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Retratos e Miniaturas No Renascimento em Portugal
Retratos e Miniaturas No Renascimento em Portugal
R E V I S TA D E L I T E R AT U R A
ROMÂNICA
REVISTA DE LITERATURA
N.º 18
Publicação Anual
ISSN: 0872-5675
Depósito legal: ?????????????
Paratexto
11 Cristina Sobral A retórica do prólogo no Trautado da Vida do Infante
D. Fernando
27 Isabel Almeida O que dizem «licenças». Ecos da fama da Clavis
Prophetarum
59 Ernesto Rodrigues Dedicatória: relação e discurso
77 Maria das Graças Moreira de Sá O paratexto em Oliveira Martins
91 Maria do Céu Estibeira Uma perspectiva da Marginalia de Fernando
Pessoa
109 Luís Mourão De fora para dentro e outra vez para fora: operações
paratextuais no bairro de Gonçalo M. Tavares
127 João Almeida Flor Na Periferia da Tradução Literária
137 Pedro Flor Retratos e Miniaturas no Renascimento em Portugal
157 Fátima Ribeiro de Medeiros Caminhos da Ilustração Portuguesa do
Livro para Crianças e Jovens
188 Rita Taborda Duarte A Palavra Imagem
Outros Estudos
195 José Miguel Martínez Torrejón Víspera de la Batalla. El Hervidero
Manuscrito Portugués Ante la Invasión de Marruecos
218 Pablo Javier Pérez Lópes Fernando Pessoa, el nietzscheano involuntario
Recensões
247 White, Landeg, The Collected Lyric Poems of Luís de Camões, 2008 (João
Almeida Flor)
253 Patricia Anne Odber de Baubeta, The Anthology in Portugal: a new
approach to the history of Portuguese literature in the twentieth century,
2007 (João Almeida Flor)
257 António M. Machado Pires, Luz e Sombras no Século XIX em Portugal,
2007 (Maria das Graças Moreira de Sá)
260 Jovens ensaístas lêem jovens poetas, Pedro Eiras (coord.), 2008 (Ariadne
Nunes)
Paratexto
A retórica do prólogo no Trautado da Vida do Infante
D. Fernando
Cristina Sobral
Universidade de Lisboa
1 A bibliografia sobre o assunto é muito vasta e pode ser consultada em Fontes, Percursos, pp. 72-73.
2 Sobre a promoção do seu culto v. Fontes, Percursos, pp. 196-198.
3 A edição crítica de Calado (Álvares, Trautado) cujas páginas citarei, toma como testemunho-base
um manuscrito (BITAGAP Manid 1065) copiado em Portugal, em 1451-60 (Calado, Frei João
Álvares, p. 74) e conservado na Biblioteca Nacional de Madrid (códice 8120).
Lausberg, Manual, vol. I, pp. 240-260; Minnis, Theory; Montoya Martinez, Riquer, El prologo;
Nascimento, “Hagiografia”, p. 307.
6 Montoya Martinez, Riquer, El prologo, p. 150.
7 “Prooemium est initium dicendi. Sunt enim prooemia principia librorum, quae ante causae
8 Isso mesmo reconheceu o editor, que interpretou a primeira unidade paratextual como Prólogo
e considerou, inadequadamente, as outras duas como “aquilo que Frei João Álvares escreveu no
sentido de traçar a biografia do Infante Santo” (Calado, Frei João Álvares, pp. 90-91), integrando-
-as na numeração sequencial dos capítulos, apesar de a matéria não ser narrativa.
9 A surpresa foi sentida também por Calado, que acaba por reconhecer que a matéria que
distingue como primeiro e segundo capítulos (Prólogos II e III) não é narrativa e que poderia ser
uma continuação do prólogo, apesar de separada dele pelo incipit. De forma algo confusa, acaba,
porém, por validar a sua primitiva leitura, considerando que “os dois primeiros capítulos ficam
perfeitamente limitados dentro dos seus objectivos”, os quais, porém, não define claramente
(Calado, Frei João Álvares, pp. 91-92).
10 Apresento em três quadros finais a estrutura retórica dos prólogos, no texto fixado por Calado
(Frei João Álvares). Por essa razão dispenso-me de mencionar número de página quando cito os
prólogos.
11 Bourgain, “Les prologues des textes narratifs”, p. 246.
14 Paratexto
neestes dias, por eixalçamento da santa ffe católica fez seu acabamento”).
Reafirmando a singularidade do seu testemunho (“por eu seer ao presente a
mais principal e achegada testymunha destes feitos”) e a obediência ao senhor
que o patrocina (“p[e]ra conprir mandado do dicto Senhor, me dispus ao
seguinte trabalho”), termina com a indispensável afirmação de modéstia
(“fraqueza e boto entender”, “fraquo entender”, “rudo engenho”), que reclama
auxílio divino (“ao todo poderoso Deus peço ajuda e favor, e graça aaquela
Senhora Virgem sua madre”).
Tal como o segundo, o terceiro prólogo abre igualmente com uma
sentença sobre a importância exemplar da memória. Não se encontra a
confirmação de autoridade mas, em seu lugar, uma amplificação do tema,
que sublinha a importância da escrita no conhecimento dos notáveis feitos
dos antigos, a lembrar ecos da historiografia afonsina, bem conhecida em
Portugal12. De novo são apresentadas as circunstâncias em que o autor se
dispõe a escrever, acentuando-se agora a emotividade do discurso através de
um expressivo paralelo entre o cativeiro do Infante e seus companheiros e a
última ceia de Jesus e seus apóstolos (Jo. 13.1; 15.16; 22. 26):
…eu, que fuy dos chamados e escolhidos pera o convite postumeiro,
onde em lugar de pam se comeu amargura e o bever com lagremas
foy mesturado, de que se escrepve que, como ho Senhor muito
amase os seus, na fim os amou muito mais e, feita a çeea e eu
avondado de tam tristes manjares, sobre o regaço do Senhor me
acostey, onde me muytos sagredos forom revelados.
13 Braga, “Prologhi delle opere in prosa”, pp. 122-123; Dolbeau, “Les prologues de légendiers
latins”, p. 345.
Cristina Sobral 17
prólogos, João Álvares obedece ao encargo que lhe fizera D. Henrique, senhor
sob cuja protecção crê estar a salvo. É à certificação de verdade, expressa
enfaticamente em triplicação de adjectivos (“cousas çertas e manifestas e em
todo vereficadas”) e enumeração verbal (“o vy e ouvy e assy o afirmo”), que
está subordinada a apresentação da materia, contaminada pela refutação
vigorosa do seu contrário (“nom em fingidas patranhas nem em ouçiosas
fabulas, que seguem empos dos ventos e careçem de toda verdade”, “nom
mento”, “do contrario me sento por pelegrim e estranho”). Ganha a propositio,
com a invocação do testemunho divino, um tom assertivo, categórico, que
não se encontra nos outros prólogos. É interessante notar que da conclusio
está ausente o motivo da humilitas, aliás escassamente presente no Prólogo I,
e que, além da petição de ajuda divina, vemos aparecer a evocação de outro
protector (ausente dos outros prólogos), capaz de se sobrepor ainda à
protecção do Infante D. Henrique, o próprio rei D. Afonso V, e repetir-se, pela
última vez, a invectiva contra os adversários. É também única neste prólogo
a identificação explícita do autor (“eu, frey Joham Alvarez”), amparado no
seu título (“cavaleiro da Ordem d’ Avis”) e na sua ligação institucional a um
grande senhor (“e da casa do Senhor Ifante dom Anrique”).
A certificação de verdade, a contradição dos opositores, a alegação de
protecção poderosa e o reforço da autoridade autoral, marcantes neste prólo-
go, esclarecem a razão da sua existência. Enquanto os outros dois podem ser
considerados prólogos a nostra persona, em que o autor apresenta as circuns-
tâncias pessoais que o impelem a escrever uma obra para a qual ninguém
estaria mais habilitado e nos quais procura captar a benevolência do público
pela identificação emotiva e pelo deleite, o Prólogo I é um prólogo ab
adversariorum persona, que visa o vitupério dos opositores14. A necessidade
de um prólogo assim parece apontar para um contexto de recepção de previ-
sível animosidade15. Não devemos deixar-nos iludir pelo facto de nos três
prólogos encontrarmos estruturas e tópicos da retórica tradicional. Apesar
de serem os prólogos muitas vezes vistos como lugares-comuns despidos de
referencialidade, creio, pelo contrário, que os moldes formais da retórica
ofereciam em muitos casos um modus dicendi, usado pelos autores para mais
eficazmente transmitirem ao público os conteúdos pretendidos.
Sabemos que, logo em 1437, o desastre de Tânger foi interpretado na
sociedade portuguesa sob diferentes perspectivas. Dos fidalgos que tinham
participado no cerco, alguns contestaram abertamente a actuação do Infante
D. Henrique, vendo na prisão de D. Fernando o resultado de uma desastrada
intervenção militar, interpretação refutada, aliás, pelo rei:
quamdo o Iffante Dom Hamrique ueo de Tamger, porque algúús
daquelles fidallguos que com elle forom, queremdo emcobrir seus
falleçimentos, deziam algúuas cousas comtra o Iffamte, aas quaaes
seu jrmãao nom quis dar nenhuúa ffe, amte dezia que seu jrmaão
nom poderia fazer cousa que nom fosse justa e boa. mas que elles o
deziam por se escusar, do que comtra elles rrazoadamente podia
seer dito.16
Outros adoptam oposta atitude, lançando as bases de uma interpretação
providencialista do cativeiro do Infante Santo:
o soberano não se deixou influenciar pelo clima de contestação às
decisões tomadas pelo Navegador, patente em parte nos homens
que regressavam de Tânger, elogiando mesmo a atitude de Álvaro
Vaz de Almada, que, antes de se apresentar ao rei, “logo de finos
panos e alegres coores se vestio, a sy e a todollos sseus[…] com sua
barba feyta e o rosto cheo d’alegria”, para depois, na sua presença,
enumerar as diversas razões pelas quais D. Duarte “devia seer muy
alegre e contente, estimando æ nada ho cativeiro do Ifante seu
irmãao, que era huum homem soo e mortal, em que avia muytos
remedios, em respecto da grande fama que naquelle fecto em seu
nome se ganhara”.17
O assunto da entrega de Ceuta e da libertação de D. Fernando é longa-
mente discutido, em Janeiro-Fevereiro de 1438, nas cortes de Leiria, onde os
partidos a favor e contra a entrega de Ceuta se manifestam, estando o Infante
D. Henrique entre os últimos. D. Duarte morre em Setembro de 1438, dei-
xando o reino mergulhado numa grave crise política que só virá a resolver-se,
depois da batalha de Alfarrobeira (1449), durante o reinado de D. Afonso V.
Em 1443, a notícia da morte do Infanto Santo desencadeia comoção social:
a “morte deste Yfante por sua calydade e desemparo foy muyto sentyda e
antre hos imfieis por livrar os seus”, “depos a primeira ida de Tangere, quando ficou laa e se deu
en arrefés por livrar a todos ho Imfante Dom Fernando” (Paulo de Portalegre, Novo Memorial,
pp. 152, 162).
21 Álvares, Trautado, pp. 42, 43, 58, 79.
20 Paratexto
nem o seu desejo de abreviar a dor22. Mas era-lhe possível transmitir aos
vindouros os segredos que só ao fiel secretário haviam sido revelados e que
lhe permitiam contar mais do que os gestos presenciados: os pensamentos
íntimos do Infante, as considerações interiores que haviam, afinal, pesado
nas suas decisões:
E nom enbargando que este Senhor conheçese o trabalho e perigoo
que lhe seriia poendo.se em mããos e poder de tam maa jente, como
aquele que de bõõa vontade consentyra de dar sua vida, logo aly,
por serviço de Deus e por livramento de todos, ele se ofereçeu e pos
em arrafem.23
Refutatio humilitas
posto que minha mãão abranjer nom possa a poher.se sobre as
bocas dos susoditos nem seja sofiçiente pera, com tenperada
redea, moderar e refrear as lingoas dos maldizentes, nom por eu
desejar tanto o louvor desta obra que muito mais nom devese
reçear de me apoer aos contrairos sofismadores e dar.me por
autor de tam grandes cousas,
materia veritas
me atrevy d.abrir minha boca nom em fingidas patranhas nem
em ouçiosas fabulas, que seguem empos dos ventos e careçem de
toda verdade, mais [em] cousas çertas e manifestas e em todo
vereficadas, as quaaes propus de falar açerqua do meu
proposito. E tomo por testemunha Noso Senhor Deus, que he
caminho, verdade e vida, pelo qual quem quer que andar achará
folgança e repouso. Este sabe que nom mento e que todo o
contheudo no seguinte trautado eu o vy e ouvy e assy o afirmo e
do contrario me sento por pelegrim e estranho,
Propositio obedientia Mas porque o mui alto e muy poderoso prinçepe ho Senhor
materia Ifante dom Anrique me mandou que, ante da minha partida
pera fora destes reignos, leixasse em escripto o que sabia da vida
e feitos de seu irmãão o Ifante dom Fernando, o qual antre os
mouros, neestes dias, por eixalçamento da santa ffe catolica fez
seu acabamento,
confirmatio credibilitas
e por eu seer ao presente a mais prinçipal e achegada testymunha
destes feitos, e p[e]ra conprir mandado do dicto Senhor, me
despus ao seguinte trabalho
1 Uma vez que são utilizadas várias edições de textos parenéticos de Vieira, a sua distinção, nas
indicações abreviadas em nota-de-rodapé, far-se-á pela data de publicação. No que toca à
epistolografia, o tomo III da edição setecentista será identificado também pela data (1746), a
qual se dispensa na citação das Cartas organizadas por João Lúcio de Azevedo. Na transcrição de
edições antigas, procede-se a uma actualização das grafias, mantendo apenas aquelas que
representam uma realidade fonética própria. São introduzidos ajustamentos na pontuação.
2 Trata-se de um fenómeno amplo, a uma escala europeia, e dele fornecem testemunho muitos
5 «Censura do M.R.P.M. Frey Joseph de Jesus Maria […]», in Sermoens […]. Quarta Parte, 1685.
6 «Censura do P.M. Manoel de Sousa […]», in Sermoens […]. Quinta Parte, 1689.
7 «Approvaçam do M.R.P.M. Fr. Ioam da Madre de Deos […]», in Sermoens […]. Segunda Parte,
1682.
8 Ao Marquês de Gouveia, declarava: «Sobre a aprovação do quarto, em que vejo tão demasiada-
mente encarecida a pobreza do meu engenho, não sei que diga a V. Ex.ª. A frase com que no
Brasil se declara que os engenhos não moem é dizer que pejaram; e eu verdadeiramente tenho
pejo de que se diga no frontespício do livro o que se não há-de achar nele. Já estava contente com
que, tendo-se passado o nosso Arcebispo a este outro mundo, não haveria nesse quem tanto me
envergonhasse; mas V. Ex.ª, pelo excesso da mercê com que sempre me honrou, não achando
sobre a terra quem o fizesse, o foi desencovar nas serras da Arrábida.» (Cartas, III, p. 504 – Baía,
5 de Agosto de 1684).
9 «Censura do M.R.P.M. Fr. João do Espirito Santo […]», in Sermoens […]. Sexta Parte, 1690.
10 «Approvaçam do M.R.P.M. Fr. Ioam da Madre de Deos […]», in Sermoens […]. Segunda Parte,
1682.
11 «Censura do P. Mestre Domingos Leitão […]», in Sermoens […]. Septima Parte, 1692.
12 «Censura do Illustrissimo Senhor Dom Diogo da Annunciação […]», in Sermoens […]. Undecima
Parte, 1696.
13 As datas das censuras são 14-3-1696 e 5-9-1698.
14 «Censura do Illustrissimo Senhor Dom Diogo da Annunciação […]», in Sermoens […]. Undecima
Parte, 1696.
Isabel Almeida 29
Argumentação similar, desenvolvê-la-ia, insistente, dois anos depois:
Se na sua Clavis Prophetarum falta algúa guarda para poder abrir em
algum Capítulo dos Profetas; do Padre António Vieira não há chave,
que não seja mestra, para poder abrir a fechadura de toda a dificul-
dade: e se ao último Tomo desta célebre obra, segundo me disseram,
faltam só duas disputas, melhor é que duas disputas nos faltem do
que pela falta de duas disputas ficarmos perdendo a dous Tomos,
que forçosamente devem ficar sem a última mão, porque só a lima
do Padre António Vieira pode aperfeiçoar condignamente a guarda
da sua chave.
Posso afirmar a Vossa Majestade pela notícia, que deu em
Roma, quem teve a fortuna de ver esta grande obra, e pelas conferên-
cias que tive na mesma Corte sobre a matéria do seu argumento, que
enquanto não aparecerem estes dous livros, ainda está no mundo
por saber quem é o Padre António Vieira […].15
2. a Clavis sonhada
Recapitulemos: dirigindo-se ao «leitor», no primeiro volume dos
Sermoens (ultimado em 1677, saído do prelo em 1679), Vieira aplicou-se a
mencionar os «livros latinos» da Clavis Prophetarum como sombra viva no
palco iluminado pela edição da parenética. Significava isso que não deixava
esquecer aquele trabalho empreendido ao cabo de duras penas: longe do que
sucede com um livro «ideado», «Pregador e ouvinte cristão»20, a Clavis surge,
apesar das escusas, dotada de contornos e mais prometida do que preterida
em face dos Sermoens – «Mas porque estes vulgares são mais universais, o
desejo de servir a todos, lhes dá por agora a preferência»21.
Saliente-se o justificativo da escolha do objecto a estampar («porque
estes vulgares são mais universais»); perscrute-se o carácter circunstancial
dessa opção (flexível, a cláusula «por agora»); note-se o encarecimento da
dupla obediência – de súbdito e de religioso – como móbil da iniciativa
Cristão, nele verás as regras, não sei se da arte, se do génio, que me guiaram por este novo
caminho.» (Padre António Vieira, Sermões, I, 2008, p. 6).
21 Padre António Vieira, Sermões, I, 2008, p. 8.
Isabel Almeida 31
(à «obrigação» de «vassalo» de D. Pedro somava-se a grata vénia ao «Reve-
rendíssimo P. João Paulo Oliva, Prepósito Geral» da Companhia de Jesus22).
Pontificam, é nítido, critérios de impacto, questões de princípio.
Como quem teme, magoado, ou como quem, antecipando o mal, ambi-
ciona esconjurá-lo, Vieira não calava a insinuação de que, no concernente ao
Príncipe, débil se adivinhava o eco do seu empenho: «Mas porque os afectos
se não herdam com os Impérios»23… E imenso terá sido o dano desse
desencontro: porque não foi terminada a Clavis Prophetarum, cuja língua
era o universal latim? Quando, na década de 90, a rainha D. Maria Sofia
de Neubourg e o novo Geral da Companhia pressionaram Vieira para que
concluísse a obra profética24, não teria o Jesuíta modo de compatibilizar
estas solicitações com a obediência a D. Pedro e a fidelidade à memória de
Giovanni Paolo Oliva25? Que motivos o levaram a não agarrar a ocasião
proporcionada e a obstinar-se na editio dos Sermoens, procrastinando o
remate da Clavis que tão amiúde e superiormente lhe foi então requerido?
algumas linhas, datadas de 28 de Fevereiro de 1695, D. Maria Sofia fizera saber a Vieira do
agrado com que recebera Xavier Dormindo e Xavier Acordado (Cartas, 1746, pp. 421-423). A 28 de
Janeiro de 1696, era a vez de o P.e Tyrso González responder nestes termos ao pedido que lhe
endereçara a soberana: «ainda que eu e a Companhia não fôssemos tão interessados no crédito
que nos granjea um Varão tão douto e admirável pelos seus escritos, bastava o desejo de Vossa
Majestade para me obrigar a fazer todo o empenho para que esta obra, que justamente é a
expectação de toda Europa, saia à luz. A todos os particulares que Vossa Majestade me ordena,
dou inteiro e devido cumprimento. Ao mesmo Padre Vieira escrevo e encomendo muito
satisfaça ao gosto de Vossa Majestade; e para o mesmo fim lhe concedo permanentes quantos
Religiosos lhe forem necessários e ele pedir para seu alívio. No caso também, em que Deus o
chame a melhor vida, e fique o livro imperfeito, ordeno ao Provincial do Brasil, com preceito
grave de obediência, execute o que Vossa Majestade deseja e manda.» (pp. 433-434).
25 Em 22 de Julho de 1695, depois de contar uma queda que o teria deixado fisicamente muito
maltratado – «com uma ferida na cabeça e ambas as mãos estropeadas» (Cartas, III, p. 670) -,
Vieira escreve ao Padre Baltasar Duarte: «Mas nesta falta de forças de mim mesmo (em quem
propriamente se verifica Omnia fert aetas, animum quoque) me vejo de novo obrigado com duas
obediências, uma Real e outra da religião, a prosseguir e acabar a Clavis Prophetica, a que depois
de partida a frota me aplicarei do modo que for possível, entendendo que é vontade de Deus que
a morte me ache com esta obra de tanto serviço seu, ao menos no pensamento e na voz, já que
não pode ser nas mãos.» (Cartas, III, p. 671).
32 Paratexto
26 Cartas a Duarte Ribeiro de Macedo contêm repetidas evocações das trovas de Bandarra, base de
uma renovada esperança que Vieira projectava no remate da década de 70 (ver Cartas, III, p. 271,
p. 346, p. 395; 10-5-1678, 23-1 e 5-6 de 1679), ajustando assim conjecturas anteriores sobre os
«anos da era de sessenta» (Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 66).
27 Cartas, II, p. 516 (Roma, 22 de Outubro de 1672).
28 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 77.
29 Repare-se no título dado, no processo de Vieira, à sessão de interrogatório de 3 de Dezembro de
1666: «18º Exame, e intermédio, acerca de acabar por uma vez com tantos protestos, obséquios,
e submissões verbais somente, como o Réu faz, e obrigá-lo a que declare lisamente se quer estar
pelas censuras, e admoestações, e desistir da defesa, e mais razões, e filosofias.» (Adma Muhana,
Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 191).
30 Padre António Vieira, Representação perante o Tribunal do Santo Ofício, II, pp. 468, 469. Corro-
bora esta afirmação o teor da denúncia do Padre Fr. Jorge de Carvalho, com data de 5 de Abril de
1663 (ver Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 352; infra, nota 70).
Isabel Almeida 33
protestos de aflição pelo «crédito» jesuíta, era a sua fama que por fim
avultava. Receando um vexame que infligiria à Companhia um revés «tanto
maior quanto as resoluções deste sagrado tribunal são mais justificadas e
respeitadas do mundo», Vieira acrescentava, pressuroso: «do mundo, em
todo o qual eu sou conhecido»31. Com esta tendência para a hipertrofia do
EU («se em mim não houvera mais que eu»32…) condizia o que a Inquisição
classificava como «vaidade»33: a desenfreada lide bíblica, infractora de
decretos tridentinos34, a reivindicação bandarrista do estatuto de «alto
engenho»35, o deleite na caracterização do êxito surtido pelos planos de
urdidura da Clavis, quando relatados a «pessoas doutas»36. Não custa, pois,
de acordo com Adma Muhana37, descobrir na redacção, em plena e pródiga
Cidade Eterna, da obra (ou parte dela) designada Clavis Prophetarum, um
voto de defesa e uma tentativa de cura da honra ferida.
Vieira partira de Portugal, em 1669, proibido de «mais não tratar das
proposições conteúdas em sua sentença»38. Diferente foi o retorno de Itália,
em 1675: conseguiu regressar protegido pelo generoso e digno Breve que o
Papa Clemente X lhe outorgou, e, imune a qualquer jurisdição inquisitorial
31 Padre António Vieira, Representação perante o Tribunal do Santo Ofício, II, p. 472.
32 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 309.
33 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 324.
34 Leia-se o «6º Exame acerca de usar mal da Sagrada Escritura […]» ou a «Sentença» final (ver
provocado): «E que em outra ocasião falando-se em Bandarra, dissera que tanto era certo ser
verdadeiro profeta, e por tal tido de muitas pessoas das mais autorizadas, que vendo algumas ao
Réu caído de certa privança e valimento, e com outras desconsolações, o animavam com lhe
dizerem, que necessariamente havia de melhorar de fortuna, pois o mesmo Bandarra assim o
havia profetizado em uns versos que dizem: Vejo um alto engenho em uma Roda triunfante;
entendendo pela Roda, a da dita fortuna, e pelo alto engenho, a ele Réu, a quem posto que então
estava abatido, tornaria ainda a levantar a própria Roda.» (Adma Muhana, Os Autos do Processo
de Vieira na Inquisição, p. 322).
