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O rei Artur demorava- seem scus Ddomirsios, sozanido de svande paz por Mwwitos dias. Nesse Pperioso, celebrou o igasamento de uma ha sua. muito Mais gentil ndo se encontraria até Ralés. Der S80 rei Caradoc de Vannes, que muito se LGR reiubilow. < @ desposow sens dermora. Havin na corte wr eavaleire de nome Eliayrés, que ora Parente do senescal: mago encantador igual 50 haveria jamais. Amava tanto a bela Veaive como ninguem podcria amar via mulher S229) Hontiticin Zpoiversitate Catilicn do Pio te —ancito ENSAIOS ARTURIANOS Apresentados como parte do curso LET 2383, Formaro ¢ Transformagao da Narrativa, tendo como tépico: A Matéria da Bretanha nos Séculos XII e XIII Coordenadora: Eliana Lucia M. Yunes Garcia Docente: Antonio L. Furtado Periodo: 2003.1 Capa de Eliane Bettocchi Departamento de Letras Pontificia Universidade Catolica do R. J. Sumario 2 O Enigma da Mulher - 3 Eliana Yunes + Idade Mistica: A matéria da Bretanha no contexto do RPG - 5 Carlos E. Klimick Pereira e Eliane Bettocchi + Amor e Erotismo na Idade Média: Uma perspectiva literaria a partir das obras Amadis de Gaula eA Demanda do Santo Graal - 17 Cleide Maria de Oliveira + AsVozes Femininas em Perceval - 30 Cristina Almeida + Adaptagées Cinematograficas Arturianas: Excalibur, Lancelot e As Brumas de Avalon - 45 Irene Bosisio Quental + Da Cavalaria a Ficeao Cientifica: O rei Artur e os cavaleiros da Tavola Redonda em quadrinhos - 54 Mario Feijé Borges Monteiro + Leir e Rei Lear - 67 Renata Christovao Battin + Ritmo e Descri¢o: A marca anénima do estilo nas crénicas arturianas- 76 Roberto Dutra Junior + Do Motivo da Falsa Noiva ao Tema da Inveja: Um percurso de leitura comparada de trés contos de Grimm ao episédio de “A Falsa Genevra” - 83 Sylvia Maria Trusen +O Eterno Retorno do Cavaleiro ao Reino do Caos: Apontamentos quanto 4 leitura das intertextualidades nas ficsées arturianas- 106 Alex Jesus de Souza + Caradoc do Braco Inchado e 0 Desafio do Auto-conhecimento - 112 Terezinha de Fatima Sanches Bussad + A Ultima Nau para Avalon — D. Sebastido: A histéria, 0 mito, a lenda - 120 Claudio de Sa Capuano O Enigma da Mulher Eliana Yunes ‘Tradugfo e adaptagio livre eleborada em julho de 1995+ Voltando de uma das disputas em que estava envolvido com seus cavaleiros da Tavola Redonda, Arthur penetrou um bosque junto ao acampamento, distante ainda do reino de Camelot, Vagava pensativo, com o cora;o em tumulto, recordando a rainha Guenevire, quando foi surpreendido por um guerreiro, de amadura e cavalo negros. Ali desamparado, & mercé da morte, Arthur propds-Ihe um desafio em campo aberto, pois seria indigno para qualquer cavaleiro tirar a vida ao rei desarmado. Conhecendo as Iendas em tomo da espada de Escalibur, o inimigo vacilou por um instante para em seguida decidir por outra arena de luta ao final de um ano, Arthur deveria voltar ao bosque, neste mesmo lugar, com a resposta para o seguinte enigma O que mais deseja uma mulher de um homem? Caso nfo tivesse a solugo correta, Arthur morreria A caminhada para Camelot nao aliviou o rei, que afinal se viu obrigado a partilhar suas ‘angistias, com seu cavaleiro de armas e companheiro de lutas Gawen, Acertaram entéo percorrer 0 reino consultando homens de todas as classes e origens, guerreiras, aldedes, lordes e principes que especulavam com as caréncias e fragilidades femininas. Mas Arthur intuia, do fundo de seu coraso, que nfo havia encontrado a resposta justa ‘Uma tarde, voltando ao mesmo sitio em que o enigma Ihe fora proposto, surpreendeu-se a0 encontrar uma mulher disforme como uma bruxa que Ihe disse conhecer 0 motivo de seu desassossego. Comprometia-se a ajudélo contanto que Arthur Ihe desse sua palavra de rei que a faria casar-se com seu sobrinho amado. Retomando desalentado ao palacio ouviu de Gawen que mil vezes amiscara sua vida por Arthur e agora, de bom grado, se casaria com ‘uma bruxa, se isto pusesse a salvo o Senhor da Tavola Redonda. Arthur voltou ao basque e selau 0 pacto com a velha mulher que, exigindo-Ihe segredo absoluto, entregow-lhe a chave do enigma Poucos meses mais tarde foi a vez de o cavaleiro negro alcangar Arthur nas sombras do bosque e cobrar-lhe a resposta O rei desfiow-lhe uma apés a outra as que colhera pelo reino, na esperanga de livrar o sobrinho de téo cruel destino. Percebendo que o tempo se escoava, ofereceu-Ihe a solugo que a bruxa lhe segredara viu-se, ento, liberto e vitorioso naquele combate estranho. Agora restava-lhe cumprir com sua palavra e realizar as bodas de Gawen com a mulher desfigurada As paredes de pedra do castelo engalanaram-se com guitlandas de flores do campo suspensas em cordées, os veludos foram escovados, as tochas ¢ arandelas acenderam-se Javalis e faisées foram capados para o banquete e os tapetes desenrolados para aquecer os frios corredores. Ja se fazia ouvir das torres aos calaboucos amiisica dos alatides e flautas. Quando o principe adentrou os sales trazendo pela mao a mulher em rugas e andrajos, recobertos apenas por uma capa de seda esplendorosa, presente do noivo, toda a corte de Camelot recuou. O quadro era patético ¢ ninguem atinaria com a razfo pela qual Gawen fizera tal escolha abjeta A alegria da festa esvaiu-se e silenciou-se o brinde nas tazas de * Reproduzida sam peimissio da autora. A nattativaesté no poema The Weddynge of Sir Gawen and Dame RagnellAinda mals conhecida ¢ a versio em prova do velato da comadre de Bath, que figura em The Canterbury Talee de Chavcet, estanho, Um clima fiinebre desceu sobre o castelo e a mulher, constrangida pelos olhares, procurava arrastar o esposo para os aposentos de mipcias. Recolhidos sozinhos a sua camara o principe se viu intimado por sua honra a cumprir seus deveres de esposo. De costas para a mulher, entre resoluto e perplexo, despojou-se das roupas e voltou-se: diante dele estava a mais linda jovem que seus olhos jamais tinham visto Revelou ela com voz doce ¢ ares de cisne que era uma princesa enfeiticada cujo encanto se quebrara — em parte — no momento em que ele decidira de fato, fazéla sua mulher apesar da repugnéncia Mas 0 poderoso feitigo ainda o obrigaria a uma dura escolha poderia té-la noite como uma princesa e bruxa durante o dia ou ao contratio, vé-la no quarto como velha e exibi-la aluz como uma jovem mulher Gawen, tomado pela surpresa, mal conseguia pensar, os sentimentos em turbilhio no Ihe permitiam optar entre o prazer de té-la & noite entre os braros com sua pela perfumada ou livré-la do repiidio de toda Camelot que durante o dia lhe perseguiria Cando de joelhos aos pés da mulher, com 0 corapo aturdido e os labios trémulos, Ihe suplicou que decidisse por ele A jovem sorrindo, cobriu-o de beijos, pois ele acabara de desvendar todo o enigma, rompendo o feitico por completo, E como ele ndo parecia entender, sussurrow-lhe ~ O que mais pode uma mulher desejar de um homem, senZo ser a senhora dos seuas desejos? Idade Mistica: A Matéria da Bretanha no Contexto do RPG Carlos E. Klimick Pereira Eliane Bettoc: Introdugio Este trabalho apresenta o projeto da estrutura textual da ambienta;do Idade Mistica (cronologicamente situado entre a 1" Cruzada, 1095 e a Cruzada Albigense, 1209) parao jogo Incorporais. Este jogo ¢ um projeto de pesquisa cujo objetivo geral é desenvolver (projetar tester) um RPG (role-playing game) para experimentar suas caracteristicas socializante, interativa, narrativa ¢ hipermididtica e sua consequente conceituagéo como obra aberta (Eco, 2001), estimulando os participantes a vivenciarem uma situapdo ¢ produzirem material sobre esta situas8o em qualquer linguagem (escrita, verbal, visual, musical, corporal etc.) e qualquer suporte (grafico, eletrénico, tridimensional etc.) 1. RPG" Role Playing Game é uma forma de narrativa que se diferencia das narrativas lineares tradicionais, tendo surgido nos EUA em 1974 a partir dos jogos de guerra que simulavam batalhas em tabuleiros. David Ameson ¢ Gary Gygax, fés do universo fantastico concebido por JR.R. Tolkien em O Senhor dos Anéis, criaram um cenario similar para as primeiras aventuras. Inicialmente, as histérias eram muito simples: invadir as catacumbas, matar os monstros € pegar o tesouro.? A terminologia dessa primeira fase do RPG contaminou-se com termos oriundos dos Jogos de Guerra: "Mestre do Jogo", "Aventura", "Campanha" Quase todos os cenarios criados eram de “fantasia medieval"? Em sua fase atual, ha uma grande diversidade de cenarios (fantasia, terror, historico, aventura etc), e 0 RPG passou a ser aplicado para outros fins além do entretenimento. ‘ Surgiram outros termos como “Narrador", "Historia" e "Crénica". Mas, como funciona o RPG? No RPG, os praticantes criam suas personagens que participam de historias parcialmente contadas por um Narrador (também chamado de Mestre). No livro de RPG se encontra parcialmente descrita uma ambientagao, na qual se passarao as histérias’ As personagens criatlas pelos “jogadores” pelo Narrador serao coerentes com o cenério. brasileiros indios num cenano de Brasil colonial, cavaleiros ¢ alquimistas num cenério de Europa " Deseripfo extaida de meu artigo publade, TOLKIEN, J..R. The Lord ofthe Rings. Tilogia de vis (The Fellowshio ofthe Ring; The Two Towers; The Retum of the ‘King). Os doi primetes foram publicades em 1064 e 0 tercero em 1055 na Inglaterra. O vo descreve uma historia plea ‘em um cenitio de inspraeo medieval européia em que herds de diferentes tapas (humanes. efos, andes e hobbits) se {hem pata enfientare maligno Saufen.Atilogia fel adaptada para o cinema em ues fmes nos anos de 2001, 2002 e 2003, Stpantasia medieval & um jargio do meio do RPG. Refere-se a um cenisio em que exstem povos de diferentes rapa (normalmente humanos. efes, andes e hobbitshalingsipequenines) em que held como cavaleites, magos, sacetdotes, bardes @ ladines. enfentam monstios e autes seres malignos. A magia e os seres sobrenaturas estao presentes. O lmbientecostuma ser inepitado ne imaginstio da Idade Madia européia, com castels, tavernas, viarsjos, nobres, rages ite Fol primeio tipo de censtio dos RPGs « até hoje & um dos mate populares. {'Similares aoe dts g2netoriRerdtios © cinematogrstios PG & Educapio: metodologia para uso paradidition dos roleplaying games". A ser Detsonagens do giupo, Medieval, etc. A historia comea a ser contada pelo Narrador, mas os “jogadores” so livres para decidir 0 que suas personagens falam e fazem na historia Assim, os rumos da historia so freqientemente alterados pelas ages das personagens, sendo na verdade uma historia contada em conjunto pelo Narrador e “jogadores” Um livro de RPG contém, basicamente, a descrigdo mais ou menos detalhada de uma ambienta;o (maiores detalhes costumam vir separadamente em outros livros menores, os chamados complementos) e um sistema de regras. O sistema de regras serve para organizar a apo dos personagens durante o jogo, determinando os limites do que ele pode ou néo pode fazer. Por exemplo: nao basta uma personagem saber atirar para acertar um alvo. Vai depender do alvo e das condigSes em que a personagem se encontra, além do quao bom atirador ela ¢. O sistema de regras tem como finalidade fazer uma simulayao da realidade (a realidade do jogo), influenciando a a;ao das personagens nas ayes mais complexas Como nfo ha apenas um sistema de regras (cada jogo de RPG costuma ter 0 seu), as possibilidades de jogos de RPG se multiplicam ainda mais, pois cada ambientaro pode ser desenvolvida por diferentes sistemas de regras. Ou seja, cada