Você está na página 1de 14
CCopysaht © 1994 by Os Autores capa: ‘Moema Cavatcantt Diagramasio do cademno ée lustagdes Prepacicto Marcia copota Revisto Jana Marta Barbora ares ierto naa laces aa an ec m ‘oon sarc ‘ow Banden Fala, 1 32 04532-002-— S30 Palo — “Telefe: a1) 37073500, Fax: 3707-3501, wrrmcompunhiadascnas com br 2 a ees 5 é OR! freatorm ae oe I Evcen Bacar Wiu Bout Ges Bonnin MARIENA CHAUI JORGE COU Palio SERGIO Duaate Ropnco A. P. Duakié AIAN Grosecaaro Leon Kossovick Jacaues Leexnasor Claube loeT MagieANNeé leSCOURET ROBERTO MACHADO ALAN MADELEINE Peronitat LoveNzo Maw Amur NesTaovse ADAUTO Novae’ Benen Nunes ‘Aicit Picora NASON BRSSAC PEKOTO Lew PetrONe-Moisés Jost AniéRICO Mora Pessants, DEC Prename: Marceun Rlrner Jeansvicret Rey RENHO JANINE RiseRo BoRS SCHNADERMAN RICARDO Reo TeRrA swat Xaver CaRtos ZO ARTEPENSAMENTO Organtzaco ADAUTO NOWAES 4 reimpresto Vike 1 ORIGINAL HUMANISMO E PINTURA* José Américo Motta Pessanha De inicio, é necessitio reconhecer: nio ¢ Ficil circunscrever com exa- Lidao geogrifica e temporal o Renascimento. Vasto e diversificado movi- ‘mento cultural ocorrido em varios paises da Europa, a partie de momen. tos ¢ circunstanclas diferentes, o Renascimento possul gensricamente duas caracterfsticas que permitem interligar suas miltiplas manifestagoes: por um lado, representa um novo momento hist6rico que sucede — e freqiien- temente critica ¢ rejeita — concepedes e valores medlevals; por outro la do, como 0 proprio nome indica, significa a retomada, o renascer ce icléias cdnones antigos, recolhidos da heranga greco-romana e que, reinterpre- tados e reformulados, passam a servir de base e inspicacac para a constr ‘so de uma nova forma de cultura, um novo “espitito”, uma nova "men. {alidade”, uma nova visto-de-mundo. Mas desde logo é imprescindivel lembrar: a oposigao entee Renasci mento ¢ Idade Média é muitas vezes estabelecida de formaexcesstvamente simplificada. Frequentemente correse o tisco, por comodidade argumen: tativa ou deformado didatismo, de relacianar apenas dols exerestipos, duas caricaturas. E a oposicio entre os dois momentos aparece nitida e radical justamente porque opera sobre imagens esquematizadas e empobrecidas, Na verdade, porém, sem eliminar a diferenga ¢ mesmo a oposicao, deve-se tentar preservar a riqueza e as contradi¢des internas de ambos as perfodos, Feconhecendo-se inclusive o que no Renascimento existe de prolongamen= to e sobrevivéncia do medieval. Othada com mais atenc20, aquela frequente simplificacao pode reve: lar razSes mais profundas. & que, do mesmo modo que o Renascimento (()0 texto de Jost Amico Motta Pessanha fo feito crginalments pata 9 ciclo Doze ‘questdes sobre eulura e arte, organinada pelo Nicleo de Estudos e Pesquisas a Funatc, fm 1985. Publicado agoca peta primeira vex em liv, o texto guatda Otomn orl e alo fol revieto pelo auto. (8) 19 toma a Antiguidade greco-romana como inspiragdo — dela porém cons- truindo uma imagem modelar que fatalmente simplifica a complexa teali dade hist6rica, ao radicalizar alguns de seus aspectos ¢ negligenciar outros justamente para poder usé-la como paradigma —, assim também a Idade Média e a Renascenga passario a ser vistas posteriormente como modelos « fontes de inspiragao alternatives, numa polaridade que chega até nos, Mas, para isso, sofrer40 andlogo processo de simplificagio # homoge neizagio, de esquematizagio ¢ radicalizacao — para serem crigidos em arquétipos culturals, Passario a ser vistas como expressOes de valores con- {rapostos, como modelos alternativos ¢ excludentes, sendo valoradas di versamente por historladores e fldsofos conforme cada época, pois usa das também como armas ideol6gicas no processo de busca de identidade afirmagdo cultural. Assim, iluministas € liberais do século xvin, na me- dda em que eles proprios estao empenhados numa Iuta politico-cultural ‘que geralmente os contrapée A Igreja, sfo levados a repudiar 0 "trevoso" modelo medicval de uma sociedade e de uma cultura marcadas pela hege- ‘monia do religioso, do eclesidstico, do cat6lico, do perene e rigidamente hierarquizado. Conseqdientemente, 86 podem ver a passagem da [dade Mé- dia para 0 Renascimento como stbita passagem da tceva 8 lu2, como salto da obscuridade a iluminacio, da {6 submissa & corajosa razio. Mas, com isso, € a prdpria imagem do Renascimento que resulta “iluminada”, vista segundo a 6ptiea radicalizadora do Iluminismo — 0 que tende a excluir dela qualquer contradigio interna, qualquer lago com as "‘sombras" da dade Média. O que leva a afirmar upturas radicais onde persiste 4 con- tinuidade, Por sua vez, 0 Romantismo, 20 revalorizar aspectos da Idade Média ¢ a0 restabelecer, a seu modo, o vinculo entre finitude humana ¢ infinito, tende também 2 idealizé-la, a Ihe emprestar cardter de idealidade arquetipica. Mas com i880, em contrapartida, tende a empalidecer ea des: valorizar alguns dos tragos mals fortes e inovadores do Renascimento, ‘A-complexidade historica de ambos os periodos tem sido, zssim, sim- plificada, para que possam methor servir de instrumentos argumentativos ‘ow de armas de combate em batalhas ideol6gicas ocidentais. A heteroge- neldade © a tensio interna de cads um deles tém sido geralmente aplaca ddas, para que possam dar lugar a dois modelos antagOnicos de vida, de sociecade e de cultura, construfdos pela exacerbagao de suas diferencas, ‘Ao historiador mais cauteloso ¢ exigente cabe inevitavelmente lidar com ‘esses arquétipos, mas buscar, através deles ¢ apesar deles, resgatar a ri- ‘queza hist6rica ~~ sempre marcada por contradigbes — que eles 20 mes- mo tempo ocultam e revelam. Cabe saber, de safda, que a Idade Média no € apenas aquilo que os romanticos viram ¢ exaltaram, como 0 Renascimento no se reduz 20 que {oi visto ¢ cxaltado por liberais e iluministas. Cabe saber ainda que a peraclo” — perigoso conceito equivocadamente empregado, em geral 20 ‘numa acepeio linear, unidirecional, “progressista’” — do medieval pelo renascentista, na seqiiéncia hist6rica, no se efetiva de forma sempre niti- dda e definitiva, nem ocorre da mesma maneira em todas as culturas, Mais: que o medieval e 0 renascentista muitas vezes conyivem, em harmonia ‘ou fensio, no mesmo pensador ou no mesmo artista. Se hd ruptura e oposi- lo — ¢ incontestavelmente hi —, existe também, err muitos casos, duplo compromisso ¢ continuidade. Pois somente entre cs modelos abstratos as imagens radicalizadas e simplificadas que sio feitas dos dois perfodos € que podem ser estabelecidas diferengas também radicais ¢ absolutas ‘Com a cautela sugerida por essas ressalvas, pode-se dizer que © Re- rnascimento € um momento hist6rico-cultural complexo € heterogeneo, que se desenrota ao longo de aproximadamente dois séculos na Europa’ (© XIV € © XV, Mais do que mera "passagem” do medieval 20 moderno, possui caracteristicas proprias, surgindo como expressio de nova forma de vida, de pensamento, de criagio artistica —a partir de mucangas ocor- tidas na estrutura s6cio-econdmica européia. Uma de suas manifestacdes ais tipicas € justamene a nova concepgao que o homem faz de si mes: ‘mo — um novo humanisme —, que se formula filosoficamente, mas que pode também ser captado através de diversas expressdes artsticas UMA NOVA SOCIEDADE, UM NOVO HOMEM Como mostea Henti Pirenne em sua Histéria economica e socte da Idade Média, a reabertura das antigas rotas de comercio entre a Europa © 0 Oriente através do Mediterrineo — reabertura que constituiu o prin: cipal resultado prético das Cruzadas — reativou a economia européla a partir dos séculos vit ¢ 1x. Surge entao uma nova fase dentro da {dade Média, dotada de dindmica social mais intensa ¢ cada vez. mais distanciada dos padres da [dade Média primitiva, de base fundanentalmente agréria, fechacia numa