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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESErsTTAgÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devenios
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questoes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
A'l
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.

A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabal no, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
índice
Pág.

O POEMA DA AGUA 281

Que tenclonava Jesús dizer ?

"AMAI OS VOSSOS INIMIGOS" (Mt 5.44) 283

O futuro religioso de Israel:

JUVENTUDE ISRAELITA PROCURA A DEUS ? 295

RESENHA DE LIVRO 239

Mullos tém Investigado:

OS ENIGMAS DA ILHA DE PÁSCOA 300

Quem entende ?

A MISTERIOSA LINGUAGEM DOS NÚMEROS 308

CARTA AOS AMIGOS J28

NO PRÓXIMO NÚMERO :

Fiel cristao, que esperas em definitivo? (um estudo sobre


a vida eterna). Igreja é missionária? «Cristaos anónimos».
Crise na Igreja, que significa ? Romarias ou p.:regrinacoes
em nos:os dias. Antigos cristaos batizavam crianzas ?

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual CrS 30 00


Número avulso do qual({uer mes CrS 4,00
Volumes encadernados de 1058 e 195D (proco unuário) .... CrS 3.">.00
índice Gcral do 1957 a 1904 Cr$ 10,00
Indico de qualqucr ano CrS 3.00

EDITORA LAUDES S. A.
REDAgAO DE PR ADMINISTRADO
Caixa Postal 2.GGG Rim Silo Rafael. 38. ZC00
ZC-00 20000 Rio de Janeiro (GB)
20000 Rio de Janeiro (GB) Tels. : 268-9981 e 2G3-27!)S
O POEMA DA AGUA
Todo auténtico poeta ó alguém que se habituou a ver e
ouvir... Percebe, através das imagens e dos ruidos da realidade
cotidiana, o que esta oculta e revela ao mesmo tempo. E comu
nica as suas intuigóes ao leitor que o saiba ler.

Em vista disto, vai aqui apresentada urna poesia que, sem


dúvida, tem sua mensagem. Bla fala de procura da felicidade
em meio á angustia. Poüe-se dizer que este é um tema que a
lodos, todos os homens, interessa. — A resposta do poeta pro-
coue de urna imagem e se inspira em genuma visao crista da
viua. ao unstao, puue-se crer que Amauo Nuevo interpele pro-
tunuamenle; o poeta, no caso, nao e um «místico» vazio ou
«íesiivo». yuamo ao homem nao cristao ou áqueie que pro
cura ..., é Dem possivei que o autor da poesía tambem diga
a.go, pois eie parte aa ooservaeáo da reaiiüaae mais fundamen
tal ua vicia, que e a Dama (ou a tsruxaj Agua ; se déla tanto
dependemos para viver, nao podera ela aizer-nos o seu segreao
nú algo soore o modo de vívennos em pienitude V

Sem mais, damos a palavra ao poeta :

A AGUA MULTIFORME

"A agua toma sempre a forma dos vasos que a contém,


dizem as ciencias..
Hoje sou torrente inquieta. Ontem fui agua tranquila.
Hoje sou, em vaso esférico, redonda;
Ontem, porém, mostrava-me cilindrica em ánforas cheias.
E assim pitagorizo ' o meu ser, hora por hora.
Gelo, córreme, névoa, vapor que doura o dia,
Tudo isto eu o sou,
E a tudo me dobro na medida do necessário.
Os homens nao o sabem, mas Deus o sabe!
Por que te rebelas ? Por que teu ánimo se agita ?...
Que queres ?... Que sonhas ? Que te aflige ?
— Imaginacóes que se esvaem á medida que aparecem..
Ao inves, eu canto, canto, canto!
Canto enquanto gemes, ignorando o plano (do Senhor).
Canto quando sou jorro, canto quando sou gota,
E, quando me vou, como estranho Proteu, ao encalco do
meu destino,

1 Pitagorizo : assumo formas geométricas.

— 281 —
Sussurro: 'Cumpra-se a santa vontade de Deus!'
Por que tua alma concebe tantos anelos sem rumo ?
Desejas ser feliz ? Pois bem ; sé como a agua.
Sé como a agua, cheia de oblacao e heroísmo :
Sangue no cálice, graca de Deus no batismo.
Sé como a agua, dócil á lei infinitamente sabia,
Agua que ora ñas ¡grejas, onde se encontra benta.
E que no lago cantarola, agitando o barquinho.
Desejas ser feliz ? — Pois bem ; sé como a agua.
Traze, cantando, o traje ccm que o Senhor te veste,
E nunca estejás triste, pois é pecado estar triste.
Deixa que em ti se cumpram os fins da vida ;
Sé declive, nao rocha. Transforma-te,
E torna-te vinho onde ao Senhor isto agrade.
E, prosseguindo no encalco da tua meta, sussurra :
'Cumpra-se a sania vontade de Deus!'
Se assim fizeres, obierás grande tesouro de bens:
Se fores brum&, serás bruma de ouro ;
Se fores nuvem, a (urda te dí.rá o vermelho do seu poente;
Se fores fonte, em teu seio verás o sol a tremular;
As tuas ondas teráo filetes de ámbar.
Se fores lagos, se fores océano, a ¡ua te prateará.
Se fores torrente, terás espuma de iris cambiante em cores
E um leque de arco-iris em flor, se fores cascata".
Assim me falou a agua em mística censura,
E eu, persuadido pelo sanio conselho da Bruxa,
Sabendo que é o Pai quom faia durante a noite,
Clamei com o Apostólo: "Senhor, que queres que eu faca?"

(Amado Nuevo, poeta mexicano, París 1901)

Urna serie do nTiexñt-.s é insinuada aíravés destas linhas.


Ao sabio leitor toca ouvir-íhcs a ressonáncia em seu intimo.
Apenas parece oportuno notar aqui que o diálogo da Dama (ou
Bruxa) Agua com o homem sequioso nao pretende sugerir re-
signacüo meramente passivü ou conformismo mórbido. Nao !
Visa ao otimismo c á conf'iungu. Todavía, para despertar genui-
namente estes valores positivos, a Senhora lembra ao Jeitor que
todo homem está inserido no plano sabio do Criador e que a
grandeza de todo liomem está em assumir o lugar preciso (vis
toso ou oculto aos homens, pouco importa) que o Senhor Deus
Ihe assinalou na vida presente, a fim de que assuma o lugar
certamente grandioso que iho está reservado na Mansáo Eterna!

K. B.

282 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XIV — N? 163 — Julho de 1973

Que tencionava Jesús dizer?

"amai os vossos inimisos"


(mt 5,44)

Em sinlese : Jesús propós o amor aos ¡nimigos como urna nota tiplea
da Magna Carta do Reino de Deus. Contrapóe-se assim á antiga mentali-
dade dos judeus que, julgando-se o povo escolhido por Deus, toleravam
ou nutriam o menosprezo, se nao o odio, para com os nSo-judeus. De
maneira geral, a moral judaica pré-cristá ensinava cada judeu a tratar os
outros homens como estes o traiassem.

Jesús exige o amor até aos inimigos, ou seja, que se pague o mal
com o bem. Tal procedimento só é possível ao homem que participe do
amor ilimitado de Deus mediante a filiacáo divina. Os cristaos, feitos filhos
de Deus pelo batismo, tém a obrigagáo de imitar o Pai Celeste e procurar
tornar-se perfeitos como o Pai Celeste é perfeito ; Este dá o seu sol e a
sua cliuva indistintamente a bons e maus.

Note-se bem a gradacáo entre "amar o próximo como a si mesmo"


e "amar o próximo como Deus o ama". A primeira expressáo é tiplea da
Lei de Moisés ; a outra expressáo, muito mais exigente, é significativa da
mensagem evangélica.

Comentario: O amor aos nossos semelhantes — até mesmo


aos que nos odeiam — é geralmente tido (e com razáo) como
a pedra de toque do comportamento cristáo. O assunto é muito
apregoado e comentado em nossos dias. Ora, a fim de que taJ
mensagem seja realmente sólida e válida, constituindo urna
auténtica catequese evangélica, voltaremos abaixo a nossa aten-
cáo para as palavras de Cristo, no Evangelho, que incutem o
amor aos inimigos, e procuraremos sondar-lhes a genuina signi-
fiencáo.

PXs o texto que entrará em consideracáo:

— 283 —
4 «PERGUNTK K RESPONDEREMOS» 163/1973

"Ouvistes o que foi dito: 'Amarás o teu próximo, e odiarás


o teu inimigo' (Lev 19,18). Eu, porém, vos digo: Amai os vossos
inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tor-
nar-vos-eis filhos do vosso Pai que está nos céus, pois Ele faz
que o sol se levante sobre os bons e os maus, e faz cair a
chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amáis os
que vos amam, que recompensa haveis de ter? Nao o fazem
já os publicanos? E, se saudais somente os vossos irmáos, que
fazeis de extraordinario? Nao o fazem também os pagaos?
Sede, pois, perfeitos, como é perfeito vosso Pai Celeste"
(Mt 5, 43-48).

Como se vé, tal passagem ó tirada do chamado «Sermáo da


Montanha», que constituí no Evange'ho segundo S. Maleus a
Magna Carta do Reino de Deus (Mt 5-7). Tal sermáo reúne,
á guisa de parágrafos da Constituido de um Reino, os tópicos
principáis que deveráo caracterizar o comporlamento dos cida-
dáos desse Reino. Eis por que, antes de entrar na análise do
preceito «paradoxal» do amor aos inimigos, proporemos, a se
guir, algumas notas que favorecerlo a compreensáo dessa
Magna Carta.

1. O Sermáo da Montanha e sua dinámica

O objetivo do Sermáo da Montanha é estabelecer urna lei


superior á antiga:

"Nao julgueis que vim ab-rogar a Lei ou os Profetas. Nao


vim ab-rogar, mas levar á perfeigáo... Eu vos digo: se a vossa
justica nao for melhor que a dos escribas e fariseus, nao en
trareis no reino dos céus" (Mt 5,17-20).

Como se vé, Jesús nao intencionava urna ruptura com o


passado nem quería anular as regras de moralidade expressas
por Moisés no Antigo Testamento. Mas, como novo Moisés, ou
como intérprete abalizado da Lei antiga, Jesús quis levar á ple-
nitude ou á consumagáo a legislacáo antiga, de modo que os
seus discípulos tivessem um comportamenlo de vida mais per
feito do que os escribas e fariseus contemporáneos a Cristo.

Em outros termos: a legislado moral promulgada por


Moisés já continha cm germen o próprio ensinamento de Cris
to... Mas o que o Sonhor trouxe, foi novo entendimento do

— 284 —
■<AMAI OS VOSSOS INIM1GOS»

espirito e da dinámica de tal Lei. Esse novo entendimento im


portaría, para os discípulos de Jesús, exigencias moráis novas
c mais profundas ou mais radicáis.

Em que consistiría essa comprecnsáo nova das normas de


perfeiQáo moral?

— Para responder a esta pergunta, será preciso lembrar


que os judeus contemporáneos a Cristo identificavam a moral
com o legalismo ou com a observancia estritamente literal da
Tora (Lei) de Moisés. A Lei de Moisés entendida literalmente
era o código de perfeicáo de um judeu. A estima dessa Leí era
tal que os mestres em Israel chegavam a personificá-la e con
cebé-la qual entidade como que independente do próprio Deus.

Cam efelto, no séc. III d. C. 03 rabinos chegaram a erer que Deus


lo¡ o prlmeiro a observar a Lei por Ele promulgada (asalm pensava, por1
exemplo, Rabí Eleazar). Segundo R. Jehuda, Deus coloca todos 09 días as
suas Illactérlas, envolve-se "no característico chale ornado de franja* para
orar, e dedica tr6s horas por día ao esludo da Tora. Terá obttdo dos dou-
tores da Leí a dispensa do juramento que fez, Juramento de aniquilar os
Israelitas depola da adora?áo do vitelo de ou?o (asslm julgava Rabí Isaac;
cf. éx 32,93). — Conforme 03 llvros apócrifos dos Judeua, 09 anjos slo
circuncidados e observam o sábado, como o observa o próprio Deus (cf.
Jub 2,18-21 ; 15,27).

No seu afá de guardar fidelidade á Lei de Moisés, os ju


deus formularam a Palavra viva de Deus em urna multidáo de
preceitos e proibicóes que faziam da Lei um jugo insustentável
(cf. At 15,10)l. A observancia de cada ponto — jota — da Lei
assegurava urna recompensa; toda agáo correta ou conforme
a Lei merecería a sua devida rctribuicáo (P. Aboth III). O
ideal do judeu piedoso era, pois, o de acumular boas obras,
constituindo a sua lista de haveres ou créditos frente a Deus,
que no caso seria o respectivo devedor.

Ora é a essa justica legalista e a essa fidelidade material


aos preceitos que Jesús opóe urna moral caracterizada, antes
do mais, por atitudes interiores (que certamente se devem tra-
duzir em observancias exteriores, já que o ser humano é espi
rito e materia). O que importa no reino do Messias, sao prin
cipalmente as disposigóes internas do fiel e o dom de si a Deus;
é o homem como tal, e nao as obras, que Deus quer.

1 Os rabinos contavam 613 preceitos na Tora : 248 positivos e 365


negativos.

— 285 _
6 :PliltGUNTE K RESPONDEREMOS» 1«3/1!)73

A moral assim concebirla polo scrmáo da montanha depen


do, em última análise, de urna nova concepgáo de Deus. Este
no Evangelho nao é tido como um Remunerador rígido, que
determina recompensas e punicóes segundo rigoroso balanco de
créditos e débitos. Mas ó concebido como Pai,... e Pai chcio
de amor; consecuentemente, os membros do Reino sao filhos;
a vida moral desses filhos ha de ser assinalada pelo dom de
amor filial ao Pai e pela confianga no amor providente desso
Pai.

Ora c em funcáo dessa grande novidade revelada por Cris


to no Evangelho que se hao de entender os ensinamentos do
Senhor concernentes á caridade. Tais ensinamentos cstáo a tal
ponto vinculados com a Boa-Nova que podem ser tidos como
a expressáo típica do espirito que vivifica o Reino messiánico.

Passemos agora á análise do texto de Mt 5, 43 48.

2. O amor aos ¡nimigos

1. A passagem que havemos de considerar, acha-se trans


crita á pág. 284 deste fascículo.

Podc-se observar que nao apresenta urna definicáo abstra-


ta de caridade, mas a descricáo das expressóes do amor crislao
e das suas motivacóes. Literalmente constitui-se de urna serie
de antíteses, conforme o genuino estilo dos antigos sabios
israelitas.

Jesús comerá por citar abreviadamente o preceito da Lei


contido em Lev 19,18: «Amarás teu próximo como a ti mesmo».
O próximo (re'a), segundo a mentalidade israelita da época,
vinha a ser o companheiro ou compatriota, ao qual era as-
semelhado o ger ou o estrangeiro que vivesse em comunidade
israelita (cf. Lev 19,34). Em tal contexto compreende-se que
era preciso amar o próximo como a si mesmo, porque ninguém
pode odiar a sua própria carne (cf. Ef 5,29).

