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APRESENTAÇÃO 17
IDENTIDADE E CULTURA
EM TEMPOS DE MUDANÇA
A longa História de Portugal deixou pelo mundo um património de elevado valor e, dentro do seu
território preservado no último século a devastações como nenhum outro país europeu, subsistem marcas
de cultura tradicional que deverão ser aproveitadas como factor de identificação e desenvolvimento.
A construção da moderna identidade cultural portuguesa é o resultado de cruzamentos profundamente
dispares: sobre um estrato herdado na sua maioria dos Romanos e Árabes (sem esquecer Fenícios, Celtas
e outros) ganham forma os traços culturais portugueses. Até aos anos 50/60 do século passado, Portugal era
um país fechado; em parte mais por via do regime político de então, e do entendimento que esse mesmo
regime fazia da cultura portuguesa, do que pelo afastamento geográfico. Depois de 1974, a chegada
de portugueses e africanos das ex-colónias e o regresso de muitos emigrantes, viria a ser engrossada pelas
primeiras levas de imigrantes do Leste: Portugal torna-se permeável a traços de culturas diferentes que
lhe conferem, hoje, um lado verdadeiramente genuíno do ponto de vista cultural e duplamente interessante
pela diversidade e multiplicidade, dada a reduzida dimensão do País.
Nas décadas de 40/50 do século passado o território conti- Na leitura de Boaventura Sousa Santos (1994), o ensaio de
nental foi percorrido por equipas de especialistas em várias Jorge Dias é classificado como um dos textos mais representa-
áreas do conhecimento, com o objectivo de conhecer os usos tivos dos discursos míticos sobre Portugal, que, à força de tan-
e práticas dos portugueses. As pesquisas conduzidas por to ser repetido, se torna evidente e verdadeiro. Mas não obs-
Orlando Ribeiro (Geografia), Jorge Dias (Etnografia), Lin- tante esta crítica, as suas reflexões sobre as contradições de um
dley Cintra (Linguística) e Keil do Amaral (Arquitectura) Portugal que foi simultaneamente centro de um grande impé-
confirmaram a riqueza e a diversidade de um Portugal plural. rio colonial que não conseguiu gerir convenientemente, e a
Jorge Dias apresenta, em 1950, o ensaio Os Elementos Fun- periferia de uma Europa que se vai desenvolvendo sem quase
damentais da Cultura Portuguesa no qual faz depender a defini- o incluir, não deixam de ir ao encontro da dupla representação
ção de uma personalidade-base da Nação de uma herança do carácter do homem português e da plasticidade, ambigui-
cultural, fatalmente afectada pela diversidade cultural ineren- dade e indefinição de que falava Jorge Dias. Neste sentido, a
te às várias regiões espaciais que a compõem, bem como pelos concepção de cultura de fronteira que Sousa Santos aplica à cul-
diferentes estratos sociais da sua população, inevitavelmente tura portuguesa para a caracterizar, não deixa de corresponder
influenciada pelo exterior e naturalmente transformada no à capacidade de adaptação reconhecida por Jorge Dias.
decorrer da sua própria evolução. Nesta cultura de fronteira cabem igualmente as regiões autó-
Apesar do reconhecimento de tão ‘arriscada e difícil’ tare- nomas da Madeira e dos Açores que, pelas suas características
fa, Jorge Dias assentou a cultura portuguesa em bases estru- geográficas e históricas, não só reclamam uma autonomia
turais geográficas e históricas: se por um lado os lusitanos político-administrativa como também cultural, visto a sua
resultam de uma variada fusão étnica entre povos do Norte e heterogeneidade populacional – devida à diversidade de colo-
do Sul, compondo à sua maneira a herança de traços de per- nizadores idos de Portugal e de alguns países da Europa do
sonalidade obtidos de uns e outros, por outro lado, foi a situa- Noroeste – funcionar como uma identidade homogénea face
ção geográfica de Portugal que contribuiu indiscutivelmente às culturas do continente. Por contraste, os ilhéus dos Açores
para o carácter expansivo da cultura portuguesa. e Madeira são uns portugueses diferentes. Importará aqui des-
Com mais de meio século passado sobre esta caracteriza- tacar tanto o aspecto cosmopolita de algumas destas ilhas
ção, tanto se pode questionar a actualidade deste retrato como devido à emigração e aos habitantes e visitantes estrangeiros,
a aparente inércia do nosso carácter, num tempo repleto de como o grande isolamento a que outras estão votadas pela sua
grandes e rápidas mudanças. pequena dimensão e posição geográfica.
