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VOCCCOOO OSE DOS OOOO OOO OTERAORPAMRE COD CSCS OSEDOORR 1 Encontro Internacional 33 Sao Paulo, 28-30 de abril de 1998 DENUNCIA, ANUNCIO, PROFECIA, UTOPIA E SONHO Paulo Freire BRASIL, SENADO FEDERAL “O LIVRO DA PROFECIA: 0 Brasil no Terceiro Milénio”, Brasilia, Colegao Senado, v.1, 1997. we = = SPOCHOHOHSOCHOHSSHOHSSHSHSSHHHHHHSHHPSHOHSSHHSHOHSLEHHHESHEHESOCHRCOTE ‘40 ha posstbilidade de pensarmos o amanha, mais proxi- mo ou mais remoto, sem que nos achemos em proceso permanente de “emersao” do hoje, "molhados” do tempo que vivemos, tocados por seus desafios, instigados por seus pro- blemas, inseguros ante a insensatez que anuncia desastres, tomames Justa raiva em face das injusticas profundas que ex- pressam, em niveis que causam assombro, a capacidade hu- mana de transgressao da ética. Ou também alentados por tes- temunhos de gratuita amorosidade vida, que fortalecem, em nés, a necessaria, mas 4s vezes combalida esperanga. A pré- pila ética do mercado, sob cujo império vivemos tao dramati- camente neste fim de século é, em si, uma das afrontosas transgressées da ética universal do ser humano. Perversa pela propria natureza, nenhum esforgo no sentido de diminuir ou amenizar sua malvadez a alcanga. Ela ndo suporta melhorias. No momento em que fosse amainada sua frieza ou indiferenca pelos interesses humanos legitimos dos desvalidos, o de ser, 0 de viver dignamente, o de amar, o de estudar, o de ler 0 mun- do ea palavra, o de superar o medo, o de crer, o de repousar, © de.sonhar, o de fazer coisas, o de perguntar, o de escolher, 0 de dizer ndo, na hora apropriada, na perspectiva de perma- nente sim a vida, ja nao seria ética do mercado. Etica do lucro, a cujos interesses mulheres e homens devemos nos submeter, de formas contraditoriamente diferentes: os ricos e dominan- tes, gozando; os pobres ¢ submetidos, sofrendo. Pensar o amanha é assim fazer profecia, mas 0 profeta no é um velho de barbas longas e brancas, de olhos abertos ¢ vivos, de cajado na mao, pouco preocupado com suas vestes, discursando palavras alucinadas. Pelo contrario, o profeta € 0 que, fundado no que vive, no que vé, no que escuta, no que percebe, no que intelige, a raiz do exercicio de sua curiosidade epistemolégica, atento aos sinais que procura compreender, apoiado na leitura do mundo e das palavras, antigas e novas, © 0 Livro da Profecia en 4GT a base de quanto e de como se expée, tornando-se assim cada vez mais uma presenga no mundo a altura de seu tempo, fala, quase adivinhando, na verdade, intuindo, do que pode ocorrer nesta ou naquela dimensdo de experiéncia hist6rico-social. Por outro lado, quanto mais se aceleram os avangos tecnolégi- cos e a ciéncia esclarece as razbes de velhos e insondaveis as- sombros nossos, tanto menor é a provincia histérica a ser ob- Jeto do pensamento profético. Nao creio na possibilidade de ‘um Nostradamus atual. A exigéncia fundamental a que o pensamento profético deve atender e a que me referi no comeco destas reflexdes € a de que se constitua na intimidade do hoje a partir do qual ten- ta se exercer. E deste hoje faz parte a maior ou menor intensidade com que os avangos tecnologicos ¢ 0 desvelamento cientifico do mundo vem se dando. Faz parte também de um tal pensamento a com- preenso da natureza humana que tenha o sujeito que profetiza. Para mim, ao repensar nos dados concretos da realidade, sendo vivida, 0 pensamento profético, que ¢ também utépico, implica a dentincia de como estamos vivendo e 0 aniincio de como poderiamos viver. E um pensamento esperancoso, por isso mesmo. E neste sentido que, como o entendo, o pensa- mento profético nao apenas fala do que pode vir, mas, falando de como esta sendo a realidade, denunciando-a, anuncia um mundo melhor. Para mim, um das bonitezas do antincio pro- fético esta em que ndo anuncia o que vira necessariamente, mas 0 que pode vir, ou ndo. O seu nao é um antincio fatalista ou determinista. Na real profecia, o futuro ndo é inexoravel, € problematico. Ha diferentes possibilidades de futuro. Reinsisto em nao ser possivel antincio sem dentincia e ambos sem o en- saio de uma certa posi¢ao em face do que