Você está na página 1de 43

Mia Couto

Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto, nasceu
em 5 de Julho de 1955 na cidade da Beira em Moçambique. É filho de
uma família de emigrantes portugueses. O pai, Fernando Couto,
natural de Rio Tinto, foi jornalista e poeta, pertencendo a círculos
intelectuais, tipo cineclubes, onde se faziam debates. Chegou a escrever
dois livros que demonstraram preocupação social em relação à situação
de conflito existente em Moçambique. Mia Couto publicou os seus
primeiros poemas no jornal Notícias da Beira, com 14 anos. Iniciava
assim o seu percurso literário dentro de uma área específica da
literatura – a poesia –, mas posteriormente viria a escrever as suas obras
em prosa.
Em 1972 deixou a Beira e foi para Lourenço Marques para estudar
medicina. A partir de 1974 enveredou pelo jornalismo, tornando-se, com
a independência, repórter e diretor da Agência de Informação de
Moçambique (AIM) – de 1976 a 1976; da revista semanal Tempo – de
1979 a 1981 e do jornal Notícias – de 1981 a 1985. Em 1985 abandonou
a carreira jornalística. Reingressou na Universidade de Eduardo
Mondlane para se formar em biologia, especializando-se na área de
ecologia, sendo atualmente professor da cadeira de Ecologia em diversas
faculdades desta universidade. Como biólogo tem realizado trabalhos de
pesquisa em diversas áreas, com incidência na gestão de zonas costeiras
e na recolha de mitos, lendas e crenças que intervêm na gestão
tradicional dos recursos naturais.
É diretor da empresa Impacto, Ltda. – Avaliações de Impacto
Ambiental. Em 1992, foi o responsável pela preservação da reserva
natural da Ilha de Inhaca. Mia Couto é um “escritor da terra”, escreve e
descreve as próprias raízes do mundo, explorando a própria natureza
humana na sua relação umbilical com a terra. A sua linguagem
extremamente rica e muito fértil em neologismos, confere-lhe um
atributo de singular percepção e interpretação da beleza interna das
coisas. Cada palavra inventada como que adivinha a secreta natureza
daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter
sido utilizada em seu lugar.
As imagens de Mia Couto evocam a intuição de mundos fantásticos e
em certa medida um pouco surrealistas, subjacentes ao mundo em que
se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos – o
mundo vivo das histórias. Mia Couto é um excelente contador de
histórias. É o único escritor africano que é membro da Academia
Brasileira de Letras, como sócio correspondente, eleito em 1998,
sendo o sexto ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom
Francisco de Sousa. Atualmente é o autor moçambicano mais
traduzido e divulgado no exterior e um dos autores estrangeiros mais
vendidos em Portugal. As suas obras são traduzidas e publicadas em 24
países.
Várias das suas obras têm sido adaptadas ao teatro e cinema. Tem
recebido vários prêmios nacionais e internacionais, por vários dos seus
livros e pelo conjunto da sua obra literária.

É, comparado a Gabriel Garcia Márquez e Guimarães Rosa. Seu


romance Terra Sonâmbula foi considerado um dos dez melhores
livros africanos do século XX.

Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de


sua obra e, em 2007 o prêmio União Latina de Literaturas Românicas.
Bibliografia – Moçambique e Portugal
Poesia
• Raiz de Orvalho. [Cadernos Tempo], Maputo/Moçambique: Associação de
Escritores Moçambicanos (AEMO), 1983.
• Raiz de Orvalho e outros poemas. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial
Caminho, 1999.
• Idades, Cidades, Divindades. Maputo/Moçambique: Sociedade Editorial Ndjira,
2007; 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2007.
• Tradutor de Chuvas. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2011.

