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Intelecção e Realidade em Tomás de

Aquino: a teoria da abstração


ANTONIO JANUNZI NETO
STATUS QUAESTIONIS:

A querela dos universais e a solução oferecida pela abstração estão dentro de uma quadro geral de análises
filosóficas sobre uma questão central que perpassa todas a história da filosofia ao investigar um dos
principais problemas epistemológicos até nosso período hodierno: a relação cognitiva entre sujeito e objeto.
Esta relação se torna um genuíno problema filosófico porque, por ponto de partida, há uma diferença nos
modos de ser sujeito e objeto. Por isso, explicar essa relação já é assumir uma postura filosófica específica
(realismo, idealismo, nominalismo, relativismo). Já no período pré-socrático encontramos o materialismo de
Demócrito no qual a relação entre sujeito e objeto é explicada por causalidade material. Platão inaugura a
tradição da forma como resolutiva da referida relação. Assim, o sujeito conhece o objeto por ambos se
identificarem pela forma constituinte de cada um – é neste contexto que se deve entender o adágio “o
semelhante conhece o semelhante”. Aristóteles oferece inúmeras referências à questão universais e, como
veremos, é o tradicional ponto de partida dos medievais para o tratamento do problema no qual a solução
abstrativa de Tomás de Aquino terá sentido e lugar teórico. A herança medieval relegada à tradição moderna
assumirá significativa relevância em Descartes com a função representativa das ideias do Cogito em relação
à res extensa, inaugurando assim uma longínqua esteira interpretativa sobre o binômio epistemológico
sujeito/objeto.” Dado o exposto, surge uma questão passível de exposição de análise: a teoria da abstração do
Aquinate possui relevância filosófica nos dias atuais ou retomá-la é um exercício de arqueologia do
pensamento?
A QUERELA DOS UNIVERSAIS NA IDADE MÉDIA:

“Antes de mais, no que tange aos gêneros e às espécies, acerca da questão de


saber (a) se são realidades subsistentes em si mesmas ou se consistem
apenas em (b) simples conceitos mentais ou, admitindo que sejam
realidades subsistentes, se são corpóreas ou incorpóreas e, (c) neste último
caso, se são separadas, ou se existem nas coisas sensíveis e delas
dependem, eu evitarei falar, porque tais questões representam uma pesquisa
mais profunda e exigem uma outra investigação mais ampla.”

PORFÍRIO, ISAGOGE.
DERIVARAM-SE DAS QUESTÕES DE PORFÍRIO 3 SOLUÇÕES:

1 – “Hiper-realismo” (Platão, Platonismo): os universais possuem existência


per se, isto é, são instâncias de ser independentes das coisas materiais;

2 – “Nominalismo” (Abelardo, Ockham): os universais são meros conteúdos


mentais produzidos pelo intelecto;

3 – “Realismo Moderado”: (Tomás de Aquino): os universais existem no


intelecto com fundamento na realidade das coisas materiais.
A SOLUÇÃO TOMASIANA PARA AS QUESTÕES DE PORFÍRIO: A ABSTRAÇÃO

INTRODUÇÃO
- Definição terminológica: “tipo de operação na qual algo é considerado isolando-se outros relacionados”.

- Em Aristóteles:

Metafísica, XI, 3, 1.061 a 28ss:


“O matemático desenvolve sua investigação acerca das noções obtidas por abstração. Ele estuda as coisas prescindindo de
todas as características sensíveis: por exemplo, do peso, e da leveza, da dureza e de seu contrário e, ainda, do quente e do frio
e de todos os outros pares de contrários que exprimem características sensíveis. O matemático só conserva a quantidade e a
continuidade (...) e não considera sob nenhum outro aspecto”.

De Anima, II, 12, 424ª 18:


“O sentido é receptivo das formas sensíveis sem a matéria, assim como a cera recebe o sinal do sinete sem o ferro ou ouro, e
capta o sinal áureo ou férreo, mas não como outro ou ferro.”

De Anima, III, 7, 431ss:


“E as coisas que se dizem por abstração, pensa-se assim – se pensasse o adunco não como adunco, mas em separado e como
côncavo, alguém pensaria em ato sem a carne na qual está o côncavo –; e do mesmo modo as entidades matemáticas, não
separadas, quando são pensadas, pensa-se como separadas (...) O intelecto pensa alguns objetos separados, sem serem eles
mesmos separados.”
A SOLUÇÃO TOMASIANA PARA AS QUESTÕES DE PORFÍRIO: A ABSTRAÇÃO
- Em Immanuel Kant:

Crítica da Razão Pura, B 87:

“Numa lógica transcendental, isolamos o entendimento (tal como anteriormente a sensibilidade na estética transcendental) e
destacamos apenas do nosso conhecimento a parte do pensamento que tem origem no entendimento.”

