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APITULO A condicGo humana Quando eu era pequena e meu pai queria incentivar algum comporta- mento de coragem e enfreniamento de sitvacées dificeis, costumava dizer em fom de brincadeira: *“Seja homem, minha filha!”. Na verdade, ele sabia que, tembora na sociedade machista 0 papel da coragem estivesse reservado ao sexo masculino, as mulheres também deviam oprender a ser fortes, Dessa forma, meu pai se referia a um atributo louvével do ser humano, o de ser copaz de enfrentar as dificuldadles apesar do medo, e ao mesmo tempo criti ‘cava as concepsées tradicionais de feminilidade que desculpam e reforgam a “raqueza” da mulher 1. Os pressupostos tedricos E comum as pessoas pensarem que uma provavel“natureza” da mulher ou do homem seria determinante do comportamento. A epigrafe do capitulo descreve uma situacio em que sio questionados os papéis tradici- onalmente atribuidos ao homem e & mulher. A propésito disso, se observarmos a histé- ria da humanidade, constataremos que_as nogbes de femit i é fortes componentes culturais ¢ portanta ‘mudam de acordo com o tempo e o lugar, ~~ O mesmo ocorre se indagarmos a respeito do que € 0 ser bumano em geral. Esse concei- to se encontra permeado de concepgGes sub- jacentes, nem sempre claramente explicitadas € que, recebidas pela heranca cultural, repre- sentam de inicio um saber nio-critico,que nao ‘passou pelo crivo da reflexio. Por isso mesmo se tornam, as vezes, nocbes inquestionaveis, como se fossem verdades imutaveis, Se prestarmos atencio, para cada concep- do no-efletida existem pressupostos tebrt- cos que precisariam ser examinados. Quando fazemos a pergunta fundamental o que é 0 ser bumano?, as pessoas respondem de dife- rentes maneiras. Vejamos alguns exemplos: —Aquele 14? Nao é gente, mais parece um bicho! (PressupGe que se saiba fazer a distin- cdo entre o set humano ¢ o animal.) — Desde que o ser humano existe, ha pobres € ricos. Por que haveria de mudar? (Pressupoe que a natureza humana é imuté- vel, prevalece também uma concepgio esta- tica da historia humana.) — O que seria de mim sem a graca de Deus? (Nessa frase, de cunho religioso, a hu- manidade € explicada pelo divino: 0 ser hu- mano nada é sem a fé.) — Eu uso a cabeca ¢ nao me deixo arras- tar pelas paixdes. (Pressupée que o ser hu- mano € por exceléncia racional € que as pai- xGes so fraquezas que o desviam de um ca- minho tido como correto.) — De que adianta a vida se nao houver futebol e carnaval? (O ser humano € no ape- nas racional, mas sobretudo um ser de dese- jo:0 prazer € fundamental.) — Nao adianta lutar contra o destino. O que tem de ser, serd. (© ser humano niio é livre, mas predestinado.) — A ocasiao faz o ladrao. (A natureza hu- mana é mi, sempre tende para o mal.) Com esses exemplos, percebemos varias concepgdes subjacentes 4 condicio humana. epoca At.14 do Céspo Peale La 10 de 1 deters ce 108. i 2 repose pbs At 184 do Cig Pos Cap. 1A condieao humana Anossa intencio, neste capitulo, é justamen- te refletir sobre os pressupostos tedricos dessas nogdes. Comecemos por distinguir 0 ser humano dos animais. 