Contos
• Vozes Anoitecidas. 1ª ed., da Associação dos Escritores Moçambicanos, 1986;
1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho,1987.
• Cada Homem é uma Raça. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho,1990.
• Estórias Abensonhadas. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho,1994.
• Contos do Nascer da Terra. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho,1997
• Na Berma de Nenhuma Estrada. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial
Caminho, 1999.
• O Fio das Missangas.1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2003.
Bibliografia – Moçambique e Portugal
ROMANCES
• Terra Sonâmbula. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 1992.
Disponível online.
• A Varanda do Frangipani. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 1996.
• Mar Me Quer. 1ª ed. Parque EXPO/NJIRA em 1998, [como contribuição para o
pavilhão de Moçambique na Exposição Mundial EXPO ’98 em Lisboa]; 1ª
ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2000.
• Vinte e Zinco, 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 1999.
• O Último Voo do Flamingo, 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2000.
• Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra, 1ª ed., Lisboa/Portugal:
Editorial Caminho, 2002.
• O Outro Pé da Sereia. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2006.
• Venenos de Deus, Remédios do Diabo. Lisboa/Portugal: Editorial
Caminho, 2008.
• Jesusalém [no Brasil, o título do livro é “Antes de nascer o
mundo”], Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2009.
• Vagas e lumes. Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Bibliografia – Moçambique e Portugal

INFANTIL
• O Gato e o Escuro. [Ilustrações de Danuta Wojciechowska], 1ª
ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2001; e [com ilustrações de
Marilda Castanha]. 1ª ed., brasileira, da Cia. das Letrinhas, em 2008.
• A Chuva Pasmada. [Ilustrações de Danuta Wojciechowska], 1ª
ed., Maputo/Moçambique: Sociedade Editorial Ndjira, 2004.
• O beijo da palavrinha. [com ilustrações de Malangatana], 1ª ed.,
Editora Língua Geral, 2006; [ilustrações de Malangatana]. 1ª
ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2008.
• O Menino no Sapatinho. [Ilustrações Danuta Wojciechowska], 1ª
ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2013, 32p.
• Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada
Terra. Alfragide/Portugal: Editora Leya, 2012.
• Venenos de Deus Remédios do Diabo. [livro de
bolso]. Alfragide/Portugal: Editora Leya, 2014
Obras de Mia Couto publicadas no Brasil
2003 – Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra [romance].
2005 – O Último Voo do Flamingo [romance].
2006 – O Outro Pé da Sereia [romance].
2007 – A Varanda do Frangipani [romance].
2007 – Terra Sonâmbula [romance].
2008 – O Gato e o Escuro [romance].
2008 – Venenos de Deus Remédios do Diabo.
2009 – Antes de Nascer o Mundo. [título original “Jesusalém”].
2009 – O Fio das Missangas [contos].
2011 – E Se Obama Fosse Africano?
2012 – A Confissão da Leoa [romance].
2012 – Estórias Abensonhadas [contos].
2013 – Cada homem é uma raça [contos].
2013 – A menina sem palavra [romance].
2013 – Vozes Anoitecidas [contos].
1986 – Estórias Abensonhadas.
1990 – Cada Homem é Uma Raça.
1993 – Terra Sonâmbula.
1996 – A Varanda do Frangipani.
Prêmios
Prêmio Anual de Jornalismo Areosa Pena (Moçambique) com o livro
Cronicando, em 1989;
Prêmio Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora, em 1990;
Prêmio Nacional de Ficção da Associação de Escritores
Moçambicanos (AEMO), com o livro Terra Sonâmbula – Considerado
por um júri especialmente criado para o efeito pela Feira Internacional
do Zimbabwe, um dos melhores livros africanos do Século XX, em
1995;
Prêmio Mário António (Ficção) da Fundação Calouste Gulbenkian,
com o livro O Último Voo do Flamingo, em 2001;
Prêmio União Latina de Literaturas Românicas, em 2007;
Prêmio Passo Fundo Zaffari e Bourbon de Literatura, com o livro O
Outro Pé da Sereia, em 2007;
Prêmio Eduardo Lourenço, em 2011;
Prêmio Camões, em 2013;Prêmio Internacional Literatura Neustadt,
da Universidade de Oklahomade, em 2014.
Imagem retirada do site da Revista Pazes. Disponível em: http://www.revistapazes.com/content/uploads/2016/08/a-
confiss%C3%A3o-capa-696x466.jpg
A história foi inspirada em uma viagem que Mia Couto fez
a uma região que perecia com brutais ataques de leões aos
seus moradores. O escritor explica, nas primeiras notas, que
sua experiência surgiu como biólogo:
Em 2008, a empresa em que trabalho enviou quinze
jovens para atuarem como oficiais ambientais de
campo durante a abertura de linhas de prospeção
sísmica em Cabo Delgado, no Norte de Moçambique..
Na mesma altura e na mesma região, começaram a
ocorrer ataques de leões a pessoas.. Em poucas
semanas, o número de ataques fatais atingiu mais de
uma dezena.. Esse número cresceu para vinte em
cerca de quatro meses.. Os nossos jovens colegas
trabalhavam no mato, dormindo em tendas de
campanha e circulando a pé entre as aldeias. Eles
constituíam um alvo fácil para os felinos.. Era urgente
enviar caçadores que os protegessem..
Essa urgência somava-se, é claro, à necessidade de
proteção dos camponeses da região. Sugerimos à
companhia petrolífera que tomasse em suas mãos a
superação definitiva dessa ameaça: a liquidação dos
leões comedores de pessoas. Dois caçadores
experientes foram contratados e deslocaram-se de
Maputo para a Vila de Palma, povoação onde se
centravam os ataques dos leões. Na vila eles
recrutaram outros caçadores locais para se juntarem à
operação. O número de vítimas mortais, entretanto,
tinha subido para vinte e seis. Os caçadores passaram
por dois meses de frustração e terror, acudindo a
diários pedidos de socorro até conseguirem matar os
leões assassinos. Mas não foram apenas essas
dificuldades que enfrentaram.
De forma permanente lhes era sugerido que os
verdadeiros culpados eram habitantes do mundo
invisível, onde a espingarda e a bala perdem toda a
eficácia. Aos poucos, os caçadores entenderam que os
mistérios que enfrentavam eram apenas os sintomas
de conflitos sociais que superavam largamente a sua
capacidade de resposta. Vivi esta situação muito de
perto. Frequentes visitas que fiz ao local onde decorria
este drama sugeriram-me a história que aqui relato,
inspirada em factos e personagens reais.
Em entrevista dada a Leonardo Cazes, em 10/11/2012, Mia
Couto, relata detalhes da obra:

