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O Império por

Escrito
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(. XVI-XIX)

Leila Mezan Algranti


Ana Paula Torres Megiani
(orgs.)
O percurso das
Trovas de Bandarra:
Luís Filipe Silvério Lima
circulação letrada de um Universidade Federal
profeta iletrado1 de São Paulo

A proposta desse texto é discutir o percurso das Trovas de Bandarra, tendo como
eixo o séc. XVII, quando o corpo principal das Trovas foi estabelecido, com 159 es-
trofes distribuídas por uma “dedicatória”, três “sonhos” e uma “resposta”. Foi no séc.
XVII que as Trovas foram impressas pela primeira vez, parcialmente, na Paraphrase
et concordância de algvas prophecias de Bandarra2 feita por d. João de Castro em 1603
e, supostamente completas, na edição de Nantes, em 16443 (e depois só novamente a
partir do séc. XIX). Foi também ao longo dos seiscentos que os “sonhos” de Bandarra
encontraram seus primeiros comentadores, no que foi entendido como a criação de
um “sebastianismo letrado”4 e, depois, dentro dos esforços de legitimação da dinastia
dos Bragança. Nessa produção, os letrados sebastianistas e brigantinos (ou mesmo
seus opositores) preocuparam-se em definir o texto mais próximo das Trovas (e que
se adequasse melhor a seus propósitos) ao mesmo tempo em que marcaram o es-

1 Esse texto foi escrito e apresentado graças ao auxílio da Capes, por meio de um proje-
to desenvolvido com uma bolsa ProDoc, no Programa de Pós-Graduação em História da
UFPR.
2 J. Castro. Paraphrase et concordancia de algvas propheçias de Bandarra, çapateiro de
Trancoso, por Dom Ioam de Castro. (Fac-símile da edição de 1603) Porto, Lopes da Silva,
1942.
3 Trovas de Bandarra Apurada e impressas, por ordem de hum grande Senhor de Portugal.
Offereçidas aos verdadeiros Portugueses, devotos do Encuberto. (Reprodução fac-similada
da edição de Nantes, por Guillermo de Munier, 1644). Lisboa, Inapa, 1989.
4 J. Hermann. No reino do desejado. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 219.
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tatuto de iletrado de Bandarra e a necessidade da interpretação das suas profecias,


seguindo os padrões teológicos da exegese bíblica.
A descrição geral desse percurso não apresenta substanciamente novidades e já
foi traçado, com maior ou menor detalhes, entre outros, por J. Lúcio de Azevedo, José
Van Den Besselaar, Aníbal Pinto de Castro e Jacqueline Hermann5. Cabe, porém, re-
desenhá-lo acrescentando alguns elementos, coordenando outros, e, sobretudo, tendo
em vista a construção da estrutura das Trovas (consolidada em meados do séc. XVII)
e a circulação entre produção oral e letrada, caminho apontado por Hermann.
As informações mais antigas que temos das Trovas bem como as poucas que
temos sobre seu autor, o sapateiro Bandarra, estão no processo da Inquisição de 1541
contra o sapateiro e umas suas trovas6. As trovas foram compostas entre as décadas
de 1520 e 1530 por esse sapateiro da vila de Trancoso, não se sabe ao certo se cristão-
velho ou novo, e que, em viagem à Lisboa, divulgara e interpretara suas trovas. Escritas
por ele em um caderno, foram produzidas por conta do seu veio em fazer trovas e de
suas interpretações da leitura da Bíblia (em linguagem). Segundo ele afirmou aos in-
quisidores, tudo em homenagem ao rei, d. João III.
No processo de 1541, há alguns poucos versos das Trovas7 e de coplas atribuídas
ao espanhol Pedro Frias, ligadas ao mito de um rei Encoberto e acerca da vitória dos
cristãos sobre os turcos, sobre as quais teriam pedido a interpretação de Bandarra.
Além disso, pelo processo podemos ver que Bandarra fez circular suas Trovas em suas
andanças, com sucesso, nas partes do Reino – e, em especial, entre os cristãos-novos
de Lisboa e os da sua vila, que estavam à espera do Messias8. Por conta disso e por ser

