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O JUÍZO FINAL DE ALDO LOCATELLI:

A ICONOGRAFIA HISTÓRICA NA PINTURA MURAL DA


IGREJA DE SÃO PELEGRINO DE CAXIAS DO SUL∗

HA03-I-SET2003

Altamir Moreira∗*

RESUMO

Este estudo discute a identificação iconográfica dos principais personagens do


Juízo Final: pintura mural realizada por Aldo Locatelli, entre os anos de
1951 e 1960, na Igreja de São Pelegrino em Caxias do Sul (RS). Através de
uma abordagem iconológica, derivada da teoria de Erwin Panofsky, avalia a
presença do legado visual da tradição cristã européia no caso, específico,
dessa produção efetuada em uma região de colonização italiana no sul do
Brasil. Considerando, na atribuição das imagens, os dados fornecidos por
versões interpretativas de origem acadêmica e popular.

Palavras-chave: História da Arte Brasileira; Arte Religiosa no Brasil;


Iconologia; Pintura Mural; Aldo Locatelli.

ABSTRACT
The Aldo Locatelli`s Last Judgement: historical iconography in mural paintings of the
São Pelegrino`s Church in Caxias do Sul

This study discusses the iconographic identification of the main characters of


the Last Judgement: mural painting made by Aldo Locatelli em 1952 at São
pelegrino`s Church, in Caxias do Sul (Rio Grande do Sul). Through a
iconological approach based on Erwin Panofsky Theory, evaluates the
presence of the visual legacy of East Christian Tradition in the case, specific,
of this production raised in a region of Italian colonization in the south of
Brazil. It considers the data provided by interpretative versions from
academic and popular sources for the attribution of the images.

Key words: Brazilian Art History; Religious art in Brazil; Iconology; Mural
paintings; Aldo Locatelli.

* Este texto resume parte da pesquisa, em andamento, sobre: A Morte e o Além: iconografia e imaginário da pintura
mural religiosa das colônias de imigração do Rio Grande do Sul (1920 -1970), financiada pelo CNPq, e
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação da UFRGS sob orientação do professor Dr. José Augusto Avancini.

** Altamir Moreira (1972): Pesquisador de iconologia da pintura mural religiosa. Graduado em Desenho e Plástica
(bacharelado) pela UFSM. Atualmente, cursando o doutorado em História Teoria e Crítica da Arte pela UFRGS, Porto
Alegre, RS.
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1. A ICONOLOGIA SOB JUÍZO: DETERMINISMO OU LIBERDADE INTERPRETATIVA?

Como justificar, na contemporaneidade, a utilização de uma abordagem que se


proponha, apenas, discutir a identificação de personagens na pintura religiosa histórica? Este
questionamento se torna necessário quando se constata que este tipo de estudo é, por vezes,
considerado uma atividade secundária, diante das outras formas de análise que ora se voltam,
de forma pertinente, para as questões da forma, e dos valores estéticos. Entretanto, a solidez
de uma leitura mais aprofundada da imagem, quase sempre, é depende dessas aproximações
iniciais, aparentemente mais simples, mas que muitas vezes se revestem de uma
potencialidade determinante. Isto pode ser ilustrado pela situação, já apresentada por Erwin
Panofsky, de que: “[...] se a faca que nos permite identificar São Bartolomeu não for uma
faca, mas um abridor de garrafas, a figura não será São Bartolomeu” (1991, p. 91). O que,
desde já, nos adverte para as conseqüências mais amplas de uma interpretação iconográfica.
Na avaliação de dados visuais, sabe-se que mesmo os historiadores mais experientes
estão sujeitos à emissão de juízos precipitados, sem falar que muitas vezes as fontes
disponíveis podem ser tão contraditórias que inviabilizam qualquer tentativa de se alcançar
uma atribuição confiável. Mas, ainda que estudiosos contemporâneos, como Georges Didi-
Huberman (1990), tenham chamado a atenção para as limitações da análise iconológica
panofskiana, cuja estrutura conclusiva pode acarretar o fechamento das possibilidades
simbólicas, tal argumento não parece ser suficiente para embasar a atitude em que o
historiador deva temer o posicionamento. E, com menor razão, a variedade das atribuições
divergentes surgidas perante a iconografia de um personagem pode justificar, apenas, uma
declaração da equivalência dessas narrativas enquanto fundamentos para um juízo adequado.
Pois, justamente nestas situações, mais dificultosas, é que se torna imperativo todo o esforço
que busque diagnosticar, na contingência das atribuições conflitantes, os diferentes valores, as
aspirações e os modos mais prováveis pelos quais as imagens têm permitido dar vazão à
vontade de simbolizar em diferentes momentos históricos. Porque, somente, a partir da
honesta indicação, ainda que por vezes alicerçada sobre o reconhecimento de um simples
atributo, é que se pode construir o edifício teórico que irá determinar o conteúdo específico
veiculado por um personagem. Situando, dessa forma, quais são as possibilidades expressivas
mais verossímeis, implicadas na totalidade de uma alegoria. Sem que o rigor, necessário ao
estudo histórico, represente qualquer ameaça para a liberdade cabível aos devaneios do gozo
estético individual.
Após situarmos alguns dos problemas que permeiam a atividade de atribuição,
passaremos a um estudo de caso, no qual se busca desenvolver a etapa inicial de uma análise
iconológica, ou seja, a identificação dos personagens sacros, e a discussão das imagens mais
controversas. A obra, em questão, é uma pintura mural religiosa datada de 1952, realizada
pelo pintor italiano Aldo Locatelli na Igreja de São Pelegrino, em Caxias do Sul, Rio Grande
do Sul.
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2. O JUÍZO FINAL DE ALDO LOCATELLI