economia dominial imposta pelo cerco estabelecido pela expansiio do Isl, Nessa Idade Média primitiva, as atividades econémicas tipicamente urbanas — artesanato, comércio — haviam decaido ¢ se re Guzido enormemente. Ao mesmo tempo, nessa economia ageiria, © po- er politico ficara estreitamente vinculado a posse ¢a terra, E, numa es. {rutura social que tendia 2 fixidez e 2 hierarquia, 0 apice da pirdmide era naturalmente Ocupado pelos donos da terra, os senhores feucais, ¢ pela Igreja. Esta, numa Europa que fora “barbarizaca”, pascara a deter com qui se total exclusividade os instrumentos culturais mais sofisticados: a escri= 1a, a erudigfo, o conhecimento das linguas antigas. £ natural, portanto, Que o latim se transforme na lingua culta por exceléncia, no qual deve lam ser expressas nao s6 2s verdades celigiosas, mas ‘ambém as verdades lentificas € filos6ficas, controladas pela Igreia ar Vale assinalar, porém, que esse panorama da primitiva [dade Média vo pode ser inteiramente generalizado, © que entdo ocorre na Europa continental nao € 0 mesmo que acontece nas ilhas Britanicas em certas egides da peninsula Italiana. Aquele modelo de sociedade de base agri ja, tendente a fixidez, a0 estético, 20 rigidamente hierarquico, cabe bem Europa continental. 1550 porque 0 cerco imposto pelo [sia ¢ 0 bloqueio fas rotas comerciais através do Mediterranco nao impediram que intenso ‘omércio permanecesse ocorrendo no mar do Norte, nem que Veneza nantivesse contatos comercials com o Oriente, Assim, no € de admirar ue, ap6s a reabertura das velhas rotas comerciais devido 3s Cruzadas, « lindmica social dessas regides, jf economicamente diferenciadas dentro {0 panorama da primitiva Idadé Média, se intensificasse ainda mais, ense ando a germinacio de novos valores sociais e a elaboragao de idéias ino: radoras ¢ novos cnones para nortear ¢ valorar as diversas atividades bi nanas, Essa diferenciagao é que nos permite entender, também, a forca a riqueza que terao as Renascengas inglesac italiana. E é essa diferencia- vio econémico-social que nos permite ainda entender melhor as razdes ‘ia oposigio frontal, desde a dade Média, entre as teses flosoficas ¢ teo- 6gicas do pensamento continental — sediado sobretudo na universidade te Paris — ¢ as teses filosoficas € teol6gicas inglesas, expressas principal: rnente pelos oxfordianas. De fato, 0 confronto ParisiOxford — contron- fo entre duas “razdes” — faz-se na Idade Média, atravessa o Renascimen- ‘© € penetra nos varios séculos da Modernidade, ecoando até hoje. Vista em seu avesso econémico-social, a oposigdo no plano das idéias ibstratas € a repercussao da oposicao entre uma sociedade de base rural, conservadora, teadiclonalista, de fixada hierarquia, ¢ outra onde as ati Jades urbanas crlam "novos ricos” que ascenciem socialmente ¢ reivindi ‘am liberdade de agao, espaco e reconhecimento de valores ¢ direitos — us valores, seus ditcitos — demonstcados no com base na tradig0, n0 dassado, mas em sua afirmagio presente. O direito fundamentado na an cestralidade — sempre, em tiltima instincia, um "diteito divino’’ — co- jiegaa ser questionado e combatida pelo direito conquistado agora, con: quistado de fato, por uma experiencia presente que ostenta seu €xito como srova principal de sva legitimidade, Ao tradicional contrapde-se este aqui este agora irrecusavels. A autoridade do passado contrapoe-se a evidén: Fla empirica do atual. © homem que ascende social ¢ economicamente ao pode mais aceltar como naturals — e, portanto, definitivos — 0s “lu: ares’ das coisas e sobretudo das pessoas. Nao pode admitir que os luge res estejam desde sempre — e, portanto, para sempre — definidos; nem {que as hierarquias sejam rigidss e perenes; nem que tudo esteja previa thente — porque essencialmente — para sempre estabelecido. Ele proprio vive individual e socialmente uma experiéncia de ascensao, de mudanga, que € negagio do definitivo, do estético, do absolutamente situado © 22 hierarquizado. Ele préprio é uma prova do que hi de rela:ivo ¢ provis6: rio nas hierarquias. Ble proprio é uma prova do valor da ezperiéncia pre- sente na delimitagZo entre “o que €” ¢ “o que nio é", ertce o que vale mais ou menos. As essencialidades aparentemente eternas ¢ fixas — tipi ‘cas do pensamento metafisico continental — contrapde-se, assim, desde a idade Média, o senso Inglés de uma verdade que sc vai canstruindo ex- perimentalmente, progressivamente. O valor da experiéncia ser, por mals forte raz, um dos teacos caracteristicos do pensamento renascentista in. {185 e italiano, como atestam Rogério Bacon, Leonardo da Vinci, Galileu. Sem diivida, a mais plena expresso do pensamento medieval enquan- to sustentado pelas nogoes de hierarquia € fixidez das eséncias ¢ dada pelo tomismo, que passa, a partir do século xt, a dominara filosofia con. Unental, tornando-se uma espécie de filosofia oficial da Igzeja. Desenvol- vendo a proposta iniclal de Alberto Magno — de associar inttinsecamente aristotelismo e cristianismo —, Tomis de Aquino defende uma fisica e uma metafisica aristotélicas cristianizadas, nas quais a realidade c6smica tanto ‘quanto @ realidade das esséncias aparece organizada em hierarquia pere- ne, De fato, jé a cosmologia aristotélico-ptolomaica mostriva um univer 80 organizado ao redor da Terra e formado por esferas cor céntsicas. Essa a base fisica da hierarquia, a base ‘cientifica’” da hierarquia. A sociedade, hierarquizada, refletiia 2 hierarqula cOsmica, nela sc legitimando, Ea hic- rarquia do universo, para o aristotelismo, estava sustentada desde sua ba- se material: com efelto, © mundo sublunar — onde esti z Terra — seria constituido pelos quatro elementos de Empédocles (égua, ar, terra e fog0), enquanto o mundo supralunar seria formado por uma "quinta-essencia’, 0 ter. Materialmente distintos, mundo sublunar ¢ mundo sapralunar apre: sentariam necessariamente movimentos também diferentes: 4 regio su- pralunat seria a regito dos movimentos regulares, continvos, circulates, eternamente repetidos, enquanto a regio sublunar seria ¢ local dos mo- vimentos retilineos, desconexos, intermitentes. Os movineentos do cos: mos estariam, assim, distribuidos em duas categorias definitivamente di ferencladas, em duas “naturezas” distintas. Distintas € hierarqulzadas, pois ‘0s movimentos “inferiores” (da cegido sublunar) estavam na depen den- cla — fisica € metafisica — dos movimentos circulares das esferas supe- ores, as esferas dos astros: numa sequléncia hierérquica de motores e mé- veis, cada esfera € movida pela que Ihe é imediatamente superior, até 0 primeiro motor, que move sem ser movido, fonte de taco movimento. Assim, em seu conjunto, a regilo sublunar move-se a sua maneira como conseqiéncia de uma cadela de motores-méveis que, na regio dos as- ros, geram movimentos circulaces e ordenados — a imagem mais prox ma do perfelto repouso do primeito motor. ‘Nese cendrio e6smico, cada tipo de ser e cada elemento material te ria seu “lugar natural”. Uma prova baseada numa experiéacia corviquet: 23 ra? Quando jogamos pars o alto uma pedra — que sélida, pesada e tem, consequlentemente, © baixo como lugar natural —, retirando-a do lugar que Ihe esté conferido pela hierarquia do mundo fisico, ela naturalmente tende a cair c cai fatalmente, retornando ao lugar que desde sempre € pa- a sempre Ihe esti destinado por sua natureza. Mas 0 que ocorre com objetos materiais analogamente acontece com os humans. Com efeito, AistOteles transpde 2 nagao fisica e cosmolégica de lugar natural — inti- ‘mamente associada por sua metafisica a nogdo biolégica das espécies fi xas — para a esfera social. E conclui analogicamente que a hierarquia so: cial também estd fundamentada em esséncias definidas e estaveis, sendo pois uma hierarquia permanente por