O presente ensaio consiste em um breve esforço de elucidação da
principal tese política de Giorgio Agamben sobre os direitos humanos. Avançando em seu argumento, no seio da relação polêmica que ele estabelece com as tradições da filosofia política, será possível compreender como Agamben prolongará sua crítica aos direitos humanos, em textos tardios, na direção decisiva de uma antropolítica evanescente: uma política em que a componente humana torna-se alvo da exceção no seio das instituições jurídicas que deveriam protegê-lo.
Título original
Biopolítica e Direitos Humanos: Giorgio Agamben e uma antropolítica evanescente (Profanações, n. 1., v. 1., 2014)
O presente ensaio consiste em um breve esforço de elucidação da
principal tese política de Giorgio Agamben sobre os direitos humanos. Avançando em seu argumento, no seio da relação polêmica que ele estabelece com as tradições da filosofia política, será possível compreender como Agamben prolongará sua crítica aos direitos humanos, em textos tardios, na direção decisiva de uma antropolítica evanescente: uma política em que a componente humana torna-se alvo da exceção no seio das instituições jurídicas que deveriam protegê-lo.
O presente ensaio consiste em um breve esforço de elucidação da
principal tese política de Giorgio Agamben sobre os direitos humanos. Avançando em seu argumento, no seio da relação polêmica que ele estabelece com as tradições da filosofia política, será possível compreender como Agamben prolongará sua crítica aos direitos humanos, em textos tardios, na direção decisiva de uma antropolítica evanescente: uma política em que a componente humana torna-se alvo da exceção no seio das instituições jurídicas que deveriam protegê-lo.
Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. BIOPOLTICA E DIREITOS HUMANOS: GIORGIO AGAMBEN E UMA ANTROPOLTICA EVANESCENTE Murilo Duarte Costa Corra 1
RESUMO: O presente ensaio consiste em um breve esforo de elucidao da principal tese poltica de Giorgio Agamben sobre os direitos humanos. Avanando em seu argumento, no seio da relao polmica que ele estabelece com as tradies da filosofia poltica, ser possvel compreender como Agamben prolongar sua crtica aos direitos humanos, em textos tardios, na direo decisiva de uma antropoltica evanescente: uma poltica em que a componente humana torna-se alvo da exceo no seio das instituies jurdicas que deveriam proteg-lo.
Palavras-chave: Biopoltica. Direitos Humanos. Giorgio Agamben. Antropologia.
BIOPOLITICS AND HUMAN RIGHTS: GIORGIO AGAMBEN AND AN EVANESCENT ANTHROPOLITICS
ABSTRACT: This essay is a briefly effort to elucidate Giorgio Agamben's main political thesis on human rights. Advancing his arguments, through the polemical bond Agamben establishes with the traditions of political philosophy, we will comprehend how his critical apparatus would be extented until what we may call an evanescent anthropolitics: a politicy wherein the human component becomes the target of exception in the main core of the institutions that should protect it.
Keywords: Biopolitics. Human Rights. Giorgio Agamben. Anthropology.
1 Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de So Paulo (PPGD/USP). Professor de Filosofia Poltica na Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa (SCJ/DDE/UEPG), instituio em que tambm atua como pesquisador. Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paran (UFPR), com habilitao em Direito das Relaes Sociais e em Direito do Estado. Autor de "Filosofia black bloc" (no prelo), "Direito e Ruptura: ensaios para uma filosofia do direito na imanncia" e de "Anistia e as ambivalncias do cinismo: ADPF 153 e micropolticas da memria". Atualmente, desenvolve pesquisas nas reas de Ontologia, Filosofia Poltica e Filosofia e Teoria Geral do Direito. Atualmente, coordena o projeto de pesquisa "Anthropolticas: biopoltica e direitos humanos". E-mail: mdc.correa@gmail.com Biopoltica e direitos humanos 23 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. BIOPOLTICA E DIREITOS HUMANOS: GIORGIO AGAMBEN E UMA ANTROPOLTICA EVANESCENTE
Se Agamben possui uma tese sobre os direitos humanos, seria aquela que se enuncia desde o primeiro volume do Homo Sacer e que se encontrar repetida, a partir da leitura de O declnio dos Estados-Nao e o fim dos Direitos do Homem e de We Refugees, de Hannah Arendt, um ano mais tarde, em Mezzi Senza Fine:
tempo di cessare di guardare alle Dichiarazioni dei diritti dal 1789 a oggi come a proclamazioni di valori eterni metagiuridici, tendenti a vincolare il legislatore al loro rispetto, e di considerarle secondo quella che la loro funzione reale nello Stato moderno. I diritti delluomo rappresentano, infatti, innazitutto la figura originaria delliscrizione della nuda vita naturale nellordine giuridico-politico dello Stato-Nazione. 2