36 Na «Petição ao Conselho Geral», Vieira dispõe-se a provar a bondade das suas intenções
invocando, entre outros meios, o testemunho de «pessoas doutas»: «E algum houve que
considerando a grandeza e importância de muitas das ditas matérias e a utilidade que do conhe-
cimento delas se pode seguir à universal Igreja e à conversão de muitas almas de Ateus, Gentios,
Judeus, e de todo o outro género de infiéis, e hereges, julgou e disse que eram merecedoras as
ditas matérias, de que na Igreja se fizesse um Concílio para maior qualificação delas.» (Adma
Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 126).
37 Ver Adma Muhana, «O processo de Vieira na Inquisição»; «Introdução», in Os Autos do Processo
com o seu interesse (ver Cartas, III, p. 336 – a Duarte Ribeiro de Macedo, 20-12-1678). A
confirmar-se esta hipótese, ressalta a curiosidade pela literatura profética, difundida também no
convento carmelita de Carnide. Avizinhando a Idea, bem recebida, e a sua Clavis, condenada,
Vieira denunciava a disparidade de critérios na avaliação de cada uma das obras – e sugeria que
um lugar ao sol era afinal merecido pelo seu trabalho.
48 Cartas, III, p. 401 (Lisboa, 13 de Junho de 1679).
49 Afirma Luisa Trias Folch, considerando a História do Futuro e o Livro Ante-primeiro da História do
Futuro de Vieira: «O jesuíta português profetizará a vinda do Quinto Império e oferecerá o poder
temporal do Império Universal ao rei de Portugal; o franciscano peruano oferecê-lo-á ao rei de
Espanha, mas, como crioulo que era, e dadas as circunstâncias de decadência do Império
espanhol, concede às Índias um papel primordial.» («O Quinto Império do mundo…», p. 382).
36 Paratexto
iniciais50, acabou por crer bafejado por sorte próspera. Recearia um desequi-
líbrio injusto, capaz de o secundarizar? Inconsolável, deplorava que a bitola
da Inquisição de Espanha e de Roma não norteasse a portuguesa: «houve cá
quem me condenasse por muito menos do que aí se não reprovou e em Roma
se deu licença para que se imprimisse»51. E, obsidiante na comparação, ao
registar uma dívida para com o tribunal espanhol, que deferira, benévolo,
requerimentos relativos à estampa de Sermões, afirmava – «Ao senhor Inqui-
sidor Geral, que parece já me conhecia por cúmplice em parte nos delitos do
Padre Tenorio, estou obrigadíssimo»52.
Portugal não era propício a tais «delitos», que contemplavam o destino
da gente de nação. Continuava efervescente a querela sobre os procedimen-
tos do Santo Ofício, com manobras diplomáticas e interferências de grupos
cristãos-novos e judaicos a espicaçar um duro braço-de-ferro entre o poder
da Inquisição lusa e a autoridade do Vaticano53. Escancarar interesse por
anatematizadas proposições de Vieira havia de redundar, entre 1670 e 1680,
em insensatez, e o aceno lavrado no prólogo dos Sermoens não obteve de
imediato réplicas públicas nem granjeou o amparo de D. Pedro – porventura
o mais pretendido pelo Jesuíta, que durante anos não voltou a falar da Clavis
Prophetarum.
«Tanto se mudam as cousas!»54 Num novo contexto («Toda a minha
desgraça esteve no tempo» – vincara já Vieira em 167255), terá sido a associa-
ção, à Clavis ou, melhor, à sua fama, de um fino e empolgante alcance polí-
tico, o factor decisivo da génese de manifestações análogas às de D. Diogo
50 Na primeira carta em que refere o Padre Gonzalo Tenorio, Vieira assevera a Duarte Ribeiro de
Macedo ter notícia de que os dezasseis tomos da obra do peruano esperavam por licença para
sair, e congemina: «Também me disseram que, estando estes livros reprovados pela Inquisição
de Espanha, o autor fora a Roma e de lá trouxera licença para os estampar, o que de nenhum
modo me parece verosímil, porque sem dúvida o dissera o mesmo autor, e a impressão desta Idea
não seria ao que parece furtiva.» (Cartas, III, p. 361 – Lisboa, 6 de Março de 1679).
51 Cartas, III, p. 380 (Lisboa, 1 de Maio de 1679).
52 Lembrando o «frade franciscano português» que lhe teria oferecido a leitura da obra do P.e
Tenorio, Vieira narra a Duarte Ribeiro de Macedo: «Disse-me mais o frade que, lendo no Porto
o extracto do Padre Tenório ao Bispo, irmão do nosso Secretário, ele fora com as mãos à cabeça
e tapara os ouvidos, dizendo que aquelas mesmas proposições eram as minhas, e que se não
havia de dar licença para que tais livros se lessem em Portugal. Em tudo procede coerentemente
a nossa singular ciência.» (Cartas, III, p. 371 – Lisboa, 28 de Março de 1679).
53 Ver Francisco Bethencourt, «A Inquisição», pp. 109-110; J. Lúcio de Azevedo, História de António
59 O volume terá começado a circular em Março de 1690, pois é do início do mês (dias 6 e 4,
endereçada em 1659 ao Bispo eleito do Japão, P.e André Fernandes, o grande pretexto do Santo
Ofício para mover a Vieira um processo.
38 Paratexto
62 Cartas, III, pp. 576-577 (a Sebastião de Matos e Sousa – Baía, 11 de Julho de 1689). Ao Duque
de Cadaval, numa epístola de 14 de Julho de 1690, diria: «Dizem, por me condenar duas vezes,
que será este papel como o de El-rei; e eu, por me consolar de uma vez, imagino que pode ser o
de El-rei como este» (Cartas, III, p. 586). Note-se que em outras cartas, nomeadamente as que
endereça, a 15 de Julho de 1690, ao Cónego Francisco Barreto e a Diogo Marchão Temudo,
respectivamente, Vieira inclui afirmações similares (ver Cartas, III, pp. 596, 600).
63 «Aora me holgara yo mucho saber de nuestro Escoto Patavino que es lo que le descontenta en un
Emperador christiano, que lo sea de todo el mundo? Si no lo quiere Portuguès, como dizen
muchos de los Autores citados; si le desagrada por ser Español, hagalo Escocès, como el se haze,
tomandose el nombre de Escoto; ò Italiano, como Patavino, de quien tomò el sobrenome, que
esto no es mas, que question de vocabulo: lo que ciertamente importa poco, mientras logre la
Iglesia un Imperio de todo el mundo, estabelecido en un Principe Catholico, y subdito del
Romano Pontifice.» (Cartas, III, p. 763 – 30 de Abril de 1686).
64 Numa carta de 8 de Agosto de 1684, Vieira declarava: «O triunfo total e destruição do império
otomano está reservada para rei português; e podemos crer que será o presente […]» (Cartas, III,
p. 510).
65 Padre António Vieira, Sermões, XV, 1959, p. 205.
66 Paulo Alexandre Esteves Borges, A Plenificação da História em Padre António Vieira, p. 256.
Isabel Almeida 39
mesmo plano da Providência a morte do principezinho e um futuro de
portentos, o Jesuíta reiterava: «a vitória final do império do Turco e o uni-
versal de todo o Mundo está destinado por Deus para Portugal»67. D. Pedro
II seria chamado: «para substituir desde logo, e entrar à posse do primo-
génito morto, não é necessário esperar pelo irmão segundo, como sucessor,
senão recorrer ao pai como herdeiro do filho»68.
Por asserções sobre o Quinto Império, entre 1663 e 1667, os juízes inqui-
sitoriais haviam apodado Vieira de judaizante, «temerário, escandaloso, inju-
rioso, sacrílego, ofensivo piarum aurium, erróneo, e sapiente a heresia»69; em
1690, o próprio D. Veríssimo Lencastre (membro do Conselho Geral do
Santo Ofício, na época do processo70; Inquisidor-Geral, desde 1675) terá
contribuído para dar Palavra de Deos ao prelo71. E sem a demora que exas-
perara Vieira, quando da edição da Parte I dos Sermoens – vergado a suspirar
semanas pelo veredicto censório72 –, num prazo brevíssimo (quatro dias),
cada revedor não só leu como acarinhou a obra: «Em cada um destes três
assuntos reluz a delicadeza do juízo deste Autor, e a universal notícia que na
continuação de seus estudos tem adquirido das histórias divinas, e humanas,
das quais tira fundamentos para vaticinar a Portugal futuras felicidades por
desempenho da palavra de Deus dada no Campo de Ourique ao primeiro
em Coimbra, pregadores como Fr. João de Deus (Qualificador do Santo Ofício) argumentavam
que era «conveniência de Deus ter Portugal sobre a terra o Império do Mundo» (João Francisco
Marques, A Utopia do Quinto Império e os Pregadores da Restauração, p. 545). Omisso ficava
(diferença crucial, em relação à obra de Vieira) o destino dos hebreus.
70 Perante a denúncia do Padre Jorge de Carvalho, que relatou ter-lhe dito Vieira «que tinha com-
posto na sua idéia um livro a que daria título de Clavis Prophetarum», «pareceu ao Inquisidor
Dom Veríssimo de Lancastre que ao presente se não lhe oferece coisa que se houvesse de fazer
por parte do Santo Ofício visto que o Padre Antônio Vieira não determina imprimir aquele livro,
e que em caso que resolva a fazê-lo imprimir então se verá e conforme a matéria dele e suas
proposições se procederá.» (Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, pp. 352
e 354, respectivamente).
71 Ver Cartas, III, p. 585.
72 A 28 de Junho de 1678, Vieira desabafa com Duarte Ribeiro de Macedo: «O meu livro, com todas
as recomendações de S. A., ainda não saiu da Inquisição, havendo perto de seis semanas que lá
está. Já me contentarei com que me o restituam, e com este desengano me resolverei, como já
signifiquei a V. S.ª, onde me será melhor buscar a sepultura.» (Cartas, III, p. 289). A 19 de Julho,
já satisfeito com o «nulla obstat» do Santo Ofício, refere «o cumprimento» que o Inquisidor
Geral tivera «da tardança», indo «dar[-lhe] as graças» (Cartas, III, p. 296).
40 Paratexto
Afonso»73; «este pequeno volume, mas grande livro, consigo leva sua
imortalidade na engenhosa explicação das futuras felicidades dos
Portugueses vaticinadas por desempenho da palavra de Deus dada no Campo
de Ourique ao primeiro Rei de Portugal, sem ofensa da Fé Católica, nem
cousa que aos bons costumes faça dissonância»74.
Uma malha de altos apoios (afeiçoada por Vieira, destro a espalhar entre
personagens gradas – o Duque de Cadaval, o Padre confessor Leopold Fuess,
D. Veríssimo Lencastre, o Cónego Francisco Barreto, o Juiz Diogo Marchão
Temudo… – textos alegadamente sigilosos) favoreceu Palavra de Deos75. E,
numa reacção a este «tributo» sui generis76 – autêntico marco crucial –,
acumularam-se, depois de 1690, incitamentos à publicação da Clavis. Foi a
partir daí que Sebastião de Matos e Sousa lembrou, assíduo, o assunto; foi
então que elementos de monta da hierarquia eclesiástica, como D. Diogo
Justiniano, ou do xadrez áulico, como o Duque de Cadaval, repercutiram essa
curiosidade. Por idêntico diapasão, Fr. Manoel Caetano de Sousa, na
«Oração Fúnebre nas Exéquias do Reverendíssimo Padre António Vieira» (17
de Dezembro de 1697) evocaria «aquele Pregador, que à imitação dos
Profetas antigos […] nos ajudava a estimar as felicidades presentes, que nos
animava a esperar as futuras, que nos consolava nas nossas perdas, que nos
fazia conhecidos e estimados das Nações estranhas»77. E Fr. José de Sousa,
qualificando a História do Futuro, em 1709, calculava: «Se com a impressão
deste faz divulgar a promessa, que ele contém, de se abrirem nos outros às
nossas esperanças as portas das profecias, que estão há tantos séculos
fechadas; já se obriga a entregar-nos em aqueles livros a chave dos Profetas,
para abrirmos as portas de nossas fortunas»78. Em suma: ao puxar para a
remetia do Brasil para o Reino, praticamente numa cadência regular de um por ano. Em 11 de
Julho de 1689, porém, ao enviar o material estampado como Palavra de Deos, confidenciava a
Sebastião de Matos e Sousa uma saborosa excepção: «O de que mais me corro é que este ano
falto ao prelo com o costumado tributo, mas nem por isso estive ocioso.» (Cartas, III, p. 576).
77 «Oraçaõ Funebre […] disse-a o P. D. Manoel Caetano de Sousa», in Voz Sagrada, Politica,
D. Diogo Justiniano as cartas que recebia de Vieira: o Bispo de Cranganor pede que os religiosos
da Companhia, «assim como nos comunicaram as notícias das choupanas, assim nos dem o
incomparável gosto de podermos admirar as ideias dos Palácios de um Arquitecto, que não teve
igual». Uma rede de contactos e relações devia concorrer, pois, para atiçar o interesse pela Clavis.
81 Saiu em 1689, dedicada a D. Pedro II, a Historia da Vida do Veneravel Irmaõ Pedro de Basto,
«Esperanças de Portugal. Quinto Império do Mundo. Primeira, e segunda vida del-Rei Dom João
Quarto. Escritas por Gonçaliannes Bandarra». O Livro Anteprimeiro da História do Futuro, que
terá sido divulgado na corte, por influência de figuras como D. Rodrigo de Meneses ou D. João
da Silva, ainda em 1665, além de ter por título geral Historia do Futuro, Esperança de Portugal e
Quinto Império do Mundo, incluiria – ou assim faz pensar um manuscrito – uma remissão para a
Clavis: «Estes são os livros e questões de que consta o livro intitulado Clavis Prophetarum» (José
Van den Besselaar, «Introdução», in António Vieira, História do Futuro (Livro Anteprimeiro), p.
21). No próprio processo, aliás, Vieira associou as duas obras, afirmando, a 14 de Novembro de
1665, decerto para se defender de acusações que a Inquisição pudesse dirigir-lhe ao ser
conhecida a divulgação do Livro anteprimeiro da História do Futuro: «ele suplicante […] inventou
o título da História do Futuro, ou Quinto Império, para debaixo desse disfarce poder responder
por mão alheia aos pontos de sua causa sem violar o juramento de segredo que se lhe havia
posto, como com efeito se guardou.» (Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na
Inquisição, p. 137). Enfim, não esqueçamos que ao afirmar a «grande altura» da Clavis, em
Roma, Vieira fala, a D. Rodrigo de Meneses, de um livro «intitulado o Quinto Império, ou Império
consumado de Cristo, que vem a ser a Clavis Prophetarum» (Cartas, II, p. 516).
42 Paratexto
92 Ver Francisco Rodrigues, «O P. António Vieira. Contradicções e Applausos», pp. 110-112; Arnaldo
do Espírito Santo, «A Clavis Prophetarum à luz das referências cronológicas intratextuais» (no
prelo). Agradeço ao Prof. Arnaldo do Espírito Santo a possibilidade de ler este ensaio.
93 Ver Margarida Vieira Mendes, «Chave dos Profetas: a edição em curso», pp. 32-35.
100 Sebastião de Matos e Sousa, porventura associando a Clavis à História do Futuro, faz uma lúcida
avaliação do caso de Vieira: «Ainda não logrei este livro de que Vossa Paternidade nos fez mercê;
entretanto dormindo e acordado sonho com os sonhos e com as vigias de Xavier, e também
sonho com o mais em que Vossa Paternidade parece que dorme com essas relíquias dos cuidados
de tantos anos, e com estes descuidos de relíquias tão preciosas; mas que há-de ser, se se conju-
ram doenças, quedas, aleijões, desgostos, negócios, consultas, visitas, contendas, anos, e mais
46 Paratexto
que tudo uns futuros imperfeitos, que por Vossa Paternidade julgar por imperfeito tudo, os deixa
no estado de futuro, que nunca será? Paciência. Será esta obra como a maior parte dos palácios
da nossa Corte, grandes desígnios e nenhum acabado; mas neles o cabedal foi menos que o
ânimo. Donde tudo é grande, lástima é grande ficar obra não só imperfeita, mas desfeita, porque
sobre esses alicerces ninguém sabe edificar.» (Cartas, 1746, pp. 374-375 – Lisboa, 25 de Fevereiro
de 1696).
101 Cartas, III, p. 681 (Baía, 27 de Junho de 1696). Repare-se nas palavras dirigidas a Sebastião de
Matos e Sousa: «lembrado das instâncias de V. M.cê, muito mais do que posso me aplico àquela
fábrica que V. M.cê compara aos palácios da nossa corte. Lá não sei onde demonstrei eu que o
querer se devia medir com o poder, sobre a sentença tão limpa daquele leproso: Si vis, potes. E,
estando eu em Lisboa todo aplicado à obra, a força de Castela e Portugal me a tiraram das mãos,
querendo que em lugar de palácios altíssimos me ocupasse em fazer choupanas, que são os
discursos vulgares que atégora se imprimiram.»
102 Margarida Vieira Mendes, A Oratória Barroca de Vieira, p. 285.
103 Padre António Vieira, «Sermão de Nossa Senhora da Conceição», in Sermões, X, 1959, p. 256.
104 Padre António Vieira, «Sermão de Santo António», in Sermões, VII, 1959, pp. 81-118.
105 Ver Maria Lucília Gonçalves Pires, «Andanças missionárias em textos de Vieira», p. 195.
106 É geralmente recordada a recusa do Padre Valentim Estancel, a quem Vieira convidou para seu
colaborador (Cartas, III, pp. 678-679). Mas não é crível que Estancel fosse a única hipótese de
escolha, e sobretudo há que explorar esta relação, provavelmente crispada por um espírito de
mútua rivalidade (ver Francisco Rodrigues, «O P. Antonio Vieira. Contradicções e Applausos»,
pp. 109, 114, 115).
107 Faltam informações acerca do processo de selecção de um adjuvante. Note-se, porém, que foi
muito de leve que, numa carta de 9 de Setembro de 1687, Vieira acenou a Bonucci com a hipótese
de colaboração (Cartas, III, pp. 548-549). E se em 1695 Vieira falava de pedidos superiores de
conclusão da Clavis, só em 1697 Bonucci terá em pleno assumido funções nesse trabalho (ver
Francisco Rodrigues, «O P. Antonio Vieira. Contradicções e Applausos», p. 110).
108 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 280.
Isabel Almeida 47
me confusum, defectuosum, mutilatum, et imperfectum»109, na expressão
de Carlo Antonio Casnedi, o texto da Clavis arrasta, assim, um problema de
leitura: há nele o que se quis ver nele? A Clavis prolonga, sem quebras nem
diferenças, a rota profética de Vieira, que os Exercícios Espirituais de Santo
Inácio cedo terão inspirado110 e que a gesta das descobertas, a fundação e a
restauração prodigiosas da independência de Portugal, ou ainda a faina
apostólica no Oriente e no Ocidente incentivaram111?
Num esquema grosseiro, para captar «brevemente o dilatado»112 –
lances de «defesa pessoal», «ofertas ou serviços de vassalo»113 –, delinea-
ríamos essa trajectória a partir do «Sermão de S. Sebastião» (1634), onde
serpenteia o tema do Encoberto, que a Companhia muito prezou114 e que
sermões como o dos Bons anos ou de S. José, ambos da década de 40,
aproveitam, hábeis, em prol de D. João IV, cuja coroa, segundo Vieira, teria
«Deus guardado para possuir o império do mundo»115. Em 1659, sobressai a
Carta ao Bispo eleito do Japão: a exaltação de D. João IV (eco do perdido
sermão de Salvaterra?116) transborda com o sonho da sua ressurreição,
graças à qual se cumpriria a parusia cantada por Bandarra. Dos anos 60, e da
época do processo inquisitorial, datam, por um lado, textos em que Vieira,
actualizando tópicos já amadurecidos, procura ultrapassar barreiras do
109 Simone Celani, Carlo Antonio Casnedi e a Clavis Prophetarum de Antonio Vieira, p. 12.
110 Ver António Vaz Pinto S.J., «A imagem de Deus na obra e acção do Padre António Vieira», pp.
18, 20.
111 Sobre a importância da actividade missionária no Brasil na concepção da ordem ideal do
mundo, ver Thomas M. Cohen, The Fire of Tongues. A respeito do deslumbramento de Vieira com
a história de Portugal, ver Margarida Vieira Mendes, «Vieira no Cabo de Não»; Paulo Alexandre
Esteves Borges, A Plenificação da História em Padre António Vieira.
112 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 276.
p. 66.
114 Repare-se no relato de um torneio que a Companhia organizou em Braga: «Entrou pela posta no
último lugar o ventureiro da fortuna acompanhado de quatro lacaios, armado de todas as peças,
sobre um fermoso ginete. O traje (além de úas luzidas e bem gravadas armas brancas, e sobre o
elmo rica plumagem) era um faldão de veludo negro, com larga franja de negro e ouro, calças
largas golpeadas de cetim ricamente assoguilhadas entreforradas de ouro, guarnição de prata,
botas curtas abotoadas de botões de cristal fino. O mote que espalhava seu padrinho, dizia assi:
“Sombra sou de Portugal/Como tal venho encoberto./Não tive em esforço igual,/Muito há que
me vai mal,/Mas ando do bem mui perto.”» (Relacam Geral das festas que fez a Religiaõ da
Companhia de Iesus na Provincia de Portugal…, f. 137).
115 «Papel a favor da entrega de Pernambuco aos Holandeses», p. 106.
116 Ver Cartas, III, 745-746 (Carta apologética ao Padre Jacome Iquazafigo, 30-4-1686).
48 Paratexto
«sin libro alguno, y solo con papel y pluma, compuso entonces quarenta y quatro questiones no
tratadas, que huvieran ya salido à luz publica, si por satisfacer a otros deseos no se huvieran
anticipado otros vulgares.» (Cartas, III, p. 791).
120 Em síntese, José van den Besselaar enfatiza «uma ideia dinâmica, inalterável na sua substância,
mas sempre sujeita a correcções nos pormenores e sempre admitindo novas aplicações.» (José
van den Besselaar, «Introdução», in António Vieira, História do Futuro (Livro Anteprimeiro), p. 2).
121 A ingratidão esteriliza, repetiu Vieira no «Sermão de Acção de Graças» pelo nascimento do
123 Simone Celani, Carlo Antonio Casnedi e a Clavis Prophetarum de Antonio Vieira, p. 32. «Acrescenta
na terceira página, no parágrafo que diz “Porque se”, que naquele tempo todos os reis serão
submetidos a um único monarca, ponto sobre o qual promete discutir mais além» (p. 84).
124 Padre António Vieira, Representação perante o Santo Ofício, II, p. 442.
125 «O argumento ou assunto do livro, que quis há muitos anos escrever, e do qual totalmente tinha
desistido depois que me dediquei às missões, era o Império consumado de Cristo, debaixo do
nome de Quinto Império, conforme o cômputo dos impérios de Daniel». Enfatizando que não
se tratava de novidade, Vieira dizia: «acrescentava eu, ou pretendia acrescentar ao argumento
geral dos ditos Autores, a acomodação e aplicação particular do Reino e Rei, para que Deus tinha
guardado aquela empresa e Império, interpretando, em honra de nossa nação, que seria Rei
Português, e do Reino de Portugal […]» (Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na
Inquisição, p. 277).
126 Este tratado constitui parte do Livro III da Clavis. Sobre a datação do texto, ver Margarida Vieira
Mendes, «Chave dos Profetas: a edição em curso», p. 32; Arnaldo do Espírito Santo, «A Clavis
Prophetarum à luz das referências cronológicas intratextuais» (no prelo).
50 Paratexto
127 Padre António Vieira, Clavis Prophetarum/Chave dos Profetas, p. 589. Aos «reis», Vieira dirige
uma advertência: «“Saibam pois os reis, comenta Alápide, que de si depende a fé, a piedade e a
santidade de todo o reino, e que na sua mão está o tornar santo todo o reino, sujeitá-lo à Igreja e
conduzi-lo à eterna salvação. Não sejam pois negligentes em pô-lo em prática, se amam a sua
salvação e a dos seus. No grande dia do Juízo Final do mundo, Deus há-de pedir-lhes contas
dela”» (pp. 589-591).
128 Maria de Fátima Brauer-Figueiredo, António Vieiras «Sermão do Esposo da Mãe de Deus S. José»,
p. 67.
129 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, p. 68.
130 Sobre a difusão deste sermão, pleno de «conteúdo político» (Aníbal Pinto de Castro, António
Vieira, p. 59), ver José Pedro Paiva (coord.), Padre António Vieira. 1608-1697. Bibliografia,
pp. 263-267.