natureza. Por isso afirma que 0 es cravo € naturalmente escravo, escravo no 86 de fato mas de direito, por que destituido de aima noética, aquela que realiza 0 mais alto grau de co mhecimento ¢ justifica 0 autogoverno. Essencialmente escravo, 0 escravo seria, assim, definitivamente incapaz de orientar sua propria vida, de vi ver autarquicamente. Embora deva ser bem tratado, deve também Ser res- peltado cm sua natureza. F respettd-Io em sua natuseza, para Aristoteles, € manté-1o como aquilo que ele é — e pode ser — segundo sua natureza ‘escravo. Se for retirado dessa situaglo natural de escravidio — natural € conseqientemente boa — por meio de um “movimento violento” (and- logo ao do langamento da pedra para o alto), que & sempre um crime de lesa-natureza, de lesa-essencialidade, pois contraria a natureza do ser ¢ @ “ordem natural das coisas", ele, como a pedra, tenderd a retornar & con- digo e 20 lugar anterior, aos quais est essencialmente destinado, nat ralmente destinado... ‘© universo aristotélico &, assim, em todos os nfvels, um vniverso re- aldo pela metafisica de todas 2s vicissitudes do mundo fisico ¢ humano. Primeiro motor de tudo o que se move (no sentido também de "se trans- Forma”), estaria “o pensamento que se pensa a si mesmo”, na solidio de sua perfeigio ¢ de sua transcendéncia ‘Ao cristianizar Aristoteles, Tomas de Aquino tera de retragar 0 perfil desse principio Gitimo e divino, para arrancé-lo de sua imobilidade, de sua inércia, e lhe conferir 2s atribuigdes de Deus criador e providente, Na versio original, aristotélica, o primeiro motor moveria as esferas que lhe cstdo absixo sem delas tomar conhecimento, entregue io-s6 a autocon- femplagio, movendo 0 mundo de que é causa final-exemplar "como 0 amado atrai o amante”’, na plenitude intangivel de um pensamento-de-si (© que Toms de Aquino terd de fazer para cristianizar esse divino € acranci- lo de sua indiferenga em relagdo a0 mundo, fazé-lo autor intencional do tuniverso, seu criador (a criac20 a partie do nada era inaceitével para o pen samento grego) e também seu eventual socatro, por meio da Providen- cia. Mas se no tomismo Deus cria mundo e ama e socorre suas criaturas, ele nao contraria o principio de hlerarquia universal, antes é sua salvaguar: 24 da: ag eastnclas permanecem eterna ehierarquizaas, permit 20 No mmem a congulsta de uma verdade estivel univers, cra de uma filozo fa perene ‘om sso, porém,otomismoexprime uma siuagic defo vivdapela sociedede medieval, onde impers a herargula Nz esis humana, apex do principio de suborcinagho de todos os ceres do universo a0 primeira motor = dentiieago agora com o Deuscristio — signa subordinago de todas as isttigdese alvidades humanas & orientaglo da lprela Cate: x que te prctende, no plano temporal a eprcsentace do Set supremo Curema Causa, garda poranto de Sua revelag, de Sua verdad, Em conseqiencla,o profano deve estar subordinado a0 relgoso, 0 Mls6fico octenilico so eologhcoa"verdade natural" ~ conqustada pelosesfor ostaclonals ov emptices — sob controle da "verdide evelada dow Goda Graga, Mas ¢ mportante nto perder de vist: ese herarqula Sores Bonde, oe fat, 2 siuagio historleamente predominarte naqucla Europa Continental cltualmenteromanizada, onde a hegemona d grea estava fartias inclusive porter la permanccido como detentoraepreservado- Equue exclusiva dos bens eopirtuais da eserta, da ervaiedo See cla que falzem nome da verdad suprema e supostamente universal €ambém por ave, pratieamente,s6ela pssul os instrumentos adequados quel fala, Expresso de tds flosoeas¢ teol6gcas, 20 penssmento mais eabora- do. A concepcto da Mosofa enquanto verdade natu serva da teologa waite unit da"werdaderavelnds" > eeprodsr, sash; uma Beet Sul viet concretamente pela Sociedade plea da Idade Média continental Justmente ex blerargula social — que o tomismo tentaralegtnat ao inser! ana hlearquia universal —@ que passa a ser negada pela emer- fgtrels do homem nove: o stadlno, 0 burns, que sear eondmleh Feoctlmente por met dasatvidades artesanaistde comeérlo, tn Ata Idade Media, mas sobretudo no Renaselmento, Esse homem novo Jaga € se Jlga pela uilizagio de uma nova esala de valores, que independe Gos valores tradiclonle« até s venes os invert Almas e valor no tempo prescntcea pane deae presets, independentomente de ver dades supostamente perenes,Inemporas. Crise asim um tensto — quando no oposigio frontal entre idéiase valores novos ¢ tradklonas, Ten ip Spach etna c's nea mendes a eu cas es nus Sigumenative de auiodefesa,€ mostrar que tmbem poss alades no pa. Sado, ae nun pasado mals femoto do que aquele ue autorzava ele mnavia velha enalidace: ab pensamento medieval ofenasclmento con trapde a Antiguidade classica, ao Cristianismo contrapde Grécia ¢ Roma. E. para combater os fundamentos astotlicos do peasamento da dade Neat, retoma a tadlgao platOnicaepltagoriea.© novo nfo € forte ape. fas porque nover quer aer forts iamisém por tnaer em al tong de ah renaseen, por ser um Renascimento, 25 Como mostra Rodolfo Mondolfo, em Figuras e idéias da filosofia 4a Renascenca, aquela tensio surge as vezes aplacada por uma solugio ‘pica do pensamento renascentista: 0 conceito de dupia verdade. Ao con: ‘rio da tese medieval de uma verdade tnica, fundamentada, em altima Istancia, na revelagio, Giordano Bruno, por exemplo, sustenta a inco: nensurabilidade entre a verdade revelada, de origem divina, ¢ a verdade facional, puramente humana, Essa incomensurabilldade estabelecerta es. acos distintos e sobretudo autSnomos para os dois tipos de verdade, gs fantindo a liberdade da raz40 em relagao a fé, Essa tentativa de coexistén- cia pacifica entre 08 territérios da religido e 0 da ciéncia e o da filosofia nndo consegue resolver a tensio cultural da época. & tese da dupla verdade quebra 0 monopdlio da verdade por parte da Tareja, deixa livre € solto —entregue apenas a suas proprias exigéncias de racionalidade ¢ compro- vagio — 0 pensamento clentifico € filos6fico. Mas teorias como a ima- rnéncia de Deus — fusio e mesmo identificagdo entre Deus e Natureza —. ‘com que Bruno abre o caminho para Espinosa, nfo podem ser accitas pe la Igreia como verdades apenas racionais. O conflito € inevitavel. A Ii berdade de pensamento de Bruno afasta-o do que € consentido como ver dade pela Igreja naquele momento, afasta-o da teologia oficial de base aristotélico-tomista. E sua filosofia € condenada como heresia. Mas o mar tirio pelo “fogo purificador” com que Bruno € punido:ado queima a ne- cessidade de renovacio e de rebeldia que impulsiona 0 Renasclmento. 'A tese da dupla verdade parece mesmo imprescindivel a esse momento ‘em que 0 desenvolvimento de novas idéias precisa abrir espago na rigida teia dos dogmas religiosos. Essa tese é, na verdade, também uma estraté- ‘gia cultural; uma tentativa de acordo ou trégua com 0 pensamento domi ante e autoritario, que se quer porta-voz do Absoluto ¢ por isso dono da absoluta verdade, Tanto parece ser assim que outro renascentista ita- liano a retoma: Campanella. Ao fazer a apotogia de Galileu a0 defender a verdade cientifica, Campanella também procura separar em campos dis- tintos ciéncia ¢ religido, Escreve: "No Evangelho nao se Ié que Cristo tra- tasse jamais de assuntos fisicos ou astrondmicos, mas de coisas morais © das promessas da vida eterna’ E Campanella val mais longe: procura mos- trar que impedic a pesquisa clentifica é uma ofensa a0 proprio cristianis mo, pois “aqucle que teme ser contraditado pelas coisas naturais € cons clente de sua propria falsidade, aquele que em nome das leis cristis quer vedar as cléncias, 05 estudas € as pesquisas das coisas fisicas e celestes, ‘pensa mal do cristianismo ou € causa de suspeita dos outros". A liberdade da ciéncla, reivindicada por Campanella, € colocada até como condica0 