esté ou ver sendoo ser humano. O importante, penso, é que este ensaio seja em torno de uma ontologia social e histérica. Ontologia que, acel- tando ou postulando a natureza humana como necessaria € inevitavel nao a entende como uma a priori da Historia. A natureza humana se constitui social e historicamente. Na verdade, nao pode faltar ao discurso profético a di- mensao da dentincia, o que o reduziria ao discurso da cigana 672 Livro da Profecia ® ou ao da cartomante. Implicitando a analise critica do presen: te e denunciando as transgressées aos valores humanos, 0 discurso profético anuncia o que poderd vir. Tanto 0 que pode- ra vir se retificacdes forem feitas nas politicas que foram de- nunciadas quanto 0 que pode ocorrer se, pelo contrario, tais politicas se mantiverem. Contra qualquer tipo de fatalismo, o discurso profético in- siste no direito que tem o ser humano de comparecer Hist6- ria nao apenas como seu objeto, mas também como sujeito. 0 ser humano é, naturalmente, um ser da intervengao no mun- do a razdo de que faz a Historia. Nela, por isso mesmo, deve deixar suas marcas de sujeito e ndo pegadas de puro objeto. Inacabado como todo ser vivo ~ a inconclusao faz parte da experiencia vital - 0 ser humano se tornou, contudo, capaz de reconhecer-se como tal. A consciéncia do inacabamento 0 in- sere num permanente movimento de busca a que se junta, ne- cessariamente, capacidade de intervengao no mundo, mero ‘suporte para os outros animais. S60 ser inacabado, mas que chega a saber-se inacabado, faz a historia em que socialmente se faz e se refaz. O ser inacabado, porém, que néo se sabe as- sim, que apenas contacta o seu suporte, tem historia, mas nao a faz. O ser humano que, fazendo historia, nela se faz, conta nao s6 a sua, mas também a dos que apenas a tém. Uma das diferencas fundamentals entre o ser que inter- vem no mundo e o que puramente mexe no suporte é que, en- quanto o segundo se adapta ou se acomoda ao suporte, o pri- meiro tem na adaptacdo um momento apenas do processo de sua permanente busca de insergdio no mundo. Adaptando-se & realidade objetiva, o ser humano se prepara para transforma- la. No fundo, esta “vocagao" para a mudanca, para a interven- co no mundo, caracteriza 0 ser humano como projeto, da mesma forma que sua interven¢ao no mundo envolve uma cu- riosidade em constante disponibilidade para, refinando-se, al- cangar a razdo de ser das coisas. Esta vocacao para a inter- vengo demanda um certo saber do contexto com o qual o ser relaciona ao relacionar-se com os outros seres humanos € a0 qual nao puramente contacta como fazem os outros animais com o seu suporte, Demanda igualmente objetivos, como uma © O Livro da Profecia 673 ececece tor aneira de intervir ou de atuar que implica uma outra pratica: ade avaliar a intervencdo. Seria uma contradi¢o se, inconcluso € consciente da in- conclusao, 0 ser humano, histérico, ndo se tornasse um ser da busca. Ai radicam, de um lado, a sua educabilidade: de ou- tro, a esperanca como estado de espirito que Ihe é natural. Toda procura gera a esperanga de achar e ninguém é esperan- oso por teimosia. E por isso também que a educagao € per- manente. Como ndo se da no vazio, mas num tempo-espago ou num tempo que implica espaco ¢ num espaco temporaliza- do, a educacao, embora fenomeno humano universal, varia de tempo-espaco a tempo-espaco. A educacao tem historicidade. O que se fez na Grécia antiga nao é exatamente o que se fez na Roma também antiga. Assim também nao poderia ter sido Tepetida no medievo europeu o que se fez com a Areté herdica na velha Grécia. Da mesma forma, novas propostas pedagogi- cas se fazem necessarias indispensaveis e urgentes 4 pos-mo- dernidade tocada a cada instante pelos avancos tecnolégicos. Na era da computagao nao podemos continuar parados, fixa- dos no discurso verbalista, sonoro, que faz o perfil do objeto para que seja aprendido pelo aluno sem que tenha sido por ele apreendido. Uma das coisas mais significativas de que nos tornamos capazes mulheres ¢ homens ao longo da longa his- toria que, feita por nés, a nés nos faz e refaz, é a possibilidade que temos de reinventar 0 mundo e nao apenas de repeti-lo, ou