Sua tese compe-se de uma articulao crtica cessemos de considerar os direitos humanos contidos nas declaraes como valores eternos, metajurdicos , e de uma articulao topolgica, que evoca a real funo que tais declaraes de direitos desempenham no Estado moderno, e que Agamben resume afirmando: Os direitos humanos representam a figura originria da inscrio da vida nua natural na ordem jurdico-poltica do Estado-Nao. Se a articulao crtica poderia remeter a uma longa e heterognea tradio de suspeita acerca dos direitos humanos 3 , impossvel no perceber que sua articulao topolgica encerra componentes mais abrangentes que os relativos a uma crtica meramente histrica. Se Agamben pde ser acusado pela anistoricidade e ocidentalidade da tese de Homo sacer 4 como se tudo se reduzisse ao eterno giro em falso de uma mesma estrutura de bando soberano, tomada de emprstimo a
2 Giorgio Agamben, Mezzi senza fine: note sulla politica (Torino, Bollati Boringhieri, 1996, p. 24). Ver, ainda, Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 133-142) texto, em tudo, coalescente com esta tese. 3Suspeita cujas mais clssicas expresses encontram seu lugar em espritos polticos to heterogneos como os de Edmund Burke, em seu Reflections on the Revolution in France, e Karl Marx, em Sobre a questo judaica. Sobre o primeiro, conferir Hannah Arendt, Origens do totalitarismo (So Paulo, Companhia das Letras, 2009), p. 333-336 e, para um breve comentrio sobre o segundo, ver, tambm Costas Douzinas. The end of human rights: critical legal thought at the turn of the century. (Oxford: Hart Publishing, 2000, p. 371). 4 Giuseppe Cocco, Mundo Braz, (Rio de janeiro, 2008, p. 176-179). Murilo Duarte Costa Corra 24 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. Jean-Luc Nancy 5 e Carl Schmitt 6 , por outro lado, seu diagnstico a respeito da real funo dos direitos humanos na gnese dos Estados-Nao vai ao encontro de um fenmeno moderno e relativamente recente, convergente com a emergncia das tecnologias biopolticas de governamentalidade atestadas por Michel Foucault. 7 Sua tese tem por termo originrio o ano de 1789 ano da elaborao da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado e se estende at os dias de hoje. Nesses termos, a anlise biopoltica que Agamben faz proliferar a partir do entrecruzamento entre os estudos de Hannah Arendt, sobre o totalitarismo, de Michel Foucault, sobre os racismos de Estado e a biopoltica, e de Walter Benjamin, sobre a coincidncia da pura forma da lei com a vida, define-se como um fenmeno especificamente moderno. Tanto Benjamin quanto Foucault constituem algumas das linhas de fora essenciais que Agamben opera para construir o grande tema de sua filosofia poltica 8 . Em seu interior, a vida nua far as vezes de uma constante conceitual que deve ser apreendida tanto com a entrada da vida da espcie humana nas ordens do saber, do poder e no campo das tcnicas polticas, no curso do sculo XIX 9 , quanto a partir do dispositivo literrio kafkiano, que permitira a Benjamin apreender no apenas a coincidncia entre a vida e a pura forma da lei que vige sem significar 10 , mas fazer os procedimentos kafkianos de reverso ressoar no apelo feito emergncia de um estado de exceo efetivo (wirklich), que encontramos na clebre
5 Jean-Luc Nancy, Limpratif catgorique, (Paris, 1983). 6 Carl Schmitt, Teologia poltica (Belo Horizonte, Del Rey, 2006). 7 Michel Foucault, Histria da sexualidade I: a vontade de saber (Rio de Janeiro, Graal, 2009, p. 147- 158); Ainda, Michel Foucault, Il faut dfndre la socit (Paris, Gallimard, 1997, p. 213-235). 8[...] somente uma reflexo que, acolhendo a sugesto de Foucault e Benjamin, interrogue tematicamente a relao entre vida nua e poltica que governa secretamente as ideologias da modernidade aparentemente mais distantes entre si poder fazer sair o poltico de sua ocultao e, ao mesmo tempo, restituir o pensamento sua vocao prtica. Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007), p. 12. 9Michel Foucault, Histria da sexualidade I: a vontade de saber (Rio de Janeiro, Graal, 2009, p. 154). 10Benjamin observa que, nos contos de Kafka, certo que os tribunais possuem cdigos. Mas eles no podem ser vistos. 'Faz parte desse sistema judicial condenar no apenas rus inocentes, mas tambm rus ignorantes', presume Kafka. No mundo primitivo, as leis e normas no so escritas. O homem pode transgredi-las sem o saber. Walter Benjamin, Franz Kafka. A propsito do dcimo aniversrio de sua morte. In: Obras escolhidas. v. 1. Magia e tcnica, arte e poltica. Traduo de Paulo Srgio Rouanet. 