indispensével para que a razao possa, ela também, celebrar a gloria de Deus por meio da investigacao de sua obra. Indl. Isso ngo impede que o file Sofo softa processos ¢ perseguigdes devido a audacia libertaria de suas Idétas. Ao pensamento auoritirio, escudado no Absoluto, nao interessa 26 2 ei fazer qualquer concessio: a liberdade de pensamento s6 interessa a quem ‘entende 0 pensar como processo, como esforco, como conquista: con- quista humana no campo do relativo, do temporal, do provisério, do no- vo. & dessa liberdade que necessita 0 pensamento renascentista Liberdade para questionar o jépensado, para duvidar do 4-pensado afirmado como itemovivel. Entende-se, portanto, que a divida — bem antes de Descartes — apareca como atitude intelectual basica para renas ccentistas como Campanella ¢ Montaigne. Se ¢ com Descartes que ela reve- lard todo 0 seu poder destrutivo-construtivo — talvez cedo demais cecendo lugar outra vez & certeza irretorquivel —, [4 com esses pensadores da Re- nascenga a diivida aparece como recurso demolidor das pesadas constru- (GOs tedricas tradicionais, como salutar forma para abrir espaco, dentro do habitual e do consentido, para o surgimento do novo. MATEMATISMO E EXPERIMENTAGAO © Renascimento resulta de condigdes econdmicas, potticase socal, mas também de avangos técnicos que esto, alguns, intimamenteligados 2expansio das proprias atividades comercais De fato, o aprimoramento de instrumentos que facilitam a navegagao permitira aos europeus longs {mais segura viagens maritimas. E no cielo de navegagdes & procura de ‘um caro martimo para as Indias acabario por descobrke 28 AMET, novas terra, nova ¢ desconhecida gente Por outro lado, também 0 aperfeigoamenio dos instrumentos pt 0s permite que se revolucione a antiga Imagem geocentrica Go univers Ohheliocentsiamo de Copérnico derruba tidicional imagem aristotelico- ptolomaica do cosmos a Terra no centro, cercada pelas esferas dos 2s ros, A partir de Copémico, a Terra dos homens perde a prvileiada con- digao de centro do universo, enquanto na propria Terra a5 novas teas ‘Ao sendo deseobertas, Na Terra e nos céus novos mundos se abeem, fa- zendo esboroara antiga imagem de um universo onde a Terra —e a Buro- a — eram o centro em torno do qusl tudo parecia rar, Se o homer. euuropeu vai tentar manter ia Terra Sua situagto privilegiada — por meio do processo de colonizagio politica e cultural das outros eontinentes —, 2 posigio do homem dentro do macrocosmos estédefinitivamente alter. Gifsa Terra aparece agora a girar em torno do Sol ¢ ambos so pociras per- didas no interior de mundos infintos. Do infinito untverso— esse 0 ti Jo de uma das principals obras de Giordano Bruno. ‘Micmar a infinitude do universo €, porém, opor-se frontalmente &ima- gem do cosmos que a Idade Média herdara da Antiguidade a:ravés de Aris (Gteles fora cristianizada pelo tomismo, transformando-se em cosmologia oficial da igreja. Assim, a nova cosmologia proposta pelo Senascimento 27 vai encontrar feroz resistencia, pois aponta para além da “ltima esfera ’ — a das estrelas fixas —, em diregao 20 infinito inumerivel e imensura- vel. Como escreve Mondolfo, essa nova cosmologia "'rompe aquela abs: batla celeste como se fosse um censrio pintado, prosseguindo na desco- berta de mundos infinitos, muito além do nosso", Eo divino é justamente css universo infinlto — afirma audaciosamente Bruno, acendendo um fogo de pensamento inovador que receberd a resposta da fogucira de seu martito. ‘Com Galileu, © aprimoramento dos instrumentos pticos permite in- clusive que se afronte no detalhe a velha cosmologia sacralizada, Com a uneta aperfeigoada ele v0 a faléncia da fisica aristotélica, V2, por exem: plo, que ndo ti diferenga entre a dinamica da regio supralunat e a dind- mica da regio sublunar. A fisica € uma 86, conelui, nao hé regides subs. tancialmente diferentes no cosmos, a ponto de causar tipos essencialmente diferentes de movimento, explicavels por lels fisicas diversas. As feis da fisica sio universais: 0 macrocosmos pode ser entendido a partir de nos: so microcosmos, pois este microscosmos reflete © mactocosmos. A quie- da dos corpos — como Galileu comprova na famosa experiencia rcaliza- da na Torre de Pisa — incorpora-se a uma dinamica universal, Unica. E ‘mais: Galileu, com sua luneta, vé manchas no Soll Vé méculas, estranhas maculas, estranhas “imperfeicoes" numa regio que deveria ser, segundo a concepeio aristotélico-romista adotada pela Igreja, 0 reino da perfeigao absoluta, E bem verdade que a hip6tese nfo geocéntrica tivera antecedentes ‘no pitagorismo antigo ¢ que a universalidade das leis da fisica repetia tese platonica. Mas tas idéias haviam sido sufocadas, na Idade Média, com a Oficializacao pela Igreja do pensamento aristotélico-tomista, Por isso, 0 que renasce com pensadores renascentistas como Gallleu € a linhagem plato. nica e neoplatonica, aliada — na Antiguidade como agora — a0 matems: tisme pitagérico, em oposigao 2 fisica qualitaivista do aristotelismo. © Renascimento cientifico-filosofico é, em grande parte, o renascimento de ‘dias platOnico-pitagéricas. © que de fundamental o Renascimento acres: centa 2essa tradi¢i0 matematizante € a valorizacao da experiéncia, num sentido jé de experimentagdo: experitneia controlada ¢ instrumental da, nao a “experiencia corriqueira" do puro "bom senso” desarmado ¢ freqiientemente preconceituoso — como a que aparece no aristotelismo, a exemplo da que servira para “\provar”’ a existéncla de lugares naturais ‘no cosmos e, analogamente, na sociedade, Justamente o ponto central ¢ revolucionsrio do método cientifico de Gallleu este: a fatima associagao centre matematismo ¢ experiencia, que resulta na constituigao da fisiea ‘matemitica que prosseguird seu impressionante desenvolvimento no de- correr da Modernidade 28 Assoclago entre matematismo ¢ experimentaglo £ o que também apa rece em Leonardo da Vinci. Artista genial, mas igualmente grande cient tae extraordinario inventor, Leonardo defende um método de conheci mento e um de elaboracto artistica que tém de comum a fundamentagl0 nna observagio minuciosa ¢ na experimentagio. De fato, sua arte quer ser fundamentada cientificamente, sua estética pressupde a investigacao da natureza, As asas de seus anjos remetem a seus projetas de miquinas voa- doras que 0 colocam como precursor da zerondutica. As expresses de suas figuras — como atestam desenhos, estudos, esbocos magnificos — ‘esto baseadas na observacio atenta movida pela busca de rigor psicol6- ‘gico que leva em conta 0 estudo também da musculature facial. A impres- sionante e realista anatomia de seus anjos, santos, apéstolos, estd alicerga- dda na dissecagdo de mdsculos € no registro — por meio de desenhos de ‘extraordinatia precisto cientifica — da estrutura intesa dos corpos. A to- ‘ante espiritualidade que envolve um quadro como Samana, a Virgom © 0 Menino (Louvre), que tanta reflexio sugeriu a Freud, na verdace su- poe uma base cientifica € fisiolégica cuidadosamente estudada. O enig- mftico sortiso da Gfoconda (Louvre) esta sustentado por mOsculos pet- feitamente investigados. Isso porque Leonardo da Viaci considera a obra de arte como devendo resultar de uma “fantasia exata”. Como observa Paul Valéry, na Introducao ao metodo de Leonardo éa Vinci, "sua pintu- raexige sempre dele uma anilise minuciosa e prévia cos objetos que quer representar, anise que nao se limita, de modo algum, 20s caracteres Vi vais, mas vai 20 mais fntimo ou organico, 3 fisica, 2 fSiologla, até psico- logia, para que afinal seu olhio descanse, de certo modo, na percepgio dos acidentes visuais do modelo que resultam de sua esteurura oculta" ‘A valorizagio da experiencia como base para a cincia ou para a arte, como em Galiley ou Leonardo, possul