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O Labirinto

“Fssst, fssst” O cilindro metálico da TX-RY5 rodou sobre si


mesmo permitindo que a camada exterior descesse o espaço
suficiente - uns quarenta centímetros. Então, o núcleo emergiu
sem pudor e apontou ao alvo, libertando a sequência de ondas
electromagnéticas imperceptíveis. A máquina cumpria assim
mais uma vez e de forma quase cem por cento eficaz o seu
desígnio - apagar para sempre as recordações mais recentes
deixando no entanto intactos conteúdos de memória de longa
duração.

No meio do corredor estreito, Greg sentiu o som surgir com


uma familiaridade estranha. Olhou para si próprio descobrindo o
corpo cinzento e magro completamente nu. A nuca desprovida
de cabelos, as sobrancelhas finas com se fossem desenhadas
num único traço, os olhos com pupilas de cor mortiça –
cinzento-escura, tudo lhe indiciava a realidade da situação
desconfortável. Era um personagem abandonado, sem ocupação
ou pelo menos com uma ocupação que não entendia.

Sentiu-se apoderado de raiva surda, um poder que emergia


do “dentro de si”, força bruta que até agora desconhecera. A
memória de longa duração chegou sorrateiramente, impondo-se
passo a passo, trazendo consigo o saco contentor de pedaços de
nostalgia. Lembrou-se.

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Era uma vez senhor de seu bigode bem aparado e cabeleira
farta. A inteligência e perspicácia só se viam ultrapassadas pela
agilidade, habilidade com que manipulava espada e florete e os
usava para fazer viajar até outro mundo os inimigos do seu amo.

Era outra vez. Encarnava o pintor vagabundo e namoradeiro


que passava parte de parte dos dias junto ao cavalete e tela no
coração de Paris, em “Place du Tertre”, capturando expressão
de face de turistas. E que passava a outra parte do seu tempo
vagueando na noite, bebendo copos aqui e ali – onde calhava.
Calhava muitas vezes, quase sempre o “Boulevard Saint Michel”.

Era mais uma vez… desta feita astronauta indiano de missão


quase falhada cuja perspicácia chegou para realinhar a nave em
entrada de órbita, salvando toda a tripulação, trazendo o grupo
incólume para terra.

Era também o estudante imberbe que idealizou a revolução


de 2050, a qual acabaria por derrubar todos os poderes
instituídos do maior colosso económico e tecnológico da altura –
a China.

Era tudo e todos, tantos e bons e maus personagens que


nasciam da imaginação do velho barbudo de óculos sujos e
barriga grande. Que odiava. Ah, como detestava nesse momento
esse Deus pequenino e mesquinho, falhado, das letras! Parecia
que o estava a ver, porte de burguês, fumando cachimbo com o
pequeno “laptop” em frente, alinhando em fruto de escrita as
ordens para ele, sim ele, sempre ele, Greg, executar!

Olhou para o corpo magro e cinzento sentindo-se só e


impotente, incapaz de contestar o que quer que fosse.
Impotente para grandes filosofias. A vida era assim e pronto!

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Como simples personagem que era nada havia a fazer - nada de
protestos. Cumprir o guião era o seu destino e a sua única razão
de existir!

Virou-se e observou o corredor extenso de paredes


metálicas. Tinha de avançar e encontrar o fim da coisa. A mente
ordenou como que impulsionada por mola invisível. Os dois pés
grandes e chatos obedeceram e (de pronto) começaram a andar.

Era um passo monótono e enjoado. Sentia fadiga singular,


estranha, inusitada. Como se fizesse o percurso pela milésima
vez e no entanto não se lembrasse de nada! À sua frente, na
imensidão do corredor as paredes espelhavam a imagem que
trabalhavam e retorciam a seu “bel prazer”. Um pouco como os
homens fazem sempre com os conceitos: os desgraçados, puros
à nascença - na essência, são depois sem qualquer pudor
dobrados e desvirtuados na expressão oral e escrita.

De repente, os sentidos apurados (ou seria o guião destino?)


avisaram-no do perigo – atrás de si, a parede aproximava-se,
avançava veloz, depressa o alcançaria. Tendo pela frente apenas
um corredor feito de recta sem fim, se nada fizesse seria
esmagado. Ficaria tal e qual mosquito ao embater num pára-
brisas de carro em alta velocidade. Correu.

Estava quase a ser apanhado quando reparou na


singularidade do tecto - a altura deste aumentava um pouco.
Com agilidade que lhe era própria, saltou e colou as ventosas
dos dedos de ambas as mãos, ficando preso de forma firme ao
cimo de corredor. Quando o colosso veloz passou por baixo,
deixou-se cair e foi de boleia. Decorreu meia hora até ouvir o
“Clanc!”, sinal de que a coisa tinha terminado a sua marcha.
Então (só então) desceu.

