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HA03-I-SET2003
Altamir Moreira∗*
RESUMO
ABSTRACT
The Aldo Locatelli`s Last Judgement: historical iconography in mural paintings of the
São Pelegrino`s Church in Caxias do Sul
Key words: Brazilian Art History; Religious art in Brazil; Iconology; Mural
paintings; Aldo Locatelli.
* Este texto resume parte da pesquisa, em andamento, sobre: A Morte e o Além: iconografia e imaginário da pintura
mural religiosa das colônias de imigração do Rio Grande do Sul (1920 -1970), financiada pelo CNPq, e
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação da UFRGS sob orientação do professor Dr. José Augusto Avancini.
** Altamir Moreira (1972): Pesquisador de iconologia da pintura mural religiosa. Graduado em Desenho e Plástica
(bacharelado) pela UFSM. Atualmente, cursando o doutorado em História Teoria e Crítica da Arte pela UFRGS, Porto
Alegre, RS.
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Freqüentemente evocado mais em função de uma possível relação com o Juízo Final
de Miguel Ângelo (1475 -1564), constata-se neste estudo que a obra de Locatelli talvez possa
ser mais bem caracterizada através das diferenças de concepção. Na composição de Miguel
Ângelo ocorre um predomínio do verticalismo. Ordenamento que substitui o ancestral modelo
de origem bizantina que preconizava a distribuição dos personagens do Juízo final em cenas
ordenadas sob faixas paralelas. Organização do espaço que contrapõe o movimento de
ascensão dos justos ao Paraíso em relação ao descenso dos condenados ao Inferno, e que
determina a transição do equilíbrio estático medieval para o dinamismo flamante da arte pré-
barroca. Configuração que, no entender de Louis Réau, representa uma verdadeira revolução
para a iconografia do tema, principalmente, porque ao ser executado na Capela dos papas, no
Vaticano, se torna o grande marco da paganização da arte cristã que ocorria na época. Uma
expressão híbrida que revela, de modo sutil, através das formas helenizadas do Cristo Juiz, do
naturalismo dos anjos sem asas, dos santos desnudos e sem auréolas, uma influência
humanista típica do Renascimento. Em alguns casos, de maneira flagrante: como na parte
inferior, onde, em lugar das mandíbulas de Leviatã, é apresentada a barca mitológica de
Caronte, o sombrio personagem encarregado de conduzir as almas para além do rio Estige,
até os domínios subterrâneos de Hades (RÉAU, 2000, p. 776).
O Cristo Juiz é descrito com feições românticas: cabelos longos, loiro, expressões
suaves e, enfim, toda a idealização do tipo ariano, já bem distante do naturalismo clássico
evocado por grande parte das obras renascentistas. Ao lado direito de Cristo encontra-se
Maria, um tanto ou quanto, afastada por sugestão da perspectiva, apesar de sua proximidade
formal no plano pictórico em relação a seu Filho. Os gestos recatados e o olhar vago
direcionado para baixo nem de longe evocam a importância histórica desempenhada por ela
em antigas representações do gênero, quando, inseridos no clima de crescente avanço da
mariolatria, pintores italianos do século XIV ousaram pintar a Virgem em posição similar à de
Cristo. Uma inovação que não fez escola, pois devido ao seu caráter herético foi rapidamente
suprimida do repertório artístico cristão (RÉAU, 2000, p. 763). A imagem de Cristo, no
entanto, mantém a tradição ao preservar a autoridade, o caráter judicioso e austero desta cena,
na Igreja de Caxias do Sul. Pois: “O instante fixado por Locatelli é o da Sentença Final,
quando cessa o tempo e a eternidade imobiliza a tudo [...] Maria não olha o filho. Não mais
suplica, é o momento da justiça, é o abrir-se da eternidade” (Mario Gardelin apud
Zattera,1995, p. 82).
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“Todos os homens da casa de Davi que não estão convenientemente unidos em casamento
devem levar um ramo ao altar, e aquele cujo ramo germinar e em cuja ponta o Espírito Santo
pousar em forma de pomba, conforme profetizou o profeta Isaías deve sem qualquer dúvida
desposar a Virgem” (VARAZZE, 2003, p. 750).