2. O mundo natural Os animais vivem em harmonia com sua propria natureza porque os instintos animais sio regidos por leis biolégicas, 0 que torna possivel prever as reacées tipicas de cada es- pécie. A ciéncia que se ocupa do estudo com- parado do comportamento dos animais, indi- cando a sua regularidade, chamasse etologia Embora todo animal aja de acordo com as caracteristicas da sua espécie quando se acasala, protege a cria, caca e se defende, é verdade que existem grandes diferencas en- tre os animais conforme o lugar ocupado na escala zoolégica: enquanto a abelha constréi acolméia e prepara o mel segundo os padroes rigidos das ages instintivas, um animal supe- rior, como o mamifero, além de agir por ins- tinto,desenvolve outros comportamentos mais flexiveis, e portanto menos previsiveis. Os animais superiores sao capazes de en- contrar solucGes criativas porque fazem uso da inteligéncia. Um macaco mobilizado pelo instinto da fome,ao encontrar a fruta fora do alcance da mio, enfrenta uma situacio pro- blemitica, resolvida apenas com a capacida- de de se adaptar 4s novidades mediante re- cursos de improvisagio.Também o cachorro faz. uso da inteligéncia quando aprende a obedecer ordens do seu dono e enfrenta de- 29 safios para realizar certas tarefas, como bus- car a presa em uma cacada A inteligéncia animal, porém, € conereta, porque se acha presa a experiencia vivida na- quele momento, Por exemplo, quando 0 maca- co utiliza um bambu para alcancar a fruta,esse esforco nao é aperfeicoado posteriormente, como acontece no processo cultural humano. Recentemente, pesquisas realizadas no campo da etologia tém mostrado que alguns tipos de chimpanzés conseguem fazer uten- silios e sfio capazes também de criar organi- zacées sociais baseadas em formas mais ela- boradas de comunicacio. As conclusoes des- sas pesquisas tendem a atenuar a excessiva rigidez das concepgdes tradicionais sobre a distingio entre instinto € inteligéncia e en- tre inteligéncia animal e humana. Apesar dis- 80, essas habilidades servem apenas para melhor adaptar o animal ao mundo natural, sem no entanto ultrapassilo, experiéncia essa exclusiva da aventura humana 3. Tornar-se humano Differentemente dos animais, cujos atos si0 sempre os mesmos para cada individuo da es- pécie a que pertencem, nfio mudando ao lon- go do tempo, nés desenvolvemos comporta- mentos diversificados e precisamos da educa- ¢do para nos tornarmos propriamente huma- os. Muitos Sio os exemplos dados por antro- pOlogos € psicdlogos sobre criancas que, a0 crescerem longe do contato com seus seme- Ihantes, permanecem como se fossem animais. PARA TRABALHAR), PARA NOS. AMAR, PARA FAZER DES: Zia, DAWADA! voce NUNCA ME OSSE Sue TiN ‘CORTESE ARTS FONTES QUINO. Toda Mafalda, S40 Paulo, Martins Fontes, 1977. p. 79. 30 NaAlemanha, no século passado, foi en- contrado um rapaz que crescera totalmen- te isolado. Kaspar Hauser, como ficou co- nhecido, permaneceu escondido por razdes nunca esclarecidas. Como ninguém o ensi- nara a falar, s6 se humaniza ao se iniciar 0 processo de sua educacio, quando ficou constatada uma excepcional inteligéncia, até entio obscurecida pelo abandono a que fora relegado O caso da americana Helen Keller é milar, embora as circunstincias tenham sido diferentes, Nascida cega, surda e muda, mesmo vivendo cntre seus familiares, a menina permaneceu até os sete anos de idade como um pequeno bicho. Foi por meio do esforco da professora Anne Sullivan, ao Ihe tornar possivel a compre- ensio dos simbolos, que Helen Keller pode ser introduzida no mundo propriamente humano. Esses casos extremos servem para ilus- trar 0 processo comum pelo qual cada cri- anga recebe a heranca cultural, sempre me- diada pelos outros, com os quais aprende 08 simbolos que a tornam capaz de agir € compreender a propria experiéncia. Portanto, o processo que possibilita o desenvolvimento da individualidade se en- contra em intima relagio com a socializa- do, pela qual o ser humano se apropria dos resultados da experiéncia hist6rica da sociedade em que nasceu. 