tarefa de estudar mais facilitada e interessante), Pope (em
cuja biblioteca, ainda disponível, podem ser consultadas as suas anotações),
Edgar Allan Poe, Keats, Macaulay, Blake, Mark Twain, Melville (cuja
marginalia se encontra disponível online), Darwin, entre muitos mais.
Desde muito cedo, Fernando Pessoa revelou ser um leitor atento que
registava opiniões ou impressões de leitura nos seus livros e usava algumas
páginas em branco para aí deixar comentários mais extensos e até algumas
composições poéticas, das quais destacamos os poemas já incluídos no Fausto
ou no Ruba’iyat, para além do poema de Caeiro, recentemente publicado2.
A Biblioteca Pessoal Pessoana (grande parte da qual pode ser consultada
na Casa Fernando Pessoa) é reveladora da atenção e do cuidado que Pessoa
dedicou à leitura dos mais variados temas, sendo, certamente, o espelho da
sua vida intelectual e uma forma de ligação a um extraordinário processo
criativo.
Ainda que a marginalia pessoana não tenha recebido a mesma atenção
por parte dos investigadores como todos os outros documentos do seu es-

2 Esta composição poética, atribuível ao heterónimo Alberto Caeiro, encontra-se escrita a lápis na
guarda final da obra de John M. Robertson, Pioneer Humanists, de 1907, e é encabeçada pelo
nome «Caeiro» que não parece apontar para o título do mesmo, mas sim para a sua identificação
autoral. O livro que guarda esta composição tem a assinatura de Fernando Pessoa, a qual já não
inclui o acento circunflexo no apelido (suprimido a partir de 1916), o que poderá (a par das
sucessivas leituras e anotações que Pessoa fazia nos livros que mais o interessavam) de certa
forma explicar a razão pela qual, num livro de 1907, encontramos um poema de um heterónimo
pessoano que só viria a aparecer em 1914:
Caeiro
Gosto do céu porque não creio que elle seja infinito.
Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?
Não creio no infinito, não creio na eternidade.
Creio que o espaço começa aqui e aqui acaba*
E que longe e atrás d’isso há absolutamente nada.
Creio que o tempo tem um princípio e terá um fim,
E que antes e depois disso não houve tempo.
Porque há de ser isto falso? Falso é falar do infinito
Como se soubéssemos o que só de ver podemos entender.
Não: tudo é uma partida de cousas.
Tudo é definido, tudo é limitado, tudo é cousas.
* Variante: Creio que o espaço começa por a parte e na parte acaba.
Maria do Céu Estibeira 93
pólio3, a verdade é que esta faceta do poeta português se revela fundamental
para percebermos a recepção que terá feito de determinadas obras e o papel
que as mesmas desempenharam na construção da sua identidade literária.
Na realidade, a quantidade e a diversidade de obras que fazem parte da
Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, na Rua Coelho da Rocha (última
morada do poeta), com mais de um milhar de títulos disponíveis, e o consi-
derável número das que contêm alguma forma de anotação demonstram,
sem margem para dúvidas, a importância da marginalia pessoana para o
estudo da sua obra4. De facto, do número total de exemplares que compõem
esta Biblioteca, mais de sessenta por cento estão anotados ou incluem algu-
ma forma de marcação específica que importa destacar e compreender,
sendo que para procedermos ao seu estudo é fundamental, desde logo,
identificar algumas particularidades que determinem a sua categorização e
interpretação: qual a extensão das notas inseridas num determinado livro;
que tipo de anotações ou comentários podemos aí encontrar; qual a sua
função e que relevância assumem para o texto em que se inserem. Eis
algumas das questões que se levantam e sobre as quais importa reflectir.
Não parece haver grandes dúvidas de que Fernando Pessoa dedicou
grande parte do seu tempo à leitura: desde os tempos em que viveu em
Durban e até 1935 (ano da sua morte), os livros foram uma presença
constante e importante para a construção da sua identidade estético-literária.
Tal pode ser observado através da Biblioteca Pessoal (que contém cerca de
1055 títulos), das várias listas de livros que pretendia adquirir e ler (que
encontramos nos diversos cadernos e nas folhas soltas pertencentes ao
espólio da Biblioteca Nacional) e dos diversos comentários nos seus diários

3 Só recentemente se iniciaram alguns estudos nesta área, nomeadamente, com a dissertação de


Mestrado, Uma Introdução à Marginalia de Fernando Pessoa, e, mais recentemente, com a
apresentação da dissertação de Doutoramento à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
A Marginalia de Fernando Pessoa, ambas por Maria do Céu Estibeira.
4 Os livros integrados na biblioteca particular de Fernando Pessoa encontram-se organizados nas

seguintes classes: Classe 0 – Generalidades, Progresso, Obras de Referência, Periódicos, Organi-


zações de Carácter Esotérico e Semi-Secreto; Classe 1 – Filosofia; Classe 2 – Religião, Teologia;
Classe 3 – Ciências Sociais; Classe 5 – Matemática, Ciências Naturais; Classe 6 – Ciências
Aplicadas, Medicina, Tecnologia; Classe 7 – Arte, Desporto; Classe 8 – Língua, Linguística,
Literatura; Classe 9 – Geografia, Biografia, História (Não existem livros Catalogados na Classe 4).
Ainda que a partir desta catalogação seja relativamente fácil identificar uma obra da biblioteca
pessoana, observamos que, por vezes, a categoria em que determinado livro foi catalogado
deveria ter sido outra em virtude das temáticas aí desenvolvidas.
94 Paratexto

ou textos reflexivos acerca do papel que a leitura exerceu ao longo da vida.


Da consulta realizada aos livros desta Biblioteca, podemos comprovar a
existência de marginalia de tipologia diversa: desde as anotações de consi-
derável extensão, que chegam a ocupar uma ou duas páginas (geralmente as
páginas de guarda iniciais e/ou finais, ou outras folhas em branco, como, por
exemplo, as que se encontram no final de cada capítulo), a par de pequenas
notas (constituídas por uma expressão de extensão menor ou apenas por
uma ou duas palavras) ou outras marcas que podem aparecer como breves
referências de forma abreviada (N. B.; n.; Ex.; Ok; Cf.) ou até a inclusão de
sinais gráficos (?, !, X, ?, X). Por outro lado, não devem ser também descu-
rados os sublinhados inseridos no texto, ou outros traços verticais simples e
duplos desenhados ao longo das margens e que serviam especialmente para
Pessoa destacar informação considerada relevante ou particularmente
interessante.
Uma das formas primárias de anotação consiste em deixar no livro a
chamada “marca de posse” ou assinatura. Assim, é comum vermos os livros
que pertenceram a Pessoa assinados por si ou por algum dos seus heteró-
nimos juvenis. Efectivamente, o número de livros com a inscrição de uma
assinatura ascende a três centenas e, em muitos casos, torna-se possível
determinar a altura em que, aproximadamente, Pessoa os leu, ainda que a
esmagadora maioria não inclua qualquer datação escrita pelo poeta que nos
permita determinar o ano exacto da sua leitura. Tal possibilidade deve-se ao
facto de podermos classificar as assinaturas encontradas nos livros de Pessoa
de acordo com dois períodos distintos, que o próprio poeta descreveria numa
carta a Armando Cortes-Rodrigues quando declarou que, a partir de Setem-
bro de 1916, tomaria a decisão de fazer «uma grande alteração» na sua vida:
tirar o acento circunflexo do apelido. Assim, Pessôa passaria a assinar Pessoa:

Da primeira fase, anterior a Setembro de 1916, ainda o poeta não tinha


atingido os trinta anos, encontramos sete formas diversas de assinatura, a
saber:
– F. A. N. Pessôa; Fernando Pessôa; F. A. N. P.; F. Pessôa; F. Nogueira
Pessôa; Fernando António Nogueira Pessôa e F. P.
Maria do Céu Estibeira 95
Para além destas, podemos ainda observar a existência de uma outra
verdadeiramente curiosa: F. A. L. N. Pessôa5, numa provável alusão ao nome
do seu irmão, Luís, e que Pessoa terá interiorizado e assumido como parte
integrante da sua identificação pessoal.
Da segunda fase (após 1916), existem pelo menos duas assinaturas
diversas:
– Fernando Pessoa e Pessoa.
Para além destas formas de identificação da posse de um livro, encontra-
mos também o recurso a uma espécie de carimbo com as iniciais do nome do
poeta, que podemos também associar temporalmente ao período da sua
adolescência em Durban, bem como a referência a Charles Robert Anon, em
sete livros da Biblioteca (sempre em conjunto com a assinatura do ortónimo,
sob a forma de F. A. N. Pessôa) e a Alexander Search, em vinte e um livros
(neste caso, autonomamente).

Fernando Pessoa e os percursos da anotação


O percurso de Fernando Pessoa como anotador inicia-se logo na infân-
cia, durante os seus tempos de escola em Durban. Da Biblioteca do poeta
consta um conjunto de obras adquiridas enquanto viveu naquela cidade6
que, para além de incluírem os seus compêndios escolares e outros livros
de apoio, compreendem também obras que lhe foram oferecidas ou que
foram recebidas através da atribuição de prémios escolares e, ainda, outras
referenciadas nos seus «caderninhos de leituras» e diários.
Se centrarmos, em primeiro lugar, a nossa atenção nos livros de escola
utilizados pelo poeta, verificamos que estes apresentam uma série de anota-
ções, sublinhados, traços e outras marcas que nos mostram Pessoa, ainda
muito jovem, como aluno que, tipicamente, escreve nos seus manuais, resol-
ve exercícios, sublinha e salienta as matérias ou definições de conceitos consi-
derados como mais relevantes, mas que também usa algumas páginas em
branco para fazer rabiscos, desenhos, ou treinar assinaturas suas e de alguns
heterónimos em construção.

5 Esta assinatura surge na obra de George Sand, La Mare au Diable, de 1898.


6 Tal é comprovado pela datação aposta em alguns desses livros, bem como pela inclusão da
sua identificação através da assinatura tipicamente utilizada por si, correspondente a esta fase –
F. A. N. Pessôa.
96 Paratexto

São cerca de vinte e cinco os compêndios que se encontram disponíveis


na Biblioteca pessoana e que respeitam a várias áreas – Matemática, Latim,
Inglês, Francês, Grego, História e até Estenografia – sendo que a grande
maioria se reporta ao ano de 1904, quando Fernando Pessoa frequentava a
«Form VI» da Durban High School, finda a qual realizaria o «Intermediate
Examination», embora também existam exemplares relativos a 1898, 1899
(«Form II-A») e ao ano em que frequentou a «Form III»7.
No geral, as anotações que aí encontramos permitem-nos observar que
se centram, essencialmente, na identificação de partes importantes das
matérias, desde capítulos que são destacados e assinalados nos índices, a
definições que são sublinhadas e postas em evidência. Além disso, encon-
tramos ainda algumas marcas que identificam exercícios práticos que deviam
ser realizados, bem como a sua resolução no próprio livro. Alguns destes
exercícios ainda se revelam bastante actuais, particularmente os relacionados
com a área da Matemática, como aquele que encontramos no exemplar
Elementary Trigonometry de H. S. Hall e S. R. Knight, onde são resolvidos
alguns exercícios de álgebra que remetem para o estudo dos senos, cossenos
e tangentes e que se revelam extremamente rigorosos, tal como pode
ser comprovado através da consulta de uma «Tabela Trigonométrica» (ver
p. seguinte).
Estas parecem-nos ser anotações típicas de um aluno que utiliza os
manuais escolares como fonte de estudo e de aplicação e utilização nas aulas.
Sendo de uso recorrente, muitos destes livros revelam algum desgaste devido
ao constante manuseamento e foram anotados a caneta e a lápis (inclusive a
lápis de cor), o que aponta para as utilizações continuadas a que estiveram
sujeitos.
Quase todos estes livros se encontram identificados com a assinatura de
Fernando Pessoa, a qual é insistentemente escrita nas páginas iniciais em
branco, nas páginas finais, nas páginas centrais e até nas lombadas. Também
verificamos que é usual a referência à escola frequentada – Durban High
School –, à data e ao ano de escolaridade – Form II-A; Form III; Form VI;
Intermediate –, tornando-se, assim, possível verificar as especificidades da

7 Fernando Pessoa matriculou-se na Durban High School em 1899 e frequentou a “Form II-B”, na
qual se manteve até Junho de 1899, altura em que transitou para a “Form II-A”. Um ano depois,
em Junho de 1900, ingressou na “Form III” e seis meses depois, passou para a “Form IV”, onde
permaneceu até Junho de 1901, data em que fez o primeiro exame: o Cape School Higher
Examination.
Maria do Céu Estibeira 97

Pormenor de uma página de Elementary Trigonometry de H. S. Hall e S. R. Knight


com cálculos realizados por Fernando Pessoa

caligrafia do poeta nesta fase da sua vida (relativamente ao tipo de assinatura,


ou em termos de escrita de um texto), a qual se foi alterando significativa-
mente ao longo dos anos, mas que, na época, ainda era bastante cuidada e
legível.
De entre algumas particularidades curiosas que podemos encontrar nos
livros de Pessoa relativos a esta época, destacamos a indicação escrita num
compêndio de Latim8:
«Don’t steal this book / For fear of shame/ For in it is / The owner’s name. /
And if I catch / Him by te tail / He’ll run off / To Durban jail gaol».
Encontramos outra observação semelhante na folha de guarda final do
mesmo livro, escrita em Inglês e Francês:
«If by chance, this book should come to you as if running away; give him the
stick and then send it to F. Pessoa – West St. 157»; «Si ce livre viendrait à vous

8 William Smith, Principia latina: part I: a first latin course comprehending grammar, delectus, and
exercise book with vocabularies: for the use of the lower forms in public and private schools.
98 Paratexto

donnez-le un peu de baton et envoyez-le à F. Pessoa – West St. 157» e ainda «Steal
not this book for fear of shame»9.

Para além destes “apelos”, encontramos também uma folhinha de papel


manuscrita e colada no início do livro que faz o registo do horário escolar
semanal de Fernando Pessoa. Nele, encontramos o currículo escolar a
frequentar nesse ano lectivo e que incluía disciplinas como Inglês, Francês,
Latim, História, Álgebra, Geometria, Aritmética e Poesia:

9 Esta observação não seria de todo original do poeta, já que expressões como esta (com uma níti-
da intenção de proteger o livro de terceiros) ou semelhantes a ela podem ser encontradas em livros
anotados no século XVIII. H. J. Jackson, em Marginalia – Readers Writing in Books (pp. 24-25), faz
referência a este tipo de comentários: «Steal Not This Book For Fear of Shame For Here You See
the Oners Name …» e «Steal not this book for fear of life for the owner has a big jacknife».
Maria do Céu Estibeira 99
Além das marcações regulares de uso escolar, alguns destes livros
contêm também anotações curiosas e de extremo interesse, que revelam a
sagacidade e espírito crítico do jovem Fernando Pessoa, bem como a sua
grande capacidade de leitura e especial interesse pelos clássicos da literatura
em língua inglesa, uma vez que ao longo dos anos em que permaneceu em
Durban, Pessoa contactou com alguns autores que se revelaram determi-
nantes na construção da sua identidade poética. Nomes como Shakespeare,
Milton, Keats, Poe, Addison e Steele, Tennyson, Carlyle, Whitman, Shelley e
muitos outros fizeram parte das leituras do jovem Pessoa, tendo alguns
destes autores integrado os currículos escolares para a prestação de exames,
enquanto outros faziam parte do conjunto de livros que recebeu em
resultado de alguns prémios ganhos em concursos académicos.
Uma das competições que Fernando Pessoa venceu foi o Queen Victoria
Memorial Prize em 1903, cujo prémio seria atribuído ao melhor ensaio do
Matriculation Exam10. Este ensaio deverá ter seguido os padrões estabeleci-
dos pelos textos de Addison e Steele na sua obra The Spectator (que pertence
à Biblioteca Particular de Fernando Pessoa), a qual se encontra sublinhada e
veio a ser relida por Pessoa anos mais tarde (tal como atesta um dos seus
diários), servindo como referência para a leitura de outras obras (onde Pessoa
incluiu notas que remetiam para ensaios deste livro) e até para a produção de
textos seus, nos quais podemos encontrar reflexos dos conteúdos nela
abordados, bem como da sua intenção discursiva.
Quanto aos livros que resultaram da atribuição do Queen Victoria
Memorial Prize (que se encontram identificados com uma etiqueta colada no
próprio livro), temos disponíveis para consulta as obras de Samuel Johnson,
Keats, Edgar A. Poe, Alfred Tennyson e de Ben Jonson.
Estes exemplares encontram-se anotados e sublinhados, a maioria a
caneta preta e a lápis de carvão, evidenciando assim a atenção especial que
Pessoa lhes dedicou e as diversas leituras realizadas em períodos distintos.
Alguns destes livros incluem notas que remetem para a leitura de outros
autores, como é o caso de The Poetical Works of John Keats11, volume em que,
para além de apreciações feitas ao lado dos poemas destacados («good»,
«admirable», «true and painful») podemos encontrar referências a autores
como Gray e Dryden (no poema «Ode to Apollo», por exemplo).

10 Exame de admissão à Universidade do Cabo da Boa Esperança.


11 John Keats, The Poetical Works of John Keats.
100 Paratexto

Em função dos diversos instrumentos de escrita utilizados por Pessoa


para anotar os seus livros, torna-se possível identificar o número de leituras
que o poeta terá realizado de um determinado texto, se levarmos em conta a
inclusão, no mesmo livro, de notas a caneta preta, a lápis de carvão, a lápis de
cor lilás e até a caneta vermelha. Não raras vezes, chega a ser possível obser-
var numa única obra a realização de duas ou até de três leituras, sendo que o
uso de um determinado instrumento de escrita pode ser indicador de uma
determinada época. Assim, do estudo até agora realizado, fica claro que sem-
pre que coexistem anotações a caneta preta e a lápis de carvão, a caneta preta
corresponde geralmente a uma leitura anterior, ou primeira leitura, e o lápis
de carvão a uma segunda leitura. Esta constatação pode ser também compro-
vada pela caligrafia usada em cada ocasião: a caneta, uma caligrafia mais
cuidada e legível; a lápis, uma caligrafia menos cuidada, mais corrida, mais
apressada. Também o uso do lápis lilás parece ter ocorrido numa época
anterior, provavelmente, enquanto adolescente ou jovem adulto, já que em
livros com data mais tardia, este não é utilizado.
Por outro lado, convém observar que, embora, regra geral, Pessoa anote
os seus livros na língua em que estes se encontram, por vezes, alguns podem
incluir marginalia em duas línguas (geralmente em inglês e em português),
podendo associar-se o uso da língua inglesa a uma leitura e anotação prévias
e o da língua portuguesa a uma anotação posterior ou mais recente.
Para além dos exemplares referidos como pertencentes ao Queen Victoria
Memorial Prize, outros títulos fizeram parte das leituras de Fernando Pessoa
quando ainda estava em Durban. Destacamos, por exemplo, os casos de
Carlyle, Shakespeare e Milton, a par de Shelley, Wordsworth, Swinburne,
Browning, Byron e muitos outros.
No caso de Carlyle e da obra Sartor Resartus, Heroes, Past and Present, que
Pessoa leu entre 1904 e 1907 e serviu como ponto de partida para a redacção
de um ensaio sobre Thomas Macaulay, verificamos que, para além das várias
anotações e sublinhados que exibem a naturalidade de Pessoa enquanto
crítico e comentador do que lia, começam a delinear-se as primeiras reflexões
acerca das temáticas do “génio”, do “talento” e da “loucura”, que tanto
interesse despertaram no poeta e o ocuparam durante quase toda a vida12.
Tal fica amplamente comprovado pelas diversas leituras que realizou sobre

12 Aí encontramos comentários como: «Sartor Resartus is useful in giving to us an analysis of


genius, a sort of soul-autobiography. Psychologists should take notice of it»; «Tell me what thou
believest and I shall tell thee what thou art.»; «Carlyle repeats this thought several times;
Maria do Céu Estibeira 101
questões de genialidade e de perturbações psicológicas, como a loucura, a
degenerescência ou a neurastenia, e pela forma como insistentemente
anotou, sublinhou e marcou cada uma dessas obras, geralmente com mais de
um instrumento de escrita, o que acentua também o interesse que as mesmas
lhe terão suscitado13.
Salientamos, ainda, durante o período a que Pessoa chamou de “segun-

Pormenor da primeira página de Sartor Resartus de Carlyle, anotada por Pessoa

da adolescência” (como refere numa carta a José Osório de Oliveira14), o con-


tacto com a obra de Milton, através da antologia Palgrave’s Golden Treasury of
Songs and Lyrics de W. Bell (onde se destacam os poemas “Lycidas”,
“L’Allegro” e “Il Penseroso”15), e com a obra de William Shakespeare, funda-
mentais para a consolidação dos alicerces da obra pessoana.
Se é um facto que a influência de Shakespeare sempre foi explicitamente

a genius always fears to be misunderstood and not be able fully to convey to his auditors the
significance of his thoughts, the whole intensity of his feeling»; «Genius is the enthusiasm of
sincerity», «Without sincerity no genius can exist», «What you see, yet cannot see over, is as
good as infinite.(…)».
13 Na Biblioteca pessoana encontramos obras de Nisbet, Nordau e Hirsch, nomes de destaque

relativamente às temáticas da degenerescência e da genialidade.


14 Segundo Pessoa, os livros/autores que o «transmudaram» foram, de acordo com as épocas a que

se reportavam, os seguintes:
- na infância e na primeira adolescência, Pickwick Papers, de Dickens;
- na segunda adolescência, Shakespeare, Milton e os poetas românticos ingleses, salientando-se
Shelley;
- na terceira adolescência, os filósofos gregos e alemães, os decadentes franceses e Dégénérescence
de Nordau.
15 Estes poemas incluem extensas marcações a três cores, com remissões a outros autores (Tennyson,

Shakespeare e Ben Jonson) e aos ensaios do já referido The Spectator: «The melancholy of Milton
in “Il Penseroso” is the same as the melancholy of Addison before the tombs in Westminster
Abbey […]».
102 Paratexto

admitida pelo poeta português, e se é possível perceber alguns ecos da pre-


sença do autor inglês na poesia ortónima e heterónima de Pessoa, torna-se
também importante examinar a imagem que o poeta português formou a
partir da leitura da bibliografia shakespeareana e como esta se terá manifes-
tado na reprodução/assimilação que Pessoa dela realizou nos seus textos.
Na realidade, o número de obras de e sobre Shakespeare é um dos mais
elevados na Biblioteca de Pessoa, deixando claro que mais nenhum nome
individual mereceu tanta atenção como ele. No total, encontramos mais de
duas dezenas de títulos organizados em três grandes grupos: a) o das obras
de Shakespeare, propriamente ditas, as quais se encontram particularmente
anotadas, quer a caneta, quer a lápis, quer a lápis lilás, o que aponta para
as sucessivas leituras a que os textos terão sido submetidos16; b) o das obras
de bibliografia crítica que apresentam um comentário à vida e obra do refe-
rido autor; c) o das obras que questionam a autoria de Shakespeare, relati-
vamente às peças e sonetos, e sugerem diversas teorias acerca da questão
Bacon-Shakespeare.
Ao verificarmos alguns textos que confirmam o interesse que Pessoa
votava a Shakespeare, observamos que, por exemplo, o Diário de Leituras de
1906 refere que, entre 17 e 27 de Agosto, Pessoa leu, pelo menos, quatro
peças de Shakespeare: The Tempest (dia 17), Comedy of Errors (dia 18), Much
Ado About Nothing (dia 19) e Measure for Measure (dia 23). The Tempest parece
ter sido uma das peças a que Pessoa atribuiu alguma importância, uma vez
que, na sua Biblioteca particular, encontramos dois exemplares distintos
desse texto dramático17, para além da versão incluída na colectânea das
Obras Completas de Shakespeare.
Mais tarde, por volta de 1913, Pessoa decidiu só voltar a ler textos
relativos ao dramaturgo inglês no que se referisse ao «Problema de
Shakespeare»18, na medida em que vários críticos defendiam que Francis
Bacon teria escrito uma boa parte das peças atribuídas a Shakespeare. Pessoa

16 Destes, destacamos também os Sonetos que terão sido alvo de uma atenção particular, uma vez
que dos 154 aí apresentados, 74 estão anotados a lápis lilás, o que indicia terem sido lidos de
uma vez só, ou durante um curto intervalo de tempo ainda na adolescência.
17 Um desses exemplares encontra-se praticamente todo traduzido a lápis nas entrelinhas.

18 «I am now in full possession of the fundamental laws of literary art. Shakespeare can no longer

teach me to be subtle, nor Milton to be complete. (…) All my books are books of reference. I read
Shakespeare only in relation to the “Shakespeare Problem”. The rest I know already.» In Pessoa,
Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, pp. 136, 138.
Maria do Céu Estibeira 103
interessou-se por esta hipótese e elaborou uma bibliografia com mais de 30
títulos sobre a questão Shakespeare-Bacon (BN, 144D2/16-17), tendo
também deixado variados textos para incluir num ensaio sobre a matéria e
que, necessariamente, reflectiam as leituras realizadas sobre o tema.
Além de Shakespeare, Walt Whitman e Oscar Wilde são outros nomes a
destacar pela importância que assumiram no universo de leituras pessoano.
Estes dois autores estão também representados na Biblioteca de Fernando
Pessoa com mais do que um exemplar, e, particularmente, a obra Leaves of
Grass de Whitman (assinada e datada por Pessoa em 16.05.1916) encontra-se
marcada a lápis de carvão e lápis lilás com sublinhados e traços verticais nas
margens laterais em mais de 40 poemas.
Para além da atenção particular dada à literatura em língua inglesa,
Pessoa dedicou também muito tempo à leitura de títulos relativos aos temas
esotéricos e herméticos, com especial destaque para o Ocultismo, a Astro-
logia, a Maçonaria e o Rosacrucianismo, sendo o interesse por estas questões
evidente, já que os livros ligados a estas áreas incluem uma marginalia
coerente, insistente e reveladora da atenção hermenêutica que o poeta lhes
dedicou.
Se o ocultismo e a mediunidade terão, numa primeira fase, cativado a
atenção de Pessoa (ainda jovem), em relação com a forma como, em deter-
minada altura, adere à chamada “forma automática de escrita”, muito em
voga na segunda metade do século XIX, como meio de comunicar com os
espíritos (visto que a leitura de alguns livros sobre esta questão lhe teria
sugerido as regras a seguir para concretizar este processo), a partir de
determinada altura é a astrologia que absorve o poeta, o que é comprovado
não só pelo elevado número de obras sobre o assunto19 e pela atenção com
que os mesmos foram lidos e anotados20, como ainda pela importância que
os mesmos tiveram na redacção dos textos do próprio Pessoa sobre estas
questões ou até no que respeita à concepção dos seus principais heterónimos.

19 São cerca de 30 os títulos exclusivamente dedicados à Astrologia, quase todos em língua inglesa.
De entre este conjunto de livros, são quatro os autores mais representados: H.S. Green, Allan
Leo, Sepharial e George Wilde.
20 Este grupo de livros foi particularmente anotado, o que mostra o estudo profundo realizado por

Pessoa dos princípios astrológicos, das regras para elaboração e leitura de cartas astrológicas e
quanto às especificidades de cada signo e cada planeta, aprendizagens que Pessoa poria em
prática, por exemplo quando fez uma série de cartas astrológicas da sua vida, dos seus heteró-
nimos, de amigos, de figuras históricas e até de Portugal.
104 Paratexto

A marginalia pessoana estende-se, ainda, a importantes obras de alguns


filósofos e pensadores de renome como Kant, Hobbes, Schopenhauer, Hegel,
Darwin, Laing, Haeckel, Robertson (para mencionar apenas alguns), bem
como às novas concepções ideológicas em curso. Efectivamente, o que viria a
constituir o pensamento filosófico autónomo de Fernando Pessoa ter-se-ia
iniciado a partir do regresso do poeta a Portugal, em 1905, e consolidar-se-ia
durante a sua permanência na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
e aquando das visitas quase diárias à Biblioteca Nacional onde contactou
com as principais correntes filosóficas de todos os tempos.
Foi, portanto, a partir desta altura que Pessoa produziu uma grande
quantidade de textos que nos permitem conhecer alguns dos seus interesses
característicos e verificar que leu insistentemente quase toda a espécie de
textos filosóficos e esotéricos, muitas vezes de forma pouco ordenada e sem
ter em mente uma qualquer forma de orientação específica ou sistemática21.
Na realidade, estas leituras não terão sido feitas de uma forma
intencionalmente orientada, com o objectivo de entender e estudar o pensa-
mento de um determinado autor ou corrente, mas como ponto de partida
para a consequente produção textual. Pessoa interessou-se, especialmente,
pelas correntes da ciência e da filosofia de finais do século XIX e começos do
século XX porque, de certa forma, precisava delas para se explicar a si mesmo
e desenvolver um conjunto particular de ideias sobre a problemática
espiritual e estética do homem moderno.

A marginalia de Fernando Pessoa mostra-nos, portanto, e no geral, um


tipo de leitor que era em simultâneo um pensador e um interlocutor de cada
um dos livros que lia e anotava, delineando um percurso de raciocínio e
conhecimento a partir das obras que serviam de alimento ao seu espírito.
Na realidade, tanto as anotações dos livros como as notas de leitura incluídas
em cadernos ou folhas soltas mostram claramente que a leitura era, para
Pessoa, uma actividade dinâmica e que quase tudo o que era lido despertava

21 Isto fica claro num texto seu onde se afirma: «Thousands of theories, grotesque, extraordinary,
profound, on the world, on man, on all problems that pertain to metaphysics have passed
through my mind. I have had in me thousands of philosophies not any two of which – as if they
were real – agreed. All the ideas I had if written down had been a great cheque on posterity; but
by the very peculiar character of my mind, no sooner did the theory, the idea struck me that it
disappeared, and after I ached to feel that one moment after I remembered nothing – absolutely
nothing of what it might have been. Thus memory, as all my other faculties predisposed me to
live in a dream” (Lopes, Pessoa por Conhecer, p. 248).
Maria do Céu Estibeira 105
em si uma energia intensa de reflexão, de partilha com o autor e de auto-
-conhecimento.
A marginalia pessoana fundamenta-se, assim, num “diálogo” entre
autores, sendo que, muitas vezes, assistimos a uma oscilação entre a rendição
e a resistência, entre a identificação e o afastamento, na medida em que,
apesar de o seu sistema de anotação ser invariavelmente simples e regular, os
seus comentários podem ser muito estimulantes, pois parecem promover
uma espécie de “debate” entre o autor e o seu leitor/anotador. Efectivamente,
quer as reacções negativas ou de resistência que podem levar Pessoa a
considerar determinado texto como «monstruous» ou «horrendous», quer as
elogiosas mostram o seu carácter exacto e rigoroso, embora envolvente e
dominador.
Ao folhearmos as páginas que contêm a marginalia de Pessoa, obser-
vamos que estas são reveladoras de uma nítida excelência artística, não só
pela sua inteligibilidade e coerência, mas também pela sua regularidade,
espontaneidade e relevância para a compreensão da obra em que se encon-
tram. Na realidade, a marginalia deste autor não se limita a uma marcação
monótona, porque a sua originalidade acentua a forma independente e
crítica de pensar, testando e reajustando as diversas posições até chegar a
uma opinião definitiva.
Pessoa manifesta, ainda, uma combinação muito particular como
anotador, já que, para além de demonstrar um relacionamento sério com o
texto (objecto de leitura), assume uma expressão clara e utiliza um tom
pessoal bastante convincente, associando o seu talento a uma inteligência
incisiva e a uma capacidade natural de postura crítica que, quando produzida
sob indignação, humor ou ironia, simula magistralmente essa tal forma de
diálogo com o autor a quem se dirige, podendo dar origem a comentários
inequivocamente admiráveis até em livros absolutamente normais e sem
grande excelência.
O facto de Pessoa ter sido um profundo amante da leitura e, desde muito
jovem, a ela devotado faz dele um anotador muito especial e muito para além
do simples corrector ou comentador. Na verdade, a experiência pessoal e a
vastidão de conhecimentos demonstrados pelo poeta português possibili-
tavam-lhe ter um controlo absoluto sobre os livros anotados, adicionando-
-lhes muitas vezes informações retiradas de outras fontes e de outros autores
e aproveitando-as para apoiar ou questionar a informação do livro que lia.
Embora, em dado período da sua vida, Pessoa tivesse afirmado que, a
partir de determinado momento, nada mais iria ler, podemos perceber que a
106 Paratexto

leitura seria sempre um dos seus “vícios”. Daí o acumular de livros em


diversas línguas que levariam à constituição de uma biblioteca de modo
algum organizada ao acaso. A aquisição dos diversos volumes teria sido
efectuada com base num motivo ou intenção, pois o poeta estava a par das
edições publicadas (nacionais e estrangeiras), especialmente dos temas que
lhe eram mais caros, chegando mesmo a fazer listas dos livros já adquiridos
ou a adquirir e mantendo contacto com algumas editoras a quem solicitava o
envio de obras específicas.
Certo, ainda assim, é que Fernando Pessoa não teve meios para adquirir
todos os livros que ambicionava, daí que muitos deles tenham sido consul-
tados na Biblioteca Nacional, onde passava algum tempo a ler. Contudo,
como aparentava ser um leitor sem grandes “pressas” mas de grande insis-
tência, procurava enriquecer a sua biblioteca, a fim de ter os livros sempre à
mão e de os anotar e sublinhar quando e como entendesse.
A apresentação e análise da marginalia de Fernando Pessoa revela-se,
deste modo, como um elemento valioso para a compreensão deste autor,
uma vez que permite o acesso à construção do processo mental enquanto
leitor/anotador, reflecte a vontade de interacção com o livro objecto da
leitura e, implicitamente, com o autor do mesmo, deixando entrever como a
recepção de um conjunto de leituras contribuiu para a construção de uma
individualidade própria. Deste modo, torna-se determinante salientar a
importância da análise destas anotações e marcações, na medida em que
muito mais há para explorar e muitos mais livros da Biblioteca pessoana para
estudar, mas sempre na certeza de que teremos pela frente um leitor cuja
intensidade emotiva faz da marginalia por si produzida uma das maiores
referências do género na literatura portuguesa.

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Pessoa, Fernando, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, G. Rudolf Lind e
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108 Paratexto

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Lind e Jacinto Prado Coelho (eds.), Lisboa: Edições Ática, 1994, 2ª ed.,
(1966)
Pessoa, Fernando, Textos Filosóficos – Vol. I, org. António Pina Coelho, Lisboa:
Editorial Nova Ática, 2006
Pessoa, Fernando, Textos Filosóficos – Vol. II, org. António Pina Coelho,
Lisboa: Editorial Nova Ática, 2006
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lower forms in public and private schools, London: John Murray, 1892
Tennyson, Alfred, The Works of Alfred Tennyson, London: Macmill and Co.,
1902
Whitman, Walt, Leaves of Grass, London: Cassell and Co., 1909
De fora para dentro e outra vez para fora: operações
paratextuais no bairro de Gonçalo M. Tavares
Luís Mourão
Instituto Politécnico de Viana do Castelo

1. O território textual: (algumas) generalidades


O território textual de um autor não é apenas o conjunto da sua obra e
dos textos críticos que ela suscita, pode comportar também um número
variável de operações de organização e estruturação da obra provindas do
próprio autor. Os meios de que um autor dispõe para tais operações não são,
em regra, abundantes. Distinguiria três situações.
Em primeiro lugar, os exercícios de auto-interpretação, em que o autor,
geralmente romancista ou poeta, ocupa o lugar de um ensaísmo peculiar,
porque impossível de desvincular das atribulações de um juízo em causa
própria. O grau de pertinência destes exercícios auto-interpretativos depende,
como é óbvio, da pertinência crítica do próprio autor, mas a sua influência no
modo de ler da obra tende a ser diminuta: o ensaio não só é simplesmente
acrescentado como mais uma peça do território textual, como vai ocupar um
lugar não essencial por relação àqueles outros textos que definem o género
específico pelo qual o autor é reconhecido. Exemplos disto serão os ensaios
auto-interpretativos de Vergílio Ferreira ou José Cardoso Pires, e tanto mais
exemplares quanto não falta pertinência ao ensaísmo de ambos.
Em segundo lugar, as entrevistas, hoje abundantes, até porque tendem a
substituir perversamente o espaço jornalístico da recensão crítica. Para além
do digest da obra – mais ou menos pedagógico, mais ou menos irónico,
conforme as idiossincrasias autorais –, a entrevista é um dos lugares por
excelência para a afirmação da auto-imagem do autor: a sua linhagem, a sua
diferença específica, a sua posição no “concerto das nações” (entenda-se: no
meio literário à escala global). Entre nós, Saramago e Lobo Antunes, apesar
de contarem com uma abundante e especializada bibliografia passiva, são os
exemplos paradigmáticos da construção desta auto-imagem para consumo
alargado. Apesar do interesse inegável destas operações para uma sociologia

Românica 18, 2009


110 Paratexto

da leitura ou para uma sociologia do meio literário, e não negando que algu-
mas entrevistas possam ultrapassar em profundidade e problematização o
trivial descartável que tende a caracterizá-las, o que fica é muito pouco para
poder constituir modo de leitura: os leitores instruídos tendem a lateralizar
esses hipotéticos conteúdos, precisamente porque também são instruídos
acerca do “campo guerreiro” em que eles são produzidos; o grande público,
por seu lado, apenas fixa desses conteúdos o que pode ser reduzido a um
simples rótulo, que muitas vezes mais não é do que o próprio nome de autor,
que se torna assim o autor por antonomásia.
Finalmente, uma terceira forma de o autor poder operar sobre a organi-
zação e estruturação do seu território textual advém da possibilidade de
poder inscrever na própria obra a sua pertença a um género ou a uma série,
ou de, através de prefácios, posfácios, notas ou outros operadores, propor
caminhos de interpretação ou manifestar interesses de auto-interpretação.
São operações clássicas, que oscilam, hoje, entre a informação já naturalizada
– raramente a indicação de género levanta agora quaisquer perplexidades –
e práticas em desuso, como sejam prefácios, posfácios ou demais notas.
Todavia, quando tais práticas por acaso acontecem, não deixam de ser as
operações paratextuais mais incisivas e com mais consequências no modo de
ler. O caso de Gonçalo M. Tavares, como tentarei mostrar, ilustrará sobre-
maneira ambas as coisas: uma vontade assumida de organizar e estruturar o
território textual do autor, e a execução dessa vontade através de operações
paratextuais a que é impossível sermos alheios no modo de ler.