combinayao ambientaro- sistema da origem a um jogo diferente. Acredita-se ser possivel entender 0 RPG como um meio de comunicaréo dotado de um repertério partilhado com outras formas de narrativa (literatura, cinema, teatro, videogame), porém com um cédigo proprio que utiliza tal repertério de modo interativo ¢ hipermidistico, tanto na sua veiculagao (suports) quanto na sua fruiso (processo de jogo) Deste modo, para facilitar este entendimento, propde-se uma breve descrigo do que ¢ este repertério, os componentes do RPG, e de seus codigos de produsfo utilizaro, suas caracteristicas. LL. Caracteristicas do RPG Vemos no RPG quatro caracteristicas sobre as quais vamos discorrer um pouco para que sua prética fique mais clara. Séo elas: socializarao, interatividade, narrativa e hipermidia Socializagao: a capacidade de integrapao do RPG comega na sua propria estrutura pois € jogado em grupo, demandando néo a competiso, mas sim a cooperaro entre seus patticipantes. Além disso, é calcado no dialogo e troca de idéias. Neste aspecto, o RPG é um importante elemento de comu: , pois o ato de jogar leva, naturalmente, a uma maior facilidade de se comunicar, expressar um pensamento Interatividade: se traparmos um paralelo com o teatro, um RPG oferece uma ambientagao, uma plataforma a partir da qual os jogadores constroem, coletivamente, suas préprias histones e personagens. Isto quer dizer que um suporte de RPG, seja ele impresso, letrénico ou oral, no tem por objetivo oferecer historias completas e fechadas - ainda que possam existir exemplos de histérias e personagens -, mas sim possibilidades, autdnomas ¢ imprevisiveis, que se realizam em cada momento de jogo, termos utilizados por Arlindo Machado (1997) para definir interatividade " Mais detalhes este dsporivess em hp: histrasintratvas.nom.br Na mesma époce, Reymond Williams (1979:139) dizia que @ maioria das tecnologias ‘vendidas e difundidas como “interativas” exam na verdade simplesmente “reativas", pois Giante delas o usuario nfo fazia senéo escolher una altemativa dentro de um leque de opyées definido (verdade que continua sendo velida para a maioria dos videogames « plicativos multimidia hoje consumidos em quantidede). Interatividade, entetanto, implicava para ele a possbilidade de resposta auténoma, criatwa e nfo’ prevista da audiéncia, ou mesmo, no limite, a substituig8o dos polos emissor e receptor pela idéia mais estimulante dos agentes intercomunicedores. (Machado, 1997:250) Assim, 0 RPG se diferencia dos livros-jogos ¢ videogames, onde sé ¢ possivel escolher dentre uma série de opgtes pré-definidas. Essas seriam narrativas reativas, enquanto o RPG ¢ interativo Narrativa: conforme j4 foi dito, 0 RPG difere das narrativas tradicionais por ser uma plataforma a partir da qual diferentes histdrias podem ser criadas em grupo. Se pensarmos com base na teoria de Pierre Lévy (1997) sobre virtualidade, podemos dizer que o RPG é ‘um campo virtual que se atualiza a cada momento de construgao de uma personagem e de uma historia As narrativas no RPG sao, neste contexto, escolhas feitas pelos jogadores, 0 que reservaria aos autores do jogo o papel de facilitadores destas escolhas, muito mais do que de autoria Além das suas caracteristicas virtual e hipermidiatica, que enfatizam a multiplicidade de estimulos ¢ respostas ¢ a diluipéo de fronteiras entre autor e receptor, o RPG também se caracteriza pela mistura e apropriapo de diferentes linguagens como teatro, cinema, televisdo, literatura, quadrinhos ocidentais e orientais e computador sem, no entanto, perder a consciéncia de sua propria forma A representaro visual expressa-se como uma colcha de retalhos através da mistura de estilos dentro de uma mesma publicagfo, fato marcante, sobretudo, nos jogos da terceira fase (Bettocchi, 2002 A linguagem verbal do RPG ¢ muito proxima das narrativas orais, e a relapo entre texto ¢ imagem nos suportes é fundamental para a interatividade. No livro de RPG, texto imagem existem no para serem consumidos acriticamente, mas para serem, como diria Sonia Mota (4pud: Pavlo, 1999), “pilhados* pelo sujeito a fim de serem reconstruidos de acordo com suas experiéncias cotidianas, permitindo a concepgao de novas imagens ¢ novos textos ¢ arecriardo darealidade. Hipermidia: como forma de comunicasao hipermidiética o RPG se constitui de texto verbo-audiovisual (texto escrito, imagens e a narra;o do Mestre e interpretaylo das personagens pelos jogadores), onde a disponibilidade instantanea de possibilidades articulatorias permite a concepgao nao de uma obra acabada, mas de estruturas que podem ser recombinadas diferentemente por cada usuario. Estes elementos (jlustra;des, textos, linguagem corporal e verbal) séo "janelas" ou "links" de informayao para o jogador sobre 0 cenério onde sero construidas suas proprias historias, e, consequentemente, suas proprias imagens, textos etc 1.2. Componentes do RPG Regras: no RPG, as regras compdem um sistema de simulagéo de realidade Quando se utiliza o termo simularao de realidade no jogo de interpretarao, esté-se referindo nfo ao sentido de engano ou falsidade, mas ao sentido de modelo. Segundo o dicionario, define-se simulago como a reprodusao analoga de algo ("simulayao analdgica: experiéncia ou ensaio em que os modelos se comportam de maneira andloga a realidade"). Deve-se ressaltar, ainda, que as regras no RPG favorecem e pressupdem a cooperaco entre os participantes, no a competigfo, diferentemente damaioria dos jogos. Cenario: um cenério apresenta um mundo, um periodo historico, uma situay%o ou grupo social. Algumas vezes o cenario pode ser bastante familiar aos jogadores, mas visto sob um enfoque inusitado (por exemplo, 0 Mundo das Trevas, da editora noste-americana White Wolf que apresenta o mundo ocidental contemporaneo sob o enfoque de vampiros, Iobisomens, magos etc) (O Cenizio ¢ 0 paleo de sua historia. le inclui nfo somente uma descrigdo do local (bao, cidade, condado, pais, planeta, etc) e da época na qual a historia vai-se desenroler como também uma visio da situacio "politica" dos personagens envvolvidos (o relacionamento que existe ent eles e ene cada um deles e os personagens secundérios da historia). (Mini- Gaps, 1999.22) E interessante que um cenario contenha descrigdes tanto mais detalhadas quanto mais bizarro for o objeto descrito. Um conjunto de referéncias visuals, sonoras, textuais também amplia as possibilidades de criagao dos jogadores. Personagens: a personagem no RPG ¢ a interface entre o jogador ¢ o jogo, através dela, vive-se (mais do que se acompanhe), a historia Pode-se dizer que, sem a atuapfo das personagens, a pratica do RPG nfo acontece. Estas personagens so essencialmente figuras herdicas.* As personagens séo definidas para jogo em termos de suas caracteristicas inatas, como forpa e inteligéncia, habilidades aprendidas, persondlidade e historic. Como no RPG ha continuidade, as personagens podem viver varias historias, as personagens evoluem a cada aventura, aumentando suas capacidades de atuarao. Cabe observar que numa sesso de RPG também ha as personagens do Mestre que interagem com as personagens dos jogadores Enredo: para melhor compreender a questo do enredo, sugere-se duas definigdes de origem diferente para o termo, a primeira oriunda de estudos sobre o romance e a segunda de um RPG: Definizemos a historia como uma nanrativa de acontecimentos dispostos em sua seqiiéncia zo tempo. Um ensedio ¢ taribém uma narrativa de acontecimentos, cuja énfase recai sobre a ‘causalicade. "O rei moreu e depois a rainha’ isto ¢ uma historia. "Moneu o rei, e depois a sainha momreu de pesar" ¢ um enredo. [..] Consideremos a morte da rainba: numa historia diriamos - "E depois?", num enzedo - "Por qué?" (Forster, 1927, 1998:$3-84) * Aste respeito, ver KLIMICK, Carlos. Onde estéo her? In: Simpésio O Outro, LaRS, Depto de Artes e Design, PUC-Rie, 2002 Oemedo é a seqiiéncia de coisas que devem acontecer durante a aventura, Numa aventura simples, o mestie guia os personagens de uma cena pam outa, Numa aventua mais sofisticada, existem coisas acontecendo sem que os personagens saibam. Nesse caso, 0 ‘este cria muitas situagdes e os personagens véo passando de uma cena para outa & ‘medida que vio descobrindo pistes. (Min'-Gurps, 1999:22) No romance, 0 leitor ¢ atraido pelas perguntas “por qué? O que causou tal fato? Qual foi @ motivaso da personagem” No RPG, este aspecto esta presente nas ardes das personagens controladas pelo Mestre. Contudo, também esta presente nas conseqiléncias das ages das personagens dos jogadores, as quais, muitas vezes imprevistas, fazem com que 0 Mestre tenha que alterar constantemente o enredo. A causalidade ¢ entéo de méo dupla, do Mestre para os jogadores ¢ vice-versa O enredo ¢ entéo a sequéncia de eventos na natrativa amarrada pela causalidade de mestres e jogadores Clima: este seria uma maneira de jogar tanto o cenésio quanto os enredos. Pode-se, por exemplo, jogar um enredo de fantasia com clima dramatic (Ladyhawk O Feitigo de Aquila), ou um cenério de terror com clima de ao (Blade), ou um cenario de ficyao- cientifica com clima noir (Blade Runner, Gattaca) etc, Por se tratarem de personagens heroicas, o clima predominante nos enredos e cenarios de RPG é o de aventura, Por se tratar de um modo de jogar, pode-se dizer que o clima seria uma ponte entre cédigo repertério, talvez se aproximando do que a literatura, o cinema e 0 teatro entendem por género narrative 13. Ambientagio A ambientapfo ¢ uma combinafo de cenério, personagem, enredo e clima compondo a plataforma para as historias daquela proposta de RPG. Tomando como exemplo o RPG Vampiro: a Mascara, vemos que a ambientagéo deste RPG se compée de: o mundo atual, com a presenga do sobrenatural, onde vampiros existem e se organizam em clas e faces politicas, com possiveis focos em determinadas cidades, como Chicago (cenério), vampiros de diferentes clas, com seus poderes, histdricos e personalidades (personagem), aventuras- prontas, idéias para aventuras, dicas para o Narrador (enredo), historias de horror, vampiros atormentados com a progressiva perda de sua humanidade, conspirarao e suspense (clima) Podem ser observadas similaridades entre a ambientagdo do RPG e os ambientes da arte patticipativa, conforme propostes por Plaza —“O ambiente (no sentido mais amplo do terme) é considerado como o lugar de encontro privilegiado dos fatos fisicos e psicologicos que animam nosso universo.” (Plaza, 2003-14) 2. Aambientagio Idade Mistica Uma vez esclarecidos estes conceitos, passar-se-4 ao foco deste trabalho. a apresentas textual (forma) de uma ambientapao de RPG. A ambientarao proposta Idade Mistica, sera disponibilizada em suporte impresso, um livro de RPG em que conste, além dos textos ¢ composisies visuais, o levantamento documental e iconografico como narrativas paralelas Deste modo, pretende-se focalizar a discussio nas caracteristicas de narrativa hipermidiatica deste suporte 2.1, A forma hipermidiatica do texto medieval Sugere-se que a hipermidia ou multimidia hipertextual (texto + imagem + som etc) seria uma evolugéo do hipertexto (Crenzel, 2002:31) Ted Nelson (1992), considerado o inventor do termo “hipsitexto", o conceit como conjunto de escrtes associadas, ndo-sequenciais com conexes possveis de segue oportunidades de litura em ciferentes diegées. A hiperniie é, pois, uma forma combinatoia e interativa de maltimidia (-] Plaza, 200325) Isto quer dizer que, num hipertexto, as informarGes néo séo absorvidas de forma linear, umas apés as