7. ed. So Paulo: Brasiliense, 1994, p. 140. Cf., a esse respeito, pginas decisivas de Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007), p. 60-62. Biopoltica e direitos humanos 25 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. oitava tese sobre o conceito de Histria 11 . Para alm dessas declaradas influncias, o termo vida nua natural no qual Agamben parece inspirar-se para constituir sua nuda vita uma expresso inventada por Arendt em Origens do Totalitarismo, de 1951, para identificar aqueles que, no perodo entre guerras, haviam perdido o direito a ter direitos e encontravam- se radicalmente excludos do prprio conceito de Humanidade em razo do consistente uso do mecanismo da desnacionalizao em massa instrumento jurdico presente nas ordens jurdicas de quase toda a Europa civilizada. 12 As desnacionalizaes produziam sem cessar homens que no eram nada alm de seres humanos puros que, desprovidos de toda outra qualidade nacionalidade, cidadania, tecido de relaes sociais, vnculo com um povo, com uma terra ou com uma genealogia constituam, ento, a concreta figura-limite dos direitos humanos: a figura do refugiado que, segundo Arendt, deveria encarnar por excelncia o homem a quem as naes ditas civilizadas atribuam direitos eternos, inalienveis e imprescritveis. No entanto, capturados no sistema do Estado-Nao, em que toda tutela de direitos depende, em ltima anlise, de uma relao de cidadania entre sujeito de direitos e Estado-Nao, tais direitos mostraram-se desprovidos de qualquer efetividade em relao ao homem que, desnacionalizado, sem ser cidado de Estado algum, parecia expulso da Humanidade tanto quanto da famlia de Naes que a constitua. Se isso no constitui uma novidade nem no mbito da antropologia filosfica do iluminismo, nem no da teoria dos direitos humanos Kant no fazia outra coisa, seno soldar o imperativo categrico ao moral, e esta ao humanamente predicada Hannah Arendt parece ser a primeira a enunciar a relao constitutiva que estabelece o conceito de homem como fundo inaparente dos direitos humanos.
11A tradio dos oprimidos nos ensina que o estado de exceo em que vivemos na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de histria que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa originar um verdadeiro estado de exceo; com isso, nossa posio ficar mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstncia de que seus adversrios o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histrica. O assombro com o fato de que os episdios que vivemos no sculos XX "ainda" sejam possveis, no um assombro filosfico. Ele no gera nenhum conhecimento, a no ser o conhecimento de que a concepo de histria da qual emana semelhante assombro insustentvel. Walter Benjamin, Sobre o conceito de histria. In: Obras escolhidas. v. 1. Magia e tcnica, arte e poltica. Traduo de Paulo Srgio Rouanet. 7. ed. So Paulo: Brasiliense, 1994, p. 226. 12 Hannah Arendt, Origens do totalitarismo (So Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 300-336). Murilo Duarte Costa Corra 26 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. Essa enunciao , sob todos os aspectos, radicalmente problemtica, pois Arendt a realiza em um momento de profunda crise:
O conceito de direitos humanos, baseado na suposta existncia de um ser humano em si, desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres que haviam realmente perdido todas as outras qualidades e relaes especficas exceto que ainda eram humanos. O mundo no viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano 13 .
previsvel que Agamben encontre, portanto, na figura dos sobreviventes de campos de extermnio, dos internados em campos de concentrao e refugiados, os prottipos mais visveis da vida nua natural que a modernidade iluminista e seu conceito evanescente de homem produziram no como conceito, mas como figura com espessura e consistncia concretas. Porm, no nos esqueamos, Agamben no cessa de reencontr-lo tambm na figura demasiado normal dos agentes da SS, exprimindo, e no por acidente, uma evocao global de Eichmann e do conceito arendtiano de banalidade do mal 14 . Uma vez que tenhamos situado o lcus histrico de sua tese e livrado a anlise de Agamben das mais embaraosas crticas por meio de um golpe metodolgico, resta-nos avaliar o que significa afirmar que os direitos humanos representam, sobretudo, a figura originria da inscrio da vida nua natural na ordem jurdico-poltica do Estado-Nao? Porm, em que consiste a real funo dos direitos humanos na estrutura dos Estados-Nao? Para respond-lo, Agamben parece seguir de perto a tese arendtiana que conclui A Condio Humana (1958), segundo a qual a vida predominou, na modernidade, em relao a todas as outras configuraes; o animal laborans definido, entre os romanos, como homem incapaz de palavra ou de ao no mbito poltico, pois tem por tarefa essencial o trabalho para sustentar sua prpria existncia orgnica e natural triunfa sobre o homo faber, e a vida meramente orgnica passa a ocupar a totalidade da cena poltica moderna 15 .