As personagens da história são reais?


Inventei apenas alguns. O caçador é inspirado numa
figura real, um amigo meu que foi, de fato, chamado a
intervir para matar os leões. Mas a história que ele
atravessa é toda ficcional. Assim, o meu amigo,
inspirador da personagem, já não mais está presente.
O escritor tem um pouco de mim, mas ele vive uma
narrativa que nada tem a ver comigo. Inspirei-me em
situações, mais do que em pessoas.
Você já conhecia os mitos e tradições daquela região do
país?

Conhecia alguma coisa, sim. Sou biólogo, já percorri


grande parte do território do país e fi-lo em visitas
demoradas que me permitem mergulhar no universo
das pessoas. Não vou lá como um turista. Contudo, na
aldeia de Palma (que no romance surge como Kulumani)
eu tive que permanecer mais tempo. Só o tempo torna
possível que os aldeões se abram para um estranho.
Depois, não sei se devemos falar em mitos e tradições
quando falamos desses povos. Eles têm pensamentos e
religiosidades próprias que valem tanto e são tão
dinâmicas como as lógicas da cidade e da modernidade.
No livro, há diversos momentos de mistura entre o real e a
fantasia. As próprias personagens muitas vezes questionam se
o que veem e pensam é real ou fruto da imaginação. Você
desejava brincar com essas fronteiras?
Toda a literatura faz isso o tempo inteiro. A ficção é um
caminhar nesse limiar de mundos, um convite a redesenhar
essas fronteiras.

Os protagonistas, Mariamar e Arcanjo, são considerados


loucos em vários momentos. Essa suposta loucura representa
a linha tênue entre fantasia e realidade no livro?
É na loucura que eles representam a si mesmos porque
vivem uma situação limite e, para superá-la, precisam
cruzar a fronteira da chamada “normalidade”. Eles precisam
olhar o seu lugar a partir de fora. E esse “fora”, essa
exterioridade só se alcança a partir da outra margem
Quando você percebeu que os ataques dos leões àquela
aldeia poderiam se transformar em um romance?

