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Joao Zeferino da Costa [1840-1915] A pompeiana, 1876 6leo sobre tela, 219 x 120 cm Museu Nacional de Belas Artes “As obras de arte tém o poder de provocar paixdes, de entusiasmar ¢ incomodar em proporcdes igualmente surpreendentes. A primeira vista, talver seja dificil compreender por que a tela aqui reproduzida tenha suscitado do critico Gonzaga Duque um dos ataques mais ferinos da historia da critica de arte no Brasil. Vale cita-lo, por extenso, de sua fonte em A arte brasileira (1888): “4 Pompeiana, de Zeferino, foi exposta no antigo salfao da Pinacoteca, cuja entrada primitiva era pela rua de Sao Jorge. Daf uma certa ironia do acaso, levando a rua de Sao Jorge uma pompeiana que devia ter passado pelo Largo do Rocio. O maior defeito que tem esta falsa pomipeiana Fritz & Mack é0 de ocultar nos recessos do corpo 4a reuma peconhenta que aduba as flores do deboche. Este corpo ¢ pérfido como a deslum- brante aparéncia da urtiga das montanhas a que a populactio montezinha chama arrebenta-cavalos. A incauta mocidade ndo tem a observagao bastante fel para reparar nos postigos que entraram na conformagao daquele corpo de coldcream; aguilo assim arranjado como esté no prova cuidados ortopédicos, foi conseguido hd alguns anos a esta parte para o gasto exclusivo dos colegiais que martirizam seus respectivos bugos, saidosos de parecerem homens, e dos velhos estafados em uso de coledpreros afrodisiacos” Com sua rebuscada prosa de dandi simbolista, Gonzaga Duque chama a mulher retratada no quadro de rameira ordinaria, de representante do baixo meretricio. Diversas referéncias — do Largo do Rocio aos coleépteros afrodisiacos — aluclem & Pritica da prostituisao no Rio de Janeiro oito- Centista, O critico prossegue com sua invest. da, castigand a pintura com uma violencia StrPreendente, ainda mais em se tratando de lima avaliasao feita nove anos apés a primeira exposigao do quadro: “Eincompreensvelesteingliro trabalho, ete de Teiralar cocottes eshodegadas, em um moco de Srande talento e de grandes aptiddes artstcas Qual a causa de parecer pompeiana esta ruin, Sia igndbil fgura, lavada em éleo, emplastada ‘e gorduras aromética, besuntada de velouting Para disfarcar a alambuzada estrutura de suas formas? Pompeiana por qué? Estou bem eens ‘ue hoje 0 artista daria tudo para apagar desse quadro o seu nome.” A éoca em que fee 0 quadro, Zfetino contava 36 anos, ¢ 48 quando apareceu essa critica, a ‘mio era nenhum moco, nas duas ocasides, Pintor viveu ainda 17 anos depois disso e,quese saiba, nunca deu qualquer indicagdo de que ‘tuisesse apagar seu nome do quadro. Ao con- \ratio,ap6s a primeira aparisio da tela no Sala de 1879, o pintor apresentou-a uma segunda Nez no Salio de 1884. Nao tinha mesmo por ese emvergonhar. Afinal, por peculiar que ‘eja em alguns sentidos, nao é um trabalho tae distante assim dos padroes vigentes, Como entender a actiménia da critica de Gon- 7268 Duque? Serd que existen'A pompeiana algo ‘We Justifique tamanho reptiio? Algo que mexa servar que 0 critic nada opde ao quadro em termos morais. Suas objecbes sto calcadas numa posigdo pretensamente técnica, denunciando supostos erros de fatura. Contuco, hé um pono de tangéncia entre sua sugestdo de colorido“f- so ¢ incorreto” ea invectiva posterior de Gonrae ga Duque ao descrever“o corpo de coldren Em que sentido, precisamente, seria tdo “im- possivel” a encarnagao da figura? A resposta, se +a, reside na inspegio atenta do quadro. Por que razao A pompeiana irritou tanto o olhar desses criticos? Fossem suas