4. A cultura Diziamos que o comportamento animal € regido pelo instinto e que nos niveis su- periores da escala zoolégica as acées siio mais claboradas gracas 2 inteligéncia con- creta. No caso do ser humano, é sua inteli- géncia abstrata que the permite ir além na intervengio sobre o mundo:s6 0 ser hu- iano € transformador da natureza, €o | i resultado dessa transformagio se chama _ tituem, assim, os parimetros mais importan- cultura, os Unidade I-A cultura proceso pelo qual o homem is que vai sendo capaz disceme entre elas, fixa as de efeito favoravel e, como resultado da apo exercida, converte em idéias as imagens ¢ lembraneas, principio coladas &s realidades sensivels, e depois generalizadas, desse contato inventivo com 9 mundo natural.” (VIEIRA PINTO, Alva- 10, Ciéncia e existéncia, p. 123) A producio de cultura requera /inguagem simbélica, que faz uso de signos como as pa- lavras, os mimeros, as notas musicais. Os sim- bolos sao invencGes por meio das quais o ser humano lida abstratamente com 0 mundo cir- cundante. Depois de criados e aceitos por todo © grupo, como convengdo, possibilitam o dia- logo € 0 entendimento do discurso do outro. Os simbolos permitem o distanciamento do mundo concreto e a elaboracio de idéias abstratas: com © signo “casa”, por exemplo, designamos nfo s6 determinada casa, mas qualquer casa. A linguagem simbolica per- mite representar 0 mundo, tornar presente aquilo que esta ausente. Além disso, nos in- troduz notempo, porque permite relembrar © passado € antecipar o futuro pelo pensa- mento. Desta forma a linguagem simbélica nos faz presentes no mundo. A linguagem simbélica possibilita 0 desen- volvimento da técnica e, portant, do traba- Zbo, como forma sempre renovada de interven- cio na natureza, Ao reproduzir as técnicas jé utilizadas pelos ancestrais ao inyentar ow ‘tras novas,o ser humano trabalha, transforman- do niio s6 a natureza como seu proprio ser. Chamamos trabalho humano a ago dirigida por finalidades conscientes e pela qual nos toramos capazes de transformar a nos mesmos € a realidade em que vivemos, A linguagem simbélica € o trabalho cons- tes para distinguir 0 ser humano dos animais 10d 124 feverto de 108 epost roti. 14 oC Penal aprotigho probie. An 184 do Cig Pana eel a10d Cap. 1- A condicao humana, 5. Tradicdo e ruptura Vamos, agora,reforcar algumas caracteris- ticas desse “estar no mundo” tao tipico do ser humano. Segundo o relato biblico, apés o pecado original, o ser humano foi “expulso do parai- so” e obrigado a sobreviver pelo suor do seu rosto, pelo trabalho. Essa metafora ilustra 0 momento em que ele deixa de se relacionar com a natureza da mesma forma que os ani- mais.A consciéncia de si proprio o orienta, por exemplo, para 0 controle auténomo de sua sexualidade e de sua agressividade. Ebem verdade que nas sociedtles tribais €ssas regras estio submetidas, de inicio, as normas externas da coletividade € s6 muito posteriormente sao assumidas pelo proprio individuo. Q comportamento humano, cada vez mais distanciado.do-mundo natural, pas- saa ser regulado pelo mito, pela religizio,pela- &tica, pela estética. Isso significa que os atos dos seres humanos so sempre avaliados € podem ser considerados como sagrados ou profanos, pecaminosos ou abencoados pela divindade, bons ou maus, Delos ou no, € as- sim por diante. Essa andlise € valida para qualquer acio humana: andar, dormir, alimentarse nio sio atividades puramente naturais, pois estio marcadas pelas solugdes culturais ¢, posteri- ormente, pela critica que o homem faz a cul- tura. Por exemplo, certos povos se abstém de comer carne de porco, outros consideram