Estava naquela aldeia quando os ataques dos leões


começaram. Na época, escrevi numa tenda e, depois,
na casa onde me alojaram. Escrevi sem ter nenhum
outro propósito que o de ficar longe da realidade,
porque se vivia uma situação de insuportável medo e
horror. Eu queria, mesmo que não soubesse, converter
em ficção aquela realidade. Mas, naquele momento, eu
nunca imaginaria que iria escrever um romance. E
mesmo depois, já na cidade, eu tive que vencer o peso
de estereótipos que olham a África como o lugar dos
bichos e das caçadas. Não queria escrever um livro que
sedimentasse esse olhar exótico e folclórico sobre o
meu próprio lugar. Regressei à aldeia para ganhar
intimidade com as pessoas e o modo como liam
aqueles estranhos eventos.
No romance, a opressão em relação às mulheres
assume formas ancestrais e modernas. Essa opressão
está presente em Moçambique?

Essa condição de exclusão e opressão é ainda muito


presente em Moçambique. Em geral, as sociedades
rurais são muito patriarcais e a mulher vive numa
situação em que não tem direito à palavra, não tem
direito à presença senão mediatizada por um
homem. O que refiro no livro, nesse aspecto, é um
retrato da realidade. As jovens rapidamente são
tidas como mulheres. Mas só no sentido sexual e da
maternidade. Porque não chegam a ser respeitadas
como mulheres. As velhas e, sobretudo as viúvas,
são olhadas com desconfiança e muitas vezes
tratadas como feiticeiras.
No livro, Kulumani é uma terra de "assimilados", onde
tradições ancestrais permanecem. Como a interação
dessas diferentes matrizes culturais marcam
Moçambique hoje?

Assimilados, como o nome diz, refere um grupo


minoritário de moçambicanos negros que assumiram
a cultura dos portugueses. Em todo o país é um
grupo minoritário e na aldeia de Kulumani reduz a
apenas uma ou duas famílias. O colonialismo
português formatou esse grupo social para que
reproduzisse a acção do aparelho de estado colonial.
Curiosamente, foi esse grupo que acabou por se
revoltar contra a dominação colonial.
Ficou um tempo na varanda a perscrutar o
escuro. Talvez essa quietude lhe trouxesse
repouso. Mas o silêncio é um ovo às avessas:
a casca é dos outros, mas quem se quebra
somos nós. (p.10)