Conduzindo o foco da análise para a parte central da obra, pode se perceber que à
direita do Juiz Celeste, sobre a elevação de uma nuvem, encontram-se os dois principais
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Mas, quais seriam os indícios mais seguros que podemos dispor, para que se possa
defender que a imagem, realmente, representa Santa Catarina de Siena e não Santa Clara de
Assis? Nesse caso, nos resta recorrer ao que Panofsky (1991, p. 27) denomina história dos
tipos, ou seja, estudar como, nesse caso, uma determinada imagem ou tema convencional foi
expresso por objetos ou ações. Nas representações de Santa Clara de Assis destacam-se,
como atributos tradicionais: a custódia eucarística com a qual se apresentou diante dos
sarracenos e o ramo de oliveira, símbolo de sua paixão mística pelo crucifixo. Entretanto,
nenhum destes foi utilizado na pintura da Igreja de São Pelegrino. Entre os detalhes, menos
freqüentes, consta a antiga lâmpada de argila ou lanterna processional decorrente da
associação do nome de Santa Clara a uma antiga crença, na qual as pessoas que sofriam de
doenças dos olhos costumavam invocá-la para “ver claro”. E, ainda, o ramo de flor-de-lis
atribuído por pintores sienenses como símbolo de pureza. Mas, apesar deste último atributo
estar presente na imagem de Locatelli, ele não constitui um índice conclusivo para a
identificação iconográfica. Pois é necessário considerar que também à iconografia de Santa
Catarina de Siena apresenta a flor-de-lis, simbólica das virgens, freqüentemente associada a
um crucifixo. A Santa sienense, porém, possui um atributo a mais: a fronte cingida por uma
coroa de espinhos. Signo que se originou a partir da descrição de uma de suas visões em que
ela conversa com Cristo. Os pintores do século XV apresentavam esse diálogo através de
bandeirolas, que descreviam a situação na qual a Santa, após ser aceita como esposa mística
de Cristo, teve a graça de realizar uma escolha. Cristo lhe diz: “Minha filha querida é
necessário que tu portes uma dessas coroas [...]. Se tu queres portar a coroa de espinhos
durante a vida, a coroa de ouro te será reservada na eternidade”7. Portanto, parece justificado
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que Locatelli a represente com a coroa de espinhos na mão. Pois, o Juízo Final marca o início
da eternidade e da recompensa dos justos. Tendo cumprido a sua missão terrena, Santa
Catarina de Siena apresenta o doloroso atributo diante do Juiz, pois é chegado o momento em
que irá receber a coroa áurea.
concretas para a atribuição, pelo menos podem fornecer uma idéia do quanto essas teses
fisionomistas ainda são valorizadas no tipo de abordagem que desenvolvida com maior
freqüência na arte regional.
Um desses carrascos do domínio inferior porta um tridente e parece ter, entre suas
atribuições, o trabalho de empurrar os corpos dos condenados em direção às regiões mais
profundas. Pelo menos, é o que pode ser deduzido quando, ao lado dele, vemos que um dos
humanos é representado apenas pelas pernas, que se estendem no vazio, como se estivesse
numa posição de queda livre, enquanto outros dois homens exasperam-se entre gestos de
proteção, e de fuga. Esse demônio, quando comparado aos outros da mesma cena, destaca-se
por ser o único com o caráter distintivo das asas de morcego. Detalhe que faz supor,
encontrarmos em Locatelli, uma possível influência dos murais apocalípticos de Luca
Signorelli (c. 1540-1523), imortalizados na Catedral de Orvietto. Mesmo assim, percebe-se
que tais personagens foram concebidos com uma criatividade singular, que concebeu formas
diferenciadas para cada um dos seres infernais representados. A entidade mais distante é
concebida com uma cabeça grotesca fundida a um corpo atlético muito semelhante ao de um
humano normal. Os outros dois, possuem corpos transparentes como que vistos através de
uma visão de raios x, seus esqueletos possuem uma estrutura basicamente antropomórfica,
com exceção dos crânios e das caudas pelos quais se revelam como híbridos de formas
zoomórficas monstruosas. Os músculos lembram à tonalidade do ferro aquecido, fazendo
supor que esses seres dispõem de uma fisiologia adaptada ao rigor das chamas. Quanto aos
seres humanos, resta apenas o contínuo suplício, daquele fogo, que já foi descrito por
Lactâncio como algo dotado da terrível propriedade de se nutrir dos condenados ao mesmo
tempo em que os reconstitui (Lactâncio apud MINOIS, 1994, p.138).
Toda essa ambientação visual parece contribuir para dar um novo alento a um
imaginário cristão ancestral, cuja base iconográfica teria sido estruturada ao longo da Idade
Média européia. Formas que, na segunda metade do século XX, ainda conservam resquícios
simbólicos com a vitalidade de evocar um medo real. Pelo menos, em parte dessa sociedade
em que coexistiam os índices da modernidade industrial iniciada na Era Vargas junto à forte
religiosidade tradicional de caráter transmontano herdado dos imigrantes italianos que
colonizaram a região de Caxias do Sul a partir da segunda metade do século XIX. Imagens
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cuja importância não pode ser vislumbrada sob a ótica da inovação, pois representam, talvez,
uma das últimas tentativas de se recuperar o antigo fervor religioso através de visões que
pudessem reforçar a chamada “teologia do medo”, ainda predominante nesse período que
imediatamente antecede o Concílio Vaticano II. Período em que a fé na justiça post-mortem
parecia estar se enfraquecendo, configurando a situação que a Igreja da época, em grande
parte, tendia a atribuir às modificações culturais determinadas pela sociedade moderna e pela
crescente disseminação dos ideais comunistas. Também para Locatelli este mural representa
uma etapa conclusiva. É, uma das últimas obras religiosas em que as formas da tradição ainda
fluem sem qualquer interferência formal ou inquietação estética de caráter modernista do tipo
que ele mais tarde demonstra ao executar a série de painéis da Via-Crúcis para a mesma
igreja. O Locatelli do Juízo Final é ainda acadêmico, conforme Záttera, ele não busca ser
atual, em relação à época que a obra está sendo feita: “O processo de transformação das
experiências artísticas vividos pelo artista parece não ocorrer demasiadamente. Não há traço
moderno, contemporâneo. Mesmo assim seu poder criador é conservado”.