Ao pintar o grande mural do Juízo Final no teto da Igreja de São Pelegrino, Locatelli
se defronta com um espaço de bordos irregulares. Os limites, em forma de cruz latina, passam
a impor um ritmo alternado, de sucessivas subdivisões, circunstância que o pintor tira proveito
em sua composição através de uma equilibrada conjugação de ritmos formais e contrastes
cromáticos. Com isto, obtêm uma forte sugestão de intensidade dinâmica em um mural cuja
dimensão física se faz acompanhar de um caráter expressivo com magnitude não menos
impressionante (Figura 21).

Freqüentemente evocado mais em função de uma possível relação com o Juízo Final
de Miguel Ângelo (1475 -1564), constata-se neste estudo que a obra de Locatelli talvez possa
ser mais bem caracterizada através das diferenças de concepção. Na composição de Miguel
Ângelo ocorre um predomínio do verticalismo. Ordenamento que substitui o ancestral modelo
de origem bizantina que preconizava a distribuição dos personagens do Juízo final em cenas
ordenadas sob faixas paralelas. Organização do espaço que contrapõe o movimento de
ascensão dos justos ao Paraíso em relação ao descenso dos condenados ao Inferno, e que
determina a transição do equilíbrio estático medieval para o dinamismo flamante da arte pré-
barroca. Configuração que, no entender de Louis Réau, representa uma verdadeira revolução
para a iconografia do tema, principalmente, porque ao ser executado na Capela dos papas, no
Vaticano, se torna o grande marco da paganização da arte cristã que ocorria na época. Uma
expressão híbrida que revela, de modo sutil, através das formas helenizadas do Cristo Juiz, do
naturalismo dos anjos sem asas, dos santos desnudos e sem auréolas, uma influência
humanista típica do Renascimento. Em alguns casos, de maneira flagrante: como na parte
inferior, onde, em lugar das mandíbulas de Leviatã, é apresentada a barca mitológica de
Caronte, o sombrio personagem encarregado de conduzir as almas para além do rio Estige,
até os domínios subterrâneos de Hades (RÉAU, 2000, p. 776).

Na obra de Locatelli, a imagem do Cristo também estar envolta em um halo de luz, e


dispõe de um destaque semelhante àquela do pintor da Capela Sistina. Porém, nesse caso toda
a composição é organizada na forma de diagonais ascendentes que passam a dispor os vários
grupos de figuras em sucessivas posições no espaço como se estivessem ocupando degraus.
Forma de organização espacial que lembra, com maior verossimilhança, as obras dos grandes
mestres venezianos, do século XVIII: Giambattista Piazzeta (1682 - 1754) e Giambattista
Tiepolo (1696 -1770). Uma caracterização diferenciada que também se verifica na maneira de
representação das figuras, onde ao invés do impacto frontal dos corpos e do espaço sem
referências dimensionais, planificado, do manierismo de Miguel Ângelo, temos as vistas
inclinadas, os fortes escorços e a profundidade vertiginosa das pinturas barrocas.
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Locatelli já não permite a interferência das formas pagãs em sua composição e, de