13 Hannah Arendt, Origens do totalitarismo (So Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 333). 14 Giorgio Agamben, O que resta de Auschwitz (So Paulo, Boitempo, 2008, p. 34-35). 15 Hannah Arendt, A condio humana (So Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 392). Biopoltica e direitos humanos 27 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. Agamben, todavia, o faz ainda parecendo aludir insensivelmente a Carl Schmitt, para quem Todo conceito de teoria poltica um conceito teolgico secularizado e, j falando em vida nua, afirma que:
Quella nuda vita (la creatura umana) che, nellAncien Rgime, apparteneva a Dio e, nel mondo classico, era chiaramente distinta (come zo) dalla vita politica (bios), entra ora in primo piano nella cura dello Stato e diventa, per cos dire, il suo fondamento terreno. Stato nazione significa: Stato che fa della nativit, della nascita (cio della nuda vita umana) il fondamento della propria sovranit. [...] solo perch ha iscritto (artt. 1 e 2) lelemento nativo nel cuore di ogni associazione politica, essa pu legare saldamente (art. 3) il principio di sovranit alla nazione (conformemente alletimo, natio significa in origine semplicemente nascita). [...] Che [...] il suddito si trasformi in cittadino, significa che la nascita cio la nuda vita naturale diventa qui per la prima volta [...] il portatore immediato della sovranit. 16
Nas ltimas linhas de sua tese, Agamben afirma que na passagem da soberania rgia para a nacional, da condio de subjetivao de sdito para a de cidado, que a vida nua teria se tornado o portador imediato da soberania. Afirm-lo significa que a vida orgnica, natural passa a ocupar o centro da poltica, e se torna a fiadora e o fundamento ltimo da soberania dos Estados- Nao. Toda a questo reduz-se a compreender como a vida passa a constituir o epicentro do exerccio do poder soberano na modernidade, em cujo contexto As declaraes de direitos devem ento ser vistas como o local em que se efetua a passagem da soberania rgia de origem divina soberania nacional. Elas asseguram, segundo Agamben, a exceptio da vida na nova ordem estatal que dever suceder derrocada do ancien rgime 17 . Isso se opera no nvel dos dispositivos de subjetivao, por meio da transformao do sdito em cidado. No entanto, preciso compreender o que isso significa do ponto de vista das estruturas de grande escala; em outras palavras, como a converso do sdito em cidado produz, de um lado, a implicao da vida na nova ordem e, ao mesmo tempo, sua excluso o que define a relao de exceo ou de bando.
16 Giorgio Agamben, Mezzi senza fine: note sulla politica (Torino, Bollati Boringhieri, 1996, p. 24-25). 17 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 135). Murilo Duarte Costa Corra 28 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. O antigo regime separava o princpio de natividade do princpio de soberania: nascer significava ser no mais que um sdito. A partir da constituio dos Estados- Nao europeus, os princpios so reunidos na figura do cidado nessa medida, o cidado passa de sdito a sujeito de direitos; a natividade a condio para adquiri- los em uma ordem poltico-jurdica qualquer. Isto , nascimento e nao j no comportam mais nenhum resduo; h uma completa coincidncia entre o nascido vivo e o cidado. Para compreender, finalmente, o que leva Agamben a afirmar que a vida se torna o portador imediato da soberania, seria til pensar nas implicaes polticas da metfora hobbesiana do Leviat, segundo a qual o corpo do soberano constitudo por todos os corpos individuais dos cidados. Na medida em que, como quisera Lajuinais, cidados so membros do soberano, o corpo civil coincide com o corpo soberano, e a vida civil com a vida do soberano. Desse modo, compreende-se como a vida e a natividade constituem o fundamento da soberania na modernidade compreende-se seu mecanismo de incluso radical, mas no o de sua excluso. Se a todo homem so atribudos direitos a partir do nascimento, se tais direitos, confundindo-se com os direitos naturais, so imprescritveis, inalienveis, recebidos por nascimento, por outro lado, preciso compreender o que Agamben quer dizer ao afirmar que, no seio das grandes declaraes de direitos humanos, o homem sempre o pressuposto mais ou menos evanescente do cidado. Eis aqui toda a espessura de sua revolta contra a mquina antropolgica do Ocidente 18 . A vida nua natural como fundamento da passagem da soberania rgia para a do Estado-Nao implica, como vimos, uma indeterminao entre natividade e Nao; por isso, Agamben afirma que I diritti sono, cio, attribuiti alluomo, solo nella misura in cui egli il presupposto immediatamente dileguante (e che, anzi, non deve mai venire alla luce come tale) del cittadino. Eis o ponto em que vem luz o mecanismo da exceo soberana, que inclui a vida nua natural do homo por meio de sua prpria excluso, pois ela se torna o pressuposto imediatamente evanescente do cidado. Isto , tudo se passa como se o homem se comutasse e absorvesse na categoria de cidado e a condio de cidado, no a de homem, a condio
