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Carlos Drummond de Andrade: Poeta do finito e da

matéria
“Literariamente Drummond construiu um tipo que se
imbrica numa tradição cada vez mais rica: a do personagem
gauche.. [...] Os três atos do drama existencial do gauche
poderiam ser resumidos como três momentos inseparáveis
de sua trajetória:
Eu maior que o Mundo
Eu menor que o Mundo
Eu igual ao Mundo.”
Affonso Romano de Sant’Anna.
Drummond: o gauche no tempo.
“Na verdade, porém, as coisas não são bem assim, e essa
oposição radical nunca existiu. [...] No seu percurso histórico,
o que veio depois tem tudo a ver com o que se anunciou
antes e representa um desenvolvimento interno coerente da
obra como um todo [...]. A fidelidade a si mesmo é traço
fundamental de Drummond”.
Davi Arrigucci Jr.
Coração partido – Uma análise da poesia reflexiva.
RETRATO de Carlos Drummond de Andrade. Portinari, 1922.
E agora, José? E agora, José? Se você gritasse,
Sua doce palavra, se você gemesse,
Está sem mulher, seu instante de se você tocasse
está sem discurso, febre, a valsa vienense,
E agora, José? está sem carinho, sua gula e jejum, se você dormisse,
A festa acabou, já não pode beber, sua biblioteca, se você cansasse,
a luz apagou, já não pode fumar, sua lavra de ouro, se você morresse...
o povo sumiu, cuspir já não pode, seu terno de vidro, Mas você não morre,
a noite esfriou, a noite esfriou, sua incoerência, você é duro, José!
e agora, José? o dia não veio, seu ódio — e agora?
e agora, você? o bonde não veio, Com a chave na mão Sozinho no escuro
você que é sem o riso não veio quer abrir a porta, qual bicho-do-mato,
nome, não veio a utopia não existe porta; sem teogonia,
que zomba dos e tudo acabou quer morrer no mar, sem parede nua
outros, e tudo fugiu mas o mar secou; para se encostar,
você que faz versos, e tudo mofou, quer ir para Minas, sem cavalo preto
que ama, protesta? e agora, José? Minas não há mais. que fuja a galope,
E agora, José? José, e agora? você marcha, José!
Carlos Drummond de Andrade. Do livro José [1942]. José, para onde?
“Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me
chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: ‘E
agora?' Foram aquelas horas em que o mundo escureceu,
em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em
que as mãos ficaram vazias e atônitas. ‘E agora, José?'”
SARAMAGO, José. A bagagem do viajante: crônicas.
3. ed. Lisboa: Caminho, 1986. p. 35. (Fragmento).

O exercício incansável da reflexão


Uma das forças criadoras da obra de Drummond é a expressão
lírica de suas reflexões. Em sua poesia reflexiva Drummond
define-se por perseguir algumas questões fundamentais para o
poeta: que “coisa” é o ser humano? O que significa fazer parte
da humanidade? Como combater as injustiças do presente?

Drummond em caricatura de Cássi Loredano, s.d.


A flor e a náusea
Olhos sujos no relógio da torre:
Preso à minha classe e a algumas roupas, Não, o tempo não chegou de completa
[vou de branco pela rua cinzenta. justiça.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me. O tempo é ainda de fezes, maus poemas,
Devo seguir até o enjôo? [alucinações e
Posso, sem armas, revoltar-me? espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
Vomitar este
fundem-se notédio
mesmosobre a cidade.
impasse.
Quarenta anos e nenhum problema
Em vão me tento explicar, os muros são surdos. resolvido, sequer colocado.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos. Nenhuma carta escrita nem recebida.
O sol consola os doentes e não os renova. Todos os homens voltam para casa.
As coisas. Que tristes são as coisas, Estão menos livres mas levam jornais
[consideradas sem ênfase. e soletram o mundo, sabendo que o perde
[...]

Carlos Drummond de Andrade. A rosa do povo [1945].


