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Contos de Terror - Pactos Demoníacos - E. T. A. Hoffmann
Contos de Terror - Pactos Demoníacos - E. T. A. Hoffmann
Sobre a obra:
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E. T. A. HOFFMANN, MARQUÊS DE SADE,
HEINRICH ZSCHOKKE, JUAN MANUEL DE
CASTELA
.
AVENTURA INCOMPREENSSÍVEL
Atestada por toda Uma Província
(Marquês de Sade)
No ano de 1551,
passeava pelas ruas de
Berlim, ao entardecer e
durante a noite, um
homem de bom aspecto
e nobre fisionomia, com
um belo gibão de pele
de marta zibelina,
calções muito largos e
sapatos abertos, a
cabeça coberta por um
grande gorro de veludo com uma pena vermelha. Suas
maneiras eram refinadas e amáveis. Saudava a todos
com cortesia, especialmente as senhoras e senhoritas, às
quais se dirigia amavelmente com discursos lisonjeiros:
— Senhora — dizia às nobres senhoras —, dai vossa
ordem a vosso humilde servo e a ele confiai os vossos
desejos. Ele estará, prontamente, a vosso serviço.
Depois, dirigindo-se às jovens, dizia:
— Que os céus vos deem um marido digno de vossa
beleza e virtudes!
Com igual benevolência tratava os homens e, por
isso não era estranhável que aquele estrangeiro fosse
muito querido por todos. As pessoas acorriam em sua
ajuda quando ele se encontrava detido por alguns
córregos nas ruas da cidade e não sabia como
atravessar, pois, conquanto fosse alto e de bom físico,
mancava de uma perna, razão pela qual servia-se de
uma bengala. Mas se alguém lhe dava a mão, de um
salto lançava-se a dez pés de altura, vindo a parar
algumas vezes a doze passos adiante.
Isto causava admiração a não pouca gente, e mais
de uma pessoa quebrou a perna ao ajudá-lo, mas o
estrangeiro se desculpava dizendo que, no passado,
quando não era coxo, fora o primeiro bailarino do rei da
Hungria e, agora, bastava que alguém muito
ligeiramente o ajudasse a saltar para que dele se
apoderasse um desejo de dançar e, muito contra a sua
vontade, se via forçado a dar saltos no ar. As pessoas se
contentavam com tal explicação, e até se divertiam
quando tinham a oportunidade de ver um juiz, um clérigo
ou qualquer outra honorável pessoa a saltar com o
estrangeiro.
Todavia, embora parecesse tão divertido e de tão
bom humor, a conduta do estrangeiro às vezes mudava
radicalmente, pois sucedia que, algumas vezes, à noite,
ele percorria as ruas batendo às portas. A pessoa que
abria ficava surpresa de terror ao vê-lo com branca
indumentária de defunto, lançando soluços e gemidos
lastimosos. Mas, no dia seguinte, cuidava de desculpar-
se, assegurando que era necessário proceder daquela
maneira para levar os burgueses a recordarem-se de que
somos todos carne mortal e nossa alma é imortal, razão
pela qual deveríamos estar sempre precavidos. Ao dizer
isto, costumava chorar, o que comovia profundamente os
seus ouvintes.
Acorria também a todos os enterros, seguindo o
defunto com muita reverência. Dava mostras de tanta
aflição que seus gemidos e soluços o impediam de tomar
parte nos cânticos religiosos. Não obstante o pesar e a
aflição que demonstrava em tais ocasiões, as suas
manifestações de alegria e contentamento eram
notáveis, sobremodo por ocasião das bodas dos
citadinos, que aconteciam no prédio da prefeitura. Ali,
cantava continuamente com voz bem impostada, tocava
cítara e dançava horas inteiras com a noiva e outras
jovens, apoiando-se em sua perna sã e dissimulando a
enferma, e sempre dando mostras da maior normalidade
corporal. Porém, o que mais agradava aos recém-casados
eram os ricos presentes que o estrangeiro costumava
ofertar, como correntes e braceletes de ouro e outros
objetos valiosos.
Logo ficaram conhecidas em Berlim a virtude, a
generosidade e os méritos deste personagem, e sua
fama logo chegou aos ouvidos do grande eleitor, o qual
considerou que um homem tão valioso como ele deveria
adornar a sua corte, pelo que enviou um mensageiro
para perguntar-lhe se anuiria a uma proposta de
emprego. O estrangeiro respondeu, por escrito, em
pergaminho de aproximadamente um côvado de altura e
outros tantos de comprimento, com caracteres
vermelhos, agradecendo humildemente a honra, mas
rogando que se lhe concedesse o favor de desfrutar a
sua pacífica vida de cidadão comum. Havia escolhido
morar em Berlim, levando uma vida mais aprazível do
que em outras cidades, porque em canto algum
encontrara homens tão amáveis, tão finos e educados, e
com tanta inclinação à vida animada, e tudo isto estava
em perfeita harmonia com os seus gostos. O eleitor e
seus cortesãos admiraram o elegante e formoso linguajar
do estrangeiro e se deram por satisfeitos.