certa forma, parece preocupado em minimizar o apelo à sensualidade na representação dos
corpos dos santos e dos eleitos. Embora, na cena relativa aos condenados haja vários torsos
despidos, todos estes são providos de calções providenciais. E, neste caso, mesmo a nudez
incipiente parece ser justificada pela coerência de um discurso moral iniciado nos dois murais
que antecedem a grande cena do Juízo final: Na Criação do Homem Adão desfruta da
condição primitiva, pois seus olhos, neste caso ainda fechados, não haviam cobiçado o poder
e nem tomado consciência da nudez. No segundo mural a Expulsão do Paraíso, Eva, com os
olhos voltados para a terra, parece cingir apressadamente um manto contra seu corpo.
Enquanto Adão, em sua expressão desterro, parece mais preocupado em cobrir o rosto, ao
tempo em que veste apenas um perizonium. Pequena peça de tecido que, por sua vez, é muito
similar àquela utilizada pelo personagem que entre os condenados do Juízo Final dirige uma
última suplica a Cristo. Observadas em seqüência as duas cenas parecem reforçar um
significado expressivo semelhante. Os corpos ainda ostentam uma beleza física digna de
heróis clássicos, porém sem qualquer relação com a virtude, pois no caso da pintura de
Locatelli a nudez, com que esses se apresentam perante o tribunal divino, manifesta-se
enquanto signo de degradação: a condição humilhante daqueles que já não possuem o estado
da graça divina1.

O Cristo Juiz é descrito com feições românticas: cabelos longos, loiro, expressões
suaves e, enfim, toda a idealização do tipo ariano, já bem distante do naturalismo clássico
evocado por grande parte das obras renascentistas. Ao lado direito de Cristo encontra-se
Maria, um tanto ou quanto, afastada por sugestão da perspectiva, apesar de sua proximidade
formal no plano pictórico em relação a seu Filho. Os gestos recatados e o olhar vago
direcionado para baixo nem de longe evocam a importância histórica desempenhada por ela
em antigas representações do gênero, quando, inseridos no clima de crescente avanço da
mariolatria, pintores italianos do século XIV ousaram pintar a Virgem em posição similar à de
Cristo. Uma inovação que não fez escola, pois devido ao seu caráter herético foi rapidamente
suprimida do repertório artístico cristão (RÉAU, 2000, p. 763). A imagem de Cristo, no
entanto, mantém a tradição ao preservar a autoridade, o caráter judicioso e austero desta cena,
na Igreja de Caxias do Sul. Pois: “O instante fixado por Locatelli é o da Sentença Final,
quando cessa o tempo e a eternidade imobiliza a tudo [...] Maria não olha o filho. Não mais
suplica, é o momento da justiça, é o abrir-se da eternidade” (Mario Gardelin apud
Zattera,1995, p. 82).
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3. SÃO JOSÉ: O MILAGRE DO BASTÃO E A GENEALOGIA DO MESSIAS

Ao lado direito de Maria identifica-se a imagem de São José, apoiado em um bastão


florido. A origem deste atributo repousa sobre uma tradição apócrifa que deu interpretação
romanceada do vaticínio de Isaías (11,1-2):”Um broto vai surgir do tronco seco de Jessé, das
velhas raízes, um ramo brotará. Sobre ele há de pousar o espírito do SENHOR [...]” (BÍBLIA,
2002, p. 869). Na Legenda Áurea Jacopo da Varazze registra uma versão baseada na História
da bem-aventurada Maria2 na qual: “José tomou-a como esposa após ter recebido uma
revelação divina e após seu ramo ter dado brotos” (VARAZZE, 2003, p. 312). O evento
ocorre na época em que Maria veio a completar 14 anos, quando o pontífice havia decidido
que as virgens, que viviam e eram instruídas no Templo, ao completarem essa idade deveriam
voltar para suas casas e contrair matrimônio. Mas, tiveram de enfrentar um dilema, pois
embora a tradição assim orientasse, Maria havia sido consagrada a Deus, e para que a
promessa fosse mantida ela deveria permanecer virgem. Como a dúvida persistia, aconselhado
pelos anciãos, o sacerdote decidiu orar e solicitar uma solução a Deus. Eis que a orientação
recebida indica que o esposo de Maria deve ser escolhido entre:

“Todos os homens da casa de Davi que não estão convenientemente unidos em casamento
devem levar um ramo ao altar, e aquele cujo ramo germinar e em cuja ponta o Espírito Santo
pousar em forma de pomba, conforme profetizou o profeta Isaías deve sem qualquer dúvida
desposar a Virgem” (VARAZZE, 2003, p. 750).