Quanto aos ínimigos, é certo que o Antigo Testamento


nunca prescreveu odiá-los. Todavía certos preceitos da Lei de
Moisés, devidos a circunstancias transitorias da historia de
Israel, podiam sugeri-lo a obcecados observantes da Lei. Te-
nha-se em vista, por exemplo, o estatuto do herém ou anatema:
os inimigos vencidos em guerra deviam ser exterminados, aínda
que se tratasse de mulheres e criangas inocentes. Tal estatuto

— 286 —
■A:\1A1 OS VOSSOS INIMIGOS»

vigente entre os antigos povos do Oriente em geral foi assumi-


do pela Lei de Moisés. O motivo destc estranho preceito é com-
preensível: se Israel nao nxtorminasse os inimigos vencidos e
procurasse convivor pacificamente com eles. fácilmente seria
tentado a adotar a roliRÍño pas;á dessns povos estran^eiros;
psbaniar-se-ia assim o partímónio religioso da humanidade, que
o Senhor Deus tiuis confiar ao povo de Israel. Conseqüentemen-
to, Moisés precoitnou o anatema contra os moabitas, os amale-
eilas, os amonitas, proibindo nos filhos de Israel que os pou-
passem ou eoncluissom alianza com oles1. — Mais aínda: a moral
israelita mundavn ivlribuir ao próximo o trnLamento que este
houvesse dispensado aos filhos de Israel:

"Um amonita ou um moabita nao seráo admitidos na assembléla do


Senhor; serio excluidos da assembiéia do Senhor, mesmo depola da de
cima oeracáo, e peroetuamenle, poroue nio vos ofereceram o Dio e a agua
miando sf»i«les do Eqlfo; e, além dislo, porque aliciaram contra ti Balaam,
filho de Rehor, de Petnr. na MosopoISmia, cara ave ele te amaldtcoasse.
Mas o Senhor, leu Deus, oue te ama, nao ouis escutar Balaam e transfor-
mou em béncáo a sua maldlcáo, poraue o Senhor. teu Deus, te ama. NSo
te Interesses entSo p»lo seu bem-estar e pela sua prosperídade durante
toda a lua vida" (Dt 23,3-6).

"Recorda-le do oue fez Amalee na vianem quando safste do Egtto:


como te surpreendeu e calu sobre todos os cue se arrastavam na reta-
quarda. Eslavas cansado, com as lorias escotadas, e ele n3o temía a Deus.
Quando, pois, o Senhor, teu Deus, te llvrar de todos os ¡nlmlgos qua te
rodeiam, na térra aue ha de dar por heranca, apagarás debalxo dos eéus
a memoria de Amales. Nao o esruecas" (Dt 25,17-19).

1 Tenham-se em vista os textos seguintes :


Dt 7,1s: "Quando o Senhor teu Deus te tíver introduzido na térra
que vais possuir a fim de a conquistar, o tiver despojado em teu favor nume
rosos povos, o heteu, o gereseu, o amorreu, o cananeu, o ferezeu, o heveu
e o ¡ebuseu. sete povos' maiores e mais poderosos do que tu ; quando o
Senhor teu Deus tos tiver entregado e tu os tiveres vencido, entSo anate-
matlzá-los-ás. Nao farás nenhum pacto com eles; nem terás pledade deles".
Dt 20,16-18: "Quanto ás cidades daqueles povos que o Senhor teu
Deus te há de dar por heranca, nao deixarás subsistir nelas nem urna so
alma. Votarás á ¡nterdlcáo o heteu, o amorreu, o cananeu, o ferezeu, o heveu
e o jebuseu, como te ordenou o Senhor teu Deus, para que nao vos ensl-
nem a imitar as abominacoes que pralicam em honra dos seus deuses e
venhais a pecar contra o Senhor vosso Deus".

Dt 15,1-3: "De sete em sete anos, cumprirás a lei da remlssño...


Nenhum credor poderá exigir o empréstimo que tiver feito ao seu próximo.
Nao exercerá contra o seu próximo e contra o seu irmSo violencia alguma
quando for anunciada a remissáo do Senhor. Contra o estrangelro podarás
usar de constranglmento, mas, quanto ás dividas de teu irmSo, farás
remissáo".

— 287 —
8 -PKRGUNTK K IlKSl'ONDKRKMOS.- \K\/\<m

Compreende-se, pois, que em tal contexto ou ambiente his


tórico o amor aos inimigos fosse algo de inconcebível ou mesmo
algo que podia parecer unía ofensa ao bom senso e as suas
mais fundamentáis categorías. Tenha-se em vista, por exemplo,
o caso do rei Davi, que pranteou a morte de seu filho Absaláo,
embora este se tenha rebe'ado contra o pai; vendo-o assim
aflito, Joab, general do exórcito, censurou o rei rom estas
palavras:

"Tu enches de confusáo a lace de todos os teus servos que salvaram


a tua vida, a vida de teu9 filhos e fllhas, de lúas mulheres e concubinas.
Tu amas os que te odelam e odelas os que te amam, e mostras que todos
os teus cheles e servos nada valem para ti" (2 Sam 19,6).

Nos dizeres e escritos dos rabinos posteriores a Cristo —


que constituem o Talmud — os náo-judeus ou pagaos (roíiti)
sao freqüentemente objeto de condenacáo e odio, como atestam
as seguintes passagens:

"O melhor dos goím merece a morte" (Rabí Schlmeon ben Jocha!,
t 150 aproximadamente).

"Nenhum dos goim terá parte no mundo vindouro" (Rabí Ellezer,


t 90 aproximadamente, T. Sarth. XII 2, 134).

Rabi Jochanan (t 270) rogava a Deus que abandonasse os pagaos


(Berakh. 7a).

Em 300 aproximadamente, Rabí Levi concebía o Senhor Deus a dizer:


"De todos os povos que crie!, amo somonte Israel" (Deut. R. S; 202a).

O odio de Israel para com os jíoím era bem conhecido por


estes, ou seja, pelos pagaos, como se depreende do testemunho
de Tácito, historiador romano (t 120 d. C.): «Entre os judeus,
encontra-se urna fó obstinada, o senso da misericordia sem tar
danza, mas um odio hostil a lodos os outros povos» (Tácito,
Hist. V 5; cf. Juvenal, Satir. XIV 104) '.

É preciso, porém, acrescentar que muitos rabinos, basean-


do-se nos textos de Prov 24,17; 25,21, ensinavam que é preciso
nao se regozijar com a desgraga dos inimigos e nao pagar o
mal com o mal (cf. Aboth IV 19; Gen. R. 38; 23a)2.

1 "Apud ¡psos fides obstinata, misericordia ¡n promptu, sed adversus


omnes allos hostlle odlum".

'Prov 24,17: "NSo te alegres com a ruina do teu inlmigo, nem se


rejublle o teu coracao ao vé-lo tropecar".
Prov 25,21 : "Se o teu inimlgo tem lome, dá-lhe de comer. Se tem
sede, dá-lhe de beber".

— 288 —
«AMAI OS VOSSOS INIMIGOS» 9

Ainda para se entender o texto do S. Evangelho (Mt 5,43)


em que Jesús cita a prescrigáo de Lev 19,18, deve-se levar em
conta que o binomio «amar... odiar» podia, as vezes, ter sentido
atenuado... Com efeito, as línguas semitas, pobres como eram
sob certos aspectos, nao tinham vocábulos («mais... menos»)
para designar comparacóes, de sorte que estas eram expressas
por antiteses. Donde se depreende que a antítese «amar...
odiar» podia significar simplesmente «amar mais... amar me
nos», na linguagem dos israelitas antigos.

Como quer que seja, é claro que os mestres em Israel, no


tocante á benevolencia e ao amor do próximo, faziam nítida
distincáo entre judeus e náo-judeus. Para com estes, apregoa-
vam o descaso, se nao mesmo a aversáo e o odio, usando para
tanto as expressóes : «amar o próximo... odiar o inimigo> '.

2. Pois bem. Jesús tomou posicáo categórica frente a tal


norma da moral pré-cristá: «Eu, porém, vos digo: amai os vos-
sos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem» (Mt 5,44).
O que se poderia assim parafrasear: «Em materia de caridade,
deveis amar todos os homens, mesmo os vossos inimigos». Jesús
intencionava propor mais do que uma inovagáo; Ele formulava
uma ordem, apelando para a sua autoridade própria: «Eu, po
rém, vos digo». Nisto está uma das manifestacóes mais típicas
da mensagem de Cristo: o preceito do amor foi dilatado sem
restricóes nem limites, devendo dirigir-se a Deus e a todos os
homens sem exceeáo.

E — note-se bem — os inimigos que Jesús manda amar,


sao «os que nos perseguem» (Mt 5,44), «os maus e injustos»
(v. 45); por conseguinte, nao se trata de inimigos no sentido
nacional ou político, nem de pessoas das quais o cristáo esteja
separado por raga, lingua ou interesses diversos. Jesús tem em
vista algo de muito mais profundo e interior: mesmo que o
cristáo nao esteja distanciado do seu semeihante por diferengas
visiveis (étnicas, sociais, políticas...), pode ressentir no fundo
de sua alma uma antipatía pessoal, animosidade ou rancor para
com ele. Pois bem; mesmo estes sentimentos interiores tém
que ser superados pelo amor cristáo. Seja bom, seja mau, seja

'A exposicao que acabamos de fazer do pensamento rabfnico, é obje


tiva e fiel, embora possa ser chocante. Fizemo-la únicamente no intuito de
reconstituir o fundo de cena sobre o qual se devem entender as palavras
de Jesús, e facilitar a compreensáo da "ousada" mensagem do Evangelho.

— 289 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 1(3/1973

injusto, seja benévolo, seja ingrato, seja compatriota, seja es-


trangeiro, seja da mesma religiáo ou raga, seja de outra....
0 cristáo deve amar o seu semelhante. Sao Paulo, alias, o expli
ca muito bem, ao dizer que a caridade nao é calculista (cf.
1 Cor 13,5).

3. Ensinando tal comportamento, Jesús se opunha á men-


talidade do judaismo de sua época, mas por certo fazia eco á
pregacáo dos Profetas de Israel e a explicitava. Verdade é que
os Profetas nao apregoaram propriamente o amor aos inimigos,
mas em sua mensagem procuraram superar todo particularis
mo nacionalista e estreito. Tenham-se em vista os seguintes
textos, onde os Profetas moslravam que Deus nao faz accepgáo
de pessoas:

Amos 9,7: "Por ventura, nao sois vos para Mlm, ó fllhos de Israel,
como os filhos dos etíopes 1 — diz o Senhor. Acaso nao flz sair Israel da
térra do Eglto, como tiz salr os filisleus de Caftor, e os sirios de fluir?"

Em Is 49,6; 60,6 é anunciada urna época em que todas as


nacóes estaráo associadas num só culto ao Senhor Deus. Em
Is 19, Israel dará as máos a seus inimigos (os egipcios e os
assírios):

"Naquele dia, Israel unlr-se-á, como um herdeiro, ao Eglto e á Assfria,


como objeto de béncio no meló da térra. O Senhor dos exéicltos aben-
co¿*los-á nestes termos: 'Bendito seja o meu povo do Egilo, a Assírla,
obra das mlnhas maos, e Israel, minha heranca I'" (13 19,24s).

O livro do Profeta Joñas mostra que Deus se compadece


dos ninivitas pagaos, enviando-lhes misericordia e salvacáo, á
revelia mesmo dos judeus nacionalistas e particularistas (cf.
principalmente Jon 4,11).

As passagens de Dan 7,14 e Zac 8,22 predizem que na épo


ca do Messias numerosos povos, nacóes e linguas serviráo ao
Senhor.

Estes textos dúo a ver que o universalismo do amor estava


bem no espirito da Lei antiga. Esta tendía a desembocar no
amor perfeito e irrestrito.

4. Pergunta-se, porém: Jesús tencionava dizer que o cris


táo deve amar, do mesmo modo, aqueles que Ihe fazem o bem
e aqueles que Ihe sao hostis ?

— Nao. A lingua grega podia designar o amor mediante


os verbos philéo e agapáo. O primeiro implicava reciprocidade

— 290 —
*AMA1 OS VOSSOS INIMIGOS» 11

e intercambio no amor, ao passo que agapáo designava prin


cipalmente as manifestagóes de benevolencia, estima, servigo e
beneficencia. Ora, segundo o Evangelista, Jesús preceituou este
segundo tipo de amor, ou seja, o ágape. O que quer dizer que
o cristáo deve querer bem a todos os homens e estar disposto
a auxiliar a todos indistintamente. Aos seus perseguidores o
discípulo de Cristo deve servir, se nao de outro modo, certa-
mente pela oragáo ao Pai, afim de que Este derrame sobre os
inimigos do cristáo as gracas que lhes convém e que o cristáo
mesmo nao lhes pode dar: «Orai por aqueles que vos perse-
guem» (Mt 5,44). A oragáo sincera pelos inimigos vem a ser
a expressáo mais ampia e a forma sempre possivel do amor
cristáo. Tal oragáo sincera deverá traduzir-se em obras efica-
zes desde que estas sejam exeqüiveis e oportunas, como o de
monstra o exemplo que Jesús acrescenta ao preceito do amor:
o Pai do céu nao deixa de conceder seus beneficios — chuva e
sol — a todos os homens indiferentemente (cf. Mt 5,45).

3. O porqué do amor cristáo

1. O exemplo do Pai Celeste. .. Mencionando-o, Jesús


indicou o motivo especifico e próprio que deve levar o cristáo
ao amor do próximo sem restrigóes. É motivo transcendental.
Com efeito; alguém pode fácilmente amar os amigos, pois tal
amor nao é senáo a extensáo do amor que alguém tem a si
próprio; é o amor aos que sao afins a quem ama. Mas, para
amar aqueles que sao hostis e antagónicos, o homem necessita
de inspiragáo mais elevada: «... Fazendo assim, tornar-vos-eis
filhos de vosso Pai que está nos céus» {Mt 5,45). A forga do
argumento de Jesús está em apontar este relacionarnento entre
Pai e filho: todo filho se assemelha a seu pai, nao somente por
seu semblante e seu físico, mas também por seus sentimentos
c sua conduta1. Ora os discípulos de Jesús sao incitados a imi
tar o comportamento do Pai Celeste. Nao há dúvida, a adesáo
a Cristo pela fé e pela agua do batismo confere ao cristáo a

'é de notar a insistencia dos textos bíblicos na semelhanca que deve


existir entre filho e pai, tanto no plano fislco como no plano moral:
Jo 6,39.44: "Se fosseis filhos de Abraáo, farleis as obras de AbraSo...
Vos tendes o diabo por pai e queréis cumprir os desejos de vosso pai".
1 Cor 4,15a: "Ful eu que por meto do Evangelho vos gerel em Cristo
Jesús. Rogo-vos, pois, que sejais meus imitadores".
Ef 5,1: "Sede imitadores de Oeus como filhos bem-amados".

— 291 —
12 <PERGUNT1-: K RESPONDEREMOS» 1(13/197:5

regeneragáo sobrenatural e a fiiiarüo divina (cf. Jo 1,12); tra


ta-se, pois, para o crisláo, de ser fiel a essa nova natividade e
de se comportar como auténtico filho do Pai Celeste, e nao
como bastardo (segundo a expressáo enfática de Hebr 12,8).
O amor aos irmáos, dilatado e eficaz, vem a ser o sinal expres-
sivo dessa filiacáo divina.

Tal ensinamento de Jesús supóc que Deus seja amor,...


e amor generoso. Já o Antigo Testamento, principalmente o
livro dos Salmos, havia cantado a benignidade de Deus e sua
bondade liberal. Esta aparece mesmo como a nota mais típica
de Deus na famosa passagem cm que Moisés podo ao Senhor
que Ihe mostré a sua gloria, isto é, unía manifeslacáo da natu-
reza divina. O Senhor respondeu-lhe entáo: «Farei passar dian
te de ti toda a minha bondade.. . Concedo a minha benevolen
cia. .. e uso de misericordia. ..» (cf. Éx 33,18s).

No Novo Testamento, esta verdade viria plenamente a


lona, máxime ñas cartas de Sao Joáo, onde se léem as afirma-
goes enfáticas: «Deus é amor; e aquele que permanece no amor,
permanece em Deus o Deus nele permanece... Nos O amamos,
porque Ele nos amou primeiro... Dele temos este mandamen-
to: quem ama a Deus, ame também a seu irmáo» (1 Jo
4,16.19.21).

2. A conclusüo da passagem que vimos analisando (Mt


5,43-48), tem algo de surpreendentemente grandioso: «Sede,
pois, perfeitos, como é perfeito vosso Pai Celeste» (Mt 5,48).

