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Ouço Talvez por medo
o corpo de que o mel desabe
da Primavera. e o tempo tenha de acolher-se,
abrasado de cio,
Na brisa na delícia e destreza
segura macias flores. de uma ingenuidade em absoluto
Dir-se-ia o delicioso rubor efémera.
dos seios. De que as rosas
Não sei se surgindo breve
da vergonha percam o engano e o frescor
de alguns botões ainda da voz.
por abrir.
Terno enredo Deixemo-lo, pois, entregue
o de escutá-lo no sobressalto e despontar ao claro som e asseio
do sexo: sentado do seu respirar.
conserva os joelhos apertados
contra o queixo,
furtando-o
a invisíveis e furiosas
abelhas.
 
 

x 
@ @
No campo; eu acho nele a musa que me anima: E perguntavas sobre os últimos inventos
A claridade, a robustez, a acção. Agrícolas. Que aldeias tão lavadas!
Esta manhã, saí com minha prima, Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!
Em quem eu noto a mais sincera estima Olha: os saloios vivos, corpulentos,
E a mais completa e séria educação. omo nos fazem grandes barretadas!

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riança encantadora! Eu mal esboço o quadro oltemos. Na ribeira abundam as ramagens
Da lírica excursão, de intimidade, Dos olivais escuros. Onde irás?
Não pinto a velha ermida com seu adro; Regressam rebanhos das pastagens;
Sei só desenho de compasso e esquadro, Ondeiam milhos, nuvens e miragens,
Respiro indústria, paz, salubridade. E, silencioso, eu fico para trás.

@@@ @
Andam cantando aos bois; vamos cortando as leiras; Numa colina azul brilha um lugar caiado.
E tu dizias: «Fumas? E as fagulhas? Belo! E arrimada ao cabo da sombrinha,
Apaga o teu cachimbo junto às eiras; om teu chapéu de palha, desabado,
olhe-me uns brincos rubros nas gingeiras! Tu continuas na azinhaga; ao lado
Quanto me alegra a calma das debulhas!» erdeja, vicejante, a nossa vinha.
| „     „

!    

Os dias de verão vastos como um reino


intilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
@rmão do lírio e da concha é nosso corpo

Tempo é de repouso e festa


O instante é completo como um fruto
@rmão do universo é nosso corpo

O destino torna-se próximo e legível


Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

omo se em tudo aflorasse eternidade

Justa é a forma do nosso corpo


´ 
   
O   

Este líquido é água.


Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
ongela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de erão,


sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.
   

' 

Estive sempre sentado nesta pedra


escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

   

`  
Rumor de água
na ribeira ou no tanque?
O tanque foi na infância
minha pureza refractada.
A ribeira secou no verão
Rumor de água
no tempo e no coração.
Rumor de nada.
 2


Dormir, onde esta lama doce e insonora


Toda a chuva a cair me torna grata calidamente me vista e me sepulte?
por ela e pela que tem caído sobre mim erme, que constróis o altar da chuva
nos anos sem tacto, sem vista, sem olfacto. com os teus pequenos montículos e covas
Aqui, bebo-a misturada com os resíduos e sob o córtex da nogueira velha
que o vento traz do fundo do pomar, escondeste a tua vida, como oferenda
gravetos, folhas e as flores perdidas. que vai ser recolhida pelas mãos
O cheiro da flor de laranja perfumou de uma criança que ame os dons naturais;
esta água, para a ablução dos pés verme, que sabes que eu outrora
de um poeta que antes fora nómada. já fui muda, não-gerada e ausente,
Depois, porque não hei-de vestir-me com a túnica mostra-me o que mais sabes da chuva,
da chuva, que me envolva como árvores como és sinuoso nela, vivente,
ou um corpo humano vivo e natural? e eu que devo fazer na pura terra
- contigo, lado a lado, ó laborioso?
‡
 

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huva, manhã cinza, guarda-chuva.
Entrar no contexto, dois pontos. Ele e ela
abraçados caminham sob o tecto
do guarda-chuva que os guarda.
Pelas ruas vão com a vontade de voltar
ao branco dos lençóis. Esse objecto prosaico
que às vezes se vira com o vento
torna-se objecto do poema. Dizer também
como a chuva é doce neste dia de verão.
omo o amor altera o sentido da chuva,
sim, como ela se eleva no ar e as frases se colam
ao vestido. No interior da pele o poema mudou
desde que entraste no guarda-chuva esquecido
a um canto do armário. Talvez o amor seja tudo amar
sem excepção. Eu que nunca uso guarda-chuva
assino incondicionalmente este poema.
  