Uma flor nasceu na rua!
A flor e a náusea Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
[...] Uma flor ainda desbotada
Crimes da terra, como perdoá-los?
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Tomei parte em muitos, outros escondi.Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
Alguns achei belos, foram publicados. garanto que uma flor nasceu.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Sua cor não se percebe.
Os ferozes padeiros do mal.
Suas pétalas não se abrem.
Os ferozes leiteiros do mal. Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.


Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da ta
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Com ele me salvo
Pequenos pontos brancos movem-se no mar,
e dou a poucos uma esperança mínima.
[galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o
Um inseto cava
cava sem alarme Áporo
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,


em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto


(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

Leitura do Prof. Davi Arrigucci Jr.


Nossa mãe, o que é aquele Era uma dona de longe, me pediu que lhe pedisse,
vestido, naquele prego? vosso pai enamorou-se. a essa dona tão perversa,
Minhas filhas, é o vestido E ficou tão transtornado, que tivesse paciência
de uma dona que passou. se perdeu tanto de nós, e fosse dormir com ele...
Passou quando, nossa mãe? se afastou de toda vida, Nossa mãe, por que chorais?
Era nossa conhecida? se fechou, se devorou, Nosso lenço vos cedemos.
Caso do vestido

Minhas filhas, boca presa. chorou no prato de carne, Minhas filhas, vosso pai
Vosso pai evém chegando. bebeu, brigou, me bateu, chega ao pátio. Disfarcemos
Nossa mãe, dizei depressa me deixou com vosso berço, Nossa mãe, não escutamos
que vestido é esse vestido. foi para a dona de longe, pisar de pé no degrau.
Minhas filhas, mas o corpo mas a dona não ligou. Minhas filhas, procurei
ficou frio e não o veste. Em vão o pai implorou. aquele mulher do demo.
O vestido, nesse prego, Dava apólice, fazenda, E lhe roguei que aplacasse
está morto, sossegado. dava carro, dava ouro, de meu marido a vontade.
Nossa mãe, esse vestido beberia seu sobejo, Eu não amo teu marido,
tanta renda, esse segredo! lamberia seu sapato. me falou ela se rindo.
Minhas filhas, escutai Mas a dona nem ligou. Mas posso ficar com ele
palavras de minha boca. Então vosso pai, irado, se a senhora fizer gosto, [...]
[...] só pra lhe satisfazer, visitei vossos parentes, Dona, me disse baixinho,
não por mim, não quero homem.não comia, não falava, não te dou vosso marido,
Olhei pra vosso pai, tive uma terçã, que não sei onde ele anda.
os olhos dele pediam. mas a morte não chegava. mas te dou este vestido,
Olhei para a dona ruim, Fiquei fora de perigo, última peça de luxo
os olhos dela gozavam. Fiquei de cabeça branca, que guardei como lembrança
O seu vestido de renda, perdi meus dentes, meus olhos,
daquele dia de cobra,
Caso do vestido

de colo mui devassado, costurei, lavei, fiz doce, de maior humilhação.