5 J.L. Azevedo. A evolução do sebastianismo. Lisboa, Presença, 1984; J.V.D. Basselaar. Se-
bastianismo –uma história sumária. Lisboa, ICLP, 1987; J.V.D. Basselaar. Antônio Vieira.
Profecia e polêmica. Rio de Janeiro, EdUerj, 2002; A.P. Castro. “Introdução”. In: Trovas de
Bandarra, op. cit.; J. Hermann. No reino do desejado, op. cit.
6 O processo da Inquisição de Lisboa, depositado na Torre do Tombo (IAN/TT, Inq. Lisboa,
proc. n. 7197, pasta 8), está transcrito em: Processo de Gonçalo Annes Bandarra. (transcr.
de Arnaldo da Soledade) Trancoso, Câmara Municipal de Trancoso, 1996.
7 Nos fol. 1v-2, aparece a seguinte estrofe, que corresponde à 78 da edição de Nantes de
1644: “Um grande leão se erguerá/ e dará grande bramido,/ seu brado será ouvido./ A todos
assombrará/correrá e morderá/ e dará grande bramido,/ seu brado será ouvido,/A todos
assombrará,/ correrá e morderá./ E fará mui grandes danos,/ grandes Reys dos Arianos/ A
todos subjugará”. Essa é a única estrofe inteira transcrita no processo.
8 Cf. M.J.F. Tavares. “O Messianismo Judaico em Portugal (1ª metade do século XVI)”. Luso-
Brazilian Review, vol. 28, nº 1, (Summer, 1991), pp. 141-51.
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amigo de novidades, foi proibido de ter outros livros além da Bíblia e do Flos Sancto-
rum e de escrever, proferir ou interpretar suas trovas.
Apesar dessa condenação inicial em 1541, as Trovas continuaram a circular ma-
nuscritas, a contar da necessidade em 1581 de colocá-las no Catalogo dos livros que
se prohibem n’estes reynos e senhorios de Portugal, coordenado pelo Frei Bartolomeu
Ferreira – o mesmo que fora censor dos Lusíadas. A hipótese mais aventada para essa
inclusão no oitavo índex do Reino era pelo sucesso que tinha, não só entre os cristãos-
novos, mas também entre os que se opunham à aclamação de Filipe II como rei de
Portugal ou estavam à espera da volta do Encoberto, identificado em d. Sebastião. Um
exemplo está num caderno escrito entre 1579 e 1582, possivelmente em Guimarães, no
qual aparecia um testemunho das “Trouas que fez Gº. Añes ho Bandarra çapateiro de
remendão natural de Trancoso. A modo de prophetia e avera 32 anos que morreo”9.
Contendo somente 39 estrofes, sem a divisão por “sonhos” (ou mesmo menção
às Trovas como sonhos), teriam sido transladadas em 1579, sob o impacto de Alcácer-
Quibir. Com as Cortes de Tomar, em 1581, foram feitos alguns aditamentos e acres-
centou-se uma nota falando da luta de d. Antônio, Prior do Catro (tratado como “elRej
dom Antonio”), contra Felipe II, mencionado como “Rej de Castella”. No restante do
caderno de 13 folhas, uma compilação de profecias de Santo Isidoro de Sevilha, um
memorial dos eventos após o desaparecimento de d. Sebastião na África, um manifes-
to de um “discreto” contra a união das coroas – sinais que indicam ser o compilador
do manuscrito favorável à causa de d. Antônio ou, pelo menos, contrário aos Áustrias.
Das 39 estrofes, somente quatro não são encontradas entre as 159 da edição impressa
de 1644, e três dessas são os versos de Pedro Frias que estão no processo de Bandarra
e que teriam pedido para o sapateiro interpretar10.
Além de circularem manuscritas, eram adaptadas e apropriadas, às vezes sem
referência ao sapateiro de Trancoso. Nos cadernos do Inquisidor, foi narrado o caso,
em 1582, de dois cristãos-novos da Guarda, o médico Antonio Vaz e seu irmão Luiz,

9 Transcritas por João de Meira em: “Subsídios para a Historia Vimaranense”. Revista de
Guimarães, 24 (2), Abr-Jun 1907, pp. 68-78. Meira coteja as estrofes com algumas edições
impressas do séc. XIX das Trovas e com as citadas por Vieira na carta “Esperanças de Por-
tugal”.
10 “36. Em campo venezeaños/ Se daraõ huma batalha/ emtre moros e cristiaños/ Soaraõ
arnez e malha/ 37. Morreaa em a batalha muyta da gente christaõ/ e sem cõto da paguaõ/ E
naa no temeis por falha/ 38 Seraa em ho mez de octubro,/ que a escriptura naõ erra;/ avera
victoria da guerra/ hum Rej que eu não descubro.” Essas estrofes correspondem aos versos
de Pedro Frias no processo de Bandarra, que estão no fol. 5v.
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que cantavam trovas que chamavam “sonhos” anunciando a espera do Messias11. Os