reproduzi-lo. O jodo-de-barro faz 0 mesmo ninho com a mesma perfeigéo de sempre. Sua "engenhosidade" no fazer 0 ninho se acha na espécie e ndo no individuo Jodo de Barro, este ou aquele, mais ou menos enamorado de sua parceira. Entre nés, mulheres e homens, nao. O ponto de deciso do que fazemos se deslocou da espécie para os individuos e nés individuos estamos sendo 0 que herdamos genética e cultural- mente. Tornamo-nos seres condicionados e ndo determinados. § exatamente porque somos condicionados e nao determina- dos que somos seres da decisdo e da ruptura. E a responsabi- lidade se tornou uma exigéncia fundamental da liberdade. Se fossemos determinados, nao importa por qué, pela raca, pela cultura, pela classe, pelo género, ndo tinhamos como falar em liberdade, decisdo, ética, responsabilidade. Nao seriamos edu- 874 0 Livro da Profecia ® POSS CCC SSS OES OC COOO LCOS CON) cAveis, mas adestraveis. Somos ou nos tornamos educaveis porque, ao lado da constatacao de experiéncias negadoras da liberdade, verificamos também ser possivel a luta pela liberda- de ¢ pela autonomia contra a opressao ¢ 0 arbitrio. Foi a impossibilidade de ir mais além dos fatores determi- nantes, de supera-los, que nos tornou seres condicionados. E sO se vai mais além dos fatores determinantes, 0 que os trans- forma em fatores condicionantes, se se ganha a consciéncia deles e de sua forca. Mesmo que isto ndo seja suficiente. Nao haveria como falar em liberdade sem a consciéncia da determinacdo que se torna assim condicionamento. Creio que este é um dos principios da eficdcia psicoterdpica. Advirtamo-nos de que, anulando a importancia da conscién- cia ou da subjetividade na Historia, reduzida a consciéncia entéo a puro reflexo da materialidade, as concepgées mecanicistas da Historia e da consciéncia se concretizam em fungées inviabiliza- doras de educacao. Decretam a inexorabilidade do futuro que implica necessariamente a morte do sonho e da utopia. A educa- 40 vira treinamento, quase adestramento, no uso de técnicas. Tornando-nos capazes de inteligir 0 mundo de comunicar © inteligido, de observar, de comparar, de decidir, de romper, de escolher, de valorar, nos fizemos seres éticos. Por isso, também, capazes de transgredir a ética. Na verdade, s6 0 ser que eticisa pode negar a ética. E por isso que uma de nossas brigas fundamentais ¢ da preservagao da ética, é a de sua de- fesa contra a possibilidade de sua transgressdo. E é por isso também que a briga contra as concepgées € as praticas meca- nicistas que inferiorizam 0 nosso papel no mundo devemos nos entregar com a clareza filoséfica indispensdvel a pratica politica de quem se sabe mais, muito mais, do que pura pedra no jogo de regras ja feitas. E pela reflexdo em toro desta dimensdo de nossa presen- ¢a politica e humana no mundo que gostaria de comecar a andlise de alguns dos desafios que nos instigam hoje € se alongarao pelos comegos do século que vem. Analise em que, vez ou outra, voltarei a algum ponto ja tocado, mas, espero, com que nao cansaref 0 leitor. © 0 Livro da Profecia 675 destes S$ no sugere impor- tancia maior ou menor de cada um deles. E apenas a ordem em que esto vindo a mim ou a em que estarel indo a eles. A negacdo atual do sonho e da utopia e a briga por eles, agora e no comego do século que vem Vem sendo uma das conotagées fortes do discurso neolt- beral e de sua pratica educativa no Brasil e fora dele, a recusa ‘sistemAtica do sonho e da utopia, o que sacrifica necessaria- mente a esperanca. A propalada morte do sonho e da utopia, que ameaca a vida da esperanca, termina por despolitizar a pratica educativa, ferindo a propria natureza humana. A morte do sonho e da utopia, prolongamento conseqiien- te da morte da Historia, implica a imobilizagao da Historia na Teducao do futuro a permanéncia do presente. O presente "vi- torioso" do neoliberalismo é o futuro a que nos adaptaremos. Ao mesmo tempo em que este discurso fala da morte, do so- nho e da utopia e desproblematiza o futuro, se afirma como um discurso fatalista. "O desemprego no mundo é uma fatali- dade do fim do século". "E uma pena que haja tanta miséria no Brasil. A realidade porém é assim mesmo. Que