Sem dúvida, o Antigo Testamento pedia aos israelitas que


se tornassem santos, porque Deus ó santo (cf. Lev ll,44s; 19,2;
Dt 18,13). Mas a maneira como o homem se tornaría santo,
era muitas vezes concebida em termos negativos, pois geralmen-
te se Ihe prescrevia que evitasse tais ou tais pecados; nenhum
texto chegava a preceituar a caridade sob a forma ousada do
amor aos inimigos. Se Jesús se adiantou a ponto de prescrever
tal forma de amor, Ele o fez porque veio trazer aos homens
mais do que urna exortagáo á fidelidade e á obediencia no plano
moral; Ele veio trazer-lhes a filiagáo divina no sentido próprio
desta expressád, ou seja, como conseqüéncia de um renascer
sobrenatural. O que distingue um discípulo de Cristo ou um
membro do Reino messiánico frente a um estoico pagáo ou um
filósofo virtuoso, nao é somente a sua elevada vida moral, mas
é, antes do mais, o seu relacionamento filial com o Pai do céu;

— 292 —
• AMA1 OS VOSSOS INIMIGOS; 13

o comportamento moral digno do cristáo é conseqüéncia e ex


pressáo da comunháo de vida do mesmo com o Pai Celeste.

Alias, a designagáo «Pai, que está nos céus» é urna das


notas características do sermáo da montanha (Mt 5-7); ocorre
16 vezes nesse discurso (cf. Mt 5,16.45.48. 6,1.4.6.8.9.14.15.
18.26.32; 7,11). Embora tenha seus paralelos nos dizeres dos
rabinos, tal expressáo assume um sentido original e quase téc
nico no sermáo da montanha: os artesáos da paz sao filhos de
Deus (cf. Mt 5,9),... filhos de um Pai providente, que vé as
coisas ocultas, ouvc as preces dos seus, recompensa as suas boas
obras, perdoa a quem faina e concede seus beneficios. Jesús,
enfatizando a filiagáo divina de seus discípulos, quer significar
que, para amar ao próximo e aos inimigos, os homens precisam
de ter em si um amor mais do que humano; precisam de trazer
em seus coracócs o amor do próprio Deus, que Ihes é comunica
do pela comunháo de vida com o Pai Celeste. Quem ama como
Deus ama, é perfeito (téleios), isto é, atinge o termo de sua
voeacáo, ou seja, a sua maturidade e plenitude de vida.

Note-se, por último, a diferenga entre as expressóes «amar


ao próximo como a si mesmo» e «amar ao próximo como Deus
o ama». Aquela ocorre nos textos da antiga Lei (cf. Lev 19,18;
Mt 19,19; 22,39); esta é típica do sermáo da montanha (cf.
Mt 5,48) e envolve novas exigencias, pois o amor de Deus é
amor perfeito. Em seu sermáo, Jesús parece querer dizer que,
em vez de amar ao próximo como a si mesmo, o cristáo o deve
amar como Deus o ama e assim tornar-se perfeito á semelhan-
ca do Pai Celeste. O comentador inglés A. Plummer observa
muito a propósito: «Pagar o bem com o mal é diabólico. Pagar
o bem com o bem é humano. Pagar o mal com o bem é divino»
(«An exegetical Commentary on the Gospel according to S.
Matthew». London 1928, in h. 1.).

Estas consideracóes evidenciam, de certo modo, a sublimi-


dade da doutrina de Cristo. Ao incutir o amor, Jesús nao quis
prescrever propriamente tal ou tal atitude prática, tal ou tal
acáo concreta, mas, sim, urna disposigáo de alma permanente
que se há de externar em manifestacóes de amor fraterno, ora
corriqueiras, ora surpreendentes e extraordinarias. O v. 48
(«Sede perfeitos como o vosso Pai Celeste é perfeito») resume
todo o ensinamento dado pelo Senhor a partir de Mt 5,21 —
ensinamento formulado em antíteses («Ouvistes o que foi dito
aos antigos.. . Eu, porém, vos digo.. .»). O Senhor quer in-

— 293 —
11 <PERGUNTE K RESPONDEREMOS» 163/1973

cutir que, para participar do Reino Messiánico, nao basta ao


homem ser virtuoso no sentido estoico ou filosófico da palavra,
nem basta obedecer minuciosamente aos preceitos da Lei como
ensinava o judaismo, mas é preciso que tenha com Deus o re-
lacionamento de filho a Pai. Somente esta comunháo de natu-
reza e de vida dá a possibilidade de amar como Deus ama. É
o que inspira as palavras de S. Joáo: «Caríssimos, amemo-nos
uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que
ama nasceu de Deus e conhece a Deus» (1 Jo 4,7).

Bibliografía:

C. Splcq, "Agapé dans le Nouveau Testament". 3 vols. Paris 1958-1959.

L Ramlot, "L'amour du prochain gage de notre amour du Christ", em


■ Cahiers de la Vie Spirituelle". Paris 1954, pp. 33.62.

G. Sale!, "Amour de Dieu", em "Nouvelle Revue Théologique" 1955,


pp. 3-26.

G. Rotureau, "Charlté", em "Catholicisme" II, 959-976.

F. Prat, "La chanté dans la Blble", em "Dlcllonnaire de Splritualité",


fase. 9, cois. 508-523.

A. Nygren, "Eros und Ágape. Gestaltwandlungen der christlichen Liebe".


Guetersloh I, II. 1930-1937.

A. Viard, "La charité accomplit la Loi", em "La Vie Spirituelle" 303


(1946), pp. 27-34.

ídem, "Le fruit de l'Esprit", Ib. 384 (1953), pp. 451-470.

A. Vitti, "Excellentior Vía: Caritas", em "Verbum Domini" 1929, pp. 43s.

«Há urna fonte ao pé ete todos aqueles


que morrem de sede»

Léon Bloy

— 294 —
O futuro religioso de Israel:

juventude israelita procura a deus?

Em síntese: É difícil falar em termos universals e categóricos a


respelto da juventude em Israel, pols esta provém de familias diversificadas
por suas tradicBes particulares. A escola em Israel é marcada fortemente
pela presenca dos valores religiosos, que todavía sao um tanto diluidos pela
onda de secularizado que perpassa o mundo intelro.

Esquemáticamente talando, dlstinguem-se em Israel quatro atltudes da


juventude frente á quest&o religiosa: a) a da ortodoxia religiosa estrlta;
b) a dos que procuram novas formas religiosas judaicas; c) a dos indiferen
tes ; d) a dos hostls á rellgiao (pequeños grupos de esquerda). Os movl-
mentos de volta á fé religiosa sao crescentes e notávels, dlzcm os obser
vadores, de modo a suscitar otimlsmo neste particular. Pode-se esperar
que a restaurado política do Estado de Israel acarrete o revlgoramento da
fé desse povo e o reconheclmento final do Messias prometido aos Pais ?
— é com esta questao Importante, delxada em aberto, que se termlnam as
reflexSes do presente artigo.

Comentario: No mundo inteiro, principalmente nos países


de civilizaeáo ocidental, a juventude vem merecendo atengáo
pelas interrogaeóes que langa, e pelas responsabilidades que
traz frente ao día de amanhá. No Estado de Israel, que atual-
mente comemora seus 25 anos de existencia, qual seria a ati-
tude religiosa da juventude? Estará ela seguindo as trilhas da
fé, de sorte que se possa crer que o povo de Israel estabelecido
em sua térra originaria dará em breve ao mundo um testemu-
nho de Deus e — quigá — do Cristo Jesús? A vida de fé dos
jovens de Israel interessa particularmente aos cristáos. Eis por
que passamos a descrever algo sobre o assunto, baseando-nos
no artigo «Youth in Israel Search for God», publicado pelo Prof.
Benjamin Yaffe, membro do Departamento de Relagóes Públi
cas da Organizagáo Sionista Mundial em Jerusalém, na revista
SIDIC, vol. V, n" 3 (1972), pp. 23125. Tal periódico traz o
subtitulo «Service International de Documentation judéo-chré-
tienne»; destina-se ao desenvolvimento das relagóes judeo-cris-
tás. Redigido por urna comissáo internacional, com sede em
Roma (Via del Plebiscito 112), aparece tres vezes ao ano em
inglés e em francés.

_ 295 —
lt; PERGUNTE K RESPONDEREMOS» 1153/1973

1. Juventude e escola em Israel

Logo de inicio deve-se nptar que é muito difícil fazer afir-


mat,óes categóricas e universáis quando se fala de juventude
om Israel. Com efeito, neste Estado vivem judeus provenientes
(ie setenta países do mundo (imigrantcs que deixaram seu tor-
ráo natal desde 1948, ou mesmo muito antes, para povoar a
Palestina). A maioria dos atuais jovens de Israel já nasceu
na Térra Santa, mas bom número dos mesmos foi para o país
em idade infantil, levado por seus genitores. Por conseguinte,
os precedentes culturáis e religiosos dessa juventude variam
notavelmente segundo a sua filiagáo e origem: compreende-se
que genitores procedentes de térras maometanas sejam cultural-
mente diversos dos que se originaram na Europa Ocidental;
familias judaicas da Rússia tém características que certamente
nao sao as dos judeus da América do Norte ou do Sul. Cada
país exerce sua influencia própria sobre a familia judaica; em
algumas regióes, os israelitas conservam os costumes mais or
todoxos; em outras seguem um certo tradicionalismo, mas nao
sao ortodoxos (no sentido estrito dos rabinos), ao lado destes,
há os que se mostram extremamente liberáis.

No tocante á educacáo dos filhos, os judeus do Estado de


Israel tém tres tipos de escola á sua disposigáo: as escolas do
Estado que se poderiam dizer «leigas»; as escolas do Estado
religiosas (que constituem aproximadamente 40% da rede es
colar), e as escolas religiosas independentes ou particulares,
que se destinam aos círculos ultra-ortodoxos (pequeña minoría
da populagáo).

Nao é grande a diferenga entre as escolas estatais religio


sas e as que se poderiam dizer «leigas». Com efeito, ñas esco
las religiosas os professores sao geralmente judeus ortodoxos e
supóe-se que os alunos observem as práticas religiosas judaicas:
o ensino da religiáo ai é assaz enfatizado. Ñas escolas ditas
<'leigas», a Biblia e o Talmud ainda ocupam lugar relevante nos
curriculos, mas nao se realgam tanto as implicagóes religiosas
desses escritos: como quer que seja, nao se admitiría em nenhu-
ma escola do Governo qualquer insinuagáo de descrenga ou ate
ísmo; se algum professor se aventurasse a isto, sofreria puni-
gáo por parte do Ministerio da Educagáo, que é muito atento
a tal problema. — Os genitores tém a liberdade de escolher a
escola á qual enviaráo seus filhos: tem-se verificado que nos
educandários leigos bom número de alunos pertence a familias

— 296 —
JUVENTUDE ISRAELITA E FÉ 17

do Israel religiosas e tradiclonais. Também se tem notado em


Israel que a influencia da familia sobre a prole é cada vez mais
atenuada, embora, entre os judeus ditos orientáis (isto é, pro
venientes de países mugulmanos), o papel do genitor ainda seja
marcante. Os contatos de rúa, de círculos de amigos e os meios
de comunicacáo social tém prejudicado notavelmente a conti-
nuidade das tradigóes de familia na juventude de Israel; em
suma, a secularizacáo e o secularismo também ai sao pene
trantes.

Feitas estas observagóes, pode-se agora tentar analisar de


mais perto as atitudes adotadas pela juventude de Israel frente
á religiáo.

2. Quatro orientagoes

Abstraindo de matizes, os estudiosos distinguem as seguln-


Ics posigóes da juventude israelita diante da questáo religiosa:

1) a ortodoxia, que procura aprofundar o estudo da reli


giáo e viver segundo as tradicóes dos antepassados;
2) a linha dos que procuram novas formas de expressáo
religiosa judaica;
3) a atitude dos indiferentes á religiáo ;
4) a recusa direta e hostil dos valores religiosos, devida á
rebeliáo contra os pais, á falta de conhecimento da doutrina
bíblica ou, ainda, á influencia do secularismo. — Esta quarta
atitude (explícitamente anti-religiosa) é rara entre os jovens
de Israel.

1. Com referencia ao primeiro grupo ácima recenseado,


pode-se dizer que está crescendo. A juventude religiosa de Israel
freqüenta cursos nos Yeshivot, Institutos de ensino do Talmud,
onde também se ministram materias de cultura geral. Existem
ñas escolas movimentos de escoteiros religiosos. Note-se tam
bém que há, em Israel, kibbutzim' explícitamente religiosos.

■O klbbuU ou kevoulza (no plural, kibbutzim ou kevouteoth) é urna


afdeia coletivista, administrada pela assembléla geral dos seus habitantes.
Todos os bens al sao propriedade comum e o trabalho é organizado em
quadro colativo. Os moradores dSo á coletividade o seu trabalho e as
suas aptidSes, recebendo em troca inoradla, allmentacfio, roupa e os ser-
vicos de assistóncla social. Existlam 229 kibbutzim em 1972, com urna popu-
lagáo que variava entre 60 e 2.000 membros para cada kibbutz. O primeiro
klbbutz — Degania — foí fundado em 1909. Existe atualmente perto de
Gaza um kibbutz de ¡udeus nascldos no Brasil.

— 297 —
18 PERGUNTE E RESPONDEREMOS» KÍ3/1973

onde as criangas recebem formagáo bíblica. Mais: nos últimos


anos tém-se registrado numerosos casos de rapazes e mogas
que, oriundos de familias nao ortodoxas, aderiram aos grupos
de jovens religiosos, passando a levar um tipo de vida assaz
diferente do de seus genitores; alguns tornaram-se mesmo lí
deres da nova geracáo em Israel. Tal é o caso, por exemplo,
do rabino Adin Stein Saltz, que, nascido e educado em kibbutz
esquerdista, é hoje professor de assuntos talmúdicos, exercendo
ampia influencia sobre a juventude do país. Também merece
mengáo o nome do Prof. Zvi Luz, filho de deputado em Israel,
o qual foi educado em kibbutz nao religioso, mas hoje segué
um género de vida plenamente ortodoxo, ensinando literatura
na Universidade religiosa de Bar Han.

2. O segundo grupo (caracterizado pela procura de novas


expressóes religiosas) constitui-se de jovens de cidades, aldeias
e kibbutzim, que se intitulam «Indagadores de Nova Via». Ge-
ralmente filhos de familias nao religiosas, tém interesse pelos
valores da fé, nao, porém, como os apresenta a ortodoxia. De-
sejam um estudo mais aprofundado das questóes religiosas e
novas formas de assembléia de culto. Nao estáo vinculados á
tradigáo religiosa de seus genitores, mas também nao concor-
dam com a indiferenga religiosa dos mesmos ; julgam que, se
nao se derem ao judaismo novas formas de expressáo dos seus
valores típicos, pouco sentido terá a criagáo do Estado de Israel.

3. A terceira posigáo — a dos indiferentes á religiáo —


é adotada por filhos de certas familias religiosas que se revol-
tam contra a educagáo recebida. Tal oposigáo nao é rara entre
os jovens do mundo de hoje; muítas vezes coincide com deter
minada faixa de idade e passa com ela. Em Israel muitos dos
jovens indiferentes voltam as tradigóes religiosas, procuram de
novo as sinagogas e educam seus filhos segundo as normas dos
antepassados.

4. Quanto aos casos extremos — de explícito ateísmo —,


constituem, nao raro, pequeños grupos de esquerda. — Em
Israel, os dois Partidos Comunistas existentes (o liacah e o
Maki) tém respectivamente tres e um deputados apenas entre
os 120 membros da Kenesseth (Parlamento).

No conjunto dos jovens de Israel, é particularmente inte-


ressante o caso daqueles milhares que, com seus pais, emigra-
ram da Rússia para a térra prometida. Na URSS, tais familias

— 298 —
JUVENTUDE ISRAELITA E FÉ 19

sentiram a forte influencia de quase 60 anos de regime comu


nista ateu, de sorte que seus filhos pouco conhecimento tiveram
das tradigóes religiosas de Israel. Tais criangas e jovens, ao
chegar a Israel, tomarn contato com os vaiores da fé: nao pou-
cos deles mostram-se, conseqüentemente, interessado? pela ex
periencia religiosa e procuram aprofundá-la, embora isto lhes
seja difícil em virtude da atmosfera de ateísmo que respiraram
em país soviético.