Quando os homens descendentes de Davi apresentaram-se no Templo, José absteve-se


de apresentar o seu ramo, por considerar inconveniente que ele, um homem de idade avançada
tomasse como esposa uma jovem virgem. Porém, como não ocorreu nenhum sinal divino
neste primeiro momento, o sacerdote consultou novamente o Senhor. Este, então, indicou que
justamente aquele que se recusou a apresentar o ramo deveria ser o escolhido. “Diante disso
José levou a vara, que floresceu e em cujo topo pousou uma pomba vinda do céu”
(VARAZZE, 2003, p. 752).

A imagem desse santo agrega, entre possibilidades interpretativas, um reforço ao


caráter messiânico da figura de Jesus, pois a presença do bastão florido lembra a interpretação
cristã da profecia de Isaias. Nessa perspectiva, é através de José se concretiza a descendência
do Messias a partir da estirpe de Davi. E, dessa forma, também se prenuncia o evento
escatológico da vinda do “Príncipe da Paz” que, de acordo com o antigo profeta, julgará os
fracos com justiça, dará sentença favorável aos fracos da terra, e iniciará o período em que os
homens e os animais ferozes viverão em harmonia. (Isaías, 11-12).

Conduzindo o foco da análise para a parte central da obra, pode se perceber que à
direita do Juiz Celeste, sobre a elevação de uma nuvem, encontram-se os dois principais
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discípulos, fundadores do cristianismo. São Pedro, um dos primeiros apóstolos, identificado


pela tiara de três coroas que simboliza sua função pontifícia, e São Paulo, discípulo tardio,
com o atributo da espada, insígnia da sua antiga condição de soldado romano. O temido
perseguidor do Cristianismo que, após uma adventícia conversão, se torna um dos principais
divulgadores da nova doutrina.

À esquerda do Grande Juiz, encontra-se o Bom Ladrão. Um dos condenados à


crucificação que, arrependido, suplicou a Cristo, obtendo Deste a promessa de que logo
ambos esse encontrariam no Paraíso (Lucas 23, 39-43). A seguir, vê-se um pequeno grupo
com personagens representados em tons azulados. Pelo menos dois desses, portam objetos
semelhantes a livros. Provavelmente, representam os chamados profetas menores que juntos
de outros eleitos são agraciados com a felicidade eterna. Ainda, ao lado destes, mas em
posição mais próxima do espectador, encontra-se Moisés, o ancestral profeta e condutor do
Povo de Deus, que sustenta as tábuas do Decálogo. Suas cores, mais cálidas, alcançam uma
intensidade cromática que consolida o seu destaque diante dos personagens mais próximos.
Logo acima, mais duas pessoas parecem completar o conjunto relativo aos profetas. É bem
possível, que o portador da Antiga Escritura, seja Daniel, evocado nessa ocasião por ser um
daqueles inspirados que previram os eventos finais. Já, o que sustenta o braço elevado,
provavelmente, é Elias3. Que de acordo com uma tradição arcaica, será um dos três
testemunhas que são decapitados pelo Anticristo no Apocalipse, mas que logo a seguir
ressuscitam (RÉAU, 2002, p. 412). Além disso, ele é aquele que junto com Moisés
acompanha Cristo no evento da Transfiguração.

Na parte esquerda do mural, próximo ao espaço central da composição, encontra-se


um grupo com seis personagens. Para Daneluz (PINTURAS, 2001), a mulher que, sustenta o
atributo da coroa de espinhos de Jesus, perto da imagem de São Miguel, seria Santa Clara.
Logo ao lado, tendo os braços levantados na posição de prédica, encontra-se Santo Inácio de
Loyola, com as vestes típicas da Ordem Jesuíta. Logo a seguir, sentado, portando um livro,
apresenta-se São Domingos, tendo ao fundo a figura de São Bento retratada sob os traços de
Pio X4. E por último, numa atribuição menos controversa, Daneluz reconhece São Francisco
de Assis (1182-1226) no personagem com as mãos unidas em gesto de prece, que se interpõe
ao primeiro plano, imediatamente abaixo da figura de Cristo. Destaque especial concedido ao
Santo de Assis que não parece ser estranho à tradição, pois conforme Réau, desde a época em
que este santo ainda era vivo, já partir do século XII, “[...] à frente dos eleitos, quase sempre
vai um franciscano, identificável pelo cíngulo5, ele é um signo da popularidade que
conseguira a ordem de São Francisco de Assis imediatamente após sua criação” (2002 b, p.
766. Tradução nossa). Quanto à interpretação do significado expressivo desta imagem, a
pesquisadora Véra Stédille Záttera observa que: “São Francisco aparece de costas à violência.
Junto aos condenados, parece perdoá-los” (p. 82).
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4. SANTA CLARA OU SANTA CATARINA DE SIENA?