fazer?" Ne- nhuma realidade é assim porque assim tem de ser. Esta sen- do assim porque interesses fortes de quem tem poder a fazem assim, Reconhecer que o sistema atual ndo inclui a todos, nao basta, E necessario precisamente por causa deste reconheci- mento lutar contra ele ¢ ndo assumir a posicao fatalista forja- da pelo proprio sistema e de acordo com a qual “nada ha que fazer, a realidade é assim mesmo’. Se o sonho morreu e a utopia também, a pratica educati- va nada mais tem que ver com a dentincia da realidade malva- da e o antincio da realidade menos feta, mais humana. Cabe a educagao como pratica rigorosamente pragmatica - no no sentido deweyano - treinar os educandos no uso de técnicas e principios cientificos. Tyeina-los, nada mais. O pragmatismo neoliberal nao tem nada que ver com formagao. 676 0 Livro da Profecia ® E neste sentido que se tem apregoado, ideologicamente tambem, que a pedagogia critica ja era: que o esforco da cons- cientizacao é uma velharia suburbana. Sem sonho e sem uto- pia, sem dentincia e sem amtncio, sé resta treinamento téc- nico a que a educagao é reduzida. Em nome da natureza humana, de que tanto falei, me re- belo contra esse "pragmatismo" amesquinhador e afirmo a pratica educativa que, coerente com o ser que estamos sendo, desafia a nossa curiosidade critica e estimula o nosso papel de sujeito do conhecimento e da reinvengao do mundo. Esta, no meu entender, é a pratica educativa que vem sendo exigida pelos avancos tecnolégicos que caracterizam o nosso tempo. Despolitizando a educacao e reduzindo-a ao treino, de destrezas a ideologia e a politica neoliberais terminam por ge- rar uma pratica educativa que contradiz ou obstaculiza uma. das exigencias fundamentais do proprio avango tecnologico. A de como preparar sujeitos criticos capazes de responder com presteza a eficacia a desafios inesperados ¢ diversificados. Na verdade, o treinamento estreito, tecnicista, habilita o educando a repetir determinados comportamentos. O de que precisa- mos, contudo, é algo mats do que isto. Precisamos, na verda- de, de saber técnico real, com 0 qual respondamos a desafios tecnologicos. Saber que se sabe compondo um universo maior de saberes. Saber que nao estranha legitimas perguntas a ser feitas em torno dele: em favor de que ou de quem; contra que ou contra quem é usado. Saber que nao se reconhece indife- rente a ética e A politica, mas ndo a ética do mercado ou a po- litica desta ética. O de que precisamos é a capacidade de ir mais além de comportamentos esperados, é contar com a curiosidade critica do sujeito sem a qual a invencdo e a rein- vengao das coisas se dificultam. O de que necessitamos € 0 desafio a capacidade criadora e curiosidade que nos caracte- rizam como seres humanos e nao deixa-las entregues ou qua- se entregues a si mesmas. Pior ainda: dificultar 0 seu exerci- cio ou atrofid-las com uma pratica educativa que as inibe. E neste sentido que o ideal para uma op¢do politico-conservado- ra é a pratica educativa, que "treinando” tanto quanto possivel a curiosidade do educando no dominio técnico, ingenuize ao © 0 Livro da Profecia 677 P.OCOP ASS OESO SS LGO SOOO FOO® 000080000 COSHEECCEESEES bot PO OSOSOOOHSOHHOHHOHOHSOHHSESHHHHSSHHHOESCOE Fee, Scan te teis aunt sea oe te eae tones Se eae Se. 8 Fe na polis. Eficacia técnica, ineficacia cidada. Eficacia técnica e ineficacia cidada a servico da minoria dominante. A Histéria como determinacao, o futuro como um dado inexoravel versus a Histéria como possibilidade, o futuro problematizado Estar no mundo, para nés, mulheres e homens, significa estar com ele ¢ com os outros, agindo, falando, pensando, re- fletindo, meditando, buscando, inteligindo, comunicando 0 in- teligido, sonhando e referindo sempre a um amanhd, compa- rando, valorando, decidindo, transgredindo principios, encar- nando-os, rompendo, optando, crendo ou fechados as crengas. © que nao é possivel é estar no mundo, com o mundo e com 9s outros, indiferentes a uma certa compreensao de por que fazemos 0 que fazemos, de a favor de que ¢ de quem fazemos, de contra que € contra quem fazemos 0 que fazemos. O que nao é possivel é estar no mundo, com o mundo e com os