Isabel Almeida 51
com algumas variantes, na Parte undecima (1696)131, em cuja dedicatória, a
D. Catarina, o «pregador de Sua Majestade» enfatizava, nostálgico, a antiga
intimidade que o unia a D. João IV e à família real; o «Sermão de S. José»,
pronunciado, outrossim, em 1642, em dia de aniversário do soberano
Restaurador, ou o «Sermão de S. Roque», de 1644, figuram na Duodecima
Parte (1699). Aí, trazendo à colação a profecia de Ourique, o Jesuíta repete
que «o Império de Cristo na Igreja militante somos nós»132, e deduz, acerca
de D. João IV: «Príncipe que gasta com seus vassalos tudo o que recebe deles,
não lhe compete menos conquista que a do mundo, menos Monarquia que a
do universo. Assim o prometem as nossas profecias, o confessam as nossas
esperanças fundadas no exemplo de tal Rei […]»133.
Estes textos foram seleccionados por Vieira após 1695, quando sobre ele
incidia o duplo assédio de D. Maria Sofia e do Geral dos Jesuítas. Claro é que,
no termo da sua vida, burilando (só então?134) o «Sermão dos Bons Anos»,
polindo o «Sermão de S. José» ou o «Sermão de S. Roque», tratava de corres-
ponder à fama de profeta das «esperanças de Portugal». Óbvio, porém, é que,
ao resgatar essas «esperanças», homenageava D. João IV, não enaltecia D.
Pedro II, cujo poder só fugazmente, no «Sermão Gratulatório e Panegírico»
pelo nascimento de D. Isabel, se insinua como o de um Quinto Império135.
131 Ver Raymond Cantel, Les Sermons de Vieira, pp. 485-487. A importância da recuperação deste
texto foi observada por este estudioso (ver Prophétisme et Messianisme dans l’Oeuvre d’Antonio
Vieira, p. 186).
132 Sermoens […]. Parte Duodecima, p. 379. Corrijo um erro que cometi em trabalho anterior («Um pé
na terra, outro nas estrelas», n. 57, p. 403): o «Sermão do Esposo da Mãe de Deus S. José»
apresenta apenas ligeiras variantes na sua transmissão; é o «Sermão de S. José», impresso em
1699 e de que não há tradição em folheto, o texto em cujo final vibra, sim, um encarecimento
lusocêntrico de Portugal e do monarca D. João IV.
133 Padre António Vieira, Sermões, VIII, pp. 69-70.
134 No intróito da Parte I dos Sermoens, Vieira prometia ao leitor: «irão saindo diante, e à desfilada,
os que estiverem mais prontos» (Padre António Vieira, Sermões, I, 2008, p. 7). Atendendo a que
o «Sermão dos Bons Anos» estava «pronto» (e não terá sido custosa a intervenção cirúrgica com
que o Jesuíta retirou da versão primordial vários passos anti-castelhanos), que motivo o manteve
tantos anos fora da edição definitiva dos Sermoens?
135 Vincando o alcance mundial da expansão dos «Portugueses», Vieira pergunta: «Houve algum
filho de Noé, houve alguma nação outra nas idades, por belicosa e numerosa que fosse, e cele-
brada nas trombetas da fama, que se dilatasse e estendesse tanto por todas as quatro partes da
Terra? Nenhuma. Nem os Assírios, nem os Persas, nem os Gregos, nem os Romanos. E porquê?
Porque esta bênção, esta herança, este morgado, este património, era só devido aos Portugueses
[…]. Não posso deixar de confirmar esta bênção ou doação (porque me não ponham pleito) com
uma escritura pública, e também sagrada.» (Sermões, XV, p. 6). Neste caso, a escritura não
52 Paratexto
é o famoso testamento de Afonso Henriques, o que não será despiciendo, dado o peso que o
texto assume, na obra de Vieira, na defesa das «esperanças de Portugal». E o aparte irónico do
pregador («porque me não ponham pleito») pode aludir ao processo inquisitorial, cuja memó-
ria recente terá levado o Jesuíta a adoptar aqui uma posição mais discreta. Significativo se
afigura, também por isso, que, ao preparar a XII Parte dos Sermoens (ultimada em 1697), Vieira
tenha mantido o texto tal como ele foi difundido, em folheto, logo no ano da sua pregação, em
1669 (ver Raymond Cantel, Les Sermons de Vieira, p. 490).
136 «Dedicatória ao Sereníssimo Príncepe Dom Pedro II. Rei de Portugal», Historia da Vida do
139 Ver Margarida Vieira Mendes, «Chave dos Profetas: a edição em curso», pp. 33-34. Subli-
Referências Bibliográficas
Almeida, Isabel, «Um pé na terra, outro nas estrelas: a propósito de S. Fran-
cisco Xavier nos Sermoens de Vieira», Brotéria, 163, 2006, pp. 395-415
Bayard, Pierre, Comment parler des livres que l’on n’a pas lus?, Paris: Les Éditions
de Minuit, 2007
Besselaar, José Van Den (ed.), António Vieira, História do Futuro (Livro Ante-
primeiro), edição crítica, prefaciada e comentada por […], 2 vols.,
Münster Westfalen: Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung, 1976
Bethencourt, Francisco, «A Inquisição», Yvette Kace Centeno (org.), Portugal:
Mitos Revisitados, Lisboa: Salamandra, 1993, pp. 101-138
Borges, Paulo Alexandre Esteves, A Plenificação da História em Padre António
Vieira. Estudo sobre a ideia de Quinto Império na Defesa Perante o Tribunal
do Santo Ofício, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995
Brauer-Figueiredo, Maria de Fátima Viegas, António Vieiras «Sermão do Esposo
da Mãe de Deus S. José». Kriticher Text und Kommentar von […], Münster
Westfalen: Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung, 1983
54 Paratexto
1 Maurice Couturier (1995, p. 45) não aceita esta diferença, pelo que escreve «dédicacer son
livre», «dédicaçant son œuvre»…
2 Lisboa: Três Sinais, 1999. Lamento a impossibilidade de, por limitação de espaço, não tratar, via
dedicatória, a relação de Sena com José Régio, Vergílio Ferreira e José-Augusto França. Os
volumes da Correspondência, em Lisboa: INCM, 1986, 1987 e 2007, são rico manancial para
análise discursiva.
Ernesto Rodrigues 61
etc. Num terceiro momento, a dedicatória simplifica-se, reduzida a parcas
linhas em mostras de afecto, amizade, admiração, camaradagem literária.
Ora, estas modalidades confundem-se nos tempos, pelo que não nos serve
tão fácil cronologia. As dedicatórias fictícias, as paródicas e as que agravam
quem, alegadamente, seduziriam, também diluem a diacronia.
A designação simples – Dedicatória, à cabeça – é poucas vezes declarada,
por tautológica: se Francisco de Sá de Miranda abre a égloga Basto com
informação saturada, mas, ao tempo, compreensível – «Dedicatória / A Nuno
Alvares Pereira», em quatro ou cinco décimas3 – e semelhantemente Matias
Pereira da Silva, que edita os póstumos Apólogos Dialogais (1721) de D. Fran-
cisco Manuel de Melo, inscrevendo «Ao Senhor D. Antonio Estêvão da Costa
/ […] / Dedicatória», já Herberto Helder opera marcação que só à segunda o
satisfaz: assim, ao reunir poemas «De “Photomaton & Vox”» em Poesia Toda
(Lisboa, 1990, p. 403), o primeiro texto avisa: «(é uma dedicatória)». Ao
refundir aquela em Ou o Poema Contínuo (Lisboa, 2004, p. 359), substitui a
parte Photomaton & Vox por Dedicatória, sem mais avisos.
A par, existem as designações compostas, proémio-dedicatória, prólogo-
-dedicatória e carta-dedicatória. Há, também, sequência de dedicatória e
carta-dedicatória, como em António de Oliveira Cadornega, Descrição de Vila
Viçosa: ao nome do destinatário, lugar e data de 1683, num oferecimento
neutro, sucede o nome completo do autor após quatro parágrafos de
justificação dirigidos ao «Excelentíssimo Senhor, da Ericeira Conde».
O prólogo-dedicatória é uma especialidade seiscentista, geralmente
reduzida a ‘Prólogo’. Separados os termos, distinguem-se pela destinação,
respectivamente, colectiva e individual, olhando, além, ao leitor ou leitores
coloquialmente atraídos, e, aqui, ao ilustre hiperbolizado. Alguns exemplos
em regime de captatio benevolentiæ ilustrariam Garrett: «Aos beneuolos
leitores», «Ao Pio Leitor», «Ao Deuoto Lector», «Prologo ao agradecido
Leitor». Lucília Gonçalves Pires (1980, pp. 47-48) analisou «dois textos em
que confluem características destes dois géneros». Desejado explicitamente
indiviso, aí está Compendio das mais notaveis cousas qve no reyno de Portugal
acontecerão desde a perda del Rey D. Sebastião até o anno de 1627. […] //
Composto por Lvis de Torres de Lyma. / Em Coimbra / […] 1654. Prologo /
3 Tudo vai dos respectivos manuscritos: ver Miranda, 1989, pp. 153-155; já exclui a designação das
églogas «Célia», «Ao Infante Dom Luis», em sete oitavas, «Andrés», «Ao duque d’Aveiro. /
Neto de el Rei dom João o segundo de Portugal», «Egloga Encantamento», «A Dom Manuel de
Portugal», em cinco oitavas.
62 Paratexto
dezasseis camponeses, sem os quais «não teria sido escrito este livro»,
Levantado do Chão (Lisboa, 1980), custa a admitir. Some-se a terceira parte:
«À memória de Germano Vidigal e José dos Santos, assassinados.», única
mantida por José Saramago. É, também, um caso singular de redução.
1. 6. Aqui chegados, vimos o protector secular em figura de dedicatário,
requerendo discurso à altura, eloquente, figurado; se possível, motivador do
que lhe é oferecido, seja por qualidades declaradas, seja por heroicidade,
ainda que de empréstimo. Não se imagina quão presente está, assim, o conde
de Oeiras e marquês de Pombal. Daí, a lista dos títulos de glória, que envol-
vem o nome do ilustre: Manuel de Galhegos tem que os reduzir em Templo da
Memoria: poema epithalamico nas felicíssimas bodas do Excelentíssimo Sr. Duque
de Bragança e de Barcellos, Marquez de Villa-Viçosa, Conde de Ourém, etc…
(Lisboa, 1635), e o mesmo João Soares de Brito, em Apologia em que se defende
a poesia do príncipe dos poetas de Hespanha Luís de Camões, no canto IV, da
estancia 67 a 75, e canto I, estancia 21; e responde ás censuras de um critico destes
tempos. A João Rodrigues de Sá Menezes, cavalheiro da Ordem de Santiago,
Camareiro-mor d’el-rei D. João IV, etc., etc… (Lisboa, 1641). A prática é corrente.
Quando se lhe atribuem méritos no próprio texto, porque o inspirou ou
facilitou, essa espécie de co-autoria envaidece um e segura o outro, inclusive,
nas relações entre literatos, cujas invejas fuzilam. Em era inquisitorial, a
dedicatória representa segurança, tença, emprego; contra eventual castigo
público, significa reconhecimento e molde de integração. Se necessário,
acaricia-se inquisidor, qual obrou livreiro com Os Lusíadas do grande Luís de
Camoens, Príncipe da poesia heróica. Commentadas pelo licenciado Manuel
Corrêa. Dedicadas ao doutor D. Rodrigo d’Acunha, inquisidor apostólico do
Sancto Officio de Lisboa. Por Domingos Fernandes, seu livreiro (Lisboa, 1613).
Convém olhar a destinações especiais: entidades civis, como em Frei
Luís de Sousa, Vida de Dom Frei Bertolameu dos Martyres… (Viana [do Castelo],
1619), «À Câmara e Governo da Notável Vila de Viana»; feminina, para lá de
Nossa Senhora: v. g., «Á Illvstrissima / Senhora Dona Lvisa / Covtinha,
Condessa do Sabvgal, &c.», em Duarte Pacheco, Epitome da Vida Apostolica,
e Milagres de S. Thomas de Villa Nova, […] (Lisboa, 1629); familiar: seja filial,
como em Os Novíssimos do Homem, ou conjugal, como em El-Rei Junot
(Lisboa, 1912), de R. Brandão, «A Maria Angelina», já reverenciando avô em
Os Pescadores (Paris, 1923): «À memória de meu avô, morto no mar»;
discipular, «Ao Mestre Columbano», no Húmus (Porto, 1917).
Impresso ou manuscrito, é um jogo de reciprocidades, que o editor
substitui, no século XVIII, ao afixar na portada as suas insígnias e permi-
Ernesto Rodrigues 71
tindo-se dedicatórias, timidamente assumidas nos séculos anteriores. Neste
trânsito da aristocracia para o livre comércio, não isento de enganos e roubos
em tiragens e contrafacções, entreabre-se a questão dos direitos de autor, que
revê a propriedade literária, em vigor desde Quinhentos.
A dedicatória pode, agora, reduzir-se ao mínimo, a misteriosas iniciais e
personagens, ou nome aleatório, e, até, desaparecer. Este «degré zero» não
significará, parafraseando G. Genette (p. 126), que ninguém merece esta obra
ou que a obra não merece ninguém?
2. Não é o caso do manuscrito, mesmo se alguns adquirem a impor-
tância do impresso, ou lhe são superiores, se caligraficamente retrabalhados
por autor ou artista emérito. Em manuscrito, é-se escritor; autor, no impresso.
Mas em manuscrito também se cria uma identidade e se confere autoridade
ao texto – seja embora entre nome próprio e fingido, ou entre dois fingidos
acrescidos de nome próprio, Tomé Pinheiro da Veiga. Assim é na «Dedica-
tória» sobre a amizade de Fastigínia (1605; impressão de manuscrito desco-
nhecido, Porto, 1911), reiterando uma autoficção: Fr. Pantaleão, que houve
achamento das histórias, dirige-se a Jorge Calepino.
A história manuscrita talvez comece em 1418, quando se inicia a
redacção de Dos Benefícios, pelo infante D. Pedro (1994), que até 1433 frei
João Verba refundiu como Livro da Vertuosa Benfeytoria, contendo no fol. 1r:
«Muy alto príncipe, de grande poderio, e muyto honrado e prezado senhor
iffante Eduarte, primogénito herdeyro dos reynos de Portugal e do Algarve»
–, e prosseguindo até 2r, antes da tavoa. Por 1437-1438, D. Duarte compõe o
Leal Conselheiro e extensa carta à rainha D. Leonor, sua mulher.
Na fronteira do manuscrito potenciando impresso está «Incendio»
(1914), soneto autógrafo de Augusto Santa-Rita, reproduzido no Catálogo de
Um Seleccionado Leilão de Manuscritos, Autógrafos e Fotografias (p. 113),
realizado em Lisboa (13-XII-2008). Interessa a particular autodedicatória, «A
mim mesmo», que alegraria G. Genette: «[…] je ne vois manquer, dans cet
ensemble un peu déviant, et sans doute ludique, que l’autodédicace, ou
dédicace à l’auteur par l’auteur lui-même» (p. 25).
Posto o que, desde, ao menos, os anos 40 de Oitocentos, de A. F. de
Castilho e A. P. Lopes de Mendonça a Camilo, é fácil encontrar a fórmula
repetida contaminando frontispícios, qual um de António Augusto Teixeira
de Vasconcelos, em exemplar de A Ermida de Castromino (Lisboa, 1870): «Ao
seu excellente amigo / Conego Lima / em testemunho de affectuosa saud.e /
offerece / A. A. Teixeira de Vasconcellos». Troca-se o poder ou sangue azul
pela nobreza de coração e de carácter. O copista quase desaparece; e, mau
72 Paratexto
grado discurso pobre, comove a letra de intelectuais que quase vimos nascer…
Os cuidados a haver não são poucos, a tal ponto uma dedicatória nos
compromete. No calor da Questão Coimbrã, escreve Castilho a Camilo, em
20-I-1866: «Ramalho Ortigão remetteu-me um exemplar do seu opusculo
precedido d’um oferecimento muito cortez. Ainda o não pude lêr. Mas se é
como me informão em termos urbanos, hei-de tomar conhecimento d’elle, e
responder ao autor. Seria confundil-o com os Theophilos e Antheros, […].»
(Costa, 1924, p. 47). Dois dias depois, nova carta e transcrição de dedicatória:
«Ao seu inegualável mestre o Ex.mo Sr. Antonio Feliciano de Castilho em
testemunho de lealdade litteraria offerece respeitosamente o auctor» (p. 48).
Em ar de balanço, Castilho concluirá, nesse 22-I-1866, que «as palavrinhas
melifluas do offerecimento» escondiam «o rancor de um malcreado»! E a
estocada: «Era o Ramalho a desfarçar o Ortigão» (p. 49).
2. 1. Se a assinatura é fundamental, a par do nome de quem recebe (sem
o qual há mero autógrafo; agora, Deus, a Virgem Maria e os mortos não são
convidados), lugar e data dir-se-iam convenientes; em última instância, só o
lugar é prescindível. Outra condição é a legibilidade. Aproveita-se a folha de
rosto para sintaxar, eventualmente, com o título, e mesmo, para as mais
longas, a folha de guarda. Não há regra na escolha da lauda (de ‘laudare’, que
serve para louvar dedicatário, impresso ou manuscrito).
Além dos exemplares contratualmente oferecidos ao autor e tradutor, há
um certo número a remeter à crítica e autores ou amigos da editora. Mara-
tona desagradável, segundo a fórmula ‘A / Para X com a admiração de Y’ – em
que só a ‘admiração’ varia, eventualmente justificada em prosa breve –,
treina-se este numa assinatura, que alguns saberão falsificar, depois de outros
autógrafos forjados.
O negócio da dedicatória (às vezes, do simples autógrafo) é rendoso,
multiplicando o preço.
2. 2. Daí, as regulares sessões de lançamento e de autógrafos, abertas a
todos, num ou vários locais, dentro e fora do país. A escolha do dia foge a cons-
trangimentos sociais, caindo, sobretudo, numa terça ou quinta-feira. A socie-
dade do ‘croquete’ faz sala; em casos restritos, há repasto só para jornalistas.
No ciclo do livro, chega, um dia, a vez do alfarrabista, mesmo se algumas
livrarias podem assegurar exemplares dedicados. As indicações de catálogo
procuram valorizar exemplar dito «Com uma dedicatória autografada do
autor», justificando, assim, os preços. Desde notícia em papel à Internet, a
sedução desliza.
Ernesto Rodrigues 73
2. 3. Mas não é nesse frenesi que encontramos as melhores espécies.
Reunir dezenas de formulários debitados em horas de tortura pessoal não é
instrutivo; resulta melhor quando no silêncio da dedicatória única. Nascem,
deste modo, verdadeiros inéditos – seja poema, carta, etc. –, geralmente, à
entrada do impresso, que também pode ser alterado na perspectiva de
variantes. A Livraria Antiquária do Calhariz anunciou, no 4.º Boletim
Bibliográfico (Lisboa, 2008, p. 45), a 2.ª ed. de Do Tempo ao Coração (Lisboa,
1966), de David Mourão-Ferreira, «valorizada pela extensa dedicatória pelo
autor, ao jeito de carta, a um casal de amigos pessoais. Esta edição é
constituída por uma versão inteiramente nova do trecho incluído na página
29, sob o título de “Coração”». Cada exemplar diverso completa a obra, mais
evidente em exercícios antigos de Herberto Helder, corrigindo-se à mão, em
exemplares impressos: o momento da dedicatória é o de outra escrita.
Não nos restrinjamos, contudo, aos suportes consabidos. Mostrei a van-
tagem de estudar almanaques, álbuns, leques, carteiras, objectos de cerâmica
(Rodrigues, 1999, pp. 37-64), onde também cristalizam dedicatórias. Repro-
duzidos em As Mãos da Escrita (Duarte; Oliveira, 2007, p. 344 ss), juntemos
convites e menus, agendas, etc. A páginas 357-358, deparamos com diário
dedicado, em 11. 4. 73, «À menina Margarida Victória, “luz dos meus olhos”
(como se dizia em tempos): […]», por V. Nemésio.
Doloroso é quando as relações azedam, e se rasga ou risca dedicatória.
Se o livro é vendido com aquela, degradando-se na rua, deve o dedicador
adquiri-lo e reenviá-lo ao ingrato, com segunda dedicatória…
Luís Amaro, cujo Diário Íntimo (Lisboa, 2006) é alfobre de sinais amigos,
tornou-se, entre nós, dos principais dedicatários, com largas saudações do
estrangeiro. Entre algumas de página cheia, realço as de Régio, e, destas, um
desenho a cores de menina (Vila do Conde, Março de 1968) acompanhando
texto contíguo ao título de Histórias de Mulheres. O poeta brasileiro Ribeiro
Couto dedicou-lhe Dia Longo (Poesias Escolhidas): «A Luís Amaro, pai,
parteiro e padrinho desta criança manhosa – artista de rara sensibilidade,
amigo seguro, colaborador perfeito, com a gratidão do Ribeiro Couto /
Lisboa, 24-X-1944». Vergílio Ferreira dedicou-lhe exemplar da 3.ª edição de
Mudança: «Ao Luís Amaro / que não sendo “pai” dos meus livros, é todavia
quase “tio” ou “padrinho” pela assistência que lhes tem dado, / com o abraço
amigo / do Vergílio Ferreira / Lxª, 5 Maio 969». Eugénio Lisboa fê-lo, de
forma impressa, «colaborador» de José Régio. A Obra e o Homem (Lisboa,
1976) e, em dedicatória manuscrita na edição de 1987, «primus inter pares
regianos». Com Luís Amaro fecha-se o círculo antigo do ‘protector’, não
74 Paratexto
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Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa / INCM, 2002
O paratexto em Oliveira Martins
Maria das Graças Moreira de Sá
Universidade de Lisboa
1 Oliveira Martins, “Advertência”, História de Portugal, p. 7. As páginas desta edição serão, dora-
vante, indicadas no corpo do texto.
2 Cf. António Manuel Bettencourt Machado Pires, «A simbólica de Oliveira Martins» e «Uma
Retórica da decadência em Oliveira Martins», A Ideia de Decadência na Geração de 70.
Maria das Graças Moreira de Sá 79
caracteres e de dramatizações com inegáveis aspirações estéticas que o
distanciam, por vezes, por excesso de imaginação e de retórica, da História
positiva dos factos. Por tudo isto, e retomando as primeiras palavras do
escritor, é que «a história é uma lição moral»: «Nos vícios e nas virtudes, nos
erros e nos acertos, na perversidade e na nobreza dos indivíduos que foram
há um meio de prevenir e encaminhar a direcção dos actos futuros. A história
é, nesse sentido, a grande mestra da vida» (p.12). Tal como Eça de Queirós
apontara os erros da sociedade sua contemporânea como forma de a regene-
rar, assim Oliveira Martins afirma, no final desta «Advertência»: «Apresen-
tar crua e realmente a verdade é o melhor modo de educar» (p.12). Embora,
como salienta Joel Serrão3, as raízes do projecto do autor sejam sobretudo
portuguesas, em que Herculano e a experiência do liberalismo surgem como
paradigma exemplar, não deixa, quanto a nós, Oliveira Martins de introduzir
na sua mundividência, tal como Antero, o socialismo de feição proudhonia-
na, e a influência de Michelet surge, pujante, no desejo de inculcar na sua
escrita uma verdadeira «ressurreição de épocas»4.
Já no Portugal Contemporâneo, são três os paratextos que encontramos:
uma «Advertência (na primeira edição)» (1881), «Explicações (na segunda
edição)» (1883) e «Ao leitor (na terceira edição)» (1894).
Na «Advertência (na primeira edição)», Oliveira Martins explicita a sua
posição como historiador perante o fenómeno histórico da contemporanei-
dade e contrapõe, à partida, as suas razões contra as críticas que julga que
surgirão perante uma obra com os pressupostos como aqueles que defende.
Assim, começa por enumerar os dois principais atributos que considera
credíveis para a escrita de uma História contemporânea: o isolamento, como
situação que convém ao escritor, ou seja, o facto de este não pertencer a
nenhum partido nem escola laureada, e a consequente independência, como
processo necessário da crítica, trabalhando por amor à História e obede-
cendo apenas à razão, como os artistas obedecem apenas à estética. Estes
princípios, que considera inabaláveis e raros no seu tempo, são tanto mais
importantes quanto se trata de redigir uma História contemporânea, de
6 Oliveira Martins, «Explicações (na segunda Edição)», Portugal Contemporâneo. As páginas desta
edição serão indicadas, a partir de agora, no corpo do texto.
82 Paratexto
7 Oliveira Martins, «Ao leitor (na terceira edição)», Portugal Contemporâneo. As páginas desta
edição serão indicadas, a partir de agora, no corpo do texto.