abjecdes a0 dese- ‘ho, seria bem mais l6gico, Pelos padres entio correntes, é possivel apontar falhas de desenho anatémico como o encurtamento excessivo do braco direito ow a relativa desproporsio entre o ‘comprimento das coxas ¢ o das canelas. Toda- via, apesar da mengdo que ambos os criticos fazem a erros de construgao da figura, so a pele eseu colorido que os incomodam de modo visceral. Gonzaga Duque descreve a figura com adjetivos como lavada, emplastada, besuntada, alambuzada, todos relati ‘mos pict6ricos, tal adjetivagao remete & mesma objegdo que o critico da Revista Musical levanta com relagao a0 colorido da encarnagao, sa textura, Em ter- Sera tao falsa assim a cor da figura, a representa- S40 de sua pele, de sta carne? Embora seja dificil, 4s vezes, acompanhar 0s tortuosos raciocinios do século XIX no que diz respeito a assuntos de cor € raga, nao ha nada de especialmente impossivel esse quesito. A figura retratada é muito branca, € verdade~ chegando a um aspecto quase mar- ‘méreo na regio mais clara entre a barriga e os seios -, mas nada que exceda o plausivel ou as convengoes vigentes, Afinal, o quadro pretende ‘mostrar uma mulher da antiga cidade de Pom- Péia, na Italia, e foi pintado em Roma, Dadas as condigdes de producio caracteristcas de entdo, ¢ presumivel que o pintor tenha empregado uma modelo vivo para posar para a figura principal, e ue esta tenha sido uma italiana. A diivida, por- tanto, nao diz respeito as caracteristicas étnicas ou raciais da figura, como era freqiientemente © aso quando criticos brasileiros do século XIX levantavam objegdes relativas a0 colorido da pele. A davida reside mesmo no tratamento Pictérico empregado, ou seja, na fatura, A principal discr 8 fatura esta na inversio do grau de acabamento atribuido a figura e aos outros elementos do quadro, Cenario e apetrechos estao meticulo- samente detalhados — a ponto de ser possivel apreciar as gradagoes de textura que distin- guem ladrilho frio do tapete de pele de onga quente, 0 peso metélico do espelho da leveza fofa do tecido, a fragilidade da pétala de rosa da durabilidade do mével de ébano. Enquanto isso, as carnes da mulher sto pintadas com ‘uma fluidez que beira 0 desleixo, O grau desse contraste faz-se especialmente nitido nos pontos em que sua pele entra em contato com outros elementos representados: por exemplo, as ela~ boradas sandalias que Ihe server de tinica ves- timenta ou a improbabilissima ponta de laco de fita que Ihe tapa o sexo, estrategicamente, Ao comparar o detalhamento dos pés com os joelhos logo acima, ou praticamente qualquer outta parte do corpo, tem-se a dimensao exata do tamanho dessa discrepa cia, pintor certamente dispensou tantos cuidados para elaborar 0 cenério com dupla intengao: ‘mostrar-selaboriosoe disfargar aaudicia deapre- sentar um nu tio escancarado. Esse tipo de proce- dimento tornou-se comum na Europa ao longo da segunda metade do século XIX, constituindo ‘um jogo duplo em que o artista fazia uso de um ‘aparato pretensamente histérico para justficar sua intengao de retratar 0 nu, enquanto.o puiblico fingia que acreditava em suas boas intengdes mo- rais. Contanto que o jogo se desenrolasse dentro de certos limites, todos ficavam contentes. Embo- raesses limites fossem flexbilizados cada vez mais, ra possivel errara dose ou transgredirem excesso, conforme demonstra 0 episédio da Olympia, No 2 & ‘arte brasileira em 25 quads (1790-1930) «caso 4A pompeiana, igualmente, temos uma ins- tncia em que o passo foi ligeiramente maior que as pernas. Por que detalhar tanto 0 cenéio e dei- xar