seus versos eram adaptação de umas estrofes depois assumidas como de Bandarra que
não estavam nem no processo nem no manuscrito de Guimarães. Ao fim dos versos
similares aos de Bandarra, os “sonhos” dos dois irmãos eram finalizados falando da
chegada da salvação do povo judeu e da chegada à “terra do prometimento”. A contar
pelas notas do Inquisidor, não se percebeu que esses versos eram semelhantes aos
de Bandarra, ainda que os irmãos habitassem tão próximo da cidade de Bandarra,
Trancoso. Talvez porque não houvesse ainda um corpo definido das Trovas12. Ou se
estivesse mais preocupado com o aspecto judaizante das coplas; aspecto que deu iní-
cio a um processo contra o médico e o seu irmão. Sobretudo, a preocupação do Santo
Ofício era com o fluxo de coplas que pudessem suscitar perturbações na comunidade
cristã-nova à espera do seus messias em momento delicado do reino português, no
qual muitos também esperavam a volta de d, Sebastião13.
Os manuscritos das Trovas, entretanto, não circularam só em Portugal, nem só
entre cristãos-novos, sebastianistas ou partidários de d. Antônio. Em 1588, o arce-
diago de Segóvia, Juan de Horozco y Covarrubias, citou as Trovas como exemplo de
apropriação por profetas falsos de profecias verdadeiras, no caso de Bandarra dos
vaticínios atribuídos a Isidoro de Sevilha sobre o Encoberto. A citação de Covarru-
bias apareceu no capítulo 14 do seu Tratado de la verdadera y falsa prophecia14, e era
uma passagem na qual “un çapatero en Portugal que foy tenido por propheta”, por ter
lido as profecias de Isidoro de Sevilha, previra que os reinos de Portugal e Castela se
juntariam nos versos: “Vejo vejo do Rey vejo, vejo o estoy soñando simiente do Rey
Fernãdo fazer vn forte despejo, e seguir gran desejo./ a dexar a ca sua viña,/ e dezierta
casa a miña./ en que agora acame sejo”15. Essa variante da estrofe de Bandarra (a déci-
ma sétima da edição de Nantes, que abre o “sonho primeiro”), bem como a sua leitura
por Covarrubias foram tema de debate nas polêmicas sobre a legitimação profética da

11 IAN/TT, Inquisição de Lisboa, Caderno do Inquisidor, Livro n. 197, f. 233-237.


12 Poderíamos inclusive perguntar se de fato originalmente os versos circulavam como sendo
de Bandarra, ou se foram depois apropriados pelos bandarristas e inseridos nas Trovas.
13 Sobre isso ver: D.R. Curto “Ó Bastião, Bastião”. In: CENTENO, Y. K (ed). Portugal: Mitos
Revisitados, Lisboa, Salamandra, 1993, pp. 139-76.
14 J. Horozco y Covarrubias. Tratado de la verdadera e falsa prophecia. Segovia, of. De Juan
de La Costa, 1588, cap. XIIII.
15 Idem, pp. 38-9 (à margem).
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dinastia brigantina, com a Restauração de Portugal Prodigiosa (1643), e depois com o


pe. Antonio Vieira16.
Em 1603, as Trovas saíram, pela primeira vez, impressas e comentadas na Pa-
raphrase et concordancia, de d. João de Castro17. É também o primeiro testemunho
mais completo que temos das Trovas. Segundo seu compilador e comentador, seria o
mais próximo das Trovas originais proferidas pelo Bandarra. Baseando-se em diver-
sas cópias, buscou o que considerava a mais verdadeira para afastar os erros que se
propagavam por cópias más e defeituosas18. Dizia proferidas porque, para d. João de
Castro, Bandarra não as escrevera pois era analfabeto, rústico e idiota, tendo sido as
Trovas iluminação do Espírito Santo. Esse fato seria uma das razões que comprova-
riam serem profecias verdadeiras e permitirem uma interpretação de seus versos para
mostrar o futuro de Portugal. Eram 87 estrofes, apresentadas uma a uma, sem divisão
por partes ou “sonhos” (com exceção de um “prólogo”), seguidas de comentários que
faziam uma exegese de seu significado e revelavam que o Encoberto era d. Sebastião e
que o último império do mundo seria Portugal.
D. João de Castro fizera parte dos últimos anos da corte itinerante do Prior
do Crato. Após a morte de d. Antonio havia se exilado em Paris, com um grupo de
portugueses que acreditavam ter encontrado em Veneza o verdadeiro d. Sebastião e
que tiraria os espanhóis do trono português e levaria Portugal à Quinta Monarquia19.
Foi no exílio em Paris que se dedicou a escrever 22 volumes de obras (a maior parte
manuscrita e inédita até hoje) dedicados exclusivamente a esses temas. Esses volumes
hoje estão na Biblioteca Nacional de Lisboa, mas é possível refazer o percurso dela até
pelo menos meados do XVIII quando pertenciam ao irmão de Barbosa Machado, d.
José Barbosa, clérigo regular, cronista da Casa de Bragança e censor da Academia Real
de História, onde foram examinados e comentados em sessões da Academia20.