outras, mas de forma simulténea e fragmentada de modo similar ao funcionamento do cérebro humano O signo de pontuarao mais caracteristico do hipertexto é 0 link (elo, em portugués), 0 ponto de intersepo entre os "nds" textuais, a janela de acesso entre as diferentes camadas textuais e visuals O link transforma a imagem fia em seqiiencial e cria um esparo informativo tridimensional (Crenzel, 2002-37-38). E interessante notarmos que, apesar desta nomenclatura remeter diretamente a informatica, este tipo de hiper-estrutura interativa existe desde que existe linguagem (ANEXO D); as novas tecnologias nos permitiram, sim, tomar consciéncia deste proceso utiliza-lo de forma mais direta e simplificada Como mostra o exemplo do ANEXO I, 0 texto medieval incorpora digressdes, anotapdes ¢ glosas de forma simultanea e ndo-linear, sem preocupagées com pureza de género, frequentemente misturando tragico e cémico, histénco ¢ ficticio. A literatura medieval se vale bastante das referéncias classicas, misturando os estilos grego ¢ latino com o temario ¢ © folclore do periodo, além de inserir temas religiosos da mitologia crista, justificando uma producao pagé sofisticada Esta estrutura reflete o pensamento filoséfico da época de uma unidade teolégica que mantém o mundo; o Homem, a Natureza e a Escritura séo mais pelo que significam do que por si — o Um que se manifesta no Trino. A logica de Aristoteles aparece descontextualizada, misturada 20 pensamento agostiniano, de fato mais proximo do platénico do que do aristotélico. As “figuras de linguagem" séo simbdlicas ¢ alegéricas: as coisas significam a si mesmas e esto por outra coisa (Agostinho: Res ef signum, in: Boni et all, 1988), © quadro a seguir mostra um resumo esquematico de alguns dos principais conceitos filosdficos que se pretende utilizar na concepedo da estrutura do texto de apresentaro do cenario 10 Diadelquadiade Trade Quato Elemento Pessoa ¢ Natureza, Humano ¢ Divino, Sagrado e Profano, Teologia e Dialética Rezo e Mistica (entender a paiavra do filésofo pare cer, crer na palavra de Deus para entender) Quadrivio (Aritmética Geometria.Misica, Astronomia) ‘Manco exterior (macrocosmo) e mundo humano (imicrocosmo) Sentido lteral-sensivel superado pelo simbélico- spiritual Sentssima tindade Logica Aristotélica(logica Vetus, tradusto ce Boécio): Pbondade, verdade e beleza oubondade, verdade e f cristé Verdade, conhecimento e poder (crer para entender, entender para dominaz) Trivio (Gramtica, Dialética, Retérica) Supracelest, celeste e infiaceleste (harmonia pela escale planeta) Alegorico (refere a outro fato) > ropolégico ou moral (ideologico) > anagogico (aponta para a salvagéo) Na anélise comparativa Artur e Alexandre - Crénica de dois reis, Furtado (1995) comenta que, assim como Plutarco (séc. 1), Geoffrey de Monmouth (séc. XII), autor da Historia Regum Britanniae (1135) constréi uma narrativa por analogias. Na passagem da Historia sobre o Rei Leir, a situapao sucesséria pode referir-se a propria situapo da Inglaterra na primeira metade do século XII, quando se discutiu a sucesséo do trono por uma mulher, Matilda. Note-se que o livro de Monmouth foi dedicado @ Robert de Gloucester (Furtado, 2003). A situapo de trés filhas que disputam uma heranga em que uma delas ¢ rejeitada por supostamente ser sincera, ficando o rei na companhia das outras, as quais no final tentam usurpar-lhe o poder, encontra eco no folclore de diferentes culturas, conforme classificado por Aare & Thompson (1961, in: Furtado, 2003). Finalmente, referéncias classicas de situagBes sucessérias conflituosas e usurpapdo de trono aparecem tanto nas biografias de Artaxerxes quanto de Pompeu (Plutarco, séc. 1;1986, in’ Furtado, 2003). De acordo com o quadro de conceitos anterior, pode-se sugerir uma estrutura triddica de significados inferiveis além do perceptivel (sentido literal): um sentido alegerico, referindo- se a identificacdo com uma situacdo historia, um sentido moral ou tropolégico, de legitimarao de valores ¢ ideologias, por vezes fundamentado no modelo classico, e um sentido anagégico, de pretenséo universal, que pode tanto buscar suas raizes no folclore pagdo quanto na mitologia judaico-crist& Encontra-se neste modelo uma diade (sentido literal versus sentido simbélico-espiritual) que encerra uma triade (0 sentido simbélico-espiritual composto dos niveis alegérico, moral anagégico). Este modelo servira de base para a estruturardo do texto de apresentapao do cenario medieval em questo 2.2. O hipertexto de Idade Mistica © conteiido da ambienta;éo sera apresentado, conforme mencionado, de forma hipermidiatica, constando de texto verbal ¢ texto visual, Neste trabalho serao discutidos apenas os textos verbais, dispostos em trés niveis, tomando-se como exemplo 0 ANEXO I texto literario (principal), glosas e anotagdes. E importante esclarecer que o termo principal entre parénteses nao se refere a uma hierarquia de subordinago: o contetido do texto literario nfo é mais ou menos importante que o das glosas anotardes, como costuma acontecer com notas de rodapé ou de fim de pagina nos textos académicos. Dai se preferir utilizar o termo literério, ficando o termo principal apenas como referéncia de posicionamento na mancha grafica "1 O texto literdrio (sentido literal), consistiré de uma narrativa linear em prosa ou verso, a partir do qual se abrirgo os links para os elementos explicativos do cenério (sentidos simbélicos): as glosas, que fargo referéncia a uma situardo historica similar a situagéo descrita no texto literario (sentido alegorico), e as anota;des, que citardo o modelo classico e areferéncia mitologica ou folclorica (sentidos moral e anagégico). Tanto as glosas quanto as anotardes poderao conter ainda referéncias a questdes especificas de jogo (caracteristicas e competéncias de personagens, resolusao de a;Bes, feitiparia etc ) 2.1.1. Os textos literarios O RPG se caracteriza pelas colagens, apropriagtes ¢ reinterpreta;Ges (Bettocchi, 2001) Parece muito pertinente 0 termo “pilhagem narrativa’, cunhatlo por Sénia Mota (Apudl Pavio, 1999:24) para descrever o processo de construgo ¢ utilizaro desta linguagem, cujas historias ¢ imagens so tecidas a partir de elementos de outras historias e de outras imagens, apropriadas de autores que néo so citadlos, aproximando essa narrativa da narrativa oral “sem dono” Por narrativa, tradicionalmente, entenda-se: [.] formas textuais, utilizando ou néo imagens, como é o caso da literatura, cinema, televisio, RPG ou videogame, embora os elementos constitutivos de ambos, como néo poderia deixar de ser, sejam seconentes. Estes se caracterizam como nazrativos por ‘possuizem os elementos levantados por Cardoso [2001] (tema, personagens, ago, tempo, fespago, ponto de vista, conflito), possuindo unidade de ago, tempo e lugar, desenvolvendo-se através da relagdo de causa e efeito, etc. (Coelho, 2002) Se narrativa permite uma aproximagdo com papel ¢ personagem, pode-se sugerir que narrativa oral permite uma aproxima;ao com tradigo oral, folclore, conto de fadas, mito. Segundo Japiassi e Marcondes (2001-183), a palavra mito, do grego mythos, inclui o sentido de: "1. Narrativa lendania, pertencente a tradigo cultural de um povo, que explica através do apelo ao sobrenatural, ao divino e ao misterioso, a origem do universo, 0 funcionamento da natureza ¢ a origem e os valores basicos do préprio povo. [..]" Temos ai uma representarao teatral do papel de uma personagem de uma nerrativa oral que se aproxima do folclore e do mito, portanto de cunho aventuresco: uma personagem herdica. Heréi combina com aventura, aventura com desafio, desafio com jogo. Deste modo, optou-se por tomar como textos literérios, entre outras que no serio comentados neste trabalho, trechos de algumas narrativas arturianas datadas do século XII e inicio do ‘XIII, periodo que também abrange o cenario do jogo. Segundo Furtado (2003), as narrativas arturianas deste periodo compéem uma tradicao literaria conhecida como Matéria da Bretanha, inaugurada pelo ja citado bretéo Geoffrey de Monmouth, dividida em trés fases distintas: as crdnicas pseudo-histericas, os romances de cavalaria e as estérias exemplares. Devido @ delimitago cronologica do cenério (1095- 1204), trataremos aqui apenas das duas primeiras fases Nas ditas crénicas pseudo-histéricas, ainda que os textos aparentem verossimilhanga, no se pode deixar de notar a forte presenga do sobrenatural, seja em figuras como Merlim, sejama descrico do mistério envolvendo amorte de Artur e sua ida para a fantastica ilha de Avalon. Como ja foi mencionado (Furtado, 1995), a narrativa parece ser construida por 12 analogias com situa;Bes historicas e com narrativas classicas e foleléricas. Os trechos que se pretende utilizar encontram-se nas seguintes obras: © Historia Regum Britanniae, 1135 e Vita Merlini (1148), Geoffrey de Monmouth: o primeiro texto se prope a ser um registro “histérico" dos reis da Bretanha incluindo a primeira biografia detalhada de Artur, a partir das fontes fomecidas nos escritos de Gildas (séc. VI) e Nennius (séc. IX), 0 segundo texto dedica-se a figura de Merlim, sabio de origem magica, associado a e/ou inspirado em Santo Ambrésio (séc. IV), ¢ que tambem fora mencionado por Nennius como o “menino sem pai" com dons proféticos © Roman de Brut, 1155, Wace: tcadug%o do latim para o francés, dando maior divulgago a obra de Monmouth, sua grande contribuisao foi a invensao da Tavola Redonda, mesa sem cabeceira, logo com todos os lugares igualmente importantes, de modo a evitar disputas entre os bardes de Artur A fase seguinte, dos romances de cavalaria, ¢ protagonizada pelos cavaleiros, ficando 0 rei Artur em segundo plano. Nesta fase ja é possivel perceber o reflexo de uma sociedade feudal e suas instituigdes de cavalaria cada vez mais estabelecidas, onde o “valor" de um cavaleiro é medido pela sua bravura em combate e tomeios e pela sua generosidade em gastos materiais. Diferentemente da fase anterior de batalhas campais, estes cavaleiros protagonizam aventuras de cunho mais pessoal, inspiradas nas regras do fino amor (ou amor cortés, segundo nomenclatura cunhada no século XIX) proclamadas por André, 0 Capeldo (séc. XID), cantadas nas trovas, e recheadas de acontecimentos fantésticos motivos folcloricos. Os trechos a serem utilizados esto nas seguintes obras « Erec et Enide, Cligés (ou A Falsa Morta), Lancelot (ou O Cavaleiro da Carreta), Yvain (ou O Cavaleiro do Leiio) e Perceval (ou O Conto do Graal), 1170-1185, Chrétien de Troyes: 0 autor, que ¢ o principal poeta francés desta fase, incorpora a Tavola Redonda criada por Wace ¢ cria a personagem Lancelote, colocado como terceiro cavaleiro de Artur (0 primeiro ¢ Galvéo, 0 segundo Erec). Menciona o graal (citado no Roman d’Alexandre, poema narrative de autoria coletiva ca 1160) ainda como escudela, mas ja lhe atribuindo um significado mistico que no foi esclarecida devido a interrup¢0 de sua obra quando de sua morte. * Tristan et Iseut, ca. 1180, Béroul: preservada de forma incompleta, esta é uma das mais antigas versées do amor entre Tristéo (também citado como cavaleira de Artur por Chrétien) ¢ a rainha Isolda, esposa do rei Marcos © A nuila sem freio e O Cavaleiro da Espada, final do século XII ow inicio do XIII, anénimos: possivelmente satiras & obra de Chrétien, atribuindo-se a primeira a um pretenso Paien de Maisiéres ("Pagéo" em oposico a Chrétien, "Cristo", e sendo Maisiére, como Troyes, uma cidade da Champagne) TR exceglo dos La de Matia de Franga,togos os tents ctados encontamse em FURTADO, Antonio L Artur e Alexanore CrSnica de Dots Res. So Pavio: Aiea, 1005 e Aventuras da Tavola Redonda Estéras Medieval do Rel fire seus Cavaleros Pevapols: Edtora Vases 2003 13 © Primeira Continuagio do Persival, final do século XII, anénimo: de autor desconhecido designado por alguns como Pseudo-Wauchier, pretende ser uma continuapo do ultimo texto de Chrétien. * Lais, 1160-1178, Maria de Franga: apesar de no tratar somente de materia arturiana, os contos desta autora lidam com temas similares e com as mesmas referéncias: aventuras fantasticas e fino amor. Os lais ambientados na corte do Rei Artur so Lanval e Madressilva, este ultimo sobre Tristao ¢ Isolda 2.2. Anotagées e glosas Estes textos complementares servirfo, assim como nas obras medievais, como breves interpretapies dos textos literdrios (textos “principais") fornecendo explicardes sobre 0 cenario do jogo, fazendo 0 contraponto diddico entre sentido literal e sentido simbélico Estes textos teréo um teor descritive ¢ consistirdo em resumos de diferentes fontes sobre histéria, filosofia e cultura medieval, mesclados com informagies especi jogadores sobre concepeao de personagens ¢ enredos de jogo.’ ‘A titulo de exemplo, sugere-se uma relapfo diadica entre os textos das erénicas pseudo- histéricas ¢, desdobrando-se a relarao triadica © sentido alegérico de uma situargo de fortalecimento do sistema feudal caracteristico do primeiro quartel do século XII (Le Goff, 1989, Loyn, 1991, Duby, 1989); © sentido moral de afirma;do da emergente Redonda) com base no modelo classico fomecido pelas créi sobre Alexandre, 0 Grande (Furtado, 1995), © sentido anagogico de divinizapao ou heroicizag&o do rei (Beatie, 2001), sejana sua origem sobrenatural, seja na participaro de um auxiliar mistico (Propp, 1984), como Merlim, seja no mistério que envolve sua morte, com referéncias na mitologia grega (as nove irmas de Avalon e as nove musas) e judaico-crist (ailha paradisiaca e 0 jardim do Eden), entre outras ese cavaleiresca (a Tavola as de Plutarco Para os textos dos romances de cavalaria, pode-se sugerir, como exemplo, o seguinte desdobramenta tiadico * sentido alegérico de uma situarfo feudal implantada tendendo para a descentralizacao do poder real (Artur j& néo ¢ mais protagonista) (Le Goff, 1989, Duby, 1989, Loyn, 1991, MacDonald, 1995) e os jogos de sedugio das elites, como uma espécie de amenizargo das situarSes matrimoniais politicas, organizados nas regras do fino amor de André, 0 Capelao sob os cuidados da Condessa Maria de Champagne (Furtado, 2003), * sentido moral de valorizarao dos codigos guerreiros (militas), da heranga patrilinear ¢ da honra da ancestralidade (nobilitas) — como sugere Duby (1989-16), utilizando como exemplo a desconhecida condigéo nobre de Persival * Lembrando que este tabalho refere-se & ambientagSo de um RPG, a qual deverd ser acompanhada de um lvro contend as regs basieas. 14 — ainda buscando seus modelos na literatura cléssica de Plutarco ¢, para o comportamento amoroso, em Ovidio, * sentido anagégico de fidelidade camal/espiritual, abordando o pecado e a traigdo femininos, temas presentes em passagens biblicas e no folclore tanto europeu quanto oriental (Aame-Thompson, 1961, Furtado ¢ Veloso, 1996; Furtado, 2003) ao mesmo tempo promovendo uma valorizag: marianos ¢ da virgindade, a questéo do graal como objeto simbélico de busca mistico-espiritual j4 comesa a surgir nas obras do final do século XIL Para finalizes, apresenta-se no ANEXO II um exemplo de mancha grafica segundo os critérios estabelecidos neste trabalho. O texto literario ¢ um trecho do Larval, lai arturiano de Maria de Franga, acompanahdo de glosa descrevendo resumidamente as relagBes feudais 0 lugar do cavaleisa nesta relagéo e de anotapdes sobre o sentido moral dos codigos guerreiros contrapondo-se as regras do fino amor, e sobre o sentido anagogico da busca espiritual. Para efeito de compreens&o, todas as referencias especificas as regras do RPG esto entre colchetes Bibliografia BEATIE, Bruce A (b beatie@csuohio edu) Re:[Arthurian Tragic Ritual, Hero] E-mail para ArthurNet Mailing List (arthumet@morgan ucs mun ca) [mensagem capturada em 2 fev. 2001] BETTOCCHI, Eliane A Sintaxe Visual no Role-playing Game. Jn: Estudos em Design, v. 8, n. 3. Rio de Janeiro: Associarao de Ensino de Design do Brasil, mai. 2001 Role playing Game: um jogo de representagao visual de género. Dissertaréo de Mestrado em Design, Pontificia Universidade Catdlica do Rio de Janeiro, 2002 & KLIMICK, Carlos. 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Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Editora 7Letras, 2003, pp. 7-34 16 Amor e Erotismo na Idade Média: Uma perspectiva literaria a partir da andlise das obras Amadis de Gaula e A Demanda do Santo Graal Cleide Maria de Oliveira Introdugao © presente ensaio tem por objetive estudar 0 amor eo erotismo no periodo medievo, em especial na Baixa Idade Média, a partir da perspectiva oferecida pelas obras Amadis de Gaula ¢ A Demanda do Santo Graal, a segunda vinculada ao assim chamado Ciclo Arturiano A escolha do tema se deu pela possibilidade de analisar 0 amor e 0 erotismo enquanto fenémenos socio-culturais que se inscrevem na historia e no espaco, que, como toda realizarao humana, influenciam as manifesta;bes artisticas literarias, sendo essas, portanto, narrativas prenhes de signos a serem decodificados no intuito de uma maior compreenséo dos comportamentos sociais Conforme assinala André Lazaro em seu livro *O amor: do mito ao mercado", o amor tem sido "bom" para pensar pois coloca em jogo fichas valiosas. E 0 proprio sujeito que se pensa, a ameaga constante da morte e do abandono, a possibilidade de romper, por um momento que seja, a barreiza invisivel que o separa do outro e das forras estranhamente similares que parecem atuar na aparente desordem do universo. (1996: 11) O interesse por esse periodo histérico se deve ao fato de essa época encerrar 0 “nascimento" daquilo que modernamente chamamos de amor roméntico’, O amor cortés, ou amor delicado, extrato da lirica provengal que surge ao sul da Franga (Provenga) ainda no século XI, assume particular importéncia em nosso estudo pois, como afirma o historiador Jacques Le Goff, “a descoberta do amor humano (..) éum dos grandes acontecimentos do século XII" (1987: 56) A poesia provengal, ou trovadoresca, pode ser entendida como uma codificaga de comportamentos sociais, uma elaborapéo da erdtica provengal sistematizada pelos trovadores que marca indelevelmente a conceprao do Ocidente moderno sobre o amor. Nesse sentido, a lirica trovadoresca exerceu grande influéncia sobre a matéria ficcional na Demanda e no Amadis de Gaula, posto que um movimento cultural ¢ literério de tal ambito no poderia deixar ilesas formas narrativas como os populares romances de cavalaria. O que se pretende observar, neste estudo, néo é tanto o desenvolvimento do amor cortés, ¢ sim sua popularizagdo, efetuada ao longo dos séculos XIII, XIV e XV. Dado que é extremamente problematico apontar a permanéncia de uma erética cortés no decorrer dos séculos, talvez seja mais pertinente falar em influéncias; ou seja, como um fendmeno literario ¢ cultural ‘Conforme aponta Rougemont (1088), em refergncia 4 trégica historia de Abelarde @ Heloisa ambientada no inicio do sécule Xil, cujos desdobramentos podem set entendides como "marcas Ge um combate entre 9 pensamento escolastice e a teterica do amor cortés" (Lazare, 1996: 02) 17 pode contribuir para a disseminapo de uma erotica baseada no controle (o controle de si, ou pedagogia do eu) e na singularizapao do individuo que ira evoluir progressivamente para o que chamaremos modernamente de amor-romdntico Parecera talvez impréprio falar em controle quando se fala em amor-paixfo, ou amor-roméantico, mas esta caracteristica do amor delicado nao esta tao distante das nossas modernas experiéncias passionais’; o controle se relaciona intimamente com a nopao de individualidade, to cara ao amor. o amor é um movimento de dentro para fora, ou seja, parte de um nticleo duro e coeso — 0 cogito cartesian — para alcangar 0 “outro” do outro © périplo do heréi enamorado inclui provas ¢ combates que possuem carater pedagogico: é preciso descobrir-se na mesma medida em que ¢ preciso revelar-se, e descobrir-se ¢, antes de mais nada, civilizar-se, isto é, opor 4 natureza a cultura De tudo isto restou-nos, modernamente, 0 mito de que o amor revela-nos a nos mesmos: na medida em que nos pe 4 prova somos mais fortes ¢ capazes de ser aquilo que devemos ser, de amar — nao obstante infelicidades, dores, traigdes abandono — com amor imortal, pois 0 amor nos da porpao recobrada de “Eu” Desenvolvimento Conforme aponta André Lazaro (1996), tanto a lirica provengal quanto os romances de cavalaria, inclusive os pertencentes ao ciclo arturiano, se utilizam da mistica amorosa para fomentar um combate contra o desejo, um jogo requintado de auto controle com objetivos civilizatérios. A forga do desejo dotava o corpo do amante-guerreiro de virtudes magicas, 0 dominio de si investia-o de poderes misticos. Um episodio exemplar é a queda de Erec proximo a "Fonte da Virgem" (4 Demanda do Santo Graal), onde tombariam todos os cavaleiros "tocados pela luxiria’ (p.101). Neste relato, o poder sobre si, a forca e o vigor, estéo em proporgao a pureza do corpo, cujo paradigma é Galaaz, o cavaleiro perfeito ciclo arturiano permite que reconhecam tragos de antigas crengas nos poderes mégicos iniciéticos do amor. Algumas provas a que séo submetidos os cavaleiros consistem em atravessar o vale da morte, enfrentar seres do outro mundo e resistir as terriveis tentagées do desejo quando belas donzelas Ihes oferecem o leito apos dias de duras lutas e caminhadas. Castelos habitados por mulheres encantadas aguardam 0 heri que, em suas aventuras, deve dar prova de sua capacidade de conter-se. Esta contengéo significa domar em si mesmo a forga da natureza rebelada: a alegoria do combate com o leo costuma pontuar os momentos desta vitoria integradora dos diferentes niveis da alma humana, tal como o compreendia @ tadigéo céltica da qual o ciclo arturiano ¢ tributério. (Lazaro, 1996:81) No século XIII alguns historiadores apontam um renascimento, dada a relevancia das realizagdes artisticas nesse periodo. A riqueza produzida devido ampliagao da atividade produtiva, do uso da moeda, da expanséo das fronteiras agricolas e do significative aumento demografico se traduz no crescimento ¢ desenvolvimento dos burgos (cidades), na formayfo das primeiras universidades, no maior cosmopolistismo dos intelectuais, e na ascenséo da burguesia, que * Para comprovar isto basta lembrar da presenga recomtente da idealizagio feminina e da vassalagem amorosa em ‘compostiores da misica popular brasileira, como por exemplo a cange "Amor delicade’, de Caetano Veloze 18 adotava as formas culturais da aristocracia como um método de confundir-se com a gente bem-nascida (Lazaro, 199682). Lénia Mongelli (1992: 63) ainda mencionara, como influentes para 0 contexto histérico dos séculos XII e XIII, os seguintes fatores socio-culturas a influéncia do folclore céltico-bretao, possibilitado pela conquista normanda de Guilherme, o Conquistador (1066); o intenso movimento das Cruzadas, divulgando o ideal de Cavaleiro de Cristo, ou seja, unindo os valores guerreiros a uma mistica crist@, - a ascenséo da Cavelaria, que se transformou, a partir de Carlos Magno (século IX), em uma confraria religiosa, exigindo