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Disciplina: Etnografias e escritas etnográficas, Profas.

Adriana Facina
Adriana Lopes e Carolina Rocha

“No princípio era o ato: Austin e a centralidade


dos atos de fala nos processos sociais”

• Daniel do Nascimento e Silva

• Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, UFRJ

• Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC


Esta fala poderia se chamar

Por que os feminismos importam para a


Teoria dos Atos de Fala?
A questão a ser
desenvolvida aqui

Aprendemos com o Rajan que...

A proposta de John L. Austin em How to do things with


words é de uma pragmática radical

Isso significa dizer que os atos de fala não representam


uma realidade essencial nem são desinvestidos de
política
Aprendemos também que…

• Fazer uma leitura performativa de Austin implica


tomar partido

• Isso porque o cânone filosófico se esforçou em domar


o pensamento de Austin, ajustando-o à lógica e à
metafísica

• Essa empreitada, nos lembra Rajan, tem seu principal


proponente John Searle
Mas no caminho aberto por Rajan

A leitura de passagens como

[Final da conferência IV]: “In conclusion, we see that in order to explain


what can go wrong with statements we cannot just concentrate on
the proposition involved (whatever that is) as has been done
traditionally. We must consider the total situation in which the
utterance is issued – the total speech act – if we are to see the
parallel between statements and performative utterances, and how
each can go wrong. So the total speech-act in the total speech-
situation is emerging from logic piecemeal as important in special
cases: and thus we are assimilating the supposed constative
utterance to the performative.” (p.52)
Ou como esta

“In real life, as opposed to the simple situations


envisaged in logical theory, one cannot always answer in
a simple manner whether it is true or false.”
(Conferência XI, p. 143)
Desestabilizam o edifício
metafísico
A questão então é

Mais do que pensar em como a teoria performativa de


Austin pode contribuir para pensar questões sociais – por
exemplo as condições de opressão partilhadas por
mulheres no mundo

Queria pensar com vocês sobre como teorias e práticas


feministas – que visam entender e interferir nessas
condições de opressão – têm contribuído com a teoria
performativa
Para isso, quero revisitar alguns
argumentos de 4 teóricas feministas
E pensar em como esses
argumentos respondem à
teoria

Mas antes de revisitar essas leituras feministas de Austin


e do performativo

Eu queria problematizar meu próprio lugar de fala e


como me situo no feminismo
Eu posso falar por
mulheres?
Se não estou inserido na condição de opressão vivida
pela imensa maioria das mulheres?

Cito Rosaldo, em O uso e o abuso da antropologia:


“tenho que dizer de início que, diferentemente de
antropólogos que argumentam em favor do lugar
privilegiado das mulheres aqui e ali, minha leitura do
legado antropológico me leva a concluir que as formas
culturais e sociais humanas têm sido sempre dominadas
por homens.” (p. 393)
Nesse sentido

Meu lugar de fala é contaminado por um privilégio: “Ao dizer isso, não estou
afirmando que o homem reine por direito, nem mesmo que ele reine, nem que as
mulheres em todos os lugares são vítimas passivas de um mundo definido por
homens. Mas apontaria, isto sim, para uma coleção de fatos relacionados que
parecem argumentar que, em todos os grupos humanos conhecidos (...) a vasta
maioria de oportunidades para o prestígio e influência pública, a capacidade
para forjar relações, determinar inimizades, usar ou renunciar ao uso da força,
são todas reconhecidas como um privilégio e direito masculino.” (Rosaldo, 1980,
p.394)
 
 
Essa contaminação me obriga assim a assumir uma postura feminista específica

Chamemos essa postura de feminismo de sobrevivência


 
 
Sobreviver, nos conta Corsico, é mais ou
menos assim:

Por onde passar, pode dizer que Corisco estava mais morto que
vivo. Virgulino morreu de uma vez, Corisco morreu com ele. Por
isso mesmo precisava ficar de pé, lutando sem fim, desarrumando
o arrumado, até que o sertão vire mar e o mar vire sertão.
glauber rocha, Deus e o diabo na terra do sol

“o sobreviver transborda, ao mesmo tempo, o viver e o morrer,


suple- mentando-os, um e outro, com um sobressalto e um certo
alívio temporário, parando a morte e a vida ao mesmo tempo”
(Derrida, 1979[2004]:89)

 
Um feminismo de sobrevivência daria
atenção às performances entre lugares

“um compromisso que não se dá fora dessa repetição de


uma performance sem presença” (p.86)

um compromisso com aquilo que virá, com o fantasma


que não tem mas ganha corpo, com a esperança

um compromisso com a solidariedade.