ou- tros, sem estar tocados por uma certa compreenso de nossa propria presenga no mundo. Vale dizer, sem uma certa inteli- gencia da Histéria e de nosso papel nela. Estou certo, @ luz de como vimos nos experimentando hoje, ora marcados por uma compreensao preponderantemen, te ingénua da Histéria de nosso mover-nos nela, cujo princi- pio fundamental é 0 destino ou o fado, ora submetidos a ideo- logia nao menos fatalista embutida no discurso neoliberal, de acordo com a qual mudar é sempre dificil, quase impossivel, se a mudanga se acha em favor dos pobres, porque a realida- de é assim mesmo, de que, numa perspectiva democratica coerente com a natureza humana, o empenho a ser intensa- mente vivido por nés deve ser em favor de uma concepcao da Historia como possibilidade. Na Historia como possibilidade nao ha lugar para o futuro inexoravel. Pelo contrario, ele é sempre problematico. Sublinhe-se ainda que a inteligéncia da Histéria como possibilidade implica reconhecer ou constatar a importancia da consciéncia no processo de conhecer, de intervir no mun- 678 0 Livro da Profecia ® do. A Historia como tempo de possibilidade pressupée a capa: cidade do ser humano de observar, de conhecer, de comparar, de avaliar, de decidir, de romper. de ser responsavel. De ser ético, assim como de transgredir a propria ética. Nao é possi- vel educar para a democracia, para a liberdade, para a res- ponsabilidade ética na perspectiva de uma concepeao determi- nista da Historia. Nao é possivel, por outro lado, educar para a democracia ou experimenta-la sem o exercicio critico de reconhecer 0 sen- tido real das agées, das propostas, dos projetos sem a inda- gacdo em tomo da possibilidade comprovavel de realizagao das promessas feitas sem se perguntar sobre a real impor- tancia que tem a obra anunciada ou prometida para a popu- lagao como uma totalidade bem como para cortes sociais da populagio. Afinal, a favor de que projeto de cidade esta ou aquela obra trabalha. E este um projeto modernizante que exclui mais do que inclui setores desvalidos da populacao? E um projeto que, mesmo necessario 4 cidade, nao se constitui como uma prioridade urgente em face da indigéncia em que se acham Areas sociais da cidade? E 0 caso, por exemplo, de ta- nel a ser construfdo ligando um bairro rico e embelezado a ou- tro bairro igualmente bonito e bem tratado. Mas, que fazer nas areas periféricas da mesma cidade, carentes de esgoto, de Agua, de pragas, de transporte, de escolas? Os partidos pro- gressistas ndo podem calar diante disto. Os partidos progres- sistas nao podem emudecer, renunciando sua tarefa de dizer a palavra utopica, palavra que denuncia e anuncia. E nao por- que tenham raiva incontida dos chamados bem nascidos, mas porque faz parte de sua propria natureza a briga contra as in- justigas. © debate em tomo do que representa de injusto certa “politica do fazer" é to necessariamente ideolégico quanto a pratica de fazer coisas. Nenhum administrador se acha into- cado de preferéncias ideolégicas e politicas, angelicalmente bem comportado quando prefere construir um tunel ligando um bairro rico a outro de sua cidade em lugar, por exemplo, de um jardim arborizado e acolhedor ou uma escola numa © O Livro da Profecia td 09g SCOHOHSHHSSSSSNSSHSHHSSHOHHSS|SSHSSSEHHSECLOEESSSCOESOECE rea periférica da cidade. Nao me convencem as analises poli- ticas que afirmam a mudanca de comportamento politico das classes populares ou dos eleitores em geral, recusando, dizem, 08 bla-bla-blis ideol6gicos e apoiando as politicas de fazer col- sas. Em primeiro lugar, o tipo de analise ideologico e politico a que me referi antes deve continuar a ser feito. Havera, por exemplo, discurso mais ideolgico do que 0 de certo homem pUblico que. sem nenhuma indecisdo, declarou: "Fago obras nas areas da cidade que pagam impostos” como se as popula- es discriminadas da periferia ndo pagassem impostos e de- Fessem ser punidas pelo poder pablico, por serem pobres ¢ feias. Minha posicdo é a seguinte: mesmo que esta modificagao no comportamento politico estivesse sendo comprovada, a po- sido politico-pedagégica dos partidos progressistas deveria insistir na andlise de a quem mais