Em suma, parece que o balando geral das atitudes da ju-


ventude de Israel frente aos valores da fé é positivo. Pergunta-
<se: como esses cidadáos orientaráo amanhá sua nagáo frente
aos valores da fé? Reconstituiráo um povo religioso, como foi
o Israel anterior a Cristo? Theodor Herzl, o fundador do sio
nismo político, dizia que a restauragáo do Estado judeu seria
urna etapa para a volta dos israelitas ao judaismo... Fazendo
votos para que isto se dé realmente, o leitor cristáo nao pode
deixar de formular, na presenga do Senhor, ardentes preces para
que o povo de Israel, reavivando a sua fé antiga, reconhega no
Cristo Jesús o cumprimento das promessas feitas aos Patriar
cas, Reis e Profetas...

resenha de livro
Paz pela oracáo, por Jofio Mohana. — Ed. Agir, Rio de Janeiro 1973;
262 pp.
Todo livro sobre a oracSo, desde que bem escrito, merece ser jubilo
samente saudado, pois toca um elemento vital ou de prlmelra importancia
para todo homem (aínda que se diga ateu). Tal ó o caso do novo livro de
Mohana. O autor é médico e sacerdote, que em obras sucesslvas vem apli
cando seus conheclmentos de teología e psicología á explanacSo de temas
atuais.
"Paz pela orasáo" nao é um tratado difícil, reservado a especialistas,
mas urna serle de reflexfies redlgidas em estilo simples e agradável, ilus
tradas por metáforas e casos concretos, que revelam a experiencia de vida
do autor e seu ampio cabedal literario. O livro compreende tres partes:
"A oracáo questlonada", em que o autor procura dissipar as objeefies que
se possam fazer contra a prátlca da oracáo (esta serla perda de tempo,
coincidiría com o trabalho simplesmente dito...); "A oracáo descoberta,
onde Mohana trata do modo de orar, lembrando que em toda e qualquer
sltuacfio podemos orar, mesmo quando cansados (o santo bispo Fénelon
dizia: "Se Oeus te aborrece, dize-lhe Isso mesmo"); "A oracSo vlvenclada",
em que o autor mostra como oracSo e vida cotidiana se entrelacam.
Entre outras, é digna de nota a sec&o que trata do blndmlo "oracSo
particular e oracáo comunitaria". Urna e outra sfio necessárlas para urna
(Continua na pág. 307)

oqq
Muitos tém investigado:

os enigmas da ilha de páscoa

Em sintese: A ¡Iha de Páscoa (originariamente dita Rapa-nui) fol


descoberta no domingo de Páscoa de 1722. Situada no Océano Pacífico,
a grande distancia do litoral chileno, tem chamado a atencáo dos estudiosos
pelas suas estatuas (moai) colocadas sobre ¡mensas plataformas (ahu).
Alguns arqueólogos julgam que a existencia de tais monumentos só se pode
explicar satisfatoriamente pela presenga de habitantes de outro planeta na
¡Iha de Páscoa em épocas muito remotas. Tal conjetura, porém, nao é a
da ciencia estritamente dita. O prof. William Mulloy, tido como o maior
especialista em pesquisas arqueológicas pascoanas, afirma (em entrevista
que neste artigo utilizamos) que os habitantes da ilha de Páscoa sao poli
nesios, possivelmente provenientes das ilhas Marquesas. No séc. Vil d. C.
terSo esculpido em rochas vulcánicas da própria ilha de Rapa-nui os mo
numentos em foco, os quais represenlam antepassados da populacao e eram
objeto de culto religioso. — A confeccSo de tais estatuas e o seu trans
porte para os lugares em que foram encontradas, se explicam muito plau-
siveimente a partir dos dados de cultura e civilizacao dos habitantes da
Polinesia e da Melanesia; em laboratorio, o Prof. Mulloy reconstituí o pro-
cesso de transporte de estatuas que os pascoanos devem ter aplicado para
destocar as suas estatuas fainadas ñas rochas da ilha para as plataformas
do litoral em que se acham. Baseado em pesquisas prolongadas e cuida
dosas, o Prof. Mulloy dissuade os seus loitores de falar de "misterio da
ilha de Páscoa".

Comentario: A historia do passado aprésenla dados por


viv.es obscuros, que desafiam a pericia dos estudiosos, obrigan-
do-os a recorrer a hipóteses — ora mais, ora menos plausíveis
— para elucidar os elementos encontrados. É o que se dá, por
exemplo, com os vestigios monumentais de civilizagáo existen
tes na ilha de Páscoa (Océano Pacifico). As obras de arte sao
a! de tal vulto que cerlos pensadores as tém atribuido até mes-
mo a habitantes de outro planeta.. .; provenientes talvez de
Marte, tcriam elaborado na Térra grandes produeóes artísticas,
cjuo atestariam urna civilizagáo evoluida, muito superior á que
os «telúricos» poderiam ter atingido em sóculos passados. Haja
vista o jornalista Erich von Dániken, que em seu livro «Eram
os deuses astronautas?» julga poder recorrer a tal hipótese a
fim de explicar a existencia das estatuas e dos monumentos da
üha de Páscoa.

— 300 —
ENIGMAS I)AJLHA I)K PASCO A 21

Em vista das opinióes controvertidas que pairam sobre o


chamado «misterio da ilha de Páscoa», vamos abaixo expor
os dados concretos da questáo c propor alguns elementos que
concorreráo para elucidá-lo.

1. Ilha de Páscoa : rápido bosquejo

A ilha de Páscoa tem tal nome por haver sido descobcrta


no domingo de Páscoa de 1722 por J. Roggeveen. Em lingua-
Kcm aborígene, é chamada Rapa-nui ou Te Pito te Henua. Com
a superficie de 118 km-, é urna das iíhas mais orientáis da
Polinesia, ficando a 27° 10" S e 1091» 26' O. Está grandemente
distanciada de qualquer térra habitada: situa-se a 3.700 km da
costa do Chile (país ao qual a ilha pertence desde 1888), a 1.850
km da ilha de Pitcairn e a 2.400 km da de Mangareva.

A ilha de Páscoa tem forma triangular, sendo de origem


vulcánica. Dos flancos de tres cráteras extintas (urna das quais
atinge 500 m de altitude), jorram numerosas fontes termais.
O litoral da ilha ó proeminente, constando de residuos de lava
avermelhada. A ilha recebe copiosa chuva e é acoitada por
ventos violentos, de sorte que o seu clima vem a ser relativa
mente fresco. Dada a grande permeabilidade do solo, a agua
é absorvida rápidamente e a vegetagáo é pobre, constituindo-se
principalmente de gramináceos; escassas sao as árvores: em
jardins protegidos do vento se cultivam figueiras e bananeiras.

J. Roggeveen estimou em cerca de 3.000 habitantes a po


pulacho da Üha em 1722. Todavía em 1786 La Perouse contava
apenas 2.000 indígenas. Em 1930 estes nao eram mais do que
250, agrupados na aldeia de Orongo. Esta diminuicáo demográ
fica dos nativos se explica como conseqüéncia de epidemias e
do doportacáo violenta praticada entre 1862 e 1872.

A ilha se tornou famosa por seus numerosos monumentos


o estatuas gigantescas de pedra talhada (ditos moai pelos aborí
genes) . O extraordinario isolamento da ilha inspirou a estu
diosos e jornalistas as mais diversas teorías destinadas a ex
plicar tais monumentos esculpidos.

Vejamos de que se trata propiciamente.

Muitas das referidas ostátuas se erguem sobre plataformas


tío podra no litoral da ilha, dando a esta um aspecto imponente

— 301 —
22 «PERGUNTK E Hl-:SI->ONDKHEMO^_ni3/l973

e inesperado, que impressionou os exploradores europeus. Tais


monumentos foram descritos pelo próprio Roggeveen em 1722,
pelo capitáo J. Cook em 1774 e por La Perouse em 1786. O
seu número chega a 460, dos quais 250 estáo sobre as plata
formas do litoral chamadas ahu; 60 ocupam os flancos e as
cráteras do vulcáo Rano Rarako (na ponta oriental da ilha).
Ainda sobre as encostas deste vulcáo se encontraram blocos de
rocha em elaboragáo, ou seja, nao rematados pelos seus antigos
escultores e ainda nao separados dos macicos nos quais eram
esculpidos. O material dos moai (estatuas) é rocha vulcánica
compacta, nao muito resistente ao cinzel, e apresenta nos seme-
Ihantes aos da Cordilheira dos Andes.

Tais monumentos representam figuras humanas sem per-


nas, dotadas de máos que se juntam sobre o ventre com dedos
finos. As respectivas faces tém apenas os tragos essenciais, assaz
simplificados. O cránio é achatado e as orelhas prolongadas e
pendentes, por vezes com grandes discos que lhes fazem as
vezes de brincos. As estatuas (moai) das plataformas (ahu)
do litoral traziam sobre a cabega um enorme cilindro de pedra
avermelhada, á guisa de chapéu ou coroa (nome dado pelo bo
tánico Forster em 1774). É de notar que em 1722 estatuas e
coroas foram encontradas incólumes o cretas. A partir de 1840,
porém, já nenhuma estatua se conserva erguida sobre os ahu
(plataformas do litoral), mas todas foram prostradas por térra
e dilaceradas.

Quanto as dimensóes, os monumentos do litoral tém entre


2 e 7 metros de altura. Na regiáo do vulcáo Rano Rarako,
algumas chegam a 9 m. O declive do terreno ai fez que o vento
nao as atingisse táo violentamente, de modo que grande número
délas estáo erguidas, mas sepultadas na areia até meio-busto.

Merecem atengáo as próprias plataformas (ahu), construi


das artificialmente ao longo da costa da ilha para sustentar as
estatuas. Constituem urna cinta por quase todo o contorno tri
angular da ilha. A sua superficie se eleva em rampa do interior
em diregáo ao mar, terminando finalmente por urna muralha
que cai verticalmente sobre o mar e que tem a altura de quase
5 m e o comprimento de 90 m em alguns de seus segmentos; a
largura de tais plataformas pode chegar a 30 m. Há platafor
mas menores, nao destinadas a suportar estatuas; os ahu típicos
traziam urna ou mais estatuas em suas cristas, sempre de cos
tas voltadas para o mar e com o semblante a olhar para o

— 302 —
ENIGMAS DA ILHA PE PASCOA 23

interior da ilha; a plataforma de Tongariki sustentava quinze


estatuas hoje caídas por térra.

Em torno de tais estatuas, floresceu vasta literatura cientí


fica, mas também urna bibliografía pseudocientífica, fantasista,
que tem excitado a curiosidade dos leitores; muitas idéias inexa-
tas assim tém sido disseminadas, concorrendo para que um clima
de enigma ou misterio se constituisse em torno da ilha de Pás-
coa na mente de muitos leitores.

Que se poderia dizer sobre o assunto em termos de pes


quisa científica propriamente dita?

2. Quem eram os pascoanos ?

Um ou outro tópico da cultura da ilha de Páscoa permane


ce aínda sem explicacáo clara ou sujeito a incertezas e dúvidas.
Mas a ciencia já pode reconstituir os tragos essenciais da po
pulacho e da cultura da ilha de Páscoa.

É fora de dúvida que as estatuas foram esculpidas na pró-


pria ilha com material do local mesmo. Os mais antigos desses
monumentos datam do scc. VII d. C, segundo as pesquisas
feitas pelo método do Carbono 14.

Os dados de cultura dus pascoanos, devidamente analisa-


dos, permitem dizer que se trata de polinesios, que tinham algo
do estilo e do sistema de vida dos melanésios (estamos, por-
tanto, sempre dentro do ambiente das populagóes do Océano
Pacífico).

Com efeito. As plataformas com suas estatuas nao sao


produtos exclusivos dos habitantes da ilha de Páscoa, mas en-
contram-se numerosos monumentos análogos ñas ilhas orientáis
da Polinesia; diferem uns dos outros apenas por suas dimensóes,
que na ilha de Páscoa sao mais avantajadas; sabe-se que tais
esculturas tinham significado funerario e sagrado para os anti
gos. Mais: os cranios e esqueletos dos pascoanos, estudados do
ponto de vista antropológico, revelam urna populacho mesclada
de polinesios. A linguagem respectiva é um dialeto polinesio.
Em vez de se dizer que os pascoanos se transferiram da Amé
rica para a sua mansáo no Pacifico (ilha de Rapa-nui), hoje
se admite, ao contrario, que houve influencia dos polinesios,

— 303 —
21 _ -PERGUNTI-: K RESPONDEREMOS* 1(3/1973

inclusive dos pascoanos, sobre as populacóes primitivas da Amé


rica andina. Vocábulos como arrikí, turnara, toki (o rei, :i
batata doce, o machado) e muitos outros do léxico de Rapa-nui
sao comuns a todas as populacoes da Polinesia e afloram ñas
linguas das tribos andinas.

Os domáis elementos do patrimonio cultural dos pascoa


nos corresponden! aos que se encontram ñas populagóes da Po
linesia. Assim as casas eram retangulares, semi-subterráneas
por vezes, com paredes nao caiadas. Nao raro eram cavernas
naturais transformadas em mansóes humanas. O vestuario era
confeccionado com o córtiee da Kroussonetia papyrifera elabo
rado segundo o coslumc ou a tapa dos polinesios. Eram freqüen-
tes as tatuagens do corpo e do semblante, assim como orna
mentos de penas. Os pascoanos praticavam a navegacáo em
canoas de extremidades preeminentes (á semelhanea das em-
barca;-5es de guerra dos habitantes de Fiji). As armas eram
de madeira ou de podra, segundo modelo polinesio; os bastees
de comando tinham a forma geralmente usada ñas ilhas vi-
zinhas. Os machados ou toki eram de pedra dura. Pontas de
ossos talhados, enfiadas em cabos longos de madeira, serviam
de langa. Os anzóis eram de pedra ou de osso (humano, por ve
zes), como ñas ilhas polinesias.

A religiosidade dos pascoanos cultuava os antepassados.


Com efeito, os ahu nao eram senáo plataformas sepulcrais e as
estatuas respectivas repiesentavaiu tild ou anceslrais da popu-
lacáo. Era muito desenvolvido também o cu lo de um pássaro
mítico e do seu mana

Enconlraram-se na illia de l'ásuou sinais hierogl.ficos, ele-


yantes, gravados em taoumnas, mas uniaa nao uecurados; pode-
-átí cuzer que sao smais ue genealogías e lemoretes ue lormulas

usadas pelos sacerdotes; alóm do que, tinham o valor de autén


tica escrita ideográfica (significavam idéias, como os hioroglifos
do Egito, por exemplo).

Embora estes dados sejam assaz elucidativos, urna pergun-


la fica aínda na mente de numerosos leitores e estudiosos: como
puderam os pascoanos esculpir táo grandes monumentos e trans-
portá-los para as plataformas em que foram encontrados? Tais
tarefas nao supóem recursos científicos e técnicos que os primi
tivos povos do Pacifico estáo longe de possuir? Nao se deveria
supor ai a intervencáo de marcianos ou de habitantes de outros
planetas? — É para estas questóes que nos voltaremos a seguir.

— ;íO I —
ENIGMAS DA ILHA DE PASCOA 25

3. Quem confeccionou as estatuas ?

A propósito damos a palavra ao Prof. WÜliam Mulloy, tidc


como o maior especialista da cultura da ilha de Páscoa.

Professor universitario norte-americano, dedicado á arqueo-


logia, Mulloy foi pela primeira vez a Rapa-nui em 1955, com a
expedicáo de Heyerdahl. Fez um levantamento de tudo que de
artístico e notável se encontrava na ilha, estudando minuciosa
mente aquela pequeña porcáo de térra. Atualmente passa seis
meses do ano na i!ha de Páscoa e seis meses nos EE. UU. da
América, onde continua a lecionar; o governo chileno incum-
biu-o de trabalhar na restauracáo dos monumentos da ilha.