16 Sobre isso ver artigo meu: L.F.S. Lima. “‘Vejo, agora que estou sonhando’: o problema do
sonho e da visão em comentários seiscentistas às Trovas de Bandarra”. Cultura: revista de
História e Teoria das Ideias, (Lisboa) v. XXI, 2006, pp. 205-31.
17 J. Castro. Paraphrase et concordancia de algvas propheçias de Bandarra, çapateiro de
Trancoso, op. cit.
18 Para Sampaio Bruno (que editou o fac-símile em 1901), a Paráfrase era uma versão fide-
digna do que teriam sido as cópias existentes das Trovas (depois adulteradas pelos joanis-
tas). Sampaio Bruno fizera uma edição fac-similar a partir de um exemplar que lhe caíra
em mãos no Porto. Considerava-o (e ainda o é) um texto raríssimo. (O Encoberto, [1904]
Porto, Lello & Irmãos, 1983, p. 155ss.)
19 Sobre isso, ver: Y.M. Bercé. O rei oculto. Bauru, Edusc, 2003, cap. 1.
20 D.B. Machado. Bibliotheca lusitana, Lisboa, CNCDP, s/d, verbete “D. João de Castro”.
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Impressão mais completa e que, de certa maneira, tornou-se a definitiva, foi


aquela feita em Nantes em 1644, patrocinada pelo Conde de Vidigueira, dom Vasco
Luís da Gama, então embaixador extraordinário de d. João IV na França, instituído
para pedir apoio à coroa francesa na guerra de Restauração contra a Espanha. Edição
definitiva, porque foi a partir dela que se fizeram muitas das cópias manuscritas nos
séc. XVII e XVIII (que são as que temos) e mesmo depois as edições impressas, que
voltaram a ser publicados no séc. XIX. Completa não só pelo maior número de estro-
fes, mas também porque seguiu uma ordem e apresentou o texto de modo corrido,
sem a interpolação e quebras dos comentários. Além disso, foi quando apareceu a
divisão em três “sonhos”.
De certo modo, tornar-se referência e padrão das Trovas era a intenção do com-
pilador e talvez de quem tenha patrocinado a impressão, pois, como a autor da Pa-
raphrase, também queriam acabar com a circulação de manuscritos corrompidos, e
“ficar só o graõ, e deitar fora do tabulleiro o joyo, e a eruilhaca”21. Não diferiam muito,
as estrofes da Paraphrase de d. João de Castro das da edição de Nantes, mas algumas
diferenças, como mostraram Lúcio de Azevedo e Aníbal Pinto de Castro, são impor-
tantes porque reforçam ou não a interpretação favorável à d. Sebastião ou d. João IV. O
caso mais famoso é do Foão e do João, que na estrofe 88 de Nantes aparece:

“Saya, Saya, esse Infante


Bem andante,
O seu nome he Dom IOAM.”

Vaticínio que seria uma das seis razões para que o rei Encoberto fosse d. João IV,
segundo o autor do prólogo “Aos verdadeiros portugueses, devotos do Encoberto”, que
abre a edição de Nantes. Segundo Besselaar, o prólogo teria sido escrito pelo dominica-
no Manuel Homem22, que estava na França em 1644, acompanhando, como confessor,
o Marquês de Cascais, enviado numa embaixada para saudar o recém-entronado Luís
XIV. Fr. Manuel Homem era autor de Ressurreição de Portugal, morte fatal de Castela, e
outros textos (manuscritos e impressos) que defendiam a causa restauracionista e dos
quais alguns (incluso o Ressurreição de Portugal) tinham sido impressos pelo mesmo
impressor das Trovas em Nantes, Guillermo de Mounier23.

21 Trovas de Bandarra, op. cit., p. 64.


22 Besselar, Sebastianismo, op. cit., p. 91.
23 Para uma lista das obras de Manuel Homem, ver o Diccionario Bibliographico Portuguez,
Lisboa, CNCDP, s/d, [CD-ROM].
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Aníbal Pinto de Castro comparou, uma a uma, as estrofes da Paráfrase com a de