18 Giorgio Agamben, L'Aperto: l'uomo e l'animale. (Torino, Bolati Boringhieri, 2002, p. 38-43). Biopoltica e direitos humanos 29 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. necessria e, ao mesmo tempo, suficiente para atribuio de direitos humanos no interior da lgica do Estado-Nao. Agamben demonstra longamente que o ato coextensivo extino de todo resduo entre o princpio da soberania e o princpio da natividade ato que gera a identificao entre homem e cidado na teoria poltica moderna aquele pelo qual os Estados passam a erigir critrios para discriminar as categorias de cidados e no-cidados de um determinado Estado. Por essa razo, Sieys, em Prliminaire de la constituition, definira os direitos naturais e civis como aqueles para cuja manuteno a sociedade formada, enquanto os direitos polticos seriam aqueles pelos quais a sociedade se forma; em seguida, caracterizava os primeiros como direitos passivos de cidado, dos quais deve gozar todo habitante de certo pas, e os ltimos como direitos ativos de cidado, que no competiam a todos, pois excluam mulheres, crianas, estrangeiros etc. Lanjuinais, no mesmo sentido, afirmava que crianas, insensatos, menores, mulheres e condenados a penas aflitivas ou infamantes tampouco poderiam ser considerados cidados. o significado biopoltico dessas divises que Agamben visa a considerar. A ciso entre cidado e no-cidado articularia, mais profundamente, a ciso entre homem e inumano, uma vez que ambos os conceitos coincidem sem resduos nos esquema do Estado-Nao. Mesmo porque Uma das caractersticas essenciais da biopoltica moderna [...] a sua necessidade de redefinir continuamente na vida, o limiar que articula e separa aquilo que est dentro daquilo que est fora. Na medida em que as declaraes politizam a zo, o mero fato de viver, devem ser novamente definidas as articulaes e os limiares que permitiro isolar uma vida sacra 19 . Sob todos os aspectos, toda definio de cidadania na modernidade, ao indeterminar-se com o conceito de homem, implica e constitui uma antropoltica do evanescente: o apagamento do homo concreto que perscrutamos na forma de vida poltica do cidado; essa forma de vida implica a exceptio do homo; nela, no h nada alm de sua deposio derradeira. O que Agamben critica na ciso entre o humanitrio e o poltico como efeito do descolamento radical entre direitos humanos e direitos do cidado o fato de a vida ser apresentada na figura do refugiado apenas naquilo que tem de vida nua: O humanitrio separado do poltico,
19 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 136). Murilo Duarte Costa Corra 30 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. escreve Agamben, no pode seno reproduzir o isolamento da vida sacra sobre o qual se baseia a soberania [...] 20 . O que Agamben sugere que levemos a srio a tese que Arendt sustentava em We Refugees, segundo a qual os refugiados constituiriam a vanguarda de seu povo 21 . O refugiado deve ser considerado, nas palavras de Agamben, por aquilo que ele , ou seja, nada menos que um conceito- limite que pe em crise radical as categorias fundamentais do Estado-Nao, do nexo nascimento-nao quele homem-cidado, e permite assim desobstruir o campo para uma renovao categorial atualmente inadivel, em vista de uma poltica em que a vida nua no seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal, nem mesmo atravs da figura dos direitos humanos 22 . Nas primeiras pginas de Homo Sacer, Agamben afirmava que o que caracteriza propriamente a exceo que aquilo que excludo no est, por causa disto, absolutamente fora de relao com a norma; ao contrrio, esta [a norma] se mantm em relao com aquela [a exceo] na forma da suspenso 23 . O que ento aparece sob a forma de um caso singular que, subtraindo-se norma ora suspensa , cintila como a exceo por excelncia no se reduz a um simples caso concreto, mas assume a forma de uma estrutura ou de um princpio interno a todo e qualquer ordenamento jurdico-poltico. Por essa razo, Agamben sugere que leiamos o mitologema hobbesiano sob esta nova luz: o homo homini lupus de Hobbes no remete simplesmente besta fera ou vida natural, mas ao estado de indistino entre humano e ferino justamente, o que banido da ordem jurdico- poltica mantendo-se, a um s tempo, em relao com ela. Isso o leva a afirmar que O estado de natureza hobbesiano no uma condio pr-jurdica totalmente indiferente ao direito da cidade, mas a exceo e o limiar que o constitui [...]; ele no tanto uma guerra de todos contra todos, mas, sim, uma condio em que cada um para o outro vida nua e homo sacer [...] 24 .