Recentemenle o Prof. Mulloy deu urna entrevista á impren


sa, que foi publicada pelo jornal «Dépéche de Tahiti» aos
3/II/1973. É deste periódico que colhemos as declaracóes do
dentista abaixo referidas1.
"Encontramos na ilha de Páscoa, diz o pesquisador, urna sociedade
Jerarquizada com classes socials nítidamente distintas, com um talento
artístico que criou estatuas gigantescas, e com o conhecimento dos solsti
cios do equinóxio e concepedes de astronomía muito precisas. Nao se
trata, pofs, de cultura primitiva.

... Pode-se supor que os primeiros habitantes da ilha de Páscoa lá


chegaram no infeio da nossa era ; por conseguinte, seis sáculos antes de
construir as primeiras estatuas. Mais : as pesquisas arqueológicas reveta-
ram que, do ponto de vista da cultura, as ilhas mais semelhantes á de
Páscoa sao as ilhas Marquesas. Creio, pois, que os primeiros pascoanos
provinham de tais ilhas".

O repórter indagou enlfio:

"Segundo o Sr. e as pesquisas até agora efetuadas, como puderam


os pascoanos do séc. Vil transportar as suas estatuas até os diversos pon-
los da ilha em que foram descobertas e em que se encontram ainda hoje?"

Ao que rospondeu o Prof. Mulloy:

"As estatuas eram talhadas na própria colina de origem vulcanice.


Urna vez terminadas, eram atadas com cordas, e os artesáos as faziam
escorregar até os buracos escavados na térra para as receber. Tendo
peneirado no respectivo buraco, a estatua era erguida. Colocavam entao
a mela-altura de cada estatua urna armadura de madeira destinada a pro-
legar o lado anterior ou frontal do monumento. A seguir, diante do buraco

1 Foi ao passar por Tahiti em tal data que o autor destas linhas teve
o citado jornal em máos.

— 305 _
2o «PERGUNTE E RESPONDEREMOS^ 163/1973

no qual a base da estatua pousava, os artesios construiam um montículo


de térra e faziam o monumento calr sobre o mesmo. Depois retlravam a
térra, de modo que a estatua ficava deitada sobre a face anterior, mas
sempre protegida pela armadura de madeira que a cingia. Tratava-se entáo
de transportar a estatua ; para tanto, os artesSos servlam-se de um suporte
de madeira em forma de V colocado com o vértice para cima. Da extreml-
dade superior desse dispositivo saia urna corda, que os pascoanos atavam
ao ventre da estatua. Esta continuava a pousar por térra parcialmente
apenas. Bastava fazé-la oscilar sobre o seu centro de gravidade para que
se deslocasse aproximadamente um metro a cada manobra".

E acrescenta o Prof. Mulloy:

"Em laboratorio realizamos tal operagao, e conseguimos transportar


urna estatua de 80 toneladas á razáo de 300 metros por dia sobre um
terreno relativamente plano. É preciso dlzer que os habitantes da ilha tinham
construido caminhos especialmente destinados ao transporte das suas
estatuas".

Prosseguiu o repórter:

"E como faziam os pascoanos para erguer as estatuas sobre os seus


pedestais, visto que estes tém multas vezes mais de um metro de altura?"

Ao que respondeu o Prof. Mulloy:

"A estatua chegava ao seu lugar de destino deitada sobre a armagáo


de madeira e o ventre. Por meló de alavancas, era soerguida, de modo a
se colocar debaixo déla urna plataforma de pedras. Sempre com o auxilio
de pedras, a estatua era mais e mais erguida até chegar á poslcáo de
finitiva.

A base da estatua entáo devla ser levantada até a altura do pedestal


respectivo, onde flcaria definitivamente exposta. Em vista disto, os pas
coanos construiam urna rampa de pedras e a manobra se fazia sobre essa
rampa até que a estatua atingisse o. seu nivel de altura definitivo".

Continuou o jornalista:

"Qual o significado dessas estatuas e por que a maloria délas tem


o olhar voltado para o Interior da ilha ?"

Professor Mulloy: "Essas estatuas eram altares ao ar livre, coloca


das geralmente á beira-mar, sobre plataformas ñas quais se realizavam as
cerlmónias. As estatuas olhavam, portante para a populacáo. Pode-se com
parar o ahu (plataforma) a um altar de igreja que esté sempre voltado para
a assombléia que participa do culto".

Repórter: "Pode-se falar de um misterio da Ilha de Páscoa ?"

Prof. Mulloy: "O que encontramos na ilha de Páscoa. é urna cultura


que eslava perto de checiar á civilizacSo... Verdade é que nem todas as
questoes concernentes a essa sociedade já foram solucionadas. Isto, porém,
nao quer dizer que haja lá algum misterio.

— 306 —
ENIGMAS DA ILHA DE PASCOA 27

Para mlm — e esta será a mlnha conclusSo — o misterio da liria


de Páscoa... é que nio há misterio!"

As palavras do Prof. Mulloy tém autoridade. Contribuem


para dissipar conjeturas fantasistas e divagagóes da imaginagáo,
que pouco ou nada tém de científico, mas vém sendo ampia-
mente divulgadas. A realidade da ilha de Páscoa se enquadra
bem dentro do conjunto das ilhas e populagóes do Pacífico e
dispensa o apelo a qualquer intervencáo de «habitantes de ou-
tros planetas».

Na elaboracáo destas páginas valemo-nos também do artigo "Pasqua


(Isola di)" da "Enciclopedia Italiana di Sclenze, Lettere ed Artl... fondata
da Giovannl Treccani". 1935, vol. XXVI, pp. 446-448.

resenha de livro
(Continuacao da pág. 299)

auténtica vida crista. Sem cultivar a oracáo particular e Intima, o crlstao


nao pode realizar auténtica oracáo em comum, pois é sempre do Intimo de
cada um de nos que procede a oracSo. Doutra parte, excluir a oracfio comum
é menosprezar a palavra de Cristo, que prometeu : "Onde dois ou mais
estiverem reunidos em meu nome, al estaré) no meló deles" (Mt 18,19s).
Sao refJexoes de Mohana :
"Hoje enxergamos bem claro que o orante é pessoa e é grupo, é
eu e é nos. Por que entio nao dar vez a ambas as formas de vida mística,
consagradoras desta privilegiada condlcáo humana ? Radicalizar, excluindo
qualquer urna das duas formas, é empobrecer a vida e o homem, ñas rela-
coes com Deus. Já que Deus me conhece por meu nome (ele nao é o Deus
de AbraSo, de Isaac, de Jaco, de Wilson, de Roberto...?), é obvio que
devo conversar com ele em meu nome pessoal. Mas o nosso Deus também
me conhece por meu nome de familia, através do povo ao qual pertenco
(ele nao é o Deus de Israel, do povo elelto, o Deus da Igreja, da Humanl-
dade?), ó Igualmente obvio que devo me apresentar perante ele assoclado
á comunldade que me emoldura" (p. 203).
JoSo Mohana se compraz freqüentemente em explanar a funcSo tera
péutica ou pslcoteráplca da oracáo. Tem fundamento para fazé-lo. Mas o
leltor estará sempre consciente de que oracao nSo é simplesmente um meio
de curar doencas e angustias, nem é um servico ao homem em prlmelro
lugar, mas é, sim, particlpacáo no louvor e no culto que Cristo, o Sumo
Sacerdote, tributa constantemente ao Pal no Espirito Santo, é compreensl-
vel, porém, que quem dé gloria a Deus se recomponha psicológicamente,
pois, como dizia S. Agostlnho, "Tu nos fizeste para TI, e inquieto é o nosso
coracáo enquanto nao repousa em Ti".
Que o llvro d« Mohana encontré ampia divulgacáo e faca todo o bem
a que se destina, levando muitos e multos leitores ao contato Intimo com o
Senhor Deus, els os votos que aquí formulamos.
E. B.

— 307 —
Quem entende?

a misteriosa linguagem dos números

Em sinlese: Desde épocas pré-cristás, os estudiosos tém atribuido


aos números certo valor filosófico e religioso, fazendo dos mestnos os
símbolos de certas teses ou qualiflcacSes. Este procedimento tem base no
fato de que a natureza se apresenta ao homem sob formas harmoniosas.
simétricas e rítmicas (día e noite, homem e mulher, dois olhos, dois ouvidos.
dois bracos, princlpio-meio-lim, quatro estacdes do ano...); da! julgarem
alguns pensadores antigos que os números constituem a esséncia ou a
razSo Intima de todos os seres.

Na Biblia, os números aparecem nao raro como símbolos. Tenham-se


em vista os sete días da criacSo, as idades dos Patriarcas... No corpo
deste artigo sao enunciados alguns dos empregos mais característicos de
números ocorrentes ñas páginas bíblicas. Nao se poderla, porém, dizer que
todo número ñas Escrituras Sagradas tenha valor meramente simbólico,
destituido de significado quantitativo ou cronológico.

Entre os judeus, a Cabala cultivava com afinco o simbolismo dos


números, recorrendo principalmente ao processo dito "da gematria". Atri-
buindo ás letras valor numérico (alias, segundo urna tática comum na anti-
güidade), os cabalistas dos primelros séculos cristaos e, máxime, da Idade
Media chegaram ás mals diversas conclusSes na interpretacáo dos textos
bíblicos. Geralmente a fantasia e a arbltrarledade movlam a tais procedl-
mentos, sobre os quais exerceram influencia também certas correntes de
pensamento místico ocultista, alheio á mensagem bíblica.

Em suma, o simbolismo dos números é algo de freqüente nos escritos


dos orientáis antigos e contemporáneos; todavía ressente-se do em prego
indiscriminado da fantasía, que assim sobrepuja as regras da lógica e as
exigencias da razao. Embora esta nao possa provar o conteúdo intrínseco
das verdades da fé (cujo teor ültrapassa o alcance da limitada inteligencia
humana), a razáo tem o direito de pretender chegar á evidencia de que é
oportuno, ou mesmo necessário, crer. Ora tal evidencia falta por completo
quando se abordam as proposites da chamada "mística dos números".

Comentario: Repetidamente tém os Jeilores manifestad© o


desujo de que haja em PR urna expiármelo sobre numerologia
ou sobre a ciencia e a linguagem dos números. Este inleresse
se deriva do fato de que os números, no uso dos hotnens, nao
tém somente valor matemático ou quantitativo, mas em certos
circuios de iniciados tambóm aparecem dotados de significado

— 308 —
SIMBOLISMO DOS NÚMEROS 29

qualitativo ou filosófico. Pelos números, os pensadores e mís


ticos através dos séculos tém expresso ideáis e conceituacóes.
Este costume é vigente até hoje no Brasil e em outros países,
onde a religiosidade popular, a cabala e o ocultismo recorren
freqüentemente a números para designar e atrair beneficios e
maleficios.

Em vista do interesse de nossos leitores, proporemos, ñas


páginas que se seguem, algumas nocóes sobre a linguagem dos
números na historia das Religióes e na Biblia, sem pretender
esgotar o assunto, que por vezes se torna assaz sutil. Como se
compreende, nao entraremos no campo da matemática racional
tí do cálculo, pois tal setor está fora do ámbito proposto para
estas páginas.

1. Fundamentacáo psicológica

O fato do que a natureza (os minerais, a flora, a fauna...)


se apresenta ao homem com certa regularidade, simetría ou
harmonía, fez que desde remotas épocas os homens tendessem
a ver nos números o elemento básico ou o fundamento de toda
a reaüdade: «Os números sao os principios das coisas», dizia
Pitágoras; por conseguinte, as leis dos números seriam as leis
do universo. Em linguagem bíblica, dir-se-ia: «Deus dispós to
das as coisas com número, peso e medida» (Sab 11,21), ou seja,
com harmonía perfeita. Considerando essa harmonía, os gregos
deram ao mundo o nome de kósmos, isto é, ordem, ornamento.

Mais: espontáneamente os antigos fizeram a associagáo de


certos números com os conceitos de ordem, beleza, felicidade,
bem-estar ou também com as nocóes de frustragáo e desgraca.
Tenha-se em vista, por exemplo, a harmoniosa sucessáo de día
e noite — dois periodos de tempo, que, apesar do seu contraste
mutuo, perfazem um todo completo;... a serie das quatro fases
da Lúa, que, através de mudanzas e contrastes, constituem um
ciclo vital para o homem;.. . os sete días da semana, vinculados
as fases da Lúa e á atividade do homem;... as quatro estagóes
do ano, que retornam certeiramente, impondo ao homem com-
passo de vida;... a sucessáo dos anos;... o ritmo de nascimen-
to«rescimento-apogeu-declínio dos seres vivos;... a simetría
das partes e dos membros do corpo humano... Foi a observa-
(,-áo destes elementos regulares e simétricos que inspirou aos

— 309 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 163/1973

homens — sempre abertos para valores transcendentais — a


combinagáo de números e conceitos, ou seja, a simbologia e a
mística1 dos números.

Aos números foi mesmo atribuido o poder mágico, cegó


(nao explicável estritamente por raciocinio e lógica) de causar
aos homens beneficios ou infortunios.

Note-se ainda o seguinte: os antigos designavam quanti-


dades mediante os caracteres do alfabeto: a letra alfa, por exení-
plo, designava a unidade (1) em grego; o beta significava dois;
o gama, tres... Esta equivalencia de letras e números, entre
os antigos, deu ocasiáo a que se atribuíssem a certos vocábulos
e nomes um valor numérico. Assim o nome DAVID em hebrai
co, escrito com as letras daleth, vau, dalcth, tinha por valor
4 + 6 + 4 = 14; dai a associagáo de David e 14 ocorrente em
Mt 1,1-17. A Fera do Apocalipse tem por valor numérico 666,
conforme Apc 13,18; ao dizer isto, o autor sagrado provavel-
mente intencionava incitar o leitor a procurar um nome de ser
humano cujas letras somadas entre si dessem o total 666.

Visto que a correlacáo entre números e valores tem algo


de subjetivo e arbitrario (o mesmo número pode assumir signi
ficado bom ou mau e pode ser obtido por combinagóes assaz
diferentes), compreende-se que haja, entre as correntes religio
sas da humanidade, variadas interpretagóes para o mesmo nú
mero. Verifica-se, porém, urna certa constancia na valorizagáo
de alguns números clássicos ou fundamentáis, como 1, 2, 3, 7,
10...

A índole um tanto subjetiva da simbologia dos números


explica também que esta tenha sido reservada muitas vezes a
grupos fechados, esotéricos, de pessoas cuidadosamente escolhi-
das e iniciadas. É o que se dá no ocultismo, na cabala... Em
circuios esotéricos desenvolveu-se, principalmente na Idade Me
dia, urna sabedoria religiosa dada a divagagóes da imaginagáo
e a descontrolada exuberancia de crencas e crendices; supers-

1 Mística aqui designa o conhecimento nao racional. Quando bem


entendida, a Mística é urna real experiencia de Deus que se faz mediante
o amor ou mediante a afinidade da criatura com o Criador. Multas vezes,
porém, a palavra Mística é tomada em sentido Improprio, significando entáo
urna rellgiosldade por vezes fantasista e arbitraria, dada a pretensas reve
lares e intulc6es do Divino.

— 310 —
SIMBOLISMO DOS NÚMEROS 31

ticáo, magia, artes mágicas negras se desenvolveram ampia-


mente na base da interpretacáo dos números.

Como atrás foi insinuado, a Escritura Sagrada recorre por


vezes aos números para designar conceitos ou qualidades. Há,
sim, certos números de significado simbólico nos textos bíblicos.
É preciso, porém, que o estudioso analise, caso por caso, o em-
prego dos números na Biblia; o exame do género literario do
texto em foco permitirá dizer se o(s) número(s) ai tém sentido
simbólico, alegórico ou, ao contrario, valor aritmético e quanti-
tativo. Evidentemente, os sete dias da criagáo em Gen l,l-2,4a,
as idades dos Patriarcas em Gen 5,1-32 nao tém valor matemá
tico nem cronológico; sao expressóes de qualidades, expressóes
usuais entre os orientáis, como se pode provar pelo confronto do
texto bíblico com outras passagens da literatura do Oriente an-
tigo. Seria erróneo, porém, dizer, em vista destes dados, que
todos os números posteriormente ocorrentes na Biblia tém valor
táo somente simbólico; para afirmar o simbolismo de um texto,
é preciso ter indicios persuasivos1.

