Você está na página 1de 3

A ARTE DE CUIDAR

A luta pelo poder , a busca de vantangem e a concorrência desenfreada, os


potenciais de agressão como forças impulsionadoras de nossa cultura, estão
levando a humanidade para o abismo.
Consequências: - milhões de pessoas vitimadas pela cruel competição do mercado globalizado;
- a crescente pobreza e exclusão social a nível mundial;
- a sistemática agressão ao sistema Terra, que põe em risco o futuro da biosfera.
Vivemos uma autêntica via-crucis de dimensões planetárias.
Esta situação produz uma degradação geral da qualidade de vida. Não são
somente os pobres que gritam, grita também a Terra, submetida à pilhagem
(esgotamento de seus recursos não renováveis, a contaminação do ar, do solo e
da água...)
Esta situação de barbárie por grave falta de solidariedade e de cuidado (entre
os seres humanos e para com a Terra) desperta indignação ética e um
sentimento de com-paixão por todos os que sofrem.
- Precisamos de um novo paradigma civilizacional que redefina as relações dos seres humanos para com a
vida e a Terra.
- Precisamos ser inspirados por forças verdadeiramente espirituais para proteger o contexto da vida e a uni-
dade do gênero humano.
- Precisamos reinventar modos de produção em consonância com a natureza, e não às custas dela.

Neste contexto surge a categoria “com-paixão” como um dos valores


fundamentais, capaz de fundar uma aliança de perene paz com a Terra.
Importa reformular o significado elementar e a força da compaixão e trazê-la à
nossa consciência como base para toda ética.
O “princípio-compaixão” se presta a criar uma nova atitude do ser humano, de
mais benevolência e de solidariedade para com todos os que sofrem.
Na nova consciência planetária, este princípio-compaixão ultrapassa aquela
solidariedade que se restringe aos membros da própria espécie. Em última
análise, é dedicação e cuidado a todo criado.
Só assim nosso mundo terá chances de sobreviver.
O processo do cuidar é fundamentalmente um diálogo, não de idéias, mas de
vida, onde a paixão e não tanto a razão é o elemento central.
Trata-se dum diálogo vital que deve enriquecer ambos interlocutores.
No processo de cuidar seres vulneráveis, o diálogo é essencial porque é o lugar em que se concretiza a
interação pessoal, em que o encontro adquire um rosto concreto.
Nesse diálogo, os elementos não verbais, os gestos têm uma importância fundamental.