2. O território textual: (quase) um estudo de caso


O momento inaugural da obra de Gonçalo M. Tavares – Livro da Dança,
em 2001 – pretende desde logo ser também, e de forma muito deliberada, o
momento primeiro da fundação de um território textual e de um nome de
autor. É assim que na folha de rosto desse livro, quase como uma espécie de
subtítulo, nos aparece a indicação de «Cadernos de Gonçalo M. Tavares / 1».
O andar do tempo provou que o gesto não era temerário, antes a marca de um
autor que entrava em cena sabendo o bastante das estruturas simbólicas que
ainda regem o campo. Logo na obra seguinte, O Senhor Valéry, de Abril de
2002, a indicação de «Cadernos de Gonçalo M. Tavares» seguido do número
da obra passou para o final do livro, posição aparentemente menos ostensiva,
mas que de facto radicaliza o enunciar de um gesto inequívoco de pertença a
um território textual que não só se expande como apresenta a regra básica da
Luís Mourão 111
sua auto-organização: independentemente da diferença de géneros, o “ar de
família” é dado pelo facto de que tudo se escreve em (como) cadernos, com
óbvio reenvio a uma época da literatura em que ela era ainda a Grande Arte
por excelência. Em todo o caso, também aqui o andar do tempo permitiu
aferir melhor do alcance deste rótulo: não é tanto a distinção simbólica da
pertença imaginária à Grande Literatura que afinal está em causa, quanto a
caracterização muito laboral de um projecto de autoria que parece partir de
todas as referências literárias determinantes, que atravessa todos os géneros,
e que prossegue unicamente movido pela capacidade e pela determinação de
escrever, de preencher cadernos. O rótulo não promete teleologias, indica
apenas uma acção continuada e a continuar, uma espécie de força – e, afinal,
talvez resida nesse simples traço de afirmatividade a única herança que
Gonçalo M. Tavares parece reclamar da Grande Literatura: que se possa
continuar a escrever, que isso seja legitimidade suficiente para alguém se
apresentar com os seus cadernos. Visto mais de perto, e conjugado com o
projecto específico que cada livro desenha, o território textual de Gonçalo
M. Tavares seria o exemplo mais flagrante de um pós-moderno de resistência
– mas essa análise levar-nos-ia muito para além do que os índices para-
textuais da sua obra permitem alcançar.
Retomemos o ponto. A indicação «Cadernos de Gonçalo M. Tavares»
seguido do número da obra delimita e institui, na sua generalidade, um terri-
tório textual em expansão. A este primeiro gesto fundador, seguem-se outros
que visam agora estruturar internamente as relações a estabelecer entre os
vários livros: a repartição por géneros ou a agregação em “séries”, por exem-
plo. A autoridade implícita nestes gestos não sofre, por regra, grande contes-
tação, até porque, na maior parte dos casos, o autor apenas rotula antecipa-
damente o que a crítica mais imediata identificaria sem qualquer grau de
controvérsia. É por isso que o mais interessante é quando este gesto não é
contemporâneo da entrada da obra no circuito público, mas surge já depois
de ela ter tido algum percurso de recepção crítica. É evidente que, numa situa-
ção destas, a intervenção do autor não se pode limitar a sancionar um qual-
quer consenso crítico que se tenha estabelecido – além da pouca inteligência
estratégica do lance, seria sobretudo um gesto inútil. Mas não é menos evi-
dente que a possibilidade de o autor intervir de forma relevante no percurso
de sentido da obra não deixa de colocar problemas muito interessantes pre-
cisamente quanto ao modo de constituição do sentido de uma obra – e note-
-se, para nos mantermos ferreamente no ponto, que não está aqui em causa a
reescrita de uma obra, mas tão somente intervenções de carácter paratextual.
112 Paratexto

3. O bairro: os anos de formação


Primeiro, começou por não haver bairro nenhum, apenas um livro, O
Senhor Valéry (Abril de 2002). A contracapa seguia o que é de ordem nestas
situações, apresentando referências críticas abonatórias de quem tinha
autoridade para as produzir, no caso José António Gomes (decerto excertos
da declaração de voto que atribuiu à obra o prémio Branquinho da Fonseca
Expresso/Gulbenkian). A indicação da autoria dos desenhos que acompa-
nham o livro aparece apenas na página interior, que repete o título.
Um ano e dois meses depois, em Junho de 2003, é publicado O Senhor
Henri. O “ar de família” é imediatamente dado pela repetição da fórmula que
origina o título, essa designação irónica «O Senhor», referida a um nome de
autor que é assim falsamente devolvido ao mundo comum dos mortais. Este
ar de família é ainda reforçado pelas características específicas destes dois
livros enquanto artefactos: a mesma dimensão das páginas e da mancha, a
mesma gramagem do papel, as mesmas capas duras, o mesmo traço dos
desenhos de Rachel Caiano, cujo nome passa agora para a capa, e até uma
enorme proximidade na volumetria (O Senhor Valéry tem 80 páginas, O
Senhor Henri tem 96). Na contracapa de O Senhor Henri encontramos agora,
não referências críticas, mas dois excertos: o primeiro do próprio O Senhor
Henri, o segundo do anterior O Senhor Valéry.
O ar de família é por demais evidente. E há ainda indícios suplementares
que legitimam que deste ar de família se possa passar para a hipótese da
colecção ou da série. Trata-se de um autor jovem – trinta e três anos, se aten-
dermos à data de nascimento que consta das últimas folhas de O Senhor Henri
– e com um ritmo de trabalho assinalável: se O Senhor Valéry era o caderno
nº 2, O Senhor Henri, pouco mais de um ano depois, é já o caderno nº 6. Ou
seja, temos as condições de produção propiciatórias e uma fórmula, um
dispositivo serial ou maquínico, por assim dizer, capaz de funcionar ilimita-
damente sobre um não menos “ilimitado” campo de incidência, o dos nomes
de autor. Em todo o caso, a hipótese da colecção ou da série, embora já
razoável nesta altura, não é mais do que a hipótese de uma agregação por
contiguidade – um Senhor que se segue a outro Senhor, que se segue eventual-
mente a outros Senhores – e por experimentação de um tom, o da ironia e do
jogo que leva aos limites certas formulações lógicas, apanhando precisa-
mente o momento em que o máximo rigor lógico devém absurdo.
Este panorama vai-se consolidar e, ao mesmo tempo, transformar-se
com a publicação, em Outubro de 2004, de O Senhor Brecht e de O Senhor
Luís Mourão 113
Juarroz, cadernos 11 e 12, respectivamente. O ar de família é em tudo rigoro-
samente o mesmo, mas há uma diferença decisiva na contracapa de ambos os
livros, agora ocupada por um desenho intitulado «O bairro» (fig. 1): casas
compostas segundo traços infantis mas com perspectiva espacial de artista,
assinalando a morada individual do Sr. Valéry, do Sr. Henri, do Sr. Brecht e
do Sr. Juarroz, e deixando implícito – e em expectativa – que outros nomes de
autor habitarão no bairro, precisamente por se tratar de um bairro.
O que era contiguidade de títulos passa em definitivo a série, e o modo
específico desta transformação tem consequências no plano do sentido. A
designação de «O bairro» não é apenas um rótulo que sirva meros efeitos
identificativos de um conjunto de obras. A sua força referencial torna-se o
âmago da sua força metafórica e institui um espaço exterior às obras indivi-
dualmente consideradas que as vem pôr em diálogo e mútuo reenvio. Não é
a autonomia de cada obra que fica em causa, é a singularidade mesma dessa
autonomia que ganha uma dimensão relacional doravante incontornável.
«O bairro» é a versão “pós-moderna de resistência” do absoluto literário
que o romantismo visava. Um bairro como qualquer bairro, de uma cidade
como qualquer cidade, com essa mínima diferença, realmente impossível,
de albergar escritores que por nacionalidade e época nunca se encontraram.
E contudo, cada um deles existiu deveras, senão neste, em outro bairro
semelhante a este. A impossibilidade referencial de «O bairro» não anula a
vida de bairro que existiu na vida real de cada escritor, antes a resgata para
projectá-la como um possível anacrónico, e por isso resistente: uma comuni-
dade cujo referencial maior é a literatura. O escândalo de um tal projecto nos
tempos que correm só não se faz ouvir em toda a sua força porque pode ser
parcialmente lido à luz mais normalizadora da meta-ficção. É que a literatura
como absoluto transportou na sua sombra um tão imenso desmentido da
realidade, que só a meta-ficção parece ter legitimidade para passear por esses
terrenos agora desabitados. É certo que «O bairro» suporta, ao menos em
parte, uma leitura em clave meta-ficcional, mas diria que apenas naquele
sentido, hoje generalista, de que toda a ficção que importa sabe que é ficção
e sabe que os seus leitores sabem que ela o sabe. Mas dentro deste processo,
que não deixa de conduzir a uma re-naturalização dos protocolos ficcionais,
«O bairro», pese embora o seu óbvio lado irónico e até a alguma irrisão a que
submete as figuras autorais, é no fundo uma celebração da força da literatura:
da força da literatura enquanto multitude de autores, isto é, enquanto dife-
rença sempre a produzir-se, e da força da literatura enquanto invenção de
tudo e do seu contrário, isto é, enquanto homóloga do próprio devir do
114 Paratexto

mundo. Devir particularmente estranho neste caso, note-se de passagem: a


lógica do projecto parece impor que os escritores que vão chegando ao bairro
sejam escritores já mortos, e ademais canónicos. Mas a intensidade de vida
com que tais autores chegam ao presente de «O bairro» é não só indesmen-
tível como sublinha o modo específico de funcionamento da arte em geral:
arte é o que advém ao presente com significados passados disponíveis à
incorporação de novos sentidos. Forma de dizer que a arte em geral está
continuamente a mudar de bairro, a criar um bairro novo nessa mudança.
O título «O bairro» não institui apenas um espaço exterior ficcional ou
um contexto para os vários senhores já entrados em cena. Precisamente
porque esta ideia nos ocorre com certa naturalidade – a de que estes senhores
entram em cena n’ «O bairro» – este espaço exterior passa também a funcio-
nar por dentro das obras, introduzindo nelas um princípio de sociabilidade
onde antes apenas existia um fundo vago, impreciso e abstracto, digamos que
um cenário mental tão mais minimalista quanto a importância do que se
desenrola reside sobretudo no chiste e no jogo lógico. Agora, não só a casa de
cada senhor se tem de imaginar como pertencendo a um todo habitacional e
social compatível com o desenho que o “descreve”, como ficamos na expecta-
tiva de que os senhores se cruzem, como é natural acontecer nos bairros
realmente existentes e mais ainda, como parece ser o caso do bairro do dese-
nho, nos bairros antigos. O desenho introduz, assim, a parte de descrição
ausente das obras, dando-lhes um mundo onde a literatura, para o dizermos
em termos rápidos, ganha a vida de onde em parte provém. Se os senhores
efectivamente não contracenam – e nas quatro obras até ao surgimento de
«O bairro» isso de facto não acontece –, a releitura induzida pelo título
coloca como incontornável essa possibilidade. Até porque é a partir desta
releitura que se torna mais evidente que cada um dos senhores fala constan-
temente para interlocutores pressupostos, mas na verdade invisíveis. «O
bairro» dá a esta invisibilidade a consistência social possível, ou dito de outra
maneira, traz o rumor do mundo para a obra.
Numa outra vertente, «O bairro» transforma também o horizonte de
expectativas em que se virão inscrever os senhores vindouros. De alguma
forma, torna-se doravante imperioso que os senhores venham a ter um
mínimo de interacção efectiva, sem a qual a ideia de bairro redundaria pura-
mente artificial e falharia a sua força intrínseca para estabelecer conexões
entre os vários livros. Digamos que a condição de tais conexões é que elas
sejam uma ampliação, em termos de leitura, de pequenos momentos de
interacção entre os senhores dentro de cada livro, por mais residuais que esses
Luís Mourão 115
momentos sejam – ou por mais residuais que esses momentos devam ser para
não se afastarem do projecto implícito que parece mover cada um dos livros,
o de se centrar na distorção de um aspecto particular da lógica discursiva
específica de cada um dos senhores. Mas também neste aspecto o horizonte de
expectativas criado pelo facto de “haver” um bairro vem colocar a questão
última das conexões em aberto: o bairro transformará cada um dos livros dos
senhores num capítulo de um romance improvável – digamos que um
romance de bairro, deste improvável bairro –, ou cada um dos livros com-
porta e comportará uma resistência singular que o exime a qualquer plano de
maior organicidade? Convenhamos que não é uma questão de somenos. É
que sendo as especificidades deste bairro tão claramente literárias, para dizer
o mínimo, o desenvolvimento desta questão terá consequências quanto à
auto-a(re)presentação do território textual do autor. O que aqui se joga (em
vários tabuleiros ou planos, é certo) é uma noção de literatura: conjunto
infinito de nomes ou mónadas irredutíveis ainda que comunicantes? Um
nome de autor é maior do que a soma dos seus títulos, ou cada título, por si
só, vai mais além do que qualquer nome de autor pode ir? Ou poderão estas
obras, cada uma de per si, ou no seu conjunto, ou no seu confronto, recolocar
em termos diferentes estas questões (e suas análogas)?
Por último, no que diz ainda respeito a este horizonte de expectativas
que decorre do facto de “haver” bairro, creio que não será excessiva especu-
lação dizer-se que ele comportará também a possibilidade de, para além
destes senhores com nome de autor, virem a ser habitantes do bairro senhores
e senhoras com nomes de personagens. É certo que nada nestes quatro livros
aponta nessa direcção, e que um programa restrito a nomes de autor, como
se disse, comporta já matéria suficientemente inesgotável. Contudo, se
alguma coisa neste programa visa as questões da literatura em geral, não seria
descabido que no bairro morassem também personagens, até porque elas
ampliam ou recolocam os problemas enunciados: uma personagem é criada
por um autor, ou cria também o seu autor? Uma personagem depende da
obra em que existe, ou pode ir mais além do que a obra a que pertence? Ou a
colocação de todas estas questões enquanto questões não é mais do que o
trânsito de personagens conceptuais, uma das poucas formas que temos de
mover o pensamento? É que, por mais especulativa que seja esta hipótese que
se quer inscrever no horizonte de expectativas que decorre do facto de
“haver” bairro, não deixo de pensar que ela é subterraneamente (mas
também naturalmente) conduzida pelo facto de cada um dos senhores se nos
apresentar, afinal, como personagem do livro que leva o seu nome.
116 Paratexto

4. O bairro: os anos do povoamento


Em 2005, um ano depois de «O bairro» nos ter sido apresentado,
surgem dois novos títulos em simultâneo: O Senhor Kraus e O Senhor Calvino,
respectivamente cadernos 17 e 18. Nada mudou no “ar de família” e, como
seria de esperar, na contracapa de ambos os livros surge o mesmo desenho
de «O bairro», acrescentado dos seus novos moradores. O senhor Kraus é
vizinho de casa do senhor Henry, o senhor Calvino mora numa casa cujos
restantes locatários são desconhecidos. Dir-se-ia que esta situação distinta é
responsável pelo que em cada livro remete para o bairro.
Assim, sem qualquer surpresa, o senhor Kraus cruza-se por dois breves
instantes com o senhor Henri (pp. 71 e 107). Nada mais existe no livro que se
refira ao bairro e aos seus habitantes, mas estes dois momentos são suficien-
tes para continuar a concretizar desde “dentro” o plano da série.
Quanto ao senhor Calvino, temos pela primeira vez uma personagem
que se desloca explicitamente no espaço do bairro: todos os sábados de
manhã o senhor Calvino percorria «o bairro de uma ponta à outra» (p. 31).
É certo que deste passeio não decorre qualquer caracterização aprofundada
do bairro, nem sequer de uma parcela dele, mas também é certo que, apesar
disso, este passeio faz muito por essa concretização do bairro desde “dentro”
como espaço em que todos os senhores se movem de facto.
Não sendo vizinho próximo de nenhum dos outros senhores, o senhor
Calvino é, curiosamente, aquele que mais socializa com interlocutores
visíveis no seu nome (não são mais do que três, é verdade, mas por compa-
ração à inexistência de outros nomes nos livros anteriores não deixa de ser
significativo). Sobre todos, avulta o senhor Duchamp (p. 33), que vem à cena
num episódio que não importa agora analisar a não ser para referir dois bre-
ves traços: a) o episódio não é um mero cruzamento fortuito das persona-
gens, constitui antes um “capítulo” do livro (curto, como todos os outros),
sendo que o senhor Duchamp tem aí tanta importância como o senhor
Calvino; b) o comportamento do senhor Duchamp reveste-se igualmente de
todas as características que tornam os demais senhores peculiares. Ou seja, é
bem possível que o episódio constitua o anúncio implícito de que o senhor
Duchamp virá a integrar a galeria dos senhores, o que deixa vir ao de cima
uma outra possibilidade de jogo proporcionada pelo facto de “haver” bairro.
Não temos apenas operações de alguma forma retrospectivas, como no caso
de o senhor Kraus se cruzar com um senhor que já tinha dado o seu nome a
um livro, mas também prospectivas, antecipando o aparecimento, como
figuras secundárias, de personagens que vemos claramente possuírem as
Luís Mourão 117
condições exigidas pela série para virem a ser “titulares” de um livro. Deste
modo, o “haver” bairro torna-se um mecanismo de maior organicidade para
a série, permitindo-lhe em alguns aspectos funcionar com os reenvios
próprios de uma obra única.
Num capítulo ainda mais curto (p. 53), é referido um vizinho do senhor
Calvino, o senhor D., mas apenas por ser dono do cão que importa para esse
capítulo (e que não importa para aqui). Um pouco mais adiante, num
episódio secundário, o senhor Calvino dialoga com o senhor Bettini, um cego
que fora visitar (p. 57). O que é interessante neste lances é aparecer um
vizinho com nome e um outro senhor, mas que visivelmente não podem ser
colocados no mesmo plano de significação do senhor Duchamp. Não irei tão
longe que lhes chame pistas falsas, mas o mecanismo parece servir possibi-
lidades prospectivas bem diferentes: por um lado “realistas”, no sentido de
que o bairro comportará outros habitantes para além dos senhores, como é
natural acontecer nos bairros normais; por outro lado irónicas: D. pode ainda
vir a revelar-se a inicial de um importante nome de autor, Bettini pode ser
também um nome de autor, só que secundário, mas nem por isso menos
habitante do bairro da literatura, que aliás precisa de alguns secundários para
melhor realçar os principais (se bem que a lógica da série pareça restringir-se
aos mortos canónicos, como já vimos). Sejam quais forem as eventuais
funções que estes nomes venham a desempenhar (se vierem a desempenhar
alguma), a sua simples existência aqui contribui para concretizar esse módico
de sociabilidade que ficou prometida no “haver” bairro.
Mas a alteração decisiva (até hoje) na sociabilidade do bairro dá-se no
ano seguinte, 2006, com a publicação de O Senhor Walser, que constitui o
caderno 21. Mantém-se inalterável o “ar de família” do livro e o casario do
bairro que figura na contracapa, apenas acrescentado de um ponto fora do
seu perímetro, que é justamente a casa do senhor Walser. Mas encontramos
duas alterações no bairro (fig. 2). Uma, estilística, digamos assim: a designa-
ção «O bairro» não aparece agora em letra de imprensa mas manuscrita, tal
como os nomes dos senhores. É um pormenor ínfimo, é certo, mas é um
pormenor que empresta coerência à figura e mostra o cuidado com que o
projecto se vai tecendo em todos os seus aspectos, do texto aos desenhos de
Rachel Caiano. A segunda alteração tem um alcance maior: para além de
estarem identificadas as casas dos senhores que já foram objecto de livro,
aparecem a habitar o bairro mais uma quantidade de senhores e senhoras
(duas) que, presume-se, virão também a ser objecto de livro. São mais trinta
e dois nomes de autor a juntar aos sete já existentes. Eis a lista completa,
118 Paratexto

agrupando os habitantes por casa: Sr Rimbaud, Sr Balzac e Sr Carroll; Sr


Brecht; Sr Proust; Sr Melville, Sr Henri M., Sr Cortázar e Sr Gogol; Sr Eliot,
Srª Woolf, Sr Burroughs e Sr Wells; Sr Joyce, Sr Kafka, Sr Mishima, Sr Breton,
Sr C. Anderson, Sr Lorca e Sr Swendenborg; Sr Kraus e Sr Voltaire; Sr Borges;
Sr Juarroz, Sr Pessoa e Sr Pirandello; Sr Warhol, Sr Duchamp1, Sr Corbusier,
Sr Loyd Wright e Srª Bausch; Sr Musil, Sr Foucault, Sr Wittgennstein, Sr
Beckett e Sr Orwell; Sr Calvino; Sr Valéry; Sr Walser.
Este povoamento transforma o bairro numa personagem essencial da
série. Antes de mais, confirmando-o verdadeiramente como bairro, como
grande conector de um trabalho de escrita que é agora, de forma evidente,
inesgotável. Depois, povoando decisivamente a nossa leitura de possibilida-
des paralelas, de antecipações, de expectativas – numa palavra, de tudo aqui-
lo que faz um território textual estar vivo e em expansão. Neste sentido, e
nesta fase da obra, o bairro não é apenas uma personagem essencial da série,
é também, em bom rigor, a alegoria perfeita do território textual que Gonçalo
M. Tavares quer que seja o seu: prolongamento e recomeço de toda a autoria,
atravessando todos os autores, desviando-se para além de todos eles.
Mas olhemos mais de perto este povoamento. A transformação maior
que estes nomes provocam no “espírito” da série, e portanto no modo de ler
e reler, é que os nomes de autor não se restringem unicamente ao campo
literário, embora continuem a ser inquestionavelmente canónicos. Encontra-
mos filósofos2, arquitectos, artistas plásticos, e uma bailarina/coreógrafa.
Por enquanto, estes. Porque com esta abertura de campos, estes cruzamen-
tos, há todas as razões para pensar que outros nomes de outras artes possam
igualmente vir a habitar o bairro. Se a questão inicial parecia ser a da litera-
tura, agora parece ter derivado para a das várias faces da criatividade, ou
melhor dizendo, do seu reverso cómico e/ou hiper-reflexivo, ainda que não
menos celebratório ou pujante. Dito de outra forma, o bairro como micro-
cosmos, ou alegoria muito sui generis, do mundo enquanto lugar de invenção
humana e do humano – invenção em segundo grau, afirmando, e delimitan-
do nessa mesma afirmação, o absurdo que também pertence a todo o lance

1 O que confirma a pista deixada em O Senhor Calvino.


2 Este alargar da base de recrutamento dos nomes pode trazer certos equívocos. É por isso que o
senhor Henri, que pelas suas características se percebia ser Henri Michaux, vê agora o seu nome
especificado pela maiúscula M., certamente para não ser confundido, olhando apenas o mapa
dos locatários, com a possibilidade de poder tratar-se de Henri B.(ergson).
Luís Mourão 119
racional. Nisto, o tom dos livros tem sido até agora de uma consistência a toda
a prova, evitando também – e sublinhe-se – toda a tentação culturalista ou de
enciclopédia de ideias feitas acerca dos grandes nomes autorais. Basta o nome
de cada um dos senhores para abrir todo um campo de referências difusas, e é
dentro delas que cada livro se move, sem nunca as explicitar mas criando
uma problemática específica da personagem que dá pelo nome dos senhores.
Na distribuição dos nomes pelas casas há também alguns aspectos que
fazem pensar. Não me refiro tanto ao facto de alguns senhores serem por
enquanto os únicos locatários de algumas das casas, porque me parece
plausível pensar-se que o povoamento virá ainda a ter desenvolvimentos. O
mais curioso são os “grupos” que já habitam a mesma casa, e os “grupos” que
habitam casas diferentes do mesmo prédio. O movimento especulativo
natural é o de perguntar pelo vínculo “comunitário” que os poderia unir; ou
então, numa outra vertente, imaginar o que neste bairro poderia ser aquilo a
que Lingis chamou a comunidade das pessoas que nada têm em comum. É
sem dúvida mais uma das expectativas de leitura: saber se estas manchas de
“densidade demográfica autoral” correspondem a pequenos projectos dentro
do projecto maior ou se as correspondências se vão manter no mesmo plano
difuso que é aqui aberto pelo simples enunciar do nome dos senhores.
Finalmente, olhando ainda o povoamento, notem-se dois pormenores:
1) há ainda muitas casas, e mesmo prédios inteiros, sem locatários; 2)
atendendo à constituição numérica variável dos “grupos” que habitam uma
mesma casa, pode-se concluir que, sendo necessário, haverá sempre lugar
para mais um. Numa palavra, a inesgotabilidade do bairro não é já apenas
uma promessa, como no início, mas uma confirmação construindo-se perante
os nossos olhos.

5. O bairro: recomeçar, continuando


Mas não basta povoar, digamos que é preciso socializar, sendo que a
coisa não vai de si – muito menos tratando-se de um bairro assim tão “lite-
rário” ou “criativo”. Neste sentido, e a mais do que um título, como veremos,
O Senhor Breton e a entrevista cumpre funções de re-fundação da série.
Editado em Outubro de 2008 (cadernos 24), O Senhor Breton e a entrevista
apresenta em tudo o mesmo ar de família dos livros anteriores, com essa
diferença da especificação aposta ao título. Evidentemente, não é um
pormenor; mas também não é um paratextual, pelo que não me alongarei
sobre o caso. Digamos apenas, na perspectiva do “haver” bairro, que estas
120 Paratexto

especificações acrescentam a cada nome um “tema”, ou um “problema”, ou


um lugar onde a vida se manifesta. E se, em primeira instância, estes “temas”
têm uma ligação privilegiada com esse mesmo nome, não deixam de
constituir um plano de sociabilidade, que, ao menos indirectamente, envolve
todos os senhores. Dito de outra maneira: os nomes dos senhores são a decli-
nação do “haver” bairro em termos de sujeitos, de indivíduos, como estes
“temas”, por mais difusos ou elípticos que possam ser, são o declinar do
“haver” bairro em termos da sociabilidade que torna esses sujeitos reconhe-
cíveis uns aos outros e uns a partir dos outros. Ou ainda de outra maneira,
que por certo a continuação da série adensará, o bairro começa a ser
realmente comunidade. Estranha, paradoxal – mas comunidade.
É neste primeiro sentido que O Senhor Breton e a entrevista é uma refun-
dação da série, até porque é também aqui, na indicação da lista bibliográfica
do autor inserida no final do volume, que encontramos pela primeira vez –
sem qualquer explicação adicional, com toda a naturalidade – a especificação
aposta aos títulos dos livros anteriores: O Senhor Valéry e a lógica, O Senhor
Henri e a enciclopédia, O Senhor Brecht e o sucesso, O Senhor Juarroz e o pensa-
mento, O Senhor Kraus e a política, O Senhor Calvino e o passeio, O Senhor
Walser e a floresta. A enumeração é longa mas justifica-se por ser sintomática
do quanto a construção deste território textual refaz constantemente o já
feito, não esperando sequer pelas condições mais prosaicamente empíricas
para operar essa reconstrução: estes novos títulos têm, por assim dizer, a
existência virtual de uma lista bibliográfica que não corresponde aos títulos
das obras efectivamente em circulação. Não é a re-escrita de uma obra,
mesmo que apenas alterada no seu título, que aqui está em causa, porque de
facto não há ainda essa nova edição da obra. É uma re-escrita da obra fora da
obra, mas dentro do território textual do autor, e desde já com claras
incidências na leitura desse mesmo território.
Há ainda um segundo e um terceiro aspectos em que O Senhor Breton e a
entrevista prossegue esta espécie de gesto de re-fundação. O segundo aspecto,
reconheço-o, pode constituir uma extrapolação de uma circunstância
ocasional, mas não deixa de ser curioso que, precisamente nesta altura, isto
é, depois de no bairro aparecerem senhores que não são do campo da litera-
tura, O Senhor Breton e a entrevista seja o livro da série em que a reflexão sobre
a literatura constitui de forma óbvia o seu eixo central. Embora não possa
fundamentá-lo neste espaço, diria até que os lances teóricos em que o livro
elipticamente se articula perfazem uma notável teoria da literatura –
a tanto chega esta necessidade de recentrar a série. Mas dito isto, diga-se
Luís Mourão 121
também que os moldes em que isso é feito – incidindo nos poderes performa-
tivos da linguagem e na sua articulação primordial ao pensamento e ao corpo
– deixa campo aberto ao prosseguir dessa reflexão com outras incidências
discursivas, nomeadamente filosóficas. Se temos um re-centramento, tal
parece não implicar um fechar-se numa matéria exclusivamente literária,
mas antes trabalhar as questões a partir de uma certa perspectiva, que neste
caso diríamos ser a das capacidades inventivas da linguagem, co-extensivas,
senão mesmo responsáveis, da invenção do todo do mundo.
O terceiro aspecto é o mais evidente e também o mais importante.
A entrevista que o senhor Breton faz a si próprio poderia ocupar por inteiro
o livro, e provavelmente, numa fase anterior da série, assim teria acontecido.
Agora, o senhor Breton interrompe a sua auto-entrevista, vem até à janela
distrair-se um pouco e vê passar o senhor Valéry (pp. 25-26), ou sai mesmo
para passear «nas ruas do bairro» (p. 31) e cruza-se primeiro com o senhor
Duchamp (pp. 31-32) e depois com o senhor Kraus (pp. 33-36). Mas já antes
de se chegar à janela o senhor Breton se tinha lembrado de um dos seus
vizinhos, o senhor Juarroz (pp. 16-17), e voltará a lembrar-se dele mais tarde,
ou melhor, de uma história que a mulher do senhor Juarroz contava sobre o
seu marido (pp. 43-44). Não estamos em presença de meras referências a
outros habitantes do bairro. Em todos os casos, há um pequeno episódio que
toma cada um desses outros senhores por personagem principal, e se é certo
que tal episódio é pertinente para as questões levantadas pelo senhor Breton,
não é menos certo que se enquadra perfeitamente no espírito da persona-
gem, tal como a lembrámos do livro que lhe diz respeito3. Ou seja, é agora
mais evidente que cada novo livro pode trazer acrescentos aos livros
anteriores, instituindo um mecanismo ficcional que os mantém a todos em
aberto dentro do vasto perímetro da série, o que a torna maior do que a soma
das suas partes. Em definitivo, o bairro veio para dentro deste livro, e através
dele, e quase de certeza dos que se lhe seguirão, instalar-se-á também defini-

3 De todos estes senhores, o senhor Duchamp é o único que ainda não foi “titular” de um livro. O
senhor Duchamp já tinha aparecido, como vimos, em O Senhor Calvino, igualmente num
episódio em que não foi mero figurante. O processo de construção desta figura segue, portanto,
etapas bem distintas das dos restantes senhores. Por enquanto, o único sentido razoável que
parece poder extrair-se daqui é que o “haver” bairro permite, naturalmente, uma certa variedade
nos percursos de emergência das figuras, bem como no uso das antecipações ou das
recorrências. Numa palavra, e como também já se assinalou, o “haver” bairro põe em acção um
mecanismo ficcional que envolve todos os livros da série.
122 Paratexto

tivamente no centro daqueles livros que não sabiam ainda que pertenciam ao
bairro.
Esta atenção ao “haver” bairro estende-se à sua geografia concreta, e
é sublinhada muito enfaticamente no passeio do senhor Breton. É verdade,
e vimo-lo, que já o senhor Calvino, todos os sábados de manhã, percorria
«o bairro de uma ponta à outra», mas isso apenas nos dava o todo da
sua geografia de um modo abstracto. O que há de diferente no passeio do
senhor Breton é que o seu itinerário assinala lugares concretos que pode-
ríamos seguir no mapa da contracapa: o senhor Breton «aproximou-se do
lugar onde o senhor Eliot costumava dar conferências» (p. 33); depois
«começou a aproximar-se dos limites do bairro» e ouviu «o barulho do
motor: o senhor Corbusier e a sua avioneta» (p. 36); saiu do bairro «até
começar a embrenhar-se na floresta», e «muitos metros à frente vislumbrou
a casa do senhor Walser» – mas «nem se aproximou. Não queria incomodar
ninguém.» (p. 36).
É um bairro vivo, este que o senhor Breton percorre, com os seus lugares
e as gentes desses lugares: mesmo que não contracenem com o senhor
Breton, como acontece neste passeio, não deixam de assinalar o povoamento
e a sociabilidade. Não será por acaso que o livro não se encerra com o
terminar da auto-entrevista do senhor Breton, mas um pouco depois disso,
quando alguém toca à campainha e «o senhor Breton foi abrir» (p. 56). Que
o último gesto do livro seja a perspectiva de mais sociabilidade diz bem da
alguma mudança de tom que decorre já não só de “haver” bairro, mas do
facto inquestionável de o bairro se ter tornado o espaço identificável destas
ficções e também sua personagem.
O Senhor Breton e a entrevista termina este lento movimento que condu-
ziu um dado paratextual a ser incluído bem no cerne do texto a que dizia
respeito. Neste sentido, a série refunda-se: obriga a reler, acrescentado-lhe o
que doravante é suposto ter lá estado desde sempre, e antecipa a leitura,
mapeando hipóteses e expectativas. Dito de outra maneira: de fora para
dentro e outra vez para fora.
Mas não é ainda o fim, a estabilidade, o plano sem sobressaltos da
interpretação. Há mais fora para ir para dentro e outra vez para fora. Por
exemplo assim. Desde o terceiro livro da série, O Senhor Juarroz, que no final
do livro, antes da tábua bibliográfica do autor, aparecem as capas de todos os
Senhores, com um breve excerto “ilustrativo”. Quando dois Senhores são
editados na mesma altura, o que tem o número de caderno mais baixo já
apresenta a capa do Senhor seguinte. No final de O Senhor Breton e a entrevista
Luís Mourão 123
aparece a capa e um excerto de O Senhor Salinger e uma história de infância,
que de acordo com a tábua bibliográfica deveria ter sido publicado também
em 2008. Não foi. Nada de mais, estas alterações de planos editoriais
acontecem. Supostamente o livro existe, ou senão uma forte intenção dele,
materializada em capa e excerto. O interessante, num bairro que já tem
identificados trinta e nove habitantes, o que de novo vem de fora para dentro,
é que o senhor Salinger não consta por enquanto do rol dos locatários…
Verdadeiramente, recomeçar continuando.

6. Pensando melhor
Mas pensando melhor, talvez até seja apropriado – porque não respeitar
o desejo de anonimato e desaparecimento do senhor Salinger? Sim, porque
não? E que melhor lugar para estar anónimo e desaparecido do que num
bairro que já tem trinta e nove fortes focos de atenção? Sim, que melhor
lugar?

Referências Bibliográficas
Lingis, Alphonso, The Community of those who have nothing in common,
Indianapolis: Indiana University Press, 1994
Mourão, Luís, «O bairro, a biblioteca e a máquina filológica: uma leitura par-
cial de Gonçalo M. Tavares», Gramática e Humanismo. Actas do colóquio
de homenagem a Amadeu Torres, organização de Miguel Gonçalves, Braga:
Publicações da Faculdade de Filosofia, 2005, 2º volume, pp. 529-535
Tavares, Gonçalo M., Livro da Dança, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Valéry, Lisboa: Caminho, 2002
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Henri, Lisboa: Caminho, 2003
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Brecht, Lisboa: Caminho, 2004
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Juarroz, Lisboa: Caminho, 2004
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Kraus, Lisboa: Caminho, 2005
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Calvino, Lisboa: Caminho, 2005
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Walser, Lisboa: Caminho, 2006
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Breton e a entrevista, Lisboa: Caminho, 2008
124 Paratexto

Fig. 1: contracapa de O Senhor Juarroz, desenho de Rachel Caiano


Luís Mourão 125

Fig. 2: contracapa de O Senhor Walser, desenho de Rachel Caiano


Na Periferia da Tradução Literária
João Almeida Flor
Universidade de Lisboa

A génese, a evolução e a plena formulação do conceito de paratexto no


pensamento de Gérard Genette podem ser esboçadas a partir de aponta-
mentos dispersos em Introduction à l’architexte (1979), depois retomados em
Palimpsestes (1982) e finalmente sistematizados e desenvolvidos no ensaio
Seuils (1987). Todavia, mais de vinte anos após a primeira edição deste estudo
seminal que integrou a noção de paratexto no quadro terminológico-concep-
tual dos modernos estudos literários, a sua produtividade está longe de se
encontrar esgotada e aguarda ainda aplicação a diversos campos de trabalho.
De resto, nas últimas páginas da obra, já o autor tivera oportunidade de
reconhecer as limitações da sua reflexão, incompatível com o tratamento
extenso e aprofundado, exigido pela amplitude do tema, e deixava sumaria-
mente indicadas algumas áreas susceptíveis de exploração ulterior.
Por um lado, Genette sublinhava a possibilidade de transferir o conceito
de paratextualidade do campo da literatura para outros sistemas semióticos,
de modo a inquirir de que modo também a música, as artes plásticas ou a
cinematografia, por exemplo, se encontram enquadradas por enunciados
preliminares ou periféricos que constituam factores determinantes na recep-
ção estética junto dos destinatários. Por outro lado, o ensaista considerava
também que as imagens e ilustrações insertas no espaço material do livro
impresso, longe de constituirem mero elemento decorativo, podiam desem-
penhar função pragmática equivalente ao paratexto, pois a conjugação de
signos verbais e pictóricos instituía relações iconológico-literárias, quer deri-
vadas do próprio desígnio autoral quer imputáveis a estratégias de promoção
comercial por parte do editor. Finalmente, embora declarando a vastidão do
campo incomportável com os seus propósitos imediatos, Genette sugeria que
a pesquisa e exploração do paratexto também seria pertinente no estudo da
tradução literária, em particular no caso de esta haver sido realizada pelo
próprio autor original ou sob sua directa responsabilidade e supervisão.

Românica 18, 2009


128 Paratexto

A este último ponto poderia contrapor-se que, se nos limitássemos a


ponderar a importância do paratexto nos casos de auto-tradução, adopta-
ríamos um pressuposto de tal modo restritivo que, em última análise, a maior
parte do riquíssimo património cultural, transmitido por sucessivas gerações,
ficaria excluída do campo de observação. Com efeito, na tradição literária
europeia, o número de casos de auto-tradução representa uma percentagem
quase negligenciável, se comparada com a vastidão do corpo textual de rees-
critas que, aspirando a reproduzir os putativos desígnios do autor primeiro,
irremediavelmente constituem versões alteradoras, criativas e produtoras de
novos sentidos. No entanto, a despeito de acusar desvios tendenciais em
relação ao texto de partida, afigura-se indubitável ser a hetero-tradução o
principal veículo que efectivamente viabiliza a circulação internacional das
obras literárias, assegurando-lhes a (trans)migração para culturas receptoras
onde decorre o processo da sua renovada fruição e sobrevivência.
Desta forma, sem questionar o lugar decisivo ocupado pelo destinador
original, nem subalternizar a análise crítica da configuração interna do trans-
lato, parece justificado tornar a sugestão de Genette extensiva à generalidade
da tradução literária, modo de relacionamento intertextual onde se reconhe-
cem analogias com outras escritas derivativas como a paródia, o plágio e até
o comentário crítico.
Convirá sublinhar que, para efeitos da nossa reflexão, importa distinguir
as duas subcategorias do paratexto definidas por Genette. Assim, embora
conscientes do papel determinante do chamado “epitexto”, isto é, o conjunto
de juízos críticos ou de referências promocionais, situadas em espaços díspa-
res e distantes do livro – como sejam catálogos, entrevistas, correspondência
epistolar, materiais publicitários, páginas memorialísticas, ou recensões na
comunicação social – é nosso propósito considerar apenas a subcategoria que
Genette designa por “peritexto”, ou seja, o elenco de informações identificado-
ras, concentradas em lugares espacialmente adjacentes ao próprio translato.
Em termos globais, o peritexto desempenha função eminentemente
pragmática, na medida em que a sua força ilocutória actua sobre o leitor, em
momento prévio ao da própria leitura, manipulando as suas expectativas e
representações intelectuais ou afectivas, estipulando contratos de transacção
comunicativa e fornecendo informações extratextuais preliminares que, por
efeito cruzado e cumulativo, acabam por regular a leitura e descodificação do
translato.
Na realidade, ao ser impressa e lançada no circuito comercial sob a
forma de livro, também a tradução literária se apresenta, por via de regra,
João Almeida Flor 129
envolvida por uma moldura discursiva (da responsabilidade do autor ou
do editor) que a rodeia e prolonga, com a finalidade de publicitar a sua
mais-valia como produto de consumo cultural, adequado às expectativas da
procura. Por sinal, com muita frequência, o poder persuasório da periferia
textual revela-se de tal forma eficaz que se lhe deverá atribuir parte signi-
ficativa do êxito comercial alcançado por certas traduções de qualidade
muito duvidosa.
Seja como for, a reflexão sobre o significado retórico do paratexto pode
começar pelo exame do invólucro exterior que estabelece o primeiro contacto
entre o leitor e a obra. Daí que a selecção das imagens e de outros ornamentos
visuais no grafismo da capa mereça atenção especial, por cumprir a função
apelativa de captar as atenções do público para as características do produto,
encarecendo o seu valor simbólico. Acrescem ainda outros aspectos materiais
do livro, pois o carácter despretensioso da brochura e o formato de bolso
utilitário ou, inversamente, a opulência da encadernação reflectem-se no
preço de venda, e este constitui um dado importante para o investigador
determinar qual a capacidade aquisitiva do público-alvo. A partir daí, torna-
-se possível formular hipóteses sobre os seus níveis de instrução, os hábitos
de consumo cultural e as expectativas literárias que alimenta, circunstâncias
que contribuem para explicar os critérios translatórios adoptados, de modo
a estabelecer comunicação eficaz com o destinatário.
Entre os elementos peritextuais, modernamente agrupados na ficha
técnica da publicação, avultam o nome e as qualificações do autor e do tra-
dutor, o título e subtítulo da obra traduzida, a categoria genológica onde se
inscreve e a indicação da língua de partida. A tais dados acrescem ainda
advertências preliminares, apreciações críticas, comentários biobibliográ-
ficos e o enunciado dos critérios operativos subjacentes à tradução, explici-
tados em texto introdutório, em posfácio ou em simples notas infrapaginais.
Em complemento, podem igualmente figurar referências à inserção do título
numa série ou colecção temática e à atenção dispensada ao aspecto visual da
(sobre) capa e demais apresentação gráfica. Finalmente, assumem signifi-
cado especial outros factores ligados aos circuitos da recepção literária –
os indicadores de popularidade reflectidos na tiragem e no número das
(re)edições, a actualidade derivada da comemoração de efemérides literárias,
a menção de eventuais distinções ou prémios atribuídos ao autor, a recente
exibição de adaptações televisivas ou cinematográficas – enfim, todas as
circunstâncias que, por assinalarem o prestígio social da obra, podem
incentivar o consumidor potencial.
130 Paratexto

Daqui se depreende como, de forma indirecta e adicional, o campo do


peritexto pode disponibilizar ao investigador valiosos indícios acerca das
circunstâncias externas que envolveram o circuito de produção, circulação,
recepção e consumo dos textos traduzidos, fornecendo um conjunto de
informes úteis para situar a tradução literária no quadro sócio-económico-
-cultural dos seus destinatários efectivos. A importância de averiguar as
condicionantes históricas do translato ganha nova dimensão quando, por
exemplo, o cotejo entre o original e a reescrita revela alterações textuais
muito significativas, relacionadas com fenómenos de aditamento ou supres-
são de passos mais ou menos extensos e o uso sistemático de perífrases,
circunlóquios e eufemismos, bem como outras práticas translatórias
anómalas, justificáveis por intervenção directa da censura literária em vigor
ou pela tentativa de lhe oferecer resistência passiva.
É certo que, se efectuada com perspicácia, a análise linguística e literária
do translato pode detectar traços pertinentes para a reconstituição do res-
pectivo contexto epocal, mas o facto de tais referências históricas se encon-
trarem sobremaneira implícitas ou diluídas no próprio texto aumenta o risco
de passarem despercebidas ou de serem subavaliadas. Por conseguinte, a
recolha, o exame e a problematização das condicionantes extratextuais da
tradução literária, situada em certo tempo e lugar, parecem plenamente justi-
ficados e consolidam o estatuto do peritexto como auxiliar da investigação
histórica.
A fim de atingir tal objectivo, será necessário abandonar o procedimento
tradicional que, por privilegiar a microanálise de translatos isolados, se
revela completamente adequado aos estudos de caso mas impede extrapola-
ções e conclusões de teor generalizante sobre os pressupostos teóricos e as
práticas de reescrita, vigentes em épocas transactas. Para captar tais aspectos,
torna-se necessário adoptar uma perspectiva mais abrangente que, para além
de observações sectoriais, conduza a uma visão integradora e sistémica da
produção literária traduzida.
Com efeito, nos estudos históricos de tradução, a validade de uma hipó-
tese interpretativa só poderá ser testada após um esforço de recolha e inven-
tariação tanto quanto possível exaustiva dos dados bibliográficos disponí-
veis, a que se segue a constituição de uma amostra representativa do universo
em análise e a identificação das suas variáveis. A análise desse corpo textual
selectivo e homogéneo pode então focar a atenção sobre séries de casos simi-
lares e coetâneos, isto é, sobre conjuntos organizados de acordo com critérios
genológicos, periodológicos ou outros, de modo a surpreender as constantes
João Almeida Flor 131
que subjazem à variedade e especificidade dos translatos. Escusado será
referir a importância de tal pesquisa beneficiar hoje do imprescindível apoio
fornecido pela construção de bases informáticas que permitem o armaze-
namento, o processamento e a recuperação instantânea de numerosíssimos
dados e facilitam a selecção e cruzamento de informações relevantes.
De resto, na sua própria densidade histórica, o texto literário traduzido
constitui o produto final de uma série de operações de transferência inter-
cultural de sentido cujas marcas residuais permitem inferir as normas, os
constrangimentos e os critérios poetológicos que filtraram e moldaram a
configuração híbrida do translato.
Por um lado, o translato manifesta uma ligação genética à cultura de
partida, na medida em que resulta de um acto de reescrita que pretende
representar e, por homologia, re-produzir o texto original, mantendo a
complexidade das suas variações linguísticas espácio-temporais, recriando as
especificidades do idiolecto autoral, transcrevendo as estratégias de comuni-
cação utilizadas e explicitando as relações intertextuais com obras anteceden-
tes. Assim, o translato apresenta-se ao público como enunciado sequencial,
derivativo e de segundo nível, razão pela qual ele tem sido, com frequência,
submetido a uma leitura de carácter retrospectivo, visando exclusivamente
medir o intervalo e aquilatar o desvio que o distanciam do texto de partida.
Sem questionar a legitimidade de semelhante paradigma normativo que
certamente continuará a desempenhar papel fulcral na formação pedagó-
gico-didáctica dos futuros tradutores profissionais, limitamo-nos a sugerir
que, em termos epistemológicos, a mera formulação de juízos valorativos
sobre a famigerada fidelidade do translato ao original dificilmente cumprirá
objectivos consentâneos com a natureza do conhecimento científico.
Em contrapartida, o modelo descritivista, sistémico e empirista, adop-
tado pelos estudos de tradução nas últimas décadas, confirma a natureza
híbrida do translato mas reconhece nele diversos tipos de motivação. Com
efeito, para além de outros factores determinantes, a importação e reescrita
de textos correspondem, sobretudo, à necessidade de colmatar lacunas
identificadas e sentidas pela cultura receptora que, dessa forma, procura
satisfazer as exigências da procura e manter-se em sintonia com as variações
do gosto, patentes no mercado internacional. Desta feita, a tradução pode
servir o intuito de fomentar um consumo cultural de feição cosmopolita,
tanto no que se refere aos autores clássicos antigos e modernos, campo de
produção restrita a textos dotados de estatuto canónico e posição central,
como no que respeita à literatura por vezes dita marginal(izada), campo de
132 Paratexto