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A menina de vestido branco estava apenas alguns metros à
frente. Fitava a superfície do líquido de forma tão atenta que
mal deu pela presença do estranho.

“Olá, como te chamas?”. Proferiu ele

Os caracóis loiros voltaram-se e mostraram a cara sardenta,


sorridente e um sorriso doce. “O meu nome é Hanna, tu deves
ser o Greg não é? Estou aqui para ajudar”. Antes que pudesse
dizer o que quer que fosse, a criança tomou-lhe a mão e
apontou para o objecto que parecia uma tigela.”Olha fixamente
para o meio e concentra-te. Quando começares a ver a água
agitar-se gerando pequenas ondas em círculos concêntricos
espera. Depois, quando ela chegar pede sem hesita. Tudo o que
quiseres”.

Agachou-se junto ao artefacto. Olhou, olhou e voltou a


olhar. Nada. Até que, um pouco mais tarde, começaram a surgir
pequenas alterações na superfície lisa - chamar-lhe ondas seria
exagero. Então, ao vir surgir a face de mulher, o seu humor
mudou.

Pela primeira vez, um esboço de sorriso florou nos lábios


“Estou farto de ser marioneta do gordo. Agora tudo mudará!”. O
pensamento que chegou era prático e cruel. ”Vamos trocar, o
filho da mãe que venha para cá fazer de personagem - de agora
em diante serei eu a pegar no laptop e na garrafa de whisky e a
escrever as ordens”.

A ideia malévola cristalizou-se e num repente a escuridão


surgiu tomando conta de tudo. Foi sem espanto que sentiu a
barriga pesada e a vista cansada. “Que raios, devo ter
adormecido”. A seu lado o pequeno Bedlington Terrier fitava a

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garrafa meio vazia. Acendeu a luz, colocou os óculos e ligou o
equipamento - havia que continuar, o texto teria de estar na
editora o mais tardar dia dez. Continuou o ofício de escrita,
monitor mostrando a génese dos pequenos caracteres: “O ser, O
ser cinz, O ser negro. Não. Negro não, não fica bem – cinzento. O
ser cinzento”.

O ser cinzento olhou em frente. Ao lado do objecto tigela de


água estava um livro do autor Pablo C. com o título

A chave do labirinto

Abriu e congratulou-se pois aquilo era justamente o que


imaginara – uma sequência de mapas. Analisou com cuidado.
“Afinal a coisa não era assim tão grande ou tão complexa. Com
aquele guia preciso, mais um pouco e estaria no ponto de saída.
Para quê deambular dias e dias a fio se tinha ali a resposta,
cómoda - servida de bandeja? Porquê expor-se a perigos e
perder tempo com perguntas?”. Sorridente e animado
continuou.

Seguiu em frente vestindo novo ânimo para logo depois virar


na primeira à direita e continuar em diante outra vez por mais
quinhentos metros. Chegou a uma sala oval para onde confluíam
e de onde partiam inúmeros corredores.”Ah, se não fosse o livro
estaria perdido!”, pensou. Consultou o guia e escolheu sem
hesitar a segunda entrada a contar da esquerda. Olhou mais
uma vez para o papel amarelecido e confirmou. Era isso, faltava
pouco, devia estar quase lá!

O corredor não era muito extenso e deixava perceber ao


fundo, sobre os degraus, o pequeno cilindro metálico. Por detrás
deste, a porta alta, com aspecto que lhe era familiar. ”Mas que

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raio…”. Olhou mais uma vez. O livro tinha desaparecido de suas
mãos. Como que por magia e porque tinha de ser. Foi então que
aconteceu. Novamente.

“Fssst, fssst”. O cilindro metálico da TX-RY5 rodou sobre si


mesmo permitindo que a camada exterior descesse o espaço
suficiente - uns quarenta centímetros. Então o núcleo emergiu
sem pudor e apontou ao alvo, libertando a sequência de ondas
electromagnéticas imperceptíveis. A máquina cumpria assim
mais uma vez e de forma quase cem por cento eficaz o seu
desígnio - apagar para sempre as recordações mais recentes
deixando no entanto intactos conteúdos de memória de longa
duração.

No meio do corredor estreito, Greg sentiu o som surgir com


uma familiaridade estranha. Olhou para si próprio descobrindo o
corpo cinzento e magro completamente nu. A nuca desprovida
de cabelos, as sobrancelhas finas com se fossem desenhadas
num único traço, os olhos com pupilas de cor mortiça –
cinzento-escura, tudo lhe indiciava a realidade da situação
desconfortável. Era um personagem abandonado, sem ocupação
ou pelo menos com uma ocupação que não entendia.

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