Você está na página 1de 36

Mensagem e Os Lusíadas

– Um diálogo entre dois poetas

Última fotografia de Fernando


Pessoa. Tirada por Augusto
Ferreira Gomes Retrato de Camões
considerado por
alguns como
bastante fiel e
assinado
«Fernando Gomez
fêz, em L.ª»
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

Pontos da Apresentação
1. Fernando Pessoa
1.1. Fernando Pessoa e os outros poetas;
1.2. A poesia e a identidade nacional.
2. Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)
2.1. O “desenho”
A ‘arquitectura perfeita’ de Mensagem e a estrutura épica sui generis d’Os Lusíadas;
2.2. A visão da História
 A ‘predestinação’ no poema de Pessoa e o ‘alto valor lusitano’ em Camões;
 O dado matricial da cultura grega;
 Os diferentes critérios de selecção das figuras histórias em Pessoa e em Camões;
 D. Sebastião – objecto de desejo em Pessoa / razão de esperança em Camões.
2.3. O amor
 O amor sonhado em Mensagem e o amor vivido (e poeticamente celebrado) n’Os
Lusíadas;
2.4. O mar
 O mar sem fim de Pessoa e o mar ‘experimentado’ de Camões;
 O Mostrengo e o Adamastor – figuras do medo.
2.5. O Império (im)possível
 O imperialismo sem matéria sonhado por Pessoa e o império cantado em Camões;
 “Que farei com esta espada?” – o misto de tristeza e esperança no final dos dois poemas.
3. Notas finais
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

1.
Fernando Pessoa (1885-1935)

Retrato de Fernando Pessoa, Caricatura de Fernando


Pessoa,
por Almada Negreiros (1954)
por David Levin (1972)
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

1.1. Fernando Pessoa e os outros poetas


 Fernando Pessoa e a poesia como “passagem a limpo” ou reescrita

Passar a limpo a Matéria


Repor no seu lugar as cousas que os homens desarrumaram
Por não perceberem para que serviam
Endireitar, como uma boa dona de casa da Realidade,
As cortinas nas janelas da Sensação
E os capachos às portas da Percepção
Varrer os quartos da observação
E limpar o pó das ideias simples…
Eis a minha vida, verso a verso.
Alberto Caeiro. Poemas Inconjuntos
(Alberto Caeiro. Poesia. Ed. de Richard Zenith e Fernando Cabral Martins.
Lisboa, Assírio & Alvim, 2.ª ed. corrigida, 2004, p. 102)

 Mensagem é, em certo sentido, uma ‘passagem a limpo’, para uma versão moderna,
do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões.

Século XIX: época de mitologização da figura de Camões.


A publicação do poema Camões (1825), de Almeida Garrett,
marca o início deste processo de mitologização.
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

1.1. Fernando Pessoa e os outros poetas (continuação)

 Mensagem (1934) como ‘resposta’ a Camões…



A criação poética em Pessoa que tem por base um mecanismo de disputa
com outras obras, uma imaginação ciumenta (Eduardo Lourenço)

Para Eduardo Lourenço,


«toda a obra de Pessoa é uma disputa concreta com outra obra sobre a qual se apoia para a
transcender ou lhe imprimir um desvio que inteiramente a desloca, na forma e na
substância, do seu lugar matricial.»
(Eduardo Lourenço, “Camões e Pessoa”, in revista Brotéria,
Lisboa, n.º 7-9, 1980, Julho-Agosto, p. 59).
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

1.1. Fernando Pessoa e os outros poetas (continuação)


 Em 1912, com vinte e quatro anos, Pessoa escreve na revista Águia:
A nossa poesia caminha para o seu auge: o grande Poeta proximamente vindouro,
que encarnará esse auge, realizará o máximo equilíbrio da subjectividade e da
objectividade. [...] Supra-Camões lhe chamamos, e lhe chamaremos, ainda que a
comparação implícita, por muito que pareça favorecer, antes amesquinhe o seu génio,
que será, não de grau superior, mas mesmo de ordem superior ao do nosso ainda-
primeiro poeta.
Fernando Pessoa. «A Nova Poesia Portuguesa»
(A Águia, n. 4, 5, 9, 11 e 12, 2.ª série, Porto, 1912), in Fernando Pessoa.
os

Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Edições Ática, 1993

[…] só a escolha deste Poeta [i.e. Camões] como elemento de comparação


coloca-o [i.e. a Pessoa] no ponto mais alto em relação a todos os que o
precederam e seguiram, até ao momento da enunciação.
C. Berardinelli. “Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual”, Estudos
Camonianos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000.
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

1.2. A poesia e a identidade nacional

 Toda a obra de Pessoa é uma tentativa de superar Camões.


Mas é com Mensagem (1934) que a ‘relação angustiada’ relativamente ao poeta d’Os Lusíadas se torna
particularmente visível. Mensagem é uma resposta(leitura) “moderna” ao(do) poema de Camões.
 Resposta que tem consequências ao nível da “Portugalidade”,
do que define Portugal e os Portugueses.

Pessoa propõe uma nova forma de pensar o que somos como
Portugueses e o que poderá vir a ser Portugal
(“Portugal” foi de facto o primeiro título pensado para a obra Mensagem).
Ou seja: aquilo a que chamamos “identidade nacional” é reavaliado em Mensagem.
 Segunda metade do século XIX – é o momento em que os escritores
reflectem seriamente sobre o que é Portugal?
(cf. Eduardo Lourenço, “Da literatura como interpretação de Portugal” (1975).
O Labirinto da Saudade. Lisboa: Gradiva, 2001 [1.ª ed. 1978]
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

1.2. A poesia e a identidade nacional


 Para Pessoa, o artista – e o poeta em especial – tem um papel muito importante na vida cultural de uma
nação. É ao poeta que cabe a criação de mitos.
Em Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, encontramos um fragmento onde se lê:
 «Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais
alto que pode obrar alguém da humanidade».

 E na resposta ao inquérito Portugal Vasto Império (1926, 1934) Pessoa afirma claramente:
«Há só uma espécie de propaganda com que se pode levantar a
moral de uma nação – a construção ou renovação e a difusão
consequente e multímoda de um grande mito nacional. […] Temos,
felizmente, o mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa».

O mito é para Pessoa a ‘semente’ de toda a possibilidade, o poder de fecundar a realidade.


 A regeneração da Pátria depende da existência de um mito nacional -
ideias que constituem a base filosófica de Mensagem, a ‘equação de que resulta a obra’
(Fernando Cabral Martins, prefácio à edição de Mensagem, Assírio & Alvim, 1997)
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.
Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

Capas das primeiras edições


Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

Dois excertos para ter em mente...

Da leitura d’Os Lusíadas ressalta […] a busca de uma solução real para
reverter a situação da pátria; dos poemas de Mensagem, ressai,
intensificada no poema final, “Nevoeiro”, a proposta de uma solução não
mais de dimensão humana, mas transcendente.
C. Berardinelli, “Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual”, 2000

A comparação entre Os Lusíadas e a Mensagem impõe-se pelo próprio


facto de esta ser, a alguns séculos de distância e num tempo de
decadência, o novo canto da pátria portuguesa.
Silvina Rodrigues Lopes, “Apresentação Crítica”,
Mensagem de Fernando Pessoa, Lisboa: Editorial Comunicação, 1986
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.
Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

2.1.
O Desenho
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.1. O “desenho”
Mensagem (1934)
 «[…] uma das obras mais perfeitamente realizadas da Literatura Portuguesa do século XX […]»
(C. Berardinelli. “Mensagem: Poemas in Fieri”, Fernando Pessoa: outra vez te revejo.
Rio de Janeiro: Lacerda, 2004)

 Estamos perante uma «arquitectura pensada e harmónica, que torna este livro uma constelação
de poemas.»
(Fernando Cabral Martins, 1997)