produção massificada, regida pelo imperativo económico da rentabilidade


imediata e que, para tanto, se limita a satisfazer as necessidades lúdicas de
entretenimento, sentidas por vastas camadas do público.
Nestes termos, a tradução literária torna-se susceptível de estudo,
enquanto facto histórico duplamente condicionado, ou seja, tanto pelos facto-
res conjunturais que presidiram à sua produção, como pelas expectativas
estéticas dos destinatários na cultura receptora. Tal abordagem não questio-
na o pressuposto de que a reescrita manifesta adequação ao texto de partida
mas salienta a importância de elucidar as estratégias retórico-pragmáticas
que visam assegurar a aceitabilidade e a assimilação do translato pelo sistema
cultural de acolhimento. Por outras palavras, ao distanciar-se do paradigma
normativo tradicional, a metodologia contemporânea dos estudos sobre
tradução instaura uma viragem que orienta a pesquisa em direcção aos desti-
natários do enunciado traduzido e reconhece, na reescrita criativa, uma
dinâmica própria, projectivamente organizada em função do leitor.
De harmonia com tal concepção, o elenco de tarefas a cumprir pelo
investigador que parte do peritexto expande-se em todos os sentidos, de
modo a abranger os múltiplos efeitos do impacto das traduções na cultura
receptora, através de um programa de pesquisas complementares. Por um
lado, averiguar de que modo a tradução terá sido portadora de rupturas ou
inovações discursivas gradualmente incorporadas no património literário do
espaço de acolhimento; por outro, observar se, por efeito mimético, a curio-
sidade do público teria sido levada a descobrir e valorizar igualmente as
obras, géneros ou modalidades de escrita, similares às que foram objecto de
tradução; depois, estudar correlações entre a difusão da literatura traduzida
e a popularidade de temáticas, paisagens ou protótipos humanos que dela
provêm; além disso, avaliar até que ponto a publicação contribuiu para indu-
zir variações na cotação profissional do tradutor respectivo ou na imagem de
prestígio de uma casa editorial; em complemento, efectuar a análise estatís-
tica do conjunto das traduções, de forma a determinar tanto a posição rela-
tiva ocupada pelas categorias de ficção narrativa, poesia lírica e drama, como
o contributo da tradução na formação do cânone transnacional da literatura
clássica, medieval, moderna e contemporânea. Num plano mais amplo, im-
porta igualmente indagar se a migração de um texto para além das fronteiras
nacionais constitui parte integrante de uma política de exportação cultural
sustentada ou apenas deriva de iniciativas avulsas e inconsequentes. Por fim,
tendo em vista a existência de muitos outros agentes de mediação interna-
cional – dos viajantes aos diplomatas, dos colonizadores aos militares, dos
João Almeida Flor 133
comerciantes aos estadistas – inquirir a especificidade do papel assumido
pelos tradutores literários na comunicação bidireccional entre culturas
diferenciadas.
A diversidade e complexidade de tais questões exige o recurso a procedi-
mentos metodológicos multidisciplinares que permitam, por exemplo,
cruzar a leitura crítica do texto traduzido com dados estatísticos acerca de
fenómenos socio-económicos, de modo a entender as ligações solidárias
entre a historiografia e a sociologia da produção, da circulação e do consumo
culturais. Desta forma se pode avaliar a relação entre o translato e o respec-
tivo peritexto, na medida em que este regista, por exemplo, situações de
mecenato intelectual ou estipula as cláusulas contratuais da encomenda ou
do caderno de encargos que, de um modo ou de outro, exerceram influência
determinante sobre o trabalho do tradutor.
Com efeito, raros são os casos em que a selecção das obras a traduzir
cabe à iniciativa descomprometida ou à livre proposta do tradutor, pois nas
decisões editoriais prevalece uma lógica empresarial que atende ao previsível
retorno do investimento financeiro e subalterniza valores de ordem exclusi-
vamente estética. Apenas em situações verdadeiramente excepcionais, a tra-
dução literária se exime aos imperativos comerciais e se integra numa política
editorial com patrocínios públicos ou privados que, na prática a fundo
perdido, fomentam a valorização cultural de público leitor.
Em estudos parcelares, tais problemas têm sido objecto de pesquisa
e reflexão mas continua a sentir-se a falta de um panorama de conjunto que
articule os dados entre si e lhes forneça uma perspectiva integrada. Quando
assim for, a consideração global e diacrónica das informações peritextuais
poderá contribuir para uma atitude pluridisciplinar que ultrapasse as
fronteiras geográfico-linguísticas nacionais e demonstre que um texto
traduzido é um enunciado em contínua circulação intercultural.
Além disso, à periferia do texto compete identificá-lo liminarmente
como translato, ainda que este seja designado por termos afins, tais como
versão, adaptação, imitação, interpretação ou mesmo paráfrase. Com efeito,
à menção do autor original, o peritexto acrescenta o nome do tradutor,
embora este se encontre, por via de regra, ausente da capa, relegado para
posição subalterna e até composto em caracteres tipográficos menos visíveis.
Essa discriminação não é mais do que um reflexo concreto e visível da
prioridade atribuída ao original sobre o translato, o que reduz a tradução
literária à posição de actividade ancilar, amiúde exercida a tempo parcial e em
regime de amadorismo por literatos de formação generalista, precariamente
134 Paratexto

remunerados. Tais limitações tendem a degradar a qualidade do produto


final e prejudicam o reconhecimento do estatuto sócio-profissional do tradu-
tor, impedindo que ele atinja elevado grau de proficiência e especialização,
quer em determinado período histórico, quer na obra de um autor preferen-
cial, quer na versão de certo género literário, quer mesmo numa única cultura
e língua de partida.
Estamos, obviamente, a raciocinar a partir do quadro actual, onde a
divisão do trabalho criativo dissocia as funções de autor e de tradutor,
cometendo cada uma delas a profissionais distintos, mas interessa recordar
que tal diferenciação se instala sobretudo a partir da viragem para o século
XIX, com o culto romântico do individualismo e da originalidade do sujeito
de escrita. Antes dessa alteração de paradigma, o princípio classicizante da
mimese incentivava, com frequência, a tradução de modelos antigos ou
coetâneos, como exercício propedêutico recomendável aos autores em fase
incipiente da carreira. A tradução constituía, então, uma oficina ou um
laboratório de escrita, onde se podiam ensaiar experiências imitativas de
materiais alheios, qualificação técnica que habilitava o aprendiz a realizar
obra própria. O interesse dessas experiências é, hoje, sobretudo documental,
por testemunharem o processo de maturação e eventual emancipação do
autor, face a modelos estéticos estabelecidos. Não será, pois de admirar que
muitas dessas tentativas tenham permanecido inéditas, ou fossem dadas à
estampa a coberto de anonimato ou pseudonímia, embora a dissimulação da
identidade de um tradutor possa derivar de outros imperativos, relaciona-
dos, por exemplo, com a necessidade de o salvaguardar da repressão exercida
por parte de instâncias censórias.
Sendo manifesta a impossibilidade de desenvolver aqui todas as
pistas contidas no peritexto da tradução literária, optamos por seleccionar
um aspecto que tem recebido menor atenção do que merece.
Na verdade, reveste-se de particular importância o facto de um translato
se encontrar integrado numa colecção, até porque tal permite ultrapassar a
observação sectorial de textos isolados e desconexos, para abarcar a tota-
lidade dos seus congéneres, caracterizando a estrutura, a intencionalidade e
os critérios que demonstram a homogeneidade da série. Além disso, se uma
das possíveis motivações da leitura consiste em explorar a escrita que assu-
miu o valor de documento histórico ou o mérito de monumento estético, em
muitos casos, o interesse deriva do mero gosto por certas categorias ficcionais
(por exemplo, o romance histórico, a ficção científica, a narrativa detecti-
vesca, as histórias de espionagem, as aventuras de capa e espada) que facil-
João Almeida Flor 135
mente se deixam agrupar em colecções temáticas. Interessa, todavia, notar
que tal integração pode acarretar alterações significativas no translato, com o
objectivo de harmonizar o texto com a extensão, o formato ou as expectativas
criadas pela colecção respectiva. Apenas a título exemplificativo, o intuito de
criar um produto que se ajuste a dimensões pré-estabelecidas, pode provocar
a supressão de passos minuciosamente descritivos ou maior ênfase no retrato
exterior de uma personagem, em detrimento da complexidade psicológica
que a obra original lhe atribuía.
Em síntese, é preciso salientar que o estudo do translato literário exige
atenção constante ao seu estatuto de realidade situável no espaço e no tempo
cuja interpretação não poderá prescindir da história do livro nem da socio-
logia da leitura que nos elucidam acerca dos contextos culturais de produção
e recepção, indiciados na periferia do texto. Tanto nas edições de luxo que
marcam o prestígio canónico dos textos clássicos como na sobriedade gráfica
dos folhetos que popularizam a literatura de consumo massificado, importa
salientar como os dados contidos no peritexto se articulam com uma rede
de informações que, se devidamente exploradas, podem aprofundar o conhe-
cimento das condicionantes reguladoras da reescrita. A contextualização
histórica não deve reduzir-se à descrição e análise da observância do translato
perante normas vigentes no momento da reescrita; ela tem que alargar-se ao
estudo do modo como a época conceptualizava e definia a própria tradução
enquanto processo e produto. Desta forma, o investigador vê-se coagido a
percorrer trajectos alternadamente centrípetos e centrífugos em relação ao
peritexto, numa dinâmica constante de aproximação e afastamento que
contribuirá para viabilizar a desejável leitura global do fenómeno da
tradução literária.

Bibliografia Selectiva
Genette, Gérard, Seuils, Paris, 1987
Lane, Philippe, La périphérie du texte, Poitiers, 1992
Pym, Anthony, Method in Translation History, Manchester, 1998
Tahir-Gurçaglar, Sehnaz, «What texts don’t tell: the uses of paratexts in
translation research», Theo Hermans (ed.), Crosscultural Transgressions:
Research Models in Translation Studies, Manchester, 2002
Retratos e Miniaturas no Renascimento em Portugal
Pedro Flor
Universidade Aberta

«O mais famoso pintor de retratos que eu estimo haver em cristãos,


que são a flor deste mundo, tenho eu que é Ticiano em Veneza, posto
que a mim me disse o imperador em Barcelona perante o nosso
duque de Aveiro, e perante o duque de Albuquerque, e perante o
duque de Alva, que melhor o tirara do natural Antonio d’Ollanda em
Toledo, de iluminação …»
Francisco de Holanda, Do Tirar Polo Natural, [1549],
Lisboa, Livros Horizonte, 1984, cap. XI, p. 41.

A arte da iluminura, ou da iluminação para utilizar o termo empregue


no século XVI por um dos maiores estetas do Renascimento no nosso país,
Francisco de Holanda, não tem recebido a atenção devida por parte da histo-
riografia portuguesa1. Esta modalidade artística particularmente activa no
âmbito cronológico considerado merece, porém, a evidência no campo da
investigação em História da Arte, como o demonstra a vasta produção cientí-
fica desenvolvida fora do nosso país2.
Um dos géneros artísticos mais apreciados durante o tempo do Renas-
cimento foi, sem margem para dúvida, o Retrato, arte de raízes ancestrais e
profundas na Antiguidade e que, após um certo declínio na execução e con-
sequente procura, se desenvolveu acentuadamente a partir dos finais do
século XIV no espaço europeu, até ao início dos movimentos proto-barrocos

1 Queremos agradecer à Doutora Teresa Amado o amável convite dirigido no sentido de colabo-
rarmos no presente número da revista Românica com um trabalho de investigação relativo à arte
da iluminura no tempo do Renascimento.
2 Se exceptuarmos os trabalhos de Aires do Nascimento, Dagoberto Markl, Horácio Peixeiro e

Sylvie Deswarte-Rosa presentes na bibliografia final, verificamos a falta de estudos monográficos


de profundidade sobre a arte da iluminura em Portugal. No estrangeiro, destaque para a recente
exposição impulsionada pelo J. Paul Getty Museum, cujo catálogo, dirigido por Thomas Kren e
Scot McKendrick, testemunha a investigação especializada levada a cabo por diversos especia-
listas internacionais sobre a matéria. Cf. bibliografia final.

Românica 18, 2009


138 Paratexto

de Seiscentos3. O presente trabalho visa descrever o ambiente artístico


envolvente da arte da iluminação no Portugal quinhentista, não deixando de
parte a referência às principais obras e artistas que, entre nós, deixaram o seu
testemunho, bem como o sentido do retrato na iluminura em geral 4.
Durante todo o século XV e a primeira metade do século XVI, a ilumina-
ção de manuscritos floresceu particularmente na Flandres, daí irradiando
por toda a Europa. Os principais centros culturais e monásticos do Ocidente,
herdeiros da tradição de iluminar do tempo medieval, mantinham acesa a
procura de uma arte que não só ilustrava o conteúdo das obras manuscritas
embelezando-as, mas também facilitava a tarefa de leitura das mesmas, atra-
vés de compridos separadores, enrolamentos e até letras capitulares. Por este
motivo, o recurso sistemático a encomendas de manuscritos iluminados aos
mais prestigiados centros de produção de iluminura (Borgonha e Flandres
principalmente) tornou-se um hábito comum, promovendo o desenvolvi-
mento acentuado daquela arte na região.
Desde o dealbar de Quatrocentos, os fortes laços políticos e diplomá-
ticos estabelecidos com a Flandres, e por extensão, com o Ducado da Bor-
gonha, através do matrimónio entre a Infanta D. Isabel, filha de D. João I, e o
Duque da Borgonha Filipe o Bom, solidificaram os nossos contactos comer-
ciais e culturais5. Bruges, Gand, Malines e, mais tarde, Antuérpia foram locais
privilegiados para o efeito e de onde provinha grande parte das obras de
escultura e de pintura que inundaram o mercado nacional, a par de outra
produção artesanal, em troca de ouro, açúcar e especiarias6. A chegada cons-
tante a Lisboa de imaginária devocional de madeira estofada e dourada e
de retábulos de pintura de consideráveis dimensões, permitiu o acesso à
produção artística mais avançada do tempo, tendo em conta o carácter peri-

3 Sobre a história da arte do retrato, ver, por exemplo, a síntese ainda actual elaborada por
Galienne e Pierre Francastel, indicada na bibliografia final.
4 Este trabalho foi parcialmente efectuado em Pedro Flor, A Arte do Retrato em Portugal: entre o fim

da Idade Média e o Renascimento, tese de Doutoramento apresentada à Universidade Aberta,


pp. 195-220, 386-390 e 555-561. Mais recentemente, ver do mesmo autor, «A Arte do Retrato
em Portugal nos séculos XV e XVI: Problemas, Metodologia, Linhas de Investigação», Revista
de História da Arte, nº 5, pp. 115-131.
5 Cf. por exemplo Jacques Paviot, Portugal et Bourgogne au XVe siècle.

6 Cf. mais recentemente Maria do Rosário Themudo Barata, «A Feitoria Portuguesa em An-

tuérpia. Actividade mercantil e mecenatismo no tempo de Dürer», Ao Modo da Flandres


– Disponibilidade, Inovação e Mercado da Arte (1415-1580), Bernardo J. García García (ed.),
pp. 47-52.
Pedro Flor 139
férico do mercado nacional, além de possibilitar a educação e a formação de
um gosto que rapidamente se generalizou, por exemplo, na decoração de
interiores ou no vestuário7.
A aceitação e a introdução dos figurinos nórdicos na arte portuguesa do
Renascimento, período que se estendeu quase até ao final do século XVI,
demonstra bem o fascínio exercido e a importância das novidades e soluções
estéticas que provinham daquela região do Norte, relegando quase para
segundo plano o surto de italianização operado nas elites culturais nacionais
ao longo de toda a centúria de Quinhentos8. Tal facto explica a recorrente
busca por parte dos encomendantes portugueses de mão-de-obra oriunda da
Flandres ou, pelo menos, formada na estética flamenga. Com efeito, é fácil
detectar, nas principais empreitadas artísticas empreendidas por D. Manuel
I, pintores, iluminadores, pedreiros, carpinteiros de marcenaria, ourives e
tecelões de origem nórdica que acusam na sua produção os figurinos da sua
educação flamenga. Além da numerosa imaginária e retabulística de sabor
flamenguizante, circulavam também nos meios áulicos e monásticos obras
de carácter devocional e litúrgico como os breviários, os livros de horas, os
missais, os livros de canto, entre outras9. As ofertas diplomáticas, ou os sim-
ples presentes, tornaram constantes as aquisições de obras no aro cultural
ganto-brugense, obedecendo a uma moda e a uma preferência por aqueles
modelos minuciosos e profusamente coloridos, característicos da arte
flamenga10.

7 Cf. No Tempo das Feitorias. A Arte Portuguesa na Época dos Descobrimentos, em particular pp. 193-
224; e António Filipe Pimentel, «‘À Flandres por devoção e à Itália por ostentação’ ou ao invés:
as razões do Manuelino», Ao Modo da Flandres, cit., pp. 159-168. A propósito do vestuário na
época, ver o trabalho ainda actual de A.H. Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa,
pp. 23-62.
8 Cf. Portugal e Flandres – Visões da Europa 1550-1680, Catálogo da Exposição, Lisboa, IPPC, 1992,

em particular pp. 31-51, artigos da autoria de José Gentil da Silva, Nicole Dacos e Vítor Serrão.
9 Cf. por exemplo Horácio Peixeiro, Missais iluminados dos séculos XIV e XV – Contribuição para o

estudo da iluminura em Portugal; Isabel Cepeda (coord.), Inventário do Património Cultural –


Códices Iluminados até 1500; e Luísa Frazão, Iluminura renascentista do Convento de Nossa Senhora
do Paraíso de Évora.
10 A oferta de D. Isabel Duquesa da Borgonha de um Livro de Horas a seu irmão D. Duarte,

o célebre Livro de Horas de D. Duarte guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo,


testemunha o fomento do gosto pela arte flamenga na corte de Lisboa. Cf. Martim de Albu-
querque, A Torre do Tombo e os seus tesouros, pp. 115, 133-137; e Mário Martins, Guia Geral das
Horas del-Rei D. Duarte.
140 Paratexto

A posse destes objectos iluminados, quase sempre destinados ao uso


pessoal, equivalia à ostentação de um bem precioso que integrava, em para-
lelo com outras peças de ourivesaria, joalharia, paramentaria, relicários e
alfaias litúrgicas, os esplendorosos tesouros privados (Schatzkammern), ante-
cessores das Kunstkammern do Renascimento11. O acentuado desenvolvimen-
to económico e financeiro de Portugal nas primeiras décadas do século XVI,
aliado a um mecenato cultural assinalável, promoveu a encomenda artística
como mecanismo de afirmação do poder régio. Tal propaganda real verifica-
-se não só na construção e (re)decoração dos principais edifícios religiosos e
civis no nosso país, mas também na generalização de usos e de costumes
europeus, nomeadamente os importados da Flandres.
A arte da iluminura de raiz ganto-brugense conheceu, assim, particular
fulgor, sempre que instada a ornamentar tanto as habituais peças luxuosas de
uso litúrgico e devocional, como obras aparatosas de uso político e admi-
nistrativo de que os livros de chancelaria, a cronística, os forais, os livros de
heráldica e a cartografia constituem bons exemplos12. Estas obras delicada-
mente iluminadas com dourados e coloridos vibrantes «à maneira da
Flandres» parecem não ter conhecido correntes artísticas rivais entre nós.
A chegada da Bíblia dos Jerónimos dos florentinos Attavanti e del Fora a Portu-
gal, magnífico glossário da arte da iluminação do Renascimento transalpino,
ou o registo de certos livros de horas e missais ao romano nos inventários das
colecções reais devem ser encarados como episódios fugazes da história da
iluminura de vocabulário clássico e italianizante, probatórios da hegemonia
do gosto flamengo13. Esta constatação não inviabilizou a crescente actuali-
zação dos modelos iluminados no nosso país que, apresentando sempre

11 Sobre o conceito de Kunstkammer, ver, por exemplo, Annemarie Jordan-Gschwend, «Catarina


de Áustria: Colecção e Kunstkammer de uma princesa renascentista», pp. 62-70; e Helmut
Trnek, «Exotica in the Kunstkammers of the Habsburgs: their inventories and collections»,
Exotica – The Portuguese Discoveries and the Renaissance Kunstkammer, Helmut Trnek e Nuno
Vassalo e Silva (eds.), pp. 39-67.
12 Cf. Sylvie Deswarte-Rosa, Les Enluminures de la Leitura Nova, 1504-1552; Dagoberto Markl,

O Livro de Horas de D. Manuel; e, mais recentemente, registe-se o contributo de Rafael


Domínguez Casas, «O “Livro do Armeiro-Mor” e o “Livro da Nobreza”: Fontes e Propaganda»,
pp. 51-83, que salienta a simultaneidade de ofícios e competências entre os oficiais heráldicos
de Corte e os pintores/iluminadores do tempo.
13 Cf. Sousa Viterbo, A Livraria Real especialmente no reinado de D. Manuel. Sobre a Bíblia de

D. Manuel, ver mais recentemente Martim de Albuquerque e Arnaldo Pinto Cardoso, A Bíblia
dos Jerónimos.
Pedro Flor 141
feição marcadamente flamenga, foram introduzindo aos poucos elementos
decorativos e modos compositivos próprios da arte renascentista, como, por
exemplo, os grotescos, os rostos de perfil ou as micro-arquitecturas clássicas.
Não é possível, hoje, determinar o número de iluminadores activos no
século XVI em Portugal. Os dados relativos à cidade de Lisboa são, contudo,
conhecidos e demonstram a escassa actividade laboral nos meados da centú-
ria14. Acrescente-se ainda um aspecto relevante a propósito da mão-de-obra
capaz e disponível para abraçar encomendas de iluminura. O exercício da
modalidade de iluminação não estava exclusivamente sob tutela dos lomi-
nadores, uma vez que estamos certos, hoje, de que oficiais de artes análogas
reuniam as condições técnicas para satisfazer tais encomendas. Em alguns
casos, os pintores de cavalete, os douradores, os cartógrafos e até os ourives
estavam habilitados a exercer o ofício de iluminador, como se pode
facilmente comprovar através de casos concretos15.
Apesar da actividade dos iluminadores de Quinhentos manter o carácter
corporativo, herdeiro ainda dos tempos medievais, condenando a maior
parte das obras existentes ao anonimato autoral, é possível identificar alguns
desses artistas através de uma leitura atenta das fontes disponíveis16. Infe-
lizmente, tal como acontece na arte da escultura ou na da pintura, existem
muitos registos de iluminadores activos em Portugal durante os séculos XV e
XVI sem que, contudo, os consigamos agregar, com fiabilidade, a obra exis-
tente17. Todavia, a pesquisa documental e iconográfica permite-nos destacar
duas figuras que, pela relevância do legado artístico, merecem particular

14 Cf. João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, p. 187. O autor refere
a existência de cinco tendas de lominadores que «têm dois aprendizes. E são por todos dez
pessoas».
15 Tem sido valorizado nos últimos anos o papel dos pintores de cavalete na execução de enco-

mendas de pintura mural. Cf. Joaquim Inácio Caetano, «Modelos de estampilhas na pintura
mural quinhentista do Marão (Trás-os-Montes)», O Largo Tempo do Renascimento, pp. 101-129.
Registemos também alguns exemplos de ourives que, mais tarde, se tornaram pintores de
renome, casos de Álvaro Pires (a. 1498-1539), identificável com o Mestre da Lourinhã, ou do
pintor régio de Filipe II de Espanha (I de Portugal), Francisco Venegas (a.1570-1594), ou ainda
do pintor de cavalete e também iluminador André de Padilha (c. 1500-1560) que desenvolveu a
sua actividade entre o Porto e Viana da Foz do Lima. Cf. Vítor Serrão, André de Padilha e a Pintura
Quinhentista entre o Minho e a Galiza, pp. 94-109.
16 Cf. por exemplo Sousa Viterbo, Notícia de alguns pintores portugueses e de outros que, sendo estran-

geiros, exerceram a sua arte em Portugal, e Sylvie Deswarte-Rosa, cit. nota 12. Sobre o estatuto
social do artista no século XVI, ver obrigatoriamente Vítor Serrão, O Maneirismo e o Estatuto
Social dos Pintores Portugueses, pp. 49-81.
142 Paratexto

realce. Em primeiro lugar, o ourives/iluminador/pintor Álvaro Pires, nome


que podemos associar ao enigmático Mestre da Lourinhã, designação de
conveniência criada por Luís Reis-Santos que agrupou em torno das tábuas
quinhentistas da Misericórdia daquela localidade, uma série de painéis
retabulares com tal epíteto; bem como António de Holanda e seu filho
Francisco de Holanda, pintores/iluminadores que desenvolveram a sua arte
no seio da corte manuelina-joanina18.
Pintor régio e examinador de pintores, iluminador e miniaturista, e
ourives no início de carreira, Álvaro Pires (a. 1498-1539) assume no contexto
da iluminura Quinhentista papel importantíssimo no desenvolvimento dos
figurinos nórdicos de sabor renascentista nos manuscritos por ele ilumi-
nados, despojando-os da feição ainda medievalizante que marcou a paisagem
da arte da iluminura em Portugal, como vimos19. Em 1539, após a sua morte,
o cargo de pintor régio passou para Gaspar Cão, seu filho, que mais tarde
aparece referido como passavante de D. Sebastião em 1570, de acordo com
referência documental relacionada com este pintor ainda pouco conhe-
cido20. A atribuição do lugar de passavante pode estar relacionada com a acti-
vidade pictural de Gaspar Cão como sucedeu com António de Holanda, João
Menelau ou Garcia Fernandes, reputados artistas da centúria de Quinhentos
que desempenharam funções semelhantes na corte de D. João III21.
A partir de cerca de 1510, Álvaro Pires iniciará a participação na obra da
Leitura Nova, em particular na iluminação de alguns dos seus frontispícios,
que se pautou por uma estética de renovação, onde o grotesco e a decoração

17 São os casos dos iluminadores Gonçalo Anes (1424-1455), Vasco Eanes (a. 1450-1466), Luís
Dantes (a. 1454-1466), João Marco (a. 1514), Diogo Fernandes (a. 1522-1537), Jorge Vieira (a. c.
1530-1540), António Fernandes (a. 1538-1590), recenseados por Sousa Viterbo em obra
anteriormente citada.
18 Cf. Luís Reis-Santos, O Mestre da Lourinhã, e Vítor Serrão, No Tempo das Feitorias, pp. 347-351.

Mais recentemente, Manuel Batoréo, Pintura Portuguesa do Renascimento – O Mestre da Lourinhã.


19 Publicada por Vergílio Correia (1928), a referência à actividade como examinador de pintores

em 1515, em conjunto com o importante pintor lisboeta Cristóvão de Figueiredo (a.1515-a.1555)


atesta a qualidade e a relevância de Álvaro Pires no contexto artístico do tempo.
20 Cf. BA, 49/XII/24, fl. 210v.

21 Mais recentemente, apurámos nova referência documental, datada de 15 de Agosto de 1581, que

não explicita o cargo de oficial heráldico que Gaspar Cão então ocupava e que poderia bem ser
uma posição superior à de passavante. A quantia de 7.520 rs em falta era relativa ao ano de 1579
e apenas é mencionado o facto de ser, a par com um Manuel Teixeira, ambos offeciaes da nobreza.
Cf. ANTT, Ementas da Casa Real, Liv. 3, fl. 26v.
Pedro Flor 143
naturalista se entrelaçam, numa sintonia equilibrada de cor e de forma geo-
métrica, tão ao gosto do Renascimento22. Os fundos de paisagem detalhados,
ainda herdeiros da pintura flamenga, os tons azuis profundos e os vermelhos
vibrantes, bem como a minúcia no tratamento das carnações são traços de
estilo de um iluminador que os irá transportar para as obras de cavalet23.
Por seu turno, António de Holanda (c. 1480-1557), mestre de origem
flamenga cuja formação artística se efectuou com probabilidade junto da
oficina de Alexander Bening, aparece envolvido na iluminação da Leitura
Nova (1511), tal como Álvaro Pires. Infelizmente, pouco se conhece da sua
obra no tempo de D. Manuel, ao contrário da actividade do reinado seguinte,
claramente mais bem documentada24. Foi nomeado passavante Santarém,
ocupando a vaga deixada pelo pintor flamengo Francisco Henriques (a.1500-
1518) e atinge o cargo de Rei de Armas (Índia) na década de 50 do século
XVI25. Entre outras obras de iluminação marcantes, quer pela qualidade
técnica patenteada, quer pelos coloridos intensos utilizados, salientemos,
por exemplo, a realização da Genealogia de D. Manuel Pereira, Conde da Feira
(1534-37) e, em estreita parceria com o iluminador ganto-brugense Simon
Bening, da Genealogia do Infante D. Fernando (1530-1534).

22 Tal como já foi apontado por outros autores, é provável que Álvaro Pires conhecesse a Bíblia dos
Jerónimos e que se tivesse igualmente deixado fascinar por tal peça italiana. Observem-se os
frontispícios presentes no Livro IV, IX, X e XI (este último assinado) da Leitura Nova para aferir
dessa hipotética influência. A colaboração de Álvaro Pires na Leitura Nova estendeu-se, pelo
menos, até 1527.
23 Cf. Manuel Batoréo, Pintura Portuguesa do Renascimento.

24 Cf. por exemplo Sylvie Deswarte-Rosa, Les Enluminures de la ‘Leitura Nova’, e Maria José Redondo

Cantera, «Artistas y otros ofícios suntuarios al servicio de la emperatriz Isabel de Portugal»,


pp. 657-675.
25 Aparece ainda referido como avaliador de obras de pintura de artistas seus contemporâneos

num documento pouco utilizado ou desconhecido pela historiografia: ANTT, CC, Parte I, Maço
54, doc. 63: Despesa que o tesoureiro do Rei Manuel Velho fez na bandeira que mandou fazer pera o
saimento do Infante dom Fernando que santa glória aja: Item tres varas de ruãao delguado pera o
campo da bamdeyra a oytenta rs cva. dozemtos cimquenta cymquo rs; E dozentos de damasquo preto
que leuou a bandeira e çaneffas dobradas demea largura do damasquo em larguo a quatroccemtos e
oitemta rs; E trimta sete rs mº de retros e tres outauas; E douro e prata pera dourar e fazer as armas na
dita bamdeyra mill e oitoçemtos rs; E deu a Dioguo Ffrz pimtor que pymtou a bamdeyra // E por
avalyacaao damtonio dolamda que julguou que merecya mill rs de feytio e timtas; E a guaspar
megirado? que ffez a bamdeyra dozemtos rs de feytio; E despemdeo o tisoureyro em huua aste e pimtura
de negro nella cemtº e quaremta rs; Q fazem ao todo novemill Çemto e Novemta e dous rs; Çertiffiquo
asy em euora a xxbiij de Janeiro de 1535.
144 Paratexto

O mesmo acontece com Francisco de Holanda (c. 1517-1584), seu filho,


embora deste se conheçam mais dados biográficos e mais algumas obras de
arte. Depois de uma fase de aprendizado junto a seu pai e da frequência,
desde tenra idade, nos meios eruditos da corte, o jovem Francisco de Holanda
realizou uma importante viagem a Itália, sob patrocínio régio, onde teve a
oportunidade ímpar de contactar com os ciclos artísticos e estéticos
mais avançados da época26. De regresso a Portugal, Francisco de Holanda
procurou, sobretudo, teorizar e problematizar a arte da pintura, através de
tratadística muito importante no contexto artístico nacional, plena de
referências e de ideais neoplatónicos característicos do Maneirismo italiano
na viragem da centúria de Quinhentos. Além das obras teóricas, sobejamente
conhecidas, de Holanda, não possuímos hoje obra de pintura ou de ilumi-
nura, modalidades que sabemos ter praticado ao longo da sua carreira27.
Mais do que descrever com pormenor os traços biográficos e as peças de
arte mais relevantes de cada um destes mestres que acabámos de enumerar,
importa-nos agora entender quais as consequências directas da sua activi-
dade como iluminadores na retratística do Renascimento. É sabido que o
género do ‘Retrato’ evidencia-se tanto na escultura, na numismática e na
sigilografia, como também na pintura mural ou de cavalete, sem esquecer a
iluminura, modalidade que nos propusemos analisar28. São reconhecíveis na
arte da iluminação duas situações habituais onde podem figurar retratos.
Por um lado, as letras capitulares e os frontispícios são lugares desta-
cados e, portanto, privilegiados para a ostentação da efígie do encomendante
da obra que despendeu avultada quantia para a executar. No entanto, nem
todos os rostos que se identificam nos espaços mencionados dos fólios ilu-
minados se podem considerar retratos29. Na ausência de uma figuração
detalhada, expressiva e psicologicamente densa, deveremos assumir que
tais representações são próprias da esfera do simbólico e do idealizado30.
Vejamos alguns exemplos concretos.

26 Cf. por exemplo Sylvie Deswarte-Rosa, Ideias e Imagens em Portugal na época dos Descobrimentos,
pp. 480-486.
27 Cf. José da Felicidade Alves, Introdução ao estudo da obra de Francisco de Holanda, pp. 88-122.

28 Cf. Pedro Flor, A Arte do Retrato em Portugal nos séculos XV e XVI, pp. 196-202.

29 Veja-se, por exemplo, o que dissemos a propósito do retrato muito discutível da rainha D. Leonor

(1459-1525) no Breviário da Pierpont Morgan Library, em Pedro Flor, A Arte do Retrato em


Portugal: entre o fim da Idade Média e o Renascimento, pp. 362-364.
30 Sobre a (in)definição do termo ‘Retrato’ no Renascimento, veja-se o que diz Lorne Campbell,

Renaissance Portraits – European Portrait Painting in the 14th, 15th and 16th centuries, pp. 1-39.
Pedro Flor 145
Existe um número considerável de obras onde é possível detectar figuras
com traços fisionómicos semelhantes aos do rei D. Manuel e que a tradição
historiográfica tem querido ver como representações verdadeiras do mo-
narca31. A hipotética encarnação de D. Manuel em figuras de tradição
bíblica, como ‘Rei David’ ou como ‘Rei Mago’, é plausível, se atendermos aos
variados significados culturais que se podem atribuir a tais personagens e aos
paralelos visuais que se podem estabelecer. O misticismo que rodeou todo o
reinado de D. Manuel, a quem se atribuíram qualidades messiânicas, e o
contraposto tipológico que se criou entre aquele Rei do Antigo Testamento, o
Rei Mago do Novo Testamento e D. Manuel explicam na perfeição a duali-
dade deste género representativo, onde se nota total fusão entre os planos
divino e terrestre32. Neste sentido, mantemos reservas quanto à possibili-
dade de, no Missal Rico [Fig. 1], estar presente uma imagem do Venturoso,
não tanto por razões cronológicas, dado que a realização deste livro litúrgico
pode situar-se durante o reinado do Venturoso, mas sim por razões de ordem
iconográfica33. Com efeito, ao observar com atenção a imagem do Rei David,
iluminada no fólio do Missal crúzio, verificamos que nem o perfil, nem a
feição correspondem minimamente à verdadeira efígie manuelina, uma vez
que a figurinha apresenta farta barba, ao contrário do hábito daquele Rei.
Para mais, não existem outros elementos iconográficos que nos apontem
inequivocamente para a sua identidade, pelo que as reservas devem ser man-
tidas até se apurarem outros aspectos relativos à encomenda e à realização do
Missal. Um último argumento que se pode aduzir é o de existir uma outra
representação de um Rei David num fólio iluminado de um Colectário,
também oriundo do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, em tudo seme-
lhante à do Missal Rico. Tais analogias visíveis no desenho e na composição

31 Falamos em particular da figura do Rei David num dos painéis de um antigo retábulo do
mosteiro da Trindade em Lisboa, hoje no MNAA; da figura de Rei Mago em painéis dos antigos
retábulos da igreja de Santa Maria de Torres Vedras (Museu Municipal Leonel Trindade – Torres
Vedras) e do mosteiro de São Bento de Xabregas (MNAA).
32 Mais recentemente, cf. Horácio Augusto Peixeiro, «Retrato de D. Manuel na Iluminura», Revista

de História da Arte, nº 5, pp. 97-113.


33 Missal de Santa Cruz 28, nº geral 37, actualmente depositado na Biblioteca Pública Municipal

do Porto. A imagem do Rei David surge na inicial historiada do intróito no fl. 1. Sobre o Missal
Rico, veja-se o trabalho de A. Peixeiro, «Um Missal iluminado de Santa Cruz», Oceanos, nº 26,
pp. 52-72. Segundo opinião expressa pelo autor, este Missal foi começado a partir de 1517 e em
1526 ainda estaria por completar. Embora o intervalo de tempo seja relativamente largo, admite-
-se a possibilidade de o fólio inicial ter sido iluminado ainda em vida de D. Manuel e, portanto,
estar já pronto em 1521.
146 Paratexto

Fig. 1 – D. Manuel como Rei David ? – inicial presente no Missal Rico, Biblioteca
Pública e Municipal do Porto, Santa Cruz 28, fl. 1 – retirado de Horácio Peixeiro,
“Retrato de D. Manuel na Iluminura”, in Revista de História da Arte, nº 5, p. 111.

do rosto permitem-nos pensar em autoria comum e graus de idealização


idênticos aplicados às figuras. Mesmo que se advogue que, no segundo
exemplo, tal como no primeiro, as figurações do Rei David constituem bons
exemplos de retratos alegóricos de D. Manuel, a falta de atributos fisionó-
micos e iconográficos inquestionáveis, que autorizem essa identificação,
inviabiliza a possibilidade de estarmos, de facto, perante alegorias. Mais
lógico será pensarmos, pois, em representações triviais daquele Rei judaico.
A inicial do fólio do Livro 1º de Além-Douro da Leitura Nova parece-nos
outro caso diferente [Fig.2]34. Embora registe elevado nível de convencio-
nalismo e de simbolismo, ou seja, de sentido icónico, tal como em outras
representações conhecidas de D. Manuel, privilegiou-se nesta o significado
simbólico da imagem, em detrimento da reprodução fiel da fisionomia do
Venturoso35. De realçar contudo que, ao contrário do que se verificava no

34 Sobre a Leitura Nova, cf. Sylvie Deswarte-Rosa, Les Enluminures de la ‘Leitura Nova’; e Leitura
Nova de Dom Manuel.
35 As Ordenações Manuelinas são exemplificativas desse carácter icónico. Cf. Ana Maria Alves,

Iconologia do Poder Real no Período Manuelino.


Pedro Flor 147

Fig. 2 – D. Manuel – retrato de perfil – ANTT, Leitura Nova, Livro 1º Além Douro,
fl. 1 – retirado de Oceanos, nº 26, p. 27.

Missal Rico, esta imagem parece demonstrar maiores preocupações de retrato,


já que o tipo de perfil, o corte de cabelo e o alongamento dos dedos lembram
outras representações de D. Manuel, que a seu tempo serão analisadas, bem
como a descrição que dele faz Damião de Góis, base credível para avaliarmos
o seu verismo36. Como se pode facilmente comprovar, o relato do cronista
não impossibilita a identificação do referido meio-rosto da figura da inicial
da Leitura Nova, embora estejamos convencidos do nível de idealismo utili-
zado na concepção do rosto. Acrescente-se, ainda, que a imagem demonstra
maior apego aos cânones de representação de sabor transalpino, ao abando-
nar o modelo fronteiro ou o terçado da figura real e ao eleger antes o meio-
rosto. Podemos mesmo antecipadamente afiançar que esta representação de
perfil constitui caso único na iconografia do Venturoso, a qual utiliza, de
preferência, os outros modelos formais37.
A representação do par comitente da obra/santo patrono tornou-se

36 Cf. Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, cap. LXXXIV, pp. 594-595:
«Foi el Rei Dom Emanuel homem de boa statura, de corpo mais delicado que grosso, a cabeça
sobelo redondo, os cabelos castanhos, a testa aleuantada, & bem descuberta delles, os olhos
alegres, entre verdes, & brancos, aluo, risonho, bem assombrado, os braços carnudos, & tam
compridos que os dedos das mãos lhe chegauam abaixo dos geolhos, tinha as pernas taõ
compridas, & tam bem feitas, segundo a porporção do corpo, que nenhuma cousa mais se lhes
podia desejar.»
37 De D. João III não são conhecidos exemplos de retratos em fólios iluminados como os referidos

para D. Manuel.
148 Paratexto

constante na arte da pintura manuelina-joanina, tal como na escultura do


mesmo período. A adopção de semelhante solução iconográfica para retratar
o encomendador de uma qualquer obra iluminada deve ser registada, por
exemplo, com o caso que se segue.
Contamos com um magnífico exemplo de retratos integrados de doa-
dores (assim designados), devidos ao pintor/iluminador régio António de
Holanda, na Instituição da Capela e Morgado do Cronista Rui de Pina, [Fig. 3],
onde a herança iconográfica da pintura de cavalete se torna bem visível38. No
primeiro fólio iluminado da Instituição, vemos representadas duas figuras,
ajoelhadas e de mãos postas, cada uma custodiada por um Santo: no lado
esquerdo, está São Tiago Maior, enquanto no direito se vê São João Baptista,
ambos identificáveis pelos atributos usuais. De acordo com o documento da
Instituição, ficamos a saber que a presença do apóstolo se justifica pelo facto
de ser o Santo patrono da linhagem dos Pina. Já o Baptista constituiria, ao
tempo, a especial devoção da dama representada. Junto às figuras, vemos
dois escudos, um peninsular e outro em lisonja, que nos dizem estarmos
perante personagens pertencentes aos Pina (da Guarda) e aos Gouveia. Inse-
ridas num paisagem verdejante, as figuras aparecem dispostas de modo
simétrico e objectivam o seu culto na parte superior da composição, no plano
celestial, onde se encontra a Virgem, com o Menino no colo, entronizada.
Ainda sem datação encontrada, embora nunca depois de 1530, tem-se
querido ver nas figuras ajoelhadas o instituidor do morgado, Rui de Pina,
cronista-mor do Reino, e sua mulher, Catarina Vaz de Gouveia. Existem,
contudo, dois pormenores iconográficos que nos permitem questionar tal
opinião. Com efeito, a figura masculina ajoelhada no lado esquerdo aparenta
ser um jovem, uma vez que não apresenta cabelo comprido nem tão pouco
vestígios de barba, detalhes comuns na moda e costumes do tempo. Além
disso, a figura feminina traja como as donas-viúvas, veste negra, cabelo
coberto e toucado alvo, o que significa, portanto, não se tratar de uma repre-
sentação do casal Rui de Pina /Catarina Vaz de Gouveia, mas antes, de um
dos filhos de Rui de Pina, porventura Fernão de Pina, o mais velho e feito
herdeiro do cronista, e Catarina Vaz de Gouveia, que sobreviveu ao marido39.

38 Não abundam os estudos históricos e artísticos sobre esta obra, guardada actualmente no
ANTT. Cf. Instituição da Capela e Morgado do Cronista Rui de Pina.
39 Cf. Instituição da Capela e Morgado. O testamento foi lavrado em 21 de Maio de 1515 em Lisboa,

numas casas à Porta do Sol, no Bairro dos Escolares, freguesia de S. Tomé, pertença de Leonor
de Pina, filha de Rui de Pina, onde se estabelecia que o herdeiro seria Fernão de Pina, seu filho.
Pedro Flor 149

Fig. 3 – Instituição da Capela e Morgado do Cronista Rui de Pina, imagem retirada de


Instituição da Capela e Morgado do Cronista Rui de Pina.