Aconteceu que, por aquele tempo, a esposa do
conselheiro Walther Lütkens ficou grávida pela primeira
vez. A velha parteira, Bárbara Roloffim, profetizou que a
bela e saudável senhora daria à luz um lindo garoto, o
que encheu de alegria e esperança o conselheiro. O
estrangeiro, que comparecera à cerimônia de casamento
de Lütkens, visitava-o de vez em quando. Certo dia, ao
entardecer, quando entrou inesperadamente, deu de
cara com Barbara Roloffin.
Assim que o viu, Barbara soltou um sonoro e
prolongado grito de alegria e teve-se a impressão de que
suas rugas desapareciam, sua face retomava as cores e
seus lábios lívidos recobravam a juventude e a beleza
que a haviam abandonado há muito tempo.
— Ah, senhor! Mas sois vós quem estou mesmo a
ver? Sede bem-vindo. Eu vos saúdo reverentemente! —
exclamou Barbara Roloffin, ao tempo em que caía a seus
pés.
O cavaleiro respondeu com uma entonação
aborrecida, lançando chispas pelos olhos. Mas ninguém
entendeu o que ele disse a velha, salvo ela mesma que,
voltando a empalidecer e enrugar-se, foi esconder-se
num cantinho qualquer.
—Caro senhor Lütkens — disse em seguida o
estrangeiro ao conselheiro —, cuidai de que não suceda
em vossa casa alguma desgraça e que o parto de sua
esposa ocorra sem incidentes. A velha Bárbara não é tão
hábil como pensais. Eu a conheço há muito tempo e sei
que ela mais de uma vez descurou-se da parturiente e da
criancinha.
Este estranho acontecimento afetou profundamente
o senhor Lüktens e sua esposa, que suspeitaram de
Barbara Roloffin assim que a viram tão transformada na
presença do estrangeiro e chegaram mesmo a desconfiar
que a velha senhora praticasse magia negra. Por isto,
proibiram-na de pisar no umbral da casa e procuraram
outra parteira. Esta atitude encolerizou sobremodo a
velha Barbara Roloffin. A velha mulher afirmou que o
senhor Lütkens e sua esposa se arrependeriam
amargamente da injustiça que lhe haviam feito.
Pouco tempo depois, o senhor Lütkens viu
destruídas as suas esperanças, que se converteram em
profundo pesar, quando a sua esposa deu à luz não ao
garoto que Barbara Roloffin havia anunciado, mas a um
horrível monstro com a pele escura, dois chifres, imensos
olhos esbugalhados, nariz pequeno, boca enorme, língua
esbranquiçada e pescoço curtíssimo. A cabeça ficava
plantada entre os ombros, o corpo era inchado e rugoso,
os braços pendurados nos flancos e as pernas longas e
finas.
O senhor Lütkens gemia e se lamentava:
— Ó céus! — dizia. — O que vamos fazer agora?
Poderá esta criança seguir os dignos passos de seu pai?
Alguém já viu um conselheiro com pele escura e chifres
na cabeça?
O estrangeiro consolava o pobre senhor Lütkens o
melhor que podia:
— Uma boa educação — dizia — pode fazer muito.
Apesar da forma e fisionomia do recém-nascido,
que se poderiam considerar heterodoxas, assegurava o
estrangeiro que os grandes olhos da criança miravam
com grande inteligência e que em sua testa, entre os
chifres, havia espaço para albergar uma boa dose de
sabedoria. Se a criança não podia chegar a ser
conselheiro, chegaria a ser um grande sábio, a quem a
fealdade não afetaria: ao contrário, faria-o mais
estimado.
Era muito natural que, em seu imo, o senhor
Lütkens atribuísse sua desgraça à velha Barbara Roloffin,
sobretudo quando se inteirou que, durante o parto de sua
esposa, a anciã estivera sentada no umbral da casa.
Ademais, a senhora Lütkens lhe assegurava, chorando,
que, durante as dores, sempre tivera presente o odioso
rosto de Barbara Roloffin, sem poder livrar-se desta
visão. Pouco fundamento tinham as suspeitas do senhor
Lütkens para motivar uma acusação. Mas quis o céu
que, pouco tempo depois, todos os crimes da velha
mulher fossem descobertos.