8 Eduardo Lourenço, Portugal como Destino Seguido de Mitologia da Saudade, p. 56.
Maria das Graças Moreira de Sá 85
pequenas variantes, ciclicamente no texto, sublinha os três aspectos que
estão verdadeiramente em causa: as condições de subsistência autónoma do
País com os seus próprios recursos; a interacção entre os valores intelectuais,
morais e económicos, com predominância destes últimos; e a confinação do
território português ao Portugal continental de origem («estreitas fronteiras
portuguesas»).
A construção mental do texto segue, pois, uma lógica sobretudo econó-
mica, e assim se entende que Oliveira Martins aponte como o primeiro desses
momentos, não a data da nossa perda de Independência (1580), mas, preci-
samente, a data da nossa Restauração (1640), já que esta, para vingar, repre-
sentou a perda completa dos restos do Império Oriental com que salariámos
«opiparamente» os nossos defensores. Como afirma, «Portugal salvara-se
das garras da Espanha, para cair nas da Inglaterra» (p.10). Como afiança
ainda, nesta situação não havia forças morais e intelectuais para assegurarem
a autonomia, e não é sem ironia que lembra as condições traçadas pelo
tratado de Methwen.
A cada um dos momentos de interrogação vital sobre a viabilidade da
existência do nosso país como nação independente, faz corresponder Olivei-
ra Martins aquilo a que chama «tábuas de salvação», ou seja, o encontrar
soluções por meios «anormais» (no sentido de fugirem à «normalidade» da
vida de uma nação) de subsistência que, no nosso caso, se caracterizam por
nos virarmos para fora do nosso território, em vez de nele investirmos. Desta
forma, perdida a Índia (os restos do Império Oriental), «descobriu-se», como
«tábua de salvação», o Brasil. Termos da teoria organicista do historiador
invadem o texto e, de novo, se articulam as forças morais, intelectuais e
económicas: «O ouro e os diamantes do Brasil foram como a transfusão de
sangue em um organismo anémico. O sol da riqueza voltou a raiar no hori-
zonte português; e com a autonomia económica, restaurou-se, quanto
possível, a energia moral e intelectual» (p.11). Efectivada, aparentemente, a
autonomia portuguesa como antes de 1580, D. João V pôde tornar Portugal
«uma cena de ópera ao divino» (p.11) e Pombal «o teatro trágico de uma
revolução teórica» (p.11). A situação dramática só ressurge cada vez que,
mudado o contexto político-económico da sua «tábua de salvação», Portugal
se vê, mais uma vez, confrontado com a sua questão vital. Por isso, quando,
em consequência do tumulto napoleónico, foi necessário ao rei fugir para o
Brasil, quando houve que assinar os tratados de 1810 para a Inglaterra, de
novo, nos assegurar a independência, e tivemos que reconhecer a separação
do Império Brasileiro, “outra vez dobravam para Portugal os sinos de finados
86 Paratexto
Referências BibliogrÁficas
Lourenço, Eduardo, Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade,
Lisboa: Gradiva, 1999
Lourenço, Eduardo, «Da literatura como interpretação de Portugal»,
O Labirinto da Saudade, 2ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982,
pp. 85-126
Martins, Oliveira, «Advertência», História de Portugal, Lisboa: Guimarães
Editores, 1972, pp. 7-12
Martins, Oliveira, «Advertência (na primeira edição)», Portugal
Contemporâneo, Lisboa: Guimarães Editores, 1976, pp. 23-29
Martins, Oliveira, «Explicações (na segunda edição)», Portugal
Contemporâneo, Lisboa: Guimarães Editores, 1976, pp.17-22
Martins, Oliveira, «Ao leitor (na terceira edição», Portugal Contemporâneo,
Lisboa: Guimarães Editores, 1976, pp. 9-16
1 George Whalley, editor de The Collected Works of Samuel Taylor Coleridge – Marginalia I,
considera este tipo de notas como «quasi-marginalia», pois poderiam ter sido directamente
incluídas no livro a que se referem, embora tenham sido escritas em cadernos, blocos de notas
ou folhas soltas.
2 Esta composição poética, atribuível ao heterónimo Alberto Caeiro, encontra-se escrita a lápis na
guarda final da obra de John M. Robertson, Pioneer Humanists, de 1907, e é encabeçada pelo
nome «Caeiro» que não parece apontar para o título do mesmo, mas sim para a sua identificação
autoral. O livro que guarda esta composição tem a assinatura de Fernando Pessoa, a qual já não
inclui o acento circunflexo no apelido (suprimido a partir de 1916), o que poderá (a par das
sucessivas leituras e anotações que Pessoa fazia nos livros que mais o interessavam) de certa
forma explicar a razão pela qual, num livro de 1907, encontramos um poema de um heterónimo
pessoano que só viria a aparecer em 1914:
Caeiro
Gosto do céu porque não creio que elle seja infinito.
Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?
Não creio no infinito, não creio na eternidade.
Creio que o espaço começa aqui e aqui acaba*
E que longe e atrás d’isso há absolutamente nada.
Creio que o tempo tem um princípio e terá um fim,
E que antes e depois disso não houve tempo.
Porque há de ser isto falso? Falso é falar do infinito
Como se soubéssemos o que só de ver podemos entender.
Não: tudo é uma partida de cousas.
Tudo é definido, tudo é limitado, tudo é cousas.
* Variante: Creio que o espaço começa por a parte e na parte acaba.
Maria do Céu Estibeira 93
pólio3, a verdade é que esta faceta do poeta português se revela fundamental
para percebermos a recepção que terá feito de determinadas obras e o papel
que as mesmas desempenharam na construção da sua identidade literária.
Na realidade, a quantidade e a diversidade de obras que fazem parte da
Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, na Rua Coelho da Rocha (última
morada do poeta), com mais de um milhar de títulos disponíveis, e o consi-
derável número das que contêm alguma forma de anotação demonstram,
sem margem para dúvidas, a importância da marginalia pessoana para o
estudo da sua obra4. De facto, do número total de exemplares que compõem
esta Biblioteca, mais de sessenta por cento estão anotados ou incluem algu-
ma forma de marcação específica que importa destacar e compreender,
sendo que para procedermos ao seu estudo é fundamental, desde logo,
identificar algumas particularidades que determinem a sua categorização e
interpretação: qual a extensão das notas inseridas num determinado livro;
que tipo de anotações ou comentários podemos aí encontrar; qual a sua
função e que relevância assumem para o texto em que se inserem. Eis
algumas das questões que se levantam e sobre as quais importa reflectir.
Não parece haver grandes dúvidas de que Fernando Pessoa dedicou
grande parte do seu tempo à leitura: desde os tempos em que viveu em
Durban e até 1935 (ano da sua morte), os livros foram uma presença
constante e importante para a construção da sua identidade estético-literária.
Tal pode ser observado através da Biblioteca Pessoal (que contém cerca de
1055 títulos), das várias listas de livros que pretendia adquirir e ler (que
encontramos nos diversos cadernos e nas folhas soltas pertencentes ao
espólio da Biblioteca Nacional) e dos diversos comentários nos seus diários
7 Fernando Pessoa matriculou-se na Durban High School em 1899 e frequentou a “Form II-B”, na
qual se manteve até Junho de 1899, altura em que transitou para a “Form II-A”. Um ano depois,
em Junho de 1900, ingressou na “Form III” e seis meses depois, passou para a “Form IV”, onde
permaneceu até Junho de 1901, data em que fez o primeiro exame: o Cape School Higher
Examination.
Maria do Céu Estibeira 97
8 William Smith, Principia latina: part I: a first latin course comprehending grammar, delectus, and
exercise book with vocabularies: for the use of the lower forms in public and private schools.
98 Paratexto
donnez-le un peu de baton et envoyez-le à F. Pessoa – West St. 157» e ainda «Steal
not this book for fear of shame»9.
9 Esta observação não seria de todo original do poeta, já que expressões como esta (com uma níti-
da intenção de proteger o livro de terceiros) ou semelhantes a ela podem ser encontradas em livros
anotados no século XVIII. H. J. Jackson, em Marginalia – Readers Writing in Books (pp. 24-25), faz
referência a este tipo de comentários: «Steal Not This Book For Fear of Shame For Here You See
the Oners Name …» e «Steal not this book for fear of life for the owner has a big jacknife».
Maria do Céu Estibeira 99
Além das marcações regulares de uso escolar, alguns destes livros
contêm também anotações curiosas e de extremo interesse, que revelam a
sagacidade e espírito crítico do jovem Fernando Pessoa, bem como a sua
grande capacidade de leitura e especial interesse pelos clássicos da literatura
em língua inglesa, uma vez que ao longo dos anos em que permaneceu em
Durban, Pessoa contactou com alguns autores que se revelaram determi-
nantes na construção da sua identidade poética. Nomes como Shakespeare,
Milton, Keats, Poe, Addison e Steele, Tennyson, Carlyle, Whitman, Shelley e
muitos outros fizeram parte das leituras do jovem Pessoa, tendo alguns
destes autores integrado os currículos escolares para a prestação de exames,
enquanto outros faziam parte do conjunto de livros que recebeu em
resultado de alguns prémios ganhos em concursos académicos.
Uma das competições que Fernando Pessoa venceu foi o Queen Victoria
Memorial Prize em 1903, cujo prémio seria atribuído ao melhor ensaio do
Matriculation Exam10. Este ensaio deverá ter seguido os padrões estabeleci-
dos pelos textos de Addison e Steele na sua obra The Spectator (que pertence
à Biblioteca Particular de Fernando Pessoa), a qual se encontra sublinhada e
veio a ser relida por Pessoa anos mais tarde (tal como atesta um dos seus
diários), servindo como referência para a leitura de outras obras (onde Pessoa
incluiu notas que remetiam para ensaios deste livro) e até para a produção de
textos seus, nos quais podemos encontrar reflexos dos conteúdos nela
abordados, bem como da sua intenção discursiva.
Quanto aos livros que resultaram da atribuição do Queen Victoria
Memorial Prize (que se encontram identificados com uma etiqueta colada no
próprio livro), temos disponíveis para consulta as obras de Samuel Johnson,
Keats, Edgar A. Poe, Alfred Tennyson e de Ben Jonson.
Estes exemplares encontram-se anotados e sublinhados, a maioria a
caneta preta e a lápis de carvão, evidenciando assim a atenção especial que
Pessoa lhes dedicou e as diversas leituras realizadas em períodos distintos.
Alguns destes livros incluem notas que remetem para a leitura de outros
autores, como é o caso de The Poetical Works of John Keats11, volume em que,
para além de apreciações feitas ao lado dos poemas destacados («good»,
«admirable», «true and painful») podemos encontrar referências a autores
como Gray e Dryden (no poema «Ode to Apollo», por exemplo).
a genius always fears to be misunderstood and not be able fully to convey to his auditors the
significance of his thoughts, the whole intensity of his feeling»; «Genius is the enthusiasm of
sincerity», «Without sincerity no genius can exist», «What you see, yet cannot see over, is as
good as infinite.(…)».
13 Na Biblioteca pessoana encontramos obras de Nisbet, Nordau e Hirsch, nomes de destaque
se reportavam, os seguintes:
- na infância e na primeira adolescência, Pickwick Papers, de Dickens;
- na segunda adolescência, Shakespeare, Milton e os poetas românticos ingleses, salientando-se
Shelley;
- na terceira adolescência, os filósofos gregos e alemães, os decadentes franceses e Dégénérescence
de Nordau.
15 Estes poemas incluem extensas marcações a três cores, com remissões a outros autores (Tennyson,
Shakespeare e Ben Jonson) e aos ensaios do já referido The Spectator: «The melancholy of Milton
in “Il Penseroso” is the same as the melancholy of Addison before the tombs in Westminster
Abbey […]».
102 Paratexto
16 Destes, destacamos também os Sonetos que terão sido alvo de uma atenção particular, uma vez
que dos 154 aí apresentados, 74 estão anotados a lápis lilás, o que indicia terem sido lidos de
uma vez só, ou durante um curto intervalo de tempo ainda na adolescência.
17 Um desses exemplares encontra-se praticamente todo traduzido a lápis nas entrelinhas.
18 «I am now in full possession of the fundamental laws of literary art. Shakespeare can no longer
teach me to be subtle, nor Milton to be complete. (…) All my books are books of reference. I read
Shakespeare only in relation to the “Shakespeare Problem”. The rest I know already.» In Pessoa,
Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, pp. 136, 138.
Maria do Céu Estibeira 103
interessou-se por esta hipótese e elaborou uma bibliografia com mais de 30
títulos sobre a questão Shakespeare-Bacon (BN, 144D2/16-17), tendo
também deixado variados textos para incluir num ensaio sobre a matéria e
que, necessariamente, reflectiam as leituras realizadas sobre o tema.
Além de Shakespeare, Walt Whitman e Oscar Wilde são outros nomes a
destacar pela importância que assumiram no universo de leituras pessoano.
Estes dois autores estão também representados na Biblioteca de Fernando
Pessoa com mais do que um exemplar, e, particularmente, a obra Leaves of
Grass de Whitman (assinada e datada por Pessoa em 16.05.1916) encontra-se
marcada a lápis de carvão e lápis lilás com sublinhados e traços verticais nas
margens laterais em mais de 40 poemas.
Para além da atenção particular dada à literatura em língua inglesa,
Pessoa dedicou também muito tempo à leitura de títulos relativos aos temas
esotéricos e herméticos, com especial destaque para o Ocultismo, a Astro-
logia, a Maçonaria e o Rosacrucianismo, sendo o interesse por estas questões
evidente, já que os livros ligados a estas áreas incluem uma marginalia
coerente, insistente e reveladora da atenção hermenêutica que o poeta lhes
dedicou.
Se o ocultismo e a mediunidade terão, numa primeira fase, cativado a
atenção de Pessoa (ainda jovem), em relação com a forma como, em deter-
minada altura, adere à chamada “forma automática de escrita”, muito em
voga na segunda metade do século XIX, como meio de comunicar com os
espíritos (visto que a leitura de alguns livros sobre esta questão lhe teria
sugerido as regras a seguir para concretizar este processo), a partir de
determinada altura é a astrologia que absorve o poeta, o que é comprovado
não só pelo elevado número de obras sobre o assunto19 e pela atenção com
que os mesmos foram lidos e anotados20, como ainda pela importância que
os mesmos tiveram na redacção dos textos do próprio Pessoa sobre estas
questões ou até no que respeita à concepção dos seus principais heterónimos.
19 São cerca de 30 os títulos exclusivamente dedicados à Astrologia, quase todos em língua inglesa.
De entre este conjunto de livros, são quatro os autores mais representados: H.S. Green, Allan
Leo, Sepharial e George Wilde.
20 Este grupo de livros foi particularmente anotado, o que mostra o estudo profundo realizado por
Pessoa dos princípios astrológicos, das regras para elaboração e leitura de cartas astrológicas e
quanto às especificidades de cada signo e cada planeta, aprendizagens que Pessoa poria em
prática, por exemplo quando fez uma série de cartas astrológicas da sua vida, dos seus heteró-
nimos, de amigos, de figuras históricas e até de Portugal.
104 Paratexto
21 Isto fica claro num texto seu onde se afirma: «Thousands of theories, grotesque, extraordinary,
profound, on the world, on man, on all problems that pertain to metaphysics have passed
through my mind. I have had in me thousands of philosophies not any two of which – as if they
were real – agreed. All the ideas I had if written down had been a great cheque on posterity; but
by the very peculiar character of my mind, no sooner did the theory, the idea struck me that it
disappeared, and after I ached to feel that one moment after I remembered nothing – absolutely
nothing of what it might have been. Thus memory, as all my other faculties predisposed me to
live in a dream” (Lopes, Pessoa por Conhecer, p. 248).
Maria do Céu Estibeira 105
em si uma energia intensa de reflexão, de partilha com o autor e de auto-
-conhecimento.
A marginalia pessoana fundamenta-se, assim, num “diálogo” entre
autores, sendo que, muitas vezes, assistimos a uma oscilação entre a rendição
e a resistência, entre a identificação e o afastamento, na medida em que,
apesar de o seu sistema de anotação ser invariavelmente simples e regular, os
seus comentários podem ser muito estimulantes, pois parecem promover
uma espécie de “debate” entre o autor e o seu leitor/anotador. Efectivamente,
quer as reacções negativas ou de resistência que podem levar Pessoa a
considerar determinado texto como «monstruous» ou «horrendous», quer as
elogiosas mostram o seu carácter exacto e rigoroso, embora envolvente e
dominador.
Ao folhearmos as páginas que contêm a marginalia de Pessoa, obser-
vamos que estas são reveladoras de uma nítida excelência artística, não só
pela sua inteligibilidade e coerência, mas também pela sua regularidade,
espontaneidade e relevância para a compreensão da obra em que se encon-
tram. Na realidade, a marginalia deste autor não se limita a uma marcação
monótona, porque a sua originalidade acentua a forma independente e
crítica de pensar, testando e reajustando as diversas posições até chegar a
uma opinião definitiva.
Pessoa manifesta, ainda, uma combinação muito particular como
anotador, já que, para além de demonstrar um relacionamento sério com o
texto (objecto de leitura), assume uma expressão clara e utiliza um tom
pessoal bastante convincente, associando o seu talento a uma inteligência
incisiva e a uma capacidade natural de postura crítica que, quando produzida
sob indignação, humor ou ironia, simula magistralmente essa tal forma de
diálogo com o autor a quem se dirige, podendo dar origem a comentários
inequivocamente admiráveis até em livros absolutamente normais e sem
grande excelência.
O facto de Pessoa ter sido um profundo amante da leitura e, desde muito
jovem, a ela devotado faz dele um anotador muito especial e muito para além
do simples corrector ou comentador. Na verdade, a experiência pessoal e a
vastidão de conhecimentos demonstrados pelo poeta português possibili-
tavam-lhe ter um controlo absoluto sobre os livros anotados, adicionando-
-lhes muitas vezes informações retiradas de outras fontes e de outros autores
e aproveitando-as para apoiar ou questionar a informação do livro que lia.
Embora, em dado período da sua vida, Pessoa tivesse afirmado que, a
partir de determinado momento, nada mais iria ler, podemos perceber que a
106 Paratexto
Bibliografia
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Routledge and Sons, 1896
Anes, José Manuel, Fernando Pessoa e os Mundos Esotéricos, Lisboa: Esquilo,
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Lisboa: Assírio & Alvim, 1998
Pessoa, Fernando, Correspondência 1923-1935, ed. Manuela Parreira da Silva,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1999
Pessoa, Fernando, Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal,
edição e posfácio de Richard Zenith, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003
Pessoa, Fernando, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, G. Rudolf Lind e
Jacinto Prado Coelho (eds.), Lisboa: Edições Ática, [1966]
108 Paratexto
da leitura ou para uma sociologia do meio literário, e não negando que algu-
mas entrevistas possam ultrapassar em profundidade e problematização o
trivial descartável que tende a caracterizá-las, o que fica é muito pouco para
poder constituir modo de leitura: os leitores instruídos tendem a lateralizar
esses hipotéticos conteúdos, precisamente porque também são instruídos
acerca do “campo guerreiro” em que eles são produzidos; o grande público,
por seu lado, apenas fixa desses conteúdos o que pode ser reduzido a um
simples rótulo, que muitas vezes mais não é do que o próprio nome de autor,
que se torna assim o autor por antonomásia.
Finalmente, uma terceira forma de o autor poder operar sobre a organi-
zação e estruturação do seu território textual advém da possibilidade de
poder inscrever na própria obra a sua pertença a um género ou a uma série,
ou de, através de prefácios, posfácios, notas ou outros operadores, propor
caminhos de interpretação ou manifestar interesses de auto-interpretação.
São operações clássicas, que oscilam, hoje, entre a informação já naturalizada
– raramente a indicação de género levanta agora quaisquer perplexidades –
e práticas em desuso, como sejam prefácios, posfácios ou demais notas.
Todavia, quando tais práticas por acaso acontecem, não deixam de ser as
operações paratextuais mais incisivas e com mais consequências no modo de
ler. O caso de Gonçalo M. Tavares, como tentarei mostrar, ilustrará sobre-
maneira ambas as coisas: uma vontade assumida de organizar e estruturar o
território textual do autor, e a execução dessa vontade através de operações
paratextuais a que é impossível sermos alheios no modo de ler.
3 De todos estes senhores, o senhor Duchamp é o único que ainda não foi “titular” de um livro. O
senhor Duchamp já tinha aparecido, como vimos, em O Senhor Calvino, igualmente num
episódio em que não foi mero figurante. O processo de construção desta figura segue, portanto,
etapas bem distintas das dos restantes senhores. Por enquanto, o único sentido razoável que
parece poder extrair-se daqui é que o “haver” bairro permite, naturalmente, uma certa variedade
nos percursos de emergência das figuras, bem como no uso das antecipações ou das
recorrências. Numa palavra, e como também já se assinalou, o “haver” bairro põe em acção um
mecanismo ficcional que envolve todos os livros da série.
122 Paratexto
tivamente no centro daqueles livros que não sabiam ainda que pertenciam ao
bairro.
Esta atenção ao “haver” bairro estende-se à sua geografia concreta, e
é sublinhada muito enfaticamente no passeio do senhor Breton. É verdade,
e vimo-lo, que já o senhor Calvino, todos os sábados de manhã, percorria
«o bairro de uma ponta à outra», mas isso apenas nos dava o todo da
sua geografia de um modo abstracto. O que há de diferente no passeio do
senhor Breton é que o seu itinerário assinala lugares concretos que pode-
ríamos seguir no mapa da contracapa: o senhor Breton «aproximou-se do
lugar onde o senhor Eliot costumava dar conferências» (p. 33); depois
«começou a aproximar-se dos limites do bairro» e ouviu «o barulho do
motor: o senhor Corbusier e a sua avioneta» (p. 36); saiu do bairro «até
começar a embrenhar-se na floresta», e «muitos metros à frente vislumbrou
a casa do senhor Walser» – mas «nem se aproximou. Não queria incomodar
ninguém.» (p. 36).
É um bairro vivo, este que o senhor Breton percorre, com os seus lugares
e as gentes desses lugares: mesmo que não contracenem com o senhor
Breton, como acontece neste passeio, não deixam de assinalar o povoamento
e a sociabilidade. Não será por acaso que o livro não se encerra com o
terminar da auto-entrevista do senhor Breton, mas um pouco depois disso,
quando alguém toca à campainha e «o senhor Breton foi abrir» (p. 56). Que
o último gesto do livro seja a perspectiva de mais sociabilidade diz bem da
alguma mudança de tom que decorre já não só de “haver” bairro, mas do
facto inquestionável de o bairro se ter tornado o espaço identificável destas
ficções e também sua personagem.
O Senhor Breton e a entrevista termina este lento movimento que condu-
ziu um dado paratextual a ser incluído bem no cerne do texto a que dizia
respeito. Neste sentido, a série refunda-se: obriga a reler, acrescentado-lhe o
que doravante é suposto ter lá estado desde sempre, e antecipa a leitura,
mapeando hipóteses e expectativas. Dito de outra maneira: de fora para
dentro e outra vez para fora.
Mas não é ainda o fim, a estabilidade, o plano sem sobressaltos da
interpretação. Há mais fora para ir para dentro e outra vez para fora. Por
exemplo assim. Desde o terceiro livro da série, O Senhor Juarroz, que no final
do livro, antes da tábua bibliográfica do autor, aparecem as capas de todos os
Senhores, com um breve excerto “ilustrativo”. Quando dois Senhores são
editados na mesma altura, o que tem o número de caderno mais baixo já
apresenta a capa do Senhor seguinte. No final de O Senhor Breton e a entrevista
Luís Mourão 123
aparece a capa e um excerto de O Senhor Salinger e uma história de infância,
que de acordo com a tábua bibliográfica deveria ter sido publicado também
em 2008. Não foi. Nada de mais, estas alterações de planos editoriais
acontecem. Supostamente o livro existe, ou senão uma forte intenção dele,
materializada em capa e excerto. O interessante, num bairro que já tem
identificados trinta e nove habitantes, o que de novo vem de fora para dentro,
é que o senhor Salinger não consta por enquanto do rol dos locatários…
Verdadeiramente, recomeçar continuando.
6. Pensando melhor
Mas pensando melhor, talvez até seja apropriado – porque não respeitar
o desejo de anonimato e desaparecimento do senhor Salinger? Sim, porque
não? E que melhor lugar para estar anónimo e desaparecido do que num
bairro que já tem trinta e nove fortes focos de atenção? Sim, que melhor
lugar?