Assim, a arte de cuidar é um diálogo de presenças, o encontro de dois seres


que se dispõem a falar, a olhar-se, a acolher-se, a aceitar-se e enriquecer-se
mutuamente.
A arte de cuidar, como diálogo de presença, é delimitado e determinado em seu
desenvolvimento pela vulnerabilidade. Cuidar de alguém é ajudá-lo a expressar
sua vulnerabilidade. Nesse sentido, cuidar de alguém é ajudá-lo na sua
edificação.
Numa situação de fragilidade e desamparo a pessoa necessita recolher os
fragmento existenciais para reedificar sua interioridade e restabelecer a
harmonia e a paz.
Para isso, é preciso reconstruir os fundamentos.
A arte de cuidar é oferecer os recursos para essa reconstrução. Edificar uma
pessoa afetada pela fragilidade é ajudar a recompor o seu interior e reconstruir
a sua identidade pessoal a partir de fundamentos mais consistentes.
Na arte de cuidar, para a edificação de seres vulneráveis, deve-se seguir alguns
princípios básicos:
a) Ter sempre presente a visão integral do ser humano em suas diferentes dimensões e relações; estar atento às
circunstâncias pessoais de cada um que são o solo sobre o qual se vai construir a identidade pessoal.
b) O cuidado deve levar em consideração a situação particular de cada um, mas, ao mesmo tempo, estar atento
à inserção comunitária do sujeito a ser cuidado. A arte do cuidar é tanto um processo de singula-
rização quanto uma reconfiguração comunitária e social da pessoa vulnerável.
c) Cuidar é uma ação esperançosa que abre perspectivas de futuro para quem está sem horizonte.
Desperta a atitude de esperança, porque faz olhar para frente e a pensar em novas possibilidades.
Anima, suscitando expectativas.
Mas, por outro lado, precisa ajudar também a olhar para o passado, interpretar as experiências
dolorosas, voltar às suas fontes, aceitá-las, tomar posse delas...
O cuidado deve ter um olhar esperançoso para frente e um olhar interpretador para trás.
d) O cuidado é antes de mais nada um ato de beneficência. Cuidar é querer bem e proporcionar o bem, afas-
tando toda ameaça de males e fazendo acontecer todo bem-estar possível ao outro.
A arte do cuidado, mesmo tendo a intenção de ajudar e produzir o bem-estar, não deve ser uma ação
paternalista. A aceitação do cuidado deve ser fruto de uma decisão livre. Assim, cuidar de alguém é também
cuidar da sua liberdade, ajudando a recobrar a autonomia e independência possíveis.
Reconstruir a autonomia é auxiliar a recuperar o centro pessoal, a responsabilidade e o poder de decisão.
e) A arte do cuidar exige tanto responsabilizar-se por quem é cuidado, quanto torná-lo responsável pela sua si-
tuação. Responsabilizar-se é caminhar com o outro, partilhando as suas preocupações,
expectativas, angústias e medos. Cuidar é ajudar a levar a carga da vida de alguém,
aliviando o seu peso. Mas não se trata de ficar no seu lugar, assumindo o problema.
f) Parece, à primeira vista, que quem cuida é ativo e quem é cuidado é passivo.
No cuidado precisa existir uma dialética entre passividade e atividade.
Em certos momentos, quem cuida deve ser passivo e deixar quem é cuidado ser ativo.
A pura passividade ou a pura atividade de um ou outro pólo da arte do cuidado é prejudicial à ação de cuidar
g) A arte do cuidado é um exercício de proximidade: ela exige disponibilidade, acolhida, preocupação
pe-
lo outro, acercamento à sua fragilidade. A proximidade não é estática, mas
dinâmica. Consiste num movimento de aproximar-se, acercar-se, romper barreiras...
A superação da distância espacial, afetiva e ética é fundamental para a ação de cuidado.
Não se pode cuidar de alguém à distância. Mas, por outro lado, a proximidade não pode
significar dependência afetiva que obscureça a identidade pessoal.
Quem cuida não pode estar tão próximo que tome o lugar do outro e responda por ele.
O cuidado exige também o distanciamento que possibilita o assumir-se e tomar decisões.
h) Cuidar pressupõe tempo de dedicação e uma continuidade temporal.
Não pode ser um ato instantâneo e apressado. Exige paciência, lentidão e gratuidade
temporal.
Quem cuida não pode estar medindo e contando as horas. O ritmo temporal de quem cuida deve estar
adaptado ao ritmo somático, psíquico e existencial de quem é cuidado.
Cuidar exige também um espaço idôneo; não pode acontecer em lugar estranho e anônimo, muito
menos num lugar caótico e ruidoso. Exige cenários habituais e conhecidos. O próprio lar é o lugar
mais adequado.
Situações de fragilidade devem ser vividas e assumidas em espaços familiares que façam sentir-se
em casa. No espaço anônimo, a pessoa vulnerável encontra-se desamparada, exilada e expatriada.
i) Não existe cuidado sem comunicação; no entanto, a pessoal vulnerável fala mais por gestos e olhares do que
por palavras.
Cuidar é essencialmente escutar e estar atento às necessidades e solicitações de quem necessita ajuda.
j) Na arte de cuidar, a vinculação entre quem cuida e quem é cuidado é fundamental.
Ela pode acontecer naturalmente pela empatia, mas nem sempre é espontânea. Nesse caso
é necessário encontrar meios que criem laços e fortaleçam vínculos entre os dois.
A simpatia refere-se a esse trabalho de ligação e entrelaçamento pela iniciativa do
cuidador que tenta entrar em sintonia com quem quer ajudar. A confiança mútua só é
possível no marco da mútua simpatia. É a partir da confiança que se aprende a
compartilhar e acolher o semelhante. A confiança suscita solicitude e ternura.
Assim, a arte de cuidar exige técnica, intuição e sensibilidade, mas o exercício da
ternura é fundamental para desenvolver atos de cuidado.
“A pessoa vulnerável necessita cuidado regado com afetividade, especialmente
ternura,
pois deseja ser tratada com delicadeza e sensibilidade”

(Cf. Roque Junges – Ética e gênero: o paradigma do cuidado


Convergência no. 348 (dezembro – 2001)

Você também pode gostar