Aconteceu que, passados alguns dias, por volta do
meio-dia, desencadeou-se uma tormenta, acompanhada
de um vento tempestuoso. As pessoas que transitavam
pelas ruas viram como Barbara Roloffin, que acudia a um
parto, era levada pelo ar, passando por cima de tetos e
campanários, sendo depois achada indene em uma
pradaria das imediações de Berlim.
Desde então, não mais se duvidou das artes
maléficas da velha Bárbara Roloffin. O senhor Lütkens
apresentou a sua denúncia e a velha foi encarcerada.
A princípio, ela negou obstinadamente tudo. Mas,
submetida à tortura, e não podendo resistir às dores,
confessou que há muito pactuava com Satanás e
praticava bruxaria. Também disse que havia enfeitiçado a
mulher de Lütkens e substituído por um monstro horrível
a criancinha que ela trazia no ventre. Confessou que, em
outra ocasião, com outras bruxas de Blumberg, cujos
pescoços o Galã Diabólico torcera há pouco tempo,
matara e fervera várias crianças cristãs para provocar a
carestia no país. A sentença que os juízes pronunciaram
contra ela, e que não se fez esperar, foi a de ser
queimada viva na praça do Mercado Novo.
Quando chegou o dia da execução, conduziram a
velha Barbara, em meio a uma grande multidão, à praça
e a fizeram subir ao cadafalso, onde já estava preparada
a fogueira. Ordenaram-lhe que tirasse as belas peles que
vestia, mas ela se recusou. E tal foi a sua obstinação que
os executores se viram obrigados a amarrá-la ao poste
vestida como estava.
O fogo já se alastrara pelos quatro cantos da
fogueira quando viram o estrangeiro que, como um
gigante por cima de toda aquela multidão, lançava para
a velha senhora olhares fulgurantes.
Densas nuvens de fumaça já se erguiam e as
labaredas já começavam a lamber o vestido da mulher
quando esta, com voz estridente e terrível, gritou:
— Satanás! Satanás! Cumpre o pacto que
firmamos. Socorre-me, Satanás, socorre-me! Minha hora
ainda não chegou!
De repente, o estrangeiro desapareceu e, do lugar
que ocupava, saiu um enorme e negro morcego que, com
grande ruído, se lançou entre as chamas e, em seguida,
ascendeu no ar agarrando o vestido de peles da velha,
enquanto a fogueira, desmoronando ruidosamente, se
apagava.
As pessoas estavam dominadas pelo espanto e pelo
terror. Todos estavam bem conscientes, agora, de que o
magnífico estrangeiro não era outro senão o diabo em
pessoa, que exercia suas artes malignas contra as boas
almas de Berlim, enquanto, por um longo tempo,
portava-se com grande benevolência e piedade,
chegando mesmo ao extremo de enganar até mesmo o
conselheiro Lütkens com suas manhas infernais e,
ademais, outros homens sábios e senhoras inteligentes.
Tão grande é o poder do demônio que só a graça
divina pode nos proteger de suas malignas armadilhas.
CRÉDITOS
CONTOS DE TERROR: PACTOS
DEMONÍACOS.
Ernst Theodor Amadeus Wilhelm
Hoffmann (1776 — 1822), Heinrich
Zschokke (1771 — 1848), Donatien
Alphonse François de Sade - Marquês de
Sade (1740 — 1814), Juan Manuel de
Castela (1282 — 1348).
Textos originais de domínio público.
Série Clássicos do Horror nº 10.
Imagem da capa: Dois Sátiros, de Peter
Paul Rubens (1577 — 1640), 1619.
Imagens do miolo: Hendrik Goltzius
(1588 — 1617), Dirck Bouts (c. 1415 —1475), Harry Clarke (1889 — 1931),
iluminura de autor francês desconhecido (séc. XV), Edward Frederick
Brewtnall (1846 — 1902), Willem Isaacsz van Swanenburg (1580 — 1612).
Tradução dos contos Aventura Incompreensível e O Amigo do Demônio:
Paulo Soriano.
Tradução do conto O Abade Ducanus: Paulo Soriano, a partir da tradução
para o espanhol de Eugenio de Ochoa (1815 — 1872).
Versão em português de O Demônio em Berlim: Paulo Soriano.
© das traduções e versão em português: Paulo Soriano, 2016.
Edições TRIUMVIRATUS, MMXVI.
edicoestriumviratus@gmail.com
http://triumviratus.weebly.com
O objetivo das Edições Triumviratus é levar ao leitor de língua portuguesa obras de clássicos da
literatura, sobretudo fantástica, escritas por grandes mestres da Literatura Universal. Muitos de
nossos livros eletrônicos contêm obras raras de grandes autores. As traduções são originais e
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