servem as obras dos que Tepousam sua propaganda no que fazem. O fato de fazerem nao isenta quem faz da andlise critica do que fez, de por que fez, para quem, a favor de quem, por quanto fez, etc. A ques- t4o fundamental na pratica politica nao é o puro fazer coisas, mas em favor de que e de quem fazer coisas, que implica, em certo sentido, contra quem fazer coisas. Como nao é possivel separar politica de educagdo, 0 ato Politico é pedagégico ¢ 0 pedagogico é politico, os partidos pro- gressistas, interessados na desocultagao de verdades, preci- sam jogar-se, até quixotescamente, no esclarecimento de que nenhum tinel, nenhum viaduto, nenhuma alameda, nenhu- ma praca, se explica por si mesmos ou por si proprios. En- quanto experiéncia pedagégica, 0 ato politico nao pode redu- Zir-se a um proceso utilitario, interesseiro, imediatista. E pre- ferivel, as vezes, perder uma elei¢ao, mas continuar fiel a prin- cipios fundamentais coerentes com os sonhos proclamados. O de que os partidos progressistas precisam em lugar de arquivar sua tarefa utdpica de discutir esperangadamente a raz4o de ser das coisas, é aprender com o proprio povo como melhor se comunicar com ele. Como melhor comunicar a ele a inteligéncia que fazem ou que estdo tendo de seu tempo e de seu espaco. oJ 0 Livro da Profecia ® Como um educador progressista nem posso perder-me em discursos descontextualizados, agressivos, inoperantes, autoritarios e elitistas, nem tampouco acomodar-me a apre- ciagdes populares indiscutivelmente erradas como: “rouba mas faz". Nem posso achar que 0 povo € ingrato porque nao votou em quem me parecia melhor nem afirmar ou aplaudir seu acerto, tomando-o como modelo de minha retificacao poli- tico-ideolégica. Respeito o povo na sua escolha, mas continuo na minha luta contra a falsificacao da verdade. Considerar a andlise da politica de fazer coisas - viadu- tos, tineis, avenidas - e a indagacdo de a favor de que e de quem, contra que e contra quem se fazem as coisas como bla- bla-blas inoperantes e esquerdistas tem a mesma natureza ideologica do discurso neoliberal que, negando o sonho e a utopia, ¢ despolitizando a educagao, a reduz a puro treina- mento tecnicista. Para mim, por mais que se apregoe hoje que a educagao nada mais tem que ver com 0 sonho, mas com o treinamento técnico dos educandos, continua de pé a necessidade de insis- tirmos nos sonhos e na utopia. Mulheres e homens, nos tor- namos mais do que puros aparatos a serem treinados ou adestrados. Nos tornamos seres da opeao, da decisdo, da in- tervengao no mundo. Seres da responsabilidade. Etica do mercado versus ética universal do ser humano ‘Valemos tanto quanto esteja sendo ou possa ser 0 nosso poder de compra. Tanto menos poder de compra quanto me- nos poder ou crédito tem nossa palavra. As leis do mercado sob cujo império nos achamos estabelecem, com rigor, 0 ucro como seu objetivo precipuo e irrecusavel. E o lucro sem limi- tes, sem condigées restritivas 4 sua produgao. O tinico freio a0 lucro é 0 lucro mesmo ou 0 medo de perdé-lo. Discurso que sequer poderia ser considerado ridiculo por aplicadores no mercado financeiro internacional porque abso- lutamente ininteligivel, seria o que falasse a eles € a elas dos riscos a que sua especulagdo desenfreada expée economias © O Livro da Profecia 681 FOR desarmadas ou menos protegidas. Menos inteligivel ainda se tornaria o discurso se seu sujeito se alongasse em conside- ragées que, ultrapassando a estreita e perversa ética do mercado e do lucro, falasse na defesa da ética universal do ser humano. Se alguma resposta o discurso humanista provocasse se- ria em torno da existéncia concreta de uma tal ética ou nado. O Sujeito do discurso seria considerado um roméntico, um visio- nario, idealista inconformado com o rigor da objetividade. De fato, o discurso fatalista que diz: "A realidade é assim mesmo, que fazer?", decretando a impoténcia humana, suge- Te-nos a paciéncia e a astiicia para melhor nos acomodar A vida como realidade intocavel. No fundo, é 0 discurso da compreensao da Histéria como determinagdo. A globalizagéo tal qual esta ai é inexoravel. Nao ha o que fazer contra ela se- ndo esperar, quase