Quanto à figura da mulher que porta o atributo da coroa de espinhos a identificação
sugerida por Zátera difere da interpretação de Daneluz. Enquanto este tende a reconhecer a
imagem de Santa Clara de Assis (1193 – 1253), em cuja face locatelli teria representado as
feições da mãe do Padre Eugênio Giordani6, Záttera, porém a identifica como uma
representação de Santa Catarina de Siena. Este tipo de divergência torna-se digno de análise
ao se considerar que também é do interesse do iconólogo compreender quais os indícios
contraditórios de uma imagem, que em princípio, podem induzir a uma identificação
diferenciada. Nota-se que Locatelli ao harmonizar a cor local desse grupo, em que estão os
principais representantes das ordens religiosas, destaca os tons ocres e amarelados. Estes ao
predominarem ofuscam as variações cromáticas mais sutis, pois mesmo tendo de antemão a
informação que o hábito das irmãs clarissas combina vestes brancas com um véu negro, estes
dados não seriam suficientes para uma primeira aproximação ao significado convencional da
imagem. Pois nesse caso, ao clima denso do Juízo Final Locatelli altera as cores locais de
algumas formas, de maneira que o matiz das vestes da santa passa, realmente, a se assemelhar
àquela do hábito de São Francisco. E, a partir desse índice frágil, o peso da tradição que tende
a reencontrar o equilíbrio justo na representação conjunta dos dois santos de Assis, tende a se
encarregar do resto.

Mas, quais seriam os indícios mais seguros que podemos dispor, para que se possa
defender que a imagem, realmente, representa Santa Catarina de Siena e não Santa Clara de
Assis? Nesse caso, nos resta recorrer ao que Panofsky (1991, p. 27) denomina história dos
tipos, ou seja, estudar como, nesse caso, uma determinada imagem ou tema convencional foi
expresso por objetos ou ações. Nas representações de Santa Clara de Assis destacam-se,
como atributos tradicionais: a custódia eucarística com a qual se apresentou diante dos
sarracenos e o ramo de oliveira, símbolo de sua paixão mística pelo crucifixo. Entretanto,
nenhum destes foi utilizado na pintura da Igreja de São Pelegrino. Entre os detalhes, menos
freqüentes, consta a antiga lâmpada de argila ou lanterna processional decorrente da
associação do nome de Santa Clara a uma antiga crença, na qual as pessoas que sofriam de
doenças dos olhos costumavam invocá-la para “ver claro”. E, ainda, o ramo de flor-de-lis
atribuído por pintores sienenses como símbolo de pureza. Mas, apesar deste último atributo
estar presente na imagem de Locatelli, ele não constitui um índice conclusivo para a
identificação iconográfica. Pois é necessário considerar que também à iconografia de Santa
Catarina de Siena apresenta a flor-de-lis, simbólica das virgens, freqüentemente associada a
um crucifixo. A Santa sienense, porém, possui um atributo a mais: a fronte cingida por uma
coroa de espinhos. Signo que se originou a partir da descrição de uma de suas visões em que
ela conversa com Cristo. Os pintores do século XV apresentavam esse diálogo através de
bandeirolas, que descreviam a situação na qual a Santa, após ser aceita como esposa mística
de Cristo, teve a graça de realizar uma escolha. Cristo lhe diz: “Minha filha querida é
necessário que tu portes uma dessas coroas [...]. Se tu queres portar a coroa de espinhos
durante a vida, a coroa de ouro te será reservada na eternidade”7. Portanto, parece justificado
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que Locatelli a represente com a coroa de espinhos na mão. Pois, o Juízo Final marca o início
da eternidade e da recompensa dos justos. Tendo cumprido a sua missão terrena, Santa
Catarina de Siena apresenta o doloroso atributo diante do Juiz, pois é chegado o momento em
que irá receber a coroa áurea.