Infelizmente, não conseguimos descortinar se António de Holanda foi


ou não o autor da iluminura que temos vindo a examinar. No entanto, o
paralelismo plástico que se pode estabelecer entre a obra de Holanda docu-
mentada e a iluminura da Instituição, permite-nos aceitar a sugestão do seu
nome. Para mais, o facto de ter executado retratos ao longo da sua carreira
autoriza-nos igualmente a hipótese de ser o responsável por estes, desta feita
integrados de doador, tão afins da arte flamenga e dos protótipos deixados
150 Paratexto

pelo seu bem conhecido, porventura compatriota e até companheiro, Álvaro


Pires / Mestre da Lourinhã40.
Independentemente da identidade das duas personagens e da sua auto-
ria, para a presente investigação importa-nos salientar a qualidade que os
retratos atingiram no campo da arte da iluminura e a repetição do processo
composicional utilizado sobretudo na pintura coeva, o que demonstra plena
actualidade estética dos mecenas desta obra iluminada e a rápida dissemi-
nação dos modelos retratísticos vindos ainda do tempo de D. Manuel, que
começaram por ser quase exclusivos da Coroa mas, aos poucos, foram
apropriados pelos demais sectores da sociedade de Quinhentos.
Tal como seu pai António, Francisco de Holanda desempenhou impor-
tante papel na produção de retratos para a corte. António de Holanda fora
responsável por vários retratos, de que se guardam registos importantes na
obra escrita de seu filho Francisco. Com efeito, de acordo com os informes de
seu filho, António de Holanda tornou-se num retratista de relevo e muito
apreciado, sobretudo por Carlos V que, na ocasião em que o retratava em
Toledo, o elogiou. É para nós evidente que Francisco de Holanda é suspeito
na afirmação que faz no tratado Do tirar polo natural [1549] (citada na
epígrafe deste trabalho), embora seja de reter a ideia de que seu pai era, de
facto, um pintor de retratos de inegáveis recursos. Além de um retrato de
Carlos V, entretanto desaparecido, António de Holanda executou também
um da Imperatriz Isabel de Portugal e seu filho Filipe. De acordo com a
carta revelada por Joaquim de Vasconcelos, António de Holanda concebera
um retrato de D. Isabel com o herdeiro no colo41. Infelizmente, também
este retrato, que daria base fidedigna à atribuição da obra a Holanda, anda
desaparecido ou ainda não localizado.
Além dos retratos mencionados, sabemos hoje que a Imperatriz Isabel
de Portugal possuía uma série de outros da família real portuguesa que

40 De resto, é possível identificar alguns elos de ligação entre os vários testemunhos pictóricos que
ambos legaram e que sugerem forte proximidade artística, além do relacionamento na corte
joanina que, por certo, mantinham. Comparem-se os retratos integrados da série de Almeirim,
hoje no MNAA e que faziam parte do antigo retábulo do mosteiro de Nossa Senhora da Serra da
dita vila, com os da Instituição para podermos apreciar melhor as semelhanças que existem entre
os dois, que não são só de composição.
41 Cf. Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, p. 338; Maria José Redondo Cantera, «Artistas y

otros ofícios», p. 659 e Jorge Sebastián Lozano, «Choices and Consequences. The Construction
of Isabel de Portugal’s image», pp. 145-162.
Pedro Flor 151
provavelmente seria da autoria do mestre flamengo. Esses retratos, anteriores
a 1539, terçados e de busto, contemplavam os irmãos D. João III, D. Luís, D.
Fernando e D. Maria (meia-irmã) e a cunhada D. Catarina de Áustria42.
O apuro técnico e a prática de retratar foram ensinadas a seu filho
Francisco de Holanda que, mais tarde, em 1549, elabora o precoce e já citado
Do tirar polo natural, tratado dedicado à arte do retrato, traduzido para
castelhano em 1563 por Manuel Denis43. Sobre a retratística de Francisco de
Holanda, os problemas sucedem-se. As referências a retratos realizados por
si na sua produção teórica e estética são variadas. Delas destacamos as men-
ções a retratos dos monarcas D. João III e D. Catarina de Áustria, bem como
um da Infanta D. Maria, mulher de Filipe II de Espanha, falecida em 1545,
sem contudo terem hoje correspondência em peças remanescentes. Com
efeito, não existem testemunhos seguros da arte de retratar deste famoso
teórico nacional, se exceptuarmos o retrato de grupo da família real sob o
manto protector da Virgem Maria, anteriormente no coro-alto do Mosteiro
de Santa Maria de Belém e hoje no Museu Nacional de Arte Antiga44.
Tanto em obra de iluminura com as características que temos vindo a
enunciar, como em miniatura, integrada numa peça de joalharia, de acordo
com o gosto do tempo e que se prolongou até aos finais do século XIX, não
são concludentes os exemplos que chegaram aos nossos dias. A famosa série
de Parma, representando os elementos mais importantes da família real por-
tuguesa de Quinhentos (D. João III, D. Catarina, o Príncipe D. João, D. Joana
de Áustria, Infante D. Luís, D. Duarte e sua mulher D. Isabel de Bragança, a
Infanta D. Maria, e a Imperatriz Isabel de Portugal), pode não ser devida ao
pincel de Francisco de Holanda como tem sido escrito45. Com efeito, mais
recentemente, em obra já citada, Maria José Redondo Cantera e Vítor Serrão
admitem que Manuel Denis, pintor espanhol intimamente ligado a D. Joana

42 Cf. Annemarie Jordan, «O Retrato no Renascimento Português», pp. 177-178.


43 Sobre o pintor Manuel Denis, consultar o trabalho de Maria José Redondo Cantera e Vítor
Serrão, “El pintor portugués Manuel Dionis o Dinis», pp. 61-78.
44 Cf. Sylvie Deswarte-Rosa, “Francisco de Holanda e o Mosteiro de Santa Maria de Belém”,

pp. 40-67.
45 Cf. Annemarie Jordan, Retrato de Corte em Portugal. O Legado de Antonio Moro, pp. 42-45 (texto e

reprodução das miniaturas) e Maria José Redondo Cantera e Vítor Serrão, “El pintor portugués
Manoel Dionis o Dinis”, pp. 8-18; Vítor Serrão, A Pintura Maneirista e Proto-Barroca (1550-1700),
Dalila Rodrigues e Bernardo Pinto de Almeida (dir.), pp. 18-20 (inédito). Agradecemos ao Prof.
Doutor Vítor Serrão o facto de nos ter facultado este texto ainda por publicar.
152 Paratexto

de Áustria, seja o responsável pela série de miniaturas da Galeria Nacional


de Parma. No entanto, se a encomenda destas miniaturas partiu da vontade
de D. Catarina para as oferecer à sua sobrinha D. Maria, futura princesa de
Parma, como recordação dos seus familiares mais directos, é preciso explicar
melhor em que modos e com que meios Denis satisfez esse trabalho. Nesse
sentido, a atribuição a Francisco de Holanda parece-nos mais plausível, dados
os reconhecidos méritos deste artista na prática da modalidade. Qualquer
que seja a autoria deste interessante conjunto de miniaturas, o mesmo serve
de comprovativo do tipo retratístico que se produzia na corte de Lisboa
durante o Renascimento e testemunha os créditos firmados de artistas que
conseguiam satisfazer encomendas de iluminura da minúcia e graciosidade
da miniatura.
Longe de esgotar as questões relacionadas com a arte da iluminura e o
retrato, procurámos sobretudo sublinhar alguns aspectos caracterizadores
daquela arte no nosso país durante o Renascimento, realçando os principais
artistas e obras. Será necessário no futuro reunir mais informação documen-
tal e iconográfica que permita a criação de um corpus exaustivo de iluminuras
com retratos para posterior caracterização técnica e iconológica, ao abrigo de
um contexto artístico complexo, onde pintores, iluminadores, avaliadores,
ourives e outros artífices exerciam a sua arte, aproveitando todas as encomen-
das e oportunidades que surgiam para exercer o seu ofício e, com isso, garan-
tir o sustento e a ambicionada ascensão social junto dos maiores da Corte.

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Caminhos da Ilustração Portuguesa do Livro para Crianças
e Jovens
Fátima Ribeiro de Medeiros
Universidade Nova de Lisboa

Delimitando caminhos: traços de uma cartografia


Ao pensarmos nos elementos paratextuais do livro, «lieux privilégiés
de la dimension pragmatique de l’oeuvre, c’est-à-dire de son action sur le
lecteur»1, permitindo o diálogo entre vários discursos, é notório que um dos
mais apelativos e polissémicos é a ilustração, especialmente se a nossa leitura
recair sobre o livro de recepção infantil e juvenil. A ilustração joga com o
formato do livro, o tipo e tamanho de letra e o lugar da mancha gráfica, a
capa, contracapa e guardas, até onde se alonga, vivendo estas em grande
parte da sua presença marcante, começando aí a criar percursos semânticos,
alguns muito significativos, que vão dialogar com as páginas interiores.
Enquanto elemento paratextual, há que determinar o lugar que ocupa no
livro, ou, melhor dizendo, o lugar que ocupa em relação ao texto, e quais as
suas características enquanto instância comunicativa. O presente texto vai
abordar a ilustração do livro literário cujo destinatário preferencial é a crian-
ça e o adolescente, procurando apontar as suas características e alguns marcos
do seu percurso, bem como momentos e nomes relevantes do panorama
português.
Quando falamos de livros ilustrados para crianças devemos ter presen-
tes as diferentes realidades de partilha de página em que a ilustração se
insere, a do chamado livro documentário, cuja finalidade é a fidelidade natu-
ralista, objectiva e realista, e a do livro de expressão literária, criativa, onírica
e poética, que completa e aprofunda os sentidos de textos quer narrativos,
quer líricos ou dramáticos, como se de um fenómeno alquímico se tratasse.
É este último tipo de ilustração que nos interessa aqui e agora.

1 G. Genette, Palimpsestes, p. 9.

Românica 18, 2009


158 Paratexto

Elemento importantíssimo de paratextualidade nos livros de recepção


infantil e juvenil, a ilustração é cada vez mais entendida como discurso
estético autónomo, sobretudo quando se pensa no chamado álbum ilustrado
infantil (ou livro-álbum, ou, simplesmente, álbum), um dos formatos de livro
ilustrado mais comum na edição para crianças, que vive da relação mais ou
menos profunda, de maior ou menor domínio ou predomínio, entre os
discursos icónico (ou visual) e verbal (ou linguístico), contando histórias ou
alargando substancialmente o horizonte de sentido(s) de textos mais ou
menos breves.
É hoje inegável a importância da literatura para a infância. É ela que vai
em grande medida despertar na criança o gosto pelo livro, é ela que vai fazer
nascer leitores “viciados” na leitura de prazer. Antes de sentir o prazer do
texto, a criança sente “o prazer do livro” enquanto objecto. Esse prazer passa
muito pelo “impacto estético” que a ilustração vai produzir. É a ilustração,
através de cores, traços, formas, pormenores, que primeiro prende a criança,
suscitando o seu olhar inicial sobre diversas representações do mundo,
apelando a competências de leitura e de comunicação diversas. Muitas vezes
surpreendente e inesperada, carregada de ressonâncias várias e não menos
simbolismos, é ela que permite que a criança leitora compreenda e interprete
de forma mais directa e profunda o narrado, ajudando-a a criar a sua imagem
pessoal, a sua própria narração visual. O livro literário ilustrado para crianças
segue duas vias diferentes que se distinguem devido à respectiva organização
interna, nomeadamente da página, a do livro ilustrado e a do livro-álbum.
No livro ilustrado predomina o texto verbal sobre o visual, sendo a
ilustração a sua paráfrase visual, sem ser, contudo, uma mera repetição de
elementos, motivos ou cenas, revelando momentos cruciais do texto,
reforçando-os, ajudando a consolidar a mensagem verbal e expandindo e
enriquecendo o texto linguístico. O livro ilustrado é, segundo Sophie Van der
Linden, uma obra acompanhada de ilustrações. «Le texte y est spatialement
prédominant, autonome du point de vue du sens. Le récit passe essentiel-
lement par le texte qui porte la narration»2. Por seu turno, Judith Graham,
referindo-se tanto à ilustração do livro contemporâneo como dos clássicos,
considera que «the illustrated book usually has a written text that, whilst it
may be enhanced by the illustrations, can survive without them and indeed

2 S. Van der Linden, Lire l’Album, p. 24.


Fátima Ribeiro de Medeiros 159
may have existed without them for a great many years»3. Num livro ilustrado
as imagens ocupam, por regra, uma página ou parte dela, deixando que
outras vivam apenas do texto. Imagens referenciais, apoiando-se no texto
linguístico, de que nunca se distanciam muito, fragmentos de um discurso
onde a supremacia pertence à palavra, as ilustrações do livro ilustrado consti-
tuem-se como representações visuais, linguagem com código específico que
enfatiza o texto verbal com o qual dialoga, criando com ele um inventário de
relações muito expressivas, conseguindo mostrar e sugerir sem precisar de
descrever, ou reforçando a descrição através do uso de elementos pictóricos,
recriando tempo, espaço, personagens, assinalando e iluminando momentos
significativos do texto verbal. Assumem-se como fragmentos expressivos,
apontando para interpretações e inferências que contribuem para a
compreensão mais ou menos alargada do todo, construindo uma retórica
visual que sugere sentidos e reforça “modos de ler”.
O livro ilustrado está muito vulgarizado como literatura para adoles-
centes. É o caso da colecção «Uma aventura», da autoria de Ana Maria
Magalhães e Isabel Alçada, série com cinquenta e um títulos publicados entre
1982 e 2009, ilustrados desde o primeiro número por Arlindo Fagundes,
ilustrador que, entre outros títulos, assina também a ilustração das colecções
«Viagens no Tempo» e «Asa Delta», com textos das mesmas autoras, e nos
dá um trabalho notável sobre a figuração das personagens, presente no jogo
de atitudes e no seu enquadramento no cenário envolvente, a lembrar a
vinheta de banda desenhada, género em que tem também actuado. O seu é
um desenho funcional, valorizando o traço fino, preferindo claramente à cor
o traço a preto e branco, «sangue negro em folha branca»4, uma das carac-
terísticas da sua obra pictórica.
Construído segundo o modelo narrativo, o álbum infantil ilustrado5,
que, nas duas últimas décadas, tem beneficiado de uma crescente popula-
ridade e difusão entre nós, coloca em diálogo duas formas de arte, a literatura

3 J. Graham, «Reading contemporary picturebooks», p. 210.


4 http://www.bedeteca.com/index.php?pageID=recortes&recortesID=799, acesso: 21 de Janeiro
de 2009.
5 Para Sophie Van der Linden o álbum ilustrado é «une forme d’expression présentant une

interaction de textes (qui peuvent être sous-jacents) et d’images (spatialement prépondérantes)


au sein d’un support, caractérisée par une organisation libre de la double page, une diversité des
réalisations matérielles et un enchaînement fluide et cohérent de page en page» (op. cit., p. 87).
160 Paratexto

e a ilustração, e trabalha com dois tipos de linguagem, a verbal e a icónica,


sendo que esta é, às vezes, dominante e, outras, única, no caso dos álbuns
sem texto. As ilustrações não duplicam o texto, interagem com ele, alargando
o(s) sentido(s) da mensagem. «Texte et images s’éclairent, se complètent,
s’interpénètrent»6. O livro-álbum faculta a educação do olhar, a aprendiza-
gem de uma leitura a dois níveis, produzindo, portanto, um impacto cultural
considerável junto do público-alvo. Os álbuns ilustrados modelam o gosto
estético da criança e introduzem-na nos princípios e convenções da narrativa,
contribuindo para a criação de hábitos de leitura. Judith Graham é de opinião
que são «a vital part of artistic and literary culture»7, enquanto que Claude
Le Manchec considera que o álbum, pelo que revela, pelas emoções que
desencadeia, «joue auprès de l’enfant un role initiatique»8. Dado que vive-
mos cada vez mais na era da imagem, a tendência da ilustração actual é a de
ocupar um lugar hegemónico, estando presente um pouco por todo o lado,
na publicidade, nas embalagens de produtos consumíveis, em diversos tipos
de publicações destinadas a todo o género de leitores e nos livros de recepção
infantil, onde é muito frequente e polissémica. Daí que o álbum ocupe pro-
gressivamente um papel de maior relevo na aproximação da criança à leitura.
Lê-se o texto verbal e o texto icónico. Este é, aliás, o primeiro a ser descodi-
ficado. Tal facto veio provocar alterações visuais na forma tradicional de ler e
contar histórias.
Ler visualmente um álbum implica compreender as relações que as
imagens estabelecem entre si, o que amplia o domínio da linguagem. A crian-
ça leitora «oscille de l’image globale à une lecture kaléidoscopique des
détails»9. A página – ou a dupla página – é, a miúdo, dominada pela imagem,
que acolhe o texto em si, ou o coloca a seu lado, num equilíbrio visual indi-
cador de dominância, de continuidade ou complementaridade de discursos.
Quando é feita uma leitura simultaneamente verbal e icónica, o acto de ler é
vivido «em toda a sua profundidade e plenitude»10. O verbo ler assume,
assim, um significado mais amplo e aprofundado. Ler um livro-álbum vai
muito para além de ler o texto e as imagens.

6 J. Fabre, «Préface», p. 7.
7 J. Graham, «Reading contemporary picturebooks», p. 209.
8 C. Le Manchec, L’Album, une Initiation à l’Art du Récit, p. 21.

9 R. Causse, Qui Lit Petit Lit toute la Vie, p. 39.

10 M. Gómez del Manzano, A Criança e a Leitura, p. 65.


Fátima Ribeiro de Medeiros 161
Lire un album c’est aussi apprécier l’utilisation d’un format, de
cadres, le rapport d’une couverture et des pages de garde à leur
contenu, c’est également relier les représentations entre elles,
décider d’un ordre de lecture sur l’espace de la page, placer en
résonance la poésie du texte et celle de l’image, goûter les silences de
l’un vis-à-vis l’autre.11

Por consequência, essa leitura «enrichit le capital culturel de l’enfant en


points de vue sur le monde, les êtres, les choses»12. Ana Margarida Ramos é
de opinião que «a ilustração contemporânea parece resultar de uma espécie
de negociação […] entre a submissão ao texto e a independência e origina-
lidade de um estilo próprio»13. O texto icónico recria o texto verbal, enfati-
zando o simbólico sem evitar o olhar realista, organizando a mensagem a seu
modo. Pode também criar contrapontos irónicos entre o que é dito e o que é
mostrado. Permite que possamos distinguir entre “imagem plástica”,
«polysémique et à riches connotations [qui] permet le passage de l’autre côté
du miroir», e “imagem realista”, que «laisse croire que le monde est réduc-
tible au visible et au lisible, au sens unique qui s’épuise dans une appréhen-
sion immédiate»14. Quando se refere a relação entre estes dois tipos de textos
fala-se ainda em interacção entre duas linguagens diferentes, em redimensio-
namento da mensagem verbal, em reconstrução narrativa. Se se pensar na
relação da imagem com o texto poético verifica-se que uma boa ilustração
pode expandir um simples verso ou uma estrofe numa narrativa de contor-
nos complexos.
A ilustração oferece «un jeu d’observations infinies où l’on peut
s’égarer»15. A leitura de uma ilustração, feita a partir de “ditos” e “não-ditos”,
de momentos “claro-escuros”, faculta o jogo da imaginação, possibilita a
expressão de sentimentos, permite identificar e caracterizar fisicamente
personagens, distinguir sentimentos e emoções, reconhecer ambiências,
localizar uma acção num determinado espaço e num dado tempo, encontrar
o fio de uma intriga, perceber o humor e a paródia, sentir o lirismo de um
momento ou de uma expressão, reconhecer o seu poder onírico, descobrir o

11 S. Van der Linden, Lire l’Album, pp. 8-9.


12 C. Le Manchec, L’Album, p. 22.
13 A. M. Ramos, «Interacção imagem-leitor: a construção de sentidos», p. 17.

14 M. Defourny, «L’enfant et les images d’album, de 1950 à nos jours», p. 35.

15 R. Causse, «Qui Lit Petit Lit toute la Vie», p. 39.


162 Paratexto

realismo de uma cena, entender a sua intensidade dramática, descortinar as


relações socioculturais de um contexto, identificar-se com as figurações do
imaginário infantil. «Illustration is better suited to creating mood and
atmosphere, using colour, tone, light and dark; showing characters’ clothes,
faces and expressions of feeling; or representing their spatial relationship to
one another and what places look like»16. Tendo em conta a realidade social
e estética, um álbum ilustrado deve obedecer a critérios de variedade, de
coerência, de lisibilidade e de eficácia17, sem os quais se arrisca a não ser
eficaz junto do público-alvo.
Ao falarmos de ilustração estamos a referir um tipo de imagem onde têm
relevância elementos comunicativos como o ponto, a linha, o contorno (ou a
sua ausência), a cor (em toda a sua amplitude cromática), a tonalidade, o
contraste luz/sombra, a dimensão, a perspectiva, a escala, o movimento e
dinamismo, a textura, a composição, diversas linguagens técnicas, elementos
esses que permitem a representação do mundo, quer este seja real, idealizado
ou imaginado. Na ilustração, as cores «symbolisent, signalisent, masquent,
participent de cette syntaxe du texte et de l’image»18. A escolha, por parte do
ilustrador, de alguns destes elementos em detrimento de outros, leva a leitu-
ras diversas, tem consequências semânticas. Este aspecto está bem patente
quando o mesmo texto é ilustrado por diferentes ilustradores num espaço de
tempo próximo, sendo importante ter em conta as pegadas que as ilustrações
anteriores foram deixando no imaginário colectivo, o qual o novo tem sempre
presente. O acesso a diferentes propostas estéticas no campo da ilustração
permite uma maior amplitude do ilustrado. As sucessivas ilustrações de uma
obra dão-lhe nova vida, acrescentam-lhe ou retiram-lhe sentidos, provocando
diversos tipos de recepção. O livro ilustrado de novo surge como «a new-
fledged phoenix from the ashes of an earlier incarnation»19. Isso acontece
mesmo quando diferentes ilustrações em diferentes edições são assinadas
pelo mesmo ilustrador, como acontece com Silka20, de Ilse Losa, duas vezes
ilustrado por Manuela Bacelar.
A organização interna de um álbum ilustrado tem vindo cada vez mais
a jogar com a ocupação da dupla página, dado que «l’organisation à l’échelle

16 J. Graham, «Reading contemporary picturebooks», p. 211.


17 Cf. Patrícia Delahie, citada por G. Bastos, Literatura Infantil e Juvenil, p. 251.
18 C. Bellegarde, «La couleur révélée» p. 147.

19 A. Lurie, «Louder than words: children’s book illustrations» p. 160.

20 Compare-se as edições de Silka dos Livros Horizonte (1984) e da Afrontamento (1989).


Fátima Ribeiro de Medeiros 163
de la double page favorise la circulation de la lecture dans le livre»21. Um dos
prazeres da leitura de um livro–álbum consiste na possibilidade de se saltitar
entre o icónico e o verbal e na hipótese de exploração pormenorizada da
ilustração, na descoberta de detalhes, uns de encontro imediato, outros mais
encobertos, outros ainda provocando alguma ambiguidade de significação,
possibilitando as inúmeras leituras que o livro consente.
Texto linguístico e texto icónico procuram exprimir através de vias
diferentes uma mesma realidade, ou várias figurações de uma realidade,
sendo que a ilustração alarga o sentido e a interpretação de um texto verbal
através da diversidade de possibilidades, do estabelecimento de analogias,
de reconhecimentos de ordem vária, da compreensão de elementos soltos
e aparentemente descontextualizados, afectando a forma como o leitor
recebe esse texto, uma vez que alarga o âmbito da sua leitura, provoca-o,
surpreende-o, estimula-o, fá-lo reflectir e interrogar-se, põe a descoberto
marcas, motivos, pormenores e elementos narrativos que as palavras
encobriam, possibilita-lhe ler as imagens através da sua maior ou menor
capacidade de percepção. Tendo em conta que «la prise de sens du texte et
de l’image s’apppuie sur ce que l’enfant a déjà vécu, éprouvé, pressenti»22, é,
em grande parte, através da ilustração, que a criança leitora é levada a criar
imagens estéticas pessoais, fundadoras do seu próprio olhar, olhar esse que
vai agir sobre a sua imaginação, passando a comportar-se como leitor cons-
trutor de sentidos. A leitura das ilustrações aprofunda, assim, a compreensão
da mensagem contida no livro e promove o desenvolvimento da sensi-
bilidade artística do leitor. Ao saber ler o que vê, adopta uma espécie de
cumplicidade em relação ao livro, passando a construir os seus percursos de
leitura. Como acontece com os restantes tipos de livros que lhe são
destinados, também através do álbum ilustrado é pedido à criança que aceite
aquilo que é obscuro, secreto, escondido e difícil, como o sofrimento, a
doença, a injustiça, a separação, a morte, mas também outros aspectos da
condição humana, como o nascimento, a amizade, o amor, a ternura, enfim,
a própria vida.
O ilustrador, além de ser um artista plástico detentor de uma linguagem
pessoal, embora sensível aos movimentos artísticos do seu tempo, jogando
com a técnica, a criatividade, a imaginação pessoal e colectiva e a emoção, é

21 S. Van der Linden, Lire l’Album, p. 87.


22 J. Fabre, «Préface», p. 8.
164 Paratexto

também um leitor competente de textos verbais, sabendo ler os espaços que


o texto escrito consente. É ainda «capaz de ler para além do que é textual-
mente afirmado»23 e de fazê-lo de forma o menos possível contaminada por
outras leituras. Participa da construção de sentidos presente na mensagem
escrita, indo, muitas vezes, para além desta. Pode-se, pois, dizer que as suas
ilustrações são uma rescrita do escrito. É, assim, por direito próprio, co-autor
do livro-álbum, já que estabelece um pacto estético,
uma espécie de compromisso tácito entre a afirmação do seu estilo
pessoal – na criação de uma imagem de marca inconfundível, uma
espécie de ilustração que funciona como a própria assinatura – e a
submissão ao universo de referências do texto e ao imaginário que
ele recria.24

Cada ilustrador tenta criar e aprofundar um estilo único e original que o


distancie dos seus pares, procurando “recriar-se” em cada novo livro, fugindo
aos estereótipos que constituem o imaginário infantil25 ou adaptando a
gramática do seu estilo a cada texto a ilustrar, tendo sempre os receptores
no seu horizonte, até porque «what the artist chooses to portray, and how,
may deeply affect their view of the book»26.

Caminhos portugueses da ilustração: abrindo trilhos e conti-


nuando a traçá-los
O primeiro livro habitualmente reconhecido como antepassado directo
da moderna ilustração para crianças é já um objecto de tipografia. Referimo-
nos a Orbis Sensualium Pictus (O Mundo Visível em Imagens), editado em
Nuremberga em 1658, pelo pedagogo checo Comenius (Jan Amos Komensk?),
destinado a ensinar latim a crianças, dividido em 150 capítulos ilustrados por
xilogravuras colocadas no topo da página, acompanhando cada uma o texto
a que corresponde, versando, entre outros, temas como botânica, zoologia,
religião27. No século XIX encontramos já ilustrações de livros para crianças
com uma qualidade assinalável, nomeadamente em edições inglesas,

23 A. M. Ramos, «Interacção imagem-leitor», p. 14.


24 Id., ib., p. 15.
25 Cf. A. Modesto, «À conversa com André Letria», p. 7.

26 A. Lurie, «Louder than words», p. 170.

27 Cf. http://www.samemory.sa.gov.au/site/page.cfm?u=965&c=3702, acesso: 9/2/2009.


Fátima Ribeiro de Medeiros 165
francesas e alemãs, com destaque para as gravuras das recolhas de contos dos
irmãos Grimm, para as ilustrações das fábulas de La Fontaine e dos contos de
Perrault de Gustave Doré, para as de John Tenniel em Alice’s Adventures in
Wonderland e Through the Looking-Glass, ou para as imagens dos livros da
Condessa de Ségur, cujas edições rapidamente circularam pela Europa, che-
gando a Portugal, às bibliotecas de algumas famílias burguesas, e começando
a influenciar as edições nacionais, quer de originais, quer de traduções.
Consultando livros e revistas de recepção infantil editados a partir de meados
do século XIX, particularmente a partir da década de 7028, verificamos que
começa a ser dada alguma atenção à ilustração, na maior parte das vezes pela
utilização de gravuras estrangeiras.
As ilustrações eram, portanto, de qualidade irregular e maioritaria-
mente importadas quando, em 1897, Ana de Castro Osório decide editar as
rescritas dos contos tradicionais que fora compilando desde 1895. À falta de
editor interessado, acaba por criar a sua própria editora, Para as Crianças.
A partir dessa data editará várias pequenas brochuras com textos de sua
autoria e de Paulino de Oliveira, além de traduções dos irmãos Grimm e de
outros contistas europeus. Muito atenta e cuidadosa em relação à qualidade
dos textos linguísticos, Ana não descurou o aspecto gráfico dos livros, tendo
colocado os textos nas mãos de artistas plásticos de méritos firmados ou que
vieram a firmá-los. Esta atitude fundadora da escritora-editora virá marcar
toda a edição de recepção infantil, quer coeva, quer posterior. Ao longo das
várias séries, recorrerá a diversos ilustradores, com destaque para Leal da
Câmara, Milly Possoz e Raquel Roque Gameiro, utilizando, por vezes, mais
do que um no mesmo volume. Estas ilustrações marcarão a diferença pela
positiva relativamente às de obras portuguesas anteriores e contemporâneas,
sendo geralmente consideradas exemplares e tendo provocado uma mu-
dança de mentalidade no mundo editorial português. Ao escolher ilustrado-
res portugueses de qualidade para os textos que editava, tanto seus como de
outros, abriu a porta para que diversos editores a imitassem, apesar de, e
ainda por mais algum tempo, haver quem continuasse, por motivos vários, a
usar estampas importadas.

28 Refira-se os livros para crianças de Guerra Junqueiro, Adolfo Coelho, Maria Rita Chiappe Cadet,
Maria Amália Vaz de Carvalho ou Virgínia de Castro e Almeida, com ilustrações de origem
diversa. Quanto a jornais e revistas, o Jornal da Infância, de 1883, foi a primeira publicação a
inserir gravuras de qualidade. Cf. F. R. Medeiros, Do Fruto à Raiz, pp. 31-35 e 41-43.
166 Paratexto

Ana de Castro Osório não se limitou a pôr em prática nas edições que
dirigia os princípios estéticos que a norteavam, estendendo o seu gesto
precursor até à reflexão sobre o assunto, evidenciando também aqui o pio-
neirismo que revelou noutras áreas. Em artigo de 1902, publicado no jornal
A Crónica, sob o título «A arte na literatura infantil», tece algumas consi-
derações sobre a importância da ilustração nos livros de recepção infantil,
parecendo, assim, ter sido Ana de Castro Osório quem, entre nós, primeiro
pensou e escreveu sobre a necessidade de boas ilustrações nas publicações
destinadas a crianças. Afirma então:
Quanto desejaríamos que a leitura não fosse, como é entre nós, um
luxo dos felizes, e que artistas e editores pudessem, sem sacrifício,
dedicar muito do seu cuidado a essa complexa literatura infantil, se
literatura se pode chamar à aprendizagem que se faz tanto pelos
olhos, vendo estampas, como pelos ouvidos e pela inteligência,
ouvindo e lendo a explicação delas. Livros sem ilustrações não
servem para crianças, que, ou os não entendem ou, se entendem,
lhes dão margem a muito fantasiar sem mão amiga que lhes guie a
imaginação, materializando-lha, por assim dizer. Importar estam-
pas do estrangeiro, como se faz e tem feito entre nós, pelo excessivo
preço por que ficariam cá, é um erro grave, porque é educar falsa-
mente a estética, é dar uma noção errada das coisas que habi-
tualmente nos rodeiam, dos costumes, tipos, paisagens e até das
cores.29

A atitude fundadora desta escritora em relação à ilustração do livro


para crianças levou a que começassem a surgir diversos nomes de qualidade
na ilustração de publicações para os mais novos. Nos anos 10, 20, 30 do
século XX, considerados o período do apogeu da ilustração30, além dos ilus-
tradores referidos, destacam-se outros, com percursos diversos nas artes
plásticas, tendo contribuído mais ou menos intensamente para a melhoria
gráfica da produção editorial de recepção infantil31. Espraiando-se destas até
às décadas seguintes, ou iniciando a sua actividade nos anos 40, 50 e 60,

29 A. C. Osório, «A arte na literatura infantil», p. 2.


30 Cf. A. Melo, «Ângela Melo em entrevista a Manuela Bacelar, ‘Prefiro os textos que fornecem
pouca informação figurável’», p. 7.
31 São de referir Mamia e Alfredo Roque Gameiro, Carlos Carneiro, Eduardo Malta (Papousse),

Martins Barata, Cottinelli Telmo, Raul Lino, Sarah Afonso, Emmérico Hartwich Nunes.
Fátima Ribeiro de Medeiros 167
encontramos outro lote considerável de ilustradores que assinaram ilustra-
ções incluídas em livros que tiveram grande popularidade, alguns fazendo ou
não passar modelos estéticos mais ou menos aceites institucionalmente,
outros assumindo-se como personalidades marcantes e incontornáveis das
artes plásticas32. Segundo José-Augusto França, muitos destes artistas
plásticos integram, de pleno direito, o modernismo português33. Em finais
da década de 60, inícios de 70, surgiram novos nomes34, com destaque para
Leonor Praça, cujo trabalho, tanto pela singularidade do traço como pela
força da cor, fazia prever uma carreira de excepção que a morte prematura
veio interromper, ilustradora que teve a coragem de fazer uma deambulação
pela autoria plena (texto visual e verbal), num gesto artístico pioneiro,
através do álbum Tucha e Bicó (1969).
O trabalho dos ilustradores até à década de 70 é visível, na sua quase
totalidade, nos chamados livros ilustrados, sendo raríssimos os livros-álbum,
partilhando uma página ou parte dela, muitas vezes sobre legenda que
transcreve uma frase do texto verbal. Quando se trata de uma colectânea,
podem existir uma ou várias ilustrações para a mesma narrativa. Se o volume
é um romance juvenil, então contará com várias imagens. Porém, quanto
mais se recua no tempo mais escassas elas são, com algumas honrosas excep-
ções, onde se incluem, com muita vantagem, os trabalhos de Ana de Castro
Osório. A policromia começa por ser rara, não passando muitas vezes da capa
ou de uma ou outra ilustração, convivendo no mesmo livro com outras
imagens a preto e branco. À medida que se avança no tempo a cor vai
tomando conta da ilustração de recepção infantil, passando a ser frequente a
partir dos anos 60, para se instalar definitivamente nos anos 70, apesar de
alguns ilustradores continuarem a preferir o negro sobre o branco como
elemento marcante na sua gramática ilustrativa.
Entre as décadas de 1900 e 1950, tem lugar de destaque o nome de
Raquel Roque Gameiro, um dos elementos do clã Roque Gameiro, a que
alguém já chamou a “tribo dos pincéis”35, pelo pioneirismo que a juventude

32 A este propósito e a título exemplificativo refira-se nomes como os de Álvaro Duarte de Almeida,
Tomás de Melo (Tom), José de Lemos, Vasco Lopes de Mendonça, João da Câmara Leme, Lino
António, Júlio Pomar, António Carneiro, Manuel Lapa, Júlio Gil, Júlio Resende, Maria Keil.
33 Cf. J.-A. França, A Arte em Portugal no Século XX.

34 Retenha-se, entre outros, os nomes de Carlos Barradas, Jorge Pinheiro, Alice Jorge, Julião

Sarmento, José Escada.


35 Nome de uma exposição colectiva da família Roque Gameiro, realizada em 2006, em Lisboa.
168 Paratexto

lhe permitiu36 e por uma afirmação de clara escolha por esta via artística,
manifestada através das mais de quatro dezenas de títulos ilustrados, para
além do trabalho apresentado nas secções infantis de diversas publicações e
em revistas e jornais destinados a crianças. Além de ter trabalhado com Ana
de Castro Osório, ilustrou textos de muitos outros escritores37. São marcas do
seu trabalho a delicadeza do fino traço, que define o «sentido ilustrativo»38
das suas imagens, de excelente qualidade gráfica, a riqueza de pormenores
fixando “momentos-chave” das narrativas, pondo em destaque as perso-
nagens, desenhadas com muita expressividade, e o seu enquadramento, reve-
lando as “qualidades cénicas” e a “profusão decorativa” do seu trabalho,
traços distintivos que o tornam reconhecível mesmo quando assina obras em
parceria, como acontece no livro Varinha de Condão (1925), de Fernanda de
Castro e Teresa Leitão de Barros, que ilustra em parceria com outros artistas.
Aspectos importantes do seu desenho a preto e branco, estas características
continuam a manter-se nas imagens a cores, que deixam ainda entender o seu
gosto pela aguarela, onde prefere “tonalidades fortes”. Gravuras há em que o
traço contínuo é substituído pelo traço pontilhado, que vem reforçar a ideia
de leveza e evanescência do que é desenhado. Quer na ilustração de maiores
dimensões, quer no friso ou no pequeno desenho singular, todos os por-
menores gráficos revelam o cuidado e a qualidade estética da ilustradora, que
parece, por vezes, querer escapar ao espartilho da esquadria, superando-a,
saindo fora dela, como se pretendesse alongar-se por toda a folha de papel,
numa atitude que ultrapassa os limites estéticos da época de assinatura das
ilustrações e toca as décadas então distantes do final do século.
Apesar da importância dos primeiros ilustradores, sobretudo pela
marca fundadora e pela qualidade estética dos seus trabalhos, ajudando a
afirmar a edição para crianças, é, no entanto, nos anos 50 que surge aquela
que habitualmente é considerada uma das figuras de referência da ilustração

36 Ilustrou em 1903, com apenas catorze anos, o seu primeiro livro para crianças, Contos Tradicio-
nais Portugueses, rescritos e editados por Ana de Castro Osório, num trabalho em parceria com
Hebe Gonçalves. No ano seguinte, voltaria a ilustrar para a mesma editora e colecção Alguns
Contos de Grimm.
37 Ilustrou livros de Maria Simões Anjos, Teresa Leitão de Barros, Jane Bensaúde, Augusto Santa-

-Rita, Fernanda de Castro, Emília de Sousa Costa, Celestino David, Carlos Frederico, Maria do
Carmo Peixoto, António Sérgio, Graciete Branco (e outros) e o Jornal dos Pequeninos (1907), além
de ter colaborado, entre outras, nas secções infantis de Serões (1905-1909) e d’ A Mulher e a
Criança (1909-1910).
38 F. Pamplona, Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses, p. 17.
Fátima Ribeiro de Medeiros 169
no século XX, Maria Keil, artista que continua a ilustrar na presente década,
responsável por algumas das mais belas páginas de livros ilustrados para
crianças e jovens, artista plástica integrada por José-Augusto França39 na
segunda geração do movimento modernista, de que adoptou «um figurino
figurativo geracionalmente comum»40. Entre Histórias da Minha Rua (1953),
de Maria Cecília Correia, o primeiro título ilustrado, e A árvore que Dava
Olhos (2007), de João Paulo Cotrim, passaram pelas suas mãos cerca de
quatro dezenas de títulos de diversos escritores41, com destaque para Maria
Cecília Correia e Matilde Rosa Araújo, com quem estabeleceu laços de ami-
zade e cumplicidades várias, numa parceria criativa muito cara à ilustradora,
em mano a mano de grande fecundidade estética. Com Matilde criou algumas
das mais belas obras literárias que nos tem sido dado ler/ver, assumidas
como objectos de arte, de que O Cantar da Tila (1967) pode ser encarado
como paradigma. Assinou tanto a imagem como a palavra de três livros de
reconhecida qualidade e criatividade, Os Presentes (1979) e As Três Maçãs
(1988), obras cuja ilustração conta com desenho, de figuras humanas de
linhas sóbrias, e colagem, e onde o texto surge em balões de fala, como se de
banda desenhada se tratasse. O terceiro título, O Pau-de-Fileira (1976),
«história dos gatos que viram nascer um prédio»42, é um livro onde muitas
das gravuras respiram na dupla página, em perfeita “relação” com o texto
verbal, como acontece nos dois títulos acima referidos. A sobreposição das
duas cores escolhidas para ilustrar este livro, o castanho e o laranja, dá às
imagens uma dimensão de profundidade e dinamismo.
Ao longo da sua obra ilustrativa para crianças, Maria Keil tem optado
pelo desenho figurativo estilizado, marcado pelo traço, quase sempre fino,
assumindo-o como essência do seu desenho ilustrativo, já que procura
«concretizar em linha e traço o que está escrito”43. Primando pelo “domínio
do desenho e da composição»44, as suas ilustrações respiram leveza e pureza,
aquilo a que se pode chamar o sentido poético do traço, não deixando,

39 J.-A. França, «A Arte em Portugal», pp. 310-311.


40 R. A. Santos, «Maria Keil um grafismo de afectos», p. 7.
41 Sophia de Mello Breyner Andresen, Aquilino Ribeiro, Esther de Lemos, Maria Lúcia Namorado,

Maria Isabel César Anjo, Alice Vieira, Teresa Balté, Alexandre Honrado, João Paulo Cotrim,
entre outros.
42 M. Keil, O Pau-de-Fileira, p. 3.

43 J. P. Cotrim, «Maria Keil, a linha e o traço», pp. 18-19.

44 J. Godinho e E. Filipe, «A arte de Maria Keil», p. 4.


170 Paratexto

entretanto, de manifestar um profundo realismo. Evidenciam a sua leitura


atenta e empenhada da realidade, através de um olhar que fala de pessoas, de
espaços, de animais, de plantas, mantendo, ao longo dos anos, como motivos
gráficos recorrentes, a representação de gatos, pássaros, formigas, flores,
árvores e crianças, crianças com rostos apenas definidos a traço fino ou
desenhados na íntegra, deixando entrever sentimentos e impressões.
Quando abandona a monocromia e recorre à policromia balança entre cores
mais fortes ou doces tons pastel, em perfeita sintonia com o traço negro ou
parecendo passar sem ele.
São comummente considerados traços distintivos do seu trabalho
ilustrativo o olhar crítico e realista sobre a realidade, a solidariedade e os
gestos de cidadania que se manifestam em muitas das suas ilustrações, a
aparente simplicidade de motivos e desenhos, a opção por fundos neutros, o
recurso a texturas, a preferência monocromática patente em diversos títulos
ou o uso de uma segunda cor em contraponto com a mais recorrente, o
recorte das figuras, a estilização e leveza do traço, desenhando figuras com
grande carga poética, independentemente da maior ou menor dureza social
do contexto representado, em completa osmose com a palavra escrita.
Considerada artista de excelência45, Maria Keil traz à ilustração de
recepção infantil e juvenil imagens que se questionam e nos questionam, que
se espantam e nos espantam, reflectindo umas sentimentos de inquietação e
outras serenidade e um sentimento de crença, prolongando a mensagem
linguística e permitindo o alargar do sentido estético do receptor. A sua obra
«rasga pelo traço desenhado relações lúdicas e complexas (como janelas)
entre cidade e casa, a praça e a sala»46 e as pessoas, os animais, as plantas que
as habitam, estendendo-se do livro até ao leitor. Rescreve com traço, ou com
traço e cor, a força dramática de uma acção, o lirismo de uma estrofe, o
ondear dos corpos ou das copas das árvores, o voltear dos pássaros e das
abelhas, a intensidade do olhar e dos gestos dos seres humanos, o caminhar
das formigas, o saltar dos gatos, deixando ver todo o seu talento ilustrativo e
a qualidade estética do seu trabalho, que se redefine a cada novo título como
«grafismo de afectos»47.

