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Visceral
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Axills
Rio de Janeiro/Rio de Janeiro: Edição Independente,
2011. 75 p.
Rio de Janeiro 2011.
Todos os direitos reservados
Esta obra está licenciada sob uma Licença
Creative Commons

Capa: Axills
Produção Editorial:
Samuel Achilles
Revisão e Formatação:
Alessandra Bertazzo
2011
Trovart Publications

Visceral
3

SUMÁRIO
Prefácio ................................................................................................................... 7
Certíssima mors ...................................................................................................... 8
Bonsai .................................................................................................................... 9
Pó ......................................................................................................................... 10
Torto ..................................................................................................................... 11
Volúvel .................................................................................................................. 12
A nau .................................................................................................................... 13
Desconexo............................................................................................................. 14
Lusco-fusco mítico ................................................................................................ 15
Destilado............................................................................................................... 16
Ponto cego............................................................................................................. 17
Vômito .................................................................................................................. 18
Desgosto ............................................................................................................... 19
Atos falam alto ...................................................................................................... 20
Fofoca ................................................................................................................... 21
Soneto de uma rima só ......................................................................................... 22
Surto .................................................................................................................... 23
Piso de granito ...................................................................................................... 24
Rasguei o véu que me encobria ............................................................................. 25
Deslocamento zero ................................................................................................ 26
Atarantado ............................................................................................................ 27
Colecionador de sonhos perdidos .......................................................................... 28
Caleidoscópio ........................................................................................................ 29
O teu cabelo não, nêga! ......................................................................................... 30
Maldade da cadela ................................................................................................ 31
Peteca ................................................................................................................... 32
Saturnal................................................................................................................ 33
Cybernético ........................................................................................................... 34
O mel das cobras .................................................................................................. 35
Rio 2016 ............................................................................................................... 36
Marisa................................................................................................................... 37
Jazigos .................................................................................................................. 38
Sem rumo ............................................................................................................. 39
Ledo engano .......................................................................................................... 40
Desvario ................................................................................................................ 41
Mobilidade godard................................................................................................. 42
The book is on the table ........................................................................................ 43
Happy birthday, sam............................................................................................. 44
Prantos ............................................................................................................... 46
Troca de plantão ................................................................................................... 47
Meu bem querer .................................................................................................... 48
A nado .................................................................................................................. 49
Coragem ............................................................................................................... 50
Certo tempo .......................................................................................................... 51
Rendimentos ......................................................................................................... 52
Mulher fracionada................................................................................................. 53
A morte ................................................................................................................. 54
Duas luzes ........................................................................................................... 55
Bruna ................................................................................................................... 56
O tempo urge ........................................................................................................ 58
Amigo sol .............................................................................................................. 59
Pelezinho .............................................................................................................. 60

Visceral
4

Diamante .............................................................................................................. 61
Veni vidi vici ......................................................................................................... 62
Pérolas aos porcos ............................................................................................... 63
Sou o que sou ....................................................................................................... 63
Mente presa ......................................................................................................... 65
Tristeza ................................................................................................................. 66
Cabisbaixo ............................................................................................................ 67
Mente insana ........................................................................................................ 68
Vazio concreto....................................................................................................... 69
Knockdown ........................................................................................................... 70
Posfácio ................................................................................................................ 72
Minibiografia ......................................................................................................... 74
Contatos com o autor ............................................................................................ 75

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5

O(RATÓ)(RIO)

Ó Deus, livra tu o cristo das balas perdidas!

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6

VENTO

Eu, cata-vento
Levado pela ventania
E varrido do mundo

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PREFÁCIO

Este livro, caro leitor, não se trata de um tratado do esgoto, mas também não
mapeia a podridão da minha alma. Convencionei-me a enxergar meus escritos
como poemas e prosas por culpa da pedagogia que a mim me foi imposta.
Das escorrências dos meus medos, das inflamações da minha fúria e dos
resíduos resultantes das expectoração da minha mesquinhez surgem ideias que
formatam este trabalho.
Cada pedra no caminho é só um objeto de tropeço. Nunca fiz castelos. Não
sou pedreiro ou engenheiro. Sou um construtor de textos e por isso costumo usar
as pedras no caminho para tropeçar, de forma proposital, obtendo assim a matéria
prima para a minha obra.
Gosto de olhar nos olhos do meu tédio, escutar os choros de minhas
angústias e dos sofrimentos alheios através de um noticiário de fim de tarde. Meu
voyeurismo é ver o mundo sangrando em sua escatologia e transmitir isso numa
lírica forma onanista para um papel amassado com uma caneta falhando.
Este livro, estimado leitor, é concernente de algumas imagens remoídas e
ruminadas por mim e que se mantiveram presas em minhas entranhas poéticas.
São palavras que não foram defecadas em minhas censuras e nem mesmo
vomitadas nas canções de os meus momentos anti-higiênicos.
Portanto, antes que apodrecessem em mim em forma de neoplasma maligno,
eu as expus, fazendo um corte profundo no abdômen do meu lirismo séptico,
revelando minhas vísceras verminadas.

Axills

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8

CERTÍSSIMA MORS

Vós que pagais muito para quem chuta uma bola


Vós mortais, mortos sem voz
Vós que desprezais os que ajudam na reciclagem do planeta
Vós que valorizais a imundície do sistema
Império de problemas
Vós que buscais o belo na feiura
Vós que matais a vós mesmo
As sílabas do amor vós apagastes do vosso coração
Vós que ouvis a voz da “anti-razão”
Da bifurcação universal da teórica criação

Vós maculados da imaculada culpa perdoada


Vós que dominais a ciência da destruição
Vós que enriqueceis o inutilizável
Vós que vos esqueceis dos esquecidos
Dos bramidos dos animais e da floresta
Vós que cultuais madeiras e gessos e tantas tintas retintas
Vós que acumulais riquezas sem importância
Vós que alimentais a ganância, a gula, a fula chula folia das fulanas.
Vós que geris girinos gélidos dos vossos medos empoçados
Convosco estão as algemas da vossa liberdade
A vida repleta de morte
O oxigênio poluído pela vossa respiração

Vós que vos ensandeceis por vontade própria


Vós que fechais os olhos para vossos falsos juízos
Vós que acobertais os erros que vos favorecem
Vós que subjugais os inocentes indefessos
Vós que ofuscais o lusco-fusco do vosso amanhecer

Permaneceis a dormir ou acordais para a noite de um mundo muito escuro

Longa vale tudo, certíssima mors.*

* Doença comprida em morte acaba

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BONSAI
Alphonse de Lamartine