na praia lá do guincho as velas
de windsurf saltam sobre as ondas


e o meu olhar, equestre,
pula nos peitos das banhistas, enquanto
um cachorro tenta agarrar a cauda. agora que passaste muito queimada do sol
nos feriados tudo é insuportável
o vento vem pela estrada até à duna
menos o sol e o mar
com uma folha de jornal desdobrada
apesar das famílias.
aos baldões e as vozes dos piqueniques.
e sustendo as gaivotas na mais alta
imaginação, porque hoje não vi nenhuma, tu desceste da moto e foste
o vento traz de tudo comprar um gelado, afastando impaciente
e antónio nobre e lorca às pandas roupas algumas crianças. era a impostura
que modelam os corpos em míticas figuras para a sede, avivada pelos guarda-sóis
com o seu drapejado esvoaçante, de cor berrante. nas rochas havia
entre dunas e lixo e vendedores de gelados. alguns pares esfregando-se
restaria o campo, mas mais ou menos à vista. penduraste
«no campo não há bicas nem paperbacks» os óculos de sol no decote da blusa
diz uma amiga minha e tem razão.
que seria de nós, bucólicos, sem esses indicadores da alma? dou
e o gelado avançou para os teus dentes muito brancos.
lume a uma italiana e enquanto
tudo isto dava uma fotografia
ela agradece ocorre-me que despi-la já não é
cosa mentale; faz-me lembrar o algarve, mas no verão com o teu peito em grande plano
o algarve é a continuação e a cena reflectida nos óculos escuros.
da política por outros meios. antes
a nortada, os surfistas,
na crista da onda, a areia que entra no poema,
e o regresso mais cedo, quando já não se
Aguenta.
O  

R 

O mar, no seu lugar pôr um relâmpago.


O   




!       


Pequena, ao mar que te trouxe
E ao recuar te transtornas
omo se o mar nada fosse.

Porque é que levas contigo


Só a tua cessação,
E, ao voltar ao mar antigo,
Não levas meu coração?

Há tanto tempo que o tenho


Que me pesa de o sentir.
Leva-o no som sem tamanho
om que te oiço fugir!
 

R   

Das palavras
que aprendeste
só uma
não tem tradução.
Quando traduzes
o amor, tu sabes
que é já outro o seu nome.
Assim são as algas
quando apodrecem.
 „   
|   

Sigamos o cherne, minha Amiga!


Desçamos ao fundo do desejo
Atrás de muito mais que a fantasia
E aceitemos, até, do cherne um beijo,
Senão já com amor, com alegria...

Em cada um de nós circula o cherne,


Quase sempre mentido e olvidado.
Em água silenciosa de passado
ircula o cherne: traído
Peixe recalcado...

Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,


Já morto, boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando, mentido o cherne a vida inteira,
Não somos mais que solidão e mágoa...
x   

|       

@ncontáveis, e rasos, rasgam


sinuosos, a rocha: abrem
pequenos sulcos, breves, sem
rumor, os caminhos leves: travam
em si a luta: haver, além
a extensão onde, o longo, outro
rio, foz, já corre,- encontro
ou fim? Ou, ainda, voo? Quem
vendo o curso, o frio, desce? Se
sobe, entre pedras, sobre
o leito, denso, nasce. É
aí o nome, o golpe: face
contínua das coisas, da morte. E cobre
a terra, a dor: o fundo, o pé.
O   



—       

Entrei no café com um rio na algibeira Depois, encostado à mesa,


e pu-lo no chão, tirei da boca um pássaro a cantar
a vê-lo correr e enfeitei com ele a Natureza
da imaginação... das árvores em torno
a cheirarem ao luar
A seguir, tirei do bolso do colete que eu imagino.
nuvens e estrelas
e estendi um tapete E agora aqui estou a ouvir
de flores A melodia sem contorno
a concebê-las. Deste acaso de existir
² onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.
   