20 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 140). 21 Giorgio Agamben, Mezzi senza fine: note sulla politica (Torino, Bollati Boringhieri, 1996, p. 28). 22 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 141-141). 23 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 25). Os termos entre chaves no se encontram no original. 24 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 112). Biopoltica e direitos humanos 31 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. Diante da norma, separam-se com certa preciso o homem e o lobo, mas diante da dissolutio civitatis h apenas o limiar indiscernvel entre a hominizao do lobo e a lupificao do homem, entre a vida social e a vida nua ou sacra pressuposto sempre operante, nas palavras de Agamben, da soberania 25 . Por essa razo, a vida poltica j no apenas a vida dos cidados livres aos quais se atribuem direitos de cidadania; antes, e com mais razo, autenticamente poltica do ponto de vista da soberania a vida nua; caso contrrio, que outro fundamento haveria para seu poder de retirar a vida sem que isso constitusse homicdio, ou sem que se utilizassem as formas sancionadas do rito? O jus puniendi , pois, sob todos os aspectos, no um direito cedido pelos cidados ao soberano, mas um direito abandonado a ele uma espcie de sobrevivncia do estado de natureza no corao do Estado e que confere, aos prprios cidados, no o direito desobedincia, mas o direito resistncia contra a violncia exercida contra sua prpria pessoa. O que funda a violncia soberana no um contrato de uma natureza particular, mas a incluso exclusiva da vida nua no Estado que encontra, na vida matvel e insacrificvel do homo sacer, o referente primeiro e imediato do poder soberano. Se, por um lado, Agamben afirma ser chegado [...] o momento de reler desde o princpio todo o mito de fundao da cidade moderna, de Hobbes a Rousseau compreendendo que o estado de natureza nada mais que um estado de exceo em que a cidade de apresenta na forma de sua prpria dissoluo (tanquam dissoluta) , torna-se necessrio perceber que o elemento originrio (Urphnomenon) da poltica no a vida natural reprodutiva dos gregos, nem uma forma de vida politicamente qualificada, mas a vida do homo sacer e do wargus, zona de indiferena e trnsito contnuo entre o homem e a fera, a natureza e a cultura; isto , uma profunda indiscernibilidade entre nmos e phsis. O bando, portanto, mais que uma relao estrutural ou gentica que poderia ser descrita segundo os termos de uma estrutura formal, segundo Agamben, tem carter substancial, porque o que o bando mantm unidos so justamente a vida nua e o
25 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 113). Murilo Duarte Costa Corra 32 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. poder soberano. 26 Por essa razo, trata-se de dispensar todas as formas de representaes do ato poltico originrio ou constitutivo da vida civil em proveito da descrio da relao de bando, que se determina como o poder de remeter algo a si mesmo, ou seja, o poder de manter-se em relao com um irrelato pressuposto 27 , ao mesmo tempo, definido a fora, simultaneamente atrativa e repulsiva, que liga os dois polos da exceo: a vida nua e o poder, o homo sacer e o soberano 28 . O termo bando, emprestado a Limpratif catgorique, de Jean-Luc Nancy 29 , descreve de que maneira a dinmica da validade das leis conceitualmente independente de sua eficcia em um caso particular estrutura-se a partir da exceo. A exceo a estrutura originria na qual o direito de refere vida e a inclui em si atravs da sua prpria suspenso 30 . Na medida em que a relao de exceo aparece como uma relao de bando, este se determina como a potncia [dnamis m energen, potncia de passar ou no ao ato] da lei de manter-se na prpria privao, de aplicar-se desaplicando-se. Assim, se o homo sacer aparece como aquele que objeto de um abandono pela lei, isso no significa que ele no mantenha com a ordem jurdica nenhuma forma de relao, mas que ele foi exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem 31 . Em suma, no h um fora da lei porque ela possui a capacidade infinita de manter-se em relao com um irrelato pressuposto, ela mantm a integral da vida em seu bando. Nesse sentido, a vida completamente capturada pela lei, e a lei o faz no por meio da sano, mas por meio da culpa, compreendida como um