Não tente tolher o meu querer, o meu amor


Nem tente restringir o crescimento da minha aproximação
O efeito disso não será uma arte bonsai
Será sim uma árvore ressecada,
Sem folhas,
Sem frutos,

Sem ninho de pássaros

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Amado Nervo

O amor não será mais tudo


Como foi um dia que não volta mais
Ele foi e já não é
Lá no meu passado distante e diferente
Onde o amor era tudo
Mas hoje até o tudo é nada
E o amor virou nada
Virou sucata
Virou lixo
Virou a lata de leite que, como ele,
Virou pó.
Virou pó.
Virou a lata de leite que, como ele,
Virou lixo
Virou sucata
E o amor virou nada
Mas hoje até o tudo é nada
Onde o amor era tudo
Lá no meu passado distante e diferente
Ele foi e já não é
Como foi um dia que não volta mais
O amor não será mais tudo

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TORTO

Mário Quintana

Rodo torto em rodas de samba, final de semana


Tocarei meu barco e lavarei as escadarias da minha igreja
Nada como uma boa embriaguez e Oxalá eu serei Tupã
Enfezarei meus fardos e fétidos pensamentos
Das minhas avenidas engarrafadas
Do indigesto vômito da minha indigestão

Lavo minhas escadarias,

Sambo feliz

Foda-se o mundo

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VOLÚVEL
Jane Austen

Meu amor é como a fumaça que é facilmente sugada pelo exaustor rebolado de
qualquer rabo de saia.

Ah...
Eu quero a mulher que passa...
Eu quero aquela parada e quero a que já passou.

Meu coração segue sem destino pelas ruas da vida...


À procura de algo que preencha esse infinito vazio...
Quantas serão preciso?

Meu corpo é um balde que acumula medos e muitas mentiras de beijos e


orgasmos multiplicados pelas cicatrizes da alma que pena presa e sufocada
querendo o resto da respiração perdida.

Meus sentimentos são nuvens que não dão chuva e não geram colheita.
Mas tudo bem, nada foi plantado.

As sementes jogadas não encontraram solo nem mesmo arenoso.

O sol castiga,
Mas não vou reclamar, meu clima é climatizado.

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A NAU
Henrique Jardiel Poncela

Nublado em meus medos sem amor


Sofri toda essa ânsia, solidão
Contrato que firmei com minha dor
Seguir o meu caminho sem paixão

Orgíaco seguia, fútil amargor


Maníaco e demoníaco coração
Perfume em corpo e fétido pudor
Depressa o depressivo homem-cão

No Baco embalado no furor


Das noites de infância e recreação
Do bêbado momento, vida em flor

Embarco nesse barco condutor


Navio sem comandante ou capitão
Dos beijos que beijei por um valor

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DESCONEXO
Salvador Dali

Nutrirei meu lado esquerdo demagogo


Disfarçarei pedantismos pedagogo
Enforcarei feriado no sufoco
Versarei cada verso em verbo louco

Cantarei vocais cordas bicho solto


Beberei aguardente em quente fogo

Desprezarei
Todo teto, toda tralha e tal

Desprezarei
Tira teima e texto teatral

Desprezarei
Tamanco, tabaco, tutorial

Desprezarei
Túnica, Tebas, Taj Mahal

Desprezarei
Tu e o til da tez do ator total

Desprezarei
Tara touro um tera do termal

Desprezarei
Truta traz a treta até traval

Desprezarei
Tinta em tela toma tamargal

Desprezarei
Tabua do tabu tri tabucal

Desprezarei
Trena torta e tato trifocal

Desprezarei
Tatu torrado em terra tremedal

Tétano tutano inté e tchau

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LUSCO-FUSCO MÍTICO
Mário Quintana

Na rua ruim de minhas arruaças


De onde nascem flores, versos líricos
Regadas em ódio, brigas e murraças
Amadas pela amada e não por críticos

Nas plumas inspiradas, penas e asas


De longe as palmas gestos tão políticos
O gelo derretido apaga as brasas
Do lusco-fusco ofuscador e mítico

Cansado é o meu texto mesmo morto


Nascido ontem para cremação
Vertido mote em monte escroto e torto

Do falecido pensamento cão


Absurdo absorvo réu do instinto extinto
Beleza ganha o verso quando minto

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DESTILADO
Ludwig Wittgenstein

Na mão os visgos
Do puxa-saquismo
Elogiando rabisco
Do escritório em panela
Se cismo com cisco nos olhos alheios
Não mesmo,
Nem com os mariscos fétidos do hálito dos teus versos

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PONTO CEGO
Horácio

Vão à merda
Vão à merda víboras tagarelas
Vão à merda em anáforas
À merda de merda diáforas
Vão à merda assassinos meninos do povo facínora
Da diáspora e da gólgota
Vão à merda os grânulos dos glóbulos
Das superfícies ásperas citoplasmáticas
Do grupamento das pequenas partículas arredondadas
Estímulos de substâncias das células de minha secreção

Vão à merda
Mundo a fora que devora
Vão embora doutoras ensurdecedoras senhoras impostoras que imploram
O raiar da aurora que demora o agora que não haverá hora de chegar
Apenas o nunca de todo instante
Zombador do tempo exato cravado em ponto cego do relógio parado na parede

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VÔMITO

Marquês de Maricá

Não venha me dizer que a poesia será eterna


Do poeta debaixo da terra
Não comentamos nem os vivos poetas
Não relemos nem nossos próprios textos
E os jogamos a esmos como um esperma
Esperando que eles corram pelo mundo
Sem amparos, andadores ou muletas

A morte de um poeta é uma facada na poesia

E, com raras exceções, é enterrada viva e hemorrágica com seu falecido dono

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DESGOSTO
Victor Hugo

Meu reflexo no espelho cuspiu em meu rosto


A minha sombra fazia-me gestos obscenos
Traiu-me às costas

Nas encostas aves de rapina


Vôos rasantes
Gritavam-me ao pé do ouvido

O coração doído de tantos sentimentos falidos


Pulsava-me sangue enferrujado pelo uísque importado falsificado

O cigarro apagado de um lado


Um fósforo molhado, do outro
E eu aceso na escuridão dos meus medos

Pensando...

Pensando...

Pensando...

"Alguém ainda gosta de mim?"

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ATOS FALAM ALTO


Anônimo

Amor tem confiança, não aceita ledo engano


E desmascara todo aleive, todo riso falso
A falsidade sempre há de imperar um ano
Esmaga o tempo-amor, percalço calço em cadafalso

Vem, fala sério, como podes crer que eu queira dano?