a vaca sagrada. Alguns grupos condenam a exposicio da maior parte do seu corpo, en- quanto outros defendem a expansio dos cam- pos de nudismo. Nem mesmo a sexualidade pode ser considerada “natural”; 0 erotismo assume formas diversas de acordo com as normas estabelecidas pelo grupo social, ou ainda conforme o rompimento de regras con- sideradas antiquadas ou inadequadas. Ao definir o trabalho humano,assinalamos um bin6mio inseparivel: 0 pensar ¢ 0 agin ‘Toda acio humana procede do pensamento, 31 ¢ todo pensamento é construido a partieda acio. A capacidade de alterar a natureza por ‘meio da acho consciente torna a condicio humana muito especifica, por estar marcada pelo ambiguo ¢ pelo instavel. O mundo humano ¢ de ambigiiidade por que, enquanto os animais sio acomodados a0 mundo natural e, portanto, sempre idénticos a si mesmos, o ser humano, ao contratio,sea~ dom parte o que sua cultura quer que ele seja,€ capaz ainda de romper coma tradicio. Em outras palavras,a sociedade surge pela capacidade humana de criar interdicdes, isto €, proibicdes, normas que definem o que pode € 0 que nio deve ser feito. No entanto, existe sempre a possibilidade da transgres- sdo. Transgredir € desobedecer. Nio nos re- ferimos apenas a desobediéncia comum — pela qual descumprimos normas considera- das validas — mas aquela transgressio que rejeita as formulas antigas ultrapassadas para instaurar outras, mais adequadas a atender os novos problemas colocados pelo existir. | A capacidade inyentiva do ser humano ten- dea desalojé-lo do "ja feito” em busca daquilo que “ainda nao é".Portanto,é um ser da am- bigitidade em constante busca de si mesmo. | Dessa forma, ¢ também um ser bist6rico, ca | paz de compreender 0 passado € projetar o futuro. Saber aliar tradico ¢ mudanca, conti- nuidade ¢ ruptura, interdigao ¢ transgressao € um desafio constante enfrentado na constru- ao de uma sociedade melhor. 6. Concepcées antropolégicas Na sua longa caminhada, o ser humano construiu as mais diversas representagdes de si proprio, de acordo com as situacdes e difi- culdades enfrentadas na luta pela sobrevivén- | cia e na tentativa de explicar o mundo que o | cetca. Mesmo sem estar claramente expli- citado, um conceito de humanidade subjaz em cada forma de agir. A questio antropologica — 0 que é0 ser humano? — é a primeira que se coloca em 32 qualquer situacio vivida. Tal prioridade, po- rém, no diz respeito 4 antecedéncia desse questionamento no tempo, porque essa per- gunta nao € formulada antes de qualquer acio | € pensamento, conforme ja vimos no inicio | do capitulo. A prioridade da questo antro- poldgica se encontra no sentido filos6fico de brincipio, fundamento. Ou seja, a0 exami- nara fundo qualquer teoria ou atividade hu- mana, podemos encontrar a idéia de huma- nidade a ela subjacente. Antropolagia (do grego anthropos: ho- mem e logos: teoria, ciéncia). Antropologia cientifica: ciéncia que es- | | tuda as diferentes culturas quanto aos mais diversos aspectos (relacdes familiares, estru- ‘turas de poder, costumes, tradigdes, lingua- gem ete.); engioba a etnografia e a etnologia, Antropologia filosdfica: questionamento filoséfico a respeito do que 6 0 ser humano; investigagao a propésito do conceito que o ser humano faz de si proprio. Certamente, esse conceito de humanida- de varia conforme a cultura, caso considere- ‘mos, por exemplo, o cidado da pélis grega, © nobre medieval, o indio ou o individuo das megal6poles modernas. Por exemplo, nas sociedades tribais, ou ainda nas culturas tradicionalistas daAntigui- | dade, como 0 Fgito e a China, essa indagacao nao chega