26 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 115). 27 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 116). 28 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 117). 29 Abandonar remeter, confiar ou entregar a um poder soberano, e remeter, confiar ou entregar a seu bando, isto , sua proclamao, sua convocao e sua sentena. Abandona-se sempre a uma lei. A privao do ser abandonado mede-se com o rigor sem limites da lei qual se encontra exposto. O abandono no constitui uma intimao a comparecer sob esta ou aquela imputao de lei. constrangimento a comparecer absolutamente diante da lei, diante da lei como tal na sua totalidade. Do mesmo modo, ser banido no significa estar submetido a uma certa disposio de lei, mas estar submetido lei como um todo. Entregue ao absoluto da lei, o banido tambm abandonado fora de qualquer jurisdio [...] O abandono respeita a lei, no pode fazer de outro modo. Jean-Luc Nancy, Limpratif catgorique (Paris, Flammarion, 1983, p. 149-150). 30 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 35). 31 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 36). Biopoltica e direitos humanos 33 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. perene e a priori estar em dbito (in culpa esse). A dvida implica estar includo por meio de sua prpria excluso, implica manter-se em relao com algo de que se foi excludo e no h aqui outro referente culpa, como Agamben reconhece 32 , alm do estado de pura e vaga vigncia da lei, seu simples referir-se a alguma coisa. Eis o lugar prprio da soberania: uma pura forma de lei que no mais do que a forma vazia da relao, mas a forma vazia da relao no mais uma lei, e sim uma zona de indiscernibilidade entre lei e vida, ou seja, um estado de exceo 33 . Se pudemos compreender o sentido em que Agamben emprega o termo bando para significar uma relao ao mesmo tempo estrutural e ontolgica definidora da soberania e da incluso exclusiva da prpria vida na ordem jurdica, trata-se, a partir de agora, de perscrutar o significado de homo sacer como o fundamento e o resto inaparente dessa produo autenticamente poltica de vida nua. Toda a segunda parte de Homo Sacer I dedicada ao conceito que Agamben estabelece segundo graus sucessivos de aproximao e complicao: na primeira parte, Agamben faz a referncia genealgica ao termo como a memria de uma figura do direito romano arcaico na qual o carter da sacralidade liga-se pela primeira vez como tal 34 . O que Festo relatava no verbete sacer mons de seu Tratado sobre o significado das palavras que o homo sacer seria aquele que o povo julgara por um delito, o qual no poderia ser submetido ao sacrifcio, mas cujo assassinato seria impunvel. Em um ensaio de 1930, Bennett observa a ambivalncia do carter sacro, pois o homo sacer tem sua sacralidade sancionada e, ao mesmo tempo, pode ser assassinado por qualquer um sem que isso constitua homicdio. A figura revela-se ainda mais enigmtica porque sacrum, segundo Macrbio, define a esfera daquilo que destinado aos deuses. Os intrpretes modernos, segundo Agamben, ora enxergaram na sacratio um resduo secularizado de um tempo em que o direito penal e o religioso ainda se confundiam, ora remeteram a figura do sacro consagrao aos deuses nferos. Isso explicaria, segundo Kernyi, por que o homo sacer no pode ser sacrificado nas formas
32 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 34). 33 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 66). 34 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 79). Murilo Duarte Costa Corra 34 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. sancionadas do rito: porque o que sacer j se encontra sob o domnio dos deuses nferos. Sob esse ponto de vista, no possvel, porm, explicar sua impunvel matabilidade 35 .
Agamben percebe que o homo sacer nos desloca na direo de um conceito- limite do ordenamento social romano. Nesse sentido, prope que interpretemos a sacratio como uma figura autnoma que poderia lanar luzes sobre uma estrutura poltica originria cujo lugar aquele que precede a distino entre sagrado e profano, entre as esferas religiosa e jurdica. A teoria europeia entre os sculos XIX e XX no cessou de compreender o sagrado em um sentido ambivalente: de Robertson Smith a Freud, de Herbert e Mauss a Durkheim, os conceitos de bando e de tabu so mobilizados em funo de ambivalncias, englobando foras fastas e nefastas, caracteres augustos e malditos, o impuro e o sagrado etc. Segundo Agamben, de Smith a Lvy-Strauss, o carter ambivalente do sacro seria um mitologema cientfico que alm de no fornecer sobre o sagrado nenhuma explicao, mereceria ser, ele prprio, explicado. Qual o sentido, portanto, da vida sacra? Ela resultaria da conjuno de dois aspectos: do ponto de vista do ius humanum, a impunidade da matabilidade; da perspectiva do ius divinum, a excluso do sacrifcio. A consecratio o ato de purificao ritual que faz com que um objeto passe da esfera do ius humanum ao ius divinum 36 . Portanto, a vida do homo sacer encontra-se sujeita a uma dupla exceo: irrelato do direito dos homens, trata-se de uma vida que pode ser subtrada sem que esse ato seja punvel a ttulo de homicdio a matabilidade a forma exclusiva pela qual tal vida includa no ordenamento profano; ao mesmo tempo, esta vida pertence aos deuses unicamente sob a forma de sua excluso, pois ela permanece insacrificvel 37 . Dupla exceo significa dupla excluso e dupla captura: a vida sacra est fora do ius humanum, mas tambm capturada por ele sob a forma de sua impunvel matabilidade; a um s tempo, est capturada pelo ius divinum, mas sob a forma de sua insacrificabilidade, de sua excluso.