esbogada a figura principal? Para os padres ‘convencionados pela Academia, isto era inverter as normas do bom acabamento pict6rico— um erro, puro e simplesmente. © que levaria o pintor a incorrer em erro tio primario, logo numa obra que enviava para a ‘Academia na condigao de pensionista no exte- rior, com o intuito de evidenciar seu progresso? ‘Afinal, as dimensdes da obra e seu detalhamen- to mostram evidente investimento de tempo € trabalho. Seria incompeténcia, incapacidade? Nao se trata disso, absolutamente, Esta clara a proficiéncia de Zeferino como pintor, fato que se sustentaria ao longo de uma carreira sélida, ‘culminando na decoragio da Igreja de N.S. da Candelaria, no Rio de Janeiro. Quigé algum in- tuito de rebeldia, talvez, mirando-se na fatura inovadora de pintores como Millet, Courbet, Manet, que, nas décadas de 1850 ¢ 1860, trans- formaram as convengoes aceitas com respeito a0 acabamento pictérico? Muito implaustvel, para nao dizer impossivel! Faltam evidéncias hist6ricas para sustentar uma tese tdo inventiva. © mais provavel é que Zeferino, intimidado ‘com 0 potencial de um quadro de nu como este para chocar as sensibilidades morais, tenha de- cidido suavizar a aparéncia da pele da figura, para tornd-la menos verossimil e, portanto, me- nos ofensiva. Traduzindo a intengao para um registro mais familiar nos dias de hoje, é como se alguém tirasse uma foto propositadamente fora de foco para gerar uma textura mais fanta~ siosa do que real. Em outras palavras, a atitude de Zeferino seria precursora do sof focus que fez a fama de fotografos de nu como David Hamil- ton,na década de 1970, ou do airbrush que criou uma estética accitavel para a revista Playboy; nas décadas de 1950 e 1960, abrindo caminho para a era do photoshop, nos dias de hoje. Pintada com menos solidez do que 0 entorno que a cerca, a carne pictérica da pompeiana constitui-se corpo imaginario, por exceléncia. Para um olhar hipersensivel como 0 de Gonzaga Duque, ha algo de podre nesse jogo duplo de representar ¢ nao representa. Onde o pintor quis transmitir maciez e suavidade, o critico conseguiu enxergar apenas moleza eoleosidade. ‘A partir dai, mediante uma operagio mental bastante tortuosa, ele traduz a aparente defi- ciéncia técnica em suposta deficiéncia moral. Que outra explicagao poderia dar conta das substncias evocadas por seu texto: coldeream, dleo, gorduras aromaticas, veloutine? Por acaso, pele da pobre moga possuio brilho molhado ‘que poderia denunciar visualmente a presenga de tais emolientes? Nada! Ao contrério, sua apa- réncia é fosca, dotada de luminosidade difusae irreal que € 0 contririo do brilho provocado pela incidéncia de tux sobre uma superficie ‘molhada. A pompeiana nao brilhas ela irradia Juminescéncia, qual uma criatura misteriosa do fundo do mar ou uma garota propaganda de sabonete Lux de luxo. essa sua presenca lige ramente fantasmag6rica—_mate ¢ flow em meio’ dura precisao lambida dos objetos que a cercam, a cingem, a coroam —, que a torna estranha, © que Zeferino nao imaginava & que o tio pu desse air pela culatra. Ao tentar suavizar a came para diminuir-Ihe o apelo sensual, acabou por aumentar a tensio sexual da imagem. Inexpe riente na questo, como podia ele adivinhar que 0 fetichismo possui tais paradoxos? Com suafak sa carnalidade —sua carne a um s6 tempo: do que real e mais do que perfeita pony ‘possui seus encantos para o voyeur, Nuaem = ou melhor, sem pélo algum ~ la oferece delicioso contraponto visual aquela “realidade” fotogréfica que o critico da Revista Musical Ihe negou. Acrescem-se a isso as