pressupostas revolucionarios para 1 €poca, Primelro, subentende que as explicagoes abstratas, fundamenta- {das em esséncias universaise intemporais geradas por um processo de abs- racio metafisica — a maneira de Aristételes ¢ Tomas de Aquino —, nao. Gesvendam os segredos da natureza; 20 contrario, escondem a verdadeira face do real por tris de um tecido de vagas palavras, construgées verbais, {que falselam e ocultam os detalhes, as variagOes, as nuances, 2s contradi des, as mudangas, as diferengas de que é feito © mundo conereto € que 56 Se entregam, mas paulatinamente, a0 prego de observagdes atentissi: mas € minuciosas, da divida estimulante, cle experimentagdes equipadas ‘com instrumentos adequados € célculos rigorosos. Segundo, pressupde que essas observacOes ¢ experimentagOcs, alladas a0 matematismo, mos- team aguas leis fisicas do universo infinito, cuja multiplicidade é unificada pela legalidade cientifica @ dimensdo da compreensao humana, Tercelto, pressupde ainda que, conseqiientemente, o segredo das coisas pode e deve ser descoberto pelo esforgo bumano, pelo trabalho ce pensar e observar, 29 alcular ¢ experimentar, com 0 auxilio de maquinas ¢ artefatos, figuras ‘nuimeros — sem precisar conferir essas informagdes conquistadas pelo sforco cientifico empicico-racional com dogmas religiosos ou afirmati- as de Aristoteles tidas como infaliveis: a autoridade, agora, € a propria ‘wi humana, que interpreta experiéncias ¢ observagoes, registra e cal- tla, e no mais 0 dogma ou a tradigao, E mais: a valorizagao da expeti- entagio sobretudo pressupde que a natureza nao é mais considerada, mo no pensamento medieval dominante, apenas como ocasiao e palco pecado, nao 0 teoldgico cenario da perdigio, nao o religioso vale de igrimas. Valorizada e até divinizada, como em Bruno, a natureza é objeto fe curiosidade mas também de amor — amor que se traduz em pesquisa, esquisa que € forma de apreco € respeito pelo que se deseja conhecer ada vez mais. Sim, as paisagens que servem de fundo as pinturas renas tentistas — mesmo em quadros de Madonas ¢ santos — sio a face amori- cel da divina natureza, lugar de labuta mas também de valorizagao do hu- ano pelo trabalho crlador. Lugar de criaclo, na vida, na arte, no pensa ento. Tertitério dos mortais que, criando, sto ““deuses na Terra’ Por tudo isso, o Renascimento, do ponto de vista filos6fico, € princi almente 0 momento da proposta de um novo humanismo, DIGNIDADE DO HOMEM Coerente com a nogao de que o pecado marca fundamentalmente & ondigio humana, como estigma degradante, e que este mundo material ‘apenas lugar de perdi¢io ou, na melhor das hipdteses, lugar de penas egeneradoras, 0 pensamento cat6lico medieval insistiu no tema da misé- {ae da indignidade do homem. Indignidade resultante da Queda, indig ‘idade tornada visceral e que, sozinho, apenas por si mesmo, apenas com las parcas forgas 0 homem nio conseguiria superar, necessitando da ago ediacora da Igreja, seus clérigos, seus sacramentos. £ bem verdade que ‘5a visto pessimista em rela¢a0 a0 homem e @natureza, que the propicia reasides de pecado ou de esquecimento da necessidade de salvacio, en contra seu reverso, na propria Idade Média, no cristianismo de sio Fran isco de Assis, baseado em pobreza, alegria ¢ amor A natureza enquanto sbra belissima de Deus, Essa € justamente uma das contradicdes mais fe ‘undas apresentadas pelo universo celigioso medieval (contradiga0 muito jem exposta, em forma romanceada, por Umberto Eco, em O nome da 2osa), Mas vale lembrar: primeito, 0 franciscanismo inicialmente se de: ronta, dentro da propria Igreja medieval, com forte resisténcia, olhado som suspeicio de heresia justamente por suas propostas de pobreza ale- ye € de amor & natureza (o que parecia tendéncia a um pantefsmo a mx Xeira de Bruno); segundo, € dentro da tradigao franciscana — como em 30 Oxford — que se desenvolve 0 pensamento tealdgico ¢ ‘ilos6fico que, jd na Idade Média, faz violenta oposigao a filosofia e a teologia “‘oficials {a Igreja continental e da untversidade de Paris (Rogério Baoon, Duns Scot, Guilherme de Ockham sio todos franeiscanos). Mas, franciscanismo & parte, a tese que prevalece na Idade Média como concepgio “oficial” da Igreja Eaquela da degradagao do homem em decorréncia do pecado original © a natureza como reino da perigosa e tentadora materialicade. Essa concepgio da indignidade inerente 20 homem apaiece claramente ‘num texto daquele que se tornaria papa com 0 nome de Inocéncio m1. © texto possulsignificativamente o titulo de “De contempt srundi”, ou seja, "0 desprezo do mundo”, Nele o futuro papa mostra o homem como in ferior aos proprios vegetais, em toda a extensio de sua abjegio ¢ de sua indignidade, como um ser que “anda pesquisando ervas €arvores; estas, porém, produzem flores, folhas ¢ frutos, e tu produzes de léndeas, pio- Ihos e vermes; elas langam de seu interior azeite, vinho ¢ balsamo, © tu do teu corpo, saliva, excrementos... ‘Ora, o que a experiencia hist6rico-cultural do Renascimento permite éainversao completa dessa imagem. Em lugar do ser miserivel e perdido, a produzir imundicies, © homem se reconhece afirmado ¢ engrandecido por seu trabalho, como ser que inventa, cris, descobre. Reconhece:se na posse de uma akissima dignidade, que se expressa inclusive nas constru- es filosoficas, cientificas, artistlcas. Por isso, 0 tema da dignidade hu- mana — a0 lado do tema do progresso, progresso realizado pelo homem no universo que ele cria, 0 da cultura — ocupa o centro do humanismo renascentista. Em seu livro sobre a Renascenga italiana, Redolfo Mondol- fo transcreve textos de diversos pensadores renascentistas que defendem essa concepglo da grande dignidade do homem. Escreve por exemplo, Coluccio Salutati: A sabedoria ea elogiéncia so dotes caracteristicas do homen, por cujo meio Se distingue dos outtos aniais; e quz0 excelente, quio glorioso e honroso. se torna superar os outros homens por aqueles dons da nawureza, por meio ‘dos quals © homem é superior 208 Outc0s animals! Os homens sibios ¢ elo ‘quentes parecem-me ter criado paras tal grau de excelénci sobre os outros ‘homens, como Deus e a natureza estabeleceram entre os homens € 08 ani mais desprovidos de razio. Como se vé, em lugar de inferior até 20s vegetais, o 10mem é apre: sentado como superior a todos os demais seres da natureza, superiorida. ide que pode ser transformada em exceléncia quando equipada com sabe: doria ¢ elogdéncia, Com efeito, o humanismo renascentista traz em seu. interior a revalorizaco da arte da persuasio, cm oposicac & razio autor deta, dogmética, coagente, que se impunha verticalmente, com suposto cendosso do Absoluto, como dona da Verdade irretorquivel garantida pela 3 temporal et fcvelaca religions. & a casa c2z20, que se pretende in 2 clesaang fECe a8 malhas da catequese, que o Renamer contrapse 3 Goaiiénca, a persuasio cetdrica, que Chaim Pele caracteriaa, em poral dena #anifestcto de uma aclonalidade humaninele nn oral, dependente sempre das circunstanciae, is Prareridaée do homem, em fungto de sua rxz80, reparece em 194 de Prato: “Que o homem tenha razio pous ver eo ‘lareza e julga foatmemente. Pols € sé ele quem distingue os tenmee wen , pasado, tes e futur pene S00 e889 distingto guia-se para julgar'as Colgate reatnutttts Petas passadas, © por isso constrotae, pote ae epublica, podean se casamentos, riamsefihos, proven se fs nevrtee que Eearca Sule, descjase a gléria perpénin,.e colstesemelharnes stimula, as pela razio’ Jeng Set racional que, por isso mesmo, pode ter 0 senso da tempora: esateng ual constrGle na qual pode ate sonar com eeioge erperus, Siat4do Por outro humanisa de Renaseenga, Berseeahe ne Sena, que Siev2 alm humana 20 nivel maximo de dignidade e helene: ‘alma nao mide pon ptleza do céu apenas