5. À ESPERA DA SENTENÇA DEFINITIVA


No espaço retangular próximo ao limite esquerdo do mural temos a representação de
um dos condenados. O acentuado contraste de cores, entre a intensa luz das chamas infernais
e as sombras que o envolvem reforçam o caráter dramático da cena: um corpo livre se projeta
em direção ao fogo, mãos que tentam proteger o rosto, pálpebras que se expandem ao limite.
Gestos que, no silêncio de cores imobilizadas, dão uma dimensão profunda aos sentimentos
de dor e desespero evocados pelas formas do personagem. Como contraponto a esse
movimento em descenso, encontramos na parte oposta desse mural a imagem imponente do
Arcanjo São Miguel que inicia o triunfal vôo ascendente. Ao contrário da imagem do primeiro
condenado, cuja cabeça se lança ao primeiro plano, o Arcanjo se projeta na direção contrária.
O corpo, também representado em forte escorço, tem os pés no primeiro plano e neste gesto
direciona a linha formada pela multidão dos eleitos que iniciam a marcha em direção aos
céus. Com a mão esquerda voltada para baixo parece indicar a disposição guerreira e a
autoridade desse sobre o espaço que separa os condenados em relação aos justos.

Entre os sentenciados, apenas dois personagens voltam-se em direção aos céus. A


mulher de cabelos longos, figurada em tons de azul, eleva a mão em frente ao rosto, como que
no gesto instintivo de uma expressão de medo. O olhar, no entanto, volta-se em direção aos
santos numa manifestação emotiva que, se por um lado, parece indicar ainda haver a
esperança de que a atenção algum deles se volte em direção a ela, por outro também pode
denotar inveja pela sorte reservada aos eleitos. O homem, pintado em tons cálidos, destaca-se
pelos gestos exaltados. Záttera registra a perturbadora semelhança existente entre esse
personagem e o Padre Giordani, contratante de Locatelli na época de realização desse mural,
estabelecendo relação com o caso do Cardeal representado por Miguel Ângelo. A partir disso
infere a possibilidade de que Locatelli tenha traduzido uma situação semelhante, pois: “[...]
que se saiba problemas de pagamento não havia, mas de outras cobranças só Aldo poderá
dizer” (ZÁTTERA, 1995, p.82, nota 71) Daneluz, porém, registra uma outra identificação não
menos polêmica, pela qual tende-se a identificar nesse personagem um auto-retrato de
Locatelli: “[...] no inferno, com o braço estendido para Jesus. Talvez numa súplica para ser
salvo”, ao tempo em que: “[...] sua filha estaria do outro lado, no paraíso” (PINTURAS, 2001
b, p. 6-7). Caso que permanece aberto à investigação, e que ilustra o tipo de situação onde a
carência de dados mais confiáveis, não permite, por ora, qualquer posicionamento seguro
sobre o que a imagem representa com maior probabilidade, seja o autoretrato do artista, o
contratante, ou uma figuração anônima. Ao pesquisador cabe apenas o gesto de partilhar seus
dados e suas incertezas. Pois, se as versões por ora disponíveis, não fornecem bases mais
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concretas para a atribuição, pelo menos podem fornecer uma idéia do quanto essas teses
fisionomistas ainda são valorizadas no tipo de abordagem que desenvolvida com maior
freqüência na arte regional.

Ao se deslocar o olhar em direção à parte inferior da cena, depara-se com uma


impressionante descrição das penas infernais. Entre chamas e colunas de fumaças, os corpos
dos condenados se debatem ante os tormentos infringidos pelos demônios. Situações em que o
castigo parece desenvolver uma conotação de caráter sexual. Isto transparece em relação às
cenas do primeiro plano, quando percebemos que ambos os homens são atingidos em suas
partes pudendas: aquele que se encontra na posição inferior, é imobilizado e punido pelo
vapor que se projeta da boca do ser infernal; o que coloca a mão na cabeça é atingido entre as
pernas através da ponta da arma empunhada pelo demônio que o subjuga.