45 J. Godinho e E. Filipe, «A arte de Maria Keil», p. 5.


46 J. P. Cotrim, «A praça é uma sala com árvores», p. 8.
47 R. A. Santos, «Maria Keil num grafismo de afectos», p. 7.
Fátima Ribeiro de Medeiros 171
Percursos que a liberdade ajudou a abrir: três décadas e meia
de criação
Após a revolução de Abril de 1974, ventos de mudança bafejaram as
actividades culturais, que foram reconhecidas como necessárias e essenciais,
tendo começado a aumentar e a enraizar-se o acesso da população às suas
concretizações e realizações sociais, com reflexos no campo da edição, surgin-
do novas colecções e novos autores no âmbito da produção editorial para
crianças e jovens. Em alguns casos, disparou o número de exemplares por
edição, em consonância com o aumento dos níveis de leitura, a que não foi
alheio todo o trabalho de mediação, promoção e animação que desde então
tem vindo a ser desenvolvido pelos diversos agentes envolvidos no processo.
Passo a passo, foram surgindo novos artistas plásticos interessados na
ilustração do livro para crianças, tendo o seu número vindo a alargar-se até
aos dias de hoje, deixando transparecer através da sua obra novos olhares,
diversas referências estéticas e diferentes tendências, criando cartografias
visuais singulares através de propostas icónicas que permitem à criança
alargar emoções, pontos de vista, visões do mundo. Os avanços tecnológicos
das últimas décadas contribuíram de forma decisiva para uma melhoria
notável do trabalho da edição, nomeadamente a nível do design gráfico. Por
outro lado, a maior procura do livro por parte do público leitor levou a uma
também maior diversidade de propostas. A ilustração tornou-se cada vez
mais importante no mundo da edição para os mais novos. A sua qualidade
tem sido reconhecida através de várias distinções e da presença em exposi-
ções individuais ou colectivas onde as ilustrações de livros para a infância são
a arte em destaque. Todos os anos novos nomes vêm engrossar a lista de
ilustradores, juntando-se aos que vêm de décadas anteriores, onde pontifi-
cam os considerados veteranos, como Manuela Bacelar, Henrique Cayatte ou
António Modesto.
Os álbuns de autoria plena são ainda uma fatia muito pequena da
produção portuguesa. São raros os ilustradores que se aventuram pelos
caminhos do álbum sem texto verbal, ou aqueles que assumem a autoria
tanto da ilustração como das palavras. Manuela Bacelar é quem mais investe
neste campo, tendo já assinado álbuns que tocam estas duas margens,
apondo-lhes, como é seu timbre, a sua marca de grande qualidade estética,
permitindo leituras tanto denotativas como conotativas. Não deve, porém,
ser esquecido o contributo dado por Cristina Malaquias neste domínio,
através d’ A Ovelha Negra (1988), ao tempo uma verdadeira lufada de ar
fresco na edição portuguesa.
172 Paratexto

Se os nomes encontrados em décadas anteriores causam alguma


surpresa, as assinaturas de ilustrações dadas à estampa nestes últimos trinta
e cinco anos, em muito maior número, continuam a alimentá-la48. Alguns
marcaram determinado momento, colecção ou editora, passando a sua
presença a ser menos forte em anos seguintes, outros têm-se mantido em
actividade. Na impossibilidade de se falar de todos, optou-se por escolher seis
de sensibilidades diversas, que abrem atalhos dos mais singulares neste
percurso, com a consciência de que outros ficam de lado quando, indiscuti-
velmente, pertencem a este pódio. São eles Manuela Bacelar, João Caetano,
André Letria, Teresa Lima, Danuta Wojciechowska e Gémeo Luís, ilustrado-
res com uma gramática estética bem definida, posicionando-se como nomes
maiores, várias vezes premiados e com participações em diversas exposições
e outros eventos relacionados com a ilustração de livros para crianças.
Manuela Bacelar é considerada por muitos como a ilustradora mais
representativa dos últimos trinta e cinco anos. Com mais de sete dezenas de
livros ilustrados, alguns com diferentes ilustrações conforme as edições,
difundidos em diversos países europeus, sendo que catorze são de sua autoria
tanto a nível do texto icónico como verbal, considerados como a «obra
dentro da obra»49, foi após ter regressado de Praga, onde completou a sua
formação académica e definiu o seu estilo, que começou a desenvolver a sua
actividade neste sector, precisamente em 1974, com a ilustração de Histórias
Inesquecíveis para Crianças, compilação de contos de diversos autores selec-
cionados por Ilse Losa. Com esta escritora trabalhou em parceria durante
cerca de duas décadas, tendo ilustrado e reilustrado vários dos seus títulos,
num trabalho de oficina em que reinventou a própria obra, num jogo de
releituras dos mesmos textos, deixando ver o amadurecimento e a evolução
do seu trabalho de ilustração, permitindo, assim, outros olhares e o apro-
fundamento dos sentidos dos textos, destacando-se neste processo Silka, que
recebeu a Maçã de Ouro da Bienal Internacional de Bratislava (1989) e o

48 Eis alguns dos seus autores, que vale a pena acompanhar, um ou outro com livro(s) editado(s) no
período imediatamente anterior: Fernando Lemos, Jorge Pinheiro, Costa Pinheiro, José
Guimarães, Emerenciano, Francisco Relógio, Teresa Dias Coelho, Ângela Melo, João Botelho,
Fernanda Fragateiro, Henrique Cayatte, João Machado, Armanda Duarte, Jorge Colombo,
António Modesto, Maria João Lopes, Paula Amaral, João Fazenda, Pedro Morais, José Miguel
Ribeiro, Joana Quental, Cristina Sampaio, Cristina Valadas, Bernardo Carvalho, João Vaz de
Carvalho, José Manuel Saraiva, Luís Henriques, Elsa Navarro, Alain Corbel, Carla Nazareth,
Marta Torrão, Fátima Afonso, Helena Simas, Pedro Proença, Raquel Pinheiro.
49 G. Maia, «Manuela Bacelar: um sol para as histórias escritas», p. 6.
Fátima Ribeiro de Medeiros 173
Prémio Gulbenkian de Ilustração (1990). Além do trabalho com Ilse Losa,
assina obras em parceria com outros nomes das letras portuguesas50, além de
ter ilustrado obras de clássicos como Andersen, Perrault, Collodi. Tanto
enquanto autora de textos visuais como de textos visuais e verbais, mostra-se
criativa, livre e audaciosa, capaz de criar rupturas e abrir caminhos.
Ilustradora que usa tanto o traço como a cor para construir o seu dis-
curso estético, trabalhando com diferentes formatos de livro e usando tanto
técnicas mistas como técnicas puras, com uma invulgar capacidade de «narrar
pela imagem»51, Manuela Bacelar tem-se imposto através de um trabalho
ímpar e de grande qualidade, deixando passear a sua criatividade por aveni-
das de liberdade, de realidade e de imaginação, abrindo janelas para o imagi-
nário do leitor, e recorrendo a uma paleta diversificada de cores para cons-
truir narrativas visuais ora plenas de humor, ora de emoção, sentimento e
poesia, conseguindo dar-nos como ninguém os mundos interiores das perso-
nagens, ultrapassando, ocasionalmente, os limites do real. Gosta de estrutu-
rar toda a página através de cores que reflectem e comunicam esses sentimen-
tos e estados de espírito, envolvendo-nos, inquietando-nos, acalmando-nos.
São cores positivas, criam pontes entre o texto verbal e as experiências do
leitor, o seu mundo onírico e o mundo real que o rodeia. Reflectem sonhos e
vida. As utilizações que faz do branco sobre diferentes cores dão brilho às
páginas, convocam o nosso olhar para detalhes de importância diversa,
sugerem ora evanescência, ora luminosidade e opacidade, mesmo quando
apenas pontilham o que iluminam. Libertando-se, por vezes, do contorno, a
sua pintura é leve, delicada, sensível, balizada por momentos de luz e som-
bra, deixando antever, como num palimpsesto, «o traço debaixo da tinta»52.
O desenho a preto e branco, a risco de lápis ou a tinta, destaca-se
frequentemente no trabalho a cores, marcado por uma aparente facilidade e
por um dinamismo que torna a sua autoria rapidamente referenciável.
Alguns desenhos têm um ar de ingenuidade infantil, aproximando-se muito
do ser e do sentir da criança. Para Gil Maia «a linha é um elemento muito

50 Isabel da Nóbrega, Agustina Bessa Luís, António Torrado, Matilde Rosa Araújo, Luísa Ducla
Soares, Maria Isabel de Mendonça Soares, Maria de Lurdes Soares, Inácio Pignatelli, Álvaro
Magalhães, Luísa Dacosta, Eugénio de Andrade, Teresa Balté, José Jorge Letria, Violeta
Figueiredo, Arsénio Mota e outros.
51 A. Melo, «Ângela Melo em entrevista a Manuela Bacelar», p. 8.

52 «O traço debaixo da tinta» é o título de uma das muitas exposições do trabalho de Manuela

Bacelar.
174 Paratexto

importante» em todos os trabalhos de Manuela, «mesmo naqueles em que o


pincel é omnipresente»53. Por seu turno, Danuta Wojciechowska considera
que, no trabalho de Manuela Bacelar, o desenho «não é um elemento formal
da composição, é um elemento com vida própria”, sendo um dos “factores
luminosos» desse trabalho. Afirma ainda que, frequentemente, os desenhos
existem «em simultâneo com as cores mas noutro plano, não se misturam,
fazem parte de um mundo superior»54. Alguns desenhos são acentuados por
pequenos apontamentos de vermelho, uma das cores de excelência de
Manuela, a par do azul, do verde, do branco e do amarelo. Álbuns há que são
marcados por uma cor dominante, como acontece em As Fadas Verdes (1994),
de Matilde Rosa Araújo, onde o verde domina, não só nos elementos repre-
sentados mas também nos fundos, nas guardas, na capa e contracapa.
As personagens criadas pela ilustradora são positivas e «mantêm os
reflexos da expressividade humana, independentemente de serem ou não
personagens humanas»55. O mundo criado pelas suas ilustrações é habitado
por criaturas humanas e por animais antropomorfizados, reproduzindo com-
portamentos humanos. Na galeria dos seus motivos recorrentes destacam-se
crianças, aves, cavalos, leões, gatos, pequenas estrelas pontilhando espaços
de página. E também flores, muitas flores e plantas indistintas, desafiando
ocasionalmente a proporção e a escala do conjunto. São elementos que cons-
troem cenários, emparelhando com pontos, riscas, manchas e «fundos repin-
celados»56, criando cenários semioticamente muito ricos e ajudando a cons-
truir o seu ritmo ilustrativo, acentuando a singularidade da sua assinatura. É
visível a diferente volumetria de algumas das suas figuras humanas, ora
esguias, como que crescendo em direcção ao alto, ora mais arredondadas,
quase sempre perto do chão, como que presas à terra, ao húmus. Realce-se
também o recorte “solto e esvoaçante”, quase translúcido e feérico, de muitas
das suas personagens femininas, que evocam simbolicamente fadas ou anjos,
sereias ou belas adormecidas. São recorrentes as personagens de olhos cer-
rados, convocando a meditação, o repouso, a tranquilidade. Outras apresen-
tam olhos redondos, bem abertos, inquiridores, expectantes ou afirmativos.
São ainda elementos de grande expressividade os jogos de proporção criados

53 G. Maia, «Manuela Bacelar», p. 6.


54 D. Wojciechowska, «As cores de Manuela Bacelar e as cores dos livros», p. 78.
55 G. Maia, op. cit., p. 3.

56 G. Maia, op. cit., p. 7.


Fátima Ribeiro de Medeiros 175
pela ilustradora. Manuela trabalha com mestria a dupla página, onde cada
ilustração pode ser encarada como uma narrativa, consentindo a presença do
texto verbal ou podendo existir sem ele, e construindo distintos percursos
diegéticos com as ilustrações anteriores e posteriores. A Sereiazinha (1995),
de Hans Christian Andersen, é um verdadeiro livro de arte, a colocar na
galeria dos imprescindíveis.
No entender de Ângela Melo, a obra de Manuela Bacelar destaca-se como
«um trabalho coeso, contínuo, de grande investimento profissional e assente
numa liberdade enorme de imaginação»57. Sublinha-se ainda a sua «vontade
experimentalista», patente «ao nível das técnicas», a sua capacidade de apro-
ximar mundos, seres e linguagens, permitindo-lhe inovar de livro para livro,
dando asas a uma liberdade criadora que não se submete a espartilhos de
nenhuma ordem nem reconhece temas tabu, sendo disso exemplo O Livro do
Pedro (2008), onde valoriza o ser e os afectos.
João Caetano é um ilustrador que, desde 1992 (Era um Azul tão Verde, de
Anabela Mimoso), criou ilustrações para cerca de trinta títulos de recepção
infantil58. Com um estilo pessoal bem definido, coerente e criativo, transfor-
mando os livros que ilustra simultaneamente em objectos estéticos apetecí-
veis e textos visuais de grande riqueza polissémica, a sua assinatura ilustra-
tiva é facilmente reconhecível. Sabendo ler as entrelinhas dos textos verbais,
rescreve-os e expande-os através de ilustrações ricas em elementos significa-
tivos que abrem novos caminhos interpretativos. O seu universo criativo é
diversificado, fazendo brotar «a voz interior»59 que os textos despertam em si.
O seu trabalho ilustrativo recorre a técnicas mistas onde estão presentes
colagens, sobreposições e incrustações de material diverso – plantas secas,
desperdícios vários (de papel, plástico, metal, pano, e outros), letras e pala-
vras recortadas – sobre desenho, restos do quotidiano transpostos para novo
paradigma, que recombina, dando-lhes novas funções e sentidos, harmoni-
zando-se com texturas, desenho e pintura, ora em detalhes ínfimos, ora em
pinceladas largas, criando fundos ou colorindo paisagens e espaços, cons-
truindo composições de grande impacto visual, marcadas pelo discurso do
pormenor, num pot-pourri de materiais e técnicas que ajuda a criar atmos-

57 A. Melo, «Ângela Melo em entrevista a Manuela Bacelar», p. 8.


58 A individualidade do seu estilo reconhece-se em livros com textos assinados por José Saramago,
Anabela Mimoso, Mário Castrim, José Vaz, António Torrado, Alice Vieira, Alexandre Honrado
e outros.
59 J. Caetano, Ilustrações.pt (v. Bibliografia), p. 13.
176 Paratexto

feras e percursos narrativos que cativam o olhar e iluminam sensibilidades,


abrindo caminho a novos sentidos e a interpretações não esperadas. Gosta de
usar sobretudo cores outonais, com um ou outro apontamento contrastante,
ou azuis luminosos. Cria cenários e atmosferas potenciadoras de emoções
várias, ricos de alusões e sentidos, sobrepõe planos, constrói expressivas
metáforas visuais, baliza o seu trabalho entre o figurativo, o real e o maravi-
lhoso, permitindo-se usar ora a ironia, ora as potencialidades oníricas dos
signos visuais. Lendo o texto verbal, quer narrativo quer lírico, através de
uma lupa muito pessoal e criativa, João Caetano consegue imbuir o seu
discurso icónico de uma grande carga poética, num convite permanente à
leitura visual da sua obra que, ao ir ao encontro do imaginário do leitor,
afecta de forma positiva a relação deste com o livro.
André Letria começou a ilustrar em 1993 (A Teia de um Segredo e O peque-
no Teatro, ambos de José Jorge Letria), e imediatamente deu nas vistas, vindo
a realizar um trabalho que já o colocou como uma das referências da nossa
ilustração de livros para a infância. Assina mais de seis dezenas de títulos com
vários escritores60, com destaque para José Jorge Letria, o mais constante e
cúmplice dos seus parceiros. Ilustrando diversos géneros para diferentes
públicos-alvo, André Letria, através de um manifesto fascínio pelos universos
da infância, parece privilegiar na sua obra ilustrativa a perspectiva da criança,
abrindo portas e janelas da sua imaginação, mostrando preocupar-se com o
sentido pedagógico dos livros que ilustra, apesar de não gostar de se sentir
espartilhado por qualquer tipo de condicionantes. É também evidente o
nonsense e o humor de muitas das suas criações, para além do “ambiente posi-
tivo” que constrói a respiração das suas ilustrações. Criador versátil, gosta de
participar em todo o projecto gráfico de construção do livro, além de, perma-
nentemente, continuar a arriscar, a experimentar novas técnicas e variar a sua
linguagem estética, apresentando, através de uma pluralidade de registos e
de uma paleta de cores diversificada, um trabalho de grande criatividade,
dando a ver/ler páginas muito expressivas, tanto ao nível do desenho e da
composição como no domínio da cor. Usa o recorte, a colagem e a sobreposi-
ção de materiais e explora a textura dos papéis com que trabalha. Evidencia
predilecção por formas arredondadas e por contornos de traço grosso, e

60 São eles Alice Vieira, António Mota, Luísa Dacosta, Alexandre Honrado, Vergílio Alberto Vieira,
João Pedro Mésseder, João Paulo Cotrim, Matilde Rosa Araújo, Manuel Alegre, Chico Buarque,
entre outros.
Fátima Ribeiro de Medeiros 177
escolhe para cada álbum uma cor dominante que lhe confere identidade
própria, pintando com aguarela, lápis de cor solúvel, pastel seco e, sobretudo,
acrílico. As suas cores são fortes e “inteligentes” e, quando aplicadas aos
fundos, criam os universos em que surgem e se movimentam as personagens,
condicionando a atmosfera da narrativa.
Os animais criados por André Letria são seres ímpares, umas vezes fantás-
ticos, outras realistas, configurando um bestiário rico e diversificado, en-
quanto que as suas personagens humanas sobressaem, por vezes, pela impre-
visibilidade de alguns detalhes, como orelhas em forma de lâmpada, um
nariz fechadura ou um rosto espelho, a roçar o surrealizante. Tanto uns como
outros são seres com densidade visual e afectiva. Nos títulos da série «Se eu
fosse…» as ilustrações assentam numa constante mudança de situações, que
provocam a curiosidade e as expectativas da criança leitora, servindo de
semente a outras experiências. Apresentando um trabalho progressivamente
mais depurado, a sua criatividade tem aberto caminhos na ilustração portu-
guesa pela criação de um universo particular que cativa miúdos e graúdos,
fazendo dele um nome de referência do panorama ilustrativo português.
Teresa Lima deu os primeiros passos na ilustração de livros de recepção
infantil em 1995 (A Cor das Vogais, de Vergílio Alberto Vieira)61. Defendendo
que ilustrar é recriar um texto literário “numa relação de dependência, mas
nunca de servilidade”62, é senhora de uma linguagem estética inconfundível
que percorre diferentes técnicas e materiais, através da qual consolidou já o
seu estilo, marcado pela criação de ambientes oníricos e poéticos, por vezes
com certa respiração surreal, provocada por transgressões como as alterações
de perspectiva. As imagens que cria oscilam entre a grande dimensão e o
pequeno apontamento, construindo expressivas metáforas visuais, suge-
rindo o diálogo entre recursos e motivos, dando origem a textos que provo-
cam múltiplas leituras. Algumas são marcadas pela referencialidade,
havendo quem considere ser possível encontrar ressonâncias estéticas de
«fortes raízes portuguesas»63 a alimentar o estilo pessoal da ilustradora.
As suas figuras, esguias, leves, esvoaçantes, fluidas, a quererem distender-

61 Ilustrou textos de Vergílio Alberto Vieira, António Mota, José Jorge Letria, Luísa Ducla Soares,
Alice Vieira, tendo ilustrado ainda clássicos como Lewis Carroll, Rudyard Kipling e Hans
Christian Andersen.
62 T. Lima, in AAVV, Ilustrações.pt, p. 63.

63 J. P. Boléo, «Contos ilustrados», p. 23.


178 Paratexto

-se no papel, marcadas por traços fisionómicos e características físicas singu-


lares, que a ilustradora, por vezes, vinca ou exagera, cheias de expressividade
e movimento, como que pairam na dimensão da página/da dupla página ou
surgem presas e suspensas por fios, como roupa ao vento ou como mario-
netas, fazendo prevalecer o lado onírico e poético das mensagens. Usando
técnicas mistas, com recurso ao desenho, à pintura e à colagem, recorre a
linhas e formas curvas e prefere quase sempre cores suaves e esbatidas, que
usa em diferentes tonalidades. Algumas das suas ilustrações parecem surgir
como flashes narrativos que capturam um grande número de elementos
significativos. José António Gomes aponta a «pulsão narrativa de algumas
das suas ilustrações», podendo representar «numa única imagem momentos
diferentes da mesma narrativa»64. Assim, ao trazer para a página o seu
mundo estético, rico e peculiar, Teresa Lima enriquece os textos que ilumina,
desafiando como poucos o imaginário do leitor.
Ao findar do século XX, surge o primeiro título ilustrado por Danuta
Wojciechowska (Versos com Reversos, 1999, de João Pedro Mésseder)65, ilus-
tradora cujo trabalho foi notado de imediato, dado que vive de uma assina-
tura estética muito particular, ímpar no nosso panorama, pois assenta,
sobretudo, na cor e nas composições muito dinâmicas que dominam a dupla
página, respeitando o poder, a força e os vários sentidos das palavras, de que
se serve como ponto de partida da sua obra ilustrativa, quer conte histórias,
quer reforce o sentido expressivo de textos poéticos, afirmando que «ilustrar
é transformar uma ideia numa imagem capaz de falar»66. As suas imagens
provocam o imaginário do leitor e ajudam a povoá-lo de seres, formas, cores.
Os textos ilustrados por Danuta permitem voar no mundo das cores e da
imaginação. Entrecruza personagens e objectos, colocando-os, por vezes, a
pairar na página, como nos sonhos, desvenda cenários de fantasia, pro-
vocando impressões várias, além de permitir que as suas personagens, de
presença bem vincada, num entrecruzar de universos, se movam em
configurações espaciais, próximas do real e/ou do onírico. Danuta usa a cor
de forma quase explosiva, gerando contrastes de luz e sombra, recorrendo a
diferentes técnicas, preferindo, sobretudo, o acrílico, trabalhando com diver-

64 J. A. Gomes, «Teresa Lima ou a pulsação poética das imagens», [p.10].


65 Ilustrou textos de João Pedro Mésseder, António Mota, Álvaro Magalhães, Mia Couto, José Jorge
Letria, Alice Vieira, Ondjaki, Violeta Figueiredo, entre outros.
66 D. Wojciechowska, in AAVV., Ilustrações.pt, p. 133.
Fátima Ribeiro de Medeiros 179
sas tonalidades de cores vivas, fortes, vibrantes e positivas que nos ficam na
retina, como o amarelo, o vermelho, o laranja e o azul, criando, assim, uma
linguagem visual afectiva que permite o encontro do leitor com atmosferas
oníricas, compondo e entrecruzando universos ora realistas, ora fantásticos e
metafóricos, ampliando e aprofundando os sentidos dos textos que ilustra.
Emprestando às suas ilustrações um forte sentido poético, Danuta cria uma
arte de emoções, posicionando-se como um dos nomes fortes da ilustração
portuguesa.
De entre os ilustradores aqui tratados, Gémeo Luís é aquele cuja obra de
ilustração para a infância é a mais recente, datando já deste século o seu pri-
meiro trabalho (Grávida no Coração, 2002, de Paula Pinto da Silva). As suas
primeiras ilustrações nasceram do desenho e pintura, porém o ilustrador
rapidamente trocou lápis e pincéis por tesoura e faca gráfica, passando para
o recorte, maioritariamente, mas não só, de papel kraft, descobrindo, assim,
o seu caminho67. Os seus recortes, acompanhados, ocasionalmente, por uma
ténue sombra que acentua a sua delicadeza, centram-se numa figura de maio-
res dimensões de onde emanam outras, mais pequenas, delicadas, esvoa-
çantes, vaporosas, presas à primeira por emaranhados mais ou menos densos
de linhas finas e longas, que ao distenderem-se se tornam ondulantes e cada
vez mais esguias, espraiando-se pelos limites da página. São recortes de cor
única, minuciosos e criativos, criando formas subtis cuja delicadeza e flexi-
bilidade acompanha a poesia dos textos que ilustram, assumindo-se como
imagens dinâmicas que dão a ler/ver novos sentidos narratológicos ou poéti-
cos, algumas lembrando a delicadeza da filigrana, outras invocando as som-
bras chinesas ou os recortes de Hans Christian Andersen de que Niels Fischer
nos deu uma excelente retrospectiva em álbum de 200568. Segundo Emílio
Remelhe, Gémeo Luís «formaliza as suas narrativas através de um conjunto
intricado e permeável de estratégias gráficas e retóricas», com destaque para
«nivelamento e acentuação, relação positivo-negativo, multiplicação dos
pontos de vista, tensão e distensão, ambiguidade»69. A sua linguagem plásti-
ca aproxima o verosímil do onírico, é envolvente, abre portas a um imaginário
rico e fecundo, afirmando e sugerindo, sublinhando momentos, conceitos,

67 Ilustrou textos de Paula Pinto da Silva, João Pedro Mésseder, Ana Saldanha, Matilde Rosa Araújo
e, sobretudo, Emílio Remelhe (Eugénio Roda), entre outros.
68 N. Fischer, Os Recortes de Papel de Hans Christian Andersen.

69 E. Remelhe/E. Roda, in AAVV., Ilustrações.pt, p. 73.


180 Paratexto

pensamentos, criando expressivas dimensões simbólicas, redimensionando


os textos que ilustra, desafiando linguagens e formatos, criando, assim, um
estilo muito pessoal que abre múltiplos itinerários de leitura.
Estão, pois, percorridos alguns dos caminhos portugueses da ilustração
do livro de recepção infantil e juvenil, demarcados entre 1902 (ano da publi-
cação, por Ana de Castro Osório, do artigo «A arte na literatura infantil»), e
o momento presente. Traçados que foram os contornos teóricos desta “arte
na página”, repartida entre livro ilustrado e livro-álbum, considerou-se que a
ilustração cresceu e afirmou-se essencialmente em três momentos: a primeira
metade do século XX, o período entre os anos 50 e Abril de 1974 e os últimos
trinta e cinco anos. Foram definidos alguns dos seus traços peculiares e iden-
tificaram-se as características distintivas essenciais do trabalho das perso-
nalidades aqui consideradas como figuras maiores das respectivas gerações.
Ficou claro que as ilustrações consideradas mais expressivas têm como ânco-
ra, além da qualidade estética, o sentido do novo e do inesperado, o uso de
diferentes técnicas e materiais, a prevalência do traço e da cor, a capacidade
de expandir e rescrever os textos verbais com os quais dialogam, a imagina-
ção e o humor, o lúdico e o onírico, a capacidade permanente para inovar.
Com uma gramática estética com códigos específicos, em constante
recriação e formulando novas possibilidades expressivas ao longo do tempo,
os livros ilustrados e os livros-álbum permitem que a criança leitora passeie o
seu desejo ou ensejo de ler por uma galeria diversificada e rica em estilos e
singularidades, cosmopolita, capaz de inquietar olhares e despertar sentimen-
tos e sensações, construindo atmosferas maravilhosas e fantásticas, realistas,
poéticas, irónicas e humorísticas, provocando e inovando, ou retomando, de
forma mais ou menos estereotipada ou provocadora, modelos anteriormente
ensaiados, criando os ilustradores, em “autoria partilhada” com os escritores,
boa parte dos livros que crianças e jovens lêem hoje, configurando-se a ilus-
tração como paratexto fundamental e incontornável na literatura de recepção
infantil e juvenil. Como sublinha Gérard Genette, «les voies et moyens du
paratexte se modifient sans cesse selon les époques, les cultures, les genres,
les auteurs, les œuvres, les éditions d’une même œuvre»70. Segundo o texto a
ilustrar e a gramática estética de cada ilustrador, acrescentaríamos nós, con-
forme se foi vendo ao longo deste trabalho, configurando-se, pois, a ilustra-
ção como paratexto muito significativo para a compreensão global da obra.

70 G. Genette, Seuils, p. 9.
Fátima Ribeiro de Medeiros 181
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71 Este título tem uma particularidade interessante em relação à data de edição: na folha de rosto
está inscrita a data de 1924, enquanto que no cólofon pode ler-se: “Este livro acabou de se impri-
mir na Imprensa Lucas & C.ª, Rua do Diário de Notícias, 61, aos 27 de Março de 1925, Lisboa”.
Seguindo a prática de catalogação portuguesa, que refere que quando um livro tem impressas
duas datas se deve escolher sempre a mais recente, indica-se aqui a data de 1925. Este título
aparece, contudo, referenciado em várias bibliografias e catálogos com a data de 1924.
182 Paratexto

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184 Paratexto

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Lisboa: Caminho, 2006
A Palavra Imagem
Rita Taborda Duarte e Luís Henriques (ilustrações)
Universidade de Lisboa e Universidade Nova de Lisboa

Apesar de tudo há ainda as palavras que nos metem medo. Delas irrompe
a cega proliferação de imagens. Porque se ao princípio era o nome, foi dos
nomes que nasceram as coisas. Esta realidade suscitada ardentemente pela
palavra passa a viver sobre a rede dos nossos sentidos: respira encostada
aos pulmões, lateja no sangue, crava-se na cabeça como uma coroa negra.
Herberto Helder, Photomaton e Vox

É bem frequente pensar-se que a literatura e a poesia se vão compondo,


construindo, com as palavras, lado a lado. Não é isso verdade, no entanto: o
que distingue a arte literária não é a caminhada solidária com as palavras,
aquela destas subsidiária, mas o inverso. A literatura é uma arte que se move
por uma rebelião contra as palavras e num perpétuo braço de ferro contra
elas. É que as palavras, por si mesmas, são criadoras cegas, reproduzindo-se
de forma muito pouco moldável, dificilmente domável.
O tão batido verso horaciano que reivindica uma poesia como a pintura,
assim como as suas reformulações mais recentes, e aparentemente opostas,
que nascem no século XIX com o Simbolismo, clamando uma linguagem
próxima da musical, mostram bem formas de retirar às palavras aquele seu
lastro criador demasiado autónomo, que «faz nascer as coisas», colocando-
-as em patamares de referência mais reconhecíveis. O mesmo se passará,
talvez, com os termos literatura ou poesia ecfrástica, buscando à partida
formas mais previsíveis, ou melhor, mais pacíficas, de a literatura se aproxi-
mar da sua matéria. Falamos de ecfrasis, mas podemos alargar o tema, ou
processo, e referirmo-nos de igual modo a situações em que texto poético e
pictórico surjam a par, ilustrando-se, mutuamente. No entanto, quando a
imagem acompanha a palavra, isso não significa, sequer, uma ténue garantia,
de as tornar mais domesticáveis.

Românica 18, 2009


186 Paratexto

A poesia será o género literário que mais procura resistir à linguagem e


ao poder da palavra. É naturalmente que a poesia incita à abstracção, que a
linguagem, paradoxalmente, parece não poder assumir. A ecfrasis surge,
assim, como uma via por que se inclui, de forma pelo menos mais serena, o
processo mimético ou representativo na poesia; mas no fundo, não faz mais
do que deixar ao leitor a implícita sugestão de que lhe cabe a tarefa de
reconstituir, nunca o objecto artístico, mas o modo como texto e objecto
pictórico se podem representar ou apresentar mutuamente.
Constituirão os textos denominados ecfrásticos1, assim, exemplos
úteis acerca do modo como pode funcionar o processo mimético num texto
poético, não evidentemente por qualquer revelação do mundo prévio que o
objecto artístico poderia constituir relativamente ao texto (porque como já
vimos é indiferente que a relação seja a inversa), mas pelos modos de figu-
ração e de estabelecimento de relações perceptivas que o texto provoca na
configuração do objecto artístico que pareceria pré-figurá-lo. Sobretudo por
a relação se pautar pelo processo, como se o que se buscasse não fosse já a
obra de arte, ou o texto poético, mas o momento de passagem de um para o
outro. Assim o que se procura, penso, num texto ilustrado ou no objecto
pictórico que é ilustrado por palavras, não é nunca a clarificação de um ou
outro, ou ambos (o que distingue a arte não é a capacidade de clarificar, mas
de obscurecer, modificando), mas exactamente o momento de clivagem, o
momento intermédio de passagem reversível de um para o outro; o sujeito a
oscilar em movimentos perceptivos: ou se quisermos a mimesis, não pensada
como acto passado, mas como algo a manifestar-se no presente, actuante, no
momento de leitura.
Luiz Costa Lima2 socorre-se da noção de verosimilhança, quando busca
trazer a mimesis e a noção de representação para o cerne da poesia. O verosí-
mil terá menos a ver com o mundo ou uma qualquer sua exterioridade
reconhecível, como o objecto pictórico que acompanha o texto, e mais com o
sujeito, visto também na sua vivência histórica e cultural, que nos faz até crer
no realismo sobretudo como um «caso de hábito», tal como Goodman
defendia.

1 Ou aqueles que se fazem acompanhar por ilustração (ou mesmo que correm sob um objecto
pictórico que se percepciona em construção, como a obra Ciclópico Acto, de Luiza Neto Jorge e
Jorge Martins, a título de exemplo).
2 Luiz Costa Lima, Mímesis: Desafio ao Pensamento, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.
Rita Taborda Duarte e Luís Henriques (ilustrações) 187
A relação entre texto e imagem não é sequer da ordem da adequação, ou
qualquer forma de aproximação, como se houvesse formas mais precisas ou
mais aproximativas de aceder a uma espécie de realidade prévia; «o texto não
remete ao mundo senão para irrealizá-lo; não remete ao mundo senão para
nele descobrir o ser que se eventual e historialmente desoculta.»3. A arte
irrealiza– continua Luiz Costa Lima– «a unidade do sujeito. Mas a irrealiza
para mostrar o sujeito exposto nas suas fraturas.»4. Ora, parece-me que é
para esta exposição das fracturas do sujeito que lê e vê em simultâneo que
remete a poesia que se faz acompanhar de uma imagem: exibir as formas de
percepção de um sujeito e mostrar a mimesis como acto de percepção desse
mesmo sujeito.
O figurativo, a que durante os séculos XVIII e XIX se associou a mimesis,
motivo pelo qual este conceito terá sido rasurado durante todo o
Romantismo e gerações vindouras que dele subsistem5, tem sido a superfície
movediça que aparentemente parece facilitar o epíteto de mimético à arte
pictórica. O figurativo não pode ser, no entanto, sinónimo de mimético. Diz-
-nos Luiz Costa Lima:
O horizonte de expectativas não será suficiente para transfor-
mar o não figurativo em figurativo, mas sim em preparar o olhar do
receptor para as formas mais diversas de composição; em descobrir
semelhanças, onde no objecto dominam diferenças; em tornar vero-
símil o que de outra forma parecerá apenas estranho ou confuso ou
irrelevante. … o não figurativo não é sinónimo do amimético.6

A abstracção terá sido a forma de as artes plásticas colocarem no


horizonte formas de re/apresentação que se afirmem anti-miméticas, apesar
da inevitabilidade de se colocarem sob um horizonte de expectativa sobre o
real que permita a sua percepção/representação. No entanto, a mimesis,
aqui, continua a ser operante, mas no seu extremo, que aparenta ser o seu

3 Costa Lima, idem, p.66.


4 Costa Lima, idem, p.161.
5 Aqui incluímos o modernismo, mas também refigurações contemporâneas como o surrealismo.

Note-se o modo como Luiz Costa Lima pensa o modernismo através de um confronto com a
verosimilhança: «O modernismo, por exemplo, alcança a sua meta pelo realce do vector pertur-
bado da verosimilhança. No entanto a diferença não é apreensível sem que o verosímil tenha
organizado o quadro de expectativas» (cf. Costa Lima, idem, p.65).
6 Costa Lima, idem, p.222.
188 Paratexto

reverso, expondo-se não como semelhança, mas como diferença; não como
processo de continuidade, mas como garante da fractura.7
Ora a grande dificuldade da literatura é não poder simular, como a
arte abstracta, o mesmo desligamento do mundo e do sujeito, mesmo que
depois seja recuperado (sem dúvida mimeticamente) por aquele que vê e
compreende. Não é possível uma literatura abstracta8. E de forma nenhuma
sequer o surrealismo pretendeu fazê-lo. Por isso se torna tão contraditório
falar-se de literatura (e é indiferente, neste ponto preciso, que se trate de
poesia ou ficção) que se possa sequer apresentar como não mimética, como
recusa, mesmo que superficial, da estrutura mimética que a língua implica.
Mesmo regressando aos sentidos – como vimos vários – que, em Aristóteles,
se atribui a mimesis, rapidamente se descarta a hipótese de o figurativo ser
elemento determinante: Aristóteles usa a expressão mimeisthai, aplicada a
artes por excelência não figurativas, por essência abstractas, como a música e
a dança.9 Podemos mesmo dizer, então, que é essencial à literatura ser
mimética – mesmo que não queiramos admitir ser essa a sua essência.
A mimesis – e isto, já presente em Aristóteles, vai redescobri-lo mais
tarde, por exemplo, Baudelaire – não está na cristalização de uma forma, nem
sequer no reencontro de uma forma/fórmula oculta, «pois que é a mimesis
senão uma oficina de imprevistas correspondências?»10. Não é essencial-
mente na semelhança, na equivalência, que a mimesis se move, mas também
(poderíamos dizer sobretudo) na diferença, nas zonas fracturais. Aliás,
na poética aristotélica este duplo vector de correspondência por
semelhança e diferença está também presente. A correspondência
por diferença actualiza-se em dois vectores: a) aquele que se con-
funde com a situação mesma da mimesis internalização de uma
semelhança esconde a diferença de que partira); b) o que se actua-
liza na concepção da metáfora.11

7 Costa Lima, idem, p. 22: «A correspondência de uma cena primeira, que se cumpre na mimesis,
não supõe os limites da natureza ou a sua reprodução, mas a possibilidade de sentido a consti-
tuir, a partir de um horizonte cultural de expectativas».
8 Costa Lima, idem,p. 289: «Em termos estritos, a literatura abstracta exigiria o cancelamento dos

dicionários. Ou seja de um povo que fala uma língua».


9 Cf. Costa Lima, idem, p. 297.

10 Costa Lima, idem, p. 289.

11 Costa lima, idem, p. 300.


Rita Taborda Duarte e Luís Henriques (ilustrações) 189
É este sentido de mimesis, dividido entre a similitude que o poder
das palavras instaura e a diferença que se dá pela linguagem poética, que a
imagem que acompanha o texto instaura:
Rua de mão dupla, a mimesis não só tira do mundo, mas lhe
entrega algo que ele não tinha. Que substancialmente continuará
não tendo, mas que nem por isso deixará de a incorporar. Ao fazer
ver de outra maneira, ela reconhece a existência do que dela não
depende; ao mesmo tempo, provoca o conhecimento do que, sem
ela, não seria possível de se obter 12

O texto poético e a imagem que se diz ilustrá-lo (ilustração significa tão


incomodamente iluminação), assim como o texto ecfrástico, não significam,
então, formas de remissão, numa procura de modelos tradicionais de
representação, que trazem implícitas noções como clarificação, explicação ou
mesmo repetição; a noção de mimesis que estes textos implicam respeita à
simulação de modos de percepção das formas, em que o sujeito que vê/lê,
não vê/lê imagem ou os textos, mas sim o momento de passagem, a remissão
e o reenvio de um para outro. Assim, repetimos com Costa Lima: «Rua de
mão dupla, a mimesis não só tira do mundo [acrescentamos, nem do texto,
nem da imagem], mas lhe entrega [também ao texto, também à imagem]
algo que ele não tinha.».

12 Costa Lima, idem, p. 328.


190 Paratexto
Rita Taborda Duarte e Luís Henriques (ilustrações) 191
Outros Estudos
Víspera de la Batalla. El Hervidero Manuscrito Portugués
Ante la Invasión de Marruecos
José Miguel Martínez Torrejón
Queens College and Graduate Center, City University of New York

Poesía manuscrita
En octubre de 1572, la inquietud de muchos portugueses en torno a la
sucesión de D. Sebastián y consiguiente independencia del reino se compli-
caba con el notorio poder que estaban adquiriendo los validos del joven rey,
quienes aplaudían su espíritu de cruzada y alentaban sus planes de invasión
de Marruecos mientras que le mantenían alejado de su pueblo con cacerías y
devociones. Una mano anónima se las arregló entonces para atravesar el
parapeto de validos que aislaba al rey de su pueblo y hacerle llegar las coplas
que comienzan:
Pide a tu juicio cuenta,
zagal de ti descuidado,
que se te pierde el ganado
y piensas que se te acrecienta,…

En ellas se le recrimina agriamente su actitud belicista y su descuido de


obligaciones domésticas más inmediatas, como casarse, tener sucesión y, en
general, atender al buen gobierno del propio reino en lugar de preocuparse
por el desgobierno de los ajenos. Nos lo cuenta Pedro Roiz Soares en su
Memorial…, y la noticia nos interesa sobre todo porque reconoce la presencia
en la corte de la poesía manuscrita como recurso político extremo. De hecho
estos Avisos se han conservado al menos en siete manuscritos de la época,
varios de los cuales contienen una o dos continuaciones, alcanzando un total
de 715 versos1.
Exento de los gastos de imprenta, con frecuencia breve y anónimo, al
margen de censuras y otras formas de control, el poema manuscrito aventaja
al impreso en capacidad de acceder con oportuna rapidez a destinatarios de

1 Ahora pueden verse en mi edición crítica y anotada («Entre perros y lobos…»).

Românica 18, 2009


196 Paratexto

otra forma inaccesibles. Goza así de un mayor margen para la disidencia, sin
que por ello se le deje de usar para impartir consejos de buen gobierno, dirigir
panegíricos y hasta hacer propaganda oficial2. En las páginas que siguen
recorreremos estos usos durante el reinado de D. Sebastián, cuya inestabi-
lidad en todos los sentidos lo convierte en un período particularmente rico
para el estudio de las relaciones entre política y literatura, que aquí limitare-
mos a lo que se refiere a la gran empresa a que el país se veía abocado: la
intervención en África, donde tras el fantasma de un imperio se jugó y perdió
la independencia nacional, un juego del que Portugal era consciente y sobre
el que se vertieron ríos de tinta antes que de sangre3.

Gloria y riqueza
La gloria que se deriva de la conquista, la riqueza que se arranca a los
conquistados y la civilización (religión, modos políticos) que extienden los
conquistadores, han sido y siguen siendo los tres modos fundamentales de
justificar el imperialismo, y se trenzan repetidamente en la poesía sobre el
imperio portugués, sea en encomio o en sátira. La tradicional glorificación
del dominio de otros pueblos, como digno de elogio per se, es ingrediente
mostrenco siempre disponible para el panegírico de grandes señores, de
modo que con frecuencia aparece en el exordio de obras de índole tan
inopinada como pueda ser la égloga. El imperio no se somete aquí a ejercicios

2 Buescu, en un trabajo de suma importancia pero de objetivos muy distintos de los nuestros de
hoy («A persistência da cultura manuscrita…», pp. 26-27) recuerda que la censura era igual-
mente ejercida sobre el livro manuscrito, y que el Rol dos livros que neste reino se prohibem (1564)
establece sanciones «para quem divulgue ilicitamente livros escritos de mão». A la amistad de
Vanda Anastácio debo la información de que la Inquisición portuguesa emitía licencias para leer
en público textos manuscritos, y que Pedro de Andrade Caminha disfrutó de una de ellas. Ello
equivale a una censura sobre lo manuscrito y hasta sobre lo oral. También en España hay
referencias a “papeles de mano” en los índices del Santo Oficio (Bouza, Corre manuscrito…, pp. 67-
68). Naturalmente, ni el legalismo extremado de quienes buscaban tales permisos ni el celo de
quienes perseguían tales papeles resisten la comparación con el escrutinio de que es víctima el
impreso frente a la libertad del manuscrito.
3 Al hablar de manuscritos hay que considerar, desde luego, cuanto nos ha llegado en copias de

volúmenes misceláneos, cancioneros y hojas sueltas, pero también aquella poesía, generalmente
de poetas mayores, que anda impresa desde el siglo XVI, siempre y cuando su carácter (y a veces
la existencia de copias manuscritas) haga pensar que en esta forma circularon por primera vez.
Es el caso de António Ferreira y de Diogo Bernardes, cuya producción poética, y concretamente
sus cartas a los poderosos, era bien conocida en manuscritos en las décadas de los 60 y 70,
aunque no fuera impresa hasta los años 90.
José Miguel Martínez Torrejón 197
de justificación, sino que llena un discurso hecho de retazos épicos, donde no
se puede omitir el temor que se infunde al enemigo, aunque sí se suelen dejar
en el tintero los motivos por los cuales se le llama así; son éstas cuestiones
resueltas en la memoria colectiva por siglos de tradición, y que no requieren
examen. Es el caso de la Célia de Sá de Miranda, cuya dedicatoria al infante
D. Luis celebra la participación de éste, junto a Carlos V, en la toma de Túnez
(1535), donde «temblaban africanos corazones» a la vista del nuevo cruzado
victorioso. También la dedicatoria de la Fábula do Mondego al rey D. João III
se extiende por todos los tópicos del caso: el rey se ha llenado de trofeos,
usando el valor de «los portugueses, a que nada espanta»; los dioses aprue-
ban su acción y acuden en su ayuda: Neptuno les da mar serena, Eolo vientos
favorables, Marte sus armas; ya en clave cristiana, la empresa es «santa» por
ser contra el Turco, que ya huye amedrentado. Todos son elementos que
constituyen el entramado mínimo de la poesía épica, y que encuentran en los
exordios de las églogas un terreno abonado para su cultivo, pues la contrapo-
sición pastoril/militar facilita la función retórica de la captatio benevolentiae:
el poeta bucólico se disculpa ante el poderoso mediante la excusatio propter
infirmitatem.
En este discurso glorificador, la riqueza de las tierras conquistadas asoma
en ocasiones como motivo de la conquista. Así, en el soneto panegírico que
Diogo Bernardes dirige al conde de Atouguia, virrey de la India, con ocasión
de su segunda partida (Rimas várias); le alaba como gobernador y como
guerrero: Numa y Marte; le augura que se le rendirán sin pensarlo sus enemi-
gos, «os que bebem no Gange, os que no Indo», mientras que los que habitan
a orillas del Éufrates tiemblan ya. Tanta gloria no le impide señalar, sin
embargo, lo que se espera de su regreso: de aquellas partes de Oriente, «onde
tão raros dões o Céo reparte», en Lisboa se esperan «mil palmas, mil tributos
novamente». El imperio ultramarino es, en efecto, riqueza, y es timbre de
gloria para Lisboa que su opulencia venga de lejanas colonias, concretamente
de Oriente. El hecho es el principal motivo del elogio de la ciudad en la
epístola que Pero da Costa Perestrello dirige, después de la unión ibérica, a D.
Cristóbal de Moura, ya Marqués de Castel Rodrigo:
Metrópoli do reino cujo estado
das praias do Occidente outro Emisferio
nas ricas do Oriente tem ganhado… (Obras inéditas, pp. 31-35)
En el imperio en que no se pone el sol se fundamenta la riqueza y el
carácter metropolitano de la ciudad, que se puede comparar a un «mundo
abreviado», gracias a «os impérios, e a corrente/ que de várias Nações nella
198 Paratexto

se encerra», más concretamente «… as entradas de cada ano/ de perlas e


riquezas orientaes,/ tributos mil do ceptro soberano…». En el mismo tono se
dirige Pero da Costa Perestrello a Felipe II (Obras inéditas, 45-46) como dueño
del mundo a quien se someten todas las «bárbaras nações»; a las tres partes
del mundo antiguo (Europa, África, Asia) se añade ahora América:
que a nova região, grão tempo ignota,
rica de perlas e fonte d’ouro e prata
gozas cada anno na ligeira flota…

Poco hay de sorprendente en estas visiones del imperio. La asociación de


lo glorioso con lo militar, de lo militar con lo económico es tan común en lite-
ratura como en la vida, y el imperio portugués no produce una poesía diso-
nante: la opulencia, la distancia y el carácter exótico de las empresas asiáticas
les confieren una grandiosidad apropiada para el panegírico de reyes, donde
no hay mucho margen para la disonancia. Muy distinta será la situación en el
más cotidiano y familiar norte de África, donde los vaivenes de la política
complican notablemente las cosas en las décadas centrales del siglo XVI.