Referências Bibliográficas
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Indianapolis: Indiana University Press, 1994
Mourão, Luís, «O bairro, a biblioteca e a máquina filológica: uma leitura par-
cial de Gonçalo M. Tavares», Gramática e Humanismo. Actas do colóquio
de homenagem a Amadeu Torres, organização de Miguel Gonçalves, Braga:
Publicações da Faculdade de Filosofia, 2005, 2º volume, pp. 529-535
Tavares, Gonçalo M., Livro da Dança, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Valéry, Lisboa: Caminho, 2002
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Henri, Lisboa: Caminho, 2003
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Brecht, Lisboa: Caminho, 2004
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Juarroz, Lisboa: Caminho, 2004
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Kraus, Lisboa: Caminho, 2005
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Calvino, Lisboa: Caminho, 2005
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Walser, Lisboa: Caminho, 2006
Tavares, Gonçalo M., O Senhor Breton e a entrevista, Lisboa: Caminho, 2008
124 Paratexto
Bibliografia Selectiva
Genette, Gérard, Seuils, Paris, 1987
Lane, Philippe, La périphérie du texte, Poitiers, 1992
Pym, Anthony, Method in Translation History, Manchester, 1998
Tahir-Gurçaglar, Sehnaz, «What texts don’t tell: the uses of paratexts in
translation research», Theo Hermans (ed.), Crosscultural Transgressions:
Research Models in Translation Studies, Manchester, 2002
Retratos e Miniaturas no Renascimento em Portugal
Pedro Flor
Universidade Aberta
1 Queremos agradecer à Doutora Teresa Amado o amável convite dirigido no sentido de colabo-
rarmos no presente número da revista Românica com um trabalho de investigação relativo à arte
da iluminura no tempo do Renascimento.
2 Se exceptuarmos os trabalhos de Aires do Nascimento, Dagoberto Markl, Horácio Peixeiro e
3 Sobre a história da arte do retrato, ver, por exemplo, a síntese ainda actual elaborada por
Galienne e Pierre Francastel, indicada na bibliografia final.
4 Este trabalho foi parcialmente efectuado em Pedro Flor, A Arte do Retrato em Portugal: entre o fim
6 Cf. mais recentemente Maria do Rosário Themudo Barata, «A Feitoria Portuguesa em An-
7 Cf. No Tempo das Feitorias. A Arte Portuguesa na Época dos Descobrimentos, em particular pp. 193-
224; e António Filipe Pimentel, «‘À Flandres por devoção e à Itália por ostentação’ ou ao invés:
as razões do Manuelino», Ao Modo da Flandres, cit., pp. 159-168. A propósito do vestuário na
época, ver o trabalho ainda actual de A.H. Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa,
pp. 23-62.
8 Cf. Portugal e Flandres – Visões da Europa 1550-1680, Catálogo da Exposição, Lisboa, IPPC, 1992,
em particular pp. 31-51, artigos da autoria de José Gentil da Silva, Nicole Dacos e Vítor Serrão.
9 Cf. por exemplo Horácio Peixeiro, Missais iluminados dos séculos XIV e XV – Contribuição para o
D. Manuel, ver mais recentemente Martim de Albuquerque e Arnaldo Pinto Cardoso, A Bíblia
dos Jerónimos.
Pedro Flor 141
feição marcadamente flamenga, foram introduzindo aos poucos elementos
decorativos e modos compositivos próprios da arte renascentista, como, por
exemplo, os grotescos, os rostos de perfil ou as micro-arquitecturas clássicas.
Não é possível, hoje, determinar o número de iluminadores activos no
século XVI em Portugal. Os dados relativos à cidade de Lisboa são, contudo,
conhecidos e demonstram a escassa actividade laboral nos meados da centú-
ria14. Acrescente-se ainda um aspecto relevante a propósito da mão-de-obra
capaz e disponível para abraçar encomendas de iluminura. O exercício da
modalidade de iluminação não estava exclusivamente sob tutela dos lomi-
nadores, uma vez que estamos certos, hoje, de que oficiais de artes análogas
reuniam as condições técnicas para satisfazer tais encomendas. Em alguns
casos, os pintores de cavalete, os douradores, os cartógrafos e até os ourives
estavam habilitados a exercer o ofício de iluminador, como se pode
facilmente comprovar através de casos concretos15.
Apesar da actividade dos iluminadores de Quinhentos manter o carácter
corporativo, herdeiro ainda dos tempos medievais, condenando a maior
parte das obras existentes ao anonimato autoral, é possível identificar alguns
desses artistas através de uma leitura atenta das fontes disponíveis16. Infe-
lizmente, tal como acontece na arte da escultura ou na da pintura, existem
muitos registos de iluminadores activos em Portugal durante os séculos XV e
XVI sem que, contudo, os consigamos agregar, com fiabilidade, a obra exis-
tente17. Todavia, a pesquisa documental e iconográfica permite-nos destacar
duas figuras que, pela relevância do legado artístico, merecem particular
14 Cf. João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, p. 187. O autor refere
a existência de cinco tendas de lominadores que «têm dois aprendizes. E são por todos dez
pessoas».
15 Tem sido valorizado nos últimos anos o papel dos pintores de cavalete na execução de enco-
mendas de pintura mural. Cf. Joaquim Inácio Caetano, «Modelos de estampilhas na pintura
mural quinhentista do Marão (Trás-os-Montes)», O Largo Tempo do Renascimento, pp. 101-129.
Registemos também alguns exemplos de ourives que, mais tarde, se tornaram pintores de
renome, casos de Álvaro Pires (a. 1498-1539), identificável com o Mestre da Lourinhã, ou do
pintor régio de Filipe II de Espanha (I de Portugal), Francisco Venegas (a.1570-1594), ou ainda
do pintor de cavalete e também iluminador André de Padilha (c. 1500-1560) que desenvolveu a
sua actividade entre o Porto e Viana da Foz do Lima. Cf. Vítor Serrão, André de Padilha e a Pintura
Quinhentista entre o Minho e a Galiza, pp. 94-109.
16 Cf. por exemplo Sousa Viterbo, Notícia de alguns pintores portugueses e de outros que, sendo estran-
geiros, exerceram a sua arte em Portugal, e Sylvie Deswarte-Rosa, cit. nota 12. Sobre o estatuto
social do artista no século XVI, ver obrigatoriamente Vítor Serrão, O Maneirismo e o Estatuto
Social dos Pintores Portugueses, pp. 49-81.
142 Paratexto
17 São os casos dos iluminadores Gonçalo Anes (1424-1455), Vasco Eanes (a. 1450-1466), Luís
Dantes (a. 1454-1466), João Marco (a. 1514), Diogo Fernandes (a. 1522-1537), Jorge Vieira (a. c.
1530-1540), António Fernandes (a. 1538-1590), recenseados por Sousa Viterbo em obra
anteriormente citada.
18 Cf. Luís Reis-Santos, O Mestre da Lourinhã, e Vítor Serrão, No Tempo das Feitorias, pp. 347-351.
21 Mais recentemente, apurámos nova referência documental, datada de 15 de Agosto de 1581, que
não explicita o cargo de oficial heráldico que Gaspar Cão então ocupava e que poderia bem ser
uma posição superior à de passavante. A quantia de 7.520 rs em falta era relativa ao ano de 1579
e apenas é mencionado o facto de ser, a par com um Manuel Teixeira, ambos offeciaes da nobreza.
Cf. ANTT, Ementas da Casa Real, Liv. 3, fl. 26v.
Pedro Flor 143
naturalista se entrelaçam, numa sintonia equilibrada de cor e de forma geo-
métrica, tão ao gosto do Renascimento22. Os fundos de paisagem detalhados,
ainda herdeiros da pintura flamenga, os tons azuis profundos e os vermelhos
vibrantes, bem como a minúcia no tratamento das carnações são traços de
estilo de um iluminador que os irá transportar para as obras de cavalet23.
Por seu turno, António de Holanda (c. 1480-1557), mestre de origem
flamenga cuja formação artística se efectuou com probabilidade junto da
oficina de Alexander Bening, aparece envolvido na iluminação da Leitura
Nova (1511), tal como Álvaro Pires. Infelizmente, pouco se conhece da sua
obra no tempo de D. Manuel, ao contrário da actividade do reinado seguinte,
claramente mais bem documentada24. Foi nomeado passavante Santarém,
ocupando a vaga deixada pelo pintor flamengo Francisco Henriques (a.1500-
1518) e atinge o cargo de Rei de Armas (Índia) na década de 50 do século
XVI25. Entre outras obras de iluminação marcantes, quer pela qualidade
técnica patenteada, quer pelos coloridos intensos utilizados, salientemos,
por exemplo, a realização da Genealogia de D. Manuel Pereira, Conde da Feira
(1534-37) e, em estreita parceria com o iluminador ganto-brugense Simon
Bening, da Genealogia do Infante D. Fernando (1530-1534).
22 Tal como já foi apontado por outros autores, é provável que Álvaro Pires conhecesse a Bíblia dos
Jerónimos e que se tivesse igualmente deixado fascinar por tal peça italiana. Observem-se os
frontispícios presentes no Livro IV, IX, X e XI (este último assinado) da Leitura Nova para aferir
dessa hipotética influência. A colaboração de Álvaro Pires na Leitura Nova estendeu-se, pelo
menos, até 1527.
23 Cf. Manuel Batoréo, Pintura Portuguesa do Renascimento.
24 Cf. por exemplo Sylvie Deswarte-Rosa, Les Enluminures de la ‘Leitura Nova’, e Maria José Redondo
num documento pouco utilizado ou desconhecido pela historiografia: ANTT, CC, Parte I, Maço
54, doc. 63: Despesa que o tesoureiro do Rei Manuel Velho fez na bandeira que mandou fazer pera o
saimento do Infante dom Fernando que santa glória aja: Item tres varas de ruãao delguado pera o
campo da bamdeyra a oytenta rs cva. dozemtos cimquenta cymquo rs; E dozentos de damasquo preto
que leuou a bandeira e çaneffas dobradas demea largura do damasquo em larguo a quatroccemtos e
oitemta rs; E trimta sete rs mº de retros e tres outauas; E douro e prata pera dourar e fazer as armas na
dita bamdeyra mill e oitoçemtos rs; E deu a Dioguo Ffrz pimtor que pymtou a bamdeyra // E por
avalyacaao damtonio dolamda que julguou que merecya mill rs de feytio e timtas; E a guaspar
megirado? que ffez a bamdeyra dozemtos rs de feytio; E despemdeo o tisoureyro em huua aste e pimtura
de negro nella cemtº e quaremta rs; Q fazem ao todo novemill Çemto e Novemta e dous rs; Çertiffiquo
asy em euora a xxbiij de Janeiro de 1535.
144 Paratexto
26 Cf. por exemplo Sylvie Deswarte-Rosa, Ideias e Imagens em Portugal na época dos Descobrimentos,
pp. 480-486.
27 Cf. José da Felicidade Alves, Introdução ao estudo da obra de Francisco de Holanda, pp. 88-122.
28 Cf. Pedro Flor, A Arte do Retrato em Portugal nos séculos XV e XVI, pp. 196-202.
29 Veja-se, por exemplo, o que dissemos a propósito do retrato muito discutível da rainha D. Leonor
Renaissance Portraits – European Portrait Painting in the 14th, 15th and 16th centuries, pp. 1-39.
Pedro Flor 145
Existe um número considerável de obras onde é possível detectar figuras
com traços fisionómicos semelhantes aos do rei D. Manuel e que a tradição
historiográfica tem querido ver como representações verdadeiras do mo-
narca31. A hipotética encarnação de D. Manuel em figuras de tradição
bíblica, como ‘Rei David’ ou como ‘Rei Mago’, é plausível, se atendermos aos
variados significados culturais que se podem atribuir a tais personagens e aos
paralelos visuais que se podem estabelecer. O misticismo que rodeou todo o
reinado de D. Manuel, a quem se atribuíram qualidades messiânicas, e o
contraposto tipológico que se criou entre aquele Rei do Antigo Testamento, o
Rei Mago do Novo Testamento e D. Manuel explicam na perfeição a duali-
dade deste género representativo, onde se nota total fusão entre os planos
divino e terrestre32. Neste sentido, mantemos reservas quanto à possibili-
dade de, no Missal Rico [Fig. 1], estar presente uma imagem do Venturoso,
não tanto por razões cronológicas, dado que a realização deste livro litúrgico
pode situar-se durante o reinado do Venturoso, mas sim por razões de ordem
iconográfica33. Com efeito, ao observar com atenção a imagem do Rei David,
iluminada no fólio do Missal crúzio, verificamos que nem o perfil, nem a
feição correspondem minimamente à verdadeira efígie manuelina, uma vez
que a figurinha apresenta farta barba, ao contrário do hábito daquele Rei.
Para mais, não existem outros elementos iconográficos que nos apontem
inequivocamente para a sua identidade, pelo que as reservas devem ser man-
tidas até se apurarem outros aspectos relativos à encomenda e à realização do
Missal. Um último argumento que se pode aduzir é o de existir uma outra
representação de um Rei David num fólio iluminado de um Colectário,
também oriundo do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, em tudo seme-
lhante à do Missal Rico. Tais analogias visíveis no desenho e na composição
31 Falamos em particular da figura do Rei David num dos painéis de um antigo retábulo do
mosteiro da Trindade em Lisboa, hoje no MNAA; da figura de Rei Mago em painéis dos antigos
retábulos da igreja de Santa Maria de Torres Vedras (Museu Municipal Leonel Trindade – Torres
Vedras) e do mosteiro de São Bento de Xabregas (MNAA).
32 Mais recentemente, cf. Horácio Augusto Peixeiro, «Retrato de D. Manuel na Iluminura», Revista
do Porto. A imagem do Rei David surge na inicial historiada do intróito no fl. 1. Sobre o Missal
Rico, veja-se o trabalho de A. Peixeiro, «Um Missal iluminado de Santa Cruz», Oceanos, nº 26,
pp. 52-72. Segundo opinião expressa pelo autor, este Missal foi começado a partir de 1517 e em
1526 ainda estaria por completar. Embora o intervalo de tempo seja relativamente largo, admite-
-se a possibilidade de o fólio inicial ter sido iluminado ainda em vida de D. Manuel e, portanto,
estar já pronto em 1521.
146 Paratexto
Fig. 1 – D. Manuel como Rei David ? – inicial presente no Missal Rico, Biblioteca
Pública e Municipal do Porto, Santa Cruz 28, fl. 1 – retirado de Horácio Peixeiro,
“Retrato de D. Manuel na Iluminura”, in Revista de História da Arte, nº 5, p. 111.
34 Sobre a Leitura Nova, cf. Sylvie Deswarte-Rosa, Les Enluminures de la ‘Leitura Nova’; e Leitura
Nova de Dom Manuel.
35 As Ordenações Manuelinas são exemplificativas desse carácter icónico. Cf. Ana Maria Alves,
Fig. 2 – D. Manuel – retrato de perfil – ANTT, Leitura Nova, Livro 1º Além Douro,
fl. 1 – retirado de Oceanos, nº 26, p. 27.
36 Cf. Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, cap. LXXXIV, pp. 594-595:
«Foi el Rei Dom Emanuel homem de boa statura, de corpo mais delicado que grosso, a cabeça
sobelo redondo, os cabelos castanhos, a testa aleuantada, & bem descuberta delles, os olhos
alegres, entre verdes, & brancos, aluo, risonho, bem assombrado, os braços carnudos, & tam
compridos que os dedos das mãos lhe chegauam abaixo dos geolhos, tinha as pernas taõ
compridas, & tam bem feitas, segundo a porporção do corpo, que nenhuma cousa mais se lhes
podia desejar.»
37 De D. João III não são conhecidos exemplos de retratos em fólios iluminados como os referidos
para D. Manuel.
148 Paratexto
38 Não abundam os estudos históricos e artísticos sobre esta obra, guardada actualmente no
ANTT. Cf. Instituição da Capela e Morgado do Cronista Rui de Pina.
39 Cf. Instituição da Capela e Morgado. O testamento foi lavrado em 21 de Maio de 1515 em Lisboa,
numas casas à Porta do Sol, no Bairro dos Escolares, freguesia de S. Tomé, pertença de Leonor
de Pina, filha de Rui de Pina, onde se estabelecia que o herdeiro seria Fernão de Pina, seu filho.
Pedro Flor 149
40 De resto, é possível identificar alguns elos de ligação entre os vários testemunhos pictóricos que
ambos legaram e que sugerem forte proximidade artística, além do relacionamento na corte
joanina que, por certo, mantinham. Comparem-se os retratos integrados da série de Almeirim,
hoje no MNAA e que faziam parte do antigo retábulo do mosteiro de Nossa Senhora da Serra da
dita vila, com os da Instituição para podermos apreciar melhor as semelhanças que existem entre
os dois, que não são só de composição.
41 Cf. Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, p. 338; Maria José Redondo Cantera, «Artistas y
otros ofícios», p. 659 e Jorge Sebastián Lozano, «Choices and Consequences. The Construction
of Isabel de Portugal’s image», pp. 145-162.
Pedro Flor 151
provavelmente seria da autoria do mestre flamengo. Esses retratos, anteriores
a 1539, terçados e de busto, contemplavam os irmãos D. João III, D. Luís, D.
Fernando e D. Maria (meia-irmã) e a cunhada D. Catarina de Áustria42.
O apuro técnico e a prática de retratar foram ensinadas a seu filho
Francisco de Holanda que, mais tarde, em 1549, elabora o precoce e já citado
Do tirar polo natural, tratado dedicado à arte do retrato, traduzido para
castelhano em 1563 por Manuel Denis43. Sobre a retratística de Francisco de
Holanda, os problemas sucedem-se. As referências a retratos realizados por
si na sua produção teórica e estética são variadas. Delas destacamos as men-
ções a retratos dos monarcas D. João III e D. Catarina de Áustria, bem como
um da Infanta D. Maria, mulher de Filipe II de Espanha, falecida em 1545,
sem contudo terem hoje correspondência em peças remanescentes. Com
efeito, não existem testemunhos seguros da arte de retratar deste famoso
teórico nacional, se exceptuarmos o retrato de grupo da família real sob o
manto protector da Virgem Maria, anteriormente no coro-alto do Mosteiro
de Santa Maria de Belém e hoje no Museu Nacional de Arte Antiga44.
Tanto em obra de iluminura com as características que temos vindo a
enunciar, como em miniatura, integrada numa peça de joalharia, de acordo
com o gosto do tempo e que se prolongou até aos finais do século XIX, não
são concludentes os exemplos que chegaram aos nossos dias. A famosa série
de Parma, representando os elementos mais importantes da família real por-
tuguesa de Quinhentos (D. João III, D. Catarina, o Príncipe D. João, D. Joana
de Áustria, Infante D. Luís, D. Duarte e sua mulher D. Isabel de Bragança, a
Infanta D. Maria, e a Imperatriz Isabel de Portugal), pode não ser devida ao
pincel de Francisco de Holanda como tem sido escrito45. Com efeito, mais
recentemente, em obra já citada, Maria José Redondo Cantera e Vítor Serrão
admitem que Manuel Denis, pintor espanhol intimamente ligado a D. Joana
pp. 40-67.
45 Cf. Annemarie Jordan, Retrato de Corte em Portugal. O Legado de Antonio Moro, pp. 42-45 (texto e
reprodução das miniaturas) e Maria José Redondo Cantera e Vítor Serrão, “El pintor portugués
Manoel Dionis o Dinis”, pp. 8-18; Vítor Serrão, A Pintura Maneirista e Proto-Barroca (1550-1700),
Dalila Rodrigues e Bernardo Pinto de Almeida (dir.), pp. 18-20 (inédito). Agradecemos ao Prof.
Doutor Vítor Serrão o facto de nos ter facultado este texto ainda por publicar.
152 Paratexto
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(coord.), de Letras da Universidade de Lisboa/Ed. Caleidoscópio, 2008,
pp. 51-83
154 Paratexto
1 G. Genette, Palimpsestes, p. 9.
6 J. Fabre, «Préface», p. 7.
7 J. Graham, «Reading contemporary picturebooks», p. 209.
8 C. Le Manchec, L’Album, une Initiation à l’Art du Récit, p. 21.
28 Refira-se os livros para crianças de Guerra Junqueiro, Adolfo Coelho, Maria Rita Chiappe Cadet,
Maria Amália Vaz de Carvalho ou Virgínia de Castro e Almeida, com ilustrações de origem
diversa. Quanto a jornais e revistas, o Jornal da Infância, de 1883, foi a primeira publicação a
inserir gravuras de qualidade. Cf. F. R. Medeiros, Do Fruto à Raiz, pp. 31-35 e 41-43.
166 Paratexto
Ana de Castro Osório não se limitou a pôr em prática nas edições que
dirigia os princípios estéticos que a norteavam, estendendo o seu gesto
precursor até à reflexão sobre o assunto, evidenciando também aqui o pio-
neirismo que revelou noutras áreas. Em artigo de 1902, publicado no jornal
A Crónica, sob o título «A arte na literatura infantil», tece algumas consi-
derações sobre a importância da ilustração nos livros de recepção infantil,
parecendo, assim, ter sido Ana de Castro Osório quem, entre nós, primeiro
pensou e escreveu sobre a necessidade de boas ilustrações nas publicações
destinadas a crianças. Afirma então:
Quanto desejaríamos que a leitura não fosse, como é entre nós, um
luxo dos felizes, e que artistas e editores pudessem, sem sacrifício,
dedicar muito do seu cuidado a essa complexa literatura infantil, se
literatura se pode chamar à aprendizagem que se faz tanto pelos
olhos, vendo estampas, como pelos ouvidos e pela inteligência,
ouvindo e lendo a explicação delas. Livros sem ilustrações não
servem para crianças, que, ou os não entendem ou, se entendem,
lhes dão margem a muito fantasiar sem mão amiga que lhes guie a
imaginação, materializando-lha, por assim dizer. Importar estam-
pas do estrangeiro, como se faz e tem feito entre nós, pelo excessivo
preço por que ficariam cá, é um erro grave, porque é educar falsa-
mente a estética, é dar uma noção errada das coisas que habi-
tualmente nos rodeiam, dos costumes, tipos, paisagens e até das
cores.29
Martins Barata, Cottinelli Telmo, Raul Lino, Sarah Afonso, Emmérico Hartwich Nunes.
Fátima Ribeiro de Medeiros 167
encontramos outro lote considerável de ilustradores que assinaram ilustra-
ções incluídas em livros que tiveram grande popularidade, alguns fazendo ou
não passar modelos estéticos mais ou menos aceites institucionalmente,
outros assumindo-se como personalidades marcantes e incontornáveis das
artes plásticas32. Segundo José-Augusto França, muitos destes artistas
plásticos integram, de pleno direito, o modernismo português33. Em finais
da década de 60, inícios de 70, surgiram novos nomes34, com destaque para
Leonor Praça, cujo trabalho, tanto pela singularidade do traço como pela
força da cor, fazia prever uma carreira de excepção que a morte prematura
veio interromper, ilustradora que teve a coragem de fazer uma deambulação
pela autoria plena (texto visual e verbal), num gesto artístico pioneiro,
através do álbum Tucha e Bicó (1969).
O trabalho dos ilustradores até à década de 70 é visível, na sua quase
totalidade, nos chamados livros ilustrados, sendo raríssimos os livros-álbum,
partilhando uma página ou parte dela, muitas vezes sobre legenda que
transcreve uma frase do texto verbal. Quando se trata de uma colectânea,
podem existir uma ou várias ilustrações para a mesma narrativa. Se o volume
é um romance juvenil, então contará com várias imagens. Porém, quanto
mais se recua no tempo mais escassas elas são, com algumas honrosas excep-
ções, onde se incluem, com muita vantagem, os trabalhos de Ana de Castro
Osório. A policromia começa por ser rara, não passando muitas vezes da capa
ou de uma ou outra ilustração, convivendo no mesmo livro com outras
imagens a preto e branco. À medida que se avança no tempo a cor vai
tomando conta da ilustração de recepção infantil, passando a ser frequente a
partir dos anos 60, para se instalar definitivamente nos anos 70, apesar de
alguns ilustradores continuarem a preferir o negro sobre o branco como
elemento marcante na sua gramática ilustrativa.
Entre as décadas de 1900 e 1950, tem lugar de destaque o nome de
Raquel Roque Gameiro, um dos elementos do clã Roque Gameiro, a que
alguém já chamou a “tribo dos pincéis”35, pelo pioneirismo que a juventude
32 A este propósito e a título exemplificativo refira-se nomes como os de Álvaro Duarte de Almeida,
Tomás de Melo (Tom), José de Lemos, Vasco Lopes de Mendonça, João da Câmara Leme, Lino
António, Júlio Pomar, António Carneiro, Manuel Lapa, Júlio Gil, Júlio Resende, Maria Keil.