a ser problematica, ja que a tradi- do define os modelos de idéias € condutas a serem transmitidos pelos depositirios do sa- ber, sejam eles o xami, 0 sacerdote,o escriba ou o mandarim. Quando a cultura sofre crises,com a rup- tura de antigas certezas, 0 questionamento obriga as pessoas a buscarem novas repre- sentagdes de si mesmas. Foi o que aconte- ceu, por exemplo, na Grécia, onde apés uma série de transformacdes, tais como 0 apareci- mento das cidades eo incremento do comér- cio,a reflexao filos6fica entra em choque com a tradi¢ao mitica. A busca filos6fica,resultan- MO as, Unidade I-A cultura te da incerteza, expressa-se bem nas maxi- mas de S6crates “$6 sci que nada sei” e“Co-_ nhecete.a timesmo”, que, emiltima andlise, Tepresentam o projeto da razio nascente de estabelecer critérios nio-religiosos para 0 conhecimento. Outro exemplo:as transformacées das ci- éneias também contribuem para modificar essas representacdes. Basta refletir sobre 0 impacto causado pela teoria heliocéntrica de Copémico, que,no século XVI, rompeu com © geocentrismo. Nao foi facil rever a crenca de que a Terra — € nela 0 ser humano — ocupava © lugar privilegiado de centro do Universo, Dentre as muitas inovacdes técnicas, vale lembrar 0 que significou o advento da escrita, ao separar a pré-hist6ria do inicio da hist6ria humana; da imprensa, que pos- sibilitou a ampliacao do acesso 4 cultura; 0u, NO nosso século,o desenvolvimento dos meios de comunicacio de massa, que di- fundem a informacao com velocidade inigualavel, encurtando distancias entre os povos. Assim como compreendemos as diversas concepgées de ser humano conforme as mudangas ocorridas na historia, também € importante entender como, por sua vez, es- sas concep¢ées influenciam outras formas de pensamento. Ou seja,é preciso explicitar com cuidado a antropologia filoséfica que se acha subjacente & politica, pedagogia, 2 moral. O éxito de uma pratica pedagégica, por exemplo, depende em grande parte da definicao do tipo de ser humano que se quer educar. E essa pritica ha de variar, assumin- do caracteristicas diferentes, conforme te- nha por pressuposto uma ou outra concep: “io de humanidade. Se partirmos das teorias estéico-cristas de ética, para as quais as paixdes sio dis- tirbios, perturbacées da alma, 0 pedagogo haverd de exigir normas de comportamen- t eee as expressées passio- ais, Diferente € 0 ponto de vista das teo- 1-14 ao Coco Peal La 9.81040 18 de fever de 1088 eoroaueio prt Cap. 1- A condiga rias que concebem as paixdes como forcas vitais a servico da humanizacio, tais como a filosofia de Nietzsche. Nesse caso, a sub- jugacio dos instintos significa fraqueza € impoténcia. 7. Existe uma natureza humana universal? A questo sobre 0 que € 0 ser humano tem preocupado os fildsofos desde tempos remotos. Vamos destacar aqui duas tendén- cias-epestas. Uma que admite existir uma natureza humana universal, idéntica na sua esséncia em todos 0s tempos € lugares, ex- plicando as diferencas como acidentes ou desvios a serem corrigidos. Outra tendén- cia, mais recente no tempo, faz.a critica da- quela concepeio tradicional A tradicGo ocidental Grande parte das teorias filos6ficas, surgidas ja na Antiguidade grega e ainda pre- sentes em nossos dias, defende a concepgaio metafisica da natureza humana. Para Platio (427-347 a,C.), a verdadeira realidade Se encontra no mundo das Idéias, Tugar da esséncia imutavel de todas as coisa ‘Todos os seres, inclusive os humanos, si apenas cépias imperfeitas de tais arquétipos, ese aperfeicoam 4 medida que se aproximam do modelo ideal. ara Aristoteles (385-322 a.C.), 