Proporemos abaixo as principáis interpretares dadas,


através dos séculos e dos povos, aos números fundamentáis.
Essa lista de dados ajudará o leitor a compreender ao menos
a atitude de espirito ou a mentalidade dos que cultivavam a
mística dos números antigamente. — A seguir, exporemos su
mariamente as grandes linhas da gematria, que é a forma ju
daica (ou melhor, cabalística) da simbologia dos números.

2. A Hnguagem dos números clássicos

Um. O número 1 está contido em todos os demais números.


Significa a oposicáo á pluralidade; é, por isto, símbolo de coesáo
e integridade. Representa, para as correntes religiosas antigás,
a Unidade Divina, Primordial, Indivisa em si, que é fonte ou
Principio das criaturas; estas, a partir da Unidade, se multipli-
cam e diversifican! no espago e no tempo. Principalmente Plo-
tino e os neoplatónicos, nos séc. III/IV, prezavam a Mónada
ou a Divina Unidade como ponto de partida dos seres visíveis
que déla emanavam.

1 Mals lorigas explanares do simbolismo dos números na Biblia en-


contram-se no livro de E. Bettencourt: "Para entender o Antlgo Testa
mento". Rio de Janeiro 1964.

— 311 —
-PERPUNTE K RESPONDEREMOS» 103/1973

Dois. É o número do contraste e da oposicáo. É também


o símbolo da quebra e da divisáo. O número 2, conforme os
pitagóricos, deriva-se da unidade mediante a intervengáo do
«vazio» ou do «intervalo»; por conseguinte, é essencialmente
imperfeito. A!guns filósofos antigos acrescentariam: o número
2, assim constituido, ó símbolo da mulher, ao passo que o nú
mero 1 ó símbolo do varáo; mais amplamente diriam: os núme
ros pares, em geral, significam o género feminino, ao passo que
os números impares se vinculam ao género masculino.

Iudependentemonti1 doslas conccpcóos, obsorva-se, como já


notamos, que a vida di1 cada dia incute a bifurcacáo da reali-
dade em dois elementos contrastantes que se complementam
mutuamente em harmoniosa unidade: homem-mulher, dia-noite,
atividade-passividado, trabalho-repouso, direita-esquerda, bon-
dade-maldade, sol-lua.. . É o que faz que o número dois tenha
gozado geralmente de estima entro os antigos, que o considera-
vam como expressáo do fundamental, do estrutural e típico na
vida do homem e no universo.

Tris. Vem a sor o número impar por excelencia; por con


seguinte, é número macho, forte e estimado. Se dois era o nú
mero da unidade vencida pela divisáo, pelo vazio e a ruptura,
tres é o número do resgale ou da restauracáo da unidade e da
(otalidade. Tenha-se em vista que até nossos dias 3 e síntese
coincidem entre si na trilogía hegeliana de tese, antítese e sín-
tt'-se. Pai, máe e filho constituem a familia ou a célula básica
da sociedade; é no filho que o esposo e a esposa se encontram,
militas vezes de novo modo, porque conscientes de que tém de
superar os particularismos para poder formar a vida e construir
um lar... Mais: tudo que é completo, tem comeco, meio e con-
sumacáo. Aínda... o triángulo é a primeira superficie plana
que a geometría conhece. Por estes títulos de excelencia, o nú
mero 3 é, sem dúvida, o número da sintese e da compreensáo,
que vence os contrastes e refaz em termos neutros e transcen-
clentais a unidade violada pela dualidadc.

Tres também lembra o triángulo equilátero, que é sempre


igual a si mesmo, portanto imperturbável, invencivel. Daí a
estima do número 3 na antigüidade. Isto explica que o número
3 seja freqüentemente associado á Divindade entre os antigos.
Sejam recordadas as tríades de deuses das religíóes orientáis:
Anu, Bel e Ea (Céu, Térra e Agua) na Babilonia; Osiris, ísis,

— 312 —
SIMBOLISMO TX)S NÚMEROS 33

Hórus, no Egito; Brama, Vichnu, Siva (o Criador, o Conser


vador c o Destruidor), que constituem a Trimurti da India.

Entre os israelitas, ou seja, na Biblia do Antigo Testamen


to, o número 3 era número de totalidade definida, rematada.
Por exemplo, Davi teve que escolher entre tres flagelos (a fo-
me durante tres anos, a fuga por tres meses, a peste de tres
dias); cf. 2 Sam 24,11-15. Elias estendeu-se tres vezes sobre
a crianca morta a fim de ressuscitá-la; cf. 1 Rs 17,21. Tres
vezes o mesmo profeta derramou agua sobre o holocausto; cf.
1 Rs 18,30-35.

A filosofía utiliza também o número tres em algumas de


suas enunciagóes fundamentáis que compendiam a realidade da
pessoa humana: Ser-Conhecer-Amar, Ser-Pensar-Sofrer, Inteli
gencia-Vontade-Afeto .

A ótica e a Mística falam de tres fases do progresso espiri


tual: a vida purgativa, a vida iluminativa, a vida unitiva, em
linguagem crista. Ao que se pode comparar, em linguagem mu
sulmana ou sufista, a distincáo entre Chari'a (Lei), Tariqa
(experiencia mística) e Haqiqa (verdade).

Ñas narracóes populares, ocorrem freqüentemente tres


irmáos, tres mosqueteiros, tres rosas ou lirios... Segundo um
proverbio turco, um hospede deve permanecer na casa hospita-
leira tres dias, tres semanas ou tres meses...

Quatro. Este número se relaciona estritamente com o mun


do material, que ele compedia e simboliza. Há, sim, quatro
pontos cardeais (N, S, L, O) e, por conseguinte, quatro dire-
cóes dos ventos (cf. Apc 7,1; 20,8; Jer 49,36; Ez 37,9; Dan
7,2), quatro estacóes do ano (primavera, veráo, outono, inver
nó), quatro elementos fundamentáis (térra, agua, ar, fogo),
quatro ríos no paraíso terrestre (o que significa bem-estar e
bonanga sobre a térra; cf. Gen 2,10-14). O livro de Daniel, ce.
2 e 7, resume a historia do mundo narrando a historia sucessiva
de quatro reinos — concepeáo esta que se encontra na litera
tura religiosa dos povos orientáis em geral.

Os antigos cristáos lembravam que Deus se revelou aos


judeus sob o nome de JAVE, que em hebraico consta de quatro
consoantes (tetragrama): JHVH. No Novo Testamento, o mes
mo Deus se revelou através dos quatro Evangelhos. Por con-

— 313 —
31 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1G3/1973

seguinte, o número 4 simboliza a revelacáo de Deus aos homens.


— De resto, diriam alguns mestres antigos: o número 4 lembra
o quadrado e o cubo, figuras estáveis, inderrubáveis, sempre
iguais a si mesmas e, por isto, perfeitas. Dai a simpatía para
com o 4 e a afinidade deste com Deus.

Considerando a relacáo existente entre o número 4 e o


mundo visivel, os indios da América Setentrional (Navajos,
Zuni, Sioux, Cheroki, Salish...) davam especial énfase a tal
número, fazendo dele o seu esquema habitual para enumerar
as cores, os animáis, as qualidades, os deuses capitais...

Para designar plenitude ou totalidade, dizem os turcos:


«esperar com quatro olhos» ou «comegar com quatro máos».

O Is!á permite ao homem ter quatro mulheres e reconhece


quatro escolas de Direito ortodoxas.

Recentemente, Cari Jung, em seus estudos de psicologia das


profundidades, pos em evidencia o número quatro como anti-
qüíssimo símbolo de perfeigáo, a que espontáneamente o ho
mem recorre para formular seus ideáis.

A titulo de complemento, porém, acrescentamos: o número


4, por duplicar o 2, era tido por certos pensadores e correntes
da antigüidade como número nefasto, a ser evitado.

Cinco. É número menos freqüente na literatura religiosa


dos antigos. Vem a ser o número dos sentidos externos do ho
mem (visáo, audigáo, olfato, paladar, tato). É o número da
deusa Venus e, por isto, o número das nupcias.

No Evangelho, cinco sao os talentos da parábola narrada


em Mt 25,14-30; cinco sao as chagas de Cristo (cf. Jo 20,27).

O Isla conta cinco pilastras da fé e preceitua a oragáo cin


co vezes ao dia.

Seis. Também nao é dos números mais utilizados pelos


místicos. Pode-se dizer que é o número do macrocosmos ou do
grande mundo, pois coincide, de' certo modo, com a idéia de
totaüdade. Com efeito, dois triángulos que se sobrepóem de
modo a deixar os seis ángulos livres e formar urna estrela (a

— 314 —
SIMBOLISMO DOS NÚMEROS 35

estrela de Davi, símbolo de Israel), lembram o universo e tudo


que ele contém de material e espiritual. Ademáis seis é o nú
mero dos dias em que o mundo foi feito, conforme a linguagem
simbolista da Biblia (cf. Gen l,l-2,4a). Há quem diga que 6
também é o número do microcosmos ou do homem (resumo do
macrocosmos), pois o homem foi feito, conforme a Biblia, no
sexto dia da criagáo e se realiza plenamente trabalhando no
decorrer dos seis dias da semana!...

Sob certo aspecto, diriam ainda alguns intérpretes, seis é


símbolo de mau presagio ou de imperfeigáo e truncamento, pois
equivale a 7 — i. Ora 7, como se verá adiante, é símbolo de
totalidade e perfeigáo; donde 7-1 bem podia indicar inacaba-
mento ou mutilagáo e imperfeigáo. — Diante das dificuldades
que os exegetas tém encontrado para interpretar satisfatoria-
mente o número 666 da Fera do Apocalipse (13,18), há autores
que julgam inútil qualquer esforco nesse sentido, pois 666 signi
ficaría apenas, mas de maneira enfática, a imperfeigáo e a frus-
tragáo de todas as tentativas da Fera ou do Anticristo no seu
combate contra Cristo e a Igreja. Esta solugáo nao deixa de
ser plausível. Todavía também se pode crer que 666 representa
a soma dos valores numéricos que caracterizam o nome Qaisar
Nerón (César Ñero), escrito com letras hebraicas.

Ainda a título de curiosidade, pode-se mencionar a inter-


pretagáo do número da Fera do Apocalipse que se deriva do
conceito de número triangular. Chama-se número triangular o
que resulta da soma dos números que se sucedem até de
terminada cifra; por exemplo, o número triangular de 4 é
1+2 + 3 + 4 = 10. Pois bem; 666 é o número triangular
de 36, isto é, equivale a 1 + 2 + 3 + 4 + +36. Ora 36,
por sua vez, é o número triangular de 8, ou seja, equivale
al +2 +3 + 4 ... +8. Conseqüentemente, o número 666
teria afinidade com o número 8. — Objeta-se, porém, e com
razáo, que 8, para os antigos, é sinal de perfeiQáo !

Sete. É número sagrado para os sumeros (antigos habi


tantes da Mesopotamia) e para os semitas. Representa totali
dade, plenitude e perfeigáo, pois cinco eram os planetas que os
antigos conheciam, além do sol e da lúa — o que perfazia um
total de sete astros e, conseqüentemente, de sete esferas celes-
tiais, na cosmología dos orientáis pré-cristáos. Sete sao os dias
da semana, regidos cada qual por determinado astro; ao sétimo
dia tocava especial reverencia (tenha-se em vista o sábado dos
judeus!).

— 315 —
3(1 .PERGUNTH E RESPONDEREMOS- 1(3/1973

Os hindus enumeravam sete regióes do universo e sete


mundos subterráneos. A Pérsia conhecia sete Amesha Spentas
ou espiritos superiores ao homem e regentes deste mundo...
]\7a Grecia, o número 7, tido como viril, designava o deus Apolo.

Entre os israeütas e, por conseguinte, na Biblia, o número


7 ocupa lugar importante, nao raro como símbolo de totalidade
e perfeigáo. Assim os sete olhos de Javé significam a ciencia
perfeita de Deus (cf. Zac 4,10); o perdáo deve ser concedido
pelo cristáo ao seu adversario nao somonte sete vezes, mas
70 x 7 (cf. Mt 18,22; Le 17,4). Sete homens tiveram sucessi-
vamente a mesma mulher, dizem os saduceus a Jesús (cf. Mt
22,25); Maria Madalena estava possuida por sete demonios (cf.
Le 8,2; Mt 12,45); Rute ó preferivel a sete filhos, diz a velha
Noemi (Ru 4,15). — Mais: as festas de Páscoa e dos Taberná
culos háo de ser celebradas durante sete días continuos (cf.
Lev 23,6-8.39-43). O candelabro sagrado do Antigo Testamen
to ou menorá tem sete bracos (cf. Éx. 25,32-40). José previu
sete anos de vacas gordas e sete anos de vacas magras (cf.
Gen 41,1-36). Jaco serviu a seu tio Labá duas vezes sete anos
(cf. Gen 29,15-30). Por sua vez, o Apocalipse apresenta urna
grande variedade de septenarios ou de series de sete elementos.
Alias, a própria palavra shabah em hebraico significa sete e
fazer juramento, isto é, fazer algo de firme, estável, perfeito.

Pode-se notar outrossim que, conforme Jó 1,2; 42,13, Jó


teve tres filhos e sete filhas. Tais húmeros sao evidentemente
simbólicos, servindo para designar um lar feliz ou ideal.

Visto que sete designa perfeigáo ou plenitude, compreende-


-se que a metade de 7, ou seja, 3 y<¿ signifique na Biblia penuria
e sofrimento; cf. Dan 7,25; 12,7; Apc 12,14 (um tempo, tempos,
metade de um tempo); Dan 9,27 (metade de semana); Apc
11,11.23 (tres anos e meio = 42 meses = 1260 dias).

A espiritualidade crista conhece alguns septenarios funda


mentáis: as sete peti<;6es do Pai-Nosso, os sete sacramentos, os
sete dons do Espirito Santo, os sete vicios capitais, as sete
obras de misericordia...

Também o islamismo venera com énfase o número 7.

Oito. Nao é dos números mais usuais na simbologia dos


povos. Quando, porém, ocorre, aparece como sinal de felicidade

— 316 —
SIMBOLISMO DOS NÚMEROS 37

e bonanga transcendentais ou como símbolo da eterna bem-


-aventuranga. Isto se compreende, dado que 8=7 (símbolo
de perfeicáo e bem-estar) + 1. Oito é assim o ultrapassamento
ou o transbordamento da perfeigáo e da bonanga que os homens
conhecem neste mundo.

Note-se, por exemplo, que já no Antigo Testamento o con


junto 7 x 7 = 49, acrescido de urna unidade (a unidade que
finalmente transcende o dominio dos 7), simbolizava o jubileu
(= 50), ou seja, o ano sabático, ano de repouso, de renovagáo
da térra, de volta de todas as coisas ao seu estado original, nao
deteriorado pelas vicissitudes de 49 anos de lutas e fadigas. No
ano 49 = (7 x 7) + 1, todas as dcsordens eram, tanto quanto
possível, superadas em Israel (as dividas eram perdoadas, os
escravos restituidos á liberdade, as propriedades vendidas eram
devolvidas aos seus possessores primitivos), e o povo provava
de certo modo o repouso e a felicidade do Senhor Deus; cf. Lev
25,1-31.

No Novo Testamento, oito sao as bem-áventurangas do


Evangelho (cf. Mt 5,1-12). Jesús ressuscitou no día posterior
ao sábado ou ao sétimo dia dos judeus; ressuscitou, pois, no
oitavo día, como diziam antigos escritores cristáos, intencionan
do enfatizar que o Senhor ultrapassou as instituigóes da Antiga
Alianca e renovou o género humano; Jesús ressuscitado apre-
sentou-se como o novo ou 2« Adáo, portador da vida eterna
para todos os filhos do 1' Adáo. Por isto também os batistérios
antigos (ou fontes batismais), onde os homens renasciam para
a etemidade, tinham forma octogonal. Sao Pedro, alias, nota
que ñas aguas do diluvio, figura do batismo, oito pessoas se sal-
varam (cf. 1 Pe 3,20); desta forma, sao associados o número
8 e o renascimento para a vida eterna.