Desgruda, tira o nó, desfaz-se assim o acordo balso
Consagra a mim, no peito crava a faca, foi-se fano
Cardume peçonhento, aguento o tranco até descalço

A vida sempre ensina cada dia terá seu mal


Contudo, segue em frente, bate o pé, levanta astral
Inclina a face, estufa o peito forte e abissal

Infante frente à guerra, pela terra nada a nau


A luta para si não para enfim a luz dos sóis
Tão alto são teus atos, nem escuto o som da voz

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FOFOCA
Provérbio turco

Não fale o que quiser e quando quiser


Aprenda a controlar a língua má
Seu freio mordaz a dentição qualquer
Se a boca fecha a mosca não vai lá

Também não há de vomitar na colher


Falar demais com gestos, deixa estar
A briga de casal, de homem x mulher
Qual triturada carne o linguajar

Aprenda e prenda a língua sua na boca


Enforque-a, force com a força bruta
Enfarte mas segure feito louca

Esquente mas aguente e vença a luta


Do vício que entranha como coca
Da gente que nem sente sua fofoca

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SONETO DE UMA RIMA SÓ


Gertrude Stein

Aristocrata preso em nobre ouro ensamblado


Banhado em prata faca mostra rosto esticado
A fruta em lata come e bebe e segue engasgado
Laranja em pata janta e dorme noites assombrado

Assume em ata exerce e escreve vícios acordado


Burguês na mata mata a caça em tiro ofuscado
Satã em sarta comprime escravos, reza perdoado
A mesa farta alastra e rompe um ego condenado

Um democrata oprime classes couro em estofado


Em concordata lucra percentagens malogrado
Em queda salta desce para cima afortunado

Jogar jogata vence a todos mesmo tão parado


A vida morta deve a alma em dia endiabrado
Em catarata vista grossa manda endinheirado

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SURTO
H. F. Amiel

Floriu no meu jardim qual flor tulipa


Amélia perfumada cores várias
Sorriso riu pra mim que a dor dissipa
A deusa deu-me luz videira agrária

Vez fértil fez-se minha participa


A chuva molha terra pulmonária
Espalha a maravilha o verde equipa
Tempera, aduba, nutre a vida pária

Mas nada dura em dura lida enliça


A pomba trouxe ao bico um ramo, um galho
E nasce nesse campo inteiriça

Uma erva cujo eu solo fui paspalho


A foto sem tua tese farta em furto
Orvalho órfão e só sem sol eu surto

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PISO DE GRANITO
Ovídio

Eu piso em piso de alto brilho são granitos caros


A marcha dessa minha vida foi recompensada
Por sobre trilhos sendo andarilho sem amparos
Agora em certa hora vida acorda artesoada

A lira canta ao lírio árias, ouço tom de avaro


Arteira arte vira céu um duro chão, calçada
Qual flecha fecha alvo, acerto todo meu disparo
Eu juro frente a juros lucro grana nessa alçada

Estendo mão pra nada, vem-me tudo a face, fácil


Bizarro garbo em garfo arfa a dor de muita inveja
Segredo assim calado nada falo sigo grácil

Estupidez estupefata viro a própria igreja


A carne gera carne vem os dividendos disso
E seguem mãos atadas paga alguém os compromissos

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RASGUEI O VÉU QUE ME ENCOBRIA

Antero de Figueiredo

Rasguei o véu que me encobria


E me vi dissimulado
Egoísta disfarçado de bom samaritano
Caloroso amigo minuano

Rasguei o véu que me encobria


E me vi arrevesado
Iluminando vida alheia
Com minha “pseudo-claridade”
Pura maldade maquiada de bondade

Rasguei o véu que me encobria


E vi minhas plásticas
Intrínsecas na pele da face, máscaras

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26

DESLOCAMENTO ZERO
Voltaire

Amanhã será ontem disfarçado de hoje


Como hoje amanhã será ontem
Como em o tudo sempre faltou parte
E em o nada que sempre teve algo em algum nunca

De esse tudo de um todo incompleto


De um espaço apertado e oco
De um interno exposto do externo reprimido

Cortem-se as rotinas daquilo que nunca foi feito


De esse nosso ir e vir de deslocamento zero.

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27

ATARANTADO

Plínio Salgado

Atarantado sou um ser atarantado


Ébrio sem álcool
Sedento por terra planetária

O alienista alienado de machado


Cortando árvores centenárias

De uma paixão rubro-negra insana


Aprendiz de artes marciais
Para evitar briga

Atarantado, sou um ser atarantado


Marciano de Júpiter,
Estrangeiro na Terra.

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28

COLECIONADOR DE SONHOS PERDIDOS


Talmude babilônico

Encontrei um sonho de uma menina na praia


Ela o perdeu por lá quando sua mãe se distraiu
E a deixou se afogar em meio a águas-vivas

Encontrei um sonho de um menino soltando pipa


Sonho anuviado devido à inalação de cola
E perdido numa chacina na Candelária.

Encontrei um sonho de um velho homem


Numa cadeira de balanço e com seu neto no colo
Mas este sonho foi perdido num asilo estadual
Jogado na sujeira e respingado de maus tratos

Encontrei um sonho, modesto.


Um cadeirante sonhava poder ir e vir
Ainda que em sua cadeira de rodas
Mas esse sonho caiu da escada
E espera por rampas

Encontrei um sonho de um Brasil melhor,


Esconderam tal sonho
Dentro de alguma peça íntima em Brasília

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29

CALEIDOSCÓPIO
J. Dryden

A paz existia em cantos separados


A guerra psicológica era até suportável

Mas um dia aconteceu

Foi silêncio
Até que se acordou o grito adormecido
Esquecido na garganta

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30

O TEU CABELO NÃO, NÊGA!

Lamartine Babo - Irmãos Valença

O teu cabelo liso desencrespa a vida?


A tua pele clara evita o anoitecer?
O teu cabelo duro amolece a lida?
A pele negra escura o amanhecer?

Em coma a justiça encontrará saída?


Tem como uma cor apagar um ser?
A clara em negra pele é coisa descabida?
A noite da história é dia de esquecer?

A cor de uma pele se trata feio SIDA?


A pele sem ter cor pode favorecer?
A cor acaso suja entrada ou saída?
Acaso uma cor pode pegar você?

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31

MALDADE DA CADELA
Platão

Vaga numa tortura circulada


Arma contra minh’alma desalmada
Deixe-a assim plena cíclica, ciúme
Ferro com fogo alarda meu costume

Praga d’uma formosura encantada


Cai, sarna! Afronta a calma descascada
Segue a mim, cisma do sísmico imune
Farpa com faca arranca este azedume

Queridinha da América, do norte


Feridinha segue aberta, da sorte
Cavidade da caverna perdida

Ladainha cadavérica, morte


O que tinha entre as pernas pra corte
A maldade da cadela da vida

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PETECA
Anacársis

Tem gente louca, metida e atrevida


Tentando descobrir o que não sabe
Deduz que em sua vida é bem quista, querida

E chega a interferir e a ferir


Sem você perceber
E suga sua energia
E espera o seu agradecer
E feito uma lombalgia
Fica grudada em você
E que jura ajoelhada
Que é por amor, bem querer

Que sabe seus problemas


Pra solução já tem esquema
E você nunca se deixou conhecer

Segure essa peteca


O que é que se pode fazer?