Nas palavras de Vitorino Nemésio, citado por João Leal alheios à ampla e rápida difusão de referências culturais divulgadas
(2000), os Açores surgem como “um corpo autónomo de terras essencialmente pelos meios de comunicação social, que nos envol-
portuguesas”, “um Portugal requintado” porque recebeu dele vem em culturas de consumo tipicamente urbanas e que nos aju-
toda a glória e prosperidade da época quatrocentista e assim dam a definir e a compor novos estilos de vida cosmopolitas. Mas
permaneceu; daí a reflexão sobre a “açorianidade” se fixar no importará não esquecer que a cultura portuguesa não começa – e
português de Quatrocentos, valorizando também as especifici- tão pouco se esgota – nas novas imagens e símbolos de moderni-
dades culturais devidas à realidade geográfica das ilhas. dade que têm vindo a transformar as principais cidades do País.
Para além destas, permanecem territórios mais esquecidos e com
ritmos diferentes de mudança que, contribuindo de igual forma
Fronteiras de um Portugal cultural para a complexa caracterização de uma identidade nacional, conti-
nuam a viver em muitos casos, na total ausência de uma produção
Num tempo que está para além da modernidade e em glo- cultural que não seja o seu próprio quotidiano, sequiosos de infor-
balização cada vez mais intensa, verifica-se que com alguma fre- mação e entretenimento que não se esgote nos vulgares aparelhos
quência se continua a recorrer à forma paradoxal de ser e agir de televisão e rádio que possuem, quando é esse o caso.
dos portugueses – entendidos enquanto grupo cultural homo-
géneo – para justificar bons e maus resultados que vão conse-
guindo nas mais variadas tarefas e projectos, bem como para Actual suporte à cultura
reinventar especificidades culturais e recuperar memórias que
se vão desvanecendo na descaracterização que a todos afecta. Quando falamos em Cultura Portuguesa não deixamos de
Não obstante as grandes transformações sofridas após a con- pensar na enorme diversidade de testemunhos que, de Norte
quista da democracia, parece teimar-se no comum discurso do a Sul do Continente e da Madeira aos Açores, marcam as nos-
sonho e da glória para nos projectarmos no exterior, quando sas especificidades de carácter, reflexão e acção enquanto
internamente nos ligamos irremediavelmente a um fado dema- membros de um único País.
siado fatalista para justificar as grandes dificuldades estruturais Mas se falarmos em Produção Cultural, imprimimos uma
de que o País sempre padeceu e que ainda não soube contrariar. dimensão bem mais dinâmica a esse património existente,
A propósito da definição da identidade cultural portuguesa, reconhecendo-se que é através de uma actividade cultural
Boaventura Sousa Santos propõe como hipótese de trabalho o
esvaziamento do seu conteúdo, restando-lhe apenas a forma,
que é a fronteira ou a zona fronteiriça. Nas suas palavras, “a nos- Bibliotecas, 2001
sa cultura nunca se conseguiu diferenciar totalmente perante
culturas exteriores, no que configurou um défice de identidade
pela diferenciação. Por outro lado, a nossa cultura manteve uma
enorme heterogeneidade interna, no que configurou um défice
de identidade pela homogeneidade.”.
Perante estas palavras, torna-se mais evidente a construção
e contínua divulgação do anterior discurso identitário, tal
como se compreende melhor porque é que os portugueses
insistem na criação de ícones para se reconhecerem enquan-
to grupo cultural, num tempo em que se torna cada vez mais
difícil falar de identidades nacionais. Por 10 000 hab.
Enquanto nação multicultural, cosmopolita e europeia, os 4
nossos ícones ou símbolos de distinção são os novos heróis 3
2
do momento que nos projectam no exterior e os eventos 1
internacionais que ocasionalmente vamos organizando:
Nº
Exposição Mundial de Lisboa – Expo'98 –, Campeonato
Europeu de Futebol – Euro 2004 –, Festival internacional de 482
Nº
53
20 Por 10 000 hab.
15 10
10 4
5 3
Os dados apresentados 2
correspondem aos museus
que, no ano de referência,
cumpriam os seguintes
critérios: Nº
Existência de, pelo menos, 35
uma sala ou espaço de
exposição. 9
Abertura ao público,
2
permanente ou sazonal.