0 ser € consitutdorde materia ¢ forma, e as trans formacoes sio explicadas pelo argumento de que todo ser tende a tornar atual a for- ma que tem em poténcia. Por exemplo, a semente quando enterrada tende a se trans- formar no carvalho que era em poténcia. Quando se transpée essa idéia para os se- res humanos, conclui-se que também cles tém formas em poténcia a serem atualizadas, ou seja, a sua natureza essencial se realiza aos poucos, em direcao ao pleno desenvol- vimento. Tanto para Platio como para humana 33 Aristételes, a plenitude humana coincide com o aperfeicoamento da razao. Se examinarmos as teorias da educacio, ainda hoje vigentes, que explicam a aprendi. zagem_ como 0 desenvolvimento das. “potencialidades do individuo”, descorimos © pressuposto de um modelo de ser humano aset alcancado. Chamamos essencialista a0 tipo de pedagogia que coloca como fungao da educagio realizar 0 que o ser humano deve viraser Critica Gs concepcdes essencialistas A concepcio essencialista da natureza humana percorre toda a tradicao filosofica do mundo ocidental, com algumas tentativas esparsas de critica 4 concepgio abstrata de modelo. No século XIX, 0 pensador alemio Karl Marx rejeita explicitamente a concepcio de uma natureza humana universal. Para ele, so ‘mos seres praticos € nos definimos pela pro- dugio ¢ pelo trabalho-coletivo,o que signi fica nao haver, de um lado, a esséncia e, de outro, a existéncia humana, nem seres dota- dos de uma esséncia comum em todos os tempos. Reunidas na esfera das relacdes so- ciais,as pessoas criam valores ¢ definem ob- jetivos de vida @ partir dos desafios encon- trados nas atividades pelas quais produzem sua propria existéncia. Portanto, sio as con- digdes econémicas que definem os mode- los sociais em circunstancias determinadas. Nesse sentido, Marx critica 0 carater a-his- t6rico e abstrato das concepcdes metafisicas, recusando-se a definit 0 ser humano“em si” abstratamente, para compreendé-lo como ser bumano real que existe em determina- do contexto histérico-social. Ainda no século XIX, outros pensado- res sé posicionam contra a concep¢cao essencialista tradicional. Kierkegaard, Stirner, Nietzsche refletem a respeito da coneretude da vida humana na realidade oa ee! cotidiana. A fenomenologia, corrente filo- fica fundada por Husserl, também se en- caminha nessa direcio, influenciando no século XX filésofos como Max Schcler, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, entre outros. Para Sartre, principal representante do existencialismo francés, s6 as coisas ¢ os animais sio “em si”, isto é, teriam uma es- séncia. O ser humano, dotado de conscién- cia, € um “ser-parasi”, ou seja, € também consciéncia de si, Isso significa que € um ser aberto a possibilidade de construir ele proprio sua existéncia. Nesse sentido, é possivel falar da esséncia de uma mesa (aquilo que faz com que uma mesa seja mesa) ou da esséncia do animal (afinal, to- dos os leGes tém as caracteristicas proprias de sua espécie), mas nao se pode falar de uma natureza humana encontrada igual- LEITURA COMPLEMENTAR —_________— unidade 1- A cuttura mente em todos, pois “o ser humano nao é mais que o que ele faz” 8. Conclusao Neste capitulo procuramos mostrar que o tema de toda antcopologia filoséfica esti ba- seado na reflexo sobre o ser humano, a par- tir do“conhece-te a ti mesmo”, no esforco que ele faz para chegar a compreenderse. Se em um primeiro estagio essa refle- xo se encontra ainda presa ao vivido, a in- tengio da antropologia filos6fica é ultrapas- sara experiéncia imediata da vida e teorizar de forma critica sobre 0 ser