33 Cf. J.-A. França, A Arte em Portugal no Século XX.
34 Retenha-se, entre outros, os nomes de Carlos Barradas, Jorge Pinheiro, Alice Jorge, Julião
lhe permitiu36 e por uma afirmação de clara escolha por esta via artística,
manifestada através das mais de quatro dezenas de títulos ilustrados, para
além do trabalho apresentado nas secções infantis de diversas publicações e
em revistas e jornais destinados a crianças. Além de ter trabalhado com Ana
de Castro Osório, ilustrou textos de muitos outros escritores37. São marcas do
seu trabalho a delicadeza do fino traço, que define o «sentido ilustrativo»38
das suas imagens, de excelente qualidade gráfica, a riqueza de pormenores
fixando “momentos-chave” das narrativas, pondo em destaque as perso-
nagens, desenhadas com muita expressividade, e o seu enquadramento, reve-
lando as “qualidades cénicas” e a “profusão decorativa” do seu trabalho,
traços distintivos que o tornam reconhecível mesmo quando assina obras em
parceria, como acontece no livro Varinha de Condão (1925), de Fernanda de
Castro e Teresa Leitão de Barros, que ilustra em parceria com outros artistas.
Aspectos importantes do seu desenho a preto e branco, estas características
continuam a manter-se nas imagens a cores, que deixam ainda entender o seu
gosto pela aguarela, onde prefere “tonalidades fortes”. Gravuras há em que o
traço contínuo é substituído pelo traço pontilhado, que vem reforçar a ideia
de leveza e evanescência do que é desenhado. Quer na ilustração de maiores
dimensões, quer no friso ou no pequeno desenho singular, todos os por-
menores gráficos revelam o cuidado e a qualidade estética da ilustradora, que
parece, por vezes, querer escapar ao espartilho da esquadria, superando-a,
saindo fora dela, como se pretendesse alongar-se por toda a folha de papel,
numa atitude que ultrapassa os limites estéticos da época de assinatura das
ilustrações e toca as décadas então distantes do final do século.
Apesar da importância dos primeiros ilustradores, sobretudo pela
marca fundadora e pela qualidade estética dos seus trabalhos, ajudando a
afirmar a edição para crianças, é, no entanto, nos anos 50 que surge aquela
que habitualmente é considerada uma das figuras de referência da ilustração
36 Ilustrou em 1903, com apenas catorze anos, o seu primeiro livro para crianças, Contos Tradicio-
nais Portugueses, rescritos e editados por Ana de Castro Osório, num trabalho em parceria com
Hebe Gonçalves. No ano seguinte, voltaria a ilustrar para a mesma editora e colecção Alguns
Contos de Grimm.
37 Ilustrou livros de Maria Simões Anjos, Teresa Leitão de Barros, Jane Bensaúde, Augusto Santa-
-Rita, Fernanda de Castro, Emília de Sousa Costa, Celestino David, Carlos Frederico, Maria do
Carmo Peixoto, António Sérgio, Graciete Branco (e outros) e o Jornal dos Pequeninos (1907), além
de ter colaborado, entre outras, nas secções infantis de Serões (1905-1909) e d’ A Mulher e a
Criança (1909-1910).
38 F. Pamplona, Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses, p. 17.
Fátima Ribeiro de Medeiros 169
no século XX, Maria Keil, artista que continua a ilustrar na presente década,
responsável por algumas das mais belas páginas de livros ilustrados para
crianças e jovens, artista plástica integrada por José-Augusto França39 na
segunda geração do movimento modernista, de que adoptou «um figurino
figurativo geracionalmente comum»40. Entre Histórias da Minha Rua (1953),
de Maria Cecília Correia, o primeiro título ilustrado, e A árvore que Dava
Olhos (2007), de João Paulo Cotrim, passaram pelas suas mãos cerca de
quatro dezenas de títulos de diversos escritores41, com destaque para Maria
Cecília Correia e Matilde Rosa Araújo, com quem estabeleceu laços de ami-
zade e cumplicidades várias, numa parceria criativa muito cara à ilustradora,
em mano a mano de grande fecundidade estética. Com Matilde criou algumas
das mais belas obras literárias que nos tem sido dado ler/ver, assumidas
como objectos de arte, de que O Cantar da Tila (1967) pode ser encarado
como paradigma. Assinou tanto a imagem como a palavra de três livros de
reconhecida qualidade e criatividade, Os Presentes (1979) e As Três Maçãs
(1988), obras cuja ilustração conta com desenho, de figuras humanas de
linhas sóbrias, e colagem, e onde o texto surge em balões de fala, como se de
banda desenhada se tratasse. O terceiro título, O Pau-de-Fileira (1976),
«história dos gatos que viram nascer um prédio»42, é um livro onde muitas
das gravuras respiram na dupla página, em perfeita “relação” com o texto
verbal, como acontece nos dois títulos acima referidos. A sobreposição das
duas cores escolhidas para ilustrar este livro, o castanho e o laranja, dá às
imagens uma dimensão de profundidade e dinamismo.
Ao longo da sua obra ilustrativa para crianças, Maria Keil tem optado
pelo desenho figurativo estilizado, marcado pelo traço, quase sempre fino,
assumindo-o como essência do seu desenho ilustrativo, já que procura
«concretizar em linha e traço o que está escrito”43. Primando pelo “domínio
do desenho e da composição»44, as suas ilustrações respiram leveza e pureza,
aquilo a que se pode chamar o sentido poético do traço, não deixando,
Maria Isabel César Anjo, Alice Vieira, Teresa Balté, Alexandre Honrado, João Paulo Cotrim,
entre outros.
42 M. Keil, O Pau-de-Fileira, p. 3.
48 Eis alguns dos seus autores, que vale a pena acompanhar, um ou outro com livro(s) editado(s) no
período imediatamente anterior: Fernando Lemos, Jorge Pinheiro, Costa Pinheiro, José
Guimarães, Emerenciano, Francisco Relógio, Teresa Dias Coelho, Ângela Melo, João Botelho,
Fernanda Fragateiro, Henrique Cayatte, João Machado, Armanda Duarte, Jorge Colombo,
António Modesto, Maria João Lopes, Paula Amaral, João Fazenda, Pedro Morais, José Miguel
Ribeiro, Joana Quental, Cristina Sampaio, Cristina Valadas, Bernardo Carvalho, João Vaz de
Carvalho, José Manuel Saraiva, Luís Henriques, Elsa Navarro, Alain Corbel, Carla Nazareth,
Marta Torrão, Fátima Afonso, Helena Simas, Pedro Proença, Raquel Pinheiro.
49 G. Maia, «Manuela Bacelar: um sol para as histórias escritas», p. 6.
Fátima Ribeiro de Medeiros 173
Prémio Gulbenkian de Ilustração (1990). Além do trabalho com Ilse Losa,
assina obras em parceria com outros nomes das letras portuguesas50, além de
ter ilustrado obras de clássicos como Andersen, Perrault, Collodi. Tanto
enquanto autora de textos visuais como de textos visuais e verbais, mostra-se
criativa, livre e audaciosa, capaz de criar rupturas e abrir caminhos.
Ilustradora que usa tanto o traço como a cor para construir o seu dis-
curso estético, trabalhando com diferentes formatos de livro e usando tanto
técnicas mistas como técnicas puras, com uma invulgar capacidade de «narrar
pela imagem»51, Manuela Bacelar tem-se imposto através de um trabalho
ímpar e de grande qualidade, deixando passear a sua criatividade por aveni-
das de liberdade, de realidade e de imaginação, abrindo janelas para o imagi-
nário do leitor, e recorrendo a uma paleta diversificada de cores para cons-
truir narrativas visuais ora plenas de humor, ora de emoção, sentimento e
poesia, conseguindo dar-nos como ninguém os mundos interiores das perso-
nagens, ultrapassando, ocasionalmente, os limites do real. Gosta de estrutu-
rar toda a página através de cores que reflectem e comunicam esses sentimen-
tos e estados de espírito, envolvendo-nos, inquietando-nos, acalmando-nos.
São cores positivas, criam pontes entre o texto verbal e as experiências do
leitor, o seu mundo onírico e o mundo real que o rodeia. Reflectem sonhos e
vida. As utilizações que faz do branco sobre diferentes cores dão brilho às
páginas, convocam o nosso olhar para detalhes de importância diversa,
sugerem ora evanescência, ora luminosidade e opacidade, mesmo quando
apenas pontilham o que iluminam. Libertando-se, por vezes, do contorno, a
sua pintura é leve, delicada, sensível, balizada por momentos de luz e som-
bra, deixando antever, como num palimpsesto, «o traço debaixo da tinta»52.
O desenho a preto e branco, a risco de lápis ou a tinta, destaca-se
frequentemente no trabalho a cores, marcado por uma aparente facilidade e
por um dinamismo que torna a sua autoria rapidamente referenciável.
Alguns desenhos têm um ar de ingenuidade infantil, aproximando-se muito
do ser e do sentir da criança. Para Gil Maia «a linha é um elemento muito
50 Isabel da Nóbrega, Agustina Bessa Luís, António Torrado, Matilde Rosa Araújo, Luísa Ducla
Soares, Maria Isabel de Mendonça Soares, Maria de Lurdes Soares, Inácio Pignatelli, Álvaro
Magalhães, Luísa Dacosta, Eugénio de Andrade, Teresa Balté, José Jorge Letria, Violeta
Figueiredo, Arsénio Mota e outros.
51 A. Melo, «Ângela Melo em entrevista a Manuela Bacelar», p. 8.
52 «O traço debaixo da tinta» é o título de uma das muitas exposições do trabalho de Manuela
Bacelar.
174 Paratexto
60 São eles Alice Vieira, António Mota, Luísa Dacosta, Alexandre Honrado, Vergílio Alberto Vieira,
João Pedro Mésseder, João Paulo Cotrim, Matilde Rosa Araújo, Manuel Alegre, Chico Buarque,
entre outros.
Fátima Ribeiro de Medeiros 177
escolhe para cada álbum uma cor dominante que lhe confere identidade
própria, pintando com aguarela, lápis de cor solúvel, pastel seco e, sobretudo,
acrílico. As suas cores são fortes e “inteligentes” e, quando aplicadas aos
fundos, criam os universos em que surgem e se movimentam as personagens,
condicionando a atmosfera da narrativa.
Os animais criados por André Letria são seres ímpares, umas vezes fantás-
ticos, outras realistas, configurando um bestiário rico e diversificado, en-
quanto que as suas personagens humanas sobressaem, por vezes, pela impre-
visibilidade de alguns detalhes, como orelhas em forma de lâmpada, um
nariz fechadura ou um rosto espelho, a roçar o surrealizante. Tanto uns como
outros são seres com densidade visual e afectiva. Nos títulos da série «Se eu
fosse…» as ilustrações assentam numa constante mudança de situações, que
provocam a curiosidade e as expectativas da criança leitora, servindo de
semente a outras experiências. Apresentando um trabalho progressivamente
mais depurado, a sua criatividade tem aberto caminhos na ilustração portu-
guesa pela criação de um universo particular que cativa miúdos e graúdos,
fazendo dele um nome de referência do panorama ilustrativo português.
Teresa Lima deu os primeiros passos na ilustração de livros de recepção
infantil em 1995 (A Cor das Vogais, de Vergílio Alberto Vieira)61. Defendendo
que ilustrar é recriar um texto literário “numa relação de dependência, mas
nunca de servilidade”62, é senhora de uma linguagem estética inconfundível
que percorre diferentes técnicas e materiais, através da qual consolidou já o
seu estilo, marcado pela criação de ambientes oníricos e poéticos, por vezes
com certa respiração surreal, provocada por transgressões como as alterações
de perspectiva. As imagens que cria oscilam entre a grande dimensão e o
pequeno apontamento, construindo expressivas metáforas visuais, suge-
rindo o diálogo entre recursos e motivos, dando origem a textos que provo-
cam múltiplas leituras. Algumas são marcadas pela referencialidade,
havendo quem considere ser possível encontrar ressonâncias estéticas de
«fortes raízes portuguesas»63 a alimentar o estilo pessoal da ilustradora.
As suas figuras, esguias, leves, esvoaçantes, fluidas, a quererem distender-
61 Ilustrou textos de Vergílio Alberto Vieira, António Mota, José Jorge Letria, Luísa Ducla Soares,
Alice Vieira, tendo ilustrado ainda clássicos como Lewis Carroll, Rudyard Kipling e Hans
Christian Andersen.
62 T. Lima, in AAVV, Ilustrações.pt, p. 63.
67 Ilustrou textos de Paula Pinto da Silva, João Pedro Mésseder, Ana Saldanha, Matilde Rosa Araújo
e, sobretudo, Emílio Remelhe (Eugénio Roda), entre outros.
68 N. Fischer, Os Recortes de Papel de Hans Christian Andersen.
70 G. Genette, Seuils, p. 9.
Fátima Ribeiro de Medeiros 181
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suplemento «Actual», Lisboa, 28/8/2004
71 Este título tem uma particularidade interessante em relação à data de edição: na folha de rosto
está inscrita a data de 1924, enquanto que no cólofon pode ler-se: “Este livro acabou de se impri-
mir na Imprensa Lucas & C.ª, Rua do Diário de Notícias, 61, aos 27 de Março de 1925, Lisboa”.
Seguindo a prática de catalogação portuguesa, que refere que quando um livro tem impressas
duas datas se deve escolher sempre a mais recente, indica-se aqui a data de 1925. Este título
aparece, contudo, referenciado em várias bibliografias e catálogos com a data de 1924.
182 Paratexto
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Modesto, António, «À conversa com André Letria», Malasartes, n.º 4. Porto:
Campo das Letras, Novembro, 2000
184 Paratexto
Apesar de tudo há ainda as palavras que nos metem medo. Delas irrompe
a cega proliferação de imagens. Porque se ao princípio era o nome, foi dos
nomes que nasceram as coisas. Esta realidade suscitada ardentemente pela
palavra passa a viver sobre a rede dos nossos sentidos: respira encostada
aos pulmões, lateja no sangue, crava-se na cabeça como uma coroa negra.
Herberto Helder, Photomaton e Vox
1 Ou aqueles que se fazem acompanhar por ilustração (ou mesmo que correm sob um objecto
pictórico que se percepciona em construção, como a obra Ciclópico Acto, de Luiza Neto Jorge e
Jorge Martins, a título de exemplo).
2 Luiz Costa Lima, Mímesis: Desafio ao Pensamento, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.
Rita Taborda Duarte e Luís Henriques (ilustrações) 187
A relação entre texto e imagem não é sequer da ordem da adequação, ou
qualquer forma de aproximação, como se houvesse formas mais precisas ou
mais aproximativas de aceder a uma espécie de realidade prévia; «o texto não
remete ao mundo senão para irrealizá-lo; não remete ao mundo senão para
nele descobrir o ser que se eventual e historialmente desoculta.»3. A arte
irrealiza– continua Luiz Costa Lima– «a unidade do sujeito. Mas a irrealiza
para mostrar o sujeito exposto nas suas fraturas.»4. Ora, parece-me que é
para esta exposição das fracturas do sujeito que lê e vê em simultâneo que
remete a poesia que se faz acompanhar de uma imagem: exibir as formas de
percepção de um sujeito e mostrar a mimesis como acto de percepção desse
mesmo sujeito.
O figurativo, a que durante os séculos XVIII e XIX se associou a mimesis,
motivo pelo qual este conceito terá sido rasurado durante todo o
Romantismo e gerações vindouras que dele subsistem5, tem sido a superfície
movediça que aparentemente parece facilitar o epíteto de mimético à arte
pictórica. O figurativo não pode ser, no entanto, sinónimo de mimético. Diz-
-nos Luiz Costa Lima:
O horizonte de expectativas não será suficiente para transfor-
mar o não figurativo em figurativo, mas sim em preparar o olhar do
receptor para as formas mais diversas de composição; em descobrir
semelhanças, onde no objecto dominam diferenças; em tornar vero-
símil o que de outra forma parecerá apenas estranho ou confuso ou
irrelevante. … o não figurativo não é sinónimo do amimético.6
Note-se o modo como Luiz Costa Lima pensa o modernismo através de um confronto com a
verosimilhança: «O modernismo, por exemplo, alcança a sua meta pelo realce do vector pertur-
bado da verosimilhança. No entanto a diferença não é apreensível sem que o verosímil tenha
organizado o quadro de expectativas» (cf. Costa Lima, idem, p.65).
6 Costa Lima, idem, p.222.
188 Paratexto
reverso, expondo-se não como semelhança, mas como diferença; não como
processo de continuidade, mas como garante da fractura.7
Ora a grande dificuldade da literatura é não poder simular, como a
arte abstracta, o mesmo desligamento do mundo e do sujeito, mesmo que
depois seja recuperado (sem dúvida mimeticamente) por aquele que vê e
compreende. Não é possível uma literatura abstracta8. E de forma nenhuma
sequer o surrealismo pretendeu fazê-lo. Por isso se torna tão contraditório
falar-se de literatura (e é indiferente, neste ponto preciso, que se trate de
poesia ou ficção) que se possa sequer apresentar como não mimética, como
recusa, mesmo que superficial, da estrutura mimética que a língua implica.
Mesmo regressando aos sentidos – como vimos vários – que, em Aristóteles,
se atribui a mimesis, rapidamente se descarta a hipótese de o figurativo ser
elemento determinante: Aristóteles usa a expressão mimeisthai, aplicada a
artes por excelência não figurativas, por essência abstractas, como a música e
a dança.9 Podemos mesmo dizer, então, que é essencial à literatura ser
mimética – mesmo que não queiramos admitir ser essa a sua essência.
A mimesis – e isto, já presente em Aristóteles, vai redescobri-lo mais
tarde, por exemplo, Baudelaire – não está na cristalização de uma forma, nem
sequer no reencontro de uma forma/fórmula oculta, «pois que é a mimesis
senão uma oficina de imprevistas correspondências?»10. Não é essencial-
mente na semelhança, na equivalência, que a mimesis se move, mas também
(poderíamos dizer sobretudo) na diferença, nas zonas fracturais. Aliás,
na poética aristotélica este duplo vector de correspondência por
semelhança e diferença está também presente. A correspondência
por diferença actualiza-se em dois vectores: a) aquele que se con-
funde com a situação mesma da mimesis internalização de uma
semelhança esconde a diferença de que partira); b) o que se actua-
liza na concepção da metáfora.11
7 Costa Lima, idem, p. 22: «A correspondência de uma cena primeira, que se cumpre na mimesis,
não supõe os limites da natureza ou a sua reprodução, mas a possibilidade de sentido a consti-
tuir, a partir de um horizonte cultural de expectativas».
8 Costa Lima, idem,p. 289: «Em termos estritos, a literatura abstracta exigiria o cancelamento dos
Poesía manuscrita
En octubre de 1572, la inquietud de muchos portugueses en torno a la
sucesión de D. Sebastián y consiguiente independencia del reino se compli-
caba con el notorio poder que estaban adquiriendo los validos del joven rey,
quienes aplaudían su espíritu de cruzada y alentaban sus planes de invasión
de Marruecos mientras que le mantenían alejado de su pueblo con cacerías y
devociones. Una mano anónima se las arregló entonces para atravesar el
parapeto de validos que aislaba al rey de su pueblo y hacerle llegar las coplas
que comienzan:
Pide a tu juicio cuenta,
zagal de ti descuidado,
que se te pierde el ganado
y piensas que se te acrecienta,…
otra forma inaccesibles. Goza así de un mayor margen para la disidencia, sin
que por ello se le deje de usar para impartir consejos de buen gobierno, dirigir
panegíricos y hasta hacer propaganda oficial2. En las páginas que siguen
recorreremos estos usos durante el reinado de D. Sebastián, cuya inestabi-
lidad en todos los sentidos lo convierte en un período particularmente rico
para el estudio de las relaciones entre política y literatura, que aquí limitare-
mos a lo que se refiere a la gran empresa a que el país se veía abocado: la
intervención en África, donde tras el fantasma de un imperio se jugó y perdió
la independencia nacional, un juego del que Portugal era consciente y sobre
el que se vertieron ríos de tinta antes que de sangre3.
Gloria y riqueza
La gloria que se deriva de la conquista, la riqueza que se arranca a los
conquistados y la civilización (religión, modos políticos) que extienden los
conquistadores, han sido y siguen siendo los tres modos fundamentales de
justificar el imperialismo, y se trenzan repetidamente en la poesía sobre el
imperio portugués, sea en encomio o en sátira. La tradicional glorificación
del dominio de otros pueblos, como digno de elogio per se, es ingrediente
mostrenco siempre disponible para el panegírico de grandes señores, de
modo que con frecuencia aparece en el exordio de obras de índole tan
inopinada como pueda ser la égloga. El imperio no se somete aquí a ejercicios
2 Buescu, en un trabajo de suma importancia pero de objetivos muy distintos de los nuestros de
hoy («A persistência da cultura manuscrita…», pp. 26-27) recuerda que la censura era igual-
mente ejercida sobre el livro manuscrito, y que el Rol dos livros que neste reino se prohibem (1564)
establece sanciones «para quem divulgue ilicitamente livros escritos de mão». A la amistad de
Vanda Anastácio debo la información de que la Inquisición portuguesa emitía licencias para leer
en público textos manuscritos, y que Pedro de Andrade Caminha disfrutó de una de ellas. Ello
equivale a una censura sobre lo manuscrito y hasta sobre lo oral. También en España hay
referencias a “papeles de mano” en los índices del Santo Oficio (Bouza, Corre manuscrito…, pp. 67-
68). Naturalmente, ni el legalismo extremado de quienes buscaban tales permisos ni el celo de
quienes perseguían tales papeles resisten la comparación con el escrutinio de que es víctima el
impreso frente a la libertad del manuscrito.
3 Al hablar de manuscritos hay que considerar, desde luego, cuanto nos ha llegado en copias de
volúmenes misceláneos, cancioneros y hojas sueltas, pero también aquella poesía, generalmente
de poetas mayores, que anda impresa desde el siglo XVI, siempre y cuando su carácter (y a veces
la existencia de copias manuscritas) haga pensar que en esta forma circularon por primera vez.
Es el caso de António Ferreira y de Diogo Bernardes, cuya producción poética, y concretamente
sus cartas a los poderosos, era bien conocida en manuscritos en las décadas de los 60 y 70,
aunque no fuera impresa hasta los años 90.
José Miguel Martínez Torrejón 197
de justificación, sino que llena un discurso hecho de retazos épicos, donde no
se puede omitir el temor que se infunde al enemigo, aunque sí se suelen dejar
en el tintero los motivos por los cuales se le llama así; son éstas cuestiones
resueltas en la memoria colectiva por siglos de tradición, y que no requieren
examen. Es el caso de la Célia de Sá de Miranda, cuya dedicatoria al infante
D. Luis celebra la participación de éste, junto a Carlos V, en la toma de Túnez
(1535), donde «temblaban africanos corazones» a la vista del nuevo cruzado
victorioso. También la dedicatoria de la Fábula do Mondego al rey D. João III
se extiende por todos los tópicos del caso: el rey se ha llenado de trofeos,
usando el valor de «los portugueses, a que nada espanta»; los dioses aprue-
ban su acción y acuden en su ayuda: Neptuno les da mar serena, Eolo vientos
favorables, Marte sus armas; ya en clave cristiana, la empresa es «santa» por
ser contra el Turco, que ya huye amedrentado. Todos son elementos que
constituyen el entramado mínimo de la poesía épica, y que encuentran en los
exordios de las églogas un terreno abonado para su cultivo, pues la contrapo-
sición pastoril/militar facilita la función retórica de la captatio benevolentiae:
el poeta bucólico se disculpa ante el poderoso mediante la excusatio propter
infirmitatem.
En este discurso glorificador, la riqueza de las tierras conquistadas asoma
en ocasiones como motivo de la conquista. Así, en el soneto panegírico que
Diogo Bernardes dirige al conde de Atouguia, virrey de la India, con ocasión
de su segunda partida (Rimas várias); le alaba como gobernador y como
guerrero: Numa y Marte; le augura que se le rendirán sin pensarlo sus enemi-
gos, «os que bebem no Gange, os que no Indo», mientras que los que habitan
a orillas del Éufrates tiemblan ya. Tanta gloria no le impide señalar, sin
embargo, lo que se espera de su regreso: de aquellas partes de Oriente, «onde
tão raros dões o Céo reparte», en Lisboa se esperan «mil palmas, mil tributos
novamente». El imperio ultramarino es, en efecto, riqueza, y es timbre de
gloria para Lisboa que su opulencia venga de lejanas colonias, concretamente
de Oriente. El hecho es el principal motivo del elogio de la ciudad en la
epístola que Pero da Costa Perestrello dirige, después de la unión ibérica, a D.