Existência de, pelo menos,
um conservador.
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constante, abrangente, participativa e não-selectiva que as — uma certa inércia, descrédito ou até mesmo ausência de
sociedades conseguem atingir níveis de desenvolvimento de um prazer quotidiano pela Cultura nas suas múltiplas moda-
qualidade superior e mais igualitários. lidades que parece existir numa parte da população portugue-
Em termos de uma ‘cultura posta em prática’, não são sa, independentemente da sua localização, nível de instrução
necessárias as estatísticas para que facilmente se perceba que, e grupo económico.
em Portugal, também se fazem sentir grandes disparidades no É obvio que esta tentativa de interpretação da realidade cul-
sector da produção cultural. Esta realidade pode ser atribuída tural em Portugal não esgota as razões que explicam o porquê
a factores tão diversos como: da hegemonia (quase ditadura) da televisão enquanto meio pri-
— os profundos atrasos no campo da educação e que a ainda vilegiado de informação e elemento cultural massificador. Tão
recente democracia nem sempre parece conseguir recuperar; pouco explicam os elevados níveis de iliteracia na população
— a centralização dos bens culturais nas principais cidades jovem e os baixos níveis de leitura e compra de livros pela
do País (sobretudo no litoral), não só devida às maiores con- população em geral, quando até se verifica o aumento do
centrações de público mas também por causas que se pren- número de bibliotecas disponíveis em todo o território nacio-
dem com as políticas públicas de desenvolvimento regional nal.
que contemplam o dinamismo cultural; Apesar do destaque dos jornais desportivos, a imprensa
— os parcos investimentos que as administrações locais diária também se pauta na generalidade do País por tiragens
fazem, de uma maneira geral, no sector da Cultura; insignificantes se comparadas num contexto internacional. A
— a crescente tendência para a privatização da actividade imprensa especializada dirige-se a segmentos sociais específi-
cultural e respectiva sujeição às regras de um mercado cada cos, definidos em função do género, geração, instrução ou
vez mais massificado; categoria socioprofissional, reconhecendo-se o sucesso que a
— as dificuldades económicas de uma boa parte da popu- chamada ‘imprensa cor-de-rosa’ parece ter junto de um públi-
lação e a sua incapacidade de aceder a bens culturais cujos co económica e socialmente tão distinto daquele que retrata.
preços ditados pelas entidades privadas continuam a fazer da Face a estes breves exemplos, não será de estranhar a ‘capaci-
cultura algo de muito erudito, selectivo e discriminatório; dade de absorção’ que uma boa parte das população urbana por-
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tuguesa parece ter em relação aos modelos, modas e estilos cul- dos quais 30 no Continente, 2 na Madeira e 1 nos Açores, a
turais massificados. Os recentes desenvolvimentos dos meios de somar aos 201 que já existiam; e também ao acréscimo de
informação e comunicação têm tido um papel determinante na mais um milhão de visitantes registados na totalidade dos
criação e divulgação de uma cultura que tende cada vez mais para museus nacionais no mesmo período (2000/2001).
a globalização e descaracterização local, embora deixando nichos Para esta realidade contribuirão factores como a crescente
que favorecem o fortalecimento dos seus laços identitários. procura do turismo e de visitas escolares, mas também o evi-
Contudo, não se podem dissociar estas tendências do dente esforço de modernização que estes espaços de cultura
suporte consumista que lhe está associado e tão pouco se têm vindo a desenvolver, oferecendo cada vez mais conforto
pode ignorar o crescimento e a transformação urbanística que e serviços complementares aos seus visitantes.
as cidades do litoral, de um modo geral, têm demonstrado. Apesar de ser significativo o investimento que algumas
Neste cenário é também importante a referência ao surgi- vilas e cidades de menor dimensão estão a fazer no sector da
mento de mais 33 museus em Portugal em apenas um ano, cultura, o protagonismo continua a pertencer às duas grandes
Nº
59
30
15
6
2
nenhum
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A típica silly season televisiva de verão parece ser, simulta- Guimarães ou Sintra) e múltiplos festivais – gastronomia, fol-
neamente, uma das causas/efeitos da crescente onda de festi- clore, fumeiro, vinho, fotografia, teatro, cinema, etc. – que um
vais musicais, que do Rock ao Jazz, passando pelos clássicos e pouco por toda a parte vão enriquecendo a agenda cultural do
pela dança, vão acontecendo um pouco por todo o País, aju- território português e promovendo os sítios onde se realizam.