humano em geral. Nao no sentido de encontrar um modelo valido em todo tempo ¢ lugar, mas na tentativa de compreender, em cada con- texto hist6rico-social vivido, quais sio os projetos possiveis de humanizacao. [A existéncia precede a esséncia]* Quando concebemos um Deus criador, esse Deus identificamo-lo quase sempre com um artifice superior; e qualquer que seja a dou- trina que consideremos, trate-se uma doutri- na como a de Descartes ou a de Leibniz, ad- mitimos sempre que a vontade segue mais ou menos a inteligéncia ou pelo menos a acom- panha, e que Deus, quando cria, sabe perfei- tamente 0 que cria. Assim 0 conceito do ho- mem, no espirito de Deus, é assimilavel ao conceito de um corta-papel no espirito do in- dustrial; e Deus produz 0 homem segundo téc- nicas e uma concepcdo, exatamente como o artifice fabrica um corta-papel segundo uma definigd&o e uma técnica. Assim o homem indi- vidual realiza um certo conceito que esté na inteligéncia divina. No século XVIII, para o atefsmo dos filésofos, suprime-se a nocao de Deus, mas nao a idéia de que a esséncia pre- cede a existéncia. Tal idéia encontramo-la nds um pouco em todo o lado: encontramo-la em Diderot, em Voltaire ¢ até mesmo num Kant © homem possui uma natureza humana; esta natureza, que é 0 conceito humano, encon- tra-se em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal — o homem; para Kant resulta de tal universalidade que o homem da selva, o homem primitivo, como 0 burgués, estao adstritos a mesma definic&o e possuem as mesmas qualidades de base. Assim, pois, ainda af, a esséncia do homem precede essa existéncia histérica que encontramos na na- tureza. [...] * Os titulos entre colchetes foram criados pelas autoras desta obra; no constam, portanto, do texto original eeEEEEVE= TT eno sabie At 184 6 Codigo Para e L610 18 de Svea de 1808, Cap. 1 - A condigao humana 5 O existencialismo ateu, que eu represento, | este mesmo nome. Mas que queremos dizer & mais coerente. Declara ele que, se Deus nao | nds com isso, sendo que o homem tem uma existe, ha pelo menos um ser no qual a exis- | dignidade maior do que uma pedra ou uma téncia precede a esséncia, um ser que existe | mesa? Porque o que nds queremos dizer é que antes de poder ser definido por qualquer con- | 0 homem primeiro existe, ou seja, que o ho- ceito, e que este ser 6 0 homem ou, como diz | mem, antes de mais nada, é 0 que se lanca Heidegger, a realidade humana. Que significa- | para um futuro, e 0 que é consciente de se pro- r4 aqui 0 dizer-se que a existéncia precede a | jetarno futuro. [...] Mas se verdadeiramente a esséncia? Significa que ohomem primeiramen- | existéncia precede a esséncia, o homem é res- te existe, se descobre, surge no mundo; e que | ponsavel por aquilo que 6. Assim, o primeiro 6 depois se define. Ohomem, tal como ocon- | esforco do existencialismo ¢ 0 de par todo ho- cebe o existencialista, se nao é definivel, épor- | mem no dominio do que ele é e de Ihe atribuir que primeiramente nao é nada. Sé depois sera | a total responsabilidade da sua existéncia. E, alguma coisa e tal como a si préprio se fizer. quando dizemos que o homem é responsavel | | | Assim, nao ha natureza humana, visto que nao. por si préprio, no queremos dizer que o ho- ha Deus paraa conceber. O homem é, nao ape- | mem é responsavel pela sua restrta individua- nas como ele se concebe, mas como ele quer | lidade, mas que é responsdvel por todos os 3 que seja, como ele se concebe depois da exis- | homens. 4 tencia, como ele se deseja apds este impulso 1 para a existéncia; o homem ndo é mais que 0 SARTRE, Jean-Paul. £ que ele faz. Tal 6 0 primeiro principio do O existencialismo é um humanismo. 