magicamente, que a democracia, que ela vem arruinando, se refaca em tempo de deter sua agdo des- truidora. Na verdade, porém, faz to parte do dominio da ética uni- versal do ser humano a Iuta em favor dos famintos e destroga- dos nordestinos, vitimas ndo sé das secas, mas, sobretudo, da malvadez, da gulodice, da insensatez dos poderosos, quanto a briga em favor dos direitos humanos, onde quer que ela se trave. Do direito de ir e vir, do direito de comer, de vestir, de dizer a palavra, de amar, de escolher, de estudar, de traba- Inar. Do direito de crer e de nao crer, do direito 4 seguranca e a paz. Uma das certezas de que me acho certo, hoje, é que, se, realmente, queremos superar os desequilibrios entre Norte ‘Sul, entre poder e fragilidade, entre economias fortes e econo- mias fracas, ndo podemos prescindir da ética, mas, obviamen- te, ndo da ética do mercado, Para a busca de uma tal ampla e profunda superacdo ne- cessitamos de outros valores que no se gestam nas estrutu- ras forjadoras do lucro sem freio, da visdo individualista do mundo, do salve-se-quem-puder. A questéo que se coloca. numa perspectiva que nao seja de um lado, idealista, de 682 (O Livro da Profecia ® ‘outro, mecanicista, écomoviver eexperimentar, por exem| a solidariedade sem a qual nao ha a superacao do lucro sem controle, na dependéncia apenas do medo de perdé-lo. Recuso, como pura ideologia, a afirmacdo, tantas vezes neste texto criicada, de que a miséria é uma fatalidade do fim do século. A miséria na opuléncia é a expressdo da malvadez de uma economia construida de acordo com a ética do merca- do, do vale-tudo, do salve-se-quem-puder, do cada-um-por-si. Um bilhao de desempregados no mundo, de acordo com a Organizagao Internacional do Trabalho. E muita fatalidade! mundo aspira a algo diferente como, por exemplo, ener a faganha de viver uma provincia da Historia me- nos feia, mais plenamente humana, em que o gosto da vida nao seja uma frase-feita, nao outro caminho, mas a reinven- ‘cdo de si mesmo que passa pela necessdria superagao da eco- nomia do mercado. A questo da violéncia ‘A questéo da violéncia ndo sé fisica, direta, mas sub-rep- ticia, simbdlica, violencia e fome, violencia ¢ interesses econd- micos das grandes potencias, violéncia e religiao, violencia ¢ politica, violéncia e racismo, violéncia € sexismo, violéncia € classes socials. a tbolicdo, se- A luta pela paz, que néo significa a luta pela aboli quer pela negache dos conflitos, mas pela confrontacao justa, critica dos mesmos e a procura de solucées corretas para eles é uma exigéncia imperiosa de nossa época. A paz, porém, nao precede a justica. Por isso a melhor maneira de falar pela paz é fazer justia. : : : or Ninguém domina ninguém, ninguém rouba ninguém, guém discrimina ninguém, ninguém destrata ninguém sem ser legalmente punido. Nem os individuos, nem os povos, nem as culturas, nem as civilizagdes. A nossa utopia, a nossa sa insani- dade é a criagao de um mundo em que o poder se assente de tal maneira na ética que, sem ela, se esfacele e nao sobreviva. © 0 Livro da Profecia 683, 2¢.eee t9E. mcoes um tal mundo a grande tarefa do poder politico é ga- rantir as liberdades, os direitos e os deveres, a justica, e no respaldar 0 arbitrio de uns poucos contra a debilidade das maiorias. Assim como nao podemos aceitar 0 que venho cha- mando “fatalismo libertador", que implica o futuro desproble- matizado, o futuro inexoravel, nao podemos igualmente acei- tar a dominacdo como fatalidade. Ninguém me pode afirmar categoricamente que um mundo assim, feito de utopias, ja- mais sera construido. Este é, afinal, 0 sonho substantivamente democratico a que aspiramos, se coerentemente progressistas. ‘Sonhar com este mundo, porém, nao basta para que ele se con- cretize. Precisamos de lutar incessantemente para construi-lo. Seria horrivel se tivéssemos a sensibilidade da dor, da fome, da injustica, da ameaca, sem nenhuma possibilidade de captar a ou as razdes da negatividade. Seria horrivel se ape- nas sentissemos a opressdo, mas nao pudéssemos imaginar um mundo diferente, sonhar com ele como projeto e nos en- tregar a luta por sua construcao. Nos fizemos mulheres e ho- mens