Lógica, IX 11:

“Não podemos pensar ou fazer uso do nosso entendimento exceto de harmonia com certas regras. Mas, mais uma vez,
podemos pensar estas regras por si mesmas, isto é, podemos pensá-las sem a sua aplicação ou in abstracto.”

“Como ciência que se ocupa do pensar em geral, abstraindo dos objetos enquanto matéria do pensamento, a lógica deve
considerar-se como fundamento de todas as outras ciências e como propedêutica de todo o uso do entendimento. E justamente
porque abstrai, de modo pleno, de todos os objetos”.
A SOLUÇÃO TOMASIANA PARA AS QUESTÕES DE PORFÍRIO: A ABSTRAÇÃO

A teoria da abstração em Tomás de Aquino fundamenta-se em 3 textos principais e pode ser reconstruída coma a exposição de
alguns trechos:

A – Suma Teológica I, q. 85, art. 1;

B – O ente e a essência, cap. 2.

C – Comentário ao De Trinitate de Boécio, q. 5, art. 3;


A SOLUÇÃO TOMASIANA PARA AS QUESTÕES DE PORFÍRIO: A ABSTRAÇÃO

A – Suma Teológica I, q. 85, art. 1:

[Utrum] Nosso intelecto conhece as coisas corpóreas e materiais• por meio de abstração das representações
imaginárias?

QUANTO AO PRIMEIRO ARTIGO, ASSIM SE PROCEDE: parece que nosso intelecto não conhece as coisas corpóreas e
materiais por abstração das representações imaginárias.
1. [Praetera] Com efeito, qualquer intelecto que conhece uma coisa diferentemente do que ela é é falso. Ora, as formas das
coisas materiais não são abstraídas das coisas particulares cujas semelhanças são as representações imaginárias. Logo, se
conhecemos as coisas materiais, abstraindo as espécie das representações imaginárias, haverá falsidade no intelecto.
2. [Praetera] Além disso, as coisas materiais são coisas naturais em cuja definição entra a matéria. Ora nada se pode
conhecer sem aquilo que cai em sua definição. Portanto, as coisas materiais não podem ser conhecidas sem a matéria. Mas
a matéria é o princípio de individuação. Logo, as coisas materiais não podem ser conhecidas abstraindo o universal do
particular, o que é abstrair as espécies inteligíveis das representações imaginárias.
3. [Praetera] Ademais, no livro III da Alma se diz que as representações imaginárias estão para a alma intelectual como as
cores estão para a vista. Ora, a visão não se obtém por abstração de algumas espécies das cores, mas pelo fato de as cores
se imprimirem na vista. Logo, conhecer não resulta de uma abstração das representações imaginárias, mas de uma
impressão das representações imaginárias no intelecto.
A SOLUÇÃO TOMASIANA PARA AS QUESTÕES DE PORFÍRIO: A ABSTRAÇÃO

A – Suma Teológica I, q. 85, art. 1:

[Sed Contra] diz o livro III De Anima: "Na medida em que as coisas são separáveis da matéria, elas dizem respeito ao
intelecto" É preciso, pois, que as coisas materiais sejam conhecidas enquanto são abstraídas da matéria e das semelhanças
materiais que são as representações imaginárias”.

[Respondeo] O objeto cognoscível é, como foi dito, proporcionado à potência cognoscitiva. Ora há três graus da potência
cognoscitiva. Uma é ato de um órgão corporal ; é o sentido. Por isso, o objeto de toda potência sensível é a forma conforme
existe em uma matéria corporal. Sendo essa matéria princípio da individuação, toda potência sensível só conhece os
particulares. - Outra potência cognoscitiva não é ato de um órgão corporal e não está unida de nenhuma maneira à matéria
corporal; é o intelecto angélico. Por isso o objeto dessa potência cognoscitiva é a forma subsistente sem a matéria. Embora
conheçam as coisas materiais, não as conhecem senão vendo-as nas imateriais, a saber, em si mesmos ou em Deus. - O
intelecto humano se põe no meio: não é ato de um órgão, mas é uma potência da alma, que é forma do corpo, como ficou
demonstrado. Por isso, é sua propriedade conhecer a forma que existe individualizada em uma matéria corporal, mas não essa
forma enquanto está em tal matéria. Ora, conhecer dessa maneira, é abstrair a forma da matéria individual, que as
representações imaginárias significam. Pode-se, portanto, dizer que nosso intelecto conhece as coisas materiais abstraindo das
representações imaginárias. E mediante as coisas materiais consideradas dessa maneira, chegamos a um conhecimento das
coisas imateriais, enquanto os anjos ao contrário, conhecem as coisas materiais pelas imateriais.
Platão atento só à imaterialidade do intelecto humano, e não à sua união com o corpo, afirmou as ideias separadas como objeto
do intelecto, que conhecemos não abstraindo, mas antes participando do que se abstraiu.
A SOLUÇÃO TOMASIANA PARA AS QUESTÕES DE PORFÍRIO: A ABSTRAÇÃO