Nove. Igual a 3 x 3, o número nove designa consumagáo,


principalmente entre os celtas, germanos, finlandeses, húngaros.
Na China, os pagodes de nove patamares sao símbolos do céu.

No Cristianismo, os teólogos enumeram nove coros de espi


rites celestes: anjos, arcanjos, querubins, serafins, tronos, do-
minacóes, principados, potestades, virtudes.

Dez. É o número dos dedos das máos e a base do sistema


decimal. Por isto, vem a ser símbolo de totalidade, plenitude,
como também de sabedoria. Conseqüentemente, dez sao os
mandamentos da Lei de Deus, e dez sao os preceitos de Buda.

— 317 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 163/1973

Os pitagóricos viam no número 10 a soma de 1 e 3 (núme


ros masculinos) e 2 e 4 (números femininos); diziam, pois, que
a soma desses números genitores devia ser perfeita. Por isto
atribuíam valor sagrado ao número 10.

Pode-se registrar ainda que na Biblia dez sao as'pragas do


Egito (cf. Éx 7,14-11,10), dez os dinheiros da parábola referida
em Le 19,11-26, dez as virgens da parábola de Mt 25,1-13, dez
os leprosos curados em Le 12,11-19, dez os chifres da Fera do
Apocalipse (cf. Apc 13,11).

Oiize. Pelo falo de ir além da perfeicáo (10), ó número


de intemperanca e monstruosidade, para os antigos.

Doze. Como resultado de 3 x 4 ou 5 + 7, tal número vem


a ser o grande número cósmico... Número dos sinais do zodia
co, que cercam a térra, diriam os astrólogos antigos. Os egip
cios dividiam o dia em 12 horas e o ano em 12 meses. Os
gnósticos enumeravam 12 eons ou 12 emanagóes através das
quais a Mónada primordial se ia expandindo.

O povo escolhido de Israel constava de doze tribos, que no


Reino do Messias sao representadas pelos doze Apostólos. A
Jerusalém celeste tem doze portas de entrada, que lembram os
doze Apostólos (cf. Apc 21,12.14). Doze eram os bois de bron-
ze que sustentavam o grande «mar» ou tanque a entrada do
Templo de Salomáo (cf. 1 Rs 7,23-26). Enfim, doze sao as
estrelas em torno da cabeca da Mulher do Apocalipse (cf. Apc
12,1).

Treze. É, entre os antigos, geralmente símbolo de desgrasa.


Entre os babilonios, designava o mundo subterráneo tenebroso;
era tambóm o número do mes intercalado periódicamente no
calendario lunar (em que os meses tém apenas 29 dias e meio);
por isto os babilonios o consideravam como número que rompe
e desfaz a harmonía de um sistema organizado e regular.

Entre os cristáos, treze lembra o número de convivas h


Última Ceia (os doze Apostólos e Jesús); por isto a crendice
popular o tem como símbolo de infortunio. Todavía nao faltam
casos em que o número 13 é estimado como portador de felici-
dade e bonanga mesmo entre ob cristños.

Na verdade, o número 13 nao tem poderes sobre a vida


e a liberdade do homem, ao qual ele é por si incapaz de pro
porcionar felicidade ou desgraca.

— 318 —
SIMBOLISMO DOS NÚMEROS 39

Quatorze. Produto de 2 x 7, é símbolo de ventura entre


os babilonios e os egipcios. Na Idade Media, quatorze eram os
Santos Auxiliares, invocados como intercessores em situagóes
angustiosas. Ei-los, segundo a enumeracáo mais freqüente: S.
Acacio (martirizado em 306), S. Egídio, S. Bárbara, S. Brás,
tí. Cristóváo, S. Ciríaco, S. Dionisio, S. Erasmo (martirizado
om 303), S. Eustaquio, S. Jorge, S. Catarina de Alexandria,
tí. Margarida (martirizada sob Diocleciano, no inicio do séc.
IV), S. Panlaleáo, S. Vito ou S. Guido. Os quatorze nomes
aparecem reunidos pela primeira vez em 1284 em uma carta do
bispo Conrado de Passau (Baviera). Posteriormente, em lugar
de S. Ciríaco, co!ocou-se por vezes S. Leonardo, e, em vez de
S. Dionisio, encontrava-se S. Nicolau. Ocasionalmente o nome
da SS. Virgem María iniciava a lista, perfazendo um total de
quinze santos de especial devogáo popular. Na Alemanha havia
algumas igrejas dedicadas aos 14 Santos Auxiliares.

Quinze. É o número da deusa Ichtar, oomo também dos


salmos graduáis e dos misterios do Rosario.

Dczessute. Conforme S. Agostinho, é número cheio de


inensagem, porque se compóe de 10 (a Leí de Deus ou o Decá
logo) e 7 ios üons do Espirito Santo).

Dczenove. É. o número sagrado da religiáo de Bahai, se


gundo a qual o ano se divide em 19 meses de 19 días cada qual.
Trata-se de uma seita dissidente do Islamismo, encabegada por
Mirza AJi Mohammad e seu sucessor Baha' UUah (falecido em
1892 na cidade de Acre, Palestina); tal seita diz ter 2.000.000
de adeptos, esparsos pela Europa e pela América, aonde chegou
procedendo da Pérsia e da Palestina.

Vinte e cinco. Sendo a metade de 50, este número com-


paitilha a simpatía de que goza aquele número jubilar. Designa
uma etapa digna de consideragáo em si mesma ou um jubileu
dito «de prata» (em contraposigáo ao de ouro, que é o jubileu
prop.riamente dito).

Quarunta. É o número dos períodos bem definidos e mar-


cüdos pela expectativa, a preparagáo e a penitencia. Observa-se
que a gravidez feminina dura nove meses ou aproximadamente
7 x 40 dias.

— 319 —
■10 «PERGUNTEJS RKSPONnEKKMOS ■> Jj)3/lü73

Quarenta dias durou o diluvio, diz a Biblia. Quarenta anos,


a estadía dos judeus no deserto. Durante quarenta dias esteve
Moisés no Sinai, como também durante quarenta dias jejuaram
Elias e Cristo. Joñas predisse a destruigáo de Ninive dentro de
quarenta dias. Este período também separa a Ressurreicáo da
Ascensáo de Cristo.

Fala-se de quarentena para designar o prazo de expectativa


necessária diante de urna ameaca de desgraca.

Deve-se também registrar que quarenta anos na Biblia


constituem o periodo de vida de urna geragáo: durante os qua
renta anos de Israel no deserto, morreu urna geracáo (cf. Núm
14,33; 32,13). Em 1 Rs 6,1, 480 anos representan! doze gera-
cóes. David, Salomáo e Joás reinaram quarenta anos (cf. 2 Sam
5,4; 1 Rs 2,11; 11,42; 2 Crón 24,1). No livro dos Juizes, a ten-a
descansa durante 40 ou 80 anos, isto é, urna ou duas geracóes
o que representa urna duracáo qualitativamente bcm carac
terizada e definida, mas cronológicamente nao muito precisa
(cf. Jz 3,11.30; 8,28; 1 Sam 4,18) .

Entre os números mais elevados, a mística e a simbologia


tém poucas referencias. Baste mencionar 70 (7 x 10), número
de bom presagio. O número 72 (a quinta parte de 360 ou do
círculo do zodíaco) também é caro aos antigos. Por fim, 1.000
ó número de plenitude e perfeicáo.

Quanto ao número 10.000, designa na Biblia urna quantK


dade muito grande, mas indefinida. Assim, por exemplo, diz o
Deuteronómio que dois israelitas fiéis perseguiráo 10.000 adver
sarios (cf. Dt 32,30). O povo cantava: «Saúl matou mil inimi-
gos, mas Davi matou dez mil» (1 Sam 18,7). A Davi diziam os
súditos: «Reí, tu vales tanto quanto dez mil homens» (2 Sam
18,3). A direita daquele que Deus protege, cairáo dez mil ho
mens, ao passo que ele ficará incólume, diz o salmo 90,7. Sao
Paulo lembra aos Corintios que, mesmo que tivessem dez mil
mestres, teriam um só pai (cf. 1 Cor 4,15).

Voltemos agora nossa atencáo para urna forma especial de


simbologia dos números, que é a chamada gematría dos judeus,
cultivada principalmente pelos cabalistas.

— 320 —
.SIMnoMSMO IXXS NÚMIOROS 41

3. Cabala e Gcmatría

1. A pulavra cabala (qabbaláh, em hebraico) vem da


forma verbal hebraica qibbel, que significa receber. Qabbaláh
c o objeto (no caso que nos interessa, sao as doutrinas) recebi-
cio por tradfcáo ou transmissáo dos antepassados. Entre os ju-
dcus antigos, os ensinamentos e preccitos eram tidos como um
depósito doutrinário que se deve transmitir ciosamente de pai
a filho, de geracáo a geracáo1.

Técnicamente, cabala veio a ser o conjunto de doutrinas


religiosas e filosóficas, de índole esotérica (ou reservada aos
iniciados), que constituem urna corrente mística do judaismo,
principalmente na Idade Media, a partir do séc. XII.

Alguns meslres judeus atribuem a origem da Cabala a


Adáo, que teria recebido revelagóes de um anjo. Outros, a
Abraáo e aos Patriarcas bíblicos. S. Hilario de Poitiers, no séc.
IV, dizia que Moisés, além dos livros por ele escritos, «deu a
eonhecer a setenta anciáos alguns misterios secretos concernen-
tes as coisas da Lei» (Tracl. in Ps II 2 PL 9, 262); dessa pri-
meira revelagáo ter-se-ia derivado a ciencia oculta cultivada
pelos mestres em Israel.

Na verdade, pode-se crer que a Cabala comegou no povo


de Israel após o exilio na Babilonia {587-538 a. C). Segundo
o 4" livro de Esdras (apócrifo), Esdras no séc. IV a. C. teria
escrito em quarenta dias 204 livros, dos quais setenta deviam
ser entregues exclusivamente aos sabios (cf. 4 Esdr 14, 44-47).
O motivo pelo qual se julga que a Cabala é posterior ao exilio,
sao as marcas de visível influencia estrangeira (persa, helenís
tica) que caracterizan! as sentencas da Cabala e que nao se con-
eiliam com a genuína doutrina dos livros bíblicos; supóem, pois,
o contato dos israelitas com povos estrangeiros ocorrido no
exilio e após o exilio de Israel. O fato é que a Cabala constituí
um amalgama de doutrinas profundas e crencas supersticiosas,

1 Os judeus costumavam associar a instrucáo aos verbos transmitir e


receber, tendo em vista precisamente o ensinamento oral que passava de
pai a fllho. Cf. Prov 19,20:

"Filho, escuta os conselhos e recebe a instrucáo a fim de que sejas


sabio no resto da tua vida".

— 321 —
42 .PKKGUNTK 15 RIvSPONDKRKMOSf 1fí3/l!)7."S

de a'ta sabedoria e de extravagancias fantasisias, como re-,


conhecem os melhorcs mestres de Israel em nossos días.

Sao tres os principáis livros da Cabala:

— Jezirah, que teve origem nos séc. VIII c IX, recolhendo


tradic;5es anteriores. É o livro da Criac.áo ;

— o Bahir (Espléndido), datado dos séc. XI/XIII;

— o Zohar (Brilho), que tem por conteúdo a explicagáo


simbolista do Pentateuco; é atribuido a diversos autores, como
Isaque o Cegó, que vivia em Beaucaire (Franc;a) no séc. XII,
Moisés de Leáo, que escreveu na Espanha por volta de 1300...

Principalmente o Zohar é significativo para se compreender


a Cabala. Afirma que as palavras e as narrac.6es da Escritura
sao históricamente exatas, mas constituem simultáneamente
símbolos de verdades de índole superior. No intuito de interpre
tar «auténticamente» as Escrituras c revelar o seu sentido
oculto, os autores respectivos expücam a criaeáo á guisa de
emanacüo panteista; ensinam a queda dos espíritos e das almas
humanas mima fase de existencia anterior a este mundo, afir-
mam a vinda do Messias, que restaurará os espíritos em sua
bonanga inicial. — Para dar autoridade a essas idéias, os ca
balistas as atribuiam a famosos personagens antigos. Além do
mais, adotaram teses e práticas da astrologia, da magia, da
quiromancia, da ornitomancia (adivinhagáo por meio de pás-
saros)...

Vejamos agora alguns métodos exegéticos dos cabalistas.

2. Estes mestres partiam do principio de que a S. Es


critura, além do sentido diretamente expresso por seus vocá-
bulos, tem outros sentidos mais profundos e misteriosos, laten
tes ñas próprias letras do texto e que somente os iniciados sa-
bem descobrir. — Tres procedimentos levam a tal descoberta:

a) a Themurah (substituido), que consiste em substituir


cada letra do alfabeto ocorrente em urna palavra por outra le
tra correspondente, de acordó com certas regras convencionais.

Assim o athbash manda que a primeira letra (aleph) seja


substituida pela última (tau); a segunda (beth), pela antepe-

— 322 —
SIMKOUSMO DOS NÜMKKOS 43

nútima (shin)... Em conseqüoncia, o nome Babel poderia ser


substituido por Shcsha«h — o que de falo ocorre, segundo os
cabalistas, em Jcr 25,26 e 51,41'.

As rearas do albam mandam que se substitua a primeira


lolra (aleph) pela (Jécima segunda (lamt'd); a segunda (beth),
pela décima terceira (mem)...

A Therciiirnh parece ser procedimento de nolável antigüi-


cUide".

b) (.) Not:ivicon consisto em tomar cada letra de urna pa-


lavru como inicial de oulra palavra ou tambem em reunir em
um só vocábulo as iniciáis das pa'avras de urna frase.

Como exemplos do primeiro processo, tenha-se em vista a


palavra inicial do livro do Génesis: bereshit (no comego). To-
mando-sc á parte as consoantes deste vocábulo, forma-se o
conjunto seguinte:

bara' = Ele criou,

'eres = térra,

shaiiiayiin - céus,

yam — mar,

tehom = abismo.

Tem-scj assim, enunciado, o conleúdo daquilo que ocorreu


bereshit ou no principio: a criaqáo dos céus e da térra!

Note-se também: as tres letras do nome ADAM (aleph,


daleth, mem) dáo inicio aos nomes Adam, David, Meshiach -—
o que indica que o Messias deveria ser filho de Adáo e de Davi.

Como exemplo do segundo processo, tome-se a frase: mi


ya'alch-lanu hash-sha-mayemah, quem nos conduzirá ao céu?

10 fato é que em Jer 25,26 é mencionado o rei de Sesac (ou She-


shach). Em Jer 51,41, parece que o mesmo monarca é Indicado como rei
de Babel. Donde se concluí que é posslvel tenha o Profeta recorrido a tal
artificio de linguagem, usual entre os seus contemporáneos, para designar
veladamente o rei ¡nimigo a quem ele previa infortunios e ruina.

— 323 —
44 «PERGUNTK E RESPONDEREMOS» 163/1973

(Dt 30,12). As letras iniciáis de cada urna dessas palavras dáo


o vocábulo milah, circuncisáo, fornecendo assim a resposta cer
ta á pergunta, segundo os mestres israelitas.

Com as fináis das tres palavras bara' 'Elohitn Ia'asot (Deus


criou para fazer ou fazendo, em Gen 2,3) obtém-se a palavra
'emet, verdade, que caracteriza perfeitamente a finalidade de
toda a obra criadora de Deus.

Os resultados da exegese, nos casos assim apresentados,


nao sao absurdos, mas, ao contrario, válidos para a mentalidade
do Antigo Testamento. Nem sempre, porém, os cabalistas
foram felizes na aplicaráo dos processos mencionados.

Teve mais importancia ainda a chamada

c) Gematria, vocábulo que vem do grego geometría (medi


da da térra). Consiste em atribuir as letras valores numéricos
e tirar deste principio múltiplas conseqüéncias.