Visceral
33

SATURNAL
Jean-Paul Sartre

Horas vagas comprometidas


No calor de um gélido olhar fumegante de Vênus
Que já havia desprezado meus primos
Júpiter, Urano e Mercúrio
Dispensei a brisa
Entreguei-lhe anéis
Nada que ela fizesse atingiria minha alquimia

Eu chumbo

Eu saturno

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34

CYBERNÉTICO
Pablo Picasso

Jamais entenderei os meus bits e bytes


Ou o que dos meus kbytes

Das palavras que me entram ao ouvido


Que meu coração deleta ou processa como spam

Das mulheres que levei pra cama


Iludido pelo meu photoshop alcoólico

Dos meus “crtl-vês” para não continuar uma discussão


Das vezes que tive que reiniciar a vida
Porque ela travou sem motivo

Das vezes que fui infectado pelo vírus da cólera


Do mau humor, da arrogância
E não teve jeito
Foi preciso reformatar tudo, sem perdão

De o meu funcionar diário numa programação pirata


Meu convencional amplamente difundido
O ilegal implícito à cultura
Da ciência do meu cyber-saber
Da minha virtude em virilidade funcional virtual

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35

O MEL DAS COBRAS


Sadi

Tranquei-me nesse mundo sem juízo


Um mundo que só há lugar pra mim
O nada é eloqüente e exato
Escudo contra qualquer som de fato
Estudei o grande livro do feitiço
Olhei no grande espelho e me induzi
E cobri meu corpo com o mel de trinta cobras
Qualquer resgate, qualquer salvar soçobra
Tatuei meu corpo com palavras condenáveis
Ganhei vermelhidão no olhar
O sangue em gotas inundando meu rosto
E no espelho o outro cara não estava
Não quero mais nenhum disfarce
Mordido, enraivecido, eu quero encarar
Eu vi o doce mel mostrar toda a culpa

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36

RIO 2016
Mahatma Gandhi

Então foi assim,


Exército, marinha e aeronáutica
Resolveram,
Já que não cuidavam das fronteiras do Brasil,
Recolher algumas armas de suas várias relapsas vigilâncias limítrofes
Começaram pelo Rio de Janeiro
Recolheram as armas e drogas
Maconha prensada, crack e cocaína
Sendo que, como eu já disse,
Muito dessa cocaína havia entrado embaixo de seus narizes

E juntou-se a eles a polícia civil e militar


E realmente limparam as ruas das algazarras
O que há pouco tempo assustava com a ditadura
Hoje trazia segurança e alento
Tanques blindados, tropa de choque

Os bandidos foram presos


Acabou o comércio de drogas

Mas o caos continuou


Eles não haviam previsto
As alucinações e desvarios vários
Dos adictos usuários viciados enraivecidos
Em sua cólera fissura e crise de abstinência.

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37

MARISA

Cruz e Sousa

Marisa maresia o mar de flores


Salga demais o amor tão doce
Ócio oceânico, mar sem ondas
Cama sem corpos
Noite sem lua
Céu apagado de estrelas

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38

JAZIGOS
W Shakespeare

Dentro do escritório de segurança máxima eles usam o celular


E dão as ordens para sitiar a cidade
E de repente ficamos proibidos de ir à rua
Comprar pão, macarrão, feijão
Sem poder pisar na varanda
Trancamos todas as portas e janelas
Há que sobreviver sem ar nesses dias
Trancafiados em algum corredor do apartamento
Cercado pelo maior número de paredes
O mercado imobiliário aboliu o drywall
Os apartamentos de fundo e sem vista
Triplicaram o valor
O que somos nós cariocas amantes dessa cidade?
Alienados? Conformados?
Esperando flamengo, vasco, fluminense ou botafogo ser campeão
Não, não somos.
Somos sobreviventes, os de nós que ainda respiram.
Como guinus africanos atravessando um rio inundado de crocodilos
Do outro lado, na outra margem encontra-se um verde capim
É preciso atravessar o rio,
Como é preciso buscar o pão, o macarrão e o feijão
Como é do outro lado que estão as escolas
As fábricas, as oportunidades
Saímos de casa e atravessamos o rio
Alguns guinus são devorados
Faz parte de algo chamado cadeia alimentar
Como fazemos parte da cadeia alimentar da nossa política de segurança
Do nosso governo corrupto, da nossa moderna escravidão
Os mais fortes, sortudos e abençoados (ou malditos?) sobrevivem
Trancafiados em algum corredor do apartamento
Cercado pelo maior número de paredes
Com trancas em suas portas e janelas
Respirando o pouco de ar que lhes resta em seus jazigos

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39

SEM RUMO
Antoine Bret

Sem rumo, respirando sei lá como


Algo de mim ficou noutro lugar
Não recordo o que e nem quando
O local também me é desconhecido

Agora não lembro se sinto falta ou alívio


Se é um vazio ou uma cova o meu peito
Se há marcas da coisa ou daquela

Se tu foste garras de urso ou mandíbula de hiena

Visceral
40

LEDO ENGANO
Homero

Eu que pensei que o demonstrar amor


Seria tudo
Que entregar o mundo
E receber o nada seria o bastante
Que dedicar meu tempo
E direcionar minha vida por sua bússola
Seria mais que suficiente
Que abnegar o meu eu, colocando você em uma redoma
Fosse esplêndido
Pensei que seu sorriso diário fosse sinal de aprovação

Eu estava muitíssimo enganado

Visceral
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DESVARIO
Erasmo de Roterdã

Como dormindo não como


Mas dizem que o sono alimenta
Eu arvoredo enraizado na tormenta
Abraçado ao furacão