Nantes. Há essa e outras pequenas variações, mas das 87 estrofes comentadas por d.
João de Castro, somente duas não apareceram na edição de 164424. A diferença entre
as duas impressões estava, sobretudo, na disposição e organização das estrofes. Além
disso, quase todo o “sonho terceiro” da edição de Nantes não existe na Paraphrase.
Como d. João de Castro, o compilador de Nantes assumiu que Bandarra era
analfabeto, o que inclusive reforçaria a justificativa da profusão de cópias tomadas a
partir do contar das trovas pelo seu profeta – argumento utilizado por Castro e Vieira
para legitimar a veracidade das profecias do sapateiro. O interessante é que da edição
de Nantes (bem como da Paráfrase) poucos exemplares sobraram (em Portugal, ao
que parece, só na Biblioteca de Coimbra) – o que contrasta com a quantidade de có-
pias manuscritas que sobreviveram nos arquivos.
Se a edição de 1603 foi feita contra os monarcas que estavam em Portugal, a de
Nantes foi pensada como forma de apoio ao rei d. João IV, o Restaurador. Bandarra,
inclusive, ganhou um estatuto quase santo, ao ser colocado em altares de Igrejas para
agradecer à Restauração e o fim da Monarquia Dual25. Mesmo assim, as Trovas não
foram impressas em Portugal, mas na França, ainda que em vários textos aprovados
pelo Santo Ofício houvesse menções, referências, transcrições de excertos e mesmo
interpretações das Trovas, como o Restauração de Portugal Prodigiosa (algo lembrado
por Antonio Vieira, ao ser processado pelo Santo Ofício). O que indica que mesmo
sendo aclamado como profeta da Restauração, havia certo receio (ou uma proibição
latente) em se mandar imprimir suas Trovas no reino português.
Mesmo esse status não durou muito, pois em 1665 foi publicado pelo Santo Ofí-
cio um edital impresso que proibia expressamente as Trovas porque da sua publiciza-
ção e leitura poderiam “resultar grandissima perturbação no espiritual, & temporal”26.
Nessa mesma época, sob a coroa de d. Afonso VI e depois a regência de d. Pedro, Vieira
era processado, em grande parte, pelas suas interpretações das Trovas e suas ideias
sobre o Quinto Império, que seria encabeçado pelos Bragança. A peça inicial do pro-
cesso foi a carta “Esperanças de Portugal”, escrita em 1659 no estado do Grão-Pará e
Maranhão, que afirmava a ressurreição do recém-falecido d. João IV a partir da leitura

24 A.P. Castro. “Introdução”, op. cit., pp. 15-8.


25 Cf. J.F. Marques. A parenética portuguesa e a Restauração. Porto, INIC, 1989.
26 Edital Impresso do Conselho geral do Santo Officio em que prohibe a liçaõ das obras do
Bandarra, dada em Lisboa em 1665. folha gr. Colado no Códice 459, da Série Vermelha, da
Academia de Ciências de Lisboa.
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das Trovas de Bandarra27. Vieira se baseara na carta, a ver por variantes das Trovas nas
suas citações, provavelmente em uma versão manuscrita feita a partir da edição de
Nantes, enquanto que, durante o processo, tanto em suas respostas aos inquisidores
quanto nos textos de defesa que redigiu, só tinha a memória. Vale notar que no pro-
cesso contra Vieira, reforçava-se que, além de suspeito de judaísmo, Bandarra, por ser
idiota, homem sem letras, não poderia interpretar as Sagradas Escrituras28.
Não deixa de ser interessante notar que a proibição das Trovas pelo Santo Ofício
se deu dois anos após iniciarem o interrogatório de Vieira, fundamentado em um
primeiro momento nas suas interpretações dos “sonhos” de Bandarra. Ou seja, poderí-
amos até supor a título de hipótese que para dar sustentação aos argumentos da acusa-
ção e enfraquecer os do réu, figura de relevância e de autoridade, ajudaria deslegitimar
um de seus pilares fundamentais. Mas não só por isso. Somado à peça acusatória,
em torno das interpretações de Vieira sobre as Trovas, circularam textos manuscritos
polemizando a sua leitura e defendendo que o Encoberto ainda seria d. Sebastião29.
Polêmicas que podem ter catalisado a proibição do Santo Ofício, pois perturbadoras
da paz essencial para o bem comum e para o ordenamento espiritual, em um momen-
to que as Guerras de Restauração apontavam para seu termo e havia um problema de
legitimidade do rei entronado.
Na primeira metade do séc. XVIII, às questões em torno dos três “sonhos” jun-
taram-se outras suscitadas por novos corpos de profecias atribuídas ao Bandarra. Em
1720, surge o chamado segundo corpo das Trovas, que, segundo Besselaar30, foi escrito
contra a construção de Mafra e do aumento das taxas por decorrência disso. Não teve
muita repercussão ao que parece e mesmo não há muitas cópias manuscritas dele – ao
contrário dos baseados na edição de Nantes e no que foi chamado de terceiro corpo.
O terceiro corpo surgiu em 1729, como está declarado na maior parte dos tes-
temunhos e em uma edição de 23 de agosto de 1729 das Gazetas Manuscritas de Évo-
ra31. O terceiro corpo era composto por mais seis sonhos com em torno de umas 30
estrofes. Teria sido encontrado numa parede oca da igreja de Trancoso e ditado pelo