35 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 81). 36 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 89). 37 A vida insacrificvel e, todavia, matvel, a vida sacra. Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 90). Biopoltica e direitos humanos 35 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. O ato de matar o homo sacer implica uma dupla exceo, uma situao nem reconhecida pelo direito humano pois escapa da forma jurdica do homicdio nem pelo direito religioso pois no se sujeita s formas sancionadas do sacrifcio. Ele desenha, portanto, uma esfera do agir humano que se mantm exclusivamente em relao com a exceo idntica esfera definida pela soberania, em que se pode matar sem cometer homicdio e sem celebrar um sacrifcio. Em relao exceo soberana, toda vida, capturada nessa esfera, matvel e insacrificvel, portanto 38 . Toda a assustadora simetria entre soberano e homo sacer pois o soberano aquele que pode agir para com qualquer um como se se tratasse de um homo sacer, e o homo sacer aquele em relao ao qual todo cidado pode agir como um soberano deriva de uma esfera de ao humana que se mantm em exclusiva relao com a exceo, escapando tanto ao direito humano quanto ao direito divino. Assim, captura-se, na estrutura formal, mas tambm substancial, do bando soberano uma vida humana matvel e insacrificvel que Agamben define como vida sacra, ou vida do homo sacer contedo primeiro do poder soberano que produz a vida nua como o mais original de seus prstimos 39 . nesse sentido que Agamben conduz a um ltimo grau, radicalmente genealgico, a sua crtica aos Direitos Humanos:
A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrrio, em sua origem, justamente a sujeio da vida a um poder de morte, a sua irreparvel exposio na relao de abandono 40 .
Ele o afirma por considerar que
A sacralidade [...] a forma originria da implicao da vida nua na ordem jurdico-poltica, e o sintagma homo sacer nomeia algo como a relao poltica originria, ou seja, a vida, enquanto na incluso exclusiva, serve como referente deciso soberana. Sacra a vida apenas na medida em que est presa exceo soberana 41 .
38 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 91). 39 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 91). 40 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 91). 41 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 92). Murilo Duarte Costa Corra 36 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. Assim, a sacratio no implica uma sano jurdica vinculada a uma transgresso como o terminum exarare (o cancelamento dos confins), a violncia do filho contra o genitor (verbetratio parentis) ou a fraude do patrono em relao ao cliente. As culpas de tais atos constituiriam a exceo originria na qual a vida humana vem a ser includa na poltica por meio de uma matabilidade incondicionada 42 . No possvel, pois, reduzir a categoria de exceo de crime que no deixa de ser a anomalia prevista, como Arendt recorda 43 , como no se pode pretender reduzir a sacratio a uma simples pena. A exceo implica conceber uma estrutura formal e ontolgica diversa, incomutvel nas categorias da normalidade e, ao mesmo tempo, fundadora destas. Os direitos humanos, genealogicamente, implicariam, uma antropologia evanescente, em que a vida humana capturada por intermdio de seu abandono morte na relao de exceo soberana. Tudo aquilo de que a mquina antropolgica ocidental teria sido capaz at hoje fora de servir soberania prstimo da metafsica ao biopoder; desse ponto de vista, os direitos humanos no teriam sido nada alm de um instrumento por meio do qual uma antropologia evanescente inseriu um homem abstrato e identificado termo por termo com o cidado das modernas democracias ocidentais no corao de suas operaes tanato polticas. Resta saber se tal antropologia evanescente, ao atestar sua inpcia e sua runa constitutiva, destri o prprio fundamento dos direitos humanos, ou se estes podem ainda tornar-se objetos de um uso estratgico ao lado de outras estratgias de contrapoder e resistncia nos esquemas de sujeio e subjetivao que se encontram implicados por eles. Eis, talvez, como Agamben o prova, um dos mais urgentes desafios polticos contemporneos.
REFERNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
______. L'Aperto: l'uomo e l'animale. Torino: Bollati Boringhieri, 2002.
42 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 93). 43 Hannah Arendt, Origens do totalitarismo (So Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 319-320). Biopoltica e direitos humanos 37 Profanaes (ISSN Solicitao em andamento) Ano 1, n. 1, p. 22-37, jan./jun. 2014. ______. Mezzi senza fine: note sulla politica. Torino: Bollati Boringhieri, 1996.
______. O que resta de Auschwitz (Homo sacer III). So Paulo: Boitempo, 2008.
ARENDT, Hannah. A condio humana. 11 ed. Traduo de Roberto Raposo com reviso de Adriano Corra. So Paulo: Companhia das Letras, 2010.
______. Origens do totalitarismo. 6. ed. Traduo de Roberto Raposo. So Paulo: Companhia das Letras, 2009.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. v. 1. Magia e tcnica, arte e poltica. Traduo de Paulo Srgio Rouanet. 7. ed. So Paulo: Brasiliense, 1994.
COCCO, Giuseppe. MundoBraz: o devir-Brasil do mundo e o devir-mundo do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2008.
DOUZINAS, Costas. The end of human rights: critical legal thought at the turn of the century. Oxford: Hart Publishing, 2000.
FOUCAULT, Michel. Il faut dfndre la socit. Paris: Gallimard, 1997.
______. Histria da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2009;
MARX, Karl. Sobre a questo judaica. Traduo de Nlio Schneider e Wanda Caldeira Brant. So Paulo: Boitempo, 2012.