Cuspindo folhagens nas nuvens


Inundando o ar com aromas vários
De meus frutos apodrecidos
Recheados de larvas

Mastigo relâmpagos
Tusso trovões
Espirro granizos

Arranho o céu com minhas unhas mal roídas

Em longa estrada etária


Rogo a Deus vida curta
Trabalho pra isso

Vomitei a alegria
Quando o mau tempo tatuou-se em meu corpo

Desvairei-me

Roubei, pra mim, Katrina


Mulher de Tsunami
Geramos El Niño

E participei da festa licenciosa que desvirginou a natureza

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42

MOBILIDADE GODARD
Plutarco

Quem faz a vida agarrada ao triste


Descolado mundo
Perdendo horas contando seu tempo
Pra ganhar segundos

Quem faz a vida ímpeto em riste


Agarrado ao mundo
Preenche a casa e todo o seu espaço
De o seu perder profundo

O mundo está sempre girando


Sempre girando

Mas um dia o rio finda no mar


E finda vida cíclica
No mundo que sempre gira
E nunca irá parar de rodar
Mobilidade Godard
Misturando-se ao globo terrestre
Do formigueiro da fausta flora
Ao fulgente pico da montanha inabitável
Visitado pelos loucos visionários
Conquistadores de aventuras

Visceral
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THE BOOK IS ON THE TABLE


Isaac Asimov

Tudo o que aprendi foi que o livro deveria estar sobre a mesa
Nada mais
Pouco sabe minha língua
Enrola-se com outras línguas somente
Gosta de gostos diferentes

Minhas doloridas mãos nunca viram dólar verdadeiro


Apenas um dólar na carteira pra trazer a sorte que nunca tive
Pois tudo que aprendi foi que o livro deveria estar sobre a mesa

Is the book on the table?


The book is on the table

E por não saber a língua universal


Isolei-me
Pois não sabia ler o livro que estava sobre a mesa
E vi crianças zombarem de minha ignorância
Sabiam mais que figuras as sábias figuras
E o pouco que eu sabia se globalizou
E minhas pernas tremem a ausência de tremas na língua

E de nada adianta meu velho livro sobre a mesa

Ah, Manuel Bandeira


Volta à vida
Me dá um cigarro e um metro de trema medido na trena

Is the book on the table?


The book is on the table

Visceral
44

HAPPY BIRTHDAY, SAM


Pierre Véron

Nova York, 11 de abril de 2009


Saio pra caminhar a procura de algo que não sei o que é
Talvez um lugar para esquecer meu aniversário tão pontiagudo
Apesar de ser infinito o abismo em meu coração
Sempre procuro preenchê-lo de alguma forma

22h, Riverside com 81


A rua está em obras
O esgoto daqui tem o mesmo cheiro que o esgoto de onde eu vim
Olho os prédios e tento guardar na memória arquiteturas
Percebo que nem a da minha cidade tenho em mente
Pontos turísticos, nada mais que isso é o que lembro
Babaca que sou continuo a embotar o cérebro dessas imagens comuns
Sempre a procura de algo
Algo de bom tamanho para infinito vazio

Dez e alguma coisa da noite, 81 com a Broadway


Essa avenida me atravessa a angústia
Sabe o que procuro
Entro nela
Hei de me encontrar
Algo de bom tamanho
Um tampão

Acho estranho parar no sinal


Sem ninguém pra limpar meu para-brisa
Estaciono sem ajuda de flanelinhas
Sigo a procura
Sem saber o que reservaria aquela noite
Outra auto-tortura entorpecida
Ou mulher diferente de língua turva

Nunca transei com uma oriental


Tenho esse fetiche

Entro em algum boteco sofisticado da Broadway


Achei o que procurava e que nem eu mesmo sabia
Uma boa dose de uísque
E sax de John Coltrane, ainda que cover
Não levo embora nenhuma língua turva
Mas um desconhecido me deu um cubano de aniversário
Desses presentes que comemoram o teu nascimento e te matam aos poucos
Volto pro carro,
Queria a ajuda de um flanelinha só pra entrar no carro
Deslizo sem destino pelas ruas
81 com a Broadway

Visceral
45

Engraçado ou eu estou muito bêbado


Ou quando estava sóbrio andei na contra-mão
Tô nem aí
Fumei o cubano
No fim da noite, no começo do dia

HAPPY BIRTHDAY, SAM

Visceral
46

PRANTOS
Dante Aliguiere

Choro ser querida


Com vontade de sorrir
Agradar aprisionada
Em grades espessas
Aguardando o não porvir

Choro a minha flâmula


Inflamada e em chamas
Ensangüentada e em coma
Por não ser mais anêmona

Choro em pouca lágrima


Estudando os seus dogmas
Enlameada de drama
Contraste repentino

Choro o seu sorriso


E toda sua felicidade
Choro em desatino
Por minha realidade

Visceral
47

TROCA DE PLANTÃO
Aristóteles

Cheguei cedo
Vi quando o adúltero sol despachou a lua
E passou a paquerar a água do mar
Presenteando-a com uma incomensurável camada de ouro
Foi no horário do fim do plantão dos bêbados e prostitutas
Das esquinas da Av. Atlântica

Fim da mentira poética:

A verdade é que ainda tinha muita puta na rua


E bêbados jogados na calçada
E logo muitos outros chegariam
A água vadia do mar aceitou o ouro do adúltero
Mas permaneceu fria
Fria pra caralho

Visceral
48

MEU BEM QUERER


Arthur Schopenhauer

Queria morar num canil


Ou no zoológico
Quem sabe em densa selva inexplorada
Por homem algum habitada,
Nem índios?

Queria poder respirar embaixo d’água


E ser o único a conseguir isso
E morar no escuro do fundo do oceano
Sem telefone e nem mesmo relógio de mergulho

Queria ir pra um céu só meu


Único salvo
Ou pra um inferno em que outra pessoa não houvesse
Nem o cão de nenhum canil
Nem bicho de qualquer zoológico
Nem planta de nenhuma selva

Só quero um lugar pra respirar sozinho


Nem quero oxigênio pra me fazer companhia

Nem “eu” aceito

Visceral
49

A NADO
Joseph Roux

A nado carreguei para alto mar as pedras trituradas do meu sofrimento


Meu objetivo era construir uma ilha
Eu-rebocador – plataformas de areia
Eu, mergulhador, saturei além do limite aceitável
Estourei várias vidas na descompressão.

Meu objetivo: Construir uma ilha

Mas nasceu um continente;


Mais que isso,
Nasceu um mundo.