Abrindo com uma proposição latina (Benedictus Dominus Deus Noster qui dedit nobis
signum),
a obra está dividida em três partes:
Proposição que
 Primeira Parte – Brasão aponta, desde logo,
para o carácter
 Segunda Parte – Mar Português evangélico da obra
 Terceira Parte – O Encoberto
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.1. O “desenho” (continuação)


Primeira Parte – Brasão

- Tempo1 de preparação
(apresentação de figuras mitológicas e históricas que ‘criaram’ Portugal)
- Estabelecimento da essência (nobreza) de Portugal

Esta essência criou obra no passado (Mar Português)


e pode criar no futuro, no porvir (O Encoberto)

Tempo da preparação para a construção do Império;


a primeira parte da obra apresenta a «caminhada da terra
para o mar» como missão confiada a Portugal (C. Berardinelli, 2004)

‘Bellum sine Bello’ (trd. ‘a guerra sem guerrear’)


 A epígrafe latina desta primeira parte avisa-nos que a nova Distância não se alcança pela força

Mensagem é um poema de fraternidade e de paz
(simbolismo rosa-cruciano e templário)

1 – A ideia de uma divisão de Mensagem em tempos é sugerida em C. Berardinelli, 2004.


Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.1. O “desenho” (continuação)


Primeira Parte – Brasão

I – Os Campos III – As Quinas


Primeiro: O dos Castelos Primeira: D. Duarte, Rei de Portugal
Segundo: O das Quinas Segunda: D. Fernando, Infante de Portugal
Terceira: D. Pedro, Regente de Portugal
II – Os Castelos Quarta: D. João, Infante de Portugal
Primeiro: Ulisses Quinta: D. Sebastião, Rei de Portugal
Segundo: Viriato IV – A Coroa
Terceiro: O Conde D. Henrique Nun’Álvares
Quarto: D. Tareja V – O Timbre
Quinto: D. Afonso Henriques A cabeça do Grifo: O Infante D. Henrique
Sexto: D. Dinis Uma asa do Grifo: D. João o Segundo

Brasão real português Sétimo (I): D. João o Primeiro A outra asa do Grifo: Afonso de Albuquerque
utilizado no século XV Sétimo (II): D. Filipa de Lencastre

19 poemas
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.1. O “desenho” (continuação)


Primeira Parte – Brasão

I – Os Campos
(dois poemas)

II – Os Castelos
Sete poemas + um

III – As Quinas
Cinco poemas

IV – A Coroa
Um poema

V – O Timbre
Cabeça (um poema)
Brasão real português Asas (dois poemas)
utilizado no século XV
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.1. O “desenho” (continuação)


Segunda Parte – Mar Português

Tempo de realização e da queda;
tempo em que se conquista um Império que depois se perde.

É preciso buscar uma nova Distância, um outro mar (Possessio Maris…).
12 Poemas
I. O Infante
II. Horizonte
III. Padrão
IV. O Mostrengo
V. Epitáfio de Bartolomeu Dias
VI. Os Colombos
VII. Ocidente
VIII. Fernão de Magalhães
IX. Ascensão de Vasco da Gama
X. Mar Português
XI. A Última Nau
XII. Prece
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.1. O “desenho” (continuação)


Terceira Parte – O Encoberto
 Tempo de espera;
Tempo de esperança na realização de um projecto indefinível, transcendente,
para lá do espaço e do tempo (Pax in Excelsis), do que é dado à razão humana conhecer.