Como vimos atrás, o uso de letras para significar números


já era conhecido aos mesopotámios e gregos. Pois bem; soman-
do os valores numéricos das letras de um nome ou vocábulo,
podiam os antigos obter números de significado superior, mis
terioso, que os iniciados deveriam procurar entender ou decifrar,
seguindo assim os principios da gematria. Urna das mais anti
gás ocorréncias de tal arte aparece numa inscricáo do rei Sar-
gao II (727-707 a. C.) da Assíria, inscrigáo na qual se afirma
que o monarca construiu o muro de Khorsabad com o compri-
mento de 16.283 cóvados para corresponder ao valor numérico
desse nome.

A gematria assim entendida (dita também to isópsephon)


estava muito espalhada na literatura dos magos antigos e entre
os intérpretes de sonhos do mundo helenístico. Para os gnós
ticos, nos séc. I/III d. C, eram equivalentes entre si os nomes
sagrados Abraxas e Mithras, pois ambos tinham o mesmo va
lor numérico 365, correspondente aos dias do ano solar. Parece
que o uso da gematria se introduziu entre os judeus na época do
Segundo Templo (515 a. C. — 70 d. O; nesse Templo em
Jerusalém se encontravam letras gregas com valor numérico.
Na literatura dos rabinos ocorre a gematria entre os tannaím
do séc. II d. C.; tinha, por vezes, valor meramente mnemotéc-

— 324 —
SIMBOLISMO DOS NÚMEROS 45

nico (suporte da memoria); mas aos poucos desenvolveu-se de


modo a servir de expressáo a variadas concepgóes do pensamen-
to rabinico.

Eis alguns exemp'.os frisantes:

— O primeiro e o último versículos da Biblia hebraica (Gen


1,1 e 2 Crón 36,23) apresentam, cada qual, seis vezes a letra
aleph, que é a primeira letra da palavra 'elef, que significa mil.
Donde se segué que o mundo durará 6.000 anos!

— O valor numérico dos dois primeiros vocábulos do Gé


nesis, bereshit bara' (no principio fez) é 1.116. O mesmo valor
toca as palavras bero'sh hashunah nibra', que significam «foi
criado no comeco do ano». — Donde se segué que o mundo
foi criado no inicio do ano civil dos judeus antigos, isto é, no
equinóxio do outono!

As letras do nome mashiah, Ungido (Messias), e as da


palavra naliash (serpente) dáo o mesmo total de 358. — Por
conseguinte, o Messias há de defrontar-se com a serpente e
vencé-la!

— A expressáo Elleh ha-devarim (Estas sao as palavras),


de Éx 35,1, designa as 39 categorías de obras proibidas no sá
bado. Com efeito, o valor numérico de elleh é 36; a este se
somam 2 (= devarim) e 1 (= ha, artigo), o que dá o total de 39!

— Em Jer 9,9 se lé que da Judéia devastada «fugiram e


desapareceram o pássaro do céu e o gado (behemah) do cam
po» . — Donde se deduz que durante 52 anos nenhum viandante
passaria pela Judéia, pois o valor numérico de behemah é 52!

— Em Gen 14,14, se diz que Abraáo convocou 318 servi


dores seus para o combate em favor de Lot, feito prisioneiro.
— Ora, segundo os gematristas, esses 318 servidores seriam
apenas um — a saber, Eliezer —, pois o valor numérico de
Eliezer é precisamente 318. Esta interpretagáo é relativamente
freqüente nos escritos rabínicos, por estranha que pareca. De-
ve ter sido concebida como réplica á interpretacáo que o autor
cristáo da carta do Pseudo-'Barnabé dava ao mesmo número de
318 servidores; procedendo segundo a gematria, esse autor via
em 318 o símbolo de Jesús, que venceu o demonio com a cruz

— 325 _
4(i < PEllCUN'TE E RESPONDEREMOS* 1G3/1973

(T). Com efeito, ¡ota e eta (as duas primeiras letras do nome
Jesús, em gregoj dáo o total de 18, ao passo que Tau (T), sim-
bolo da cruz, teni o valor de 300. — Também este autor cristáo
cedeu, no caso, a divagaqóes da fantasía. Como quer que seja,
o exemplo mostra bem como é faina é arbitraria es'sa tática,
pois quem a aplica pode provar a seu gosto conclusóes contra-
ditórias sobre o mesmo assunto.

Em suma, numerosos outros exemplos congéneres poderiam


ser indicados para ¡iustrar os procedimentos da gematria.

Neste contexto, note-se ainda o «quadrado mágico» de Abc-


nezra (1092-1167), que em seu «Livro do Nome» refere a figura
abaixo, na qual os nove primeiros números sao dispostos de
modo que o seu total dé sempre 15, em qualquer sentido. Ora
o número 15 representa as duas primeiras letras do nome santo
JAHVEH em hebraico (iod, he). O número central 5 significa
o Lógos Divino (expressáo da filosofía helenística), que tudo
governa. Os números pares dos ángulos designan! os quatro
elementos fundamentáis (agua, ar, fogo, térra):

6 7 2

1 5 9

8 3 4

No séc. XIII, Mestre Abuláfia, judeu da Espanha, lancou os


primeiros fundamentos da chamada Aritmomancia, que consisto
em relacionar um número com cada astro e cada elemento fun
damental da natureza. Deu assim origem a urna ast rologia ma-

— 326 —
SIMBOLISMO DOS NÜMEROS 47

temática, que pretende, por meio de combinagóes de números,


captar os poderes atribuidos aos astros, a fim de obter benefi
cios ou maJeficios sobre os homens.

3. Nao é necessário insistir na índole artificial e infra-


científica de tais especulagóes. Entre os próprios mestres de
Israel, ]evantou-se no decorrer dos séculos urna forte reagáo
contra o abuso dos números e das interpretagóes «místicas»
(boje em dia, porém, ainda é usual a gematria em certos cír
culos de rabinos, principalmente no norte da África).

Nao se pode provar, nem pela razáo nem pela Biblia, que os
números tenham, por sua natureza mesma, valor simbólico e
que encerrem misterios reservados a iniciados na ciencia dos
números (numerologia). Quem queira cultivar numerologia,
aplique-se á matemática ñas grandes escolas científicas abertas
ao público em geral. Os números sao instrumentos da razáo e
da lógica, subordinados as exigencias do intelecto humano; a
fantasía e a imaginagáo háo de se subordinar ás regras do pen-
samento guiado pela evidencia objetiva e universal (patente a
todos os homensj. Ora na gematria e, em geral, na mística
ocultista dos números, tem-se a inversáo dos valores: a imagi
nagáo arbitraria comanda livremente, assujeitando a razáo e o
bom senso ás suas propensóes.

A sede de maravilhoso e as intuigóes religiosas nao devem


ser dissociadas das afirmagóes do bom senso e do controle da
razáo. Esta, embora nao possa provar as verdades da fé, deve,
ao menos, ter a evidencia de que é conveniente ou mesmo razoá-
vel aceitar tal ou tal proposigáo de fé.

Blbllogralia:

H. Lesétre, "Nombre", em "Dlctionnaire de la Blble, publié par F.


Vigouroux", T. IV. Paris 1908, cois. 1677-1697.

ídem, "Kabbale", ¡b. t. III, Paris 1903, cois. 1881-1884.

J.-J. von Allmen, "Nombres", em "Vocabulalre Blblique". Neuchátel —


Parla 1956, pp. 208-210.

J. Dantélou, "Blble et Liturgle". París 1951.

"Encyclopaedia Judaica". Jerusalem 1971, verbetes "Kabbalah", "Qe-


matrla" e "Numbers", respectivamente vol. 7, cois. 369-374; vol. 10, cois.
489-663; vol. 12, cois. 1254-1261.

— 327 —
48 -PEIICUNTF, E RES PON DEREMOS. 10,3/1073

carta aos amigos


Jerusalém, 13 de [iinho de 1973

Já no fim deste valioso período de estágio na Térra Santa,


venho transmitir ios amigos e leitores mais urna vez efusivas
saudacoes e a afirmacáo de minha profunda uniáo a todos na
labuta de cada dia.
As impressoes causadas pelo contato com o país bíblico
de hoje em dia vém-me á memoria, numerosas e borbulhantes.
Vamos tentar sintetizar algo em dois ítens :
1) A térra de Israel, por mais marcada que tenha sido
— ou ainda seja — por interesses políticos, está profunda
mente assinalada pela presenca do Transcendental e do Eterno.
A fé deixou aqui vestigios impressionantes, desde os tempos
cananeus, pré-israelitas, até os nossos días; populagóes diver
sas se sucederam nesta térra táo palmilhada, testemunhando
ardente senso religioso. Particularmente, Jerusalém ficou ca
racterizada como objetivo de convergencia, primeramente (por
ordem cronológica) dos judeus, depois... dos cristáos e, por
último, dos muculmanos.
Os cristáos sempre tiveram a visita de Jerusalém e dos
Lugares Santos que a cercam, como urna grande meta a ser
proposta a quem a pudesse almejar. Temos descricóes de via-
gens á Palestina desde que esta se tornou acessível no séc. IV;
os fiéis vinham, por certo, com grandes sacrificios, enfrentando,
travessias penosas por térra, por mar, arriscando-se a ser assal-
tados, maltratados, mortos... E percorriam os lugares pisados
pelo Senhor, pela Virgem-Máe e pelos Apostólos em espirito
de adoracáo, louvor e penitencia !
Creio que nao seria exagerado dizer que também muitos
dos cruzados da Idade Media empreenderam a "peregrinacáo"
á Térra Santa (pois era como "peregrinagáo" ou "via da cruz"
que eles designavam a sua facanha) com espirito de fé, peni
tencia e ded¡cacao total ao Senhor. Intencionavam entregar a
sua vida inteira a Cristo quando aceitavam a cruz de paño
sobre o ombro. Deixaram no país bíblico igrejas e monumentos
que até hoje falam eloqüentemente, atestando heroísmo e te-
nacidade por parte dos seus construtores. Para muitos desses
homens, Deus, Cristo e a igreja eram indiscutivelmente os va
lores de primeira grandeza na vida ; cultivaram esses valores
como as suas categorías de civilizacao e cultura permitiram.
Tiveram suas deficiencias (e quem nao as tem ?), mas parece

— 328 —
certo que poderiam ensinar o século XX a recolocar Deus em
primeiro lugar ñas expressoes da civilizagáo e da técnica.
E em nossos días, embora a Jerusalém nova tenha tudo
o que compete a urna grande cidade moderna, basta caminhar
pelas rúas de Jerusalém (principalmente da Cidade Velha, en
cerrada em seus muros) para sentir quanto o senso de Deus
ai está presente : muitos e muitos dos trajes de israelitas, cris-
taos e muculmanos sao testemunhos de que a consciéncia da
presenga de Deus está viva nos homens e ñas mulheres de
Jerusalém.
Em suma, o visitante aquí se retempera nos valores mís
ticos, transcendentais, que a civilizagáo ocidenta!, empenhada
em construir máquinas e foguetes, muito tem perdido. Os orien
táis gostam de dizer que, colocados no Oriente, é das suas
térras que se origina a luz (LUZ); isto até certo ponto é ver-
dade também no plano espiritual. Para nossos países mate
rializados, reduzidos ás vezes a condigóes de um pretenso
agnosticismo ou de laicizagáo artificial, o Oriente e a Térra
Santa tém urna mensagem altamente positiva a dar: ajudam o
homem ocidental a se reencontrar como homem (por vezes,
tornamo-nos máquinas) e como filho de Deus (temos o senso
da eternidade indelevelmente impresso em nos).
Por isto fica aqui urna reflexáo : como seria para desejar
que muitos cristáos (e nao cristáos) do mundo inteiro — espe
cialmente do Brasil, já que construimos a Igreja no Brasil —
viessem a Jerusaiém e aos lugares bíblicos adjacentes a fim
de se restaurar espirituslmente ! Por mais paradoxal que pa-
rega, tal viagem tem muito de um "retiro espiritual", pois ajuda
a meditar. Alias, varias excursóes de interesse religioso e cul
tural tém sido organizadas nos últimos tempos a partir de di
versos pontos do Brasil, em demanda da Térra Santa. Nao
valeria a pena interessarmo-nos pelas possibilidades de parti
cipar de alguma délas, sabendo nos que, em grupo, as coisas
sao mais facéis ?
2) Outro tópico que muito me tem impressionado aquí,
é a necessidade de compreendermos o próximo com seus
problemas.
Passando pelas cidades do país de Israe!, dep3ramo-nos
com judeus e árabes que certamente tém graves problenus
no seu coragáo.
Os israelitas trazem, consciente ou inconscien.emente, a
marca do seu passado agitado ou dessa misteriosa historia
de "povo escolhido" : o sofrimento e, ao mesmo tempo, o de-
sejo de se libertar definitivamente da instabilidade e insegu-
ranga caracterizan! muitos israelitas individualmente o, mais
ainda, os grupos de israelitas. Quantos nao tiveram se.is país
ou irmáos vitimados pelos acontecimentos de 1933-1945 n?.
Europa ! Quantos mesmos nao escap3rsm, por um tris, da es-
poliagáo e da cámara de gas ! É táo ccmum ouvírem-se t?.is
relatos em Israel. Sentem-se vivamente as conseqüéncias des-
sas peripecias recentes no povo judeu que hoje habita Israel.
Os árabes tém historia muito diferente, sem dúvida, em-
bora se digam os filhos de Abraáo por moio de Ismael, como
os judeus sao filhos de Abraáo por via d3 Jaco ou Israel. Os
dois povos sao muito próximos um do outro pela origem, mas
muito diversificados pelo seu passado. Conquistadores e domi
nadores de outrora, os árabes hoje no país de Israel passam
por momento difícil e angustiante ; isto se pode perceber, com
clareza, em suas fisionomías, atitudes e conversas. A juven-
tude árabe do país de Israel, vendo-se em tal situagáo, julgan-
do-se privada de perspectivas alvissareiras para o seu futuro
aquí, tem emigrado em proporcóes vultosas ; partem para o
América do Norte ou do Sul ou para a Australia, a fim de pro
curar trabalho e estudo, valendo-se de parentes ou amigos
que já emigraram, ou aceitando a aventura do incerto ! — Este
fato merece atengáo nao somente do ponto de vista etnológico
e humano (urna populacáo deixa seu torráo natal, porque este
Irte parece inóspito), mas também — e muito — do ponto de
vista cristáo. Sim ; numerosos dos árabes que emigram, sao
cristáos ; quando partem, a presenca crista no país de Cristo
é atenuada; ela vai sendo assim cada vez mais rarefeita. Te-
.mos, é verdade, a presenga crista, na Palestina, de peregrinos
ou déü'estrangeiros aqui residentes; trata-se, porém, de estran-
geirós. A populagao nativa crista vai diminuindo.. .
Este problema tem preocupado a S. Igreja e pede de nossa
parte ao menos a contribuicao de nossas oragoes, para que,
apesar das novas circunstancias políticas que regem a Térra
'Santa a presenga crista ai nao sofra detrimento. Haja voca-
cóes sacerdotais nativas ; haja Religiosas consagradas a Deus
e á catequese, a partir das familias árabes de Israel !
Muitas outras reflexoes poderiam ser aqui desenvolvidas,
em estilo de conversa familiar. Deixemo-las para outra ocasiao,
ou seia para o momento, já bem próximo (se Deus quiser), em
oue poderei ver de novo e abragar os irmáos e amigos no
Brasil, . . nesse Brasil que o Senhor colocou á nossa dispo-
sig"áo com suas ¡mensas riquezas materiais e espirituais, a fim
de que elas frutifiquem para a gloria de Cristo !
Estévao Bettencourt O. S. B.

Os nossos pre/ados leitores observarlo que os árticos apre-


sentados neste l'aseículo mío corresponden! aos que foram anun
ciados em PIl de junlio. A alteragáo se devc a motivos inde-
pendentes da nossa volitado. A materia programada para jullio
sairá em PK de agosto, sem detrimento para o leitor.
A Redacao

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