NOTAS
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Situação que, de certa forma, corresponde a uma permanência visual do conceito de nudez derivado da teologia
moral da Idade média, evocado por Panofsky em Significado nas artes Visuais (1991, p. 133): “a nuditas
criminalis, associada à vaidade falta de virtudes. Outras classes eram assim determinadas: nuditas virtualis:
forma de nudez associada à inocência, e nuditas naturalis: estado natural humano, humildade. Nuditas temporalis
decorrente da pobreza voluntária ou imposta”.
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Conforme nota de Hilário Franco Júnior, tradutor da versão portuguesa desse texto medieval, Varazze se refere
à um apócrifo atribuído à São Jerônimo, (incluído em versões da obra Patrologia latina deste santo), mas que na
verdade trata-se de um texto anônimo do século XII, reeditado em Madri, no ano de 1979, integrando a obra Los
Evangelios apocrifos de A. de Santos Otero sob o legenda Livro sobre a Natividade de Maria. Como
complemento gostaria de indicar, aos pesquisadores brasileiros, uma versão do Evangelho da Natividade de
Maria publicado sob o título, de Proto-Evangelho de Tiago, na coletânea Apócrifos: os proscritos da Bíblia
compilados por Maria Helena de Oliveira Tricca (São Paulo: Mercúrio, 1992). E na obra Evangelhos Apócrifos
organizada por Luigi Moraldi (São Paulo: Paulus, 1999).
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Conforme Bernard McGUINN em El Anticristo, 1997, p. 100, a participação de Elias no conflito final seria
decorrente da interpretação dos Oráculos Sibilinos 2, 187-195, e de excertos do Apocalipse de Daniel e do
Evangelho de Nicodemos.
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Argumento que parece buscar apoio no fato de que Giuseppe Sarto (1835 -1914), que sob o título dePio X
exerceu o pontificiado de 1903 a 1914, ter sido canonizado em 1954 durante o período em que Aldo Locatelli
ainda realizava pinturas na igreja de São Pelegrino de Caxias do Sul.
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Cíngulo: cordão com três nós, característico da Ordem Franciscano, que simboliza seus votos de pobreza,
castidade e obediência.
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Padre Eugênio Giordani, pároco no período entre 1942 e 1985, foi um dos principais responsáveis pelo período
no qual ocorrerram as grandes inovações na decoração sacra da igreja de São Pelegrino de Caxias do Sul.
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Na fonte consultada: “ Ma fille chérie, il faut que tu portes l`une de ces couronnes. Si tu demandes à porter la
couronne d`épines pendant ta vie, la couronne d`or te sera accordée pour la eternité”
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. 2 ed. São Paulo: Ave maria, Santuário, Salesiana, Paulus, Paulinas. Rio de Janeiro:
Vozes, 2002. Tradução: CNBB.
DIDI-HUBERMAN, Georges, Devant L`Image: question posée aux fins d`une histoire de l`art. Paris: Minuit, 1990
PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1979.
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
MORALDI, Luigi. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Paulus, 2003, (Biblioteca de Estudos Bíblicos).
MINOIS, Georges. História de los infiernos. Barcelona: Paidós, 1994.
McGUINN, Bernard. El Anticristo. Barcelona: Paidós Ibérica, 1997.
PINTURAS de Locatelli registram curiosidades. In: GAZETA de Caxias. Geral. Arte, Religiosidade. Caxias do Sul. 03-09,
fev. 2001, p. 06-07.
RÉAU, Louis. Iconografia del arte cristiano: iconografía de la Biblia, Novo Testamento. 2 ed. Barcelona: Del Serbal, 2000.
. Iconographie de L`Art Chrétien: Iconographie des Saints P - Z. Paris: Presses Universitaires de France, 1959.
Tome III.
TRICCA, Maria helena de Oliveira. Apócrifos: os proscritos da Bíblia. São Paulo: Mercúrio, 1992.
ZATTERA, Véra Beatriz Stedile. Aldo Locatelli. Porto Alegre: Pallotti, 1995.