de seus membros a obediéncia a ritos sagrados, cite-se como exemplo a confraria dos Cavaleiros Templarios, instituida em 1118 e extinta em 1314, 0 surgimento da lirica trovadoresca que *inventa’ uma nova forma de lirismo, 0 primeiro trovador de que se tem conhecimento é Guilherme IX, duque da Aquitania (século XI) A novela de cavalaria A Demanda do Santo Graal portuguesa filia-se ao que se convencionou denominar “Matéria da Bretanha", que é composta por obras ficcionais em torno da figura do lendario rei Artur texto existente é a tradugao de um original francés desaparecido, situado aproximadamente nas tiltimas décadas do século XIII, fazendo parte da segunda prosificarao do ciclo arturiano, conhecida por Post-Vulgata ou ciclo do pseudo Boron. Da tradusdo portuguesa chegou-nos um manuscrito do século XV, entre 1400-1438. (Mongelli, 1992: 55) O exemplar analisado no presente estudo é uma tradupo em portugués moderno, por Heitor Megale, de alguns episddios extraidos da verséo portuguesa medieval, iniciando-se no fragmento de mimero 107. Ja a obra Amadis de Gaula, ¢ de origem controversa, existindo uma querela acirrada entre portugueses e espanhéis, cada grupo reivindicando para seu pais a origem da obra, no existindo até o momento certeza sobre a lingua e a autoria do Amadis primitive. Nao é de nosso interesse, no presente estudo, entrar nessas extensas discusses, 0 que se tem como certo é que a edig&o mais antiga existente é de lingua espanhola e de autoria de Garci Rodriguez de Montalvo, no século XVI (1508). Nao obstante, é de se lembrar que existem testemunhos nos séculos XIV ¢ XV de edigdes mais antigas do Amadis, o que permite situar essa obra, em sentido amplo, nos fins do periodo medieval e inicio da Idade Moderna Em resumo, a verso analisada de A Demanda do Santo Graal foi elaborada nas liltimas décadas do século XIII, 0 Amadis de Gaula que se tem em méos é uma suposta restaurapo de um texto portugués encoberto em um texto castelhano, e 2 ele anterior, realizada por Afonso Lopes Vieira na década de vinte do século pasado. Entretanto, esta restaurapdo ¢ realizada em cima do texto castelhano do inicio do século XVI, que ja era a versao de textos mais antigos. E possivel ento, simplificando um pouco essas questdes de data que sdo por demais complexas para © ambito do trabalho que nos propomos a realizar, entender que a primeira obra (a Demanda portuguesa) se insere no século XIII e que a segunda (0 Amadis de que temos conhecimento) ja no inicio do século XVI, havendo entao entre ambas a diferenga significativa de quase trés séculos 19 As duas obras a serem analisadas se situam num periodo critico entre o fim da sociedade medieval e 0 nascimento da modernidade, podendo ser lidas como documentos das relagdes complexas e paradoxais entre individuo e sociedade, em ambas as obras, 0 amor assume progressivamente um valor afimativo para a singularizaao e o desenho de uma geografia interior que instaura um novo lugar (ou nao lugar) para a experiéncia amorosa na ordem social. Conforme tese de André Lazaro, a idéia moderna do amor roméntico aparece como fundamento da organizarao familiar e, mesmo, como "uma ampliagao de nossos limites até sua dissolugo numa ordem onde o tempo ¢ 0 espapo adquirem novo valor * (Lazaro, 1996: 23). Essa idéia, que instaura um espago dissociado do social, isto é, uma u- topia onde amante ¢ amado afirmam-se como singularidades absolutas na mistica amorosa, estaria indelevelmente associada a0 Renascimento e @ elaboragao da subjetividade do Eu em contraponto ao social (© mito do amor como um movimento da ordem do sagrado, que transcende a vida social para criar um espao proprio e intimo ao sujeito, este mito esta formulado claramente no imaginario do Renascimento, embora néo encontie ai sua plena legitimidade. (1996: 129) No periodo medieval, o amor que deveria existir entre os membros do casal, segundo a Igreja, era o amor ao préximo, a caridade, sem o desejo carnal. No século XII So Jerénimo dizia que “aquele que ama a sua mulher com um amor demasiado ardente é um adultero" (apud Casey, 1992: 121). A unido para satisfac4o do dever conjugal era considerada pecaminosa, pois visava apenas ao carnal, a0 desejo. O ideal seria a unio numa intengdo procriadora (superior), que multiplicaria os filhos de Deus. Clérigos como Huguccio condenavam o prazer sentido até mesmo nas relagées que visavam a procriacéo. Relagdes sexuais inadequadas eram julgadas antinaturais, considerando-se como “inadequadas" aquelas feitas em posigdes sexuais que nao favorecem a chegada do esperma até 0 évulo, como por exemplo a mulher em posipdo vertical. A sodomia também era terminantemente proibida pela Igreja. (Casey, 1992: 121) O casamento, portanto, nao deveria ser o lugar para o amor carnal ou a paixdo Na realidade, 0 casamento era uma instituiggo que visava a estabilidade da sociedade, servindo apenas para a reprodudo e unido de riquezas, dando continuidade 4 estrutura feudal. A partir do momento em que o amor aparece no casamento, esses pilares (reprodugao ¢ uniéo de riquezas) passam a um segundo plano, amearando toda essa estrutura. Quando um casamento acontece simplesmente por amor, nfo ha mais interesse a priori em reprodugdo ou unido de riquezas O século XII é marcado por uma grande mudanga em varios aspectos da Idade Média, a partir dai observa-se um movimento intrincado e complexo de aproximaéo entre casamento e amor, que se desenvolvera através do periodo medieval até sua plena ascens&o na Idade Moderna. Ja se pode observar mudangas nas concepgGes sobre o amor no casamento com o monge Bernardo de Clairvaux “o amor nfo requer nenhum outro motivo, além de si mesmo, e nfo busca frutos Seu fruto ¢ 0 gozo de si proprio" (apud Casey, 1992 121). Este movimento de legitimarao do amor, elevando-o @ uma “terceira margem, onde ¢ possivel viver um ‘eu' humano, puramente humano" (Lazaro, 1996:139), ou seja, de um ou-topos 20 de autenticidade, longe da mascara e da obrigapdo social, possui no fenémeno do amor cortés a chave para seu pleno entendimento. Falando sobre a significancia do amor cortés para a inserpao social da mulher neste periodo, George Duby afirma que esse Era um jogo de homens e, entre todos os textos que convidam @ ele, hé poucos que nfo sejam marcados por tragos misoginos. A mulher ¢ um engodo, andlogo a esses manequins contra os quais 0 novo cavaleizo ‘se langava, nas demonstragées esportivas que se seguiam as ceriménias de sagracéo. Nao era a dama convidada a enfeitar-se, a disfarrar e a revelar os seus atrativos, a recusar-se por longo tempo, a $6 se dar parcimoniosamente, por concessies pprogressivas, a fim de que, nos prolongamentos da tentacio e do perigo, o jovem aprendesse @ dominar-se, a controlar sett proprio corpo? (1989:61) Nao se deve entender, conforme Duby nos alerta, que a lirica cortés tenha realmente algado a mulher a uma posiga0 social mais elevada. Ela era, na verdade, um chamariz nesse jogo civilizatorio que era a cortesia As relagdes so mais complezas do que as de causa-e-efeito: 0 movimento de elevarao do amor a elemento essencial a instituigo do casamento, realizado pelo pensamento burgués roméntico ¢ presente ainda no imaginario moderno, que busca conciliar, pelo menos nos romances hollywoodianos ¢ nas telenovelas brasileiras, a paixéo arrebatada a rotina do casamento, foi obra de longos e intrincados eventos socio- culturais. Duby, por exemplo, vai relacionar a invengao do "amor delicado" a uma forma de organizagao social da nobreza, dos séculos X, XI ¢ XII, que limitava o numero de casamentos dos rapazes, sendo esta uma estratégia de concentracao conservapao de riqueza, assim, apenas o primogénito possuia direitos de propriedade, as mulheres eram excluidas da partilha e recebiam dotes quando casadas, donde a regra era casar todas as filhas e reforsar os obstaculos ao casamento dos filhos, exceto do mais velho. Isto provocava um crescimento da populapdo de jovens celibatarios expulsos da casa paterna, corendo atrés das prostitutas, sonhando nes diversas etapas de sua aventura exrante em encontrar donzelas que, como dizem eles, os apalpem, mas primeiro em busca, ansiosa e quase sempre vé, de um estabelecimento que os transforme finalmente em seniores (proprietérios), em busca de uma boa herdeiza, de uma casa que os acolha e onde, como se diz ainda em certos locais no interior francés, eles possam “ser genros". (Duby, 1989: 23) As severas restrigbes ao casamento dos rapazes multiplicavam, no meio afistocratico, os homens nao casados sedentos de uma esposa e do que ela significava. a possibilidade de ter sua propria casa e bens — tornando-os invejosos dos “seniores”. E de se recordar que os acordos de casamento eram realizados sem a considera;ao dos sentimentos dos esposos, ou mesmo seu consentimento, o que fazia com que essas unides ndo passassem de uma ligayao fria, quase comercial. O amor cortés funcionava, segundo Duby, como um cédigo que complementava o direito matrimonial, sendo privilégio exclusivo das pessoas da corte, portanto do cavaleiro, 0 vildo estava excluido deste jogo de homens No proprio seio da cavalaria, o ritual cooperava de outro modo, complementar, para a manutengéo da ordem: ele ajudava @ controlar parte do tumulto, a domesticar a "juventude” a jogo do amor, em primeizo lugar, foi educagéo da medida, Medida é uma das palavras chaves de seu vocabulario especifico. Convidando a reprimir os impulsos, ela era em si um fator de calma, de apaziguamento, Mas esse jogo, que eza uma escola, trazia consigo também fo concurso. Tratava-se, superando o concorrente, de ganar o prémio do jogo, a dama. E 0 senior, o chefe da fortaleza, aceitava colocar sua esposa no centio da competigéo, em situagio ilusoria, lidica, de preeminéncia e de poder. Até certo ponto: o codigo projetava a esperanca de conquista como uma mizagem nos limites imprecisos de um horizonte artificial. (1989: 64) Apés esta andlise inicial, estaremos concentrando nossa reflexdo sobre o amor ¢ © erotismo medieval no estudo das obras literarias anteriormente mencionadas Inicialmente faremos uma abordagem geral da temética ¢ do estilo de cada uma delas, como se segue abaixo A Demanda do Santo Graal Em linhas amplas, 0 enredo da Demanda portuguesa ¢ 0 seguinte: o Rei Artur ¢ seus 150 cavaleiros esto reunidos a volta da Tavola Redonda para festejar o Pentecostes — festa cristé que celebra a descida do Espirito Santo aos cristaos —e a espera de algum acontecimento maravilhoso, extraordinario. Nesse interim, chega uma donzela a procura de Lancelot, para que este a acompanhe até a floresta onde sera armado Galaaz, seu filho bastardo. Ao retornarem para Camaalot, inimeros sinais demonstram que Galaaz é 0 cavaleiro esperado e eleito para dar cabo as aventuras do reino de Logres: ele retira a espada fincada no marmore que boiava descendo 0 riacho — dela se dizia que s6 seria retirada pelo melhor cavaleiro do mundo, fayanha que havia sido tentada sem sucesso por Lancelot, Galvao e outros cavaleiros, a ocupa;ao, por Galaaz, do acento perigoso na Tavola Redonda, no qual apenas poderia se sentar o cavaleiro perfeito, as palavras do ermitéo que acompanhava Galaaz: "Rei Artur, eu trago o cavaleiro desejado, aquele que vem da alta linhagem de Davi e de José de Arimatéia, pelo qual as maravilhas desta terra ¢ das outras terdo fim." ‘A seguir, chega o Graal, satisfazendo a todos com iguarias especiais ¢ enchendo-os da graca do Espirito Santo. Quando o Graal vai embora, os cavaleiros sentem 0 desejo