â   
Olhas o rio
Estás só, e é de noite, como se fora o leito
na cidade aberta ao vento leste. da tua infância:
Há muita coisa que não sabes lembras-te da madressilva
e é já tarde para perguntares. no muro do quintal,
Mas tu já tens palavras que te bastem, dos medronhos que colhias
as últimas, e deitavas fora,
pálidas, pesadas, ó abandonado. dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
Estás só que regressavam a sangrar,
e ao teu encontro vem lembras-te de tua mãe
a grande ponte sobre o rio. que te esperava
Olhas a água onde passaram barcos, com os olhos molhados de alegria.
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos. Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
Por um momento esqueces e outra vez a água;
a cidade e o seu comércio de fantasmas, a água;
a multidão atarefada em construir água ou bosque;
pequenos ataúdes para o desejo, sombra pura
a cidade onde cães devoram, nos grandes dias de verão.
com extrema piedade,
crianças cintilantes Estás só.
e despidas. Desolado e só.

E é de noite.
 

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huva, manhã cinza, guarda-chuva.


Entrar no contexto, dois pontos. Ele e ela
abraçados caminham sob o tecto
do guarda-chuva que os guarda.
Pelas ruas vão com a vontade de voltar
ao branco dos lençóis. Esse objecto prosaico
que às vezes se vira com o vento
torna-se objecto do poema. Dizer também
como a chuva é doce neste dia de verão.
omo o amor altera o sentido da chuva,
sim, como ela se eleva no ar e as frases se colam
ao vestido. No interior da pele o poema mudou
desde que entraste no guarda-chuva esquecido
a um canto do armário. Talvez o amor seja tudo amar
sem excepção. Eu que nunca uso guarda-chuva
assino incondicionalmente este poema.
O   



- 

hove...
Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

hove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.
  

 
 „

Dormir, onde esta lama doce e insonora


Toda a chuva a cair me torna grata
calidamente me vista e me sepulte?
por ela e pela que tem caído sobre mim
erme, que constróis o altar da chuva
nos anos sem tacto, sem vista, sem olfacto.
com os teus pequenos montículos e covas
Aqui, bebo-a misturada com os resíduos
e sob o córtex da nogueira velha
que o vento traz do fundo do pomar,
escondeste a tua vida, como oferenda
gravetos, folhas e as flores perdidas.

O cheiro da flor de laranja perfumou que vai ser recolhida pelas mãos

esta água, para a ablução dos pés de uma criança que ame os dons naturais;

de um poeta que antes fora nómada. verme, que sabes que eu outrora
Depois, porque não hei-de vestir-me com a túnica já fui muda, não-gerada e ausente,
da chuva, que me envolva como árvores
mostra-me o que mais sabes da chuva,
ou um corpo humano vivo e natural?
como és sinuoso nela, vivente,

e eu que devo fazer na pura terra

contigo, lado a lado, ó laborioso?


AR
    

! 
 
R   
 

  



Que a minha vida fosse para os humanos


omo o vento que passa e que se esquece.
O
  | 

o   

éu muito nublado vento


Fraco moderado de sudoeste

Soprando forte nas terras


Altas aguaceiros em especial

Nas regiões do Norte e entro


E que serão de neve nos

Pontos mais altos da Serra


Da Estrela e no teu coração.

   

[  
A cidade caía

casa a casa

do céu sobre as colinas,

construída de cima para baixo

por chuvas e neblinas,

encontrava

a outra cidade que subia

do chão com o luar

das janelas acesas

e nop ar

o choque as destruía

silenciosamente,

de modo que se via.


r 

   

  
Sons sob a luz. Mosteiros,
torres sobrenaturais,
vibrando fluidamente no ar;
como? se o fluxo de mica,
os altos blocos de água,
cintilam sem rumor.

Toda esta arquitectura,


lenta percussão, perpassa;
sobre cerros sonoros;
com o seu contorno
infixo, fulgurando. Detenham-se
as estrelas quando
for noite; preguem-se
outros pregos de prata
fora do céu visível.
Sons já sem luz. Pastores
poisam as ocarinas, bebem;
entre colinas ocas;
o frio coalhado
pelas tetas das cabras.

 

  
Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!
olhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...