mais mostrava que escondia minhas mãos se escalavraram,Eu não tinha amor por ele,
As partes da pecadora. meus anéis se dispersaram, ao depois amor pegou.
Eu fiz meu pelo-sinal, minha corrente de ouro Mas então ele enjoado
me curvei... disse que sim. pagou conta de farmácia. confessou que só gostava
Saí pensando na morte, Vosso pai sumiu no mundo. de mim como eu era dantes.
mas a morte não chegava. O mundo é grande e é pequeno
Me joguei a suas plantas,
Andei pelas cinco ruas, Um dia a dona soberba fiz toda sorte de dengo,
Passei ponte, passei rio, me aparece já sem nada, no chão rocei minha cara,
visitei vossos parentes, pobre, desfeita, mofina, me puxei pelos cabelos,
não comia, não falava, com sua trouxa na mão. me lancei na correnteza, [...]
quede aquela cinturinha comia meio de lado
Caso do vestido delgada como jeitosa? e nem estava mais velho.
[...] me cortei de canivete, quede pezinho calçados
me atirei no sumidouro, O barulho da comida
com sandálias de cetim?
na boca, me acalentava,
bebi fel e gasolina, Olhei muito para ela,
rezei duzentas novenas, me dava uma grande paz,
boca não disse palavra.
um sentimento esquisito
dona, de nada valeu: Peguei o vestido, pus
vosso marido sumiu. de que tudo foi um sonho,
nesse prego da parede.
Vestido não há... nem nada.
Aqui trago minha roupa Ela se foi de mansinho
que recorda meu malfeito e já na ponta da estrada Minha filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.
de ofender dona casada vosso pai aparecia.
pisando no seu orgulho. Carlos Drummond de Andrade.
Olhou pra mim em silêncio, A rosa do povo [1945].
Recebei esse vestido mal reparou no vestido
e me dai vosso perdão. e disse apenas: Mulher,
Olhei para a cara dela, põe mais um prato na mesa.
quede os olhos cintilantes? Eu fiz, ele se assentou,
quede graça de sorriso, comeu, limpou o suor,
quede colo de camélia?
Fabrico um elefante
Eis meu pobre elefante
de meus poucos
pronto para sair
recursos.
à procura de amigos
Um tanto de madeira
num mundo enfastiado
tirado a velhos móveis
que já não crê nos
talvez lhe dê apoio.
bichos
E o encho de algodão,
e duvida das coisas.
de paina, de doçura.
Ei-lo, massa imponente
A cola vai fixar
e frágil, que se abana
Suas orelhas pensas.
O elefante