27 A.Vieira. “Esperanças de Portugal” (edição comentada por Besselaar). In: J.V.D. Basselaar.
Antônio Vieira. Profecia e polêmica. op. cit.
28 Cf. Os autos do processo de Vieira na Inquisição (org. Adma Fadul Muhana). São Paulo,
Unesp, 1995.
29 Sobre essas polêmicas ver: J.V.D. Besselaar. Antônio Vieira. Profecia e polêmica, op. cit.
30 J.V.D. Besselaar, op. cit.
31 J.L. Lisboa; T.C.P.R. Miranda; F. Olival (ed.); Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de
Évora, vol. I, 1729-1731. Lisboa, Edições Colibri, 2002, p. 48. Agradeço a indicação de Tiago
dos Reis Miranda.
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sapateiro para o pároco da igreja que recebera ordem ainda de escondê-la dentro da
parede da igreja para ser descoberta no futuro. Mais uma vez, Bandarra era descrito
como analfabeto, mas aqui ele elegera um escrivão, que não só copiava, mas também
autorizava suas Trovas, por ser letrado e eclesiástico. Assim que chegou a notícia da
“descoberta”, o Santo Ofício teria mandado apreender as novas trovas. Mas isso não
adiantou. O terceiro corpo, a contar pelas inúmeras cópias32, teve uma ampla circu-
lação. Inclusive, em alguns testemunhos, se copiava a edição de Nantes e depois o 3o.
corpo, uns dizendo que o Encoberto era ainda d. Sebastião outros apostando em d.
João V.
Talvez por essa ampla circulação na primeira metade do séc. XVIII, em 14 de
junho de 1768, já sob Pombal, a Real Mesa Censória proibiu as Trovas, atribuindo sua
autoria a Vieira e aos jesuítas, e junto a outros textos de caráter profético e messiâni-
co33. Com o processo contra Bandarra, a inclusão no Catálogo de livros proibidos, o

32 Só para citar algumas: “Trovas que dictou Gonçalo Annes Bandarra no anno/ de 1527 pa.
1528 e foram achadas no anno de 1729 a/ 6 de agosto na parede da Igreja de S. Pedro da Va.
de/ Tranquozo querendose reformar a mesma Igreja por / ameacar Roina”. 4p., sem nume-
ração, Academia de Ciências de Lisboa, Manuscritos da Série Azul, Códice 1116; “Copia das
trouas q se acharaõ na parede da Igreja S. Pedro da Vla. De Trancoso, qdo. se demolio p a. se
reedificar em o mes de Agosto de 1729. as quaes trovas saõ d Goncale Annes Bandarra da
Va. de Trancozo natural, como constou de huã certidaõ jurada p. con ellas se achou gassada
(?) Jto. P e. Gabriel Joaõ, em que declara ser vezinho do dto. Goncale Annes Bandarra, e de
seu mandado escrever as das. Trouas pa. Efeyto de se meterem na parede da Sa. Iga. de S.
Pedro; pelo conhecer so mente de verdo.; e poderião ter misterio qto. tempo adiante como
se uera da certidaõ que uai adiante escrtia no fim das trouas” Biblioteca Nacional de Lisboa
(BNL), Reservados – Códice 127 - Microfilme F. 5519, ff. 33-40; “Andaua-se demolindo
a parede da Capella Mor de S. Pedro...” BNL – Reservados – Códice 127 – Microfilme F.
5519, ff. 47-54; “Sonho 1. ...” BNL – Reservados – Códice 127 – Microfilme F. 5519, ff. 41-6;
“Trovas de Gonçalo Annes sonhadas desde o anno de 1527 athe o de 1528. Escritas pelo Pe.
Gabriel João desta Villa de Trancoso” BNL – Reservados – Códice 127 – Microfilme F. 5519,
ff. 153-54; “Declaraçaõ dos sonhos de Goncalo Annes de Bandarra compostos por elle mes-
mo, e estendidos pelo Padre Gabriel João” BNL – Reservados – Códice 402 – Microfilme
F. 5528 f. 100-7; “Trovas do Bandarra. Apuradas, e impressas por ordem de hum grande
Senhor de Portugal. Offerecidas aos verdadeiros Portuguezes, devotos do Encuberto. Em
Nantes Por Guilherme de Mornier Impressor de Anno de MDCXXXX” IEB/Arquivo Col.
Lam., 153.1.
33 “Excertos de documento de 1768 que censura os livros Balatus Ovium, Vox Turturis,
Carta Apologética, Vida do Sapateiro Santo Simão Gomes.” No site Projeto Memória da
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edital de 1665, seria a quarta censura às Trovas (sem contar a ordem para recolher o
terceiro corpo), que continuava a circular manuscrita.
Mesmo após isso, o interesse pelas Trovas teve um renascimento no início do
séc. XIX, com as invasões napoleônicas. Em 1809, aparece a segunda edição completa
das Trovas, em Londres (possivelmente na mesma imprensa do Correio Braziliense),
apesar de constar no texto que teria sido impressa em Barcelona. Essa edição reim-
primiu o texto da edição de Nantes, com todas as suas partes e copiando até mesmo o
título de 164434, e incluiu o segundo e terceiro corpos, tornando-se a base para as edi-
ções subsequentes (com ou sem o terceiro corpo), inclusive as impressas hoje35. Vale
dizer, que pelo mesmo período, além das edições das Trovas, foram impressos vários
manuscritos sebastianistas dos séc. XVII e XVIII.
Isso, grosso modo, faz um panorama das diferentes aparições das Trovas. Com
isso em mente, podemos nos centrar em algumas questões que surgem desse percurso
em especial ao longo do século XVII, mais precisamente, desde de finais do séc. XVI
até inícios do séc. XVIII, quando apareceram os corpos mais constituídos e completos
das Trovas e ganharam seus comentários e leituras principais.
Interessa aqui pontuar alguns aspectos daquilo que Jacqueline Hermann cha-
mou de “Sebastianismo letrado”, que começaria com d. João de Castro. Seria a apro-
priação pelos letrados de algo que seria “popular”, do “vulgo” – a espera da volta de
d. Sebastião e a leitura dessa volta nas Trovas. Obviamente, a ver pela circulação que
as Trovas tiveram nas décadas de 1530 e 1540, se confiarmos no processo do Santo
Ofício, as Trovas não eram algo que somente aparecia em círculos iletrados, talvez
até pelo contrário. O mesmo indica a citação de Horozco y Covarrubias de Bandarra
como aproveitador de outras profecias (depois polemizada, seis décadas mais tarde,
no Restauração de Portugal Prodigiosa). O que é digno de nota é que na construção
do corpo das Trovas, empreendido pelos letrados seiscentistas, reforça-se esse movi-
mento, afirmando que pretendiam fixar o texto das Trovas que circulavam de modo
desconexo e deturpado.