Cristóbal de Moura, ya Marqués de Castel Rodrigo:
Metrópoli do reino cujo estado
das praias do Occidente outro Emisferio
nas ricas do Oriente tem ganhado… (Obras inéditas, pp. 31-35)
En el imperio en que no se pone el sol se fundamenta la riqueza y el
carácter metropolitano de la ciudad, que se puede comparar a un «mundo
abreviado», gracias a «os impérios, e a corrente/ que de várias Nações nella
198 Paratexto
África nuestra
Recordemos, aunque sea historia muy sabida, cómo en el XV la corona
portuguesa pone en circulación la idea de que Marruecos (por eso mismo
Algarves d’alem mar) es terreno natural para la expansión del país. Se trata de
obtener fervor popular para la conquista de las que por eso se llamaron
“fronteiras”, un rosario de fortalezas costeras que habrían de servir como
puertas para la penetración comercial hacia el interior, de donde vendría el
siempre necesario trigo, y de bases donde hacer pie en el camino hacia el sur,
en busca de las rutas del oro. En el siglo XVI, al tiempo que el Brasil y la India
cambian el panorama colonial portugués, las fronteiras de la costa sufren la
presión creciente del poder militar de la nueva dinastía sa’adí, unificadora de
los antiguos reinos magrebíes, hasta que llegó el momento en que el beneficio
que reportaban estas avanzadillas no compensaba el costo material y militar
de mantenerlas. Juan III, tras perder Santa Cruz (Agadir), abandona Safim y
Azamor en 1541; en 1549 y 1550 siguen Alcácer Ceguer (El Jadida) y Arzila;
quedan sólo Ceuta, Tánger y Mazagón. Queda también el resentimiento en
aquellos para quienes, menos atentos a los aspectos económicos y estra-
tégicos del sistema colonial y más a los laureles militares de la conquista por
sí misma, sienten ante todo la herida de la retirada. El partido belicista dará
José Miguel Martínez Torrejón 199
mucha guerra en las próximas décadas, azuzando a la corona, incendiando
con ideas patrióticas y de cruzada el espíritu popular, y conduciendo el país a
su destrucción en Alcazarquivir.
Las polémicas en torno a Marruecos durante los reinados de Juan III
(1521-57) y D. Sebastián (1557-78) generan un abundante corpus poético
manuscrito, a juzgar por la porción que se ha conservado. Juan III, cuyo
carácter pacífico es loado por algunos, es también objeto de sátira mordaz,
por haber abandonado las plazas de África que sus antepasados conquis-
taron con tanta gloria. En ese contexto hay que situar unas Coplas à deixada
de Arzila, que han llegado a nuestros días en dos versiones muy parecidas;
la comparación de las mismas revela que proceden de una tercera, apuntando
a una difusión más extensa de lo que hoy podemos medir. La versión más
completa se encuentra en la Miscelánea Pereira de Foyos, donde mantienen su
forma de glosa a diversos versículos de las Lamentaciones. El largo lamento
por el abandono de Arzila nunca considera esta plaza como colonia ni parte
de un imperio ultramarino, sino como parte integral de Portugal cobardemen-
te entregada al enemigo. De este modo se va desgranando una descripción
imaginaria de lo que fue una hermosa ciudad portuguesa, llena de actividad
y rodeada de fértiles campos, mientras que ahora todo es abandono:
ventanas sin doncellas, calles sin caballeros, campos desiertos y sin cultivos.
La sonoridad plúmbea de las octavas de arte mayor reviste la despedida
de fúnebre solemnidad:
Estão os campos d’Arzila chorando
porque não vêem os seus cavaleiros,
que d’armas luzidas, cavalos ligeiros,
soíam por eles correr pelejando.
Os prados adonde se via pastando
doméstico gado, fermosa boiada,
neles não passa besta domada:
brutos monteses os ficam logrando.
As moças d’Arzila se foram chorosas,
deixaram desertas as suas janelas,
onde os mancebos as viam a elas
em dias alegres, louçãas e fermosas.
Fermosos pomares e casas vistosas
ficaram moradas de bárbara gente,
ficam-lhe campos de muita semente,
cheos de rios e fontes sombrosas.
200 Paratexto
4 Oliveira Martins, História de Portugal, pp. 178-179. Bebiano, A pena de Marte, pp. 132-135.
José Miguel Martínez Torrejón 201
Las múltiples estrategias de Don Sebastián: colonia, cruzada
y cambio de régimen
La atención a África se redobla desde el principio del reinado de D. Sebas-
tián. El terrible cerco que sufrió Mazagón a manos del Jarife Muley Mahomet,
en 1562, cuando el Rey contaba ocho años, costó muchas doblas y muchas
vidas portuguesas, confirmando los temores sobre las amenazas a que estaban
expuestas las plazas marroquíes, y dando ocasión al partido belicista para
insistir en la necesidad de reforzar la presencia lusa en esa costa. Los panegíri-
cos de D. Sebastián se llenan de alusiones por ese lado, especialmente cuando
a los catorce años se le declara mayor de edad y toma el gobierno de la nación.
Pero no todo es entusiasmo. Así, «um autor incerto» le dedica al Rey, el
día que tomó el gobierno (20 de enero de 1568), un soneto que se abre con el
reconocimiento de que el cetro que recibe es «imperial», es decir, destinado
a un dominio multinacional, y se cierra con el augurio de «que Deos vos faça
em África imperar». Pero el grueso del poema está en realidad dedicado a
darle unos consejos de buen gobierno que parecen contradecir esa visión
gloriosa de las conquistas:
Governai vosso povo, desejoso
de obedecer a rei tão desejado,
amai-o como deles sois amado,
que nisso está o serdes poderoso.
Justiça a todos usai igual, senhor,
prudência no enleger e reprovar,
fortaleza no batalhar e vencer,
temperança no amor e desamor,
5 El soneto se encuentra en el CCB, 16v; MFoyos, 5v y en CCM, 202r y repetido en 172r (copia
directa de la MFoyos). La Carta de Ferreira, además de MFoyos, 1r-4v, y en CCM, 167v-172v, se
imprimió en los Poemas lusitanos (1598), organizados, y quién sabe cuán modificados, por el hijo
del poeta, Miguel Leite. Finalmente, Faria e Sousa se la atribuye a Camões en la Terceira parte das
Rimas (1668); ver la edición crítica de Earle (pp. 313-319), quien considera que hay que datarla
durante la infancia del Rey.
José Miguel Martínez Torrejón 203
También Pedro da Costa Perestrelo dirigió a D. Sebastián una Carta, que
no se imprimiría hasta 1629, incluida como anónima en la Miscelânea de
Miguel Leitão de Andrada; su rúbrica hace referencia al hecho de haber sido
entregada al Rey en mano por un «Mestre Ignácio Martins, da Companhia de
Jesú»6. Perestrelo, que escribe sin duda después de Ferreira, y por tanto más
cerca de la catastrófica expedición de 1578, carga más las tintas contra la
guerra. Afirma sumariamente la obligación que tiene todo rey de hacer
prosperar sus estados y ser justo con sus súbditos, para pasar enseguida a
desenmascarar la atractiva imagen de la guerra,
doce vista a aparencia,
terrivel, fea, fera e espantosa
a quem dela tem mais experiencia;
em aparato e resplandor famosa,
nos efeitos cruel serpe maligna, etc.
6 Miscelânea, pp. 149-155; Leitão de Andrada da a entender que hubo otros muchos manuscritos
anónimos: «Outros muitos pera isso se buscarão, sem nada aproveitar: té que um dia lhe meteu
a mão o Padre Mestre Ignácio Martins, da Companhia de Jesús, e havido por santo, esta carta,
pedindo-lhe a lesse». António Lourenço Caminha (en 1791) es quien primero atribuye esta carta
a Pero da Costa Perestrello, ignoramos con qué fundamento.
204 Paratexto
Junto a estas voces que con tanta cautela piden moderación, suena una
poesía anónima que con muchas menos contemplaciones viene a exigir los
mismos fines: más atención a cuidar del reino y menos a extender el imperio.
La política africana será el mayor objeto de disidencia: esas bélicas empresas
que están arruinando lo que había de imperio ya establecido. Ése es el sentido
de una versión de las coplas de Jorge Manrique por la muerte de su padre,
contrahechas ‘a lo colonial’, de las que se conservan al menos dos copias en
cancioneros de primera importancia7:
Recuerde la India dormida,
o bom Rey, con braço fuerte,
contemplando
como la tienes perdida,
o venga quien la despierte
batallando.
Todo lo vemos perder,
lo por ganar y ganado,
ques peor,
y a nuestro parecer
el menor hecho pasado
fue mejor.
Al revés que en el discurso del “velho do Restelo” (Lusiadas, IV, c,ci), que
critica la expedición a la India como insensata porque aquí al lado, en
Marruecos, está el imperio natural de Portugal, estas coplas lamentan que lo
ya conquistado (aunque esté lejos) se abandone en favor de otras empresas
menos fructíferas (aunque sean cercanas). También los anónimos Avisos ya
mencionados al principio de este estudio, se refieren oblicuamente a la pér-
dida de la India como parte del desgobierno de un Sebastián metamorfo-
seado en pastor, en mal pastor que se rodea de malos zagales:
Los términos que estendieron
esos antigos pastores
en tu tiempo son menores
y los vesinos crecieron.
Los zagales comarcanos,
7 LFC 198v-200. Estas coplas son de h. 1550, pues están también en el ms. Asensio. Con todo, su
presencia en el último tercio del LFC (1557-1589) demuestra que el tema seguía siendo de interés
en las décadas siguientes.
José Miguel Martínez Torrejón 205
si vinieren a las manos
no hallaran resistencia,
pues no saben tu presencia
los tuyos a ti cercanos. (I, 91-99)
Mucho más grave es que ese abandono del reino propiamente dicho se
haga en favor de alocadas empresas de expansión:
Tus tierras guardar no puedes,
quieres ganar las agenas. (I, 152-153)
8 Uno de los manuscritos atribuye estos versos a Francisco de Aldana, que estuvo en Lisboa en el
verano de 1577, otro, más tardío, dice que se las entregó al Rey un jesuíta, con ocasión de su ida
a África.
206 Paratexto
cámara le aseguraba un decente pasar, a cambio del cual contribuyó con sus
versos al magno proyecto colectivo de instalar a D. Sebastián en brazos de la
fama con imagen de héroe épico. Este papel de poeta cuasi oficial podría
explicar la participación de Bernardes en la embajada de Pero de Alcáçova
Carneiro a Madrid, que cantó largamente en endecasílabos. Del mismo
modo, Bernardes aspiraba a recibir el encargo oficial de escribir un poema
épico sobre la que habría de ser victoriosa jornada de Marruecos, donde
quedó cautivo. A su regreso, en cambio, derramó en sonetos y elegías toda la
amargura acumulada en sus años de cautiverio, pintando a D. Sebastián
como rey irresponsable y adalid de una empresa tan errónea que mereció el
castigo de Dios9.
Bernardes, por lo demás excelente poeta lírico y moral, sabe ponerse a la
altura cuando se trata de hacer poesía de circunstancias. Lo había hecho ya
cuando con ocasión de la muerte de Juan III le dedica una elegía en que este
rey aparece incongruentemente como un imperial difusor del cristianismo,
famoso por sus conquistas:
Quantos milhares d’almas do escuro
lago de perdição tornou à luz
do teu ardente zelo o raio puro?
Quantos adoram hoje a Santa Cruz
que se por ti não fora a perseguiram,
onde mais arde o sol, onde mais luz?
Em qual parte do mundo não se viram
as tuas reais quinas levantadas?
Quais forças às tuas forças resistiram?
Digam-no tantas gentes conquistadas,
bárbaras de nação, de leis perversas,
por ti vencidas, por ti doutrinadas:
Mouros, Turcos, Árabes, Indos, Persas,
Destes y d’outros muitos triumphaste,
de várias linguas, de regiões diversas. (95)
9 Sobre la penuria económica de Bernardes, véase Graça Moura, «Camões e o mecenato». Su carta
a João Rodrigues de Sá de Meneses sobre la embajada a Madrid («Senhor, pois me mandais, inda
que vejo») fue recogida en O Lima, Carta XXXII. Sobre los matices con que poetas y cronistas,
incluyendo Bernardes, trabajan la imagen de D. Sebastián tras Alcazarquivir, puede verse mi
«Silencios, sigilos y sordinas…».
José Miguel Martínez Torrejón 207
más poderoso de los validos de D. Sebastián, para consolarle de ciertas difi-
cultades no dichas («Esperando que desse o tempo leve», O Lima, Carta XV).
Las críticas recibidas por el Távora, dice Bernardes, no deben preocuparle,
pues la fama duradera siempre depende de la virtud, y la suya está fuera de
toda duda en la consideración del Rey. Ello le da ocasión para un apóstrofe a
primera vista extemporáneo en que, «do grão furor d’Apolo arrebatado», se
dirige a D. Sebastián para exhortarle a la guerra: será Cristo mismo quien la
haga, a través de él. La invasión de Marruecos se justifica así como misión
divina, pero no se olvida su lado económico, pues la conquista del Atlas le
permitirá traerse «aquelas maçãs d’ouro», no por míticas menos simbólicas
de real riqueza. Podrá también señorear con su bandera «mil torres»:
as villas, as cidades populosas
vereis meter a saco, a ferro, e a fogo,
as rendidas a vós serão ditosas.
El poeta declara que ya está pidiendo a Dios ayuda para cantar la futura
empresa africana de D. Sebastián. Y no es poco el servicio que ofrece, pues,
concluye Bernardes retomando un viejo tópico, su poesía será capaz de
oscurecer las antiguas epopeyas, y con ella, y sólo con ella (pues la fama
nunca depende del hecho mismo, sino de cómo se publique), la empresa de
D. Sebastián superará las de los héroes de la Antigüedad.
Alejada del panegírico convencional, la Égloga XV, «Peregrino», debió
ponerse en circulación manuscrita poco antes de Alcazarquivir. Presenta dos
‘cortesanos disfrazados de pastores’ (que diría Cervantes) en el acto de con-
versar sobre cuestiones candentes de la corte. El quejoso pastor Limiano,
trasunto del poeta, ha regresado a orillas de su Lima después de larga estancia
junto al Tajo (en la corte), desde donde añoraba su tierra, pero aquí sólo le ha
recibido la dureza e ingratitud de sus paisanos. Se encuentra con Peregrino, a
quien conoce de vista, que acaba de llegar de junto al Tajo, donde estaba
buscando consuelo a su desgraciada vida amorosa en la Sierra da Estrela,
pero como no lo ha encontrado va ahora a visitar la tumba de Santiago en
Galicia. Limiano, que no se queja de amores, sino de desencantos más
materiales, le pregunta ansioso por las últimas noticias, es decir, el rumor
Que diz que o grão pastor dos Lusitanos
da larga foz do Tejo
com fato e com cabana
passa nos largos campos africanos,
onde mil soberanos
208 Paratexto
Con estos versos que cierran la égloga, visible herencia del exordio de Os
Lusiadas, se justifica el imperio desde la perspectiva religiosa y se señala a
D. Sebastián como el regalo del cielo predestinado para la empresa. Ahora
bien, esta postura es contradicha en el cuerpo de la égloga, donde la pobreza
y el desasosiego que dominan en la propia casa son los determinantes de la
huída a África. Diríase que Bernardes introduce forzadamente lo que cree
que se espera de él, o que, al contrario, los fuegos de artificio del exordio y
epílogo sirven para cubrir una sutil insinuación contenida en la égloga: la
guerra es buen modo de huir de los problemas domésticos, sea esto dicho con
o sin ironía.
José Miguel Martínez Torrejón 209
Papeles de encargo
Las aspiraciones africanas de D. Sebastián reciben un empuje decisivo e
inesperado en 1576: la guerra civil de los sultanes marroquíes se había
saldado a favor del Maluco (Abd-el-Malik), que con ayuda de los turcos de
Argel había logrado expulsar a su sobrino de Fez, Marrakech, Sus y Tarundate.
El destronado y fugitivo Xarife (Muhammad), conocedor de las ambiciones
de D. Sebastián, pensó obtener su ayuda (y a través de él, la de Felipe II, que
ya se la había negado) para recuperar los reinos de su padre. En sucesivas
ofertas, le prometió algunas plazas costeras, asegurándole también que el
pueblo marroquí se levantaría contra el tiránico Maluco en cuanto supiera
que los portugueses habían desembarcado; el ejército cristiano sería acogido
como liberador en todos sus reinos. Por último, el Xarife prometía hacerse
cristiano y vasallo de D. Sebastián, quien podría coronarse emperador en Fez.
El viejo sueño de la cruzada hacia Tierra Santa por la vía del norte de Africa,
el camino de la monarchia universalis centrada en Jerusalén, se echaban así a
los pies del rey portugués, que no podía desear mejores argumentos para la
invasión, pero que seguía necesitando la ayuda de su tío castellano; a partir
del verano de 1576 su ofensiva diplomática en este sentido se recrudecerá, y
con ella su parte literaria.
Al menos dos poemas extensos, dirigidos en forma manuscrita a Felipe
II, parecen haber sido comisionados por D. Sebastián y escritos a propósito
de la proyectada ‘Jornada de África’. El primero de ellos es la Felicíssima
Victoria… de Jerónimo de Corterreal, único poema épico en castellano de su
autor, que rodea de peripecias alegóricas, mitológicas y amorosas el relato de
la batalla de Lepanto, haciendo demorada descripción de las crueldades de
los turcos en Chipre. Se conserva en un lujoso códice, ricamente encuader-
nado, con impecable caligrafía y bellas ilustraciones de vivos colores, todo
ello de mano del propio Corterreal, según declara en su epístola dedicatoria.
Sabemos que no perteneció a la biblioteca del Escorial, sino a la personal de
Felipe II, quien en noviembre de 1576 escribió carta de agradecimiento al
poeta. Todo lleva a pensar que el portador del manuscrito fue Pedro de
Alcáçova Carneiro, quien estuvo en Madrid entre julio y octubre de 1576
como embajador extraordinario para concertar el encuentro de los reyes en
Guadalupe, que tendría lugar esa Navidad, y comenzar las negociaciones en
torno a los dos temas que habrían de tratarse en la entrevista: el casamiento
de D. Sebastián con una hija de Felipe II y la participación de éste en la
proyectada invasión de Marruecos. El precioso regalo formaría así parte de la
estrategia de D. Sebastián para inclinar el ánimo de su tío en pro de la guerra
210 Paratexto
10 Parker (1998) ha estudiado la red de conexiones entre los diferentes aspectos de la política
internacional de Felipe II, esa «gran estrategia» que llega a abarcar la totalidad del globo. El
poema de Aldana, mostrando todas esas conexiones simultáneamente, vendría a confirmar la
visión de Parker como moneda corriente en la corte de Felipe II. Las preocupaciones de tío y so-
brino con respecto del Norte de África, en efecto, no eran las mismas: mientras que las fronteiras
tenían (o habían tenido) un valor colonial para Portugal, como inicio y apoyo de su expansión
atlántica, el Estrecho seguía siendo para España el final del Mediterráneo, interesaba dominarlo
para mantener a los turcos encerrados. Son los turcos quienes preocupan a Felipe II, no los
moros de la costa atlántica. Pero si el Maluco se mantenía en los tronos magrebíes no tendría
más remedio que cumplir sus promesas para con los turcos que le habían ayudado a conquis-
tarlos, empezando por entregarles el puerto de Larache. Esto abriría una caja de Pandora que
Aldana describe con los detalles de estratega internacional que convienen al oído de Felipe II:
José Miguel Martínez Torrejón 211
Es más que probable que el extenso poema de Aldana fuera concebido
como continuación del de Corterreal, y el parentesco entre ambos se reata un
año después: en junio de 1577, para más certificar su poco entusiasmo por los
planes de su sobrino, Felipe II envía a Lisboa al propio Aldana, a quien antes
ha tenido tres meses espiando en el reino de Fez; su cometido es convencer al
rey portugués de que la invasión, proyectada para ese mismo verano, es poco
menos que imposible. Siguieron dos semanas de conferencias y consultas,
hasta que en vista de lo atrasados que estaban los preparativos, los propios
validos de D. Sebastián le forzaron a posponer la empresa hasta el año
siguiente. No debe ser coincidencia que los dos poemas resurjan enseguida:
en el mismo mes de septiembre, Corterreal obtiene licencia para imprimir el
suyo, con la carta de Felipe II al frente; le añade también, al final, cuatro
octavas reales en portugués, en que hace el panegírico de D. Juan de Austria.
Tratándose del héroe del poema, resulta anómalo este elogio en apéndice;
pero lo es menos si lo vemos en relación con las octavas de Aldana, que, tras
pintarle a Felipe II el paisaje desolador que se le avecina si no interviene en
África, le recomienda que ponga el ejército en manos de su hermanastro:
«Usa de Juan, tu valeroso hermano,/ nuevo de Jove producido Alcides». En
ese mismo mes de septiembre, el propio Aldana, tras su regreso de Lisboa,
entrega a Felipe II una versión ampliada de sus «Octavas», entre las cuales ha
añadido el elogio de D. Sebastián como el único aliado en quien debe confiar,
y también, como Corterreal, un apéndice de seis octavas en elogio de D. Juan
de Austria11. El interés de ambos poemas en redoblar redundantemente el
los franceses están en tratos con los turcos; si ambos enemigos de España pueden colaborar en
el frente atlántico, no sólo las costas españolas y portuguesas sufrirán su piratería conjunta, sino
que el camino de las Indias se habrá perdido, y las colonias se independizarán o caerán en manos
del enemigo. La debilidad peninsular se traducirá inevitablemente en otros desastres para el
imperio: Italia sacudirá el yugo español, y lo mismo hará Flandes, ayudado por la herética
Inglaterra. Para una interpretación del poema de Aldana (aunque allí le erré la fecha en un año)
véase mi «Aldana, sus reyes…». Corrijo la fecha y lo pongo en relación con Corterreal en
«Ánimo, valor y miedo», donde se hallarán otras referencias útiles.
11 No se ha conservado, o no se conoce, manuscrito de la segunda versión de las «Octavas», por lo
cual es dificil asegurar que llevaba el apéndice sobre D. Juan de Austria. Sin embargo es verosímil
que así fuera: en las distintas ediciones de las poesías completas de Aldana, ordenadas por su
hermano Cosme, estas seis octavas siguen siempre a las dedicadas a Felipe II, con las cuales
muestran gran parentesco de expresiones e imágenes.
Tampoco puede haber duda de que la versión aumentada de las «Octavas» es posterior a la
visita de Aldana a Lisboa, a la vista de expresiones y actitudes de los añadidos coincidentes con
cartas escritas por él desde la capital portuguesa: «Con solo el rey te basta lusitano,/ junto al cual
212 Paratexto
os juntó natura propria,/ aquel que enfrena y rige el oceano/ hasta el quemado mundo de
Etiopia:/ gran Sebastián, que sobre el curso humano/ nueva razón de méritos se apropia,/ nuevo
modo de ser, nuevo renombre,/ que excede al hombre como al tronco el hombre./ (¡Oh, si
pudiese ser a lo que excedes/ en merecer los límites mortales/ llegase, alma real, lo que acá
puedes,/ do el valor y el poder fuesen iguales…». (576-588)
12 El siempre victorioso D. Juan de Austria empezaba a resultar incómodo para Felipe II, y hasta
Se trata, pues, de una guerra que iba a rematar, por tierra y en Occidente,
lo que había comenzado por mar y en Oriente. Como en la secuencia
Corterreal-Aldana y como lo imaginaba D. Sebastián, para Perestrello, el
mismo poeta que unos años antes aconsejaba prudencia y buen gobierno,
Lepanto se convierte así en un ensayo o preliminar de la invasión de Marrue-
cos. Que este cambio en la actitud del poeta fuera resultado de las cambiantes
circunstancias político-estratégicas o de la intervención directa del partido
belicista que dominaba la corona, es algo que no podremos esclarecer aquí13.
La ebullición manuscrita sobre D. Sebastián se prolongará durante
medio siglo después de Alcazarquivir, primero ocupando en parte el silencio
impuesto sobre el tema por la unión ibérica y más tarde integrándose con el
mesianismo sebástico y con los deseos de independencia. Todo eso tiene que
quedar también fuera de este estudio. Baste ahora la constatación de que la
poesía manuscrita nos proporciona un punto de vista privilegiado para
tomarle el pulso a un asunto tan debatido como la jornada de África, comple-
tando el retrato de un pueblo en efervescencia de opiniones. Los manuscritos
de la década de 60 y 70 que luego fueron impresos contienen opiniones
moderadas, cuando no la visión oficial que une guerra, gloria e imperio,
mientras que el abundantísimo corpus que no vio la luz hasta siglos después,
o que sigue manuscrito, no se cansa de señalar los peligros de la expansión
imperial de un modo que nunca podría recibir licencias para la imprenta: por
la distracción que representa para el gobierno, el imperio es visto por muchos
13 La oscuridad casi total en torno a la biografía de Perestrello no facilita las cosas. Todo lo referente
a este poema, hasta ahora dado por perdido, estará más claro cuando próximamente Miguel
Martínez, que lo ha buscado y localizado, termine su edición crítica.