Solidariedade

No Monolinguismo do Outro ou a prótese da origem,


Derrida afirma:

“Eu sou o refém universal” – uma afirmação que não é


uma afirmação, mas sim “um testemunho que todos
podem dizer de si e para si”. E as condições de verdade
desse testemunho? “Basta ouvir-me”, diz Derrida.
Mas voltemos às autoras
A priori, Michelle Rosaldo

não posiciona sua crítica a Searle como feminista.

Mas o seu artigo é todo dedicado a desconstruir uma


ideologia de linguagem notavelmente centrada na
figura de homens, brancos e heterossexuais que têm
plena consciência de si.
Baseada em sua etnografia com os ilongot,
Rosaldo critica

the very fact that Austin's notions had their roots in


language bound to relatively limited and ritualized
domains permitted later thinkers to begin to
questionhis concerns, abandoning his interest in the
institutional constraints on talk in favor of more
universalizing views of what it means to say that
utterances are acts at all (p.211)
Unlike Austin then, such recent writers as the
philosopher John Searle tend overwhelmingly to view
familiar acts of speech not primarily as social facts, but
as the embodiments of universal goals, beliefs, and
needs possessed by individuated speakers. And whereas
Austin discovered illocutionary force in speech by
concentrating on conventional acts that have the power
to change the world, Searle uses "promising" - in place of
Austin's oath of marriage or the Ilongot command - to
serve as paradigmatic of our ways of
"doing things with words.”
Na proposta de Rosaldo

- Em vez de intenções, relações sociais


- Em vez de universalismo, modelos situados

Alguns excertos relevantes:

“the bulk of what has been said above as evidence of the confusions that are born
from an undeserved love of Oxford.” (p.227)

“We need not dwell on men like Searle and Austin if what we really want to know is
how real people, not philosophers, manage to "do their thing" with words” (p.227)

Para ela, “Searle uses English performative verbs as guides to something like a
universal law. I think his efforts might better be understood as an ethnography –
however partial – of contemporary views of human personhood and action as these
are linked to culturally particularmodes of speaking.” (p.228)
Judith Butler

- Talvez a primeira (e a mais marcante) característica da leitura


assumidamente feminista que Butler empreende da teoria de
Austin é a correlação entre o performativo e a formação do sujeito

- Em especial o decentramento do sujeito do feminismo proposto


pela filósofa de Berkeley

- De sua leitura da tradição feminista e do performativo de Austin,


emerge uma crítica à categoria mulher como essencial e universal

- Tal como a interioridade das intenções em Austin, a profundidade


e a coerência interna da experiência das mulheres é produzida
externamente, em relações sociais e como efeito da
performatividade da linguagem
Condições para performativos
felizes
(A.1) Deve existir um procedimento convencionalmente aceito, que
apresente um determinado efeito convencional e que inclua o
proferimento de certas palavras, por certas pessoas, e em certas
circunstâncias; e além disso, que

(A.2) as pessoas e circunstâncias particulares, em cada caso, devem ser


adequadas ao procedimento específico invocado.

(B.1) O procedimento tem de ser executado, por todos os participantes, de


modo correto e

(B.2) completo.

(Γ.1) Nos casos em que, como ocorre com frequência, o procedimento visa
às pessoas com seus pensamentos e sentimentos, ou visa à instauração
de uma conduta correspondente por parte de alguns dos participantes,
então aquele que participa do procedimento e o invoca deve de fato ter
tais pensamentos ou sentimentos, e os participantes devem ter a intenção
de se conduzirem de maneira adequada, e, além disso,

(Γ.2) devem realmente conduzir-se dessa maneira subsequentemente.