sandilias amarradas com obsessiva perfeigdo, o tapete de oncinha e ‘outros detalles menos evidentes como o ar igei- ramente andrdgino do rosto e dos ombros, ¢ 0 resultado € um verdadeiro festival de desejos proibidos. Sem nem falar da benditafitinha! Pensando melhor, € preciso falar da fitinha. Era mais do que comum na tradigdo artistica posi- cionar convenientemente folhas, cabelos e outros elementos para tapar o sexo dos nus. Porém,o uso desse velho recurso nA pompeiana chama aten- sao por sua falsidade patente: em especial, por causa do contraste entre a alta definigao da fita e a relativa indefinigao do pubis que cobre. Nem tapado, nem revelado em sua totalidade, o sexo da pompeiana se torna ambiguo. Ele é tao im- preciso quanto a pele esbogada da figura,a qual se fazfalsa em contraposigao a verdade pictorica sbogada, incerta, indecisa em sua representagio,é como se sugerida pelos objetos que a cercam. no pertencesse ao lugar, nao fosse o que parece. © fundo da tela reforga essa impressio de falsida- de, poisa parede com motivos etruscos ea impro- vvel coluna evocam algo do cenério pintado, Comega a ser possivel entender incomodo de Gonzaga Duque. © critico a descreveu como “fal- sa pompeiana Fritz & Mack’ provavel referéncia a ‘empresa Fritz, Mack & Cia., popular fabricante de vinagre ¢ conservas do Rio de Janeiro, Mais uma ironia para reforgar a acusagio de que a modelo é ‘uma prostituta velha e usada, tratada com cremes cattificios para aparentar a “frescura d'epiderme” OUTRAS LEITURAS: Alfredo Galvao. Joao Zeferino da Costa: Sua vida de estudante e a de professor contada pelos documentos existe evocada na quadra infame de Junius. Gonzaga ainda que a “incauta mocidade nao Duque tem a observacio bastante fiel para reparar nos postigos que entraram na conformagao daquele corpo’, afirmando implicitamente que ele, criti- co, a possui, a tal observagio fiel, De concreto, 0 {que ele observa nao pode ser outra coisa sendo © tratamento esbocado, suavizado, da textura da pele. £ interessante que ele interprete isto como falsidade, e mais interessante ainda que atribua essa falsidade nao ao pintor, mas a propria figura retratada, identificando nela a meretriz, a mulher ‘que disfarca sua decadéncia para melhor seduzit. Essa associagao revela-nos muito sobre 0s te- ‘mores que imperavam na mentalidade da épo- cae que determinavam a aceitacao ou nao de de falsida- de, degeneragdo, corrupgao, a imagem d’A pomt- um nu feminino. Associada a id peiana parece ter constituido uma ameaga bem maior naquele tempo do que poderiamos ima ginar hoje ao olhar para o quadro. Compara- do com 0 que viceja atualmente por ai, a tela pode nos parecer quase inocente, sem mais potencial voyeurista do que qualquer antincio de perfume ou editorial de moda. O tom exa- cerbado da critica também nos diz algo sobre mnzaga Duque e suas proprias propensies intimas. Vem & mente o que escreveu Hum- berto de Campos a seu respeito: “Os éculos escuros que sempre usou, denunciam a alma que se atordoa com as gambiarras do teatro da vida e prefere, a ele, a confidéncia dos creptis- culos interiores.” Bota creptisculo interior nisso! Pega até mal, tanto medo de uma pompeiana Fritz & Mack! nna Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro: s/editora. 1973. Magali Engel. Meretrizes e doutores: Saber médico e prostituigao no Rio de Janeiro (1840-1890). Sao Pa Brasiliense. 1989, ‘Ty. Clark.A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e seus seguidores. So Paulo: Companhia das Letras. 2 eee

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