e move lentamente
A tromba se enovela,
a pele costurada
é a parte mais feliz
onde há flores de pano
de sua arquitetura.
e nuvens, alusões
Mas há também as
a um mundo mais
presas,
poético
dessa matéria pura
onde o amor reagrupa
que não sei figurar.
as formas naturais.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
Vai o meu elefante
sem perda ou corrupção.
pela rua povoada,
E há por fim os olhos,
mas não o querem ver
onde se deposita
nem mesmo para rir
a parte do elefante
da cauda que ameaça
Mas faminto de seres E já tarde da noite
O elefante e situações patéticas, volta meu elefante,
de encontros ao luar mas volta fatigado,
no mais profundo oceano, as patas vacilantes
Carlos Drummond de Andrade. sob a raiz das árvores se desmancham no pó.
A rosa do povo [1945]. ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam Ele não encontrou
e brilham através
[...] É todo graça, o de que carecia,
dos troncos mais espessos,
embora o de que carecemos,
esse passo que vai
as pernas não ajudem sem esmagar as plantas eu e meu elefante,
e seu ventre balofo no campo de batalha, em que amo disfarçar-me.
se arrisque a desabar à procura de sítios, Exausto de pesquisa,
ao mais leve empurrão. segredos, episódios caiu-lhe o vasto engenho
Mostra com elegância não contados em livro, como simples papel.
sua mínima vida, de que apenas o vento, A cola se dissolve
e não há na cidade as folhas, a formiga e todo o seu conteúdo
alma que se disponha reconhecem o talhe, de perdão, de carícia,
a recolher em si mas que os homens de pluma, de algodão,
desse corpo sensível ignoram, jorra sobre o tapete,
a fugitiva imagem, pois só ousam mostrar-se qual mito desmontado.
o passo desastrado sob a paz das cortinas Amanhã recomeço.
mas faminto e tocante. à pálpebra cerrada.
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo. Morte do leiteiro
Há muita sede no país,
Na mão a garrafa branca avancemos por esse beco,
é preciso entregá-lo cedo.
não tem tempo de dizer peguemos o corredor,
Há no país uma legenda,
as coisas que lhe atribuo depositemos o litro…
que ladrão se mata com tiro.
nem o moço leiteiro ignaro. Sem fazer barulho, é claro,
morador na Rua Namur, que barulho nada resolve.
Então o moço que é leiteiro
empregado no entreposto
de madrugada com sua lata
Com 21 anos de idade, Meu leiteiro tão sutil
sai correndo e distribuindo
sabe lá o que seja impulso de passo maneiro e leve,
leite bom para gente ruim.
de humana compreensão. antes desliza que marcha.
Sua lata, suas garrafas
E já que tem pressa, o corpo É certo que algum rumor
e seus sapatos de borracha
vai deixando à beira das casas sempre se faz: passo errado,
vão dizendo aos homens no
uma pequena mercadoria. vaso de flor no caminho,
sono
cão latindo por princípio,
que alguém acordou cedinho
E como a porta dos fundos ou um gato quizilento.
e veio do último subúrbio
também escondesse gente E há sempre um senhor
trazer o leite mais frio
que aspira ao pouco de leite [que acorda,
e mais alvo da melhor vaca
disponível em nosso tempo, resmunga e torna a dormir.
para todos criarem força
Morte do leiteiro
Mas o homem perdeu o sono Da garrafa estilhaçada.
de todo, e foge pra rua. no ladrilho já sereno
Mas este entrou em pânico Meu Deus, matei um inocente. escorre uma coisa espessa
(ladrões infestam o bairro), Bala que mata gatuno que é leite, sangue… não
não quis saber de mais também serve pra furtar sei
nada. a vida de nosso irmão. Por entre objetos
O revólver da gaveta Quem quiser que chame confusos,
saltou para sua mão. médico, mal redimidos da noite,
polícia não bota a mão duas cores se procuram,
Ladrão? se pega com tiro. neste filho de meu pai. suavemente se tocam,
Os tiros na madrugada amorosamente se
liquidaram meu leiteiro. Está salva a propriedade. enlaçam,
Se era noivo, se era A noite geral prossegue, formando um terceiro tom
virgem, a manhã custa a chegar, a que chamamos aurora.
se era alegre, se era bom, mas o leiteiro
não sei, estatelado, ao relento,
Carlos Drummond de Andrade.
é tarde para saber. perdeu a pressa que tinha. A rosa do povo [1945].
Pedra por pedra reconstruiremos a cidade. Telegrama de Moscou
Casa e mais casa se cobrirá o chão.
Rua e mais rua o trânsito ressurgirá.
Começaremos pela estação da estrada de
ferro
e pela usina de energia elétrica.
Outros homens, em outras casas,
continuarão a mesma certeza.
Sobrarão apenas algumas árvores
com cicatrizes, como soldados.
A neve baixou, cobrindo as feridas.
O vento varreu a dura lembrança.
Mas o assombro, a fábula
gravam no ar o fantasma da antiga cidade
que penetrará o corpo da nova.
Aqui se chamava
e se chamará sempre Stalingrado.
-Carlos
Stalingrado, o tempo
Drummond de responde.
Andrade. A rosa do povo [1945].
Passagem da noite
É noite. Sinto que é noite Mas salve, olhar de alegria!
não porque a sombra E salve, dia que surge!
descesse Os corpos saltam do sono,
(bem me importa a face o mundo se recompõe.
negra) Que gozo na bicicleta!
mas porque dentro de mim, Existir: seja como for.
no fundo de mim, o grito A fraterna entrega do pão.
se calou, fez-se desânimo. Amar: mesmo nas canções.
Sinto que nós somos noite, De novo andar: as distâncias,
que palpitamos no escuro as cores, posse das ruas.
e em noite nos dissolvemos. Tudo que à noite perdemos
Sinto que é noite no vento, se nos confia outra vez.
noite nas águas, na pedra. Obrigado, coisas fiéis!
E que adianta uma Saber que ainda há florestas,
lâmpada? sinos, palavras; que a terra
E que adianta uma voz? prossegue seu giro, e o tempo
É noite no meu amigo. não murchou; não nos diluímos.
É noite no submarino. Chupar o gosto do dia!
É noite na roça grande. Clara manhã, obrigado,
É noite, não é morte, é noite o essencial é viver!
Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos — e perde-se
a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca montanha,
e que secura e que reentrâncias e que
impossibilidade de se organizarem em formas calmas,
permanentes e necessárias. Têm, talvez,
certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido
vazio interior que os torna tão pobres e carecidos Um boi vê os homens
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.
A ingaia ciência
A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela,

a madureza vê, posto que a venda


interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.