Um desses carrascos do domínio inferior porta um tridente e parece ter, entre suas
atribuições, o trabalho de empurrar os corpos dos condenados em direção às regiões mais
profundas. Pelo menos, é o que pode ser deduzido quando, ao lado dele, vemos que um dos
humanos é representado apenas pelas pernas, que se estendem no vazio, como se estivesse
numa posição de queda livre, enquanto outros dois homens exasperam-se entre gestos de
proteção, e de fuga. Esse demônio, quando comparado aos outros da mesma cena, destaca-se
por ser o único com o caráter distintivo das asas de morcego. Detalhe que faz supor,
encontrarmos em Locatelli, uma possível influência dos murais apocalípticos de Luca
Signorelli (c. 1540-1523), imortalizados na Catedral de Orvietto. Mesmo assim, percebe-se
que tais personagens foram concebidos com uma criatividade singular, que concebeu formas
diferenciadas para cada um dos seres infernais representados. A entidade mais distante é
concebida com uma cabeça grotesca fundida a um corpo atlético muito semelhante ao de um
humano normal. Os outros dois, possuem corpos transparentes como que vistos através de
uma visão de raios x, seus esqueletos possuem uma estrutura basicamente antropomórfica,
com exceção dos crânios e das caudas pelos quais se revelam como híbridos de formas
zoomórficas monstruosas. Os músculos lembram à tonalidade do ferro aquecido, fazendo
supor que esses seres dispõem de uma fisiologia adaptada ao rigor das chamas. Quanto aos
seres humanos, resta apenas o contínuo suplício, daquele fogo, que já foi descrito por
Lactâncio como algo dotado da terrível propriedade de se nutrir dos condenados ao mesmo
tempo em que os reconstitui (Lactâncio apud MINOIS, 1994, p.138).

Toda essa ambientação visual parece contribuir para dar um novo alento a um
imaginário cristão ancestral, cuja base iconográfica teria sido estruturada ao longo da Idade
Média européia. Formas que, na segunda metade do século XX, ainda conservam resquícios
simbólicos com a vitalidade de evocar um medo real. Pelo menos, em parte dessa sociedade
em que coexistiam os índices da modernidade industrial iniciada na Era Vargas junto à forte
religiosidade tradicional de caráter transmontano herdado dos imigrantes italianos que
colonizaram a região de Caxias do Sul a partir da segunda metade do século XIX. Imagens
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cuja importância não pode ser vislumbrada sob a ótica da inovação, pois representam, talvez,
uma das últimas tentativas de se recuperar o antigo fervor religioso através de visões que
pudessem reforçar a chamada “teologia do medo”, ainda predominante nesse período que
imediatamente antecede o Concílio Vaticano II. Período em que a fé na justiça post-mortem
parecia estar se enfraquecendo, configurando a situação que a Igreja da época, em grande
parte, tendia a atribuir às modificações culturais determinadas pela sociedade moderna e pela
crescente disseminação dos ideais comunistas. Também para Locatelli este mural representa
uma etapa conclusiva. É, uma das últimas obras religiosas em que as formas da tradição ainda
fluem sem qualquer interferência formal ou inquietação estética de caráter modernista do tipo
que ele mais tarde demonstra ao executar a série de painéis da Via-Crúcis para a mesma
igreja. O Locatelli do Juízo Final é ainda acadêmico, conforme Záttera, ele não busca ser
atual, em relação à época que a obra está sendo feita: “O processo de transformação das
experiências artísticas vividos pelo artista parece não ocorrer demasiadamente. Não há traço
moderno, contemporâneo. Mesmo assim seu poder criador é conservado”.