África nuestra
Recordemos, aunque sea historia muy sabida, cómo en el XV la corona
portuguesa pone en circulación la idea de que Marruecos (por eso mismo
Algarves d’alem mar) es terreno natural para la expansión del país. Se trata de
obtener fervor popular para la conquista de las que por eso se llamaron
“fronteiras”, un rosario de fortalezas costeras que habrían de servir como
puertas para la penetración comercial hacia el interior, de donde vendría el
siempre necesario trigo, y de bases donde hacer pie en el camino hacia el sur,
en busca de las rutas del oro. En el siglo XVI, al tiempo que el Brasil y la India
cambian el panorama colonial portugués, las fronteiras de la costa sufren la
presión creciente del poder militar de la nueva dinastía sa’adí, unificadora de
los antiguos reinos magrebíes, hasta que llegó el momento en que el beneficio
que reportaban estas avanzadillas no compensaba el costo material y militar
de mantenerlas. Juan III, tras perder Santa Cruz (Agadir), abandona Safim y
Azamor en 1541; en 1549 y 1550 siguen Alcácer Ceguer (El Jadida) y Arzila;
quedan sólo Ceuta, Tánger y Mazagón. Queda también el resentimiento en
aquellos para quienes, menos atentos a los aspectos económicos y estra-
tégicos del sistema colonial y más a los laureles militares de la conquista por
sí misma, sienten ante todo la herida de la retirada. El partido belicista dará
José Miguel Martínez Torrejón 199
mucha guerra en las próximas décadas, azuzando a la corona, incendiando
con ideas patrióticas y de cruzada el espíritu popular, y conduciendo el país a
su destrucción en Alcazarquivir.
Las polémicas en torno a Marruecos durante los reinados de Juan III
(1521-57) y D. Sebastián (1557-78) generan un abundante corpus poético
manuscrito, a juzgar por la porción que se ha conservado. Juan III, cuyo
carácter pacífico es loado por algunos, es también objeto de sátira mordaz,
por haber abandonado las plazas de África que sus antepasados conquis-
taron con tanta gloria. En ese contexto hay que situar unas Coplas à deixada
de Arzila, que han llegado a nuestros días en dos versiones muy parecidas;
la comparación de las mismas revela que proceden de una tercera, apuntando
a una difusión más extensa de lo que hoy podemos medir. La versión más
completa se encuentra en la Miscelánea Pereira de Foyos, donde mantienen su
forma de glosa a diversos versículos de las Lamentaciones. El largo lamento
por el abandono de Arzila nunca considera esta plaza como colonia ni parte
de un imperio ultramarino, sino como parte integral de Portugal cobardemen-
te entregada al enemigo. De este modo se va desgranando una descripción
imaginaria de lo que fue una hermosa ciudad portuguesa, llena de actividad
y rodeada de fértiles campos, mientras que ahora todo es abandono:
ventanas sin doncellas, calles sin caballeros, campos desiertos y sin cultivos.
La sonoridad plúmbea de las octavas de arte mayor reviste la despedida
de fúnebre solemnidad:
Estão os campos d’Arzila chorando
porque não vêem os seus cavaleiros,
que d’armas luzidas, cavalos ligeiros,
soíam por eles correr pelejando.
Os prados adonde se via pastando
doméstico gado, fermosa boiada,
neles não passa besta domada:
brutos monteses os ficam logrando.
As moças d’Arzila se foram chorosas,
deixaram desertas as suas janelas,
onde os mancebos as viam a elas
em dias alegres, louçãas e fermosas.
Fermosos pomares e casas vistosas
ficaram moradas de bárbara gente,
ficam-lhe campos de muita semente,
cheos de rios e fontes sombrosas.
200 Paratexto

El carácter intrínsecamente portugués de la ciudad se afirma recordando


lo más sagrado: las iglesias, que pronto serán mezquitas, los sepulcros, que
serán profanados, sus huesos esparcidos. Además de procurar un efecto
patético, se alude así a un importante aspecto legal, puesto que la existencia
de antiguas iglesias transformadas en mezquitas había sido la condición
impuesta por el concilio de Basilea en 1437 para reconocer como justa la
conquista de Tánger4. En la común construcción legalista en que se inscribe
el poema, el Imperio Romano, convertido al cristianismo, había sido el últi-
mo dominio legítimo, usurpado por el islam y restaurado por Afonso V y sus
héroes, cuya memoria se invoca para más cargar de ignominia a João III y sus
pacifistas. Desde esta perspectiva, la conquista de Arzila y todas estas plazas
por los portugueses no habría sido más que recuperación de lo propio por
parte de uno de los herederos de Roma. Con ello se puede afirmar, sin probar-
la mayormente, la justicia de esta guerra y de esta propiedad ultramarina:
Não há nenhum reino que tenha conquista
com tanta justiça de todos louvada,
tão pouco ambiciosa e tanto forçada
qual tem Portugal diante da vista.
Nem vemos província de paz e bem quista,
com toda nação como a lusitana,
sem outro contrairo senão mauritana,
que reina por falta de quem lhe resista.

No hay lugar para más discusión: el dominio de los moros es ilegítimo


(tiránico, en la terminología del momento), y sólo se mantiene por falta de
oponente militar; su derrota confirmará la justicia del dominio portugués.
El militarismo excusa de la sutil argucia jurídica, de la necesidad de referirse
específicamente a los antecedentes romano-cristianos de Marruecos. El poeta
acaba, sin embargo, por doblegarse a reconocer la existencia de una realidad
política cuando recuerda el valor estratégico y económico de la plaza:
e sempre os vezinhos na guerra ajudaste
e só mil vitórias houveste vencendo.
Assi o ganhado que temos perdendo
de ti se restaure com ganho dobrado
e o orbe africano por ti sogigado
chegue às estrelas teu nome crecendo.

4 Oliveira Martins, História de Portugal, pp. 178-179. Bebiano, A pena de Marte, pp. 132-135.
José Miguel Martínez Torrejón 201
Las múltiples estrategias de Don Sebastián: colonia, cruzada
y cambio de régimen
La atención a África se redobla desde el principio del reinado de D. Sebas-
tián. El terrible cerco que sufrió Mazagón a manos del Jarife Muley Mahomet,
en 1562, cuando el Rey contaba ocho años, costó muchas doblas y muchas
vidas portuguesas, confirmando los temores sobre las amenazas a que estaban
expuestas las plazas marroquíes, y dando ocasión al partido belicista para
insistir en la necesidad de reforzar la presencia lusa en esa costa. Los panegíri-
cos de D. Sebastián se llenan de alusiones por ese lado, especialmente cuando
a los catorce años se le declara mayor de edad y toma el gobierno de la nación.
Pero no todo es entusiasmo. Así, «um autor incerto» le dedica al Rey, el
día que tomó el gobierno (20 de enero de 1568), un soneto que se abre con el
reconocimiento de que el cetro que recibe es «imperial», es decir, destinado
a un dominio multinacional, y se cierra con el augurio de «que Deos vos faça
em África imperar». Pero el grueso del poema está en realidad dedicado a
darle unos consejos de buen gobierno que parecen contradecir esa visión
gloriosa de las conquistas:
Governai vosso povo, desejoso
de obedecer a rei tão desejado,
amai-o como deles sois amado,
que nisso está o serdes poderoso.
Justiça a todos usai igual, senhor,
prudência no enleger e reprovar,
fortaleza no batalhar e vencer,
temperança no amor e desamor,

El poder de un rey se mide por el amor a su pueblo, a cuyo gobierno debe


aplicar las cuatro virtudes. Frente a tan sólidas como antiguas recomenda-
ciones, el deseo de que este rey extienda su imperio, confiado exclusivamente
al favor de Dios y no al mérito o esfuerzo del monarca, suena a hueco en los
últimos versos de este minúsculo regimen principum: «que Deos vos faça em
África imperar/ e epitheto de grande merecer».
Sospecho que este soneto anónimo, del cual se han conservado al menos
tres copias manuscritas, podría ser de Antonio Ferreira, cuya famosa Carta al
mismo rey comparte con él tono y frasis. Ambas composiciones tienen su
más antiguo testimonio escrito en la cabecera de la Miscelânea Pereira de
Foyos, compilada en el curso de varios años hasta el crucial verano de 1577,
cuando las voces de la moderación se afanan por detener el fatídico desenlace
202 Paratexto

que tendría lugar un año después.5 La Carta de Ferreira, primer elemento


recogido en la Miscelânea comienza por elaborar el tema convencional de la
recuperación del reino y la expansión militar en el Norte de África, con ayuda
divina. Portugal y la India no son consideradas metrópolis y colonia, sino en
pie de igualdad, partes de un mismo imperium, y ambos dominios deben ser
extendidos a partir de nuevas conquistas:
En tanto que este povo e o do Oriente
novo acrescentamento por ti esperam
d’outros reis, d’outra terra, d’outra gente.

Pero el tono belicoso no pasa del exordio. Ferreira se sacude pronto lo


que parece un tema obligado afirmando, mediante un topos habitual en los
exordios bucólicos, que la gloria de las conquistas dará un día tema a los
cantores épicos, pero que por su parte sólo aspira a detener por un momento
la marcha imparable de su rey. La imitación del socorrido topos termina aquí,
pues lo militar no se debe detener para descansar con el entretenimiento de
lo pastoril, sino para escuchar «as verdadeiras guias» de la gloria, que no son
sólo las guerreras («não duras armas só, velas ligeiras»). Antes de elaborar
sus recomendaciones sobre lo que el Rey debe hacer, el poeta se detiene a
recordarle lo que debe evitar, y lo primero es la literatura, concretamente la
poesía épica, comparable a la engañosa pintura, que finge profundidad y
distancia en la superficie plana de un lienzo. Se destruye así el efecto del gran-
dilocuente exordio y todo su contenido: en el mundo real, advierte Ferreira,
arte y maña son más fuertes que las armas. Las monarquías, además, fueron
establecidas por Dios para guardar la justicia y la paz, únicos motivos de que
la gente se someta a un rey, comparado a un buen pastor. Sobre estas líneas
claramente erasmianas, el regimen principum de Ferreira, extensamente desar-
rollado en el resto de la carta, se puede reducir a un solo tema: el manteni-
miento de la paz como única tarea del buen gobernante. No sorprende que los
últimos versos evoquen, como el mejor modelo para D. Sebastián, la memoria
de su «mansíssimo avô», el mismo Juan III tan zaherido por otros por haber
abandonado las plazas de Marruecos.

5 El soneto se encuentra en el CCB, 16v; MFoyos, 5v y en CCM, 202r y repetido en 172r (copia
directa de la MFoyos). La Carta de Ferreira, además de MFoyos, 1r-4v, y en CCM, 167v-172v, se
imprimió en los Poemas lusitanos (1598), organizados, y quién sabe cuán modificados, por el hijo
del poeta, Miguel Leite. Finalmente, Faria e Sousa se la atribuye a Camões en la Terceira parte das
Rimas (1668); ver la edición crítica de Earle (pp. 313-319), quien considera que hay que datarla
durante la infancia del Rey.
José Miguel Martínez Torrejón 203
También Pedro da Costa Perestrelo dirigió a D. Sebastián una Carta, que
no se imprimiría hasta 1629, incluida como anónima en la Miscelânea de
Miguel Leitão de Andrada; su rúbrica hace referencia al hecho de haber sido
entregada al Rey en mano por un «Mestre Ignácio Martins, da Companhia de
Jesú»6. Perestrelo, que escribe sin duda después de Ferreira, y por tanto más
cerca de la catastrófica expedición de 1578, carga más las tintas contra la
guerra. Afirma sumariamente la obligación que tiene todo rey de hacer
prosperar sus estados y ser justo con sus súbditos, para pasar enseguida a
desenmascarar la atractiva imagen de la guerra,
doce vista a aparencia,
terrivel, fea, fera e espantosa
a quem dela tem mais experiencia;
em aparato e resplandor famosa,
nos efeitos cruel serpe maligna, etc.

Estas observaciones tradicionales se estrechan gradualmente en torno a


D. Sebastián: sólo a quien no la vivió le parece atractivo el ruido de la guerra;
el joven, por naturaleza impulsivo e inexperto, no sabe a lo que se lanza
cuando corre «com fúria juvenil ao que não vio». Sigue una lista de exempla
traídos de la antigüedad: son todos reyes ambiciosos que, ignorando la pros-
peridad nacional, intentaron apropiarse de reinos ajenos y fueron por ello
castigados. El antiimperialismo se pone así al servicio del antibelicismo; a las
desgracias de Jerjes (que «quiz conquistar Grécia com porfia/de tomar para
si o que era alheo,/tocado de soberba e frenezia»), a las de Ciro, Alejandro,
Pirro, siguen las más cercanas de Carlos el Temerario y las de Juan I de
Castilla, que quiso ser rey de Portugal y fue derrotado en Aljubarrota, las de
Alfonso V de Portugal, que quiso ser rey de Castilla y fue derrotado en Toro,
y las de Francisco I, que vivió siempre en guerra a causa de pretender la pose-
sión de Italia, en lugar de bien gobernar Francia. Todos ellos ignoraron que
O bem ganhado na concórdia crece,
e na discórdia tanto se consume
quanto na doce paz e amor florece.

6 Miscelânea, pp. 149-155; Leitão de Andrada da a entender que hubo otros muchos manuscritos
anónimos: «Outros muitos pera isso se buscarão, sem nada aproveitar: té que um dia lhe meteu
a mão o Padre Mestre Ignácio Martins, da Companhia de Jesús, e havido por santo, esta carta,
pedindo-lhe a lesse». António Lourenço Caminha (en 1791) es quien primero atribuye esta carta
a Pero da Costa Perestrello, ignoramos con qué fundamento.
204 Paratexto

Junto a estas voces que con tanta cautela piden moderación, suena una
poesía anónima que con muchas menos contemplaciones viene a exigir los
mismos fines: más atención a cuidar del reino y menos a extender el imperio.
La política africana será el mayor objeto de disidencia: esas bélicas empresas
que están arruinando lo que había de imperio ya establecido. Ése es el sentido
de una versión de las coplas de Jorge Manrique por la muerte de su padre,
contrahechas ‘a lo colonial’, de las que se conservan al menos dos copias en
cancioneros de primera importancia7:
Recuerde la India dormida,
o bom Rey, con braço fuerte,
contemplando
como la tienes perdida,
o venga quien la despierte
batallando.
Todo lo vemos perder,
lo por ganar y ganado,
ques peor,
y a nuestro parecer
el menor hecho pasado
fue mejor.

Al revés que en el discurso del “velho do Restelo” (Lusiadas, IV, c,ci), que
critica la expedición a la India como insensata porque aquí al lado, en
Marruecos, está el imperio natural de Portugal, estas coplas lamentan que lo
ya conquistado (aunque esté lejos) se abandone en favor de otras empresas
menos fructíferas (aunque sean cercanas). También los anónimos Avisos ya
mencionados al principio de este estudio, se refieren oblicuamente a la pér-
dida de la India como parte del desgobierno de un Sebastián metamorfo-
seado en pastor, en mal pastor que se rodea de malos zagales:
Los términos que estendieron
esos antigos pastores
en tu tiempo son menores
y los vesinos crecieron.
Los zagales comarcanos,

7 LFC 198v-200. Estas coplas son de h. 1550, pues están también en el ms. Asensio. Con todo, su
presencia en el último tercio del LFC (1557-1589) demuestra que el tema seguía siendo de interés
en las décadas siguientes.
José Miguel Martínez Torrejón 205
si vinieren a las manos
no hallaran resistencia,
pues no saben tu presencia
los tuyos a ti cercanos. (I, 91-99)

Mucho más grave es que ese abandono del reino propiamente dicho se
haga en favor de alocadas empresas de expansión:
Tus tierras guardar no puedes,
quieres ganar las agenas. (I, 152-153)

En la segunda serie de los mismos Avisos, escrita y puesta en circulación


en 1577, ya entre los preparativos para la definitiva jornada de África, se
redoblan los peligros8:
Por solos tres pareceres,
que no valen cuanto uno,
aventuras de consuno
nuestra vida y tus poderes.
Claro está ser desvarío
querer perder lo que es mío
sólo por ganar lo ageno:
mete la mano en tu seno,
contempla tu señorío. (II, 19-27)

Papeles bien inclinados


Si el sentir de unos reacciona de este modo, la contraofensiva de los otros
no se hará esperar. Y aunque la imprenta será el medio preferente para
difundir el parecer de los poderosos, el manuscrito será también forma eficaz
de propagar su programa belicista. En ocasiones se tratará de poetas adu-
lando al rey y a sus validos; otras veces el poema se debe al encargo directo de
los mismos. Caso complejo en este sentido es el de Diogo Bernardes, cuya
constante súplica de que algún mecenas le saque de la penuria económica
es bien conocida, a pesar de que el cantor del Lima ocupaba en la corte de
D. Sebastián un puesto que otros poetas envidiarían; su empleo de ayuda de

8 Uno de los manuscritos atribuye estos versos a Francisco de Aldana, que estuvo en Lisboa en el
verano de 1577, otro, más tardío, dice que se las entregó al Rey un jesuíta, con ocasión de su ida
a África.
206 Paratexto

cámara le aseguraba un decente pasar, a cambio del cual contribuyó con sus
versos al magno proyecto colectivo de instalar a D. Sebastián en brazos de la
fama con imagen de héroe épico. Este papel de poeta cuasi oficial podría
explicar la participación de Bernardes en la embajada de Pero de Alcáçova
Carneiro a Madrid, que cantó largamente en endecasílabos. Del mismo
modo, Bernardes aspiraba a recibir el encargo oficial de escribir un poema
épico sobre la que habría de ser victoriosa jornada de Marruecos, donde
quedó cautivo. A su regreso, en cambio, derramó en sonetos y elegías toda la
amargura acumulada en sus años de cautiverio, pintando a D. Sebastián
como rey irresponsable y adalid de una empresa tan errónea que mereció el
castigo de Dios9.
Bernardes, por lo demás excelente poeta lírico y moral, sabe ponerse a la
altura cuando se trata de hacer poesía de circunstancias. Lo había hecho ya
cuando con ocasión de la muerte de Juan III le dedica una elegía en que este
rey aparece incongruentemente como un imperial difusor del cristianismo,
famoso por sus conquistas:
Quantos milhares d’almas do escuro
lago de perdição tornou à luz
do teu ardente zelo o raio puro?
Quantos adoram hoje a Santa Cruz
que se por ti não fora a perseguiram,
onde mais arde o sol, onde mais luz?
Em qual parte do mundo não se viram
as tuas reais quinas levantadas?
Quais forças às tuas forças resistiram?
Digam-no tantas gentes conquistadas,
bárbaras de nação, de leis perversas,
por ti vencidas, por ti doutrinadas:
Mouros, Turcos, Árabes, Indos, Persas,
Destes y d’outros muitos triumphaste,
de várias linguas, de regiões diversas. (95)

Esta mezcla de imperio poderoso con imperio civilizador/cristianizador


aflora de nuevo años después, en la carta que dirige a Cristóbal de Távora, el

9 Sobre la penuria económica de Bernardes, véase Graça Moura, «Camões e o mecenato». Su carta
a João Rodrigues de Sá de Meneses sobre la embajada a Madrid («Senhor, pois me mandais, inda
que vejo») fue recogida en O Lima, Carta XXXII. Sobre los matices con que poetas y cronistas,
incluyendo Bernardes, trabajan la imagen de D. Sebastián tras Alcazarquivir, puede verse mi
«Silencios, sigilos y sordinas…».
José Miguel Martínez Torrejón 207
más poderoso de los validos de D. Sebastián, para consolarle de ciertas difi-
cultades no dichas («Esperando que desse o tempo leve», O Lima, Carta XV).
Las críticas recibidas por el Távora, dice Bernardes, no deben preocuparle,
pues la fama duradera siempre depende de la virtud, y la suya está fuera de
toda duda en la consideración del Rey. Ello le da ocasión para un apóstrofe a
primera vista extemporáneo en que, «do grão furor d’Apolo arrebatado», se
dirige a D. Sebastián para exhortarle a la guerra: será Cristo mismo quien la
haga, a través de él. La invasión de Marruecos se justifica así como misión
divina, pero no se olvida su lado económico, pues la conquista del Atlas le
permitirá traerse «aquelas maçãs d’ouro», no por míticas menos simbólicas
de real riqueza. Podrá también señorear con su bandera «mil torres»:
as villas, as cidades populosas
vereis meter a saco, a ferro, e a fogo,
as rendidas a vós serão ditosas.

El poeta declara que ya está pidiendo a Dios ayuda para cantar la futura
empresa africana de D. Sebastián. Y no es poco el servicio que ofrece, pues,
concluye Bernardes retomando un viejo tópico, su poesía será capaz de
oscurecer las antiguas epopeyas, y con ella, y sólo con ella (pues la fama
nunca depende del hecho mismo, sino de cómo se publique), la empresa de
D. Sebastián superará las de los héroes de la Antigüedad.
Alejada del panegírico convencional, la Égloga XV, «Peregrino», debió
ponerse en circulación manuscrita poco antes de Alcazarquivir. Presenta dos
‘cortesanos disfrazados de pastores’ (que diría Cervantes) en el acto de con-
versar sobre cuestiones candentes de la corte. El quejoso pastor Limiano,
trasunto del poeta, ha regresado a orillas de su Lima después de larga estancia
junto al Tajo (en la corte), desde donde añoraba su tierra, pero aquí sólo le ha
recibido la dureza e ingratitud de sus paisanos. Se encuentra con Peregrino, a
quien conoce de vista, que acaba de llegar de junto al Tajo, donde estaba
buscando consuelo a su desgraciada vida amorosa en la Sierra da Estrela,
pero como no lo ha encontrado va ahora a visitar la tumba de Santiago en
Galicia. Limiano, que no se queja de amores, sino de desencantos más
materiales, le pregunta ansioso por las últimas noticias, es decir, el rumor
Que diz que o grão pastor dos Lusitanos
da larga foz do Tejo
com fato e com cabana
passa nos largos campos africanos,
onde mil soberanos
208 Paratexto

triunfos, dele dignos,


lh’ ordena a fatal sorte,
con grande estrago e morte
de brutos, mal nascidos sarracinos,
que, de si despejados,
os currais deixarão cheios de gados.

África se presenta así como última alternativa al doble desengaño que


Limiano ha sufrido, primero en la corte y después en la aldea, y no es de
desechar la promesa de ganados abandonados por los sarracenos fugitivos,
en un sorprendente reconocimiento de que las riquezas que allí se hallarán
tienen dueño; la guerra le proporcionará, a la vez que gloria, la riqueza que
no ha conseguido hasta ahora:
Que sendo assi te digo
que não espero mais
nesta pera mim sempre ingrata terra

Logrem-te meus imigos,
o valles e pacigos
desta onde naci, fresca ribeira,
na qual, se não m’engano,
inda será chorado Limiano!

Peregrino no cambia su ruta tras esta arenga, pero le confirma a Limiano


los rumores y le recomienda prepararse para la guerra:
Todavia, de funda e de cajado
te vai apercebendo a som de guerra,
que não foi tal pastor cá do Ceo dado
pera não dar ao céo tam larga terra.

Con estos versos que cierran la égloga, visible herencia del exordio de Os
Lusiadas, se justifica el imperio desde la perspectiva religiosa y se señala a
D. Sebastián como el regalo del cielo predestinado para la empresa. Ahora
bien, esta postura es contradicha en el cuerpo de la égloga, donde la pobreza
y el desasosiego que dominan en la propia casa son los determinantes de la
huída a África. Diríase que Bernardes introduce forzadamente lo que cree
que se espera de él, o que, al contrario, los fuegos de artificio del exordio y
epílogo sirven para cubrir una sutil insinuación contenida en la égloga: la
guerra es buen modo de huir de los problemas domésticos, sea esto dicho con
o sin ironía.
José Miguel Martínez Torrejón 209
Papeles de encargo
Las aspiraciones africanas de D. Sebastián reciben un empuje decisivo e
inesperado en 1576: la guerra civil de los sultanes marroquíes se había
saldado a favor del Maluco (Abd-el-Malik), que con ayuda de los turcos de
Argel había logrado expulsar a su sobrino de Fez, Marrakech, Sus y Tarundate.
El destronado y fugitivo Xarife (Muhammad), conocedor de las ambiciones
de D. Sebastián, pensó obtener su ayuda (y a través de él, la de Felipe II, que
ya se la había negado) para recuperar los reinos de su padre. En sucesivas
ofertas, le prometió algunas plazas costeras, asegurándole también que el
pueblo marroquí se levantaría contra el tiránico Maluco en cuanto supiera
que los portugueses habían desembarcado; el ejército cristiano sería acogido
como liberador en todos sus reinos. Por último, el Xarife prometía hacerse
cristiano y vasallo de D. Sebastián, quien podría coronarse emperador en Fez.
El viejo sueño de la cruzada hacia Tierra Santa por la vía del norte de Africa,
el camino de la monarchia universalis centrada en Jerusalén, se echaban así a
los pies del rey portugués, que no podía desear mejores argumentos para la
invasión, pero que seguía necesitando la ayuda de su tío castellano; a partir
del verano de 1576 su ofensiva diplomática en este sentido se recrudecerá, y
con ella su parte literaria.
Al menos dos poemas extensos, dirigidos en forma manuscrita a Felipe
II, parecen haber sido comisionados por D. Sebastián y escritos a propósito
de la proyectada ‘Jornada de África’. El primero de ellos es la Felicíssima
Victoria… de Jerónimo de Corterreal, único poema épico en castellano de su
autor, que rodea de peripecias alegóricas, mitológicas y amorosas el relato de
la batalla de Lepanto, haciendo demorada descripción de las crueldades de
los turcos en Chipre. Se conserva en un lujoso códice, ricamente encuader-
nado, con impecable caligrafía y bellas ilustraciones de vivos colores, todo
ello de mano del propio Corterreal, según declara en su epístola dedicatoria.
Sabemos que no perteneció a la biblioteca del Escorial, sino a la personal de
Felipe II, quien en noviembre de 1576 escribió carta de agradecimiento al
poeta. Todo lleva a pensar que el portador del manuscrito fue Pedro de
Alcáçova Carneiro, quien estuvo en Madrid entre julio y octubre de 1576
como embajador extraordinario para concertar el encuentro de los reyes en
Guadalupe, que tendría lugar esa Navidad, y comenzar las negociaciones en
torno a los dos temas que habrían de tratarse en la entrevista: el casamiento
de D. Sebastián con una hija de Felipe II y la participación de éste en la
proyectada invasión de Marruecos. El precioso regalo formaría así parte de la
estrategia de D. Sebastián para inclinar el ánimo de su tío en pro de la guerra
210 Paratexto

conjunta contra el infiel: recordarle el emblemático triunfo alcanzado en


Lepanto seria óptimo modo, de eficacia comprobada por siglos de poesía
épica, de animarle a repetir la hazaña en Marruecos.
A Francisco de Aldana le tocará dar el siguiente paso en esta cons-
trucción de la ‘Jornada de África’ como el segundo acto de la total derrota del
turco que se había iniciado en Lepanto. El poeta hispano-italiano estuvo casi
todo ese año en Madrid, formando parte de la clientela y servicio del duque
de Alba, quien a su vez fue el encargado de actuar como huésped del emba-
jador portugués y su numeroso cortejo. De ese contacto de tres meses entre
Aldana y los enviados portugueses (entre los cuales había por lo menos un
poeta cortesano: Bernardes) surgen las «Octavas a Felipe II», cuyo único
manuscrito conservado Aldana firmó precisamente en octubre de 1576. Es
un poema extraño en la producción del poeta, que ha sorprendido a sus
críticos por su extremado militarismo, contradictorio con lo que andaba
escribiendo por aquellos días. Aldana, sin haber estado en África y mostran-
do en el tema un interés que ninguno de sus contemporáneos españoles tiene,
intenta nada menos que persuadir a Felipe II de la necesidad de intervenir en
Marruecos de forma inmediata, y para ello utiliza los argumentos que
podrían hallar oídos en Madrid más que los que procedían de Lisboa. Sin
duda lee a Corterreal y le toma prestadas imágenes, ideas y expresiones, pero
el suyo no es un poema épico, sino un análisis político en verso, donde la
invasión se pinta como esencial para la supervivencia del imperio global de
Felipe II, identificado con la universal república cristiana. No hacer nada en
1576, cuando los turcos, a cambio de su ayuda al Maluco, están por obtener
una salida al Atlántico, es quitar la piedra angular de un edificio universal que
se derrumbará pieza a pieza10.

10 Parker (1998) ha estudiado la red de conexiones entre los diferentes aspectos de la política
internacional de Felipe II, esa «gran estrategia» que llega a abarcar la totalidad del globo. El
poema de Aldana, mostrando todas esas conexiones simultáneamente, vendría a confirmar la
visión de Parker como moneda corriente en la corte de Felipe II. Las preocupaciones de tío y so-
brino con respecto del Norte de África, en efecto, no eran las mismas: mientras que las fronteiras
tenían (o habían tenido) un valor colonial para Portugal, como inicio y apoyo de su expansión
atlántica, el Estrecho seguía siendo para España el final del Mediterráneo, interesaba dominarlo
para mantener a los turcos encerrados. Son los turcos quienes preocupan a Felipe II, no los
moros de la costa atlántica. Pero si el Maluco se mantenía en los tronos magrebíes no tendría
más remedio que cumplir sus promesas para con los turcos que le habían ayudado a conquis-
tarlos, empezando por entregarles el puerto de Larache. Esto abriría una caja de Pandora que
Aldana describe con los detalles de estratega internacional que convienen al oído de Felipe II:
José Miguel Martínez Torrejón 211
Es más que probable que el extenso poema de Aldana fuera concebido
como continuación del de Corterreal, y el parentesco entre ambos se reata un
año después: en junio de 1577, para más certificar su poco entusiasmo por los
planes de su sobrino, Felipe II envía a Lisboa al propio Aldana, a quien antes
ha tenido tres meses espiando en el reino de Fez; su cometido es convencer al
rey portugués de que la invasión, proyectada para ese mismo verano, es poco
menos que imposible. Siguieron dos semanas de conferencias y consultas,
hasta que en vista de lo atrasados que estaban los preparativos, los propios
validos de D. Sebastián le forzaron a posponer la empresa hasta el año
siguiente. No debe ser coincidencia que los dos poemas resurjan enseguida:
en el mismo mes de septiembre, Corterreal obtiene licencia para imprimir el
suyo, con la carta de Felipe II al frente; le añade también, al final, cuatro
octavas reales en portugués, en que hace el panegírico de D. Juan de Austria.
Tratándose del héroe del poema, resulta anómalo este elogio en apéndice;
pero lo es menos si lo vemos en relación con las octavas de Aldana, que, tras
pintarle a Felipe II el paisaje desolador que se le avecina si no interviene en
África, le recomienda que ponga el ejército en manos de su hermanastro:
«Usa de Juan, tu valeroso hermano,/ nuevo de Jove producido Alcides». En
ese mismo mes de septiembre, el propio Aldana, tras su regreso de Lisboa,
entrega a Felipe II una versión ampliada de sus «Octavas», entre las cuales ha
añadido el elogio de D. Sebastián como el único aliado en quien debe confiar,
y también, como Corterreal, un apéndice de seis octavas en elogio de D. Juan
de Austria11. El interés de ambos poemas en redoblar redundantemente el

los franceses están en tratos con los turcos; si ambos enemigos de España pueden colaborar en
el frente atlántico, no sólo las costas españolas y portuguesas sufrirán su piratería conjunta, sino
que el camino de las Indias se habrá perdido, y las colonias se independizarán o caerán en manos
del enemigo. La debilidad peninsular se traducirá inevitablemente en otros desastres para el
imperio: Italia sacudirá el yugo español, y lo mismo hará Flandes, ayudado por la herética
Inglaterra. Para una interpretación del poema de Aldana (aunque allí le erré la fecha en un año)
véase mi «Aldana, sus reyes…». Corrijo la fecha y lo pongo en relación con Corterreal en
«Ánimo, valor y miedo», donde se hallarán otras referencias útiles.
11 No se ha conservado, o no se conoce, manuscrito de la segunda versión de las «Octavas», por lo

cual es dificil asegurar que llevaba el apéndice sobre D. Juan de Austria. Sin embargo es verosímil
que así fuera: en las distintas ediciones de las poesías completas de Aldana, ordenadas por su
hermano Cosme, estas seis octavas siguen siempre a las dedicadas a Felipe II, con las cuales
muestran gran parentesco de expresiones e imágenes.
Tampoco puede haber duda de que la versión aumentada de las «Octavas» es posterior a la
visita de Aldana a Lisboa, a la vista de expresiones y actitudes de los añadidos coincidentes con
cartas escritas por él desde la capital portuguesa: «Con solo el rey te basta lusitano,/ junto al cual
212 Paratexto

elogio del vencedor de Lepanto se puede entender como otro argumento


retórico destinado a contentar los oídos Felipe II, quien se oponía a que
D. Sebastián dirigiese personalmente el ejército y quería imponer un general
español12.
Lo que Corterreal y Aldana hacen en colaboración, a sabiendas o no, lo
hace a solas otro poema recientemente rescatado del olvido: Los cantos de la
batalla Ausonia, de Pero da Costa Perestrello, cuyo relato sobre Lepanto no
puede menos que incluir referencias a la próxima ‘Jornada de África’, confir-
mando la eficacia de combinar el recuerdo de la victoria del pasado reciente
con la advertencia de que el futuro sigue amenazado por los mismos turcos,
aunque sea desde distinta geografía. Para resolver el peligro, Don Sebastián,
como se venía diciendo desde su nacimiento, es regalo directo de Dios:
Sublime protector al mundo viene,
dando a llorosa Lusitania el cielo
maravilla de Dios en este suelo. (VI.68)

Se le exhorta a pasar a ultramar, y parece que en persona (como él quería):


Agora que en las partes del Oriente
naires, turcos, gentíos conjurados
y crudo Malabar su mano ardiente
aplaca de tumultos levantados,
agora que los moros del poniente
temblando están, por él domesticados,
debaxo de sus alas tan divinas
passemos ultra mar las santas quinas. (VI.69)

os juntó natura propria,/ aquel que enfrena y rige el oceano/ hasta el quemado mundo de
Etiopia:/ gran Sebastián, que sobre el curso humano/ nueva razón de méritos se apropia,/ nuevo
modo de ser, nuevo renombre,/ que excede al hombre como al tronco el hombre./ (¡Oh, si
pudiese ser a lo que excedes/ en merecer los límites mortales/ llegase, alma real, lo que acá
puedes,/ do el valor y el poder fuesen iguales…». (576-588)
12 El siempre victorioso D. Juan de Austria empezaba a resultar incómodo para Felipe II, y hasta

peligroso para la integridad de su imperio. Su ambición, apoyada en su creciente prestigio, le


hacía permanente candidato a coronarse en nuevos reinos. En aquellos días estaba en Flandes,
donde moriría en 1578. Ver Benassar, Don Juan de Austria. Aparte del indicio que proporcionan
estos poemas, no hay noticia de que Felipe II pensara en serio enviarlo a Marruecos, pero valdría
la pena considerar la hipótesis, pues al Rey le vendría muy bien deshacerse de su glorioso y ya
molesto medio hermano poniéndolo ante una empresa portuguesa, de donde no iba a poder
levantarse con ninguna monarquía.
José Miguel Martínez Torrejón 213
Por último, no falta el recordatorio hecho a Felipe II de que se contaba
con él para todo:
Agora que la paz reina en la tierra
de príncipes regida singulares,
donde la suma de virtud se encierra
y tiene la razón justos lugares;
agora que dará la justa guerra
por tierra todo lo que dan los mares,
unida destes príncipes la mano
los ceptros partirán del otomano (VI, 71)

Se trata, pues, de una guerra que iba a rematar, por tierra y en Occidente,
lo que había comenzado por mar y en Oriente. Como en la secuencia
Corterreal-Aldana y como lo imaginaba D. Sebastián, para Perestrello, el
mismo poeta que unos años antes aconsejaba prudencia y buen gobierno,
Lepanto se convierte así en un ensayo o preliminar de la invasión de Marrue-
cos. Que este cambio en la actitud del poeta fuera resultado de las cambiantes
circunstancias político-estratégicas o de la intervención directa del partido
belicista que dominaba la corona, es algo que no podremos esclarecer aquí13.
La ebullición manuscrita sobre D. Sebastián se prolongará durante
medio siglo después de Alcazarquivir, primero ocupando en parte el silencio
impuesto sobre el tema por la unión ibérica y más tarde integrándose con el
mesianismo sebástico y con los deseos de independencia. Todo eso tiene que
quedar también fuera de este estudio. Baste ahora la constatación de que la
poesía manuscrita nos proporciona un punto de vista privilegiado para
tomarle el pulso a un asunto tan debatido como la jornada de África, comple-
tando el retrato de un pueblo en efervescencia de opiniones. Los manuscritos
de la década de 60 y 70 que luego fueron impresos contienen opiniones
moderadas, cuando no la visión oficial que une guerra, gloria e imperio,
mientras que el abundantísimo corpus que no vio la luz hasta siglos después,
o que sigue manuscrito, no se cansa de señalar los peligros de la expansión
imperial de un modo que nunca podría recibir licencias para la imprenta: por
la distracción que representa para el gobierno, el imperio es visto por muchos

13 La oscuridad casi total en torno a la biografía de Perestrello no facilita las cosas. Todo lo referente
a este poema, hasta ahora dado por perdido, estará más claro cuando próximamente Miguel
Martínez, que lo ha buscado y localizado, termine su edición crítica.
214 Paratexto

no sólo como impedimento para la reconstrucción nacional, sino como


irracional empeño de mentes inmaduras e injustas, que aspiran al dominio
por las armas de las riquezas de ultramar, haciendo víctimas a los propios,
abandonados, y a los extraños, agredidos, sin pensar en la justicia de la agre-
sión e ignorando, porque nunca estuvieron en la guerra, que en ella la gloria
se traduce en dolor y miseria.

Abreviaturas y referencias bibliográficas

Aldana, Francisco de, Primera parte de las obras…, Milán: Pablo Gotardo
Poncio, 1589
Aldana, Francisco de, Poesías castellanas completas, ed. José Lara Garrido,
Madrid: Cátedra, 1985
Andrada, Miguel Leitão de, Miscelânea, Lisboa: s.l., 1629
Asensio, Ms. Biblioteca Nacional de Lisboa, COD 11353
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Fernando Pessoa, el nietzscheano involuntario
Pablo Javier Pérez López
Universidad de Valladolid

«On n’est nietzschéen qu’à condition de ne pas avoir lu Nietzsche»


F.P.

Todo aquél lector que se aventura en los universos pessoanos, acaba por
percibir el aroma de cierta atmósfera de nietzscheanismo en los pálpitos e
intuiciones vertebradoras de la prosa y la poesía pessoana. Y sin embargo la
primera sorpresa llega al saber que no hay libros del autor alemán en la
biblioteca personal pessoana y que sólo hay cierta seguridad en la presencia
de uno, posiblemente vendido, una edición española de Así hablaba
Zarathustra, entre las lecturas del autor.
La segunda sorpresa llega al no encontrar afirmaciones explícitas
de adhesión al vitalismo nietzscheano, y aún más allá, pocas referencias a
Nietzsche en sus escritos (pero muchas más de las que se piensa habitual-
mente: alrededor de una treintena), referencias casi siempre críticas y de una
particular y muy perenne hostilidad.
Sin embargo, la cuestión va más allá de estas constataciones primerizas,
aflorando una compleja y ambigua recepción, quizá enmascarada por la
ficción vital pessoana, quizá desvirtuada por un acceso parcial y crítico al
seno del pensamiento trágico nietzscheano.
Primero porque aunque sólo tenemos una fiable pista sobre la lectura
de una edición española de Así habló Zarathustra1, conocemos las lecturas
frecuentes en la Biblioteca Nacional, que en aquél momento ya contaba con
las principales obras del autor y además, porque existe en el espólio una

1 Posiblemente una traducción de Pedro González-Blanco (Cf. Pizarro, p. 96) [Así hablaba
Zaratustra: (un libro para todos y para nadie) / Federico Nietzsche; Valencia: F. Sempere y
Compañía], edición probablemente de inicios de siglo XX (si bien ya circulaban en la época
algunas otras traducciones al castellano –poco fiables– de traductor desconocido). Encontramos

Românica 18, 2009


218 Paratexto

referencia a “Humano demasiado humano” en lo que puede ser un diario de


anotaciones de lectura.2
Además, la complejidad de la recepción aumenta en otra dirección: la
proximidad histórica con Nietzsche. Esta proximidad, Pessoa tiene 12 años
cuando muere el pensador trágico, condiciona en gran medida que el acceso
pessoano sea si no parcial, complejo, en una época donde conviene advertir,
el mensaje nietzscheano, casi profético se expande, difunde y reivindica
desde muy diferentes ámbitos ideológicos y literarios.

Así hablaba Zatahustra en al menos tres listas de libros, siendo especialmente significativa y
curiosa la presente en una de ellas donde la autoría de Nietzsche no está clara ni tampoco el
nombre del profeta zarathustriano del nietzscheanismo:

[48B-62]

[93-100av]

[48-54]
2 No ha sido posible re-localizar en el espólio esta nota suelta.
Pablo Javier Pérez López 219
En el ámbito ibérico son primero las corrientes anarquistas las que
se apropian de la bandera del nietzscheanismo, de una aceptación de la liber-
tad individual, de la crítica del Estado y del cristianismo. Nietzsche en ese
momento histórico, momento de descrédito, de crisis de las instituciones
modernas es recibido como un profeta del hombre nuevo, y del mundo
nuevo (la invención de un hombre nuevo es el tema de la época, tema recur-
rente del socialismo, del liberalismo, de las corrientes anarquistas).
No es sino más tarde cuando se apropian del profetismo nietzscheano
las tendencias fascistas. Es por tanto preciso tener en cuenta que es en este
contexto de lucha irreconciliable y contradictoria de nuevas construcciones
sociales y filosóficas de finales del siglo XIX e inicios del siglo XX en que se
produce la recepción temprana del nietzscheanismo del joven Pessoa (quizá
en su época de máxima jovialidad filosófica recién llegado de África del sur).
Los símbolos y conceptos del nietzscheanismo acríticamente y sin un acceso
a su intuición profunda calan rápidamente, especialmente el concepto de
Super-hombre y de la muerte de Dios. Estas expresiones hacen fortuna, están
en el ambiente, en un ambiente necesitado de profetas, de sembradores de
mitos y de creencias que permitan edificar un mundo nuevo y un hombre
nuevo (recuérdese el hombre nuevo del socialismo).
El nietzscheanismo que está presente en aquél momento es simbólico,
mediado en gran parte por los deseos de cada corriente y de cada individuo
falto de libertad. Este Nietzsche, el Nietzsche que se respira en aquella época
tan próxima a su muerte aún contiene adherencias germanistas, interpreta-
ciones malintencionadas y ediciones muy poco fiables. El nietzscheanismo
está mezclado con decadentismo, con germanismo, con socialismo, en defi-
nitiva con los deseos y las necesidades de una época crítica y convulsa, plural
y deseosa de nuevos valores y de nuevos mitos y símbolos donde asentarlos.
La complejidad de la recepción va más allá aún. Parece claro que no se
produjo una lectura directa exhaustiva, sino, por el contrario, una falta de
contacto directo continuado, y además un acceso al nietzscheanismo a través
de bibliografía pasiva – hecho determinante a nuestro entender para com-
prender la imagen pessoana de Nietzsche.
Aún permanecen en la biblioteca personal pessoana dos libros que tienen
especial importancia para comprender la recepción pessoana: el primero, de
Jules de Gaultier, De Kant à Nietzsche (Paris, 1900 [1-52 BpFP]), ofrece una
imagen relativamente positiva de Nietzsche y en él está especialmente traba-
jado el capítulo dedicado al pensador alemán, pp. 251-333. Pessoa ve en
Gaultier un helenismo que se distancia del nietzscheano y que supone una
220 Paratexto

inspiración para su reconstrucción integral del paganismo: «O hellenismo


buddhista de Nietzsche. (v[ersus] J. de Gaultier)»3.
El segundo libro, aún conservado, que permite un acceso al nietzsche-
anismo es de Alfred William Benn, Revaluations: historical and Ideal (London,
Watts and Co. 1909, [1-8 BpFP]), cuyo capítulo «The morals of an inmoralist:
Friedrich Nietzsche» (pp. 228-280) se encuentra especialmente trabajado.
Este libro, junto con el ya citado de Gaultier, sirvieron de base teórica a
Pessoa para la elaboración conceptual, para la construcción filosófica que
António Mora realiza sobre un nuevo paganismo deslindado de resenti-
miento cristiano4, una traducción conceptual del paganismo instintivo y
anti-intelectual del maestro Caeiro, de su paganismo poético que recupera la
antigua forma griega de filosofar por la poesía5.
Hay, al menos, otros cuatro libros que no se conservan en la biblioteca
actual pero que formaron parte de ella6 y sin los cuales no parece posible

3 Véase el texto número 3 del índice de textos publicados al final de este trabajo.
4 Véase a este respecto [144X-98r] donde el libro de Benn figura en una lista de obras a leer para la
redacción de los Prolegomenos a uma reconstrucção do Paganismo. Obras de António Mora, p. 247.
5 «Na obra de A. Caeiro há mais uma philosophia do que uma arte. Reapparece n’ele a primitiva

grega forma de philosophar pela poesia» [121-53b].