Leitura. URL: http://www.unicamp.br/iel/memoria/crono/acervo/tx29.html (visitado em


10/12/2006).
34 Trovas de Bandarra, natural da Villa de Trancoso, apuradas e impressas por ordem de um
grande senhor de Portugal, offerecidas aos verdadeiros Portugueses devotos do Encuberto.
Nova edição a que se ajuntão mais algumas nunca até ao presente impressas. Barcelona
[sic], s/ed., M.DCCCIX.
35 G.A. Bandarra. Profecias de Bandarra. 5ª ed., Lisboa, Vega, 1996 (Col. Janus). Para um
levantamento das outra edições dos séc. XIX e XX, ver: J.V.D. Besselaar. Antônio Vieira –
profecia e polêmica, op. cit., cap. “Trovas de Bandarra”.
O    451

Essa construção se dá principalmente na figura de Bandarra como analfabeto


(ainda que, a ver pelo processo, lesse e escrevesse, inclusive as próprias Trovas). Na
descrição seiscentista, Bandarra era um oficial rústico que fora iluminado pelo Es-
pírito Santo com a capacidade de interpretar as palavras proféticas da Bíblia e com a
revelação do futuro de Portugal. O fato de ser rústico e analfabeto reforçava a necessi-
dade da intervenção divina, pois ele não poderia chegar àquelas conclusões por si só.
Nesse sentido, a estrutura em “sonhos” reforçaria esse argumento, pois o sonho seria
suspensão da vigília, dos sentidos e das potências da alma, como a razão e o discerni-
mento – características de um discreto, mas ausentes num simples e rústicos. Assim,
o sonho se autorizava como meio de visualização de imagens para um iletrado. Sendo
o sonho considerado um dos meios proféticos usados por Deus, a visão dormindo se
justificava.
Outra face dessa moeda era desautorizá-lo como profeta exatamente por ser
rústico e ainda suspeito de judaísmo, pois o Divino não escolheria pessoas de baixa
qualidade e, portanto, muito imaginativas e com pouco discernimento, para revelar o
futuro. E, do mesmo modo, o sonho era algo do qual se deveria desconfiar, exatamente
pela ausência dos sentidos e potências da alma, adormecidos com o corpo e reféns
da imaginação livre e não controlada. Acreditar em sonhos era característica de um
espírito rústico e dado a devaneios.
De qualquer maneira, os comentaristas, compiladores e copistas do séc. XVII
entendiam que o percurso das Trovas se dera da fala oral do sapateiro para uma audi-
ência vasta que impressionara a todos (grandes e pequenos, cristãos-novos e velhos,
eclesiásticos e leigos, rústicos e letrados) e que esses, marcados com aquela palavra
(outro sinal de sua propriedade divina), começaram a copiar e divulgar. E nessa divul-
gação, feita por letras como por palavra oral, por “Voz”, como diria Zumthor36, houve
novas cópias e deturpações. A função desses compiladores seiscentistas, portanto, era
chegar ao texto mais próximo da suposta performance oral de Bandarra, comparando
e cotejando as diferentes cópias.
Esse processo se era suficiente para os letrados do séc. XVII, não o foi para aque-
les que “encontraram” o terceiro corpo de Trovas nas paredes da igreja em Trancoso.
As novas Trovas se autorizavam não pelo Espírito Santo ou pela divulgação que tive-
ram no corpo do reino, mas pela afirmação de que foram transcritas diretamente por
um homem de letras e autorizado por um homem de fé, ambos na figura do pároco.