mil, nem mil vezes milhares da mmilhares, ceus empires mete Infinito de veaes. De maneira que se erinen Coe as a eREOS COMO somam a8 gotas das Aguas € 8 prdoe de eee ‘mar f belo a 20 Cet, toda a beleza junta dessas coisas nao pods ‘igualar 4 beleza cle uma s6 alma, t40 grande é sta excelennan smeseng da peat 2 Pesquiss, 20 progresso da culturs Bose seen, Brunh “Leng manidader, como explica outro renascentisen Lee Brunt "Lendo e aprendendo devemes recolher multas cea, de todas as elas, cat 35 que convém e pesquisar cada uma de tock one or eet SsiBH € cacavar all de onde posta vit alguma sultans se ue apertelgpia es eSCU08 chamam-se humanidade juseamenne foe ue aperfcicoam ¢ adornam © home re pOUEOS humanistas do Renascimento conseguiram exprimir tio mieedtanto Marsilo Ficino o significado da dignidade que of oe ma ‘lfesta por meio da atividade criadora, que o-diviniss {ror institulgdes socials ees.) sabe nie passado e Futur, recolhendo cea ceenes nano eterno os intervals figies do tempo, Atrves da Ingeaeoy poeta a Most a divindade de sia mente; por meo ch linguagers tece Fees geensumento, pregoeiea e mensagcita de intinitas deseoboney ee tlorlaa de infinitas maneisas seu podetio intesior emeinngs {272m 20 homem o dom do incecto e das mos, e celaramno xemelhantea eles quando Ihe ovtorgaram poderes sobs ee on onsistem em poder agir, formar cam € fra es lels da mesma, a fim de ue, fermando ou podera formar outeas ra er deus na Terra, Aquels, por certo, quando cheesy tal como em vio est 0 olho que no ve e 2 mio coe rer a ak OF% como a5 diiculdadesnasceram ene 0s homens eat inauaree am 8 Hecessicades, agucaramse a intligencias, Inveniraan es cei dnde ceeCODEIENe 38 artes, ¢ sempre, dla apes dit, por meena sage ide stimulam-se novas e maravihosasinvencoes deste ie en sempre, cada vez mals, afastand. ‘outras ordens” para além do que ¢ tide sua conta? {SomUM”, “definivo”, "necessitio", em moneiaee ttuido beds a Se, GUe sObrEpbE 20 reino da necessidhde © tine ine pots topes iberdade. Essa tiberdade proclamada como divinicee a Fiona pesegeomem UM ériador — € que justamente mes een cae destroy ma oes € Condenagdes. E ela que, no caso de Brine ne ion, cman ha fogueira. O que mats escandalizac€ punido riolenrae ere é caturacen waittaste do homem enquanto livre criader de sie de cae werdades, me tes Opressoras que o transcendem: homem evade det Ahan iy suas Instticoes, de sua progressivae insacieen ope Acima do plano da necessicade natural — que ele incluciee vezes 33 toca, “emenda’” —. acima do que podem coca as cemats eracuras te nas, 0 homem reveia seu poder, 2 fora de sua vontade, de sua imag racio, de suas miios, de seu pensamtento, Sua lberdade reside justamente tessa capacidade de sobrepor-se 20 meramente dado como natural, para vfiar~ erlatara‘crindor — além ds legaidade da natuteza, num reino que fe Inaugura, Go qual é 0 inventor. inventor de arte, ciénela, flosotas, Stopias,instituigoes; inventor de inckstrs e artefatos manus, intelec unis artisticos de todo tipo; inventor de cultura Esse'0 homem novo do Renascimento: aquele que se libertad trad Gio pela dividae confirma seu valor atraves dos resultados de seus esfor- Zos: aquele que contia em suas experiéncias e em sua raz; 0 que contin, ho novo, pois assume sua realizagio dentro da temporalidade, Por is0 E aquele que ousa substituir os rgidos etaones co canto gregoriano, em touvor do Absoluto, pela flexibiliade c aalegria dos madrigais que exal tam e expressam humanos seatimentos, humanos amores, humanos pri zetes. "Deus na Terta”, 0 homem do Renaseimento se volta para a com. precnsio de sua condigao terrena e de seu mundo, ambos tedignificados Se isso explica o interesse pelos sentimentos ¢ o mergulho nas “paindes Gh alma""€ do corpo -~ como o faz 0 genio de Shakespeare —, €1850 (any bam ave justifies» exteaordinaria expansao da inventividade em todos ods campos, & que o homem do Renascimento recobra a confianga em 8 tnesmo, fm sua capacidade enquanto apenas humana e desvelada na tem poralidade, cecobrando com 130 a liberdade de ousar e de dizer "'nio” Bo oficial a9 tadicional, a0 Imposto como definivo, ao sacramentado Como se Tora absoluta e intransformavel Verdace ssa mudanca de mentalidade e essa mensagem de liberagao contids ho humanismo do Renascimento podem também ser “lidas” em sv pintura HUMANISMO E PINTURA: BOTTICELLI F MICHELANGELO Como € compreensivel, os temas religiosos predominam na pintura medieval, como parte de uma arte quase inteiramente a servigo da reli ‘aio: sao inumeraveis anjos, santos, Madonas, beatos, cenas revelando a Celestial bem-aventuranga ou as torturas infernais dos condenados, 0s vi rios epis6dios do Antigo ¢ do Novo Testamento... Mas nao sé a tematica @ predominantemente religiosa: sambém a construcio pict6rica, a organi zacdo interna das composigoes, revela a valorizagao do Alto, do trans ‘mano, do que estaria acima e além desta vida e deste mundo terrenos. Se por exemplo, contemplamos duas obras-primas da pintura medieval, co- fo a Madona de todos os santos, de Giotto, ea Madona no trono, de ‘Cimabue — ambas expostas na Galleria degli Uffizi de Florenga —, perce- 34 ORIG bemos que, apesar das diferencas estilisticas, as duas estio realizadas segundo os miesmos rigorosos cinones estéticos. Em ambas, a mesma atmosfera hieratica, formada pela postura rigida ¢ solene das figuras, de kgestos contidos ¢ Semblantes onde no transparece qualquer emocao, qualquer sentimento humano. Eis a serenidade beatifica, acima de todas as palxoes ¢ de todas as contingencias — parecem “dizer” os dols retabu. Jos magnificos. Neles, tudo tende a0 estitico ¢ aponta para o alto, desde © proprio formato dos retabulos, com sua parte superior portlaguda, como luma flecha que indica 0 céu ou como 0 teto de uma igreja, cnquanto as linhas de construgto da pintura s20 tadas dominadas pela vertigem da ver- icalidade e da ascensio, Em todos 08 seus elementos construtivos, essas pintusas dizem: 0 Alto € que importa, Ld estd nosso desino ¢ para La devemos voltar toda a nossa atengao € nosso empenho. Por sua vez, 0s ourados dos fundos ¢ das auréolas comprovam: trata-se mesmo de uma Fepresentacéo aproximada do Inimaginavel esplendor celestial, 0 esplen: lor que s6 se pode conhecer plenamente noutra vida, now'ro mundo. As ‘iguras esguias, etéreas, sem detalhes anatOmicos marcados, também contir ‘mam: estamos diante nao propriamente de corpas, mas de Euros espiritos, de uma espiritualidade extremada e excelsa, € que apenas “‘aparecem” corporificados para que possam ser vistos, representados, cultuados, se: uidos. Sto figuras ascéticas, severas, quase na fronteira da ircorporeidade. E 0 corpo e sua anatomia de fato importam muito pouco, quando 0 que se quer representar é a imponderiivel realidade do Reino Espiritual — nao a grosscira e pecaminosa corporeidade mortal. Por isso, cm ambos os re tabulos todos os elementos pict6ricos estio a servigo da exaltagao dos que imperam, em seus tronos dourados, nio no tempo, mas na etemnidade: uma Viegem sem pecado e seu Menino Salvador. Nesses retatulos de Giotto e de Cimabue estamos — pelo tema ¢ sobretudo pelas solugdes estéticas — diante, de fato, do apogcu do g6tico na pintura Basta, porém, que na mesma Galleria degli Uffizi, enttemos, mais adian: ‘ec, em outra sala, para que tudo se modifique, para que as pincuras reve: Jem outros cAnones estéticas e "falem"” outra mensagem. f a sala dedica dda a Sandro Botticelli, Apenas um século separa 0 ano de seu nascimento (1444) do ano da morte de Giotto (1337). Mas é tempo suficiente para que anova sociedade, a nova filosofia, a nova arte tenham suigido: estamos entao em pleno Renascimento. Nao que os temas religiosos hajam desaparecido. Pelo contratio, ali estio varias ¢ magnificas Madonas. 