Visceral
50

CORAGEM
Pierre Augustin Caron de Beaumarchais

Sou capaz de enfrentar qualquer valentão que apareça


Não tenho medo
Já reagi a assaltos diversos da vida, da lida e à mão armada
Com grande coragem encarei tubarão em pesca submarina
Surfei mar revolto, subi em touro brabo,
Animais ferozes em densa selva
Passei em meio a tiroteio sem me agachar
Cirurgia, sem anestesia, fiz em mim mesmo
Mais de uma vez sem derramar uma lágrima
Sem um único “ai”

Apenas uma coisa não tenho coragem nessa vida:


Olhar em teus olhos e dizer que ainda te amo

Visceral
51

CERTO TEMPO
Confúcio

Ah! Se eu soubesse bem mais


Quando o agora era o meu certo tempo
O ontem de amanhã
Não me seria tão tenebroso
Como o hoje futuro

Pois eu sei

Quando o passado chegar


Será tarde demais
O futuro já terá aniquilado o céu do meu presente
Com seu manto
Cinzento
De pedras

Visceral
52

RENDIMENTOS
Leonardo da Vinci

Hoje recebi meus rendimentos


Ontem foi dia de pagar o que eu estava devendo
Amanhã vou pedir emprestado pra pagar o que estou comendo
Porque não rende muito meus rendimentos
Assim eu vivo sempre correndo
Correndo atrás de um tempo que dê tempo, mesmo que faça mau tempo
Percebi que em meu caminho, que sumiram flores, mas ficaram os espinhos,
Que por mais que eu ande sozinho
Sempre encontro alguém com quem me aporrinho
E sempre outro alguém que fala: “Não se apoquente, não ligue, não esquente
com essa gente ridiculamente deprimente.”
Pensei comigo, fazer o que?
Eu também não sou tão diferente
Mesmo que eu tente e invente métodos diversos
Sempre serei igual a todos, como todos o são no universo
Cansado, disperso
Correndo atrás de um reverso
Correndo cada minuto atrás de um tempo eterno
Tentando, como toda essa gente, ser diferente
Sem êxito,
Sendo igualmente ridiculamente deprimente
Com os meus rendimentos que não rendem.

Visceral
53

MULHER FRACIONADA
E. Pontich

Pensei ter você por inteira


Mas eu tinha uma mulher fracionada
Uma mulher que ocupava e estava em toda casa
Em parte, tinha você em parte
Em partes estava por toda parte
Não vem com aquele papo esquisito que eu sou de marte
Vi sua unha solta no meu travesseiro
Seus cabelos soltos lá no banheiro,
Os seus cílios lá na sala de estar
Eu fui pra rua
Sua cor foi pelo ralo
Causando-me abalo
Pois ficaram marcas no seu lugar
Suas nádegas desceram com a calcinha
Seus seios ficaram no sutiã
Eu dormi com uma
E acordei com outra pela manhã

Visceral
54

A MORTE

Vinicius de Moraes

Hoje fui acordado com um beijo


Era a morte me visitando
Vi o desespero circundar minha cama
Abraçado ao olhar do enfermeiro
Enfermeiro...
Tantas enfermeiras escolhi a dedo
Papai, pessoalmente, contratou um enfermeiro
Não reclamo
Engravidei minha última cuidadora
E não fosse a falta de ar
Talvez eu gostasse e quisesse o tal beijo matinal
Talvez ela volte à noite
Talvez me trague em um beijo fatal
Lembro-me da primeira carta
Direta, sem meias palavras
Diagnóstico: maligno
E eu que sou Áries descobri ser câncer
E não sei quantos dias me restam
Ou horas
Ou minuto ou fração do mesmo
Ela já pediu pra eu me desligar de tudo
Por isso há muito não administro meu dinheiro
Disse que não precisarei de carro, nem da charrete
Nem dos cavalos do sítio
Nem da casa de praia
Nem da prancha de surf
Há muito testamentei minha vida
Às vezes fico na janela esperando minha namorada
Essa que me beijou pela manhã
Ela vem cantando
Deixe de manha
Deixe de manha
E riu da minha água de cheiro importada
De fragrância prolongada
Comentou que mesmo com isso
Quando ela me levar em poucas horas meu cheiro será diferente
Às vezes quero que ela venha
Às vezes peço ao vigia que a detenha
Já pensei em me entregar a ventania
E ser adúltero nessa relação
Mas a ventania só quer passar o tempo (que eu não tenho)
Lá embaixo ela solta minha mão
E me entrega para aquela que me acordou com um beijo pela manhã

Visceral
55

DUAS LUZES

Mário Quintana

Arde e então sangra lentamente


Perdida entre a dor e doce sabor

Escondeste,
Não me avisaste o teu drama
Que depois do calor do desejo saciado
Em conversas dos corpos
Que se entendem e se entregam sem votos

Partiste,
E tal qual como chegaste
Às ocultas, calada, à surdina
Fui restando plangente na vida
E perdi o fechar das cortinas

Devolva a visão que me tiraste


Assopra toda a dor que me deixaste
Conserta meu chão pelo avesso

Apagaste nosso amor e nossa chama


Escondeste de mim a verdade
E partiste, deixaste a cidade
E cumpriste o que planejaste

Apagaste uma luz, pequena chama


Olvidaste minha parte no drama
E nas conversas dos corpos suados
Que se entenderam, arderam calados

Partiste,
Apagaste a luz pequena
Dirigiste um grande drama de cinema
Mas tua luz também se foi no fim cena

Visceral
56

BRUNA
Ovídio

A noite me fascina
A noite e a menina
A noite é a sina da donzela felina
À noite ela sai de casa
Vai da Glória ao Catete
Então um parceiro, um hotel barato
Fazendo amor sem culpa ou precaução
A mãe quis pô-la num internato
Mas isso ela não quis aceitar
Ao pai cobrava mais e mais
Mas só conselhos ele tinha pra dar:
▬ Tenha cuidado, Bruna! O que você tem feito para se ajudar?
A noite me fascina
A noite e a menina
À noite ela se pinta
E se vende na esquina
Numa noite ou madrugada
Um velho padre acordou
Perdeu o sono sem motivo
Foi à rua sem batina
Repentinamente então
Encontrou Bruna, meretriz
E disse a ela:
▬ Linda menina Deus pode te fazer feliz.
▬ Mas você parece padre ou se parece com meu pai
Já recebi tantos conselhos, mas ainda não enriqueci.
Vago pela estrada escura, procuro a luz do dia
O sol a minha procura, mas a noite me vigia
O meu futuro é mau.
O tempo passa, o sol chegando e de repente amanheceu
▬ Me desculpe, linda menina, eu volto pra casa de Deus.
▬ Você é padre então.
Noutra noite
Ou madrugada
Enquanto o padre repousou
A menina ia pra cama
Longe da casa do Senhor
Mas o tempo foi passando
E ela ficou doente
Foi à procura do seu tio
O mais próximo parente
▬ Me escute bem, menina. Você que nunca me escutou.
Se nunca ouviu nossos conselhos, procure outro protetor.
Ela retorna a cidade, sem ajuda, sem ninguém.
Até que se lembrou do padre
Do padre que a tratou tão bem.