Considerações sobre a obra


Personagens:
• Mariamar: narradora personagem, moradora da aldeia
• Arcanjo Baleiro: narrador personagem, caçador
• Gustavo Regalo: escritor, contratado para escrever os fatos
• Florindo Makwala: administrador da aldeia
• Naftalinda: esposa do administrador
• Avô Adjiru: Vô de Mariamar
• Genito Serafin Mpepe: Pai de Mariamar
• Hanifa Assulua: Mãe de Mariamar
• Silência: Irmã de Mariamar
• Luzilia: enfermeira
Os narradores de a “Confissão da Leoa”
Os protagonistas da trama são Mariamar e Arcanjo Baleiro e
a obra se desenvolve a partir de seus escritos biográficos que
são intercaladas no romance. Cada personagem enfrenta seus
conflitos particulares.
A ótica narrativa de Mariamar é pessoal, relatando
acontecimentos locais. Ela vive em Kulumani, onde tudo
acontece, pertence aquela terra, relata sua intimidade com o
espaço, rio que cruza a vila, o mato, a aldeia, as tradições
locais, religiosidade, costumes, memoria. Mariamar tem o
mesmo fardo das mulheres de Kulumani, que é o de serem
tiranizadas pelos maridos e viverem num silêncio cruel e
magoado. Mariamar perdeu a irmã num dos ataques dos
leões, evento que aprofundou o desalento familiar e
doméstico em que ela vivia.
Os narradores de a “Confissão da Leoa”
Em contraposição, os escritos de Baleiro, apresentam o olhar
do viajante. O caçador de leões, proveniente da capital.
Baleiro tem um histórico familiar traumático, o irmão entrou
em estado de choque e permanece numa casa de cuidados
especiais, onde conta com o alento de Luzilia, sua noiva,
pela qual Baleiro tem uma paixão. Arcanjo Baleiro é mais
realista e durão, sua formação num contexto externo ao da
aldeia faz com que ele encare os fatos de forma mais
objetiva, tendo em sua interpretação da realidade, seja dos
hábitos das feras ou dos comportamentos dos habitantes de
Kulumani, uma precisão que se espera também de sua
espingarda na hora do tiro.
O Enredo:
O enredo se desenvolve em um pequeno povoado no interior de
Moçambique onde mulheres começam a ser devoradas por
leões. Uma empresa que está na região contrata os serviços de
Arcanjo Baleiro para matar os animais que aterrorizam a
comunidade isolada. Além do caçador, também é enviado para
acompanhar a expedição um escritor de renome, Gustavo
Regalo, que recebe a tarefa de registrar e reportar a caçada.
Seguem também à pequena vila o administrador da província,
Florindo Makwala, e sua esposa, Naftalinda. É importante
ressaltar que o caçador Arcanjo Baleiro já estivera na aldeia
dezesseis anos antes, ocasião em que salvara Mariamar de um
estupro, na época uma jovem de dezesseis anos de idade. Desse
encontro nasce uma paixão, no entanto, o caçador parte da
aldeia, deixando Mariamar sem qualquer notícia ou explicação.
Arcanjo Baleiro aconteceu-me há dezasseis anos. Eu
tinha igualmente dezasseis anos quando ele se
cruzou comigo. Não passava de uma menina, mas os
meus sonhos tinham envelhecido, mais do que o meu
corpo[...] Os abusos de Maliqueto eram por demais
conhecidos. Naquele momento o seu turvo olhar
apenas confirmava as suas malévolas intenções. A luz
faltou-me, as pernas fraquejaram-me. O cano da
espingarda encostada nas minhas costas não me
autorizava demoras.[...] Foi então que surgiu Arcanjo
Baleiro, como um cavaleiro nascido do nada. Parou à
minha frente, montado numa motocicleta, imperador
soberbo e soberano mandador do mundo. O polícia
enfrentou o intruso, medindo-o dos pés à cabeça.
Após um ponderado silêncio, decidiu retirar-se. (p.28)
E quando, há dezasseis anos, me encantei
pelo caçador, essa paixão não era mais que
uma súplica. Eu apenas pedia socorro, em
silêncio rogava que ele me salvasse dessa
doença. Como antes a escrita me tinha
salvado da loucura. Os livros entregavam-me
vozes como se fossem sombras em pleno
deserto. (p.47)
O Enredo:

Já no tempo presente da narrativa, com o retorno do


caçador, Mariamar é proibida de sair de sua casa.
Enclausurada, passa a relatar suas memórias nos escritos
da versão de Mariamar. A paralisia das pernas na
adolescência, as histórias do avô Adjiru, a permanência na
missão católica e os constantes acessos psicopatológicos
são as principais substâncias desses depoimentos.
Na noite anterior, em nossa casa a ordem tinha sido
ditada: as mulheres permaneceriam enclausuradas,
longe dos que iriam chegar. Mais uma vez nós
éramos excluídas, apartadas, apagadas. (p.24)
O Enredo:
As divagações de ambos os narradores surgem como forma de tentar
entender a morte e à insanidade. Para Baleiro o morto ainda é parte
integrante da vida social, interfere nas regras dos vivos, a loucura sim,
seria a verdadeira morte do sujeito social:
Luzilia tem razão: a minha loucura começou no dia em que
um tiro rasgou o meu sono e descobri meu pai, na sala,
esgravatando no seu próprio sangue. Antes de ficar órfão,
tudo em mim estava intacto: a casa, o tempo, o céu onde
me diziam que a minha mãe andava guardando as estrelas.
De repente, porém, olhei a Vida e assustei-me: era tão
infinita e eu tão pequeno e tão só. Subitamente, pisei a
Terra e encolhi-me: tão poucos eram os meus pés. De
repente, não havia senão o passado: a morte era uma lagoa
mais escura e mais lenta que o firmamento. A mãe estava
na outra margem, escrevendo cartas, e o meu pai nadava
sem nunca atravessar o infinito lago. [...] A loucura não era
uma simples enfermidade, mas uma condenação de família.
E só a caça me salvava desse doentio destino. (p. 19, 21)
O Enredo:
No caso de Mariamar, a relação entre vida social e morte ganha
outros sentidos. A moça vê a si mesma como alguém que nunca
nasceu. Nascida já morta, desumanizada e desencontrada do
meio social, persegue a sua própria humanidade
reincidentemente negada por todos.
Compenetro-me, então, do absurdo da minha condição:
eu, que nunca levantara a voz, gritava agora por quem
não pode escutar. Têm razão os que me acusam: estou
louca, perdi o mando em mim. E desabo em pranto, como
se estivesse reparando o quanto não chorei quando
nasci. Adjiru tinha razão: tristeza não é chorar. Tristeza é
não ter para quem chorar.(p. 31,32)
No dia seguinte, o veneno tinha produzido efeito. Eu tinha
sido convertida num corpo sem alma. Peçonhenta seiva,
em vez de sangue: era o que nas veias me restava. (p.
100)
O Enredo:
A condição de nascida morta não é exclusiva da protagonista.
Constrói-se no romance o apagamento da existência feminina: a
mulher, seja na realidade tradicional ou no contexto do
assimilado, sofre a subjugação por meio da exploração, da
agressão física e psíquica e da anulação do direito à voz. A mãe
de Arcanjo Baleiro é submetida a kusungabanga:
No momento não entendi. Mas depois Luzilia explica: na
língua de Manica, o termo kusungabanga significa «
fechar à faca» . Antes de emigrar para trabalhar há
homens que costuram a vagina da mulher com agulha e
linha. Muitas mulheres contraem infeções. No caso de
Martina Baleiro, essa infeção foi fatal. — Rolando sabia.
Foi por isso que matou o pai. Não foi um acidente. Ele
vingou a morte da mãe.(p.108)
O Enredo:
A narradora e suas irmãs são abusadas sexualmente pelo pai:
O crime foi outro: durante anos, meu pai, Genito Mpepe,
abusou das filhas. Primeiro aconteceu com Silência.
Minha irmã sofreu calada, sem partilhar esse terrível
segredo. Assim que me despontaram os seios, fui eu a
vítima. Ao fim das tardes, Genito migrava de si mesmo
por via da lipa, a aguardente de palmeira. Já bem bebido,
entrava no nosso quarto e o pesadelo começava. O
inacreditável era que, no momento da violação, eu me
exilava de mim, incapaz de ser aquela que ali estava, por
baixo do corpo suado do meu pai. Um estranho processo
me fazia esquecer, no instante seguinte, o que acabara
de sofrer. Essa súbita amnésia tinha uma intenção: eu
evitava ficar órfã. Tudo aquilo, afinal, sucedia sem chegar
nunca a acontecer: Genito Mpepe desertava para uma
outra existência e eu me convertia numa outra criatura,
inacessível, inexistente.
O Enredo:
Hanifa Assulua, minha mãe, sempre fez de conta que nada
sabia. Que era invenção dos vizinhos, delírio de quem queria
esconder as suas próprias mazelas. Quando as evidências a
esmagaram, mandou-me chamar para, voz tremente, me
perguntar:
— É verdade?
Não respondi, olhos presos no chão. O meu silêncio foi, para
ela, a confirmação.
— Maldita!
Sem qualquer reação, fitei-a saltando sobre mim, agredindo-me
com socos e pontapés, insultando-me na sua língua materna. O
que ela dizia, entre babas e cuspos, era que a culpa era minha.
Toda a culpa apenas minha. Bem que Silência já a tinha
alertado: era eu que provocava o seu homem. Não se referia a
Genito como « o meu pai» . Ele era, agora, « o seu homem» .
— Vai para fora desta casa. Nunca mais a quero aqui. (p. 99)
O Enredo:
Tandi, empregada do administrador da província, é violentada e
morta pelos homens da aldeia por cruzar uma região proibida às
mulheres. Todas são impedidas de frequentar a shitala, local de
encontro dos homens na comunidade. Contudo, a primeira dama
da província, Naftalinda, aparece então como a voz que
confrontará esta realidade, denunciando em alto tom o crime
cometido pelos homens e demonstrando publicamente que se
opõe às regras de submissão impostas à mulher.
Os que mataram Tandi, a minha empregada. Eram doze.
Alguns desses estavam aqui dançando à vossa frente.
— Mataram-na?
— Mataram a alma dela, ficou só o corpo. Um corpo
ferido, uma réstia de pessoa. (p.79).
O Enredo:
Relatou o que sucedera: inadvertidamente a empregada
atravessou o mvera, o acampamento dos ritos de
iniciação para rapazes. O lugar é sagrado e é
expressamente proibido a uma mulher cruzar aquele
território. Tandi desobedeceu e foi punida: todos os
homens abusaram dela. Todos se serviram dela. A moça
foi conduzida ao posto de saúde local, mas o enfermeiro
não aceitou tratar dela. Tinha medo de retaliação. As
autoridades distritais receberam queixa, nada fizeram.
Quem, em Kulumani, tem coragem de se erguer contra a
tradição?
— O meu marido ficou calado. Mesmo quando o ameacei
ele nada fez…
Não sei o que responder. Dona Naftalinda ergue-se e olha
o caminho tomado pelos caçadores. Sem parar de atiçar
o lume, murmura:
— Não sei o que eles vão procurar pelo mato. Esse leão
está dentro da aldeia. (p. 80)
O Enredo:

Já no caso da morte, esta possui um lugar significativo na


memória das personagens. Os habitantes de Kulumani, ao
serem interrogados sobre os eventos da guerra, mantinham
silêncio. Arcanjo Baleiro esclarece o mutismo:
“Nenhuma guerra se relata. Onde há sangue, não
há palavra. O escritor está a pedir aos mortos
que mostrem as cicatrizes”. (p. 58).
Todas as personagens do romance, tanto as originárias da
aldeia como as da cidade, possuem a cicatriz comum da
colonização e da guerra em suas memórias.
A Confissão de Adjiru Kapitomoro:
Talvez você, minha neta, acredite não ser pessoa. Há visões que a
assaltam, há delírios que para sempre a perseguirão. Mas não
acredite nessas vozes. Foi a vida que lhe roubou humanidade:
tanto a trataram como um bicho que você se pensou um animal.
Mas você é mulher, Mariamar. Uma mulher de alma e corpo. E
mais do que isso: você, Mariamar, pode ser mãe. Fui eu que
inventei que você era uma mulher seca, infértil. Inventei essa
falsidade para que nenhum homem de Kulumani se interessasse
por si. Estaria assim solteira, disponível para sair e criar novas
raízes longe daqui, livre para ter filhos com alguém que a tratasse
como mulher. Esse homem você já encontrou. Esse homem
voltou. Eu mesmo o chamei de novo a Kulumani. Como é que o
chamei? Ora como é que se convoca um caçador? Fabriquei
leões, e a fama desses leões estendeu-se a toda a nação. Esse é
o meu segredo: não sou, como pensavam, um escultor de
máscaras. Sou um fazedor de leões. Não porque seja um feiticeiro,
mas porque, desde que morri, eu
sou um deus. E é por isso que sei das mentiras do passado e das
ilusões do futuro. Não tarda que você, minha neta, seja de novo a
minha Mariamar Mpepe. Longe de Kulumani, longe do passado,
longe do medo. Longe de si mesma. (p. 124-125)
A Confissão de Mariamar:
Não dissera nada. Quando tento repetir, mais claro, confirmo
que, mais uma vez, havia perdido a habilidade de falar. Desta
vez, porém, é diferente: daqui em diante não haverá mais
palavra. Esta é a minha derradeira voz, estes são os últimos
papéis. E aqui deixo escrito com sangue de bicho e lágrima de
mulher: fui eu que matei essas mulheres, uma por uma. Sou eu
a vingativa leoa. A minha jura permanecerá sem pausa nem
cansaço: eliminarei todas as remanescentes mulheres que
houver, até que, neste cansado mundo, restem apenas
homens, um deserto de machos solitários. Sem mulheres, sem
filhos, acabará assim a raça humana. Um fósforo devorado pelo
fogo, assim vejo o futuro. O céu seguirá o exemplo da
humanidade: definhará tão infértil quanto eu. E nenhum rio
receberá em suas margens os defuntos corpos de crianças.
Porque não haverá mais quem nasça. Até que os deuses
voltem a ser mulheres, ninguém mais nascerá sob a luz do Sol.
Esta noite partirei com os leões. A partir de hoje as aldeias
estremecerão com o meu rouco lamento e as corujas, com
medo, converter-se-ão em aves diurnas. (p. 126)
A Confissão de Mariamar:
Este vaticínio será, para os de Kulumani, uma confirmação do meu
estado de loucura. Que fiquei assim por tanto me distanciar dos
meus deuses, esses que trazem nuvens e as fazem derramar em