Pele doirada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
² amos correr e rir por entre o trigo! ²

Há rendas de gramíneas pelos montes...


Papoilas rubras nos trigais maduros...
Água azulada a cintilar nas fontes...

E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras


Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras!...
   
R          

Alegres campos, verdes arvoredos,


claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,


compostos em concerto desigual,
sabei que, sem licença de meu mal,
já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,


não me alegrem verduras deleitosas,
nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,


regando-vos com lágrimas saudosas,
e nascerão saudades de meu bem.

.
O  

R  

Eu amo assim: com as mãos, os intestinos.


Onde ver deita folhas.
O
  | 

Ë 

Quando me levantei já as minhas sandálias andavam a passear lá fora na relva.

Esta noite até os atacadores dos sapatos floriram.


2r|

 2  

ou em mim como entre os bosques,


ou-me fazendo paisagem
Para me desconhecer.
Nos meus sonhos sinto aragem,
Nos meus desejos descer.

Passeio entre arvoredo


Nos meandros de quem sinto
Quando sinto sem sentir
aga clareira de instinto,
Pinheiral todo a subir...

Sorriso que no regato


Através dos ramos curvos
O sol, espreitando, acho.
`   
Não sei um dia mas alguma coisa me doía â   
ou talvez não doesse mas havia fosse o que fosse
Era isso sentia a grande falta de uma árvore
e pensei plantar em seguida uma árvore na minha vida
uma árvore ouvida sempre que me sentisse só
e mostrasse ela só na face a compreensão que mais ninguém mostrasse
mesmo que não me queixasse fosse por pudor ou fosse pelo que fosse
Era mesmo uma árvore que me faltava
precisava de sombra mais do que vivia eu envelhecia
não dispunha da companhia de ninguém
e far-me-ia decerto bem conhecer gente nova
gente que se renova no alto de um tronco forte
que não sabe da morte que floresce ou sorri

Tudo mas tudo me sobressalta cansaço ou mentira


a palavra demora há falta de gente
um ramo inocente que me dê a mão
que aparado aproveite para o caixão quando um dia morrer
que eu possa queimar e que me dê lume
Que a sombra serena de uma árvore mesmo sem nome
facilmente se afaça a submeter-se a face
A árvore é vária e resume compaixão ternura
é humana e dura não há nada melhor
Tragam-me a árvore seja ela qual for. [O poema prossegue, tem 3 págs.]

  
 
´  

onheço as suas raízes. É tudo o que vejo.

Há um movimento que a percorre devagar. Não sei

Se ela existe. @magino apenas como são os ramos,

Este odor mais secreto, as primeiras folhas

Aquecidas. Mas eu existo para ela. Sou

A sua própria sombra, o espaço que fica á volta

Para que se torne maior. É assim que chega

O que não passa de um pressentimento. Ela compreende

Este segredo. Estremece. omigo procuro trazer

Só um pouco de terra. É a terra de que ela precisa.


`$%
Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
omo pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

   

 
Dir-se-á mais tarde;
por trémulos sinais de luz
no ocaso mais obscuro;
se os templos contemplando
estes currais sem gado
ruíram de pobreza.

Dir-se-á depois
por púlpitos postos em silêncio;
peso também a decompor-se
no mesmo pouco som;
se desaba o desenho
da nave antes de fermentar
a cor da sua pedra,
como fermentam leite e lã
de ovelhas mais salinas.

Dir-se-á por fim


que nenhum tempo se demora
na rosácea intacta;
e talvez
que só o musgo dá;
em seu discurso esquivo
de água e indiferença;
alguma ideia disto.
   

-  !

Elas crescem, as crianças.


rescem com os juncos,
com os mastros.
rescem no meu coração esburacado.
Só as crianças não morrem.
E os gatos.
   

R     

       


     &
 
     
 
     
       
       
   

 

Pêssegos, peras, laranjas,


morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.
O  

Eis um lírio e não preciso de louvá-lo:


está diante de vós
no braço esvoaçante
que a brancura alcança ao pé do fogo

Seu nome?
ive inscrito no perfume
desfolhado em redor
com que magoa e chama
ao resvalar nos dedos.
R 


R  "     
Se esta flor tão bela e pura,
Que apenas uma hora dura,
Tem pintado no matiz
O que o seu perfume diz,
Por certo na linda cor
Mostra um suspiro d'amor:
Dos que eu chego a conhecer
É este o maior prazer.
E a rosa como um suspiro
Há-de ser; bem se discorre:
Tem na vida o mesmo giro,
É um gosto que nasce e - morre.
 