A madureza sabe o preço exato


dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência

e nem contra si mesma. O agudo olfato,


o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.

Carlos Drummond de Andrade. Claro Enigma [1951].


Oficina irritada
Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
Seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,


não desperte em ninguém nenhum
prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro


há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,


cão mijando no caos, enquanto
Leitura do poeta Paulo Henriques Brito.
A máquina do mundo
E como eu palmilhasse vagamente toda uma realidade que transcende
uma estrada de Minas, pedregosa, a própria imagem sua debuxada
e no fecho da tarde um sino rouco no rosto do mistério, nos abismos.
se misturasse ao som de meus sapatos Abriu-se em calma pura, e convidando
que era pausado e seco; e aves quantos sentidos e intuições restavam
pairassem a quem de os ter usado os já perdera
no céu de chumbo, e suas formas
e nem desejaria recobrá-los,
pretas
se em vão e para sempre repetimos
lentamente se fossem diluindo os mesmos sem roteiro tristes périplos,
na escuridão maior, vinda dos montes
convidando-os a todos, em coorte,
e de meu próprio ser desenganado,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
a máquina do mundo se entreabriu da natureza mítica das coisas,
para quem de a romper já se esquivava
assim me disse, embora voz alguma
e só de o ter pensado se carpia.
ou sopro ou eco ou simples percussão
Abriu-se majestosa e circunspecta, atestasse que alguém, sobre a montanha,
sem emitir um som que fosse impuro
a outro alguém, noturno e miserável,
nem um clarão maior que o tolerável
em colóquio se estava dirigindo:
pelas pupilas gastas na inspeção “O que procuraste em ti ou fora de [...].
A máquina do mundo
[...] teu ser restrito e nunca se mostrou, e tudo que define o ser terrestre
mesmo afetando dar-se ou se ou se prolonga até nos animais
rendendo, e chega às plantas para se embeber
e a cada instante mais se retraindo,
no sono rancoroso dos minérios,
olha, repara, ausculta: essa riqueza dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
sobrante a toda pérola, essa ciência na estranha ordem geométrica de tudo,
sublime e formidável, mas hermética,
e o absurdo original e seus enigmas,
essa total explicação da vida, suas verdades altas mais que todos
esse nexo primeiro e singular, monumentos erguidos à verdade:
que nem concebes mais, pois tão
e a memória dos deuses, e o solene
esquivo
sentimento de morte, que floresce
se revelou ante a pesquisa ardente no caule da existência mais gloriosa,
em que te consumiste… vê, contempla,
tudo se apresentou nesse relance
abre teu peito para agasalhá-lo.”
e me chamou para seu reino augusto,
As mais soberbas pontes e edifícios, afinal submetido à vista humana.
o que nas oficinas se elabora,
Mas, como eu relutasse em responder
o que pensado foi e logo atinge
a tal apelo assim maravilhoso,
distância superior ao pensamento, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
A máquina do mundo
a esperança mais mínima — esse anelo A treva mais estrita já pousara
de ver desvanecida a treva espessa sobre a estrada de Minas, pedregosa,
que entre os raios do sol inda se filtra; e a máquina do mundo, repelida,
como defuntas crenças convocadas se foi miudamente recompondo,
presto e fremente não se produzissem enquanto eu, avaliando o que perdera,
a de novo tingir a neutra face seguia vagaroso, de mãos pensas.
que vou pelos caminhos
demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta Carlos Drummond de Andrade. Claro Enigma [1951].

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