Terceira Parte/ 13 Poemas / Três Partes
( Ideia de unidade contida na estrutura do poema)

I. Os Símbolos
Primeiro: D. Sebastião III. Os Tempos
Segundo: O Quinto Império Primeiro: Noite
Terceiro: O Desejado Segundo: Tormenta
Quarto: As Ilhas Afortunadas Terceiro: Calma
Quinto: O Encoberto Quarto: Antemanhã
Quinto: Nevoeiro.
II. Os Avisos
Primeiro: O Bandarra
Segundo: António Vieira
Terceiro: (Screvo meu livro à
beira-mágoa)
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.1. O “desenho” (continuação)


Os Lusíadas (1572)
Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas.
Os Lusíadas (I, 11)
 A obra de Camões, publicada 75 anos depois da chegada de Vasco da Gama à Índia,
apresenta uma estrutura não menos rigorosa que a de Mensagem. Assim, temos:

Estrutura externa: Estrutura interna:


Dez Cantos Proposição
Camões segue
Oitavas (1102 estrofes) Invocação regras do
género épico
10 sílabas métricas Dedicatória
Verso heróico Narração ‘in medias res’
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.1. O “desenho” (continuação)


Os Lusíadas (1572)
 A obra desenvolve-se em quatro planos fundamentais que se entrecruzam na narrativa.
São eles:
 PLANO DA VIAGEM (viagem de Vasco da Gama à Índia);
 PLANO DOS DEUSES (que intervêm na viagem dos Portugueses);
 PLANO DA HISTÓRIA DE PORTUGAL (encaixado no plano da viagem);
 PLANO DAS CONSIDERAÇÕES DO POETA (com reflexões filosóficas e morais,
lamentações, críticas ou exortações).
 Sobre a unidade do projecto camoniano, escreve António José Saraiva:
Seguindo esse modelo [i.e. o de Virgílio], há uma acção com a qual se ligam todos os
acontecimentos passados e futuros: a viagem acidentada de um herói guerreiro e
navegante, e sua chegada à terra onde funda um novo reino; o herói é protegido por
certos deuses e perseguido por outros, de modo que aquela acção se desenrola
conjuntamente no plano humano e no plano divino. A narrativa começa no meio da
viagem (“in medias res”), os acontecimentos anteriores são relatados por discursos dos
protagonistas humanos ou por obras de arte plástica evocativa; os acontecimentos
futuros são anunciados por deuses ou outras personagens dotadas do dom da profecia.
Saraiva, Introdução a Os Lusíadas (1978, 1999), Porto: Livraria Figueirinhas, itálicos meus
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.1. O “desenho” (conclusão)


Mensagem e Os Lusíadas
 Sobre a classificação dos dois poemas:

Apontando as preocupações arquitectónicas comuns às duas obras, o


mesmo autor [i.e. Jacinto do Prado Coelho] ressalta o carácter mais
abstracto e interpretativo de Mensagem em relação a Os Lusíadas. A
dominante mística é, no poema de Pessoa, solidária da desvalorização da
narração e da descrição, características da epopeia, dando relevo a um
pensamento unificador, ostensivo na proliferação de símbolos em
detrimento da acção e conferindo ao poema uma dimensão mais
emblemática do que épica.
Silvina R. Lopes, “Apresentação Crítica”,
Mensagem de Fernando Pessoa, 1986

Enfim, dois poemas épicos – ou épico-líricos? – “de espécie complicada”,


diria Pessoa, e digo eu: como convinha a Portugal.
C. Berardinelli, “Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual”, 2000
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.
Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

2.2.
A visão da História
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.2. A visão da História


 Mensagem e Os Lusíadas –
 Poemas sobre Portugal e a nossa história (dimensão épica)

 Os dois poemas estabelecem um laço entre o geográfico e o
histórico (a posição geográfica de Portugal “aponta” o caminho
para o mar e para o Ocidente, para a aventura)

 Tanto Pessoa como Camões seleccionam, a seu jeito, a história, destacando


as figuras que mais lhes interessam para o projecto global da sua obra.
 Nos dois poemas, é sublinhado o dado matricial da cultura grega (Ulisses é
colocado ao lado de figuras históricas);
 No tratamento dos reis de Portugal, encontramos diferenças importantes

Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.2. A visão da História (continuação)


 Em Mensagem, Pessoa selecciona “figuras de pensamento”, de contemplação –

Figuras dotadas de uma capacidade visionária singular
(ex. D. Dinis, o ‘plantador de naus a haver’)
 N’Os Lusíadas, Camões (ou os seus narradores), selecciona reis que se
destacaram pela sua “feição activa” –

Figuras que se destacaram pela sua acção bélica
(ex. D. Afonso III e D. Afonso IV)

Pessoa  valoriza a dimensão contemplativa;


Camões  valoriza a actividade real, combativa.