Em abril chegam os gatos: à frente    

o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
R    
um pequeño tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mais foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
eio depois, já em oimbra uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não l'he tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do "Público" ao domingo.

 2  
Ë      

omo se fosse na cama,


@nvejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais


Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,


Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
onheço-me e não sou eu.
 
 


 

Ë 
hama-se Luís o gato do terceiro

e é companheiro de um mestre filósofo.

Em madrugadas altas há por vezes sobressalto,

quando o bichano acorda mal disposto.

O professor, sábio também

em jogos de paciência, acalma

o animal e já o mima. Trata-se,

vendo bem, de outra ciência,

tão difícil de conseguir como

um estudo de Pessoa. hama-se Agostinho

da Silva, o do terceiro, e tem um gato

com quem, à vontade, discreteia.

Luís, discípulo, ronrona baixinho.

Tudo vai bem, assim, no sete desta rua.




D     

Nenhum gato reconheceu Ulisses no


seu regresso a casa. Nem consta
que algum brincasse com os novelos
que a mulher dobava e desdobava
durante a longa ausência para
iludir os pretendentes. Por isso
me soa estranha a Odisseia e o
regresso a Ítaca sem o festivo içar
da cauda dum gato.
 
  
-

ão marrado, preso a um fio de cheiro,


ão passageiro, cão estrito, cão a esburgar o osso
cão rasteiro cor de luva amarela, essencial do dia a dia,
apara-lápis, fraldiqueiro, cão estouvado de alegria,
cão liquefeito, cão estafado, cão formal da poesia,
cão de gravata pendente, cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão de orelhas engomadas, cão moído de pancada
de remexido rabo ausente, e condoído do dono,
cão ululante, cão coruscante, cão: esfera do sono,
cão magro, tétrico, maldito, cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
a desfazer-se num ganido, cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
a refazer-se num latido, cão de olhos que afligem,
cão disparado: cão aqui, cão-problema...
cão além, e sempre cão.
Sai depressa, ó cão, deste poema!

  
-! 

ãozinho húmido,
ãozinho cagão,
Filho da pedra,
Pedra sob o cu
Osso barato,
Preta e branca pedra,
Rabo de vírgula,
Preto e branco és tu.
ão apenas,
Rapando terra
ãozinho de nada
Esconde as pernas.
No jardim de luxo
ãozinho da madrugada de Lisboa,
Dormindo na orilha,
Herbívoro por distracção,
E eu que sou da ilha,
Não corras atrás de nada!
Aguento o repuxo.
Ah, vida! adela em vão.
|    
!

 
!  

Ouve que estranhos pássaros de noite

Tenho defronte da janela:

Pássaros de gritos sobreagudos e selvagens

O peito cor de aurora, o bico roxo,

Falam-se de noite, trazem Dos abismos da noite lenta e quieta

Palavras estridentes e cruéis.

ravam no luar as suas garras

E a respiração do terror desce

Das suas asas pesadas.


O
  | 
x    

Das aves passam as sombras,


um momento, no chão, perto de mim.
No tardo erão que as trouxe e as demora,
por que beirais não sei
onde se abrigam piando
como ao passar chilreiam.

Um momento só. Rápidas voam!


E a vida em que regressam de outras terras
não é tão rápida: fiquei olhando
as sombras não, mas a memória delas,
das sombras não, mas de passarem aves.