6 *de Roberty. Fredéric Nietzsche [93 -100av]

*Max Nordau, Dégénérescence [144H -24]

*Henri Lichtenberger: La Philosophie de Nietzsche [144H -20]

*Andre Fouilée. Nietzsche et l’Immoralisme [144H -14]


Pablo Javier Pérez López 221
comprender la concepción que Pessoa tenía, parecía tener, o quiso parecer
tener de Nietzsche: Alfred Fouilée, Nietzsche et l’Immoralisme, (Paris, 1902;
Eugène de Roberty, Fredéric Nietzsche, Contributions à l’histoire des idées
philosophiques et sociales à la fin du XIXe siècle, 19027; Henri Lichtenberger,
La Philosophie de Nietzsche, Paris, 1898; y sobre todo Max Nordau, Dégéné-
rescence, Paris, 1894 (y muy en particular el capítulo dedicado a Nietzsche:
Fredéric Nietzsche, pp. 307-406)8.
La indudable influencia de la lectura de Nordau, ya célebre por una
afirmación explícita de Pessoa9, no es menos indudable cuando leemos en
conjunto, las referencias explícitas que Pessoa hace de Nietzsche. La imagen
que en conjunto nos ofrece esta lectura es una imagen, sin duda fuertemente
influenciada por Nordau y su ataque moralista y pretendidamente racional
contra las formas de degeneración social y artística, en la que la figura de
Nietzsche es ejemplo de la decadencia y degeneración mental y moral de una
época.
La imagen que encontramos de Nietzsche en las citas pessoanas es la de
un desequilibrado. Esa concepción está presente en todas, prácticamente
todas las afirmaciones. «Um pregador da Violencia e da Deshumanidade»10,
de la fuerza, de la crueldad, un admirador de la fuerza y del dominio, un
pseudo-pagano que no puede deslindarse de cierto sentimiento cristiano de
sadismo contra él mismo, de culpa, de odio renegado hacia lo que fue, en el
que persiste cierta voluntad de exceso, de un Absoluto, de un algo más, de
desequilibrio: un loco asceta, místico, incoherente, que acaba por abando-
narse a la locura, para quien la vida sigue siendo una cárcel (ver texto 1 del
anexo). Un filósofo enfermo de la fuerza (ver texto 2 del anexo), un mutilado
mental que se entregó a un objetivismo absoluto olvidándose de sí mismo, que
siguió siendo eso que él tanto odió: un romántico, un cristiano renegado que

7 En el texto número 22 del índice de textos publicados puede encontrarse una referencia explícita
al libro de «de Roberty».
8 Otros autores de tono nietzscheano a los que Pessoa tuvo acceso son John Cowper Powys, Stiner,

Barrès y G.B. Shaw – de este autor destaca especialmente «Man and Superman» (véase 121-79/
48B-103).
9 «No que posso chamar a minha terceira adolescência passada aqui em Lisboa, vivi na atmosfera

dos filósofos gregos e allemães, assim como na dos decadentes franceses, cuja acção me foi
subitamente varrida do espirito pela ginástica sueca e pela leitura da Dégénérescence, de Nordau»,
Correspondência, Assírio & Alvim, 1999, p. 274.
10 Véase el texto 2 del índice de textos publicados.
222 Paratexto

abandonó la sanidad mental, un anti-intelectual que se tuvo por dionisíaco,


y lo fue a costa de renunciar al ideal racional, al ideal apolíneo (ver texto 1 del
anexo), un pagano nórdico, bismarckiano que no supo engañar: «Nietzsche
é um bismarckiano, não só (como viu Ranke) pela sua adoração das cousas
reaes, como a força, a crueldade e a q, mas tambem pela sua tendencia a não
illudir»11. Es decir, que no supo ser capaz de intelectualizar sus sensaciones,
su temperamento. Un enfermo para quien la filosofía no era sino expresión
directa del temperamento12, de la vida, de la historia de un alma enferma y
que no supo intelectualizar el temperamento, hacerlo universalizable, hacer
filosofía en el sentido fuerte de la palabra. Una mentalidad enferma y todavía
demasiado débil para aceptar la ficción de la vida. Un escritor inconsecuente,
incoherente, que se expresa sin orden, para quien su propia contradicción
constante es su propia coherencia: «em Nietzsche a contradição de si-próprio
é a unica coherencia fundamental»13 que sólo tuvo un momento de lucidez
cuando se erigió en defensor antidemocrático y anticristiano del germa-
nismo: «Realisemos em nossa alma a vinda de D. Sebastião. Realisemol-a
como ella dever ser realisada, seguindo as pisadas de Allemanha, e levando a
obra mais além – obra pagã, obra anti-humanitaria, obra de transcendencia
e de elevação, feita atravez d’aquella crueldade para com nós proprios que o
espirito de Nietzsche, num momento lucido, viu ser a base de todo o senti-
mento do imperio»14. Un servidor decadente del instinto, un irracionalista,
un cazador furtivo de la inteligencia, un aristócrata de los débiles (de los que
aún no han sabido teorizar, intelectualizar estoicamente el paganismo), un
loco asocial15 y solitario que no es capaz de ordenar sus ideas, un simbolista
enfermo que no es capaz de pensar sin acudir a la forma poética16 que revela

11 Véase el texto 1 del índice de textos publicados.


12 Véase el texto 6 del índice de textos publicados. Esta idea nietzscheana, sin duda proviene de la
lectura del libro ya mencionado de Gaultier, que en su p. 251-252 expone esta concepción. Página
e idea subrayada por Pessoa en su ejemplar. Como ejemplo de la recepción ambigua pessoana
véase 141-20: «A litteratura é a expresão verbal de um temperamento».
13 Véase el texto 12 del índice de textos publicados.

14 Véase el texto 13 del índice de textos publicados.

15 «Especialmente notavel é o facto de que, de homens de genio, /os mais loucos são exactamente

os que menos sociaes são/ (o que pode ser uma verdade de la Palisse, visto que o doido é asocial,
e tanto mais asocial quanto mais doido.) Cf. Nietzsche, Swift, q». Véase el texto 16 del índice de
textos publicados.
16 «Os mais degenerados – pelo menos intellectualmente – são os que pensam sob a fórma poética,

mas não são poetas. E.g. Carlyle, Nietzsche». Véase el texto 19 del índice de textos publicados.
Pablo Javier Pérez López 223
la proximidad de la genialidad y la locura, que es materialización flagrante de
esta relación tormentosa17. Un maestro con innumerables alumnos que no
saben qué innovación aporta el nietzscheanismo y que encuentran en ellos
mismos lo que tienen de nietzscheanos al no poder comprender la obra del
maestro:
São inúmeros, em todo o mundo, os discípulos de Nietzsche,
havendo alguns delles que leram a obra do mestre.
A maioria acceita de Nietzsche o que está apenas nelles, o que, de
resto, acontece com todos os discípulos de todos os philosophos. A
minoria não compreendeu Nietzsche, e são esses poucos que
seguem fielmente a doutrina delle.18
En resumidas cuentas: un escritor enfermo cuya mejor manera de com-
prender es prohibir su lectura, cuya no lectura es una ventaja. Sólo se puede,
en definitiva, ser nietzscheano, cumpliendo la condición de no haber leído a
Nietzsche (ver texto 9 del anexo).
Esta imagen pessoana de Nietzsche del que se ofrecen muy pocas afirma-
ciones no negativas – se le concede que la problemática que trata es el origen
de los valores19, se afirma irónicamente que su gran y única afirmación
grande, es que la alegría es más profunda que el dolor, y se rechaza su afirma-
ción de que la alegría quiere eternidad, profunda eternidad20 – es la misma
imagen que ofrece Nordau en el capítulo dedicado a Nietzsche en Entartung.
Tan sólo se le concede en tono positivo la labor de repaganización del mundo
dentro del espíritu pagano alemán (ver texto 7 del anexo).
Nordau identifica las figuras de Ibsen y Nietzsche, el primero egoísta
poeta, el segundo egoísta filósofo, ambos divinizadotes de la barbarie: «De

17 ¿Huella de los propios miedos pessoanos a la locura?


18 Véase el texto 12 del índice de textos publicados.
19 Véase el texto 10 del índice de textos publicados.

20 Es también sintomático que las dos únicas referencias literales a textos nietzscheanos sean de Así

habló Zarathustra y ambas de la canción del noctámbulo, en la parte final de la obra, muy próximas
entre sí. Es necesario advertir además, como ya hizo Steffen Dix, que la traducción del alemán
Lust por alegría es errónea: «Doch alle Lust will Ewigkeit, will tiefe, tiefe Ewigkeit!». Una
traducción más adecuada sería placer, deseo, voluntad, hambre, ansia… Es curioso, y sintomá-
tico del hipotético nietzscheanismo involuntario e insospechado, que Pessoa, cuando trata del
placer en el texto sobre António Botto y el ideal estético en Portugal – donde ofrece buena parte de
sus claves de cómo concibe el ideal helénico – reniegue de esta afirmación nietzscheana,
afirmando que no es la alegría sino el placer el que quiere eternidad, la eternidad en un solo
momento (ver texto 14 del índice de textos publicados).
224 Paratexto

même que l’égotisme a trouvé em Ibsen son poète, il a trouvé en Nietzsche


son philosophe» (p. 307), identificación que también aparece en Pessoa (ver
texto 6 del anexo).
Del mismo modo aparece la idea, explícita y casi caricaturesca, de que
los lectores de Nietzsche encuentran en sus escritos incoherencia, furia, dese-
quilibrio, odio, locura:
«Lorsqu’on lit à la file les écrits de Nietzsche, on a de la première à la
dernière page l’impression qu’on entend un fou furieux qui, les yeux étince-
lants, la bouche écumante, avec des gestes sauvages, éjacule un flot de paroles
étourdissant, et, au milieu de sa vocifération, tantôt éclate d’un rire fou,
tantôt lance des injures ordurières et des malédictions, tantôt se livre à une
danse vertigineuse, tantôt fond, la mine menaçante et le poing tendu, sur les
visiteurs ou sur des adversaries imaginaires.» (p. 308). Una idea central,
como hemos visto, de la imagen pessoana de Nietzsche.
Aparece, asimismo en Entartung, la transcripción de varios pasajes, entre
ellos del Zarathustra con la famosa afirmación, la única cita literal pessoana,
del cuarto libro de AHZ, una afirmación mal traducida en la versión francesa
citada en Dégénérescene y probablemente también en la versión española que
tuvo el poeta.
La idea de la incoherencia en la escritura nietzscheana y más aún de la
posibilidad de establecer una filosofía nietzscheana más allá de lo aceptado
por los discípulos, es decir la idea pessoana de poder ser nietzscheano sin
leer a Nietzsche, de ser un discípulo que no lee a Nietzsche, de que los mejo-
res discípulos no lo leyeron, y aún más de que no hay originalidad en
el pensamiento de Nietzsche (ver texto 9 del anexo), está también muy
presente en Nordau: «Par cette méthode, on pourrait aussi établir une philo-
sophie nietzschéenne qui serait absolument le contraire de celle acceptée par
les disciples en question.» (p. 345).
«La profonde ignorance de ce troupeau de ruminants leur permet assu-
rément de croire à l’originalité de Nietzsche. Comme ils n’ont jamais rien
appris, rien lu ni pensé, tout ce qu’ils viennent à happer dans les brasseries
ou en flânant est naturellement nouveau pour eux et n’a pas encore existé.»
(p. 352).
Nordau afirma que el individualismo de Nietzsche estaba ya en Stirner y
que muchas de sus ideas pretendidadmente originales están ya en Barrès,
Wilde, Baudelaire o Ibsen, autores asimilados al paganismo degenerado
budista o cristiano, a «autres dégénérés égoistes», «grands esprits ascéti-
ques» (también en Pessoa).
Pablo Javier Pérez López 225
Asimismo encontramos la imagen del defensor del instinto y de la
crueldad como ideal, «Car l’instinct fondamental de l’homme sain n’est pas
désintéressement et pitié, mais égoisme et cruauté» (p. 324), del profeta de
un hombre nuevo, del porvenir, que no es sino «un carnassier solitaire errant
librement, dont l’instinct primordial était l’égoïsme et l’absence de tout égard
pour ses congénères» (pp. 325-326).
El diagnóstico de Nordau, delirio, demencia, alineación mental, dese-
quilibrio psiquiátrico, un caso claro de una aberración intelectual de cierto
sadismo, un ejemplo claro de la degeneración de su tiempo que hace de su
sistema filosófico una insanidad mental, una profunda exaltación maniática,
una locura furiosa, en definitiva:
«Dans la forme, le penser de Nietzsche laisse apercevoir les deux parti-
cularités caractéristiques de la folie furieuse: la domination souveraine de
l’association d’idées que ne surveillent et ne tiennent en bride aucune atten-
tion, aucune logique, aucun jugement, et la rapidité vertigineuse du décours
de l’idéation» (p. 385-386).
Un sadismo intelectual en nombre de ideas delirantes recubierto de
misticismo, del misticismo del sufrimiento. Idea, concepción, presente en la
práctica totalidad de las referencias pessoanas e idea muy enmarcada en una
de las grandes preocupaciones, y por qué no decir obsesiones de Pessoa, la
cercanía entre la genialidad y la locura21. Nietzsche así sería representante y
modelo del hombre donde la locura y la genialidad se encuentran en un
insano desequilibrio.
La identificación de la degeneración con el budismo y el cristianismo
(ver p. 327), la identificación de Nietzsche con el bismarckismo (incluyendo
la distinción entre las eras bisckmarquiana y postbirmackiana, ver p. 402):
«L’idée fondamentale de Nietzsche, à savoir la brutalité et le mépris bestial de
tous les droits étrangers qui s’oposent à la satisfaction d’un désir égoïste, est
faite pour plaire à la génération qui a grandi sous le système bismarckien» (p.
401); la idea de un superhombre opuesto y contrario al nietzscheano
y caracterizado por una moralidad de conciencia clara y sabiduría: «Mais
le noble auquel le troupeau humain assigne une place à sa tête ne sera
sûrement pas le “surhomme” de Nietzsche, l’égoiste, le criminal, le bandit,
l’esclave de ses instincts affolés, ce sera, au contraire, l’homme du plus riche
savoir, de la plus haute connaissance, du plus clair jugement et de la plus

21 Véanse textos 17,18, 19 y 21 del índice de textos publicados.


226 Paratexto

ferme auto-discipline» – compárese esta idea de un superhombre contrario


al superhombre nietzscheano con el superhombre que desea y profetiza
Álvaro de Campos en Ultimatum; la idea de un aristocratismo de la plebe: «Le
faux individualisme et aristocratisme de Nietzsche peut égrager les lecteurs
superficiels» (p. 405), idea sobre la que Pessoa tuvo pensado un escrito, un
proyecto titulado «O aristocratismo dos débeis»22; todas estas ideas
persisten en ambos autores.
Parece que la posible lectura de otros libros, a los que tuvo acceso, ya
mencionados, como el propio libro de Lichtenberger o el de Gaultier que
ofrecen una lectura bastante completa y positiva de Nietzsche, no apartó a
Pessoa de la imagen que Nordau ofrece de Nietzsche, la imagen de un loco
que acabó por escribir sus libros en un manicomio (referencia presente en
Pessoa23 y en Nordau, p. 370) e imagen de la que se apartan las demás obras,
especialmente la de Lichtenberger que cita el propio desmentido de Nietzsche
al rumor y se enfrenta a la inquina de Nordau, oponiéndose a su esfuerzo
continuo, que hereda Pessoa, de diferenciar dos tipos de genialidad: «¿O bien,
finalmente, se procurará quitar valor de antemano a las teorías de Nietzsche,
so pretexto de que son obra de un enfermo, de un “degenerado” y que por
consiguiente, deben ser necesariamente “insanas”. Pero, según mi parecer,
nada más estéril que pretender distinguir dos clases de genios, los genios
“sanos” y los genios “morbosos”, porque me parece imposible fijar el límite entre
ambas categorías»24.
Cabe la posibilidad de pensar en la recepción enmascarada del
nietzscheanismo, una recepción que trate de borrar las huellas de la herencia
y asuma críticamente el contenido nietzscheano teatralizando las
disconformidades, entrando en el juego de la ficción vital pessoana, pero la
presencia tan nítida de la imagen que el mismo Pessoa proyecta en el con-
junto de las referencias, en Nordau, con los mismos ademanes y adjetivos nos
hace más bien pensar –nos seduce literariamente esta posibilidad – en una
interpretación sesgada, parcial, deformada por la llegada indirecta y condi-
cionada al nietzscheanismo y sus intuiciones filosóficas.

22 Véase texto 23 del índice de textos publicados.


23 Véase texto 14 del índice de textos publicados.
24 En La filosofía de Nietzsche, Henri Lichtenberger, Daniel Jorro (ed.), 1910, p. 114. La cursiva es

nuestra.
Pablo Javier Pérez López 227
Se ha hablado de corrección creativa (cf. Steffen Dix, p. 142), de una
apropiación mimética (cf. Lourenço, pp. 249 y 252), y se nos ha advertido
del mismo modo de que Pessoa polemiza más apasionadamente con los
autores con los que está en deuda (cf. G. R. Lind, p. 285) manteniendo una
distancia crítica, y en cierta medida también hay huellas para emprender
ese camino, el de una asimilación enmascarada: piénsese incluso en la
azarosa coincidencia del natalicio de Álvaro de Campos y Nietzsche (15 de
Octubre de 1890), e incluso también en los trazos biográficos nietzscheanos
de António Mora, su presencia en un manicomio, su aspecto helénico…
Puede leerse The death of God de Ch. Robert Anon, conjunto de poemas
para los que incluso llegó a escribir un prólogo (ver 55-94 y 144N-20), acudir
al soneto vigésimo y leer «circle of rebirth» – que se ha interpretado en
sintonía con el eterno retorno nietzscheano (cf. G. R. Lind p. 285), incluso
leer la expresión «human, too human» en un escrito filosófico (ver Textos
filosóficos, vol I, pp. 216-217/ cf. Mattia Riccardi, p. 111) o encontrar dos listas
de libros25, probablemente con intención editorial, donde aparece el autor
alemán, e incluso encontrar una expresión muy nietzscheana, «além do bem
e do mal», en las líneas, que parecen la idea generadora, del recientemente
hallado poema inédito de Caeiro (ver texto 10 del anexo), un giro presente
también en al menos otra ocasión (ver texto 5 del anexo), pero sigue siendo
un bello riesgo pensar en el nietzscheanismo involuntario pessoano.
Esta idea, quizá una intuición, además, concuerda bien con las expresio-
nes pessoanas que se refieren a la no lectura nietzscheana como la mejor
manera de comprender al autor del Zarathustra. Pessoa mismo que escribió

25 [48B-103]

[Ver página seguinte]


228 Paratexto

las ventajas de no leer a Nietzsche (ver texto 9 del anexo), que seguramente
tuvo a gala literaria no hacerlo después de «constatar las contradicciones entre
los que lo han leído» – piénsese por ejemplo en el Nietzsche de Lichtenberger
o Gaultier frente al Nietzsche de Nordau o Fouilée –, quedó encerrado por el
destino justiciero, aquél que con jactancia encerró a Nietzsche en un mani-
comio («Que acre ironia a do Destino justo que fechou num manicomio a
Nietzsche, ao ignobil defensor do aristocratismo da plebe»26), en la condi-
ción de posibilidad que para ser nietzscheano propuso con la habitual sorna
– y no por ello falta de seriedad – de sus afirmaciones: «On n’est nietzschéen
qu’à condition de ne pas avoir lu Nietzsche» (ver texto 9 del anexo).
Es probable por tanto, y es un bello riesgo creerlo que el nietzschea-
nismo pessoano nazca involuntario a lo que él entendió por nietzscheanismo.
No decimos aquí que Pessoa no leyera nunca directamente a Nietzsche sino
que probablemente no lo hizo con la distancia y la atención necesaria debido
fundamentalmente a la imagen desvirtuada que encontró de él en Nordau –
parece ocurrir algo similar con autores como Wilde o Paters. Si Pessoa,
salvando estas circunstancias, entre ellas la proximidad histórica, hubiera
llegado a palpar las intuciones del nietzscheanismo, hubiera, sin duda, llenado
de reflexiones sobre Nietzsche, al menos, varias decenas de cuartillas.

[48B-62]

26 Véase texto 15 del índice de textos publicados.


Pablo Javier Pérez López 229
Pessoa es, al menos en la verdad de su ficción literaria, la de animal
escritor que dice la verdad fingiendo, en sus manifestaciones explícitas un
defensor del verdadero paganismo hostil a la figura del autor alemán y es de
recibo que nosotros, siguiendo su juego ficcional, digamos que Fernando
Pessoa fue un nietzscheano involuntario, insospechado, indeseado. (Es decir,
quizá él quiso que nosotros pensaramos que fue un nietzcheano sin saberlo,
o quizá fue un nietzscheano sabiéndolo, un nietzscheano enmascarado que
nunca gustó de los maestros y las alabanzas hacia los inspiradores de su
pensamiento.)
Pessoa que no quiso o no pudo comprender a Nietzsche, fue, asumimos
el riesgo de esta afirmación, un desconocido discípulo de Nietzche, quizá
como su propio maestro Caeiro.
Quizá, para hacer aún más complejo el asunto, podríamos decir que una
parte de Pessoa fue profundamente nietzscheana, sabiendolo o no, querien-
dolo o no, queriendolo querer o no27. Que una parte de su genialidad indiscu-
tible muy próxima a la locura fue tan paganamente nietzscheana que hería lo
que de apolíneo y racional mostró tener, hasta tal punto que quizá toda la ira,
la inquina contra el maniático Nietzsche no sea sino un luchar contra sí
mismo (cf. Lourenço, p. 253), contra su ímpetu inmoralista, desequilibrado,
contra su tendencia al misticismo (esta es una posibilidad que no agota
nuestra tesis).
La visión sistemática de las referencias explícitas pessoanas sobre el
autor de Más allá del bien y del mal nos lleva a pensar que aquello que parecía
evidente, el nietzscheanismo pessoano, lo es sólo para nosotros. Es, mucho
más que irónico, original, y literariamente impagable, que un autor sea
mucho más nietzscheano de lo que él mismo sospecha, hasta tal punto que
aceptando lo que en él estaba del autor, sea casi todo. Esto nos hace pensar en
que muchos de los que en aquella época, apropiándose de una atmósfera fina,
se reclamaron, con terquedad y rapidez, nietzscheanos sin haber leído a
Nietzsche y sin saber que no eran nietzscheanos, no lo fueron, y que muchos
de los que se reclamaron antinietzscheanos, también sin leerlo, lo fueron sin
saberlo, y aún más, sin querer saberlo. ¿Será este el caso pessoano?
Puede hablarse de correción creativa, de aproximación mimética, es
decir de una máscara de desprecio que oculta una influencia clara, pero a la

27 ¿No llevará esta parte pessoana el nombre de Alberto Caeiro?


230 Paratexto

luz de los textos y de la fidelidad ficcional del lector que quiere creer sin
interpretar, preferimos creer en el anti-nietzscheanismo literario pessoano y
ver en él un nietzscheano involuntario, insospechado, que paradógicamente
se reclama anti-nietzscheano. ¿Qué acto más poético y más literario, para
corresponder, puede haber que dejarnos engañar lúcidamente, qué acto más
pessoano-nietzscheano puede haber que hacer de la vida literatura, que creer
la verdad de esta mentira? (una verdad que quizá sea la propia tensión interna
entre las venas apolíneas y dinonisiacas del alma pessoana).
Y para hacerlo todo más paradógico aún: ¿No será verdadero a la par
el nietzscheanismo y el antinietzscheanismo pessoano? Expresión de una
tensión entre el que sufrió por amor a la verdad y el que se abandonó al
misticismo, entre el poeta caeiraniano, pagano y el filósofo aún de inspiración
romántica y simbolista.
Esta tesis, la de creer en la mentira de la verdad y en la verdad de la
mentira del antinietzscheanismo pessoano, supone además un acto de refle-
xión en el marco de la hermeneútica literaria que se empecina, en muchas
ocasiones, en querer comprender sin entrar en el juego literario y en sus
sugerencias ficcionales28.
En resumidas cuentas, antes de establecer una comparación reflexiva o
filosófica entre nuestros dos autores, que es inevitable y enriquecedora sin
duda, parece necesaria una lectura sistemática de las referencias explícitas
que de Nietzsche hay en Pessoa. Una lectura conjunta de las ya conocidas y
las aquí aportadas nos permite palpar la complejidad de la recepción
pessoana, una complejidad, una ambiguedad probablemente fundamentada
en la deformación nietzscheana de los autores secundarios, especialmente la
de Max Nordau.
Sabiendo esto, y frente al alegre nietzscheanismo que suele atribuirse a
Pessoa, lo que necesitamos afirmar es un nietzscheanismo involuntario en
nuestro autor. Pessoa es, a nuestro entender, nietzscheano sin saberlo y
sin quererlo, un nietzscheano involuntario en el que Apolo y Dioniso pugnan
y casi siempre explícitamente vence Apolo. A veces vence la mesura de la
razón (e incluso la moral cristiana: véase texto 3 del anexo) y en otras ocasio-
nes los pálpitos nietzscheanos afloran. En definitiva, antes de hablar del
nietzscehanismo pessoano conviene constatar sus peculiaridades y raíces,

28 ¿Querrá decir esto que sólo se puede hacer literatura de la literatura pessoana?
Pablo Javier Pérez López 231
haciendo presente que Pessoa no accedió a lo que nosotros hoy entendemos
por nietzscheanismo y que el nietzscheanismo que en él afloró fue tan implí-
cito como insospechado para alegría de las propias y paradógicas profecías
pessoanas: On n’est nietzschéen qu’à condition de ne pas avoir lu Nietzsche.

Índice de textos pessoanos publicados con referencias a


Friedrich Nietzsche
1. [121-32r] Obras de António Mora, INCM, 2006, p. 356
2. [12A-4r-v] Obras de António Mora, INCM, 2006, p. 289
3. [12A-8r] Obras de António Mora, INCM, 2006, p. 194
4. [12B-11r] Obras de António Mora, INCM, 2006, p. 212
5. [19-28r] Páginas de estética e de Teoría e Crítica literárias, Ática, p. 159
6 [19-99] Páginas de estética e de Teoría e Crítica literárias, Ática, p. 333
7. [20-97r] Obras de António Mora, INCM, 2006, p. 273
8. [21-10r a 11v], Prosa de Ricardo Reis, Assirio & Alvim, p. 77
9. [21-62 a 64], Prosa de Ricardo Reis, Assirio & Alvim, p. 94
10. [22-6], Textos filosóficos, Nova Ática, Vol. I, p. 17
11. [22-37], Textos filosóficos, Nova Ática, Vol. I, p. 53
11 [22-100 a 101], Textos filosóficos, Nova Ática, Vol. I, p. 135
13. [55H 80 a 81], Ultimatum e Páginas de Sociologia política, Ática, p. 237
14. [72-7], Contemporanea, Número 3, Julio de 1922, pp. 121-126
15. [92C-55], Ultimatum e Páginas de Sociologia política, Ática
16. [108A-35r], Escritos sobre o Génio e a Loucura, p. 263, t.1
17. [134A-36r], Escritos sobre o Génio e a Loucura, p. 130, t.1
18. [134A-79r], Escritos sobre o Génio e a Loucura, p. 307, t.1
19. [134B-7r], Escritos sobre o Génio e a Loucura, p. 307, t.1
20. [144U-30], Portugal futurista, número único, p. 30
21. [144X-38ra39v],Obras de António Mora, INCM, 2006, pp. 382-383
22 [144Z-20r], Escritos sobre o Génio e a Loucura, p. 190-1, t.1
23. [144D2-9r], Escritos sobre o Génio e a Loucura, p. 39, t.1
24. Pessoa por Conhecer, Estampa, texto 76, pp. 96-97
232 Paratexto

Obras citadas
Dix, Steffen, «Pessoa e Nietzsche: deuses gregos, pluralidade moderna e
pensamento europeu no princípio do século XX», Clio 11, Revista do
Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004, pp. 139-174
Lind, Georg Rudolf, «Nietzsche in Pessoa», Encontro Internacional do Cente-
nário de Fernando Pessoa, Lisboa: Secretaria de Estado da Cultura, 1990,
pp. 283-286
Lourenço, Eduardo, «Nietzsche e Pessoa», Nietzsche: Cem anos após o projecto
“Vontade de poder. Transformação de todos os valores”, António
Marques (ed.), Lisboa: Vega, 1989 (or. 1986)
Pizarro, Jerónimo, «A representação da Alemanha na obra de Fernando
Pessoa», Românica, Revista de Literatura, Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Lisboa, nº15, 2006, pp. 95-108
Riccardi, Mattia, «Dionysus or Apollo? The heteronym Antonio Mora as
moment of Nietzsche’s reception by Pessoa», Portuguese Studies 23,
Spring, 2007
Pablo Javier Pérez López 233

Anexo

En el siguiente anexo se transcriben los textos pessoanos con referencias


explícitas al nietzscheanismo que he localizado entre el material inédito del
espólio. La simbología utilizada en la transcripción (texto, notas e anexo) es la
siguiente:
q Espacio dejado en blanco por el autor
* lectura conjeturada
/ / fragmento dudoso para el propio autor
< > fragmento tachado por el autor
b variante ofrecida por el autor
Cursiva palabra subrayada por el autor
[ ] Lectura sobreentendida
| | Texto redirigido

1 [142-51]i [texto mecanografiado]s/d


[…]o convexo da mesma superficie curva. Quando a agua passa, em temperatura,
de 99 a 100 graus centigrados, converte-se em vapor: mudou de quantidade en
temperatura, mudou de qualidade en estado, o phenomeno foi só um. No caso
d’estes dois ideaes, notaremos a sua identidade, não só pela de origem, em que já
fallámos, mas tambem pelo modo egual como se differençam do ideal appolineo.
Aquelle é harmonico e natural, estes desharmonicos e mysticos. Aquelle assenta na
acceitação da vida; estes, de um modo e de outro, na comum negação d’ella.
Não ha caso mais notavel d’essa identidade que o de Nietzsche, de quem são as
palabras apollineo e dyonisiaco, de que, com justificação independente, acabámos de
fazer uso. Nietzsche tinha-se por dyonisiaco, e, infelizmente para elle, o era. Não ha
mais claro exemplo do mysticismo – na exaltação, na incoherencia, no abandono de
si, na mesma loucura terminal – que o d’aquelle pseudo-pagão. Elle era, até, um
mystico christão; simplesmente o era às avessas. O seu odio aos christãos o prova: é
o odio <de renegado> turvo, introvertido, de quem se sente egual aos que odeia.

i Este texto mecanografiado está numerado en su parte superior derecha con un 6, se encuentra
aislado en el espólio y no ha sido posible localizar las páginas anteriores o posteriores del conjunto.
234 Paratexto

Identicos na materia, estes dois ideaes são contudo, não só differentes, mas
oppostos, na fórma: são, repetindo a imagem, como os aspectos oppostos, o concavo
e o convexo, da mesma superficie curva. Para o dyonisiaco a vida é estreita; para o
christão a vida é vil. Para um é uma <carcere, para o outro uma estalagem suja>
Pablo Javier Pérez López 235
2 [152-69]ii [texto mecanografiado]s/d
Rationalism
Rationalism. Theoretic Rationalism. Practical Rationalism.
Sociology is simply a baser metaphysics. It is so far metaphysics that it seems to be a
substitute for it, metaphysical and sociological speculation being generally in the
inverse quantity at the same time.
It is easy to defend law and order as necessary to civilization. But Athens was never
orderly and the Italian Republics of the Middle Age and of the Renascence had
very little order and very little law; yet if the creation of art and culture which
distinguished them be not civilization or one of its distinctive characteristics, then
civilization is its own opposite. It is easy to contend that a unified nation is essential
to its own life; yet Greece, which created the mind of the civilized word, was never the
whole of itself, and Italy was best scattered than united, in so far as results to
mankind in general are a valid test. It is easy to defend any sociological theory. As in
everything, except the bare useless facts, the theory is worth what the theorist is
worth, and all is made up, in the ultimate, of aspects of untruth.
The legal profession is an immoral and absurd one, but we are all counsel of our
beliefs, and the better sophist wins –fortunately only temporarily– the futile case he
has put himself into.
Some, like Kant, make their philosophies out of them selves. Others, like Nietzsche,
make their philosophies out of the negation of themselves. The placid man is placid
in his philosophy. The sick man is the philosopher of strength.
Slavery is perfectly defensible. We cannot defend it because Christian morality
excludes slavery, and Christian morality is one of the bases of our civilization. The
death penalty can be defended, but it will not pass the emotional test. The inquisition
can be defended, and it has been defended. But it will not pass the cultural test –it is
rebutted, not by any valid argument which cannot be emptied of force, but by the
rationalistic individualism which the Greeks have given us for the soul of our mind.

ii Este texto transcrito y el siguiente pertenecen a un conjunto de textos que llevan por título
Rationalism, posiblemente páginas para un ensayo de tipo filosófico.
236 Paratexto

3 [152-70]iii [texto mixto] s/d


Rationalism
The Christian ethics may be, as Nietzsche puts it, the ethics of slaves. It is, however,
our ethics. We have not to say that we do not want that ethics; we can but say that we
are slaves. (We may accept Nietzsche’s assertion, but we must accept the ethics. It is
possible that that ethics is indeed the ethics of slaves: if it be so, then we are slaves and
that is our ethics.
When any man defends cruelty or lust or treason, he may do so with the full armoury
of an intellectual arsenal he was born with for a soul; but he speaks to stocks and
stones when he would persuade more of us than the surface of our possible reasons
to agree with him. We may be cruel, lustful or treasonable by our passions; we cannot
be so by our emotions. The door of those theories is definitely blocked in our
civilization: it is blocked by the Cross.
The rationalist does not assert that Greek Culture is the best culture: he asserts that,
good or not, it is the culture we have. The rationalist does not assert that Roman
Order is the best type of order: he asserts that, for better or for worse, it has been
wedded to the substance of ourselves. The rationalist does not assert that Christian
Ethics is the best possible ethics: he asserts that it is the only one possible ethics: he
asserts that it is the only one possible to our emotions. The rationalist does not assert
that the internationalist civilization created by the Portuguese discoveries and the
deromanization of learning is the best type of civilization: he asserts that it is ours.
For whether it should be there or not, he asserts that it is there. There is no more ease
in shaking off Greek Culture, Roman Order or Christian Ethics than there is in, by the
use of some transcendental extension of Mr. Well’s Time-Machine, reversing the film
of history and discovering and reunpeopling the transoceanic world.

iii Al final de este texto mecanografiado existe un párrafo amplio manuscrito que presenta
dificultades para su lectura, lo omito en la transcripción pero remito al original para una lectura
interpretativa del mismo.
Pablo Javier Pérez López 237
4 [153-76] [texto mixto] s/d
Tudo a crear… Que philosophos hoje? Bergson? Hospital para religiosos incuraveis.
O perspectivismo – um fragmento cahido d’uma certeza falsa. Leonardo Coimbra?
um archanjo cahido com pesadellos de Céo. O resto é o ter muito problema.
Philosophia a crear – toda philosophia.
Antonio Patricio? Nietzsche de ferro esmaltado. Guedes Teixeira? Amor com fifias.
Pintores, esculptores? Não são precisos. A arte não tem nada com a pintura e a
esculptura. <Só com architectura, logo que os edificios sejam irrealisaveis.>
238 Paratexto

5[155-13] [texto mixto] s/d


Theorias metaphysicas que possam darnos um momento a illusão de que explicámos
o inexplicavel; theorias moraes que posam illudir-nos uma hora com o convenci-
mento de que sabemos porfim qual, de todas as portas fechadas, é o adito da virtude;
theorias politicas que nos persuadam durante um dia que resolvemos qualquer
problema, sendo que não ha problema soluvel, excepto os da mathematica – resu-
mamos a nossa attitude para com a vida nesta acção conscientemente esteril, nesta
preocupação que, se não da prazer, evita, ao menos, sentirmos a presença da dôr.
Nada ha que tão notavelmente determine o auge de uma civilização, como o
conhecimento, nos que a vivem, da esterilidade de todo exforço, porque nos regem
leis implacaveis, que nada revoga nem obstrue. Somos, porventura, servos
algemados ao c[a]pricho de deuses, mais fortes porém não melhores que nós,
subordinados, nós como elles, á regencia ferrea de um Destino abstracto, superior á
justiça e á bondade, alheio ao bem e ao mal.

6[15B1-59 a 60] [texto mixto] s/d


Préface non historique
Il faut créer l’home-machine de l’avenir. Vous vous indignez? Cela, dites-vous, c’est du
germanisme social. Cela, l’Allemagne l’a fait. Le résultat en est l’allemand tel qu’il est.
Vous vous trompez. Cela n’est pas allemand. Tous disent que c’est allemand, tous ont
dit que c’est allemand; c’est donc faux. Ce qui est allemand est l’homme, non
machine, mais pièce de machine. C’est tout à fait différent. C’est l’allemagne, et non
l’individu allemand, qui est une machine. L’allemand individuel est une pièce de
machine; comme les pièces de machine, il n’a par soi aucun sens, il n’existe qu’en
relation à un tout auquel il appartient. Cela c’est le bismarckisme allemand, et cela
c’est le taylorisme américain: n’oubliez pas de souligner. L’homme-machine est,
comme une machine, un tout; il est, come une machine, un tout qui fonctionne
Pablo Javier Pérez López 239
parfaitement; il est, comme une machine, un tout qui fonctionne pour une raison
extérieure à lui, mais, en tant que fonctionnant, il n’existe qu’en rélation avec soi-
même.
Notre age est l’age des instincts. Il faut donc créer sur des instincts. L’homme
parfait est celui qui developpe librement toute sa personnailité; il faut noter,
pourtant, qu’une partie de sa personnalité est sa socialité, qu’une partie de sa
personnalité est la personnalité des autres. Il faut noter qu’une partie de sa person-
nalité est le cemitère vivant de ses ancêtres. Il faut noter que son intelligence est
partie de son Moi. Oui, developpez completement votre Moi; remarquez, pourtant,
que votre Moi intégral se compose de votre Moi en tant qu’opposé aux autres, de
votre Moi en tant que lié aux autres et de votre Moi en tant qu’ étranger aux autres –
c’est à dire, cette partie de votre moi qui est tournéee vers l’Intelligence abstraite, vers
le fonds immuable du monde. Oui, developpez votre Moi, mais developpez votre
Moi d’homme d’aujourd’hui, d’homme complet. Ne me parlez pas d’Ibsen ni de
Nietzsche, ni des developpements du Moi qui n’en sont que des mutilations. Nordau
l’a bien dit q
L’homme humain, ancien, radical – le vieil homme homo, sensuel et buveur,
grégaire et lâche, se lavant peu, aimant des fils, royaliste et superstitieux, l’homme tel
qu’il est devant la sagesse des dieux morts.
L’homme se compose de deux groupes: celui qui est composé d’hommes
capables d’individualité personelle, et c’est la l’aristocracie; et celui d’hommes capa-
bles seulement de personnalité gréagaire, et c’est la le peuple. Les nations existent
pour doner de la personnalité aux plèbes, qui passent a ne pas avoir d’existence
psychologique dans un internationnalisme. Une personnalité est un système de
forces: en tant que tel il n’existe qu’en opposition avec d’autres systèmes de forces. Si
vous n’avez de grex que l’humanité, vous n’avez plus d’hommes sauf l’aristocracie;
ou vous tombez immédiatement dans la grex rudimentaire, par une réaction
naturelle, et vous voilà dans le clan et la tribu. Toute idée radicale et revolutionnaire
est foncièrement anti parce qu’ante-, humaine. Les nations n’existent qu’en vue du
bien du peuple; comme d’usage les théories revolutionnaires sont anti-popualires,
elles sont anti-humaines. Les principes de 89 sont à l’usage des veille-roche. Liberté,
fraternité, égalité – vous ne pouvez réaliser cela, vous, en attitude sociale sans avoir
été élevé dans un milieu aristocratique. La courtoisie envers tous, que cela exige, nul
homme du peuple ne l’a eu, sauf un mystique, et celui-la est fou; nul homme du
peuple ne peut l’avoir. Le proverbe portugais le dit très bien, et c’est un proverbe du
peuple: «ne sers pas celui qui a servi, ni demandes d’aumone à celui qui l’a deman-
dée.» Ah, que les peuples sont plus sages que l’idée des peuples.
La rage de n’être pas aristocrate est au fonds du coeur de tous les meneurs des
revolutions: je vous le dis de toutes les révolutions. Tout vrai revolutionnaire a une
mentalité dont le symbole eternel est dans les ongles de Trotsky.
240 Paratexto

Ne regardez pas vos théories, regardez l’homme. Tout ce qui est peuple est fait
de choses insignifiantes. C’est la rage populaire qui fait tuer vos fils? Non ce qui le tue
c’est le soufflet que le patron a donné il y a trois ans, a celui qui le tue. Qui jette vos
meubles par la fenêtre? La femme pauvre qui demeure en face de ce palais par les
fenetres duquel elle voit et convoitise les pianos. Dans le sentiment grégaire, la rage
concrète devient abstraite, mais elle a été concrète un jour.
L’homme est un animal amusant, mais cet un vil animal. Ne faites pas de
psychologie du XVIIIe sièecle.