56 que agora o pincel de Botticelli 2s, presenta com idealizada serenidade, sim, mas também com opulenta car- rnadura: como belas ¢ saudaveis mulheres, de beleza marcadamente italiana, beleza que parece brotar do solo mesmo de Florenga, aquel Florenca cos Medici, sua Florenga, sua terra. A santidade ea beleza — e 2 santicade ds heleza — surgem dentro do mundo, deste mundo. Por isso mesmo, as, 35 santas figorastém gestos mais soltos, naturais,espontinees, e seus corpos sho reproduzidos em todos os pormenores anatémicas. & que a corpore': dade agora é importante: o homem e a natuteza foram redignificados. Es ‘amos, assim, cliante da santidade encarnada, mals: da santfdade daa encar ‘nagao. Estamos diante de uma espiitualidade sem ascetismo, que esplende 4 partir do corpo, com o corpo, através do corpo maximamente valoriza do. Beis por que desaparece a postura hlerstica esolene da representacio {gotiea das santas figuras: a santidade agora esté imersa no mundo fisico, fa natureza, no cotidiano — o trono da Madona ¢ freqdentemente apenas uma pectra, A beatitude € apresentada nesta vida. B, como na Virgem da romé, esté humanizada e envolta numa aura de alegra, vigosa ¢ sumaren- ta como um fruto amadurecido no seio da navureza. Por iss, a fruta que a Virgem segura e 0 Menino toca é como um coragio, uma camne que se abre © mostra o interior singrento. Mas, na verdade, todas 2s figuras re- Presentadas no fondo, nesta superficie circular, sio outros espléndicios fru- tos da terra: a mie, 0 filho, os anjos robustos, ‘Também na Virgem do Magnificat as santas figuras aparecem enlaca as numa guirianda de crangdila felicidace terrena, acentuada pela repre- sentaglo circular, que elimina a hlerarquia vertcalienda da pintura gotica © que vemos éa tao humana felicidade da mle que, num momento qual quer, sustenta docemente 0 filho diante de belos e saudveis meninos: Anjos que modestamente escondem as asss ou apenas pajens de urna sin gels corte terrena, familiar? E a coroa que eles erguem cima da cabeca da Senhora nao parece consagrar a realeza do divino humanizado, a me ma do humano divinizado, como quer o humanismo renascentista? ‘Ao corter os olios pela sala, verificames: temas crsta0s ¢ pagios con vvivem lado a lado na pineura de Botticelli. Mais: peccebemos que a serena beleza das Maconas & a mesma que ceaparece no rosto da Venus nascid das fguas, deusa da beleza — a beleza enguanto divinéade, a beleza su: prema, a platOnica beleza-em-si —erguida e mostrada em plena nudez num {wono-concha, num trono natural. Aqui, no Nascimento de Venus, a be Jeza do corpo em sua naturalidade, em sva santidade pré-crista, Aqui a rc presentagio do altar onde se cultua a sacralidade da beleza natal. Por {s80, e884 Beleza esta rodeada por todos os elementos da natureza: a gua rie, 0 vento que acorre com seu sopro, 0 céu azul, a terra com suas atvo. res ¢ suas flores. O rosto da Venus — notamos encantados — 0 mesino das Madonas. Sim, a Venus é uma rainha da Beleza sem distarces, cevelada antes de receber 0 manto que Ihe € prontamente oferecido; é a beleza pur "a, virginal: uma Madona despojada, uma Madona despids. E justamente 4 sacralidade dessa Beleza plena € que permite uma leltura neoplatonica € ctistt do quadro, Pols, segundo historiadores da arte renascentista, 0 ‘Nascimento de Venus teria sido pintado sob influéncia de neoplatonistno de Ficino seria uma alegoria da alma erst a renascer das 4guas do 36 batismo, Mas isso 6 provaria o quanto, em Botticell,cristianismo e trad io greco-romana estio harmonizados. E sc € verdade que, tanto em sua vida quanto em sua obra, Botticellt oscila entre o essfrito renascentista @ profano da corte dos Medici e 0 retorno A severidace cristd de Savona: rola, patece incontestavel, porém, que all, naquela representagao da bele- za inaugural de Venus, a tensio entre cristdo € pagio se transforma em harmoniosa integragio: na Beleza o divino ¢ 0 natural se integram (Outro canto em louvor natureza divinizada resstrge adiante, na Ale gorla da Primavera, sintese pictOrica da mensagem renascentista. O que vemos? No centro, uma Venus agora vestida (a alma humana, segundo a interpretagio que vincula Botticelli a Ficino) esta situida entre os apelos terrenos — simbolizados por Zéfiro, Flora e Primavera — eos apelos divi- nos — simbolizados pelas Gragas e pelo contemplative Mercario. Mas, qual- {quer que seja a interpretagao que se propontha, o mais evidente € que a Alegoria da Primavera constitui uma exaltagio da mitureza que mostra sua indestrutivel vitalidade no renascer primaveril: reaascer de vida c de beleza. Vitalidade que libera ¢ faz dangar os corpos (as Gragas) dentro do. compo florido do mundo e que resulta da presenga dominate do Amor Universal: este Eros que impele Zéfiro em diregao a Flora, que fecunda € faz Mlorescer 0 manto da Natureza — 0 manto de Primavera — ¢ que, como Cupido, do alto, no meio dos frutos, preside tora a cena € coman: dda com suas flechas 2 expansao da forca que aproxima os corpos, f22 0 homem tender paraa verdade por via da atracao da beleza, organiza o uni verso enquanto casmos e leva 3 divinizagio do humano através ca espiri- tualizagio do corpéreo, Nas pinturas feitas por Michelangelo na capela Sistina, no Vaticano, encontramos 0 apogeu da arte pictdrica do Renascimento. Nelas, 0 genio do artista leva o estilo renascentista 3 plenitude e até o ultrapassa em dire ‘20 maneirismo € a0 barcoco. Em seu conjunto, 0 que essas pinturas Contain uma longa historia, uma longa progressio que partindo do Co: ‘mego vai até o Fim. “Lidas” em seu contetido ¢ em sta forma, clas mos: tram também as grandes mensagens da Renaseimento. ‘A Historia comega no Comego: na criagio do universo por um Deus imponente, atlético, cuja poténcia se exprime pela musculatura herculea E € bem um Hercules a realizar seus trabalhos, eriando 0s astros ou sepa. rando a tetra das aguas, com gestos vigorosos, decidicos, determinantes, © colossal obreiro € todo forga, forga criadora, modelc daquela forga cris. dora que f2z do homem um “deus na Terra’, como ensina o humanismo renascentista. © Deus-Criador pintado — como as demais personagens da Sistina — como se pintar fosse, para Michelangelc, outra maneira de esculpir, de destacar volumes. F, no caso do Criadr, isso faz inteira 37 fentico: erlador dos seres, dos corpos, é representado como que "vin Jo” de outra dimensio: traz em si o volume com que produz as criaturas, ‘orpéreas, raz o volume para a concre¢io do corpo do mundo. 0 vé-lo, 10 te1o da Sistina, em seu trabalho herctileo, é impossivel nao pensar nos Scravos que Michelangelo deixou como esculturas “inacabadas” © que sstio expostos na Academia de Florenga, Neles, 0 inacabado — as figuras ‘6 parcialmente libertas, s6 parcialmence formadas, ¢ parcialmente ainda aresas ao bloco de marmore do qual parecem se esforcar por sair — nao a representagao perfeita desse Fazer-se humano, dessa liberagio pelo es ‘orco continuo e interminavel que faz da atividadle humana, sempre, um Jesescravizar-se? E no € 0 que torna o mundo da cultura — obra do ho: lem — um permanente progeesso, uma ponte em construgio, inacabacl, entre © bestial € 0 divino, como quer 2 filosofia humanista do Renasci ‘nento? Pois bem, 6 paradigma do homem-criador esti Hi no teto da Sis: ra: 0 Deus que cria a primeira parte da criagio. Deus concebido a ima gem do homem obreiro, do homem artesio de si mesmo e da cultura, que Som sua inteliggncia e a forca ea destreza de seus musculos, de suas maos, te seu intelecto ¢ de sua Imaginagdo constréi para além da ordem natural “novas ordens”, “novas naturezas”, que inventa como um “deus na Ter 1", segundo Giordano Bruno. E 0 protouipo desse Homem que surge logo depois no teto da Sistina ) Adio também atlético, criado por um quase-toque da mao do Criador sm sua mao privilegiada de futuro co-autor da realidade. © pequeno io: cervalo que separa desde sempre as duas mios ctiadoras ¢ suficiente para arantira transcendéncia do Divino Absoluto em relac30 40 humano, es se ser em processo dle autodivinizaclo. Mas € suficiente também para ins ‘aurar duas ordens de verdade, para estabelecer essa dupla verdade que dlistingue o histérico do eterno, 0 contingente do absolutamente necessi fio, e detxa 20 homem a respansabilidade pela invengIo de sua cultu 2 pelo encaminhamento de seu processo de dlivinizaglo temporal. O pe queno intervalo encte as maos estabelece & legitima 2 autonomia do hu: ‘mano apenas humano, com suas verdades contingentes € suas realizagbes culturais sempre em processo, sempre em progresso — como sustentam os humanistas do Renascimento. 