3 existencialismo, E também a isso que se cha- Sao Paulo, Abril Cultural, maa subjetividade, e 0 que nos censuram sob | 1973. p. 11-12. (Col. Os Pensadores) 3 i Questées gerais 4 1, Em que sentido dizemos que o animal vive em harmonia com a natureza? i 2, Considerando a definigao de trabalho, explique por que temos de concluir que os animais nao trabalham, sendo esta uma prerrogativa exclusiva do ser humano. 3. Admitindo que certas agdes podem ser movidas pelo instinto, pela inteligéncia concreta ou pela inteligéncia abstrata, identifique os seguintes tipos de ago: a) Uma aranha tecendo a tela. b) Um macaco pegando a banana com a ajuda de um bambu. c) Um indio escavando 0 tronco de uma arvore para fazer um barco. 4, Explique por que os papagaios apenas pronunciam palavras, mas no as compéem em dis- curso, como o homem. 5. Assim como os surdos-mudos inventam uma linguagem, dé exemplos de outras formas de comunicaeao humana que dispensam a fala. 6, Dé um exemplo de sua vida cotidiana que destaque a relaco reciproca entre agir e pen- sar. Isto 6, relate os passos de alguma atividade desde o planejamento até sua execugao. Strattera mee $$ unidate t - cute 7. Em que sentido podemos dizer que a condigao humana 6 marcada pelo binémio interdigo/ transgressao? 8. Segundo uma tradico que vem da Antiguidade grega, é desejével buscar compreender quais so as caracteristicas da natureza humana universal. Quais seriam as conseqiiéncias dessa concepedo para a pedagogia? 9. Leia a citagao de Gramsci a seguir, ¢ identifique a posic&o do autor a respeito da existéncia ou ndo de uma natureza humana universal. Justifique sua resposta. “O que é 0 homem? E esta a primeira e principal pergunta da filosofia. [...] Se pensamos nisso, a propria pergunta ndo é uma pergunta abstrata ou ‘objetiva’. Nasceu daquilo que refletimos sobre nés mesmos @ sobre os outros e queremos saber, em relagdo ao que refleti- Mos € vimos, 0 que somos @ em que coisa nos podemos tornar, se realmente e dentro de que limites somos ‘artifices de nds préprios’, da nossa vida, do nosso destino. E isto queremos ‘sabé-lo ‘hoje’, nas condigdes dadas hoje, pela vida ‘hodierna’ endo por uma vida qualquer e de qualquer homem.” (Antonio Gramsci) Questées sobre a leitura complementar 10. A partir da leitura complementar, explique: a) Por que, para Sartre, 0 pressuposto da existéncia de Deus leva & concepeao essencialista? ») O que significa “a existéncia precede a esséncia’? ©) Como Sartre contorna a dificuldade de reduzir 0 ser humano a alguém isolado, mergulhado na propria subjetividade? Fichamento 11. Faga um fichamento por t6pico sobre 0 conceito de inteligéncia: defini¢&o, tipos de inteligén- Cia, distingSes entre outras formas de conhecimento. (Se necessério, para saber o que é fichamento por t6pico, consultar 0 Prélogo.) Dissertacgao 12, (PUCCAMP) Leia as duas consideracdes apresentadas abaixo e reflita sobre as idéias nelas Contidas. Tome uma posigéo em relacao a problematica langada, redigindo uma dissertacao. Texto 1: “S6 existe realizacao profissional quando atendida a vocago intima do individuo" Texto 2: “Sé existe sucesso profissional quando se atende a uma necessidade do mercado de trabalho”. Pesquisa 13, Faga uma pesquisa sobre como uma determinada espécie animal (onga, lobo, ou outra qual- quer) constitui “familia” e “educa” sua cria. Compare em seguida com a familia humana, indi- cando as diferencas fundamentais. Popo rabid. A188 3a Cdl Pana ai 10 19: oro ce 1988.

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