 Ambos os poetas destacam a figura de Nun’Álvares Pereira:


ele é a Coroa no poema de Pessoa, e o ‘fortíssimo leão’ n’Os Lusíadas.
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.2. A visão da História (continuação)


 Em Mensagem, a história de Portugal é pensada à luz de um plano de divino. O
que somos resulta de um acto de com-sagração, de algo que é predito por Deus:
O homem e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.
Poema “D. João o Primeiro” (1os quatro versos)
N’Os Lusíadas, a intervenção divina aparece como complemento do valor dos
Portugueses, valor supremo capaz de escapar à lei da morte.
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando;
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e a arte.
Os Lusíadas (I, 1)
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.2. A visão da História (conclusão)


 D. Sebastião, Rei de Portugal
 À distância de quase quatro séculos, Pessoa recria a figura/mito de D. Sebastião de modo
a conciliar a ideia de que o Rei pôs a pátria em perigo com o enaltecimento da sua loucura.
Em Mensagem, D. Sebastião é o símbolo da loucura positiva, da sede de
infinito que caracteriza o ser humano que pretende ultrapassar a sua própria natureza.

‘Ser homem é ser descontente’ (poema “O Quinto Império”)

 N’Os Lusíadas, D. Sebastião é o “herói épico em potência” (C. Berardinelli, 2000), uma
vez que o sonho de conquistar o Norte de África ainda povoa as mentes da época. Na sua
dedicatória, Camões incentiva o rei a novas empresas bélicas…
Fazei, Senhor, que nunca os admirados
Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,
Possam dizer que são pera mandados,
Mais que pera mandar, os Portugueses
Os Lusíadas (X, 152)
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.
Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

2.3.
O Amor
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.3. O Amor
 Em Mensagem, Pessoa não inclui um dos “mitos” que Camões ajudou a criar: o
mito de Inês de Castro (só duas mulheres têm lugar no poema de Pessoa: D. Tareja e D.
Filipa de Lencastre).

Em Pessoa, o amor e o sentimento são transpostos para uma
esfera transcendente – o desejo, em Mensagem, é o desejo de um mito.

 Não encontramos em Mensagem o tratamento poético do amor entre um homem e


uma mulher, e muito menos um tratamento da sensualidade, como encontramos, num
nível sublime, em Camões:

Num vale ameno, que os outeiros fende,


Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde ũa mesa fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.

Os Lusíadas (IX, 55)


Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.
Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

2.4.
O Mar
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.4. O Mar
 Sobre o “Mar” em Pessoa e em Camões, Eduardo Lourenço caracteriza
deste modo aquilo que separa os dois poetas:
Evocando o poema Os Lusíadas, José Régio escreveu que «o mar entrou nele e coube». Podia
caber em oitava rima esse mar nunca dantes navegado que nos sagrou como nautas modernos
porque era um mar ao mesmo tempo vivido e revisitado graças à intercessão poética de Virgílio. O
mar de Pessoa, menos vivido que o de Camões e plural na sua essência de abismo da natureza e do
espírito, inundou, como nem antes nem depois acontecera na odisseia pouco marítima do
imaginário português, toda a poesia do autor de Mensagem, mas não coube nela.
Eduardo Lourenço, “Os Mares de Pessoa”. O Lugar do Anjo. Ensaios Pessoanos. Lisboa: Gradiva,
2004


O mar n’Os Lusíadas é possibilidade de realização, coisa presente e exterior;
em Mensagem, significa promessa e desafio, o Horizonte por buscar.
Como o mar de Álvaro de Campos, o mar de Mensagem é feito da
«Distância Absoluta», do «Puro longe» (Ode Marítima)
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.4. O Mar

 Sobre os perigos do mar, Pessoa e Camões imaginam duas figuras que


representam a mesma essência perigosa de toda a aventura, do desejo de
partir…
Mostrengo (Mensagem) –
figura ameaçadora e agressiva, sem traços de humanidade

Adamastor (Os Lusíadas) –
Monstro dotado da capacidade de amar 
É a palavra (a capacidade de Vasco da Gama falar com o monstro)
e o amor que nos libertam do Adamastor.