CONSIDERAÇÕES SOBRE UM FINAL


Ao se concluir esta abordagem do Juízo Final de Locatelli, sabe-se que muito ainda nos
falta para acessarmos a sensibilidade da época e da região em que esta obra foi realizada, mas
é reafirmada a esperança de que, futuramente, outros pesquisadores consigam aprofundar
estas questões dispondo de material mais adequado. Ao se considerar que na atual
circunstância não nos foi concedida autorização para a pesquisa de documentos paroquiais da
época. É possível que nessa tentativa de identificarmos os personagens e os seus respectivos
caracteres expressivos, tenham ocorrido incorreções, mesmo assim esta é uma etapa
imprescindível em qualquer abordagem iconológica no modelo sugerido por Erwin Panofsky.
Pois só a partir da busca de uma correta interpretação dos tipos é que se pode estruturar a
etapa mais sólida desse tipo de análise. Os pontos mais obscuros, por vezes, funcionam como
variáveis desconhecidas que resistem e que questionam a validade da interpretação que se
pretende construir. Isto também tem um valor epistemológico na construção de uma leitura,
pois isto evita o recurso da adesão imediata às interpretações forçadas. Principalmente, as que
parecem se enquadrar no modelo teórico que, no momento, nos parece o mais provável. Ao
resistir à nossa tentativa de designação apressada nos forçam a buscar mais informações,
consultando livros, peritos, e ampliando o campo de nossa experiência ( PANOFSKY, 1991, p.
23.). E, quando, mesmo assim, restar uma identificação que não nos parece confiável, temos o
recurso de compartilhar com outros pesquisadores as nossas sinceras dúvidas. Pois, participar
desse tipo de movimento dialético, nos leva a conhecer mais o objeto de estudo, permitindo o
ajuste e a correção de observações anteriores, muitas vezes mesmo aquelas a que
devotávamos maior crédito. Resultando, ao final do esforço, um tipo de interpretação bem
mais coerente e confiável.
Fig. 21 – Aldo Locatelli: Juízo Final - 1951 /1960. Afresco seco.
Igreja de São Pelegrino, Caxias do Sul.
Foto: Altamir Moreira, 2003.
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NOTAS
1
Situação que, de certa forma, corresponde a uma permanência visual do conceito de nudez derivado da teologia
moral da Idade média, evocado por Panofsky em Significado nas artes Visuais (1991, p. 133): “a nuditas
criminalis, associada à vaidade falta de virtudes. Outras classes eram assim determinadas: nuditas virtualis:
forma de nudez associada à inocência, e nuditas naturalis: estado natural humano, humildade. Nuditas temporalis
decorrente da pobreza voluntária ou imposta”.
2
Conforme nota de Hilário Franco Júnior, tradutor da versão portuguesa desse texto medieval, Varazze se refere
à um apócrifo atribuído à São Jerônimo, (incluído em versões da obra Patrologia latina deste santo), mas que na
verdade trata-se de um texto anônimo do século XII, reeditado em Madri, no ano de 1979, integrando a obra Los
Evangelios apocrifos de A. de Santos Otero sob o legenda Livro sobre a Natividade de Maria. Como
complemento gostaria de indicar, aos pesquisadores brasileiros, uma versão do Evangelho da Natividade de
Maria publicado sob o título, de Proto-Evangelho de Tiago, na coletânea Apócrifos: os proscritos da Bíblia
compilados por Maria Helena de Oliveira Tricca (São Paulo: Mercúrio, 1992). E na obra Evangelhos Apócrifos
organizada por Luigi Moraldi (São Paulo: Paulus, 1999).

3
Conforme Bernard McGUINN em El Anticristo, 1997, p. 100, a participação de Elias no conflito final seria
decorrente da interpretação dos Oráculos Sibilinos 2, 187-195, e de excertos do Apocalipse de Daniel e do
Evangelho de Nicodemos.

4
Argumento que parece buscar apoio no fato de que Giuseppe Sarto (1835 -1914), que sob o título dePio X
exerceu o pontificiado de 1903 a 1914, ter sido canonizado em 1954 durante o período em que Aldo Locatelli
ainda realizava pinturas na igreja de São Pelegrino de Caxias do Sul.
5
Cíngulo: cordão com três nós, característico da Ordem Franciscano, que simboliza seus votos de pobreza,
castidade e obediência.
6
Padre Eugênio Giordani, pároco no período entre 1942 e 1985, foi um dos principais responsáveis pelo período
no qual ocorrerram as grandes inovações na decoração sacra da igreja de São Pelegrino de Caxias do Sul.
7
Na fonte consultada: “ Ma fille chérie, il faut que tu portes l`une de ces couronnes. Si tu demandes à porter la
couronne d`épines pendant ta vie, la couronne d`or te sera accordée pour la eternité”

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. 2 ed. São Paulo: Ave maria, Santuário, Salesiana, Paulus, Paulinas. Rio de Janeiro:
Vozes, 2002. Tradução: CNBB.
DIDI-HUBERMAN, Georges, Devant L`Image: question posée aux fins d`une histoire de l`art. Paris: Minuit, 1990
PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1979.
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
MORALDI, Luigi. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Paulus, 2003, (Biblioteca de Estudos Bíblicos).
MINOIS, Georges. História de los infiernos. Barcelona: Paidós, 1994.
McGUINN, Bernard. El Anticristo. Barcelona: Paidós Ibérica, 1997.
PINTURAS de Locatelli registram curiosidades. In: GAZETA de Caxias. Geral. Arte, Religiosidade. Caxias do Sul. 03-09,
fev. 2001, p. 06-07.
RÉAU, Louis. Iconografia del arte cristiano: iconografía de la Biblia, Novo Testamento. 2 ed. Barcelona: Del Serbal, 2000.
 . Iconographie de L`Art Chrétien: Iconographie des Saints P - Z. Paris: Presses Universitaires de France, 1959.
Tome III.
TRICCA, Maria helena de Oliveira. Apócrifos: os proscritos da Bíblia. São Paulo: Mercúrio, 1992.
ZATTERA, Véra Beatriz Stedile. Aldo Locatelli. Porto Alegre: Pallotti, 1995.

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