 

! 
Porque não escolhem antes
hegado o Outono, o conhecimento concentra-se nas asas perder-se na tempestade? Talvez visto do ar,
dos pássaros que pousam lentos sobre a cor dos frutos. aos seus olhos o mundo se torne mais pesado
Sem sentimentos, as aves entregam-se ao sabor do vento e o pensamento se confunda, na memória,
e deixam que no cérebro cresça a febre negra das urzes. com uma paisagem festiva de piras fúnebres.
Aquieta-os a experiência que conservam do espaço E contudo, apesar do carácter cerrado da atmosfera,
e que todas as tardes os inibe de partir para continentes o seu peso parece já ter-se deixado de sentir
mais prósperos e seguros. Sustém-os um atavismo sobre o discurso. irados para dentro,
apenas explicável pelo saber dos signos e o seu desejo as imagens em que se reflectem são
colectivo de suicídio. as de um mundo banhado pela penumbra.
Afogado na sua razão de ser. Mediúnico.
@magine-se agora o caçador a entrar
paisagem dentro para abater as peças
de que se compõe o cenário uma a uma:
vista de dentro, o Sol em que se esgota
a paisagem deixa cair as suas penas
sobre a imensidão que a chuva perturba.

‡
x 2  
 

Gosto daquela cigarra

Que ao chegar o inverno

E porque gosta

ome as formigas.

  
R 

Mas nem pinheiros nem fuminhos


Um torrão de barro!
De casais, semeaduras, cigarras,
Eu vi um torrão de barro
Nem este pouco de poesia que me toca
Fresco, na enxada, e uma minhoca!
E que do Mundo me desliga
Aquele torrão cheiroso
alem a pobre minhoca
Era a toca!
Que se mexia para eu ver,
Só com metade da barriga.
Eu vi bichas da terra,
Uma raiz ao sol,
i ervas verdes
E um osso.

E fiquei tão comovido,


Tão agradecido,
Que quis dizer isso a alguém,
Mas não sei a quem
Nem posso.
Eu vi a oliveira de bronze e de prata
heia de folhas e de pios,
E pelo vento soube dos rios.

 |
 
!   # 

omei os ovos. om as asas castigadas


A galinha vive. sobe aos deuses.
Passeia em bibliotecas Perímetra
e tasquinha glutona
junto aos muros empoleirada nos restos
de Tebas. de colunas
Galinha grega. que as turistas beijam
Arredondando os ovos e o cão do tempo mija.
sobre o mar.
Sorvendo pelo bico Os homens de camisas claras
as gotas gregas. estendem sob o sol
as palmas ressequidas:
Talassiana. mais um ovo.

Pelo cu desta galinha Os homens indispostos


sai um ovo. caminham para trás
E sai a caca. pisam os séculos
Ave pesada de mais procuram nos quintais
para Aristófanes. do tempo
Encheu o papo nos poleiros
com milho de Aristóteles. da história
Os seus ovos são d¶oiro. a passagem trôpega
da galinha grega.
ont.ĺ

 |
 
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Uma galinha ausente
que dava pios d¶alma
isca a galinha
bicava nos arquétipos
em torno
e quando punha um ovo
das estátuas
ouvia-se em toda a Renascença.
eterna vamp
do mudo arqueológico.
Não sabemos porquê
galinha escrita
Aphroditíssima.
pequeno corpo
pondo em alvoroço
os fregueses dos mitos O bico
não sabemos porquê uma batuta
tu ainda chocas para o seu silêncio.
ou dormes no regaço O gládio
de Montaigne. suspenso
de uma antiga ânfora.
@mensos velhos
d¶óculos Enxotada entre guerras
que cuidam d¶aviários e alianças.
perseguem toda a casta Disseminando penas
de animais largando por descuido
apuram raças novas um ovo em cada voo.
para voltarem a ti
galinha grega. Galinha grega.


2


R       

A velha está sentada na sala de espera. Mas breve volta atrás, como se se tivesse
hegou amparada pela filha, que a depositou ali esquecido ali de alguma coisa,
enquanto trata dos papéis. A aflição e demora-se um pouco a tentar lembrar o quê.
deve ter sido tão súbita e imperiosa
que a velha vem descomposta, Esfrega uma na outra as patas dianteiras,
não houve tempo para atender a pudores. celebrando a vitória que logo virá.
Perdeu algures um chinelo.