Ao recordar o desgosto de amor que lhe causara a bela Tétis,
o Adamastor desaparece e dá passagem para o Oriente.
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.
Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

2.5.
O Império (Im)possível
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.5. O Império (im)possível

 N’Os Lusíadas, o poeta prevê o definhamento da pátria, a decadência do Império.


Mas, ao mesmo tempo, aponta a possibilidade um renascimento, a que a acção de D.
Sebastião deveria dar início.

A esperança de Camões é também a de um poeta –


a de um homem que deseja voltar a cantar os ‘feitos valerosos’ de Portugal.
Para Camões, a vitalidade da poesia não se desliga da vida da Pátria.

 Em Pessoa, a ideia de um novo Império ‘feito de Matéria’ – um império terreno a
alcançar pela acção bélica dos homens – é posta de parte.

Num conjunto de textos reunidos sob o nome Sobre Portugal.
Introdução ao Problema Nacional (1978), encontramos um texto onde Pessoa diz:
“Todo o Império que não é baseado no Império Espiritual
é uma Morte de pé, um cadáver mandado.” 
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.5. O Império (Im)possível

O elemento lírico em Mensagem e n’Os Lusíadas evidencia-se no pendor subjectivo


dos dois poemas – i.e. na importância da voz do poeta. Essa voz faz-se ouvir, no caso
da obra de Camões, em momentos de auto-reflexão (que não existem em Mensagem) e
na crítica à gente da Pátria, à “gente surda e endurecida” (X, 145).

De facto, é num tom marcadamente crítico que Pessoa e Camões
terminam os seus poemas  Diálogo na despedida
Camões: Pessoa:
… …
No gosto da cobiça e na rudeza Este fulgor baço da Terra
Dhüa austera, apagada e vil tristeza. Que é Portugal a entristecer
… ….
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

2.5. O Império (Im)possível

 O tom de tristeza (tom de requiem) comum ao final dos dois poemas mistura-se com
uma leve esperança de renovação. Vejamos:
 Verso final de Mensagem : “É a Hora!”
(seguido de Valete Fratres, uma saudação mística associada à fraternidade Rosa-Cruz)
 Três versos d’Os Lusíadas:
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandre em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja.

Duas soluções diferentes
Os Lusíadas Mensagem

 Solução real  Renovação espiritual,


literária ou poética – império
imaterial (onde não são
‘precisas colónias’)
 “O mito é o nada que é tudo”
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

3. Mensagem e Os Lusíadas
– Notas Finais
Mensagem e Os Lusíadas
– Um diálogo entre dois poetas

Semelhanças essenciais:
o desejo de superar e a consciência do valor da poesia

 É comum a Pessoa e a Camões o desejo de superar –


 Camões quer superar os ‘antigos’ substituindo a ficção pela verdade;
 Pessoa quer superar Camões e conferir novo ânimo à Pátria

 É comum a Pessoa e a Camões a afirmação do valor supremo da poesia –


 Camões sabe que só o canto dos poetas
transforma os homens em seres imortais
(só o poeta liberta da lei do Esquecimento;
por isso, o rei D. Sebastião deve ‘baixar-se’ e contemplar a ‘pintura’ de Camões…);
 Pessoa sabe que só a criação de mitos (tarefa do poeta)
assegura a vitalidade da Pátria, porque a poesia é o Império vivo.

Você também pode gostar