214 Paratexto
Aldana, Francisco de, Primera parte de las obras…, Milán: Pablo Gotardo
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Aldana, Francisco de, Poesías castellanas completas, ed. José Lara Garrido,
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Bernardes, Diogo, Varias rimas ao bom Jesus e a Virgem Gloriosa Sua May, e a
Sanctos Particulares. Com outras mais de honesta e proveitosa lição, Lisboa:
Simão Lopes, 1594
Bernardes, Diogo, O Lima, Lisboa: Simão Lopes, 1596
Bernardes, Diogo, Rimas varias. Flores do Lima, Lisboa: Estevão Lopes, 1597
Bouza Álvarez, Fernando, Comunicación, conocimiento y memoria en la España
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José Miguel Martínez Torrejón 215
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CMadrid: Cancionero de Madrid: Ms. Real Academia de la Historia (Madrid)
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Corterreal, Jerónimo de, Espantosa y felicíssima victoria concedida del cielo al
señor don Juan d’Austria, en el golfo de Lepanto, de la poderosa armada
othomana en el año de nuestra salvación de 1572, Biblioteca Nacional de
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Corterreal, Jerónimo de, Felicíssima victoria…, Lisboa: António Ribeiro, 1578
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Miranda, Francisco Sá de, Obras completas, ed. M. Rodrigues Lapa, Lisboa:
Sá da Costa, 1960
216 Paratexto
Todo aquél lector que se aventura en los universos pessoanos, acaba por
percibir el aroma de cierta atmósfera de nietzscheanismo en los pálpitos e
intuiciones vertebradoras de la prosa y la poesía pessoana. Y sin embargo la
primera sorpresa llega al saber que no hay libros del autor alemán en la
biblioteca personal pessoana y que sólo hay cierta seguridad en la presencia
de uno, posiblemente vendido, una edición española de Así hablaba
Zarathustra, entre las lecturas del autor.
La segunda sorpresa llega al no encontrar afirmaciones explícitas
de adhesión al vitalismo nietzscheano, y aún más allá, pocas referencias a
Nietzsche en sus escritos (pero muchas más de las que se piensa habitual-
mente: alrededor de una treintena), referencias casi siempre críticas y de una
particular y muy perenne hostilidad.
Sin embargo, la cuestión va más allá de estas constataciones primerizas,
aflorando una compleja y ambigua recepción, quizá enmascarada por la
ficción vital pessoana, quizá desvirtuada por un acceso parcial y crítico al
seno del pensamiento trágico nietzscheano.
Primero porque aunque sólo tenemos una fiable pista sobre la lectura
de una edición española de Así habló Zarathustra1, conocemos las lecturas
frecuentes en la Biblioteca Nacional, que en aquél momento ya contaba con
las principales obras del autor y además, porque existe en el espólio una
1 Posiblemente una traducción de Pedro González-Blanco (Cf. Pizarro, p. 96) [Así hablaba
Zaratustra: (un libro para todos y para nadie) / Federico Nietzsche; Valencia: F. Sempere y
Compañía], edición probablemente de inicios de siglo XX (si bien ya circulaban en la época
algunas otras traducciones al castellano –poco fiables– de traductor desconocido). Encontramos
Así hablaba Zatahustra en al menos tres listas de libros, siendo especialmente significativa y
curiosa la presente en una de ellas donde la autoría de Nietzsche no está clara ni tampoco el
nombre del profeta zarathustriano del nietzscheanismo:
[48B-62]
[93-100av]
[48-54]
2 No ha sido posible re-localizar en el espólio esta nota suelta.
Pablo Javier Pérez López 219
En el ámbito ibérico son primero las corrientes anarquistas las que
se apropian de la bandera del nietzscheanismo, de una aceptación de la liber-
tad individual, de la crítica del Estado y del cristianismo. Nietzsche en ese
momento histórico, momento de descrédito, de crisis de las instituciones
modernas es recibido como un profeta del hombre nuevo, y del mundo
nuevo (la invención de un hombre nuevo es el tema de la época, tema recur-
rente del socialismo, del liberalismo, de las corrientes anarquistas).
No es sino más tarde cuando se apropian del profetismo nietzscheano
las tendencias fascistas. Es por tanto preciso tener en cuenta que es en este
contexto de lucha irreconciliable y contradictoria de nuevas construcciones
sociales y filosóficas de finales del siglo XIX e inicios del siglo XX en que se
produce la recepción temprana del nietzscheanismo del joven Pessoa (quizá
en su época de máxima jovialidad filosófica recién llegado de África del sur).
Los símbolos y conceptos del nietzscheanismo acríticamente y sin un acceso
a su intuición profunda calan rápidamente, especialmente el concepto de
Super-hombre y de la muerte de Dios. Estas expresiones hacen fortuna, están
en el ambiente, en un ambiente necesitado de profetas, de sembradores de
mitos y de creencias que permitan edificar un mundo nuevo y un hombre
nuevo (recuérdese el hombre nuevo del socialismo).
El nietzscheanismo que está presente en aquél momento es simbólico,
mediado en gran parte por los deseos de cada corriente y de cada individuo
falto de libertad. Este Nietzsche, el Nietzsche que se respira en aquella época
tan próxima a su muerte aún contiene adherencias germanistas, interpreta-
ciones malintencionadas y ediciones muy poco fiables. El nietzscheanismo
está mezclado con decadentismo, con germanismo, con socialismo, en defi-
nitiva con los deseos y las necesidades de una época crítica y convulsa, plural
y deseosa de nuevos valores y de nuevos mitos y símbolos donde asentarlos.
La complejidad de la recepción va más allá aún. Parece claro que no se
produjo una lectura directa exhaustiva, sino, por el contrario, una falta de
contacto directo continuado, y además un acceso al nietzscheanismo a través
de bibliografía pasiva – hecho determinante a nuestro entender para com-
prender la imagen pessoana de Nietzsche.
Aún permanecen en la biblioteca personal pessoana dos libros que tienen
especial importancia para comprender la recepción pessoana: el primero, de
Jules de Gaultier, De Kant à Nietzsche (Paris, 1900 [1-52 BpFP]), ofrece una
imagen relativamente positiva de Nietzsche y en él está especialmente traba-
jado el capítulo dedicado al pensador alemán, pp. 251-333. Pessoa ve en
Gaultier un helenismo que se distancia del nietzscheano y que supone una
220 Paratexto
3 Véase el texto número 3 del índice de textos publicados al final de este trabajo.
4 Véase a este respecto [144X-98r] donde el libro de Benn figura en una lista de obras a leer para la
redacción de los Prolegomenos a uma reconstrucção do Paganismo. Obras de António Mora, p. 247.
5 «Na obra de A. Caeiro há mais uma philosophia do que uma arte. Reapparece n’ele a primitiva
7 En el texto número 22 del índice de textos publicados puede encontrarse una referencia explícita
al libro de «de Roberty».
8 Otros autores de tono nietzscheano a los que Pessoa tuvo acceso son John Cowper Powys, Stiner,
Barrès y G.B. Shaw – de este autor destaca especialmente «Man and Superman» (véase 121-79/
48B-103).
9 «No que posso chamar a minha terceira adolescência passada aqui em Lisboa, vivi na atmosfera
dos filósofos gregos e allemães, assim como na dos decadentes franceses, cuja acção me foi
subitamente varrida do espirito pela ginástica sueca e pela leitura da Dégénérescence, de Nordau»,
Correspondência, Assírio & Alvim, 1999, p. 274.
10 Véase el texto 2 del índice de textos publicados.
222 Paratexto
15 «Especialmente notavel é o facto de que, de homens de genio, /os mais loucos são exactamente
os que menos sociaes são/ (o que pode ser uma verdade de la Palisse, visto que o doido é asocial,
e tanto mais asocial quanto mais doido.) Cf. Nietzsche, Swift, q». Véase el texto 16 del índice de
textos publicados.
16 «Os mais degenerados – pelo menos intellectualmente – são os que pensam sob a fórma poética,
mas não são poetas. E.g. Carlyle, Nietzsche». Véase el texto 19 del índice de textos publicados.
Pablo Javier Pérez López 223
la proximidad de la genialidad y la locura, que es materialización flagrante de
esta relación tormentosa17. Un maestro con innumerables alumnos que no
saben qué innovación aporta el nietzscheanismo y que encuentran en ellos
mismos lo que tienen de nietzscheanos al no poder comprender la obra del
maestro:
São inúmeros, em todo o mundo, os discípulos de Nietzsche,
havendo alguns delles que leram a obra do mestre.
A maioria acceita de Nietzsche o que está apenas nelles, o que, de
resto, acontece com todos os discípulos de todos os philosophos. A
minoria não compreendeu Nietzsche, e são esses poucos que
seguem fielmente a doutrina delle.18
En resumidas cuentas: un escritor enfermo cuya mejor manera de com-
prender es prohibir su lectura, cuya no lectura es una ventaja. Sólo se puede,
en definitiva, ser nietzscheano, cumpliendo la condición de no haber leído a
Nietzsche (ver texto 9 del anexo).
Esta imagen pessoana de Nietzsche del que se ofrecen muy pocas afirma-
ciones no negativas – se le concede que la problemática que trata es el origen
de los valores19, se afirma irónicamente que su gran y única afirmación
grande, es que la alegría es más profunda que el dolor, y se rechaza su afirma-
ción de que la alegría quiere eternidad, profunda eternidad20 – es la misma
imagen que ofrece Nordau en el capítulo dedicado a Nietzsche en Entartung.
Tan sólo se le concede en tono positivo la labor de repaganización del mundo
dentro del espíritu pagano alemán (ver texto 7 del anexo).
Nordau identifica las figuras de Ibsen y Nietzsche, el primero egoísta
poeta, el segundo egoísta filósofo, ambos divinizadotes de la barbarie: «De
20 Es también sintomático que las dos únicas referencias literales a textos nietzscheanos sean de Así
habló Zarathustra y ambas de la canción del noctámbulo, en la parte final de la obra, muy próximas
entre sí. Es necesario advertir además, como ya hizo Steffen Dix, que la traducción del alemán
Lust por alegría es errónea: «Doch alle Lust will Ewigkeit, will tiefe, tiefe Ewigkeit!». Una
traducción más adecuada sería placer, deseo, voluntad, hambre, ansia… Es curioso, y sintomá-
tico del hipotético nietzscheanismo involuntario e insospechado, que Pessoa, cuando trata del
placer en el texto sobre António Botto y el ideal estético en Portugal – donde ofrece buena parte de
sus claves de cómo concibe el ideal helénico – reniegue de esta afirmación nietzscheana,
afirmando que no es la alegría sino el placer el que quiere eternidad, la eternidad en un solo
momento (ver texto 14 del índice de textos publicados).
224 Paratexto
nuestra.
Pablo Javier Pérez López 227
Se ha hablado de corrección creativa (cf. Steffen Dix, p. 142), de una
apropiación mimética (cf. Lourenço, pp. 249 y 252), y se nos ha advertido
del mismo modo de que Pessoa polemiza más apasionadamente con los
autores con los que está en deuda (cf. G. R. Lind, p. 285) manteniendo una
distancia crítica, y en cierta medida también hay huellas para emprender
ese camino, el de una asimilación enmascarada: piénsese incluso en la
azarosa coincidencia del natalicio de Álvaro de Campos y Nietzsche (15 de
Octubre de 1890), e incluso también en los trazos biográficos nietzscheanos
de António Mora, su presencia en un manicomio, su aspecto helénico…
Puede leerse The death of God de Ch. Robert Anon, conjunto de poemas
para los que incluso llegó a escribir un prólogo (ver 55-94 y 144N-20), acudir
al soneto vigésimo y leer «circle of rebirth» – que se ha interpretado en
sintonía con el eterno retorno nietzscheano (cf. G. R. Lind p. 285), incluso
leer la expresión «human, too human» en un escrito filosófico (ver Textos
filosóficos, vol I, pp. 216-217/ cf. Mattia Riccardi, p. 111) o encontrar dos listas
de libros25, probablemente con intención editorial, donde aparece el autor
alemán, e incluso encontrar una expresión muy nietzscheana, «além do bem
e do mal», en las líneas, que parecen la idea generadora, del recientemente
hallado poema inédito de Caeiro (ver texto 10 del anexo), un giro presente
también en al menos otra ocasión (ver texto 5 del anexo), pero sigue siendo
un bello riesgo pensar en el nietzscheanismo involuntario pessoano.
Esta idea, quizá una intuición, además, concuerda bien con las expresio-
nes pessoanas que se refieren a la no lectura nietzscheana como la mejor
manera de comprender al autor del Zarathustra. Pessoa mismo que escribió
25 [48B-103]
las ventajas de no leer a Nietzsche (ver texto 9 del anexo), que seguramente
tuvo a gala literaria no hacerlo después de «constatar las contradicciones entre
los que lo han leído» – piénsese por ejemplo en el Nietzsche de Lichtenberger
o Gaultier frente al Nietzsche de Nordau o Fouilée –, quedó encerrado por el
destino justiciero, aquél que con jactancia encerró a Nietzsche en un mani-
comio («Que acre ironia a do Destino justo que fechou num manicomio a
Nietzsche, ao ignobil defensor do aristocratismo da plebe»26), en la condi-
ción de posibilidad que para ser nietzscheano propuso con la habitual sorna
– y no por ello falta de seriedad – de sus afirmaciones: «On n’est nietzschéen
qu’à condition de ne pas avoir lu Nietzsche» (ver texto 9 del anexo).
Es probable por tanto, y es un bello riesgo creerlo que el nietzschea-
nismo pessoano nazca involuntario a lo que él entendió por nietzscheanismo.
No decimos aquí que Pessoa no leyera nunca directamente a Nietzsche sino
que probablemente no lo hizo con la distancia y la atención necesaria debido
fundamentalmente a la imagen desvirtuada que encontró de él en Nordau –
parece ocurrir algo similar con autores como Wilde o Paters. Si Pessoa,
salvando estas circunstancias, entre ellas la proximidad histórica, hubiera
llegado a palpar las intuciones del nietzscheanismo, hubiera, sin duda, llenado
de reflexiones sobre Nietzsche, al menos, varias decenas de cuartillas.
[48B-62]
luz de los textos y de la fidelidad ficcional del lector que quiere creer sin
interpretar, preferimos creer en el anti-nietzscheanismo literario pessoano y
ver en él un nietzscheano involuntario, insospechado, que paradógicamente
se reclama anti-nietzscheano. ¿Qué acto más poético y más literario, para
corresponder, puede haber que dejarnos engañar lúcidamente, qué acto más
pessoano-nietzscheano puede haber que hacer de la vida literatura, que creer
la verdad de esta mentira? (una verdad que quizá sea la propia tensión interna
entre las venas apolíneas y dinonisiacas del alma pessoana).
Y para hacerlo todo más paradógico aún: ¿No será verdadero a la par
el nietzscheanismo y el antinietzscheanismo pessoano? Expresión de una
tensión entre el que sufrió por amor a la verdad y el que se abandonó al
misticismo, entre el poeta caeiraniano, pagano y el filósofo aún de inspiración
romántica y simbolista.
Esta tesis, la de creer en la mentira de la verdad y en la verdad de la
mentira del antinietzscheanismo pessoano, supone además un acto de refle-
xión en el marco de la hermeneútica literaria que se empecina, en muchas
ocasiones, en querer comprender sin entrar en el juego literario y en sus
sugerencias ficcionales28.
En resumidas cuentas, antes de establecer una comparación reflexiva o
filosófica entre nuestros dos autores, que es inevitable y enriquecedora sin
duda, parece necesaria una lectura sistemática de las referencias explícitas
que de Nietzsche hay en Pessoa. Una lectura conjunta de las ya conocidas y
las aquí aportadas nos permite palpar la complejidad de la recepción
pessoana, una complejidad, una ambiguedad probablemente fundamentada
en la deformación nietzscheana de los autores secundarios, especialmente la
de Max Nordau.
Sabiendo esto, y frente al alegre nietzscheanismo que suele atribuirse a
Pessoa, lo que necesitamos afirmar es un nietzscheanismo involuntario en
nuestro autor. Pessoa es, a nuestro entender, nietzscheano sin saberlo y
sin quererlo, un nietzscheano involuntario en el que Apolo y Dioniso pugnan
y casi siempre explícitamente vence Apolo. A veces vence la mesura de la
razón (e incluso la moral cristiana: véase texto 3 del anexo) y en otras ocasio-
nes los pálpitos nietzscheanos afloran. En definitiva, antes de hablar del
nietzscehanismo pessoano conviene constatar sus peculiaridades y raíces,
28 ¿Querrá decir esto que sólo se puede hacer literatura de la literatura pessoana?
Pablo Javier Pérez López 231
haciendo presente que Pessoa no accedió a lo que nosotros hoy entendemos
por nietzscheanismo y que el nietzscheanismo que en él afloró fue tan implí-
cito como insospechado para alegría de las propias y paradógicas profecías
pessoanas: On n’est nietzschéen qu’à condition de ne pas avoir lu Nietzsche.
Obras citadas
Dix, Steffen, «Pessoa e Nietzsche: deuses gregos, pluralidade moderna e
pensamento europeu no princípio do século XX», Clio 11, Revista do
Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004, pp. 139-174
Lind, Georg Rudolf, «Nietzsche in Pessoa», Encontro Internacional do Cente-
nário de Fernando Pessoa, Lisboa: Secretaria de Estado da Cultura, 1990,
pp. 283-286
Lourenço, Eduardo, «Nietzsche e Pessoa», Nietzsche: Cem anos após o projecto
“Vontade de poder. Transformação de todos os valores”, António
Marques (ed.), Lisboa: Vega, 1989 (or. 1986)
Pizarro, Jerónimo, «A representação da Alemanha na obra de Fernando
Pessoa», Românica, Revista de Literatura, Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Lisboa, nº15, 2006, pp. 95-108
Riccardi, Mattia, «Dionysus or Apollo? The heteronym Antonio Mora as
moment of Nietzsche’s reception by Pessoa», Portuguese Studies 23,
Spring, 2007
Pablo Javier Pérez López 233
Anexo
i Este texto mecanografiado está numerado en su parte superior derecha con un 6, se encuentra
aislado en el espólio y no ha sido posible localizar las páginas anteriores o posteriores del conjunto.
234 Paratexto
Identicos na materia, estes dois ideaes são contudo, não só differentes, mas
oppostos, na fórma: são, repetindo a imagem, como os aspectos oppostos, o concavo
e o convexo, da mesma superficie curva. Para o dyonisiaco a vida é estreita; para o
christão a vida é vil. Para um é uma <carcere, para o outro uma estalagem suja>
Pablo Javier Pérez López 235
2 [152-69]ii [texto mecanografiado]s/d
Rationalism
Rationalism. Theoretic Rationalism. Practical Rationalism.
Sociology is simply a baser metaphysics. It is so far metaphysics that it seems to be a
substitute for it, metaphysical and sociological speculation being generally in the
inverse quantity at the same time.
It is easy to defend law and order as necessary to civilization. But Athens was never
orderly and the Italian Republics of the Middle Age and of the Renascence had
very little order and very little law; yet if the creation of art and culture which
distinguished them be not civilization or one of its distinctive characteristics, then
civilization is its own opposite. It is easy to contend that a unified nation is essential
to its own life; yet Greece, which created the mind of the civilized word, was never the
whole of itself, and Italy was best scattered than united, in so far as results to
mankind in general are a valid test. It is easy to defend any sociological theory. As in
everything, except the bare useless facts, the theory is worth what the theorist is
worth, and all is made up, in the ultimate, of aspects of untruth.
The legal profession is an immoral and absurd one, but we are all counsel of our
beliefs, and the better sophist wins –fortunately only temporarily– the futile case he
has put himself into.
Some, like Kant, make their philosophies out of them selves. Others, like Nietzsche,
make their philosophies out of the negation of themselves. The placid man is placid
in his philosophy. The sick man is the philosopher of strength.
Slavery is perfectly defensible. We cannot defend it because Christian morality
excludes slavery, and Christian morality is one of the bases of our civilization. The
death penalty can be defended, but it will not pass the emotional test. The inquisition
can be defended, and it has been defended. But it will not pass the cultural test –it is
rebutted, not by any valid argument which cannot be emptied of force, but by the
rationalistic individualism which the Greeks have given us for the soul of our mind.
ii Este texto transcrito y el siguiente pertenecen a un conjunto de textos que llevan por título
Rationalism, posiblemente páginas para un ensayo de tipo filosófico.
236 Paratexto
iii Al final de este texto mecanografiado existe un párrafo amplio manuscrito que presenta
dificultades para su lectura, lo omito en la transcripción pero remito al original para una lectura
interpretativa del mismo.
Pablo Javier Pérez López 237
4 [153-76] [texto mixto] s/d
Tudo a crear… Que philosophos hoje? Bergson? Hospital para religiosos incuraveis.
O perspectivismo – um fragmento cahido d’uma certeza falsa. Leonardo Coimbra?
um archanjo cahido com pesadellos de Céo. O resto é o ter muito problema.
Philosophia a crear – toda philosophia.
Antonio Patricio? Nietzsche de ferro esmaltado. Guedes Teixeira? Amor com fifias.
Pintores, esculptores? Não são precisos. A arte não tem nada com a pintura e a
esculptura. <Só com architectura, logo que os edificios sejam irrealisaveis.>
238 Paratexto
Ne regardez pas vos théories, regardez l’homme. Tout ce qui est peuple est fait
de choses insignifiantes. C’est la rage populaire qui fait tuer vos fils? Non ce qui le tue
c’est le soufflet que le patron a donné il y a trois ans, a celui qui le tue. Qui jette vos
meubles par la fenêtre? La femme pauvre qui demeure en face de ce palais par les
fenetres duquel elle voit et convoitise les pianos. Dans le sentiment grégaire, la rage
concrète devient abstraite, mais elle a été concrète un jour.
L’homme est un animal amusant, mais cet un vil animal. Ne faites pas de
psychologie du XVIIIe sièecle.
O erro de Nietzsche foi não ter reparado que os diversos valores provem de diversos
factores sociaes.
vi El presente texto corresponde a la transcripción hecha por Jerónimo Pizarro del poema inédito
de Alberto Caeiro de reciente hallazgo durante la labor de digitalización de la biblioteca personal
pessoana.
Recensões
João Almeida Flor 247
White, Landeg, The Collected Lyric Poems of Luís de Camões. Princeton University
Press, 2008
Pedro Eiras (coord.), Jovens ensaístas lêem jovens poetas, Porto, Deriva, 2008
sujeito, é realçada pela fotografia, que usada por Andréia Azevedo Soares para
funciona como o resto, a ruína que mostrar como, nos poemas de Jorge
contribui para a formação identitária. A Reis-Sá, José Luís Peixoto e Rui Pires
relação com o cinema é analisada por Cabral, a poesia se mostra como a im-
Helena Lopes, a propósito da obra de possibilidade (mas ainda a única hipó-
José Mário Silva e José Rui Teixeira, tese) do encontro com o universal. Por
destacando ser este um meio que, como fim, Daniel Jonas, no ensaio que fecha o
a fotografia, torna o tempo palpável livro, parte da reflexão sobre o que é
(p. 117) e permite a produção de um uma geração, acabando por concluir
“efeito de real” (p. 110), visado pela actual que tal não passará “de uma coinci-
poesia portuguesa. dência cronológica, em que a eventual
A secção final do livro traça uma comunhão nos topoi não passa de uma
panorâmica sobre esta poesia, em que proximidade topográfica acidfental”
José Ricardo Nunes, Andréia Azevedo (p. 175).
Soares e Daniel Jonas identificam as Assim, se a generalidade dos ensaios
linhas caracterizadoras dos poetas da inseridos no volume permite identificar
geração de 90, isto é, os autores nascidos as linhas mestras da poesia portuguesa
entre 1965-75 e que começaram a contemporânea mais recente, o ensaio
publicar na referida década de 90. José final de Daniel Jonas parece uma
Ricardo Nunes, analisando uma série de demonstração das mesmas: se o frag-
poetas desta geração, refere que o traço mentário é o que compõe o quotidiano e
que caracteriza tais poetas é a referência essa poesia, a defesa da singularidade de
à realidade, ainda que ficcionada, reme- cada poema, não sendo possíveis leitu-
tendo para o mundo quotidiano. A lite- ras geracionais, exprime exactamente
ratura pretende ser o reflexo da vida, essa realidade. Ou seja, como Pedro
ultrapassando-se a dicotomia pessoana Eiras refere, no texto introdutório, “a
em que se encontram absolutamente leitura da poesia tem de ser inventada,
separadas. Assim, os sentimentos de de raiz, de cada vez que se abre um
perda que caracterizam o sujeito moder- livro” (p. 17), e é essa a grande lição da
no são visíveis e expressos na poesia. A crítica e da poesia portuguesa da
figura do pai, como espaço da infância e geração de 90.
do absoluto a que se quer aceder, é
Ariadne Nunes