0, pequeno intervalo € um abismo in transponivel situado entce dois territgrios sageados: 0 da sacralidade do divino eo da sacralidade do humano. Tentar ultrapassar esse abismo, essa fronteira, é para os mortais a grande loucura, o grande pecado que antigos fildsofos gregos jd apontavam e que a concepGio renascentista da dupla verdade retoma: a byibris, a desmesura. Ao contrario, acatar o intervalo, a separagio, € condigao indispensdvel para insticuir a verdadeira liberda {de do humano e para garantir a convivencia pacifica entre verdade "natu ral” e verdade “revelada”, entre Ciencia, Filosofia — e Religiao. 38 ORIGIN |A seqii€ncia dos episédios biblicos prossegue no teto dacapelas a Cria to de Eva, o Pecado Original, a Expulsio do Paraiso, 0 Sacrficio de Noe, 6 Dilivio Universal, David e Golias, Judith ¢ Holofernes.. Se todos im: ressionam pela grandeza e expressividade pict6ricas, o Pecado Original destaca-se pela ousadia da concepcio. E que apresenta o sexo em sua gra tuidade lidica, como puro jogo prazeroso, despreocupado, sem compro- misso com a procriacio, f Jf — mesmo no Paraiso! — 0 jogo humano da invengao para além da natureza, 2 criagi0 de uma “nova oriem”, E é cet tamente isso que desencadeia a ira do Primeiro Criador ¢ ocasiona a pera dda ingenuidade paradisiaca; Homem e Mulher, autores de ‘outea nacure: 2a etiadores de novos jogos, novas leis, perdem o Paraisc da ingenuida- de hatural — onde permanecerfio os animais inferiores —, mas ganham ‘nova ordem que constroem com esforgo ¢ trabalho e que é também Ii erdade ¢ busca da autodivinizagao. Nesse aftesco, onde s= pode ler ain- dda a sutil legitimacao, por parte de Michelangelo, de sua propria homos: sexualidade ¢ de sua condigio de artista, de inventor — dois modos de ‘se por, com auxilio da imaginacio, além do “natural” —, impressiona so. bretudo a opuléncia fisica desse Addo e dessa Eva, mesmo quando exput sos do Eden. S40 dois fortes que iniciam a longa caminhada. Despidios, como antes do delito da invencao e da fantasia, conservam no exflio a beleza ea forca de seus corpos, 4 energia das mios € dos bragos. E princi. paimente levam consigo o instrumento da linguagem com que deram no- ime as coisas e que of situa muito acima das outros animais que permane: Ceram na inocéncia infante. Parecem mesmo destinados a serem ““deuses nna Terra ‘Olhados em seu grandioso conjunto, os epis6dios do teto da capets Sistina revelam algo que logo chama a atencao: estio inteligados por fi: suras que constituem os elos de uma imensa cadeia: os Nus. Em diversas 10sigOes, monumentais, de anatomia perfeits,atléticos, so Outras tal ‘esculturas” pintadas pot Michelangelo, resgatando 0 padrio greco: romano, Qualquer que seja 0 significado atribuido a essas figuras, ¢ inega vel que sto, antes de mais nada, corpos. Corpos humanos exaltados em sua Beleza fisica, a exibie trangdila e varladamente a majes:ade de sua nu der, Esses corpos sustentam € pontuam com serenidade apolinea a dra. matica saga da espiritualidade crista. £ 0 ideal helenico de beleza a fundir se, no Renascimento, a propria religiosidade ‘Os painéis centrais do teto estao ladieados por outa sedéncia de per: sonagens: os Profetas e as Sibilas. $20 os anunciadores, os arautos, aque Jes que, em diferentes épocas € culturas remotas, fizeram previsbes € ten taram desvelar 0 futuro, em busca de um Final que desse sentido a tudo, 4 Historia toda. Bisa longa cadeia da sabedoria vaticinadora, a apontar sem. pre para alem", para “depois”, para 0 "por-vir" — e que fala desse hori onte distant numa linguagem sempre ardente, delirante, sugestiva, am: 39 bigua, metaférica. Ai estio profetas de Israel, como Jeremias ¢ Zacatias, mas af esto também as vozes proféticas de outros povos, de outras tradi Ges: as sibilas Pérsica, Libiea, Délfica, Cumana, Eritréia. Michelangelo une, como renascentista, também no nivel da profecia, a tradi¢a0 judalco-crist’ as tradigbes do paganismo. Na verdade, 2 sequencia dos Nus e a seqiién- cla dos Profetas e Sibilas parecem sugerir que a saga da espiritualidade cris ‘esti tecida e sustentada, por um lado, pelo ideal helénico de beleza, por ‘outro, pela premonigto universal de que havera um Fin que revelari significado de toda a trama. Que sera 0 desfecho € 0 Sentido da Historia, Quando entio se fard, afinal, Justiga ara esse Final apontado pelos profetas do Velho Testamento pelas sibilas de varios povos € que toda a pintura da capela converge. Em 1512 Michelangelo descerrara, diante dos olhos ansiosos do papa Jalio i, as pin- turas do teto, apds anos de penoso trabalho que Ihe comprometeu detini- tivamente a satide. Mas s6 em 1541, jd sexagendirio, terminou 0 affesco do altar — 0 Juizo Universal —, iniciado em 1538, numa outra fase de tra balho em Roma, Somente entdo arrematou a oenamentagzo da Sistina. E 86 ento mostrou sua concepgao do que estaria pressentido por Profetas € Sibilas: Aléticos trombeteiros, embaixo, no centro, fazem soar 0 aviso de que a Hora € chegada. De um lado, ascendem os salvos, alguns ajudados por Ccompanheiros que os puxam para cima, na solidariedade da salvacio. Do jutro lado, os perdidos, os condenados, sio levados pelo terrivel Barqueito mitol6gico para o reino sombrio dos sofrimentos. Alguns aqui também se enlagam, na solidariedade ¢ no companheirismo da perdigao — como ‘© homem que tapa um dos alhos com a mao, talver para nao ver toda a extensio de seu destino, ‘Acima, no plano superior, apéstolos, santos, bem-aventurados — os salvos. H4 mesmo entre eles dois que se abragam num apertado abrago. de felicidade e reencontto: sio duas heresleas personagens, num dos mais, belos detalhes do imenso afresco. E hd também aqueles que chegam 20 reino da felicidade levando em suas maos os instrumentos de tortura que ‘martirizaram seus corpos mas burilaram suas almas. E, impressionante, 3s- cende & presenca do Juiz também a pele de si Bartolomeu, apéstolo que fora esfolado vivo antes de ser crucificado, Aqui, a dignificagao renascen- tista do corpo atinge seu ponto méximo: mesmo a pele, esse mero envol- t6rio do corpo, esse puro exterior do fisico, essa aparéncia, € salva, res- ‘gatada para a bem-aventuranga e a eternidade. A eternidade no 0 rein ‘apenas do incorporeo e das esséncias: ela acolhe, fazendo justica, também ‘98 corpos ¢ suas aparéncias temporais. No centro do aftesco: 0 Grande Juiz, Um Cristo justiceiro, também atlético, como 0 Adio, como os Nus, como 0 Deus-Criador. Imponente, soberano, ergue o braco fortissimo, no gesto que determina 0 momento 40 dda Justiga implacivel, A seu lado, recolhida, em atitude de modestia, coad juvante e também submissa a0 Justiceiro, a Bela Sentora, Nesta corte de robustos bem aventurados, a forga ea perfeicao da Jus Liga Final so mostradas pela beleza e pela forga fisica do Juiz: com Miche- langelo, na capela Sistina, o Renascimento faz outta vex 0 Espirito harmo nizar-se com a Natureza € com 0 Corpo. ar

Você também pode gostar