7 [55A-79] [texto manuscrito] s/d


Foi Nietzsche quem teve a devida noção desmoralizadora* fundamental do
esforço allemão – a repaganização do mundo.
Pablo Javier Pérez López 241
8 [55B-19]iv [texto mecanografiado] s/d
5. Preconceito racionalista (ou philosophico)
(Erros de conceber a sociedade como regulavel intellectualmente, etc.)
[…]
Nietzsche é tratado e refutado sob o heading de «Preconceito Racionalista».
[55G-2] [texto manuscrito] s/d

O erro de Nietzsche foi não ter reparado que os diversos valores provem de diversos
factores sociaes.

iv Este texto pertenece a un conjunto de textos que probablemente constituyen la estructura


intelectual de un proyecto inacabado de un libro de título «O Templo de Jano». Se ofrece la
transcripción fragmentaria de las referencias explícitas a Nietzsche.
242 Paratexto

9[75-47a]v [texto manuscrito] s/d


Les avantages de ne pas lire Nietzsche: Par les contradictions que j’ai constaté entre
tous qui ont lu Nietzsche, je ne puis que noter que la meilleure façon de le
comprendre c’est de ne permit* le lire. Aussitôt qu’on le lit, on commence à ne pas
savoir ce qu’il pense. On n’est nietzschéen qu’à condition* de ne pas avoir lu
Nietzsche. Aussitôt qu’on le lit, on cesse* de pouvoir être un dieu* qui n’est rien

v El presente texto corresponde a la transcripción de un fragmento de varias notas manuscritas,


en francés, de distinto contenido en una cuartilla doblada por la mitad y con el timbre de A
brazileira.
Pablo Javier Pérez López 243
10vi [texto manuscrito] s/d
um Deus infinito e imperfeito (?)
além do bem e do mal.
Caeiro
Gosto do céu porque não creio que elle seja infinito.
Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?
Não creio no infinito, não creio na eternidade.
Creio que o espaço começa numa parte e numa parte acaba
E que agora e antes d’isso há absolutamente nada.
Creio que o tempo tem um princípio e terá um fim,
E que antes e depois d’isso não havia tempo.
Porque ha de ser isto falso? Falso é fallar de infinitos
Como se soubessemos o que são de os podermos entender.
Não: tudo é uma quantidade de cousas.
Tudo é definido, tudo é limitado, tudo é cousas.

vi El presente texto corresponde a la transcripción hecha por Jerónimo Pizarro del poema inédito
de Alberto Caeiro de reciente hallazgo durante la labor de digitalización de la biblioteca personal
pessoana.
Recensões
João Almeida Flor 247
White, Landeg, The Collected Lyric Poems of Luís de Camões. Princeton University
Press, 2008

Um Camões Lírico para o Nosso Tempo


Em 2008, sob a prestigiada chancela impostas pelo rigor dos modernos
da Princeton University Press, foi lança- métodos filológicos.
da no mercado anglófono a mais recente Semelhante instabilidade macro-
versão da obra lírica camoniana em vo- textual reflecte vicissitudes históricas e
lume intitulado The Collected Lyric Poems deriva das opções editoriais assumidas
of Luís de Camões, da responsabilidade pelos eruditos que entre si divergem
de Landeg White. quanto à datação, à transmissão e à atri-
A qualidade deste trabalho deriva buição dos poemas chegados até nós.
do modo como foi possível sintetizar a Consciente da pesada responsabilidade
copiosa informação erudita, a exigência de reescrever Camões noutra cultura,
do rigor ensaístico e a maturidade da Landeg White sabe como tais alterações
vocação poética do próprio tradutor, necessariamente condicionam as deci-
com o objectivo ambicioso de reescrever sões preliminares do tradutor, relacio-
Camões e, assim, prolongar no século nadas com a selecção das variantes
XXI o labor meritório de eminentes textuais fidedignas e, sobretudo, com a
lusófilos de expressão inglesa. Trata-se inclusão (ou exclusão) de múltiplos
de uma obra oportuna que, além do poemas no corpo textual a transcrever.
mais, se reveste de interesse especial, Por conseguinte, com louvável acerto e
porquanto se publica num momento na ausência de uma edição crítica inte-
em que a produção cultural lusófona gral da obra camoniana, Landeg White
visa atingir alcance internacional mais ultrapassou pragmaticamente obstá-
amplo, por intermédio de traduções culos e polémicas, adoptando como
para a língua inglesa, hoje veículo hege- texto base a edição portuguesa das
mónico de expressão. Rimas, preparada A. J. Costa Pimpão
Logo de início, registamos o facto de (1ª ed. 1944) que, ainda hoje, mantém
a tradução ser acompanhada por um prestígio consensual junto da crítica
ensaio introdutório, clarificador do mais exigente.
campo de trabalho. Aí se enunciam Em contrapartida, no plano biográ-
questões bem conhecidas dos especia- fico, o tradutor viu-se confrontado com
listas contemporâneos, nomeadamente uma autêntica floresta de equívocos,
os problemas levantados pelo estabele- derivados das incertezas e lacunas docu-
cimento do cânone da lírica camonia- mentais que rodeiam a vida de Camões
na que, no decorrer dos tempos, se e têm originado inesgotável manancial
foi expandindo até atingir magna di- de lendas, hipóteses e conjecturas. Com
mensão mas, no último século, tem efeito, alguns estudiosos congeminam
vindo a sofrer depurações sucessivas, narrativas biográficas apenas estribadas
248 Recensões

em passos selectos da obra camoniana, De tal construção do macro texto,


enquanto, inversamente, certos críticos enquanto discurso de incidências auto-
literários invocam circunstâncias de biográficas, decorrem três consequên-
natureza biográfica para validar a sua cias principais. Primeiro, de forma um
leitura interpretativa dos textos poéti- tanto arbitrária, esta tradução confere
cos. Desta forma, a imagem de Camões coesão virtual e unidade estruturante a
torna-se cativa de um círculo vicioso, no textos de feição sobremaneira heterogé-
pressuposto de que entre toda a sua vida nea; depois, procura reflectir as marcas
e obra existem necessariamente laços de estilísticas de um processo de matura-
dependência genética ou, pelo menos, ção gradual, alegadamente documen-
um modo de relacionamento especular tável na escrita camoniana; por fim,
onde o autor empírico e o sujeito lírico subdivide a obra lírica em quatro fases
coincidem por completo e constituem distintas, numa tentativa de periodiza-
unidade indissolúvel. Ora, do ponto de ção apenas balizada por datas e eventos
vista teorético, há muito sabemos ser de significado pessoal: 1) Before Africa,
problemática semelhante homologia, 2) Before Índia, 3) Índia and Beyond, 4)
por não ter em conta que, sob o efeito Portugal. Desta forma, Landeg White
das estratégias retórico-discursivas ine- demonstra subscrever um critério sub-
rentes ao processo de textualização jectivo e biografista, idêntico ao seguido
literária, o alegado fundo autobiográfico por Maria de Lourdes Saraiva que, na
da escrita camoniana se subordina a fixação do texto dos Sonetos, os distribui
desígnios de representação estética, por quatro períodos ou ciclos (1540-47;
transformando-se numa realidade fic- 1547-54; 1555-72; 1572-80), onde pre-
cionalizada cujo valor documental é dominariam respectivamente tonali-
preciso relativizar. dades idílicas, dramáticas, elegíacas e
Sendo assim, parece-nos sobre- espirituais.
maneira discutível o modo como Deve sublinhar-se que Landeg
Landeg White decidiu afastar-se do White tem o cuidado de advertir que ne-
procedimento rigoroso de A. J. Costa nhum leitor deverá sentir-se constran-
Pimpão que editara as Rimas camo- gido a aceitar, sem reservas, o critério de
nianas, agrupando-as em cinco blocos, ordenação proposto. Por nossa parte,
de acordo com subcategorias formais assumiremos uma atitude de discordân-
bem definidas: 1) Redondilhas, 2) Sone- cia mitigada – por um lado, conside-
tos, 3) Canções e Elegias, 4) Odes, ramos que a presente leitura e reescrita
Oitavas e Sextina, 5) Éclogas. Ao invés, biografista do corpus lírico camoniano
a tradução inglesa prefere apresentar carece de qualquer justificação assente
o conjunto dos poemas segundo um em sólidos fundamentos científicos,
ordenamento cronológico conjectural mas, por outro lado, admitimos que ela
e considera a data da composição dos possa conter potencialidades simbó-
textos sincronizada com os próprios licas, susceptíveis de tornar o volume
acontecimentos vividos pelo homem mais atraente aos olhos do público
Camões. mediano da cultura receptora.
João Almeida Flor 249
Efectivamente, ao interpretar a lírica textualidade com modelos e referentes
de Camões em termos de depoimento culturais clássicos e modernos. Através
pessoal sobre as vicissitudes dos tempos, delas, a tradução permite situar a obra
Landeg White concebe a vida do poeta camoniana na esteira dos seus mentores
como percurso metafórico ou viagem greco-latinos ou, em alternativa, inte-
alegórica, o que vem adensar a comple- grá-la nas correntes coetâneas italiani-
xidade polissémica da tradução publi- zantes e petrarquistas, ou, finalmente,
cada. Nesta, a ocorrência frequente de aproximá-la do lirismo tradicional de
tópicos característicos da categoria de raiz popular, reelaborado pelo requinte
deslocação, no espaço e no tempo, serve discursivo da aristocracia cortês. Em
o propósito de reiterar alguns dos temas qualquer dos casos, para todos esses
centrais da sensibilidade maneirista moldes o poeta transvaza o seu saber
camoniana, nomeadamente a consciên- experiencial e insufla o espírito e a
cia disfórica do permanente exílio e da forma das grandes rupturas epistémicas
deambulação do sujeito, pelo mundo e poetológicas que regem as inovações
repartido, mas sempre sensível aos discursivas no alvorecer da moderni-
mínimos sinais de efemeridade, incons- dade. Tal como esta tradução a retrata, a
tância e mutabilidade, patentes em si e obra épica e lírica de Camões têm em
nos outros. comum o facto de revisitar a temática
A voz lírica aqui traduzida verbaliza fulcral da errância que remete para os
a constante e inquieta exploração de conceitos de homo viator e de peregrinatio
uma crise individual e geracional, no vitae e caracteriza a condição humana,
contexto histórico tardo-quinhentista, na sua existência terrena, como perma-
quer pela tentativa de sobreviver estoi- nente deambulação, impelida por um
camente ao trauma antiquíssimo da sentido que a transcende.
coita de amor, quer pelo desejo obsessi- Atingimos aqui o cerne das dificul-
vo de superar ou, pelo menos, de enten- dades que mesmo um leitor português
der o destempero, o desconcerto e a de hoje e, por maioria de razão, um
desarmonia do mundo, submetido ao tradutor para a língua inglesa se vê obri-
arbítrio inexorável dos fados e da gado a resolver. Dificílimo se torna, com
fortuna adversa. efeito, enfrentar a complexidade do
Numa apreciação global, pode con- problema que consiste em traduzir
siderar-se que, ao salientar e centralizar Camões em diacronia, isto é, assegurar
o motivo da viagem e o tema da ao leitor do século XXI a inteligibilidade
errância, a tradução de Landeg White de uma representação literária histori-
tem o mérito de pôr em evidência a camente situada, tornando-a percep-
relação solidária entre a obra épica e a tível à (in)sensibilidade do presente e
produção lírica de Camões. Na verdade, exprimindo-a em linguagem que possa
sabemos como ambas revisitam espaços ser reconhecida como nossa.
discursivos convencionais e historica- Já na tradução inglesa de Os
mente codificados e, no caso da escrita Lusíadas publicada em 1997, Landeg
lírica, são detectáveis relações de inter- White enfrentara este obstáculo e, para
250 Recensões

o ultrapassar, propôs-se reformular outros requisitos, o esforço árduo de


ideologicamente a leitura da epopeia, descodificar as convenções do amor pe-
em consonância com objectivos actuais trarquizante, herdeiro directo da erótica
e complementares. Por um lado, optou medieval, cortês e europeia, de raiz
por contrapor aos excessos do naciona- siciliana e provençal, que, em Camões,
lismo novecentista os sintomas de se cruza com múltiplos elementos reli-
globalização que ameaçavam rasurar as giosos, científicos e filosóficos, alguns
especificidades regionais e locais, pre- deles derivados da inspiração (neo)pla-
nunciando o advento de uma produção tónica e até de correntes esotéricas,
cultural homogénea e massificada. Por subterrâneas à cultura quinhentista
outro lado, perante o refluxo pós-colo- dominante.
nial das últimas décadas, Landeg White Perante as questões que vimos aflo-
quis entender o subdesenvolvimento rando, ocorre salientar a extrema difi-
económico-social do hemisfério sul, culdade da tarefa cumprida por Landeg
como efeito negativo a longo prazo da White que, no caso vertente, implicou
expansão intercontinental da Europa, não só adequação às especificidades do
justamente celebrada em Os Lusíadas. idiolecto poético camoniano mas tam-
Por outras palavras, no intuito de bém apurada sensibilidade polivalente,
sublinhar a relevância e pertinência da para realizar a transacção intersistémica
obra original, a tradução inglesa da de sentidos. Com tal designação, evoca-
epopeia denotava uma poética politica- mos a imagem do tradutor como figura
mente comprometida com a libertação em contínua oscilação pendular entre
dos territórios colonizados. duas literaturas, duas línguas e duas
Desta vez, decorrido um decénio, a prosódias, com o objectivo de exercer a
tradução da obra lírica camoniana rara capacidade de mediação negocial
enfrenta substancialmente a mesma que, através da escrita-sobre-a-leitura,
dificuldade, ainda que ela seja visível em assegura a comunicação possível entre
campo temático bem diverso. culturas e épocas diferenciadas.
Sirva de exemplo o modo como Com efeito, o resultado mais signi-
Camões exprime liricamente os rituais ficativo deste segundo empreendimento
de um diálogo erótico, distanciado de camoniano de Landeg White é o modo
nós mais de quatro séculos, e invoca como a tradução da obra lírica revisita e,
dados culturais hoje ignorados pelo tanto quanto viável, presentifica a
leitor mediano, amiúde desprovido da memória cultural e a vivência subjectiva
imprescindível densidade histórica dispersas por sonetos, redondilhas, en-
mas pujante na permissividade pós- dechas, elegias ou canções, partilhando-
freudiana com que explora, em todos os -as com os leitores do nosso tempo.
sentidos, a arqueologia do amor, do Nos casos pontuais em que tal estra-
desejo e do sexo. Com efeito, para recu- tégia resultar menos eficaz, o resultado
perar a competência cultural mínima, final será, por certo, diverso do preten-
necessária à fruição aprofundada do dido mas nem por isso será menos
texto lírico camoniano, exige-se, entre interessante. Na verdade, sempre que a
João Almeida Flor 251
resistência oferecida pelo texto qui- como variantes textuais da respon-
nhentista original tiver impedido a sua sabilidade do autor-tradutor, a fim de
completa actualização, o texto translato reconstituir as fases características do
conservará irredutíveis os marcadores seu processo de trabalho. Esperemos
epocais cujo significado só a custo pode- que, em breve, seja possível ler a edição
remos recuperar. Contudo, a cons- genética desta tradução, acompanhada
ciência do intervalo histórico e cultural do respectivo aparato crítico, iniciativa
que irremediavelmente nos separa de que ajudará a iluminar aspectos da for-
Camões poderá provocar um efeito tuna editorial camoniana hoje em dia e,
positivo junto dos leitores que, privados sem sombra de dúvida, virá confirmar,
de empatia imediata com as ressonân- de direito e de facto, aquela dignidade de
cias líricas quinhentistas, talvez se sin- criador poiético tantas vezes recusada
tam motivados para decifrar os sentidos ao tradutor literário.
mais obscuros do dizer e compreendam A concluir, diremos que traduzir
melhor como o enigma, a resistência e a Camões para o nosso tempo significa
opacidade são, afinal, condições da re-situá-lo nesta grande encruzilhada
própria hermenêutica literária. para onde hoje confluem as limitações
Prestes a encerrar esta reflexão, vale das ideologias, a falência das grandes
a pena propor um modo de investigar narrativas, a simbiose pós-moderna
o texto translato que, entre nós, con- de géneros e modalidades de escrita, a
tinua subavaliado, a despeito de alguns irremediável obsolescência das mitolo-
contributos parciais em curso. Se nos gias clássicas, a crise concomitante do
parece ser cada vez mais urgente con- paradigma cultural de raiz judaico-
duzir os procedimentos filológicos ao -cristã, a obliteração da historicidade do
lugar de relevo que os Estudos de Tradu- real, a recusa do precedente e da exem-
ção lhes devem conceder, este encontro plaridade como fundamentos legitima-
com a reescrita de Landeg White vem dores da virtude e, antes de mais, o total
confirmar amplamente tal convicção. cepticismo quanto à função regenerado-
Acontece que, ainda em data anterior à ra de todos os messianismos individuais
desta edição, o tradutor havia publicado e dos milenarismos colectivos.
versões avulsas e provisórias de alguns Para contrariar a tendência pessimis-
dos poemas líricos camonianos, agora ta que deriva deste panorama crepus-
significativamente alterados; e, se acaso cular, talvez caiba à criação estética o
não foram delidos por aquela amnésia papel de reactivar energias intelectuais e
informática que constitui inimiga jura- motivar acções destinadas a conservar e
da da crítica textual, Landeg White con- transmitir o património imaterial da
servará igualmente rascunhos ou teste- cultura. Se assim for, a valorização dos
munhos pré-textuais desse trabalho. textos camonianos e, em geral, da tra-
Ora, adoptando procedimentos filoló- dução como metatexto literário consti-
gicos bem conhecidos, muito interesse tuirá um modo exequível de assegurar a
haveria em recolher, datar e comentar sobrevivência da memória cultural
todos esses enunciados, tratando-os colectiva e de mitigar os efeitos da nossa
252 Recensões

morte anunciada. Neste caso concreto, decisiva da migração da literatura por-


pela adequação ao original quinhentista tuguesa para outros espaços linguísticos
e pela sua aceitabilidade nas culturas onde poderá prosseguir a sua irresistível
anglófonas receptoras, a tradução de vocação transnacional.
Landeg White comprova a importância
João Almeida Flor
João Almeida Flor 253
Patricia Anne Odber de Baubeta, The Anthology in Portugal: a new approach to the
history of Portuguese literature in the twentieth century, Bern, Peter Lang, 2007

Dificilmente saldaremos a dívida portuguesa pela cultura anglófona,


contraída junto da plêiade de lusófilos projecto de primordial importância e
britânicos que, no período contem- ambiciosa amplitude que se desdobrará
porâneo, têm desenvolvido esforços por vários volumes, com a colaboração
contínuos e meritórios, no intuito de de vários especialistas em relações inter-
pesquisar, problematizar e traduzir a culturais luso-britânicas. No segundo
cultura portuguesa, conferindo-lhe visi- campo de pesquisa, insere-se o volume
bilidade transnacional. Desse labor, as agora em apreço que desenvolve uma
figuras cimeiras de intelectuais como leitura ao mesmo tempo descritiva e
Edgar Prestage, Aubrey Bell, Charles historicamente contextualizada de um
Boxer, George West e Peter Russell são vasto elenco textual, constituído por
exemplos ilustres. antologias de narrativas e poemas, ori-
Caberá à geração mais recente de ginais e traduzidos, publicados entre
lusitanistas a responsabilidade de nós nos últimos cem anos. De forma
transmitir e ampliar a herança científica indirecta, tal investigação pioneira vem
e cultural recebida de tais insignes iluminar os princípios estruturantes de
mestres e, nesse âmbito, Patrícia A.O. de dezenas de recolhas e o modo como elas
Baubeta, actual Professora e Directora desempenharam papel relevante na
de Estudos Portugueses na Univer- confirmação ou na alteração das expec-
sidade de Birmingham e responsável tativas do público leitor e, a médio
pela Cátedra Gil Vicente, tem repartido prazo, contribuiram para fixar e even-
a sua intensa actividade por múltiplos tualmente alargar o cânone literário
campos. Como tradutora literária de português
alta craveira, publicou versões inglesas Como a A. sublinha, as colectâneas
de textos de Fialho de Almeida, Manuel literárias, amiúde utilizadas como mate-
da Fonseca, David Mourão-Ferreira, rial pedagógico, cumprem propósitos
Miguel Torga, Agustina Bessa Luís, adequados ao perfil do público desti-
Herberto Helder e outros ficcionistas natário. Se umas vezes obedecem a
contemporâneos. Além disso, no que intuitos didácticos, enquanto repositó-
toca à investigação científica académica, rios de modelos de escrita ou instâncias
depois de haver publicado valiosos reabilitadoras de autores e movimentos
contributos na área da medievalística negligenciados, noutros casos assumem
portuguesa, a A. reorienta-se agora carácter apologético do ideário político
prioritariamente para dois sectores que e religioso, ou organizam-se em função
têm recebido menor atenção do que de subcategorias genológicas (sonetos,
merecem. O primeiro visa o estudo contos, romances), alinhadas por áreas
histórico das traduções da literatura geográfico-linguísticas. Em alternativa,
254 Recensões

podem as antologias subordinar-se a do leitor para futuras explorações. Não


critérios temáticos, porventura ilustra- restam dúvidas de que estas serão faci-
tivos de tendências estéticas emergentes litadas quando o elenco bibliográfico,
ou dominantes mas, em qualquer caso, aqui em catálogo judiciosamente inven-
o respectivo paratexto tende a explicitar tariado, se encontrar disponível ao
como as peças incluídas cumprem público, sob a forma de base de dados
requisitos de originalidade, excelência e electrónica. De qualquer forma, a vasti-
representatividade que garantem o dão e o rigor do trabalho realizado
nível do produto final. Noutra pers- permite, desde já, cruzar alguns dados
pectiva, a produção de antologias revela dispersos por vários campos de infor-
afinidades com a própria historiografia mação (autor, título, editora, data, tira-
literária, pois ambas pressupõem opera- gem, série, colecção, reedições etc),
ções similares, que incluem inventaria- tendo em vista estudar a correlação das
ção bibliográfica, delimitação do corpo variáveis e o índice de ocorrência de
textual pertinente e sua ordenação de certos textos nas antologias publicadas,
acordo com critérios homogéneos, bem relacionando-as com as vicissitudes do
como a abordagem de estudos de caso, contexto histórico, do gosto literário,
susceptíveis de fundamentar generaliza- das conjunturas socio-económicas e
ções, extrapolações e interpretações glo- da política editorial. Por exemplo, o
balizantes. Desta analogia metodo- silenciamento de certas vozes e temáti-
lógica decorre a centralidade das antolo- cas nas antologias vindas a lume duran-
gias na construção do cânone, enquanto te o Estado Novo revela-se obviamente
conjunto selectivo de obras de valor indissociável das normas da censura em
estético consensualmente reconhecido vigor. Além disso, o ensaio demonstra
que integram a memória, o património que, na sequência da 2ª Guerra Mun-
e a imagem identitária de uma comu- dial, se registou assídua infiltração de
nidade cultural. Tal facto potencia a res- autores anglo-americanos na cultura
ponsabilidade do antologiador, seja ele portuguesa, mediante antologias tradu-
jornalista, literato, crítico ou académico, zidas e publicadas por personalidades
pois do seu critério valorativo depen- (J.Gaspar Simões, Cabral do Nasci-
dem, em boa medida, tanto o prestígio mento, Casais Monteiro, Vitor Palla,
que a posteridade atribuirá aos autores Jorge de Sena, etc) e editoriais, envol-
incluídos, como o olvido a que os au- vidas na renovação do nosso horizonte
sentes serão virtualmente condenados. literário (Portugália, Gleba, Sírius,
Recorrendo a perspectivas multi- Inquérito, Atlântida e outras mais).
disciplinares que congregam a historio- Finalmente, depois de 1974, a produção
grafia literária, os estudos de tradução, a antológica reflecte a descompressão
sociologia do consumo cultural, a his- política, canoniza as vozes da resistên-
tória da edição e os estudos de género, o cia, celebra a liberdade de expressão,
ensaio de Patrícia A.O. de Baubeta incentiva a promoção cultural, reforça a
difunde os primeiros resultados do seu identidade local e regional e demonstra
projecto em curso e aguça a curiosidade a capacidade de iniciativa de algumas
João Almeida Flor 255
editoras que organizam as suas próprias feminina entre nós, não admira que as
colectâneas com notória abrangência figuras de D. Carolina Michaelis e de
temática e sinais de algumas inovações Natália Correia lhe mereçam atenção
recentes. particular. A primeira como erudita
Nos vários capítulos da obra que magistral que marcou de forma indelé-
acompanham o curso do século XX por- vel um modelo de produção antológica,
tuguês, desfila uma numerosa galeria de com repercussões ainda em nossos dias;
antologiadores onde se salientam, por a segunda como antologiadora versátil
ordem cronológica, Ribeiro de Carva- que, com requintada sensibilidade e
lho, Eduardo de Noronha, Fidelino intransigente desassombro, partilhou o
Figueiredo, Mendes dos Remédios, D. seu profundo conhecimento da cultura
Carolina Michaelis, Nuno Catarino portuguesa medieval, moderna e con-
Cardoso, Afonso Lopes Vieira, Agosti- temporânea
nho de Campos, Albino Forjaz de Em conclusão, Patricia A. O. de
Sampaio, João Gaspar Simões, José Baubeta inaugura auspiciosamente o
Régio, A. Casais Monteiro, J. Cabral do estudo histórico e descritivo do texto e
Nascimento, Jorge de Sena, Luís Forjaz paratexto das antologias publicadas
Trigueiros, Natália Correia, David entre nós, de 1900 a 2007, tomando-as
Mourão-Ferreira, E. M. de Melo e como indicadores da disseminação
Castro, Alexandre Pinheiro Torres, intra- e intersistémica da literatura por-
Herberto Helder, Joaquim Manuel tuguesa e veículos no processo de pro-
Magalhães, F. Pinto do Amaral, Luísa dução, circulação e consumo culturais.
Costa Gomes, O. M. Silvestre. De acor- Tais motivos de interesse justificariam
do com a ênfase constante que o traba- amplamente que, com brevidade, se
lho da A. concede a questões de género promovesse a tradução e publicação
e à representação da actividade literária deste ensaio no nosso país.
João Almeida Flor
256 Recensões

António M. Machado Pires, Luz e Sombras no Século XIX em Portugal, Imprensa


Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2007

Premiado, em 2008, pelo P.E.N. bloco principal da obra, surge-nos a sua


Clube Português, Luz e Sombras no «última lição», proferida a 13 de
Século XIX em Portugal, de António M. Novembro de 2006, «O ensino de
Machado Pires, reúne, como o próprio Cultura Portuguesa (fundamentos de
explicita na «Nota introdutória», textos uma cadeira)», síntese de um percurso
resultantes de contextos diversos pro- académico, iniciado enquanto discípulo
duzidos em colóquios vários, de que se de Vitorino Nemésio, e fundamentação
destacam os proferidos no centenário essencial para a compreensão de como
da morte de Eça de Queirós no ano de deve ser entendida uma área como a de
2000, ao todo quatro artigos dedicados Cultura Portuguesa. Deixámos propo-
ao romancista e grande cronista do fim sitadamente para o fim o artigo com
do século («Eça de Queirós e o fim que se inicia o livro, “Luz e sombras
de século», «Eça e Ramalho», «Eça e na transição do século (a época de
Ulisses» «Fradique entre Antero e Eça»). D. Carlos)”, cujo título sugere, segundo
A estes acrescenta, ainda na celebração o autor, «os cambiantes, as faces, a crise
de um centenário da morte de um autor finissecular dos séculos XIX-XX, quan-
(Oliveira Martins, 1994), o magnífico do a Humanidade se deu conta de que, à
ensaio sobre a ascendência céltica do luz de um triunfo incompleto da Civi-
povo português («Oliveira Martins e lização e da Ciência, muitas sombras de
as raízes etnogénicas do povo portu- pobreza e de infelicidade continuavam a
guês»), a que se junta a conferência pairar sobre tantos seres humanos…»
sobre Manuel de Arriaga e as suas rela- («Nota introdutória», p.8, sublinhado
ções com a Geração de 70 («Manuel de nosso). São estas luz e sombras que
Arriaga e a Geração de 70»). O mesia- António Machado Pires julga poderem
nismo gerado à volta da figura de abranger toda a obra, intitulando-a,
D. Miguel, regressado do exílio, enten- pois, dessa forma abrangente. Luz e
dendo esse regresso como uma utopia sombras que, aliás, no contexto cultural
do poder e mais uma comum reacção em que todo o volume se situa, permi-
sebastianista na nossa cultura, ocupa- tem interpretações diversas, desde a tal
lhe páginas de grande penetração crítica «oscilação pendular» a que se refere
sobre essa vertente da cultura portu- Eduardo Lourenço ao abordar as ima-
guesa («D. Miguel e D. Sebastião»). gens irreais que de nós próprios fomos
Numa outra sua intervenção, perscruta formando ao longo dos tempos, entre
o passado que tivemos e o futuro que irrupções de depressão (as sombras
desejamos, num texto sintomatica- como imagem de decadência) e de
mente intitulado «’Janus Bifrons.’ Por- euforia (a luz como imagem de apogeu),
tugal às portas do futuro». A encerrar o à que parece aproximar-se mais do
Maria das Graças Moreira de Sá 257
sentido que António Machado Pires Quental. Mas mais do que esta Geração,
lhes quis dar: o do contraste entre a luz que empreendeu a grande batalha da
da Razão da Geração de 70, cientificista, Ciência e da actualização do Progresso,
positivista, comtiana e naturalista, à e que mereceu da parte de António
Zola, e as sombras do final do século Machado Pires estudos de leitura indis-
XIX, que se torna, por reacção, espiri- pensável sobretudo acerca das suas
tualista, simbolista, neocristão e místico- figuras tutelares como o são Eça,
-socialista, todo ele crepuscular. Antero, Oliveira Martins, Ramalho
Em apêndice ao volume, dois breves Ortigão e Teófilo Braga, por exemplo, o
textos: uma espécie de recensão crítica a que parece fascinar o autor, perfei-
O Segredo de Eça. Ideologia e Ambiguidade tamente visível na obra em apreço, é o
em «A Cidade e as Serras» de Frank ambiente finissecular, a transformação
F. Sousa e uma apresentação (que dos valores dos finais do século XIX, que
serviu de prefácio) ao Dicionário da congrega, por um lado, numa geração
«Mensagem» de Artur Veríssimo. que ficou conhecida como Geração de
Ora esta diversidade de textos, que o 90, a agudização do sentimento-ideia de
autor fez questão de sublinhar, é apenas decadência pós-Ultimatum e, por outro,
aparente. De facto, a consubstanciá-la o ambiente espiritualista e simbolista, a
como um todo unívoco está a perma- que já nos referimos, gerado por reacção
nente reflexão de António Machado ao cientificismo da geração anterior,
Pires sobre as questões da cultura movimento que se vai prolongar pelas
portuguesa que mais o têm ocupado ao duas primeiras décadas do século XX,
longo do seu vasto percurso enquanto com Teixeira de Pascoaes e Fernando
ensaísta nesta área de estudos: a contro- Pessoa. Esta viragem, cujo símbolo
vérsia, sempre presente, da identidade António Machado Pires encontra na
nacional (que constitui, ainda, um dos Pátria de Junqueiro, marca ainda as
capítulos da obra), a indagação desta a últimas obras dos sobreviventes da
partir do Romantismo português, com Geração de 70, como acontece ao Eça da
Garrett e Herculano, nos seus actos última fase, o de A Ilustre Casa de
confessados e inconfessados de crença Ramires e de A Cidade e as Serras, obras
no sistema liberal que ajudaram a detalhadamente analisadas pelo autor,
implantar no País (embora pondo ou para as quais o leitor é constante-
Portugal na balança da Europa…) e a mente remetido. Mas o que é singular
questionação (a desconfiança acerca) do nesta colectânea de estudos de cultura
Ser da Pátria levado a cabo pela Geração portuguesa é a presença da sedução de
de 70, a primeira a sistematizar, como António Machado Pires pelo parale-
ideia, um sentimento de decadência que lismo criado entre os dois finais de
se faz sentir desde meados do século século – o do século XIX e o do século
XVI, ideia consolidada nas célebres XX (v. «A identidade portuguesa») e a
conferências do Casino, donde sobres- comparação entre o início do século XX
sai a famosa Causas da Decadência e a entrada no século XXI – v. «Luz e
dos Povos Peninsulares, de Antero de sombra na transição do século (a época
258 Recensões

de D. Carlos)» –, assim como as cosmopolitismo, a ensinar aos Portu-


incursões que faz no nosso presente gueses a pensar, a comer, a comportar-
histórico e europeísta, que tão pro- -se descobre que Eça, para quem a
fundas raízes possui no imaginário cultura clássica foi sempre um alimento
colectivo português: «E cá estamos, na espiritual importante, confere a Ulisses
nova Europa, não já orgulhosamente a inquietação existencial inerente à
sós, mas dramaticamente confusos, condição humana; regista a génese bio-
corajosamente expectantes, equili- gráfica de Fradique e compreende como
brando um olhar para o passado com este se torna uma figura símbolo e um
outro para o futuro, compensando o pretexto para fazer falar os homens da
pessimismo ditado pelas limitações e própria geração do autor de Os Maias;
adversidades com o optimismo do apercebe-se do vitalismo organicista e
direito à esperança. Mesmo quando a “rácico” de Oliveira Martins e da abran-
‘mãe Europa’ nos examina as contas e gência da sua tese céltica, que faz do
a natureza nos punge com uma seca sebastianismo, mais do que um mito
impiedosa e uma sarça ardente» histórico e nacionalista, um «produto»
(«Janus Bifrons. Portugal às portas do natural e consequente; fica a saber o
Futuro», p. 141). modo como a crença de Manuel de
Assim, texto a texto, o leitor é Arriaga no Progresso e na Ciência se
confrontado com perspectivas diversas torna compatível com a sua busca
de um mesmo fenómeno histórico e intuitiva de espiritualidade, com o seu
cultural. No tempo de D. Carlos, deísmo anticlerical; assimila a forma
homem da geração de 90 ou do fim do como D. Miguel é susceptível de incor-
século, o leitor assiste à forma como o porar o mito messiânico para esmagar o
crepúsculo invade a luz universal do monstro liberal, maçónico e ímpio, e
Progresso da era da Mecânica dos anos contém o poder mitogénico alimentado
70 do século XIX, tanto na História, de patriotismo exaltado que caracteriza
como no romance, como na pintura, o desenvolvimento do Sebastianismo-
como na religião; interioriza que as -Miguelismo, restituindo à Nação o
identidades necessitam de suportes caminho providencialmente destinado
míticos e que, no caso português, Ouri- em Ourique; revisita todo o percurso de
que e D. Sebastião se completam; é uma busca identitária do País, de
confrontado com um Eça que, enquanto Garrett a Fernando Pessoa, busca onto-
filósofo do fim do século pela boca de Zé lógica que opera simultaneamente no
Fernandes, de Jacinto, mas, sobretudo, peso do Passado e nas esperanças do
pela de Fradique, e pela própria voz Futuro, qual deus bifronte de duas
“ortónima” de cronista da Gazeta de caras, uma a olhar o Passado, outra o
Notícias, adverte para os perigos que Futuro; entende, por fim, que a História
ameaçam a Europa; relembra Eça e da Cultura se faz conforme a «varanda»
Ramalho, ambos farpeando a medio- sobre a qual se debruça o docente ou
cridade, o parlamentarismo, a inépcia e investigador – ou do lado da Literatura,
o marasmo, ambos seduzidos pelo ou do lado da História, ou do lado da
Maria das Graças Moreira de Sá 259
História da Arte, ou da Sociologia, etc. natureza, interdisciplinares. «Cultura»
–, como o fizeram os grandes nomes de – insiste o autor – «não é um ‘somatório’
ensaístas da cultura portuguesa, de heteróclito, indiferenciado, anódino e
Vitorino Nemésio, Maria de Lourdes maçador, mas um caminho coerente
Belchior e Jacinto do Prado Coelho a Joel para um fim demonstrável no seu todo,
Serrão, José-Augusto França, Hernâni um rasgão na neblina de dúvidas e
Cidade, António José Saraiva, Jorge problemas, carreando um considerável
Dias, António Quadros, Eduardo Lou- conjunto de materiais para ‘forçar’ a
renço e outros, que António Machado prova» (p.171).
Pires cita e contextualiza. Fica assim Com uma linguagem clara e precisa,
advertido o leitor para a importância, fornecendo ao leitor, em sínteses exem-
na nossa cultura, da literatura como plares, a contextualização de uma época
«potencial resposta estética e especular para melhor defender, de forma ensaís-
que pode definir campos de busca tica, as suas teses, oferece-nos António
de traços da Cultura de um Povo» – M. Machado Pires uma obra incontor-
«O ensino da Cultura Portuguesa (fun- nável para os estudiosos da cultura e da
damento de uma cadeira)» (p.162), com literatura portuguesas do século XIX, a
os seus mitos próprios, os seus temas merecer com justiça, repetimos, o
obsessivos, as suas fronteiras por vezes prémio que, neste ano de 2008, lhe foi
pouco claras, a sua necessidade de atribuído pelo P.E.N. Clube Português.
comparativismo, os seus factos, por
Maria das Graças Moreira de Sá
260 Recensões

Pedro Eiras (coord.), Jovens ensaístas lêem jovens poetas, Porto, Deriva, 2008

O livro resulta de um ciclo de poesia em que se assume uma cadência


palestras, realizado em Matosinhos, em erótica feminina” (p. 25), sendo a partir
Outubro de 2007. O ciclo organizou-se daqui que se inicia o processo de refle-
em quatro partes distintas, que são xão do sujeito sobre a sua identidade
seguidas na edição: 1. Poética e Mostra- que, no entanto, como refere Marinela
ção; 2. O Lugar da Poesia; 3. Em Diálogo Freitas, “não lhe conferem uma iden-
com outras Artes, e 4. Panorâmica da tidade de facto, mas sim uma figura
Mais Jovem Poesia. Na edição, é anda de identidade, uma situação de sujeito”
incluída uma breve introdução de Pedro (p. 30). Assim, esta identificação e
Eiras, coordenador da mesma e autor da figuração do sujeito poético pretende
ideia inicial do projecto. Esta era juntar contribuir apenas para a “multiplicação
autores chegados ao ensaio ao mesmo dos contextos a partir dos quais ela
tempo que os poetas que analisam pode ser lida” (p. 30), sendo indiferente
chegaram à poesia, resultando o livro (e o género do sujeito da situação descrita
as conferências de que é reflexo) desse – “se a voz de um poema é “uma ele”,
encontro. “um ela”, uma elaele” ou “um eleela”
A primeira secção reúne as interven- não deveria importar” (p. 30, nova-
ções de Marinela Freitas, de Mariana mente). O que se pretende, portanto, é
Leite e de João Paulo Sousa. Apesar de uma figuração que permita uma leitura
os poetas analisados serem vários, o universalizante, e não confessional ou
enfoque de análise é comum: a definição pessoal, do texto poético.
da identidade do sujeito poético e as A busca do universal e completo é
suas consequências para a leitura e a também analisada por Mariana Leite,
determinação do sentido universali- no seu ensaio com o título já expressivo
zante da poesia, prosseguida, através da de “Poesia no século XXI – Odisseia no
análise do fragmentário e casuístico, em Saber?”, partindo dos livros Tratado de
cada um dos autores analisados. Botânica, de Joana Serrado, Biologia do
Marinela Freitas discute a questão da Homem, de Jorge Reis-Sá, e Para Morrer,
identidade do sujeito poético na obra de José Rui Teixeira. Em qualquer destas
Prefloração, de Catarina Nunes de obras, o que se mostra é como a falência
Almeida, realçando que a figuração, na da supremacia da ciência sobre os
poesia lírica, implica sempre uma inter- outros saberes e a sua incapacidade
ferência no pacto de leitura, designa- para responder de forma absoluta às
damente quando se trata de um poeta questões científicas conduzem a um
feminino, conduzindo a leituras literais diálogo entre disciplinas, que pretende
e biografistas da obra. A poesia de superar tais deficiências e permitir o
Catarina Nunes de Almeida “é uma conhecimento do outro que permitirá a
Ariadne Nunes 261
definição da nossa identidade. Assim, a rememoração e o encontro do sujeito
de acordo com a autora, os três livros consigo próprio. O mesmo tópico, que
analisados reflectem esta interdisci- remete, novamente, para a questão
plinaridade, quer através da forma do discutida nos textos englobados na
discurso adoptada em Tratado de Botân- primeira secção – a da descoberta da
ica – uma forma essencialmente cientí- identidade do sujeito poético e da
fica, com notas de rodapé, citações, poesia como via para tal –, é analisado
interrogações metodológicas e argu- no terceiro texto desta secção, por
mentação em todos os sentidos –, quer Raquel Ribeiro, a propósito da obra de
através da construção de um discurso Daniel Faria. A poesia é, aqui, apresen-
assente sobre as categorias do discurso tada como a via para o universal, o que
técnico (Biologia do Homem), quer ainda sobreviverá a tudo o que é contingente.
através das referências científicas e de A poesia é, em Daniel Faria, o espaço da
um poema, em Para Morrer, que liberdade, que se mostra para além do
abrange disciplinas desde a Genética à real, sendo o texto a expressão do divino
Gramática. O que se mostra é como, que os homens visam alcançar. Para
através do discurso da ciência, a questão tanto, o homem é despojado de tudo e é
que permanece é a da identidade que se este despojamento que permite o en-
pretende completa, mas só pode ser contro com o divino. O facto de o autor
conseguida de forma fragmentária. ser um monge não pode, aqui, ser igno-
Do mesmo modo, o ensaio de João rado e reflecte-se nestas concepções.
Paulo Sousa sobre o poema em prosa na A secção seguinte refere-se ao
obra de Luís Quintais mostra como esta diálogo da literatura com outras artes,
forma poética é, mais uma vez, o reflexo incluindo três ensaios. Se os dois pri-
da percepção moderna (mesmo pós- meiros (de Margarida Gil dos Reis e
moderna) e fragmentária do mundo, na Helena Lopes) se referem explicita-
tentativa de “habitar uma identidade” mente à relação da poesia com a foto-
(Pedro Eiras, apud João Paulo Sousa, grafia, a música e o cinema, o ensaio de
p. 47). A forma poética, de permanente Joana Matos Frias colocará a questão da
desdobramento entre o figurativo da relação da poesia com o mundo senso-
prosa e a realidade abstracta que se rial e da escrita como cirurgia, na
pretende exprimir com a poesia, expõe tentativa de cura de uma ferida sempre
o conflito actual do sujeito. aberta, que é a relação com os sentidos e
A segunda secção toma, nos dois o quotidiano. É esta percepção da
primeiros ensaios (de Catarina Nunes necessidade de articular o poema com o
de Almeida e de Miguel Ramalhete privado e o circunstancial que resultam
Gomes), a imagem da cidade na nova da experiência do mundo que, como
poesia contemporânea, quer como Margarida Gil dos Reis refere, a fotogra-
expressão do fragmentário (os micro- fia permite, designadamente presentifi-
cosmos familiares), quer como espaço cando o passado e mostrando a pereni-
de fixação de memória e, portanto, da dade do presente. Esta temporalidade,
própria poesia, como lugar que permite inevitavelmente ligada à condição do
262 Recensões

sujeito, é realçada pela fotografia, que usada por Andréia Azevedo Soares para
funciona como o resto, a ruína que mostrar como, nos poemas de Jorge
contribui para a formação identitária. A Reis-Sá, José Luís Peixoto e Rui Pires
relação com o cinema é analisada por Cabral, a poesia se mostra como a im-
Helena Lopes, a propósito da obra de possibilidade (mas ainda a única hipó-
José Mário Silva e José Rui Teixeira, tese) do encontro com o universal. Por
destacando ser este um meio que, como fim, Daniel Jonas, no ensaio que fecha o
a fotografia, torna o tempo palpável livro, parte da reflexão sobre o que é
(p. 117) e permite a produção de um uma geração, acabando por concluir
“efeito de real” (p. 110), visado pela actual que tal não passará “de uma coinci-
poesia portuguesa. dência cronológica, em que a eventual
A secção final do livro traça uma comunhão nos topoi não passa de uma
panorâmica sobre esta poesia, em que proximidade topográfica acidfental”
José Ricardo Nunes, Andréia Azevedo (p. 175).
Soares e Daniel Jonas identificam as Assim, se a generalidade dos ensaios
linhas caracterizadoras dos poetas da inseridos no volume permite identificar
geração de 90, isto é, os autores nascidos as linhas mestras da poesia portuguesa
entre 1965-75 e que começaram a contemporânea mais recente, o ensaio
publicar na referida década de 90. José final de Daniel Jonas parece uma
Ricardo Nunes, analisando uma série de demonstração das mesmas: se o frag-
poetas desta geração, refere que o traço mentário é o que compõe o quotidiano e
que caracteriza tais poetas é a referência essa poesia, a defesa da singularidade de
à realidade, ainda que ficcionada, reme- cada poema, não sendo possíveis leitu-
tendo para o mundo quotidiano. A lite- ras geracionais, exprime exactamente
ratura pretende ser o reflexo da vida, essa realidade. Ou seja, como Pedro
ultrapassando-se a dicotomia pessoana Eiras refere, no texto introdutório, “a
em que se encontram absolutamente leitura da poesia tem de ser inventada,
separadas. Assim, os sentimentos de de raiz, de cada vez que se abre um
perda que caracterizam o sujeito moder- livro” (p. 17), e é essa a grande lição da
no são visíveis e expressos na poesia. A crítica e da poesia portuguesa da
figura do pai, como espaço da infância e geração de 90.
do absoluto a que se quer aceder, é
Ariadne Nunes

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