Mais ainda, nos versos desse novo corpo das Trovas, se ironiza a palavra falada e até
a própria figura de Bandarra e seu ofício, a sapataria37. Há um efeito irônico dado no

36 P. Zumthor. A letra e a voz, São Paulo, Companhia da Letras, 1993, cf. J. Hermann, op.cit.
37 Sobre isso, ver as estrofes 4 e 7 do terceiro corpo.
452 L M A  A P T M (.)

fato de um rústico, de um baixo, de um oficial idiota tratar de assuntos graves e sérios,


como o destino do Reino e da Cristandade, e ao mesmo tempo em que ameniza esse
descompasso, a presença de um escriba que o autoriza dá maior peso a essa ironia.
Pode-se pensar essa mudança à luz do percurso de fixação do texto das Tro-
vas. Até d. João de Castro ou até a edição de 1644 (que estabeleceu o corpo central e
inicial das Trovas), a apropriação dos versos em outras trovas e sua variação entre os
testemunhos escritos era maior e mais livre. A partir de 1644, a seguir Aníbal Pinto de
Castro, esse circuito teria sido invertido. As cópias manuscritas se faziam a partir da
edição de Nantes – e os comentários sobre as Trovas também. A dúvida é saber qual o
impacto disso na vertente oral de transmissão das Trovas, a Voz.
De qualquer modo, opera-se um caminho de duas mãos opostas: inicialmente
circulou oralmente e em cópias manuscritas que variavam muito e eram apropriadas e
refeitas por diferentes vozes, e se supunha (ou se sabia) Bandarra como pessoa letrada;
depois, fixou-se o texto das Trovas e se fundamentou a validade ou não das Trovas no
fato de Bandarra ter sido iletrado, idiota, rústico.
Supõe-se que a impressão das Trovas definiu sua forma e composição. Fica a
dúvida de saber qual foi a circulação desses impressos. Em especial, porque restam
pouquíssimos, quase nenhum exemplar, seja da Paráfrase seja da edição de Nantes.
Obviamente, a censura do Santo Ofício em 1665 e um século depois a da Real Mesa
Censória ajudam a explicar a pouca presença desses textos. O fato de terem sido im-
pressos fora de Portugal, na França para uma audiência portuguesa ou leitora de por-
tuguês, também. Sem contar o Terremoto. Mas seria interessante buscar saber qual foi
a circulação desses exemplares.
Apesar das proibições e do local da impressão, é inegável que há uma quantidade
grande de cópias manuscritas das Trovas (mesmo fora de Portugal), inclusive e espe-
cialmente no século XVIII, que chegaram até nós. Seria importante tentar rastreá-las
e contabilizá-las. Por fim, essas questões preliminares levantadas aqui indicam a ne-
cessidade de se estudar e comparar com mais afinco as diferentes versões das Trovas,
assumindo inclusive que uma boa parte do texto que temos e sobre o qual estudamos
é na verdade um texto organizado no século XVII em circunstâncias e com objetivos
muito específicos, seja da União Ibérica seja da Restauração. Isso também aponta que
é preciso tentar sanar uma ausência que prejudica os estudos sobre os messianismos
ibéricos e o sebastianismo: não há uma edição comentada ou crítica das Trovas de
Bandarra, de nenhum de seus três corpos (o baseado nas cópias quinhentistas e fixado
no séc. XVII ou os dois que surgiram nas primeiras décadas do séc. XVIII). Há, por-
tanto, muito trabalho a ser feito.

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