experimentando-nos no jogo destas tramas. Nao somos, estamos sendo. A liberdade nao se recebe de presente, é bem que se enriquece na luta por ele, na busca permanente, na medida mesma em que nao ha vida sem a presenca, por mini- ma que seja, de liberdade. Mas apesar de a vida, em si, impli- car a liberdade, isto nao significa, de modo algum, que a te- nhamos gratuitamente. Os inimigos da vida a ameacam cons- tantemente. Precisamos, por isso, lutar, ora para manté-la, ora para reconquista-la, ora para amplid-la. De qualquer ma~ neira, porém, nao creio que o nticleo fundamental da vida, a liberdade © 0 medo de perdé-la, possa ser jamais supresso. Ameacado, sim. Da vida entendida na totalidade da extensao do conceito e nao s6 vida humana, vida que, implicando a li- berdade como movimento ou permanente busca, implica tam- bem cufdado ou medo de perdé-la. Liberdade e medo de per- der a vida engendrando-se num niicleo mais fundo, indispen- savel a vida, 0 da comunicacdo. Neste sentido me parece uma contradicao lamentavel fazer um discurso progressista, revo- luctonario e ter uma pratica negadora da vida. Pratica polut- dora do ar, das aguas, dos campos, devastadora das matas. Destruidora das arvores, ameacadora dos animais e das aves. ost O Lioro da Profecia ® mento de O Capital, discutindo o ea Gan face do trabatho do outro animal, diz Marx que nenhuma abelha se compara ao mais "acanhado" mestre-de- obras. E que o ser humano antes mesmo de produzir 0 objeto tem a capacidade de idea-lo. Antes de fazer a mesa, o operario a tem desenhada na "cabeca’. Esta capacidade inventiva que implica a comunicativa existe em todos os niveis da experiéncia vital. Os seres huma- nos, porém, conotam sua atividade criativa ¢ comunicante de mareas exchusivamente suas. A comunicagao existe na vida, mas a comunicagéo humana se processa também e de forma especial na existéncia, uma das invengées do ser humano. forma como 0 operario tem na cabeca o dese- nho 0 ee val produzir em sua oficina, nés. mulheres ¢ ho- mens, como tais, operarios ou arquitetos, médicos ou enge- nheiros, fisicos ou professores, temos também na cabeca, mais ou menos, 0 desenho do mundo em que gostariamos de viver. Isto é a utopia ou o sonho que nos instiga a lutar. © sonho de um mundo melhor nasce das entranhas de seu contrario. Por isso corremos 0 risco de tanto idealizarmos 0 mundo melhor, desgarrando-nos do nosso concreto, quanto 0 de, demasiado “aderidos" ao mundo concreto, submergirmo- nos no imobilismo fatalista. Ambas posigées sao alienadas. A posicao critica € a em que, tomando distancia epistemologica da concretude em que estou, com o que a conheco melhor, descubro que a tinica for- ma de dela sair esta na concretizacaa do sonho, que vira, en- téo, nova concretude. Por isso, aceitar o sonho do mundo me- Ihor e a ele aderir € aceitar entrar no proceso de cria-lo. Pro- cesso de luta profundamente ancorado na ética. De Iuta con- tra qualquer tipo de violencia, De violencia contra a vida das arvores, dos rios, dos peixes, das montanhas, das cidades, marcas fisicas de memérias culturais ¢ hist6ricas. De violén- cia contra os fracos, os indefesos, contra as minorias ofendi- das. De violéncia contra os discriminados nao importa a razio da discriminagdo. De luta contra a impunidade que estirm no momento entre nés 0 crime, 0 abuso, 0 desrespeito aos mais fracos, o desrespeito ostensivo a vida. Vida que, na de- 685 © 0 Livro da Profecia eeoee tot SCHOOCHOHSHSHSHSSHSOSHSSHOS OHS SHOSHSHEHSHHOSSOSHSSESESOEOSEY sesperada € tragica forma de estar sendo de certa faixa da po- Pulagao, se continua ainda sendo um valor, é um valor sem estimacao. E algo com que se Joga por um tempo qualquer de que 86 0 acaso fala. Vive-se apenas enquanto ndo morto se pode provocar a vida. Luta contra o desrespeito a coisa publica, contra a menti- ra, contra a falta de escriipulo. E tudo isso, com momentos, apenas, de desencanto, mas sem jamais perder a esperanca. Nao importa em que sociedade estejamos e a que sociedade pertencamos, urge lutar com esperanca e denodo. CJ (0 Livro da Profecia © CONCILIACAO OU RUPTURA |Paulo Mercadante pot

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