dando a descentralizar a cultura e a divulgar sítios e culturas A enorme quantidade e variedade de património classificado
locais mais esquecidas. Importará não esquecer que o verão na totalidade do território português, do qual se destaca o Patri-
português há muito que se divide entre o Litoral que vai a mónio Mundial, não só permite a representação do passado e a
banhos e o Interior que renova a sua fé nas romarias e festas evocação de uma memória colectiva, levando-nos a recordar
religiosas, as quais não dispensam espectáculos públicos que muitas terras do interior já tiveram uma dinâmica cultural
variados – como touradas, concursos, bailes, concertos musi- bem mais significativa do que actualmente, como também não
cais de cantores com sucesso no momento. nos deixa esquecer os variados testemunhos originais da histó-
Mais recentemente, parece haver uma tendência para con- ria do País e património arquitectónico, cultural e identitário da
ciliar tudo isto num modelo de férias ‘vá para fora cá dentro’ sua gente.
através dos Festivais de Verão, privilegiadamente dirigidos a Mas para além de tudo isto, importará referir igualmente
grupos mais jovens. Será esta uma nova forma de descentrali- os dividendos turístico-económicos que se retiram da patri-
zar a cultura portuguesa, levando a população urbana a desco- monialização reconhecida internacionalmente, o incremento
brir ‘velhos’ territórios; mas para as populações locais, também nas ofertas culturais e a procura da preservação das paisagens
representa a oportunidade de contacto com uma realidade dos lugares classificados que, simbolicamente, pertencem ao
extra-quotidiana, cuja promoção identitária poderá vir a ser globalizado mundo contemporâneo.
aproveitada de diferentes formas. A tendência observada em algumas povoações com carac-
Fazendo nossas as palavras de Augusto Santos Silva, terísticas patrimoniais mais emblemáticas mas, que apresen-
“A aposta em eventos marcantes, crescentemente aceites nos tam sérios riscos de abandono e destruição, tem sido a sua
círculos críticos, com eco na imprensa de referência e atraindo musealização e, em complementaridade desta tendência mas
consumidores culturais tidos por regulares e esclarecidos, é tam- a uma escala diferente, também se tem assistido, um pouco
bém uma aposta em ‘pôr no mapa’ – pôr em vários mapas várias por toda a parte, ao sucesso do turismo rural e de habitação,
coisas. No mapa dos sistemas culturais, nalguns casos interna- que não deixa de ser uma espécie de ‘museu vivo’ de modos
cionalizados, e também no mapa do território português e na de viver que caíram em desuso nas rotinas urbanas.
competição política e simbólica entre cidades e regiões, ou no Será precisamente a necessidade de fuga a estas rotinas que
mapa dos circuitos turísticos e patrimoniais, ou no mapa dos também tem contribuído para reavivar o interesse pela preser-
investimentos públicos e privados.” vação das ‘aldeias’ e ‘vilas’ históricas portuguesas que, de um
Parece cada vez mais frequente a procura de projecção modo geral se vêem cada vez mais divulgadas nos roteiros
internacional do país através de realizações culturais, patrimo- turísticos internos. Actualmente, Monsanto continua a ser
nialização de conjuntos urbanos e promoção turística. Nesta uma referência bem portuguesa, mas não o é mais do que
situação podem-se incluir as referidas candidaturas à realiza- Penha Garcia, Idanha-a-Velha, Marvão, Óbidos, Monsaraz,
ção de Exposições Internacionais ou Mundiais e a eventos des- Mértola ou Barrancos... Entretanto e porque a expressão cul-
portivos, as candidaturas a Capitais Europeias da Cultura (Lis- tural de um País não se resume a alguns eventos marcantes,
boa 94, Porto 2001, Coimbra 2003, Faro 2005), a elevação a serão necessárias políticas culturais bem mais efectivas, des-
património mundial de conjuntos urbanos significativos centralizadas, mobilizadoras e menos elitistas para alterar, um
(como os centros históricos de Évora, Angra do Heroísmo, pouco que seja, o sentir e o viver da cultura em Portugal.