Judith Butler

- Tal como a de Rajan, a leitura que Butler faz do


performativo é influenciada pelas intervenções de
Derrida e Felman no trabalho de Austin

- Na intervenção de Felman, o foco é a dimensão afetiva


no funcionamento do performativo; esse enunciado é
indissociável da dimensão do humor, do prazer e da
falha

- Na de Derrida, iterabilidade
Butler respondendo produtivamente à
teoria de Austin

- Uma das grandes reformulações feministas que Butler


faz do emmpreendimento de Austin é a radicalização
da condição de iterabilidade

- Para ela, “a iterabilidade da performatividade é uma


teoria da agência” (Gender Troube, 1999)
Agência predicada nas rupturas da
repetição de normas

“As a sedimented effect of a reiterative or ritual


practice, sex acquires its naturalized effect, and,
yet, it is also by virtue of this reiteration that gaps
and fissures are opened up as the constitutive
instabilities in such construction that which
escapes or exceeds the norm… This instability is
the deconstituting possibility in the very process of
repetition, the power that undoes the very effects
by which “sex” is stabilized, the possibility to put
the consolidation of the norms of “sex” into a
potentially productive crisis” (Bodies that matter,
p. 10)
Saba Mahmood e a crítica a Butler e ao
feminismo liberal

- Mahmood inicialmente submete o conceito de agência


em Butler a uma crítica etnográfica, aristotelicamente
informada

- “the concept of agency in Butler’s work is developed


primarily in contexts where norms are thrown into
question or are subject to resignification” (p.21)

- Ela observa o cultivo de identidades de mulheres no


revivalismo islâmico e percebe que o tipo de agência
que emerge ali não se situa no binário
consolidar/ressignificar, fazer/desfazer normas
O estudo de Saba sobre o cultivo de virtudes
no movimento de mulheres no Egito

Levanta questões para as noções de agência, performatividade e


resistência pressupostas no feminismo

“to the extent that feminist scholarship emphasizes this politically


subversive form of agency, it has ignored other modalities of
agency whose meaning and effect are not captured within the logic
of subversion and resignification of hegemonic terms of discourse.”
(p.154)

Ao observar como mulheres no revivalismo se inscrevem em


normas como a modéstia, ela critica o caminho aberto por Searle e
pela filosofia analítica (e por algumas correntes do feminismo)

Principalmente no que diz respeito ao comportamento performativo


e a disposição interna: “action does not issue forth from natural
feelings but creates them.” (p.157)
Adriana Lopes

Estudo sobre o funk carioca como ato de fala político

Localização das mulheres no interior dessa prática, em


termos de autoria e performance

Embate entre formas prescritivas de entender o


feminismo e práticas internas ao funk que não se
enquadram no modelo de manutenção/ressignificação da
norma
Um dado da pesquisa de Lopes (p.167)
Lembrando do argumento de Mahmood

Penso que localizar o lugar das performances de


mulheres no funk e na pornografia implica “engajar-se
com a própria armadura de adesões entre formas
exteriores de comportamento e a subjetividade
sedimentada” que a pornografia realiza.
Falando produtivamente de volta para a
teoria

Rosaldo: particularização de uma teoria tida como universal; foco não na


verdade interna de sujeitos circunscritos, mas nos tipos de relações
partilhadas pelos atores

Butler: atos de fala como atos de corpo [aqui há outra feminista brasileira,
Joana Plaza Pinto], iteráveis, pertencentes a uma estrutura repleta de
lacunas que permite a agência na ressiginificação

Mahmood: a partir da crítica a pressupões liberais presentes no modelo pós-


estruturalista de Butler, a autora realiza uma entrada mais radical que a de
Austin na ética aristotélica e questiona o próprio lugar da norma no
feminismo e consequentemente na teoria dos atos de fala

Lopes: explora um contexto de sobrevivência que rejeita pressuposições


hierárquicas translocais de que o modelo prescritivo de certas práticas
feministas possa informar ou validar performances pornográficas como
feministas ou não; retorno à solidariedade na teoria e luta de mulheres;
decentramento do modelo de agência liberal

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