de trazé-lo de volta a Logres, jurando a demanda As aventuras se iniciam, ¢ a maior parte dos cavaleiros ficara pelo caminho, sem conseguir encontrar o Graal, dizimados pela Besta Ladradora ou pela firia de Galvam, apenas Boorz, Persival e Galaaz chegaro a Corberic, onde se encontra o Graal Entretanto, Galaaz é 0 tnico que contemplara o santo Vaso, Persival morre e ¢ enterrado numa ermida e Boorz retorna a Logres para dar as noticias ao Rei Artur, fazendo-se depois um ermitéo, bem como Lancelot ¢ Heitor. Sem o Graal, o reino de Logres é destruido por seus inimigos, ¢ o Rei Artur é traido pelo Rei Mars, seu sobrinho. Ferido, Artur faz com que seja atirada a um lago Excalibur, a espada sagrada dos druidas, e desaparece levado pela fada Morgana em uma barca. Em seguida, o escudeiro do Rei, Gilfrete, ira a uma ermida proxima onde um ermitao Ihe diz que Artur foi enterrado, mas o timulo esta vazio, contendo apenas o elmo do Rei. O mistério se aprofunda, entao, pela impossibilidade de se saber do verdadeiro destino de Artur 22 ‘A selegao feita por Heitor Megale nao contém todos esses episédios; ¢ é de se mencionar também a fragmentar&o deste texto, com personagens que entram ¢ saem sem conexéo com a linearidade da narrativa, como por exemplo o protagonista Galaaz, que desaparecera no fragmento 676 sem reaparecer ¢ sem que sejam dadas explicagdes de seu destino. Este ¢ um elemento complicante para leitura, em especial por quem nfo tenha prévio conhecimento do enredo Amadis de Gaula © Amadis de Gaula apresenta inimeras semelhangas com a Demanda do Santo Graal, cabendo ressaltar: a geografia em que se passam as aventuras, de vez que, conforme observa Carolina Michaelis de Vasconcellos, "Gaula* corresponde a Gales, ndo a Galia, localizando-se portanto na Gra-Bretanha, o elogio ao melhor cavaleiro do mundo (na Demanda este ¢ Galaaz e no Amadis é ele proprio), os sinais inegaveis da eleipao do cavaleiro perfeito, a valorizapo das virtudes da coragem, forga, beleza ¢ lealdade, a determinarao dos herdis, decididos que esto a se fazerem heréis, a valorizapéo da aventura pela propria aventura, o misticismo fantastico que mistura elementos cristios a presenga de monstros, gigantes, fadas, magos, referéncias cultura grega, etc, o enredo fragmentado, formado pelo entrelagamento de aventuras concomitantes, o estilo oral, conveniente a pratica de leitura em voz alta, a recorréncia de sinais sobrenaturais (sonhos, visdes, vozes misteriosas, objetos magicos que revelam enigmas aos cleitos ou que entéo revelam verdades sobre eles — veja-se a esse proposito a espada do pai, que serve para que este reconhera em Amadis o filho cuja existéncia havia sido anunciada em sonho enigmatico, lembrando a espada fincada no marmore e retirada por Galaaz, como prova de que era o cavaleiro eleito. (Maleval, 1992) O enredo de Amadis se assemelha as narrativas de personagens biblicos: i)temos primeiro as provas de sua eleicao, isto ¢, de que ele era o cavaleiro escolhido — O Perfeito Amador —, muito semelhante a narrativa de Moisés!; ii) a singularidade de Amadis é confirmada, também, pelo fato de ter como pais um nobre casal que havia dado provas de que um verdadeiro sentimento os unia, tendo enfrentado diversas provas até a institucionalizarao da relapo pelo casamento, iii) em seguida Amadis passa um tempo na corte de Gandales e depois na corte de el-rei Languines, onde cresce e espanta a todos com sua formusura, fora e coragem, iv)Amadis, ao chegar a puberdade, conhece Oriana, a Sem Par, por ela se apaixona, e, sentindo-se indigno dela por ndo saber quem sao seus pais ¢ nem que é de sangue nobre, decide ser cavaleiro, “para ganhar honra e preso como aquele que no sabe de onde vem” (AG: 61); v) 0 restante da obra se divide na narrativa de aventuras que vaéo confirmando a superioridade de Amadis em todos os aspectos (forga, beleza, lealdade, honra, f€ ¢ devoso amorosa), na descoberta de sua "mad & come o patiaca bibico, tiado is Sguas dentto de uma arca que continha um pergaminho com as seguintes palavras: "Este & Amadis sem tempo, fiho de Re? alem do pergaminho a atca contnha um anel dado, por D. Pelion. 2 Elsena, além de sua espada eto acore por que Elena, sus mie. escondia sua gravider por medo do que podeta the [acontecer e a seu fiho, caso se descobisce seus amores secretoz com D. Pevion, que, pela tempo do nascimento de ‘made, estava ausente 23 descendéncia nobre ena superagao, depois de imimeras peripécias, dos empecilhos a sua uniao com Oriana. Quanto a esse ultimo nucleo tematico, € digno de nota como esta novela de cavalaria valoriza os encontros e desencontros amorosos de Amadis ¢ Oriana. em todos os episédios, mesmo nas lutas mais cruentas, Amadis encontra sua “inspiragao” no amor que sente por Oriana, veja-se 0 exemplo abaixo, em que Amadis luta contra um poderoso adversario num combate assistido pela corte, mas, a0 avistar Oriana, apés muitos anos sem se encontrarem, ele titubeia no duelo ‘Mas, ah! Semhores, assim como Oriana o ia perdendo, Oriana o salvou: porque Amadis Jembrou-se que a fraqueza poderia ser julgada covardia. Entfo, como acordando de um sonho, sentiu que Ihe afluia ao sangue uma forca invencivel. E, crescendo para Dardan, anrancou-lhe ‘elmo de um golpe e o Soberbo rolou ao chéo! (AG, 1983: 77) Nao obstante as semelhangas, salta aos olhos que Amadis é um heréi diverso dos cavaleiros da Demanda, ¢ sua singularidade reside exatamente na “modemidade” daquilo que o move: Amadis ¢ movido pela paixéo, um cavaleiro-poeta exemplar, cuja epitome primeira ¢ Amadis, o bom amador. Michaelis, em prefacio da versao portuguesa de Afonso Lopes Vieira, afirma que foi o idealismo amoroso de Amadis que impressionou os Quinhentistas. Foi a admiravel combinagao que hé nele de uma audacia e heroicidade a toda prova, em perigos e gueras, e, na paz, de mesa discreta, suave melancolia e sentimentalidade meiga, qualidades que estavam em contraste abencoado com a barbara rudeza dos costumes, documentada em numerosas faganhas registradas nos Livros de Linhagem. (AG, 1983: 14) © proprio narrador confirmara que as aventuras ¢ maravilhas vividas por Amadis so motivadas pelo amor de uma mulher, Oriana 4 que toda histéria que se vos conta, s6 por amor dela se pode contar. E entre todas as Bem-Amadas nenhuma foi mais bem-amada. Nem Genevra, a quem tanto amou Lancarote do Lago; nem Branceflor, a quem tanto quis Flores, nem mesmo a loira Iseu, por quem morren Tristan de Leonis, foram mais adoradas que Oriana. (AG, 1983: 59) Andlise comparativa de A Demanda do Santo Graal e Amadis de Gaula A modernidade da novela de cavalaria Amadis encontra-se justamente em ser uma glorificapéo do amor roméntico que, ainda que ilegitimo perante as leis dos homens, é protegido pelas béngdos divinas, conforme se vé na assertiva de Darioleta, acerca do romance de Elisena e D. Perion, futuros pais de Amadis “Ficai senhora, que ainda que vos defendestes de muitos, ele de muitas também se defendeu, mandou Deus que vos nao defendésseis um dos outro.” (AG, 1983 40) ‘A nossa hipétese é que as duas obras analisadas podem oferecer uma leitura do percurso que o amor roméntico efetuou entre a sua exclusdéo completa do 24 casamento medieval, com conseqtiente afastamento das relagdes legitimas’, até sua eleigo como principio fundamentador das relacdes entre homem-mulher ¢ base para a instituigao familiar. Parece que a obra Amadis ja apresenta uma mudanga significativa na percepeao ideologica do amor e do erotismo, e ¢ interessante notar, também, como essa novela de cavalaria foi popular no Renascimento: recebeu mais de vinte impressdes antes de 1588, as aventuras de Amadis foram continuadas por outros autores, chegando a constar de doze livros, cada qual com um titulo e heréi especifico, e o livro original foi traduzido para as principais linguas vivas (inclusive para o hebraico, em 1540). Assim, “esse Amadis ficou sendo um dos livros prediletos de fantasia, tanto em cortes, paldcios e solares como em casas burguesas, hospedarias ¢ celas de frades e freiras, lido e relido pelos reis, fidalgos, letrados, artistas e santos.” (Carolina de Michaelis, In: AG, 1983: 12). Portanto, a popularidade deste herdi, atestada pelo depoimento de Dom Quixote, a afirmar que esta era a unica obra a merecer ser salva da fogueira (Michaelis, AG, 1983; 12), parece indicar que os ideais do amor delicado ja haviam saido do circulo restrito das cortes, alcangando paulatinamente os vildes, ¢ tornando-se, como se vé hoje, a grande fora motriz das artes, populares e clitistas. o amor roméntico tornou-se, segundo André Lazaro (1996), 0 fundamento da moderna sociedade de consumo (o amor “vende” qualquer coisa, veja-se os antincios de propaganda), ele proprio um objeto de consumo que promete conferir a seu dono uma experiéncia singular, em oposi¢o a massificag&o que caracteriza suas outras vivéncias sociais, comercializando signos utilizados nas “formas” de amar aprendidas com as estrelas da TV Um elemento importante da Demanda que pode nos auziliar a tragar um paralelo entre as duas obras, quanto a forma em que ambas tratam das relares amorosas, ¢ oferecido pela condigao de ingresso na busca do Graal: 0 cavaleiro néo poderia levar consigo mulher, sob pena de cometer pecado mortal. Conforme aponta Mongelli (1992), nesta época conturbada e cindida pelos igualmente sedutores apelos da IgrejalCavalaria e da Prevaricarao, “o erotismo dos trovadores ¢ combatido pela multiplica;o das hagiografias sobre a vida dos santos e martires, exemplos ascéticos contra a tentag’o do pecado. Divididos entre rezar ¢ prevaricar...” aos cavaleiros ndo era permitida a vivéncia da sexualidade, mesmo aquela legitimada pela Igreja, isto é, dentro do casamento (Mongelli, 1992. 76). Ao contrario de Amadis, cuja maior virtude é ser 0 Bom Amador, Galaaz, é 0 cavaleiro perfeito da Demanda, “o puro dos puros porque nunca pecou contra a castidade, a unica falha que parece verdadeiramente impedir 0 acesso ao Graal, a menos que a purgagao seja longa e sincera, como ade Boorz.” (ibidem:72) Amadis possui todas as vistudes necessarias ao cavaleiro, além daquelas virtudes que em francés arcaico séo designadas com os termos “largesse” (generosidade) e “courtoisie” (cortesia), mas nao encontram uma correspondéncia exata e satisfatoria no francés moderna O primeiro, largesse, significa ao mesmo tempo a liberalidade, a generosidade ¢ a prodigalidade, supondo a riqueza. Seu oposto ¢ a avareza e a busca do lucro, que qualificam os mercadores ¢ burgueses das comunas, constantemente " Conforme anotado por Duby (1080: 58), 2 sentenga da lgeja defnia 2 relagGo conjugal em termes de cordialidade amizade:"O amor do marido pot sua mulher se ehams estima, o da mulher pot sev marido chama-se reveréncis 25 ridicularizados por Chrétien de Troyes ¢ seus imitadores. Numa sociedade em que a maior parte dos cavaleiros vive mesquinhamente do que Ihes dio ou concedem seus protetores, ¢ normal que a literatura exalte as oferendas, as despesas, 0 desperdicio ¢ a manifestapo do luxo (http://www terravista pt/Enseada/2674/Medieval_cavalaria htm) Jao termo cortesia, courtoisie, é ainda mais dificil de definir, pois compreende todas as qualidades acima, além da beleza fisica, ¢ ainda. a elegancia e 0 desejo de agradar, a dorura, o frescor da alma, a delicadeza de corapao e de maneiras, 0 humor, a inteligéncia, uma polidez requintada, ¢, para dizer claramente, um certo esnobismo, Pressupde tambem a juventude, a liberdade de todo apego para com a vida, a