A velha já nem se dá conta


Está sentada, muito branca, e parece desse penúltimo escárnio da morte.
mascar as dores com as gengivas nuas. Está visivelmente madura para ela,
pronta a entregar-lhe os destroços do corpo.
Tem a morte pousada na cara, sob a forma
de uma mosca insistente e de ar atarefado. onsumada a posse daquele território,
Não tem forças para a sacudir. a mosca vai no seu voo fortuito
A mosca aproxima-se da boca, depois parece em busca de mais carne a requerer.
interessar-se pelo nariz. Delicia-se Há dezenas de doentes na sala.
com o muco ao canto do olho, como a criança Apalpa-os um por um, como se faz aos figos,
que come a ocultas um gelado interdito. para saber qual deve ser comido
É como se estivesse em casa e percorresse em primeiro lugar.
os aposentos ao sabor dos afazeres.
ansada do rosto, levanta voo
e vai pousar, desta feita, numa mão. O mais certo é que acabe ± mais dia, menos dia ±
por devorá-los todos.
r 
No armazém onde apodreciam as batatas, com o cheiro
a terra e raticida dos velhos sacos de estopa,   O 
sentei-me a ler romances de capa e espada nas tardes de calor. Ali,
uma obscuridade de pedra e madeira protegia-me da o
luz; um longínquo ruído de cigarras misturava-se
ao voo monótono de sombrios besouros; e do papel
envelhecido dos livros saía o furor de uma paixão que
só nos romances existia. Ah!, em que alcovas secretas
se encontravam os heróis antigos? que sedas e
cortinas davam acesso a corpos exaustos? Que
ácidas frases traíam decepções de amor? É que
o tempo era feito, então, de tardes sem fim, num
tédio solar, multiplicado pela brancura monótona
do horizonte, como se o próprio céu cobrisse a vida
com a sua mortalha luminosa. O romance
chegava ao fim demasiado depressa; os maus
morriam e os bons ganhavam com excessiva facilidade;
a última página não passava de um tímido abraço de
amantes, calando o que viria para além disso. Então, fechando
o livro, dava-se por que a tarde entrava no declínio;
já não se ouviam cigarras, e os besouros escondiam-se
nalguma trave do tecto. Sob os sacos, por entre fardos
de palha e peças de máquina, os fantasmas começavam
a acordar. Era o que esse tempo tinha para dar: nem
luz nem treva, nem morte nem vida. Os minutos de
hesitação entre o fim de um livro e o princípio de noite;
e o abrir da porta para o quintal, onde um vento quente
se metia por dentro da lenha já pronta para o forno do pão.

   

O 

Quando por fim as árvores Perdem mais densidade;


se tornam luminosas; e ardem ascendem na pálida aleluia
por dentro pressentindo; de que fulgor ainda?
folha a folha; as chamas e são agora
ávidas de frio: cumes de colinas rarefeitas
nimbos e cúmulos coroam policopiando à pressa
a tarde, o horizonte, a demora das outras
com a sua auréola incandescente feita de peso e sombra.
de gás sobre os rebanhos.

Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.
    
RO 

A leitora abre o espaço num sopro subtil.


Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
@lumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.


Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,

branca no ar. É um torvelinho harmonioso,


um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.
  2
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Amo todas as palavras, mesmo as mais difíceis No dicionário aprendi que o meu verso é

que só vêm no dicionário. por vezes fabordão e sesquipedal.


O dicionário ensinou-me mais um atributo
Nele existe o meu retrato moral (que
para o sabor de teus lábios.
não confesso) e o de meus inimigos,
São doces como sericaia.
rasteiros como seramelas sepícolas
Faz-me pensar ainda se a tua beleza não será
e intragáveis como hidragogos destinados à comua.
comparável à das huris prometidas.
O dicionário, as palavras, irritam muita gente.

Eu gosto das palavras com ternura

e sinto carinho pelo dicionário,

maciço e baixo e pelo seu casaco, azul

desbotado, de modesto erudito.


 |
   

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.


@ntervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
  O
R   
ou buscar uma estrela que caiu

do céu, esta noite. Ficou presa a um

ramo de árvore, mas só ela brilha,

único fruto luminoso do verão passado.

Ponho-a num frasco, para não se

oxidar; e vejo-a apagar-se, contra

o vidro, à medida que o dia se

aproxima, e o muno desperta da noite.

Não se pode guardar uma estrela. O

seu lugar é no meio de constelações

e nuvens, onde o sonho a protege.

Por isso, tirei a estrela do frasco e

meti-a no poema, onde voltou a brilhar,

no meio de palavras, de versos, de imagens.

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