B – Comentário ao Tratado da Trindade, q.5, a.3


[Quaestio] Parece que a consideração matemática não trata, sem matéria, do que tem ser na matéria. De fato, como a verdade
consiste na adequação do intelecto à coisa, é preciso que haja falsidade sempre que a coisa é considerada diferentemente
do que é. Se, portanto, a matemática considera, sem matéria, as coisas que são na matéria, sua consideração será falsa, e
assim, não será ciência (...).

[Sed Contra] Diz o Filósofo no livro VI da Metafísica: há certas coisas que, embora sejam na matéria, não incluem a matéria
em sua definição; por exemplo, o curvo e nisto difere do arrebitado. Ora, a filosofia deve considerar a respeito de todos os
entes. Portanto, é preciso que haja alguma parte da filosofia que trate do que é deste tipo, e esta é a matemática (...)

[Respondeo] É preciso ver como o intelecto pode abstrair de acordo com sua operação [abstração]. Esta operação visa a
natureza da coisa, quer seja uma coisa completa como um certo todo, quer uma coisa incompleta como um parte ou um
acidente (...). De acordo com a primeira operação, pode abstrair aquilo que, de acordo com a coisa, não é separado (...).
Portanto, quando, a própria natureza comporta uma ordem e dependência em relação a algo de outro, então é certo que
tal natureza não pode ser inteligida sem este outro, assim como o pé não pode ser inteligido sem a intelecção do animal
(parte/todo) porque aquilo a partir do que o pé recebe a noção de pé depende daquilo a partir do que o animal é animal; quer
estejam unidos de modo como a forma (acidental) se une à matéria (acidente/sujeito), como o arrebitado não pode ser
inteligido sem o nariz. Se, no entanto, um não depende do outro de acordo com a sua noção de natureza, então um pode
ser abstraído do outro, assim como a letra pode ser inteligida sem a sílaba, mas não o inverso e o animal sem o pé, mas não o
inverso (...)
A SOLUÇÃO TOMASIANA PARA AS QUESTÕES DE PORFÍRIO: A ABSTRAÇÃO

B – Comentário ao Tratado da Trindade, q.5, a.3

Assim o intelecto distingue um do outro de diferentes maneiras. Esta distinção é chamada de abstração quando aquilo que é
inteligido sem o outro está junto om ele de acordo com a coisa. De fato, não se diz que animal é abstraído da pedra se for
inteligido sem a intelecção da pedra. Só há abstração quando na coisa há união dos dois modos: parte e todo ou forma e
matéria. Há, portanto, uma dupla abstração, uma pela qual a forma é abstraída da matéria (abstração matemática) e a outra
pela qual o todo é abstraído das partes (abstração do todo da parte, abstração do universal a partir do particular).

- Abstração do todo da parte ou do universal a partir do particular:

O todo não pode ser abstraído de quaisquer partes. Há algumas partes das quais a noção de todo depende (o todo ser composto
de tais partes), como a sílaba se porta para com as letras; tais partes, sem as quais o todo não pode ser inteligido, pois entram
na sua definição, são chamadas de partes da espécies e da forma. Portanto, há certas partes que são acidentais ao todo
enquanto tal (...) Assim, ao ente humano que se encontra nele uma alma e um corpo, daí o ente humano não poder ser
inteligido sem estas partes e ser preciso coloca-las em sua definição. No entanto, o dedo, o pé, a mão e outras partes
semelhantes são posteriores à intelecção do ente humano – a determinação essencial do ente humano não depende delas, logo,
pode ser abstraído sem elas. Estas partes que não entram na definição de todo são denominadas de partes da matéria. Todas
as partes indicadas: esta alma, este corpo, esta unha, este osso, são partes da matéria. Assim são partes da essência de Sócrates
e de Platão, não porém de ente humano na medida em que é ente humano. Logo, o ente humano (todo composto de partes da
espécie) pode ser abstraído pelo intelecto de tais partes (partes da matéria). Tal abstração é a do universal em relação ao
particular.

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