disponibilidade para a guerra e os prazeres, a aventura e a ociosidade. Seu oposto ¢ a “vilania’, defeito proprio dos vildes, dos risticos, das pessoas malnascidas e sobretudo mal-educadas. Para ser cortés, a nobreza de berso no basta, os dons naturais devem ser refinados por uma educapfo especial e alimentada por praticas cotidianas no palacio de um grande senhor. O modelo ¢ 2 corte de Artur. E la que encontramos as damas mais belas, os cavaleiros mais valentes, as maneiras mais delicadas (http://www terravista pt/Enseadal2674/Medieval_cavalaria htm) Alguns episodios so extremamente importantes para entender essa misoginia que perpassa toda a Demanda. A primeira maravilha’ da Demanda analisada chama-se Como Galaaz e Boor: chegaram ao castelo de Brut e a filha do rei enamorou-se de Galaaz por louco amor. Como 0 titulo do episddio ja antecipa, a filha do rei Brut se apaixona perdidamente por Galaaz. Resta saber se a loucura deste amor se deve aos acontecimentos subsequentes, isto , ao suicidio da donzela apés ser recusada por Galaaz, comprometendo a sua inocéncia diante da morte dela, ou, entfo, ao proprio amor por aquele que, ndo obstante toda sua formosura, havia jurado permanecer casto até a morte. A propria Besta Ladradora, que os cavaleiros irdo perseguir tenazmente durante toda a demanda, ¢ um exemplum doutrinador dos perigos da sensualidade, arma demoniaca a tentar os mais frageis, em especial as mulheres. Conforme Furtado (2000: 66) “a imagem hibrida da Besta Ladradora tem a fun4o de um emblema, objeto que comumente acompanha ¢ serve de insignia a locusies proverbiais.” A Besta ¢ fruto da unido entre uma nobre donzela e o proprio Diabo, sendo prova cabal da traigo que a donzela praticou contra o proprio irméo, levando-o 4 morte injusta, Nesse episodio o prazer sexual aparecera intrinsecamente ligado a luxiria e ainfamia: Deste modo entregou seu amor ao demo, e ele deitou-se com ela, como o pai de Merlim com sua mée. E quando deitou com ela teve téo grande prazer que esqueceu o amor de seu immo tio mortalmente que mais néo poderia. Um dia estava diante de uma fonte com seu amigo, 0 demo, e comegou a pensar muito. E ele lhe disse: ~Que pensais? Pensais como podereis matar vosso irmio? ~ Por Deus ~ disse ela isso. E ora bem vejo que sois o homem mais sisudo do "Tero freqdentemente usado na Dem anda para designaralgum evento que eausasse espanto, admiragSo ou. pasme, ‘Segundo Jacques Le Goff. "Como terme mirabila estamos petante uma 1a mir (mir, mivan) que comporta algo de vive Trata'se de um olhar. Os mirabila nao so naturaimente apenas coisas que © hamem pode admitat com os ahes, cosas perante a5 quats se artegalem os hos: orginalmente ha, porém. esta referencia ao alho que me patece importante, porque ‘todo um imaginatio pode organizar-se & voha desta igagio a um sentido, oda vst, e em tomo de uma sétie de imagers © rmetiforas que sd0 metifors visivas ”(1085:20) As matavhas sao, portant, exemples pata seremvstes 26 mundo, e rogo-vos por aquele amor que tendes por mim, que me ensineis como o possa mataz, porque nfo hé nada no mundo com que tanto me agradasse. (DSG, 1996: 16) Os exemplos se multiplicam: a mulher da tenda, que, apesar de inocente, provoca a morte do marido e de parentes dele (pai e dois irmfos), a bela grega na tenda, que na verdade era o deménio disfarzado para tentar Persival, o episodio da Fonte da Virgem, lugar onde todo aquele que nfo fosse casto cairia sem forgas até a morte, cujas origens remontam também a um amor incestuoso entre irm4o ¢ irma; a mulher da capela, que novamente retoma o topos do amor infeliz aliado ao assassinato... Cada fragmento narrative contém algum evento onde se misturam misoginia ¢ educarao pelo terror, conforme Mongelli (1992) Embora na Besta Ladradora se concentze a grande metéfora das transgressdes @ que conduz 0 gosto pecaminoso da “fornicacion”, a maioria quase dos episddios vividos pelos demais cavaleizos acaba desembocando, de maneia mais ou menos nitida, nos perigos a que se expie 0 homem apaixonado, Tanto que o conflito central da Demanda culmina por ser entre 0 juramento feito e a incapacidade de cumpri-lo, principalmente no que tange @ mulher. Vitimas de sua humanidade imperfeita e ansiosos por um Graal mirifico que lhes dara a redengéo, os vassalos de Artur empreenderam “agonicamente” a Santa Busca como se corressem atrés de ‘um objeto sabidamente impossivel de alcangar. (1992: 72) Um episodio a meu ver altamente significative é a morte da rainha Genevra, cuja historia de amor com Lancelot, ainda que adulterina e ferindo os ideais de honra e lealdade da cavalaria — afinal, Lancelot devia lealdade! a Artur — poderia ser citada como um exemplo unico da mengao de uma relago amorosa, na Demanda, Ainda assim, é interessante notar que no episédio mencionado, o de sua morte, os signos amorosos nao se cumprem corretamente e o exemplum que se tem ¢ de um desencontro implicito na paixéo amorosa, Genevra adoece gravemente por pensar que Lancelot esta morto, e, estando em seus ultimos instantes, pede a criada que apés sua morte retire seu coragao ¢ leve-o para Lancelot, um souvenir macabro a lembrar a grandeza desse amor. Entretanto, ¢ curioso observar que a criada nao cumprira sua misso porque, como conta o conto, “a donzela cumpriu sua ordem, mas nfo achou Lancelot e por isso ndo deu cabo a tudo que a rainha mandara.” (DSG, 1996: 152) Consideragées finais A paixdo amorosa, como se percebe pelos episddios explicitados, é fonte de violéncia, traigdo, desilusdo, desencontro e apostasia Na Demanda do Santo Graal, o amor-romantico ainda nao tera encontrado o seu espaco utépico ¢ individual em oposig0 conveniéncia social ¢ as relarbes puiblicas estereotipadas dos casamentos arranjados. Tal movimento parece se adiantar no Amadis de Gaula, 0 S30 os seguintes: | Acceditarés em tudo o que a lgreja ensina obsewvaris todos os 1 lore: lk Detenderis todos or fracas; IV- Amatis o pair onde naceste: V- Jamas fetrovederse ante o inimige:Vi Faris guerra 208 ints até extermins-los:Vik Comprise com tous deveres feudat, se estes ‘io forem contrris 3 el de Deus: Vil Nunca mentiras e serds fel 3 palavra empenhada: IX Serds iberal e generose ‘om todos: X:Serds o defencor do deo e do bem, contra a inustiga contra mal. bitovnwweteravieta pens 343/267-4/Medieval eavalaria him a onde teremos a apologia do Bom Amador, como fica explicito na profecia sobre ele Digo-te que aquele que achaste no mar seré a flor da cavalaria: fard tremer os fortes, hhumilhara os soberbos, defenderé os agravados, e tudo obrara com honra. E sera também 0 cavaleizo que com mais bela lealdade ha de manter seu amor. (AG, 1983: 51) Assim, Amadis é glorificado por diferentes aspectos que ja tinhamos observado nos cavaleiros da Demanda, contudo a caracteristica que o distingue dos outros justamente a capacidade de unir forza e fraqueza ¢ absolutamente notavel o ntimero de vezes em que Amadis chora pelo amor de Oriana, causando espanto até mesmo em seus companheiros Vendo desfalecido o mais forte cavaleizo, a quem apenas derrubava o cuidado da bem-amada, considerava o escudeiro com pranto enternecido aquele mazavilhoso amor do seu senhor € amigo. - Este que vai desacordado - pensava Dardalin - aquele ¢ que venceu Dardan o Soberbo, desbaratou Abies de Irlanda, converteu Madarque o gigante, matou o deménio Endriago. (AG, 1983: 151) Tal como ja havia dito o apéstolo Paulo, sobre o sofrimento por amor a Cristo, Amadis poderia responder a possiveis interlocutores. “Pois, quando sou fraco é que sou forte” (II Carta aos Corintios, 12:10). O amor toma-se, no Amadis de Gaula, um método de subjetivarao e aperfeigoamento, a fraqueza torna-se forga em uma significativa inverséo de significantes culturais. Ao contrario do que aconteceu com Erec, a beira da Fonte da Virgem, a realizado do amor e do erotismo nao tora Amadis mais fragil, pois sua aparente fraqueza ¢ transformada em forca combativa e guerreira, a fraqueza reside em ndo viver a paixdo, em estar longe do amado, ¢ ndo na vivéncia do amor. O amor é, no Perfeito Amador, plenamente legitimado Referéncias bibliograficas CASEY, James. 4 histérta da familia. So Paulo - Atica, 1992 DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensatos. Séo Paulo: Companhia das Letras, 1989 FURTADO, Antonio L. Formagdo de uma alegoria na Demanda do Santo Graal. Revista Palavra, n°7, Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2001 GOFF, Jacques Le. O maravilhoso e 0 quotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Edigdes 70, 1985 LAZARO, André. Amor: do mito ao mercado. Petrépolis: Vozes, 1996. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. A prosa de ficgdio: Amadis de Gaula. In: A literatura portuguesa em perspectiva. Vol. I, Séo Paulo: Atlas, 1992 MEGALE, Hector (apresentapao ¢ tradusfo). 4 Demanda do Santo Graal. Séo Paulo Atelié Editorial, 1996 MONGELLI, Lénia Marcia de Medeiros A novela de cavalarta: ‘A Demanda do Santo Graal’. In: A literatura portuguesa em perspectiva Vol. 1, Sao Paulo Atlas, 1992 28 ROUGEMONT, Denis de. O amor e 0 ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988 VIEIRA, Afonso Lopes. Amadis de Gaula. Lisboa Ulmeiro Livraria e Distribuidora 1983 FERNANDES, Raul César Gouveia. Reflexes sobre o estudo da Idade Média http://www terravista pt/Enseada/?674/Medieval_cavalariahtm Acessado em 23 de junho de 2003 29 As Vozes Femininas em Perceval Cristina Almeida “Plus profond est le coeur des femmes que la plus profonde mer du monde” Resumo Este estudo visa abordar a identidade feminina no romance arturiano Perceval, do século XI Para o desenvolvimento do trabalho foram escolhidas quatro figuras femininas que fizeram parte da vida do cavaleiro, visando demonstrar como elas foram importantes para preencher por completo a sua armadura, Baseada numa leitura feminista esta avaliapfo tera como ilustrayo as criticas literérias, a questo do género, a posiao da mulher na literatura e na sociedade medieval 1 Introdugao Deve-se a0 pocta francés Chrétien de Troyes um dos trabalhos literarios mais antigos ¢ conhecidos até hoje sobre a lenda do Graal. O cavaleiro em questéo ¢ Perceval, um jovem imaturo que se joga de corpo e alma nas aventuras cavaleirescas que permeavam as histonias do ciclo arturiano Como o objetiva deste estudo ¢ sublinhar as influéncias femininas na vida deste cavaleiro, resolvi considerar a teoria dos arquetipas femininos de Jung por entender que a modema psicologia reconhece o quanto este estudo tambem ¢ fundamentalmente importante na atualidade, apesar de reconhecer que a mulher na sociedade medieval desempenhava um papel estritamente social, néo sendo levado em considerarao nenhum trago psicoldgico capaz de alterar sua estrutura de comportamento. Achei interessante analisar por este viés j@ que numerosos paralelos mitologicos e historico-religiosos mostram que no se trata apenas de algo individualmente condicionado, mas de situagdes ¢ atitudes arquetipicas universalmente existentes O que se passa aqui nesta esfera é que, em se tratando de personagem feminino, o papel desempenhado pela mulher na literatura arturiana orienta a nossa reflexio sobre a encruzilhada de influéncias de uma sociedade celta, as tendéncias ideolégicas e uma linha de cristianizaso que vinha se instalando a partir do seculo XII A importancia do personagem feminino neste romance esta intimamente relacionada com a busca do Graal ¢, consegiientemente, com os ideais cavaleirescos de honra, servigo e linhagem, Por mais que seja