chuvas. Que me fugiu a razão por ter virado costas às tradições e
aos antepassados que guardam o sossego da nossa aldeia. Mas
eu não obedeço senão ao destino: vou juntar-me à minha outra
alma. E nunca mais me pesará culpa como sucedeu da primeira
vez que matei alguém. Nessa altura, eu era ainda demasiado
pessoa. Sofria dessa humana doença chamada consciência. Agora
já não há remorso. Porque, a bem ver, nunca cheguei a matar
ninguém. Todas essas mulheres já estavam mortas. Não falavam,
não pensavam, não amavam, não sonhavam. De que valia
viverem se não podiam ser felizes? Pela mesma razão, anos
antes, matei as minhas pequenas irmãs. Fui eu que afoguei as
gémeas. Todos pensam que foi um acidente no barco, mas fui eu
que sabotei a embarcação e que a lancei vogando sobre as ondas
do mar. Foi melhor que essas meninas nunca tivessem crescido.
Porque elas só se sentiriam vivas na dor, no sangue, na lágrima.
Até que, um dia, de joelhos, pediriam perdão aos seus próprios
carrascos. Como eu fiz, todos estes anos, com Genito Mpepe. (p.
126)
A Confissão de Mariamar:
Fui eu que conduzi Silência até à boca da morte, naquela
fatal madrugada. Ela era minha irmã, minha amiga. Mais
do que isso, ela era a minha outra pessoa. Da parte dela,
porém, os ciúmes eram um obstáculo fundo. Silência
sempre quis ser eu, viver o que eu vivia, amar quem eu
amava. A minha irmã sempre se apropriou dos meus
sonhos. Foi assim com o caçador Baleiro. Logo me
arrependi de lhe ter contado os meus encontros com o
visitante. Porque ela me acusou de inverter a situação,
como se aquela história pertencesse a ela. No fundo, era
o ciúme que a torturava. Porque ela não tinha alma para,
em si, inventar uma outra vida. Estava morta pelo medo.
Por isso, quando terminou de
viver já não houve falecimento.(p. 126, 127)
A Confissão de Mariamar:
Chego ao fim. Todo o fim é um início, dizia Adjiru
Kapitamoro. Mas não este final. Este é o desfecho
de tudo, o desabar dos últimos céus. Só um desejo
não cumpri: voltar a ver o mar. Talvez por isso, ao
sentir-me adormecer, no meu último humano sono,
me invada o mesmo sonho. O mar espraiando-se,
aves de espuma cruzando os ares, e Arcanjo Baleiro,
desta vez, ressuscitando do sono dos afogados e
conduzindo-me para longe de Kulumani, para esse
lugar onde moram as miragens e nascem as
viagens.(p. 127)
Referências:
• CARMO XANTHOPULO, Igor Fernando. Resenha: A confissão da leoa
de Mia Couto. Revista Pazes. Disponível em:
http://www.revistapazes.com/resenha-confissao-da-leoa-de-mia-couto/.
Acessado em:18/12/2017.
• CAZES, Leonardo. Mia Couto fala sobre 'A confissão da leoa. Entrevista
realizada em 10/11/2012. Disponível em:
http://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/mia-couto-fala-sobre-confissao-
da-leoa-474310.html. Acessado em: 17/10/2017.
• http://www.miacouto.org/biografia-bibliografia-e-premiacoes/. Acessado
em: 08/12/2017
• COUTO, Mia, A Confissão da Leoa. Companhia das Letras, Versão em
PDF.
• DESCHAIN, Lucas. Resenha, A Confissão da Leoa. Disponível em:
http://www.posfacio.com.br/2013/02/25/a-confissao-da-leoa-mia-couto/.
Acessado em: 16/10/2017.

Você também pode gostar