Visceral
57

▬ Padre estou aqui de volta para me confessar


Arrependida, quero a saída, se é mesmo que há.
Numa noite ou madrugada
Dentro da casa do Senhor
A menina adormecia
Nos braços do seu protetor
Mas algo aconteceu de estranho
Algo sem tamanho
Coisa inesperada
Bruna testou de novo seu sangue
Fez mais de mil exames e apareceu curada
Um milagre aconteceu
Nessa noite
Ou madrugada
Enquanto Bruna festejou
Um velho padre falecia
Dentro da casa do Senhor
O padre morreu de AIDS.

Visceral
58

O TEMPO URGE
Sêneca

Eu preciso te falar uma coisa


E preciso te falar com urgência
Meu tempo é escasso
Meu tempo urge
E escapa das minhas mãos
Como se houvesse um buraco em meu corpo
Por onde perco todo meu sangue
Preciso te falar uma coisa
E preciso te falar com urgência,
Com extrema rapidez
Meu tempo é escasso
E me escapa pelos dedos
Como se houvesse um buraco em meu corpo
Por onde perco todos meus órgãos
E eu já tenho menos que as outras pessoas

Sê tu, ó Senhor, com essa alma se apagando


Sê com os seus filhos, com a viúva com seu pranto
Sê com o aluguel que ele andou atrasando
Sê com aquele carro que ele ainda ta pagando
Sê com seu salário que ele andou me dizimando
Sê com a viúva, continue pactuando
Sê com esse corpo já agora ta cheirando
Sê com a funerária que já-já já ta chegando
Amém

Descanse em paz, meu filho!

Visceral
59

AMIGO SOL

Cruz e Sousa

Amigo SOL para de esquentar com os humanos


Tu és superior a isso
Na estação que vigoras sai a maioria dos filhos,
É científico.

Não, senhor!
Para já com esta tormenta
Estás passando dos quarenta
Precisamos prorrogar o jogo
Dize-nos, como?
Responde-nos e te cultuaremos como os maias
Que dizimamos e não to ofertamos
Que te parece voltar a ser o Deus da fertilidade?
SOLetraremos em SOLos SÓ Louvor a ti
Ó, SOL do meio-dia
Ó, SOL da meia-noite

Bem aviso, desde já, ser necessário que administres


Nossa fé SOLuta com teu poder SOLvente.
Já passas dos cinqüenta, quem agüenta?

Querido SOL para de esquentar os humanos


São apenas seres humildes
Chega de revanchismo
De pagar na mesma moeda
Derreter nossas geleiras porque apedrejamos tua cara janela de O3

Amantíssimo SOL para de esquentar


Percebo como o tempo tem te fortalecido
Estás mais robusto,
Mais aquecido em vigor
Tem pena de nós
Ainda temos taaaanto para destruiiiirrrrrr!!!!

Visceral
60

PELEZINHO
Jorge Mautner

Malabarista
Parado no sinal
Sorriso cariado
Sem graça, sem graxa
Mas consegue seu Real
É crack nisso

Visceral
61

DIAMANTE
Woody Allen

Sou “di”amante
E me encontro no teu rio
Deslizando teus sulcos

Língua negra de furor


Penetra em busca do teu suco.

Gástrico.

Visceral
62

VENI VIDI VICI


Charles Baudelaire

Volta e meia
Fonte de vontades vizinhas
Vinha Vera Verônica varrer verdades vividas
Ventava ávida frente minha face
Fazia-se difícil vendo-me a mim

Ventilada favônia voz em favos


Volúpia vulcânica fortemente vitaminada
E vulva vermelha vacila venerando
A verve vertida em versos ferventes em veias volumosas do varão
Vestido e voltando, vulgarizei:
Veni, vidi, vici

Visceral
63

PÉROLAS AOS PORCOS


Rui Barbosa

Pérolas aos porcos eu não vou jogar


Não peça pra eu pedir desculpas só para me ver por baixo
Nem vem com mil achologias pra desviar minha certeza
Nem vem com sua prepotência mandando que eu mude
Eu vejo pelas suas fotos o quanto lhe falta saúde
Não vem com um papo sapiente do alcorão ao talmude

Pérolas aos porcos eu não vou jogar


Eu me recuso a agir do jeito que você quer
E não serei mais um tolo como os que estão a sua volta
Lembrar que já estivemos juntos causa em mim profunda revolta
Você confundiu o meu carinho com subserviência
Achou que eu aceitaria tudo, mas eu não fico mudo (não fico mesmo)

Pérolas aos porcos eu não vou jogar


E seguirei o meu caminho sem olhar para baixo, onde você está
E vou deixar você seguir em frente e observar o que vai dar
A seta desse seu caminho é a ponta do seu próprio calcanhar
Que ironia o destino me fazer encontrar alguém bem diferente de você
Essa merece pérolas e pérolas e pérolas

Visceral
64

SOU O QUE SOU


Petrônio

Pressão por todos os lados


Quem cria cobras é cobrado
Por resultados variados
Será mordido, envenenado
Parte do corpo amputado
O coração quase parado
Com o olhar arregalado
Mãos na garganta, sufocado
Fosse a vida só os dados
Escolhidos a dedo
Gerados para dar ao menos
Uma falsa ilusão de imensidão
Na nossa vida tão pequena
Amor
Eu já não lembro a última vez que beijei alguém por amor

Visceral
65

MENTE PRESA
Blaise Pascal

Eu nasci e cresci cercado de carinho


Filho único, boa escola e roupas de linho
Alta classe da cidade
No jantar, bom vinho
Meus amigos me invejavam em nosso clubinho
As garotas me cercavam pra me dar beijinhos
Motorista, empregados,
Cheio de padrinhos
Namorava só modelos, só corpo fininho
Mas fali, empobreci
Agora estou sozinho

Vai girando minha vida de ponta cabeça


Revirando minhas tripas, vira às avessas
Minhas mãos agrediram minha cara indefesa
Vou correndo já do espelho, vai que eu apareça
Pois confundo a minha fase com a própria tristeza
Vou comprar outra memória antes que eu me esqueça
Segue meu corpo ferido, minha mente presa
Trancafiada, confinada
Nem com chave inglesa

Visceral
66

TRISTEZA

Facundes Varela

Tristeza,
Eu sei que um dia alguém virá
Fará você desocupar
Seu reino, em meu coração, despótico
Tristeza,
Quando esse alguém acontecer
Não há porque se incomodar
Não ligue ou pense em escrever
Afaste-se irresistente
Não olhe para trás
Vá em paz,
Siga em frente

Tristeza,
A quem eu penso enganar?
Eu sei que esse alguém morreu
Com o sonho que não pude prolongar
E acordei lentamente

Tão triste é a solidão

Visceral
67

CABISBAIXO
Miguel de Cervantes

Dias e noites meu choro sem fim


Sem ter ninguém que chore por mim

Em minha garganta a voz me deixou


Minha visão insiste em ver nada
São tantas lágrimas que olhar se afogou
Minhas narinas estão constipadas

Visceral
68

MENTE INSANA
Clarice Lispector

Posso ouvir o meu piscar e o balançar dos meus cílios


Posso ouvir minha língua roçando inundando meus lábios
Posso ouvir o arranhar das lágrimas que rolam no rosto
Posso ouvir o som ensurdecedor quando elas caem no chão
Posso ouvir também sua lembrança passar por mim em minha mente
impertinente e insana
Posso ouvir o meu nascer de cabelos e quando eles morrem também
Posso ouvir o sangue correr por minhas artérias e veias
Posso ouvir meu ato de engolir e a saliva pela na garganta
Posso ouvir o descompassado bater desse meu coração
Posso ouvir também seu vulto passar por mim em minha mente impertinente e
insana
Sou tão sozinho que no silencio de casa posso ouvir o meu piscar
Tão sozinho que consigo ouvir meu sangue percorrer minhas artérias e veias
Posso ouvir o meu solitário barulho da ausência de som em minha mente
independente e insana

Visceral
69

VAZIO CONCRETO

Martin Lutero

Eu não sou boa companhia pra ninguém


Nem pra mim mesmo

Canso-me
Enjôo-me
Impertinente, inoportuno e inconveniente a mim mesmo

Estorvo enfadonho, entrave


Trave em minha vista
Som de mim que me irrita
Movimento descabidos
Desinibidos pensamentos tortos

Vasculho-me,
E nada há de interessante

As penas de ganso do travesseiro não me suportam também

Algumas passam pela varanda


E se jogam aliviadas entregues ao vento
Libertas de mim

Visceral
70

KNOCKDOWN
Camilo Castelo Branco

O seu rosto é tão marcado


Pelo sol e pelo sal
Hoje o mar não ta pra peixe
Seu primeiro knockdown
Seu pequeno barco afunda
Ao se chocar com grande nau
Agarrado ao seu leme
Sofre outro knockdown
Por milagre chega em casa
Vê suas roupas no quintal
Maria tinha outro
E esse golpe foi fatal

Visceral
71

EXPECTATIVA DE VIDA
Safo de Lesbos

Um filho não deveria partir antes do pai


Não mesmo
Ainda mais sendo o pai tão idoso

Como pode uma pessoa de oitenta


Ter uma expectativa de vida
Maior que a de uma pessoa de trinta e poucos
Só por causa de um maldito diagnóstico
Feita por uma máquina com menos de dez anos?

Nunca consultei cartomante


Nunca cigana
Jamais shaman

Tento esquecer meu passado


Omito-me do presente

E algum maldito me revelou o futuro

Então fico acordado


O máximo que puder

Porque sei que não acordarei um dia

Visceral
72

POSFÁCIO

Nesta obra, o poeta despido de todo o seu lirismo habitual nos apresenta
como o próprio título antecipa, versos carregados de uma ira e uma revolta toda
particular contra tudo aquilo que sente de errado, podre, miserável e sujo na
percepção tanto de sua realidade de ser humano como da realidade do mundo.
E ao observar essas realidades bem de perto através de sua lente
diferenciada, mas ao mesmo tempo bastante similar à visão de nós, leitores,
Axills expressa esses sentimentos como um soco direcionado na boca do nosso
estômago a fim de nos causar a mesma sensação de náusea e enjôo sentidas
por ele.
Trata-se de uma sensação que vai muito além dos nossos cinco sentidos,
atingindo um nível tão denso e profundo, que chega a doer e revirar as vísceras,
pois o contato íntimo e sincero tanto com nós mesmos como com a realidade
que nos cerca nunca é feito senão através de uma maneira perturbadora e
inquietante, uma vez que dificilmente estamos preparados para o
reconhecimento de algo que até então nos parecia perfeitamente normal e
aceitável.
Entretanto, ao tomarmos conhecimento de outra forma de percepção
advinda de uma visão diferenciada da nossa, trazendo uma nova proposta de
reflexão, temos a possibilidade de nos reavaliarmos enquanto seres humanos,
bem como de repensarmos nossas interferências e atitudes dentro desta
realidade da qual, todos fazemos parte.
Podemos dizer então que o objetivo deste Visceral é – levar-nos a uma
reflexão intensa sobre o nosso já rotineiro hábito de fecharmos os olhos e nos
omitirmos de questões do dia a dia que fariam toda a diferença em nossas vidas
se agíssemos de modo diverso, ou seja, do modo como realmente deveríamos
agir tanto em nível particular como em nível de sociedade.
Sem dúvidas, uma obra feita para pensar.

Alessa B.
Professora Pós-Graduada em Literatura e Poetisa

Visceral
73

MUSICAL

O mundo é tão grande, se não me querem lá vou pra sol

Visceral
74

MINIBIOGRAFIA

Axills (Samuel Achilles), músico e escritor, nasceu no Rio de Janeiro no


bucólico bairro de Santa Tereza. Tem como ídolos literários Carlos Drummond
de Andrade, Vinicius de Moraes, Machado de Assis, Manuel Bandeira, etc..
Apesar do gosto musical eclético, tem preferência pela bossa-nova e música
popular brasileira dos anos 60/70.
Eis uma frase de como o autor se define: "Sou alguém que se esconde em si
mesmo por entrelinhas e notas musicais".

Visceral
75

CONTATOS COM O AUTOR

Recanto das Letras


http://recantodasletras.uol.com.br/autores/axills

Axills Blog
http://axills.blogspot.com/

Palco MP3
http://palcomp3.com/axills/

E-mail: axills@hotmail.com

Visceral
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Nesta obra, o poeta despido de todo o seu


lirismo habitual nos apresenta como o próprio
título antecipa, versos carregados de uma ira e
uma revolta toda particular contra tudo aquilo
que sente de errado, podre, miserável e sujo na
percepção tanto de sua realidade de ser humano
como da realidade do mundo.

Podemos dizer então que o objetivo deste


Visceral é – levar-nos a uma reflexão intensa
sobre o nosso já rotineiro hábito de fecharmos os
olhos e nos omitirmos de questões do dia a dia
que fariam toda a diferença em nossas vidas se
agíssemos de modo diverso, ou seja, do modo
como realmente deveríamos agir tanto em nível
particular como em nível de sociedade.
Sem dúvidas, uma obra feita para pensar.

Alessa B.
Professora Pós-Graduada em Literatura e Poetisa

Visceral

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