sabido que damas e donzelas desempenhavam papéis de tentagao, mistério e premonigdo, muitos personagens femininos aparecem aqui em Perceval como a verdadeira manifestagao do bem e do amor apesar de nao terem nenhuma “vantagem” do ponto de vista feminino, pois invariavelmente eram abandonadas em fungao de uma misséo mais importante dos cavaleiros. E exatamente sobre este “estado” das mulheres na literatura que nos fala todo o movimento feminista que se instalou no mundo no meio do séc e que vou neste trabalho tratar em particular 30 2- Tempo ehistéria: a mulher na literatura Enquanto o homem criava e recriava o mundo, descobria novos territérios ¢ marcava com sua atuapo todo o pracesso de construgéo cultural, por onde andava a mulher? ‘A mulher nfo foi considerada personagem, seno a margem da historia, em todas as dimensdes contidas nesse processo. Em geral, sua presenga tem-se definido como corolario do protagonismo masculino, Na maior parte dos casos em que a mulher surge na cena ela tem como ponto de referéncia o desempenho masculino, seja como exemplo ou modelo de solidariedade e dedicaso ao homem, seja como objeto de paixio ou outras expressies derivadas das a;Ges masculinas, estas sim entendidas como originals, renovadoras revolucionésias. Na interapo homem-mulher, 0 que mais chama a atenpdo é 0 uso sistematico do poder do primeiro sobre a segunda bem como 0 abuso da autoridade que decorre desse poder As razées de permanéncia, pelos séculos afora, da velha formula imobilista “homem é homem, mulher ¢ mulher” apontam para aspectos importantes dessa saga e trazem para o debate a tentativa de reconstrugio desse modelo. Sempre a figura feminina ¢ tecida nos enredos de forma a no perdoar jamais a pecadora, ainfiel, a devassa ou a adiltera “Desde as civilizagfes mais antigas até as primeiras conquistas da chamada revolusao industrial, a historia da humanidade tem sido a historia de personagens masculinos, sejam eles guerreiros, sacerdotes, herdis ou artistas: os farads do Egito, os deuses gregos, os profetas islamicos, os evangelistas que disseminaram a fé crista, os imperadores da China os samurais do Japéo, sem excluséo, foram todos personagens homens”, (como avelia Moema Toscano em seu ensaio “Um espaco para a mulher” in Feminino/Masculino, Jacobina, E.) Como se vé, em todo o mundo, as mulheres através da historia da humanidade tém sofrido, sob 0 jugo do patriarcado, um discurso que as diferencia, separa, humilha e subjuga Esse discurso, partindo de uma diferenga biologica, constréi diferengas sociais marcantes que se encontram, ainda hoje, presentes nas mais avangadas culturas do mundo 3- Critica feminista Simone de Beauvoir assim se expressa em O Segundo Sexo (1940). Esta humanidade ¢ masculina ¢ © homem néo define a mulher per se, mas com relagéo a ele; ela no é tida como ser euténomo...Define-see diferencia-se a mesma em zelagéo aos homens e no em relacfo @ ela, ela¢ ono essencial, em oposio eo essencial. Ele ¢ 0 suit, ele ¢ 0 Absoluto ~Ela é a outa Isto esta mais que evidente na linguagem, tanto literaria como néo literaria Segundo Heloisa Buarque de Holanda em Voses Femininas “.. As teorias crit feministas esto experimentande um momento bastante interessante, Nos paises de forma;ao saxénica, especialmente nos Estados Unidos, conseguiram certa legitimidade académica e constituem-se como uma inegavel tendéncia dentro do mercado editorial. Muitos centros de women’s studies se formaram dentro das universidades, desde a segunda metade dos anos 70, ¢ seu projeto ¢ claramente intervencionista e politico-académico. Na Franga, ja o quadro é relativamente diverso. Os estudos feministas, cuja facs8o mais representativa e intemacionalmente reconhecida ¢ ligada a psicandlise, recusam a filiaro institucional dentro das universidades e preferem formas de organizarao independentes ou, pelo menos n desvinculadas da produgo académica oficial. De um modo geral, a formapio desta area de conhecimento esta intimamente ligada aos movimentos politicos dos anos 60, mas val ganhar estatuto académico um pouco mais tarde, no contexto da consolidapo das teorias pos-estruturalistas ¢ desconstrutivistas, cuja desconfiansa sistematica em relagfo aos discursos totalizantes passa a ter uma posigao central no debate teérico conhecido como pés-modemista..” A critica literaria é 0 outro campo questionado pela teoria feminista, no sentido de que grande parte da critica adotou valores e critérios que de igual forma centralizavam a visio ¢ @ experiéncia masculinas, marginalizando aquelas da mulher. A critica feminista norte- americana Annete Kolodny demonstrou como a educarao e 0 processo critico posicionam condicionam o leitor a enxergar e apreciar os textos de certa forma permissiveis. Ela afirma que a leitura é uma forma de compromisso nfo com os textos, mas com paradigmas. ou seja, “apropriamos o sentido de um texto de acordo com nossas n essidades (ou desejos), ou, em outras palavras, de acordo com as presungées criticas ou predisposi conscientes ou nfo) que trazemos a ele” (Webster, Rin Studying Literary Theory) O livro de Virginia Woolf, Sew Préprio Quarto (1928), embora n&o seja uma obra tedrica no sentido convencional do termo, funciona como ponto de partida para o estudo da literatura feminina e como inicio de uma critica feminista Neste ponto, vale observar que alguns criticos feministas tém evitado o discurso da teoria literaria como uma extenso maior do discurso masculino e, portanto, da dominago nos estudos literarios, e certamente a forga e talvez as propriedades linguisticas de muitas obras tedricas realmente tomam esta uma posigao valida, Avanando a partir dai, seria perigoso caracterizar a teoria feminista como um discurso unificado: por sua natureza, a maioria das obras feministas tenta evitar uma visto singular e centralizada em favor do mbito mais plural, mantendo-se descentralizada nas abordagens. Seriamais apropriado neste contexto, falar em feminismos ‘Virginia Woolf fazia parte de um movimento mais amplo de mulheres escritoras que haviam adotado um ponto de vista especificamente feminino no inicio do século vinte, entre elas Ketherine Mansfield, Rebecca West e Dorothy Richardson. Assim como no Marzismo, é perigoso caracterizar a literatura feminista em termos de personalidades individuais, e ¢ util ver a literatura de Virginia Woolf como parte de um movimento maior ou de um novo discurso que comesou a desafiar os discursos do género dominante, ¢ também uma tentativa de recuperar e explorar pontos ressaltados por outras escritoras, até o momento amplamente ignoradas. O argumento principal de Woolf com relapo a auséncia de mulheres escritoras esta relacionado as condigdes materiais sob as quais vivem as mulheres, com pouca ou nenhuma independéncia financeira ¢ geralmente destinadas a servir as necessidades dos homens No que tange especificamente as identidades femininas a historia mostra que elas tém sido formadas em oposigSo as identidades masculinas ¢, na maioria do tempo, em uma evidente relayo de subordinarao e controle. Millet, em seu texto Sexual Politics (1993), observa como o sexo tem sido utilizado para degradar a mulher e engrandecer o homem e tem sido negligenciado em seu aspecto politico. A estrutura do patriarcado foi gerando, ao longo do tempo, varios mecanismos para moldar a identidade da mulher de forma a toméla subordinada Esses mecanismos vao destle a fossilizaro e criapio de esterestipos do que seja e de como deve se comportar a mulher, até a énfase nas diferensas bioldgicas, limitando os esparos de atuapo da mulher dentro da sociedade, diferenciando as mulheres em classes e modelos antagénicos, evitando seu acesso a educaplo e atividades econémicas, usando a forca e até mesmo mecanismos psicolégicos, através dos quais a es (sejam 32 mulher é levada a interiorizar a ideologia do patriarcado. Com a entrada das ditas sociedades modemas, que se convencionou chamar de pos-modemidade, observa-se que em alguns contextos sociais essas praticas de dominayao passam a atuar de forma cada vez mais indireta depois que as mulheres vieram a conquistar direitos em seus casamentos ¢ através de seu voto. O poder do patriarcado pode nao estar tao presente nas ditas sociedades democréticas, mas ainda se evidencia como analisa Michel Foucault (Machado,1982), .."0 poder no se localiza num lugar especifico, antes, ele é uma estrutura, uma rede sem limites e que é exercido, ao invés de ser possuido por alguém ou alguma entidade dentro da sociedade” Diversas questdes sobre a representargo da mulher na literatura foram suscitadas no século XX, especialmente por Virginia Woolf ¢ logo por criticas literérias feministas. Isto no significa que nao houve tentativas anteriores de questionar a posigao da mulher através de um meio literario. A Reivindicagéo dos Direitos da Mulher (1792) de Mary Wollstonecraft defendia a necessidade de apurar a educarao das mulheres, e romancistas do século XIX, tais como George Elliot na Inglaterra e George Sand na Franga, atacavam as atitudes sociais vigentes em relapo @ mulher, embora no de maneira to radical como suas sucessoras do século XX. A questo principal que se tornou cada vez mais significativa é até que ponto esto representadas na literatura as experiéncias e a voz da mulher? Resgetar esta trajetéria silenciosa tem sido objeto de estudo de intimeras teorias feministas, 4- Construgao da identidade: um estudo sobre género Quando comecei a fazer esta pesquisa, deparei-me com diversas formas de abordar o tema do feminino, mas, em todas as leituras que fiz, 0 género era parte intrinseca do assunto — como se eu nfo pudesse falar de feminino ou masculino sem falar dos estudos de género da construjao da identidade no discurso literario. Sendo assim, tendo em vista a importancia do discurso na formagéo da identidade, é importante esclarecer que discurso aqui é entendido de forma que abranja qualquer enuncia;o onde haja um emissor ¢ um receptor (falante/ouvinte, escritor/leitor), e a intengao de influenciar 0 outro. Como observa Sara Mills: “O discuso no é um conjunto vazio de declaragées, mas grupos de oragées ou sentengas, declaracées ue sto estabelecidas dentro de um contexto social, que sto determinadas por esse contexto e que contribuem para o modo pelo qual o contexto social da prosseguimento a sua existéncia” (1997), A identidade é um fenémeno relacional, uma vez que é construida a partir da negago do que nao se quer e da afirmapo do que se pretende ser. Assim, as identidades no séo estaticas, ja que esto sempre se modificando com menor ou maior grau de intensidade, absorvendo alguns tracos e repelindo outros, quase sempre, em termos de oposis maneira que marcas nafurais (aomem/mulher, branco/negro) sao transformadas em consirutos sociais que classificam o sujeito em relagdes de subordina;ao: um homem que nasce negro nfo nasce com uma identidade social da raya negra, esta lhe ¢ imposta dentro da sociedade, da mesma forma que o bebé ao nascer, embora possuindo a marca bioldgica que o distingue entre masculino ou feminino, so aprende a se comportar como homem ou mulher dentro dos construtos da sociedade 33 © conceito de género com o qual estarei trabalhando aqui compreende 0 conjunto de caracteristicas que compem homens e mulheres dentro de conven;des socialmente estabelecidas, o que implica em afirmar que género nfo ¢ algo fixo, mas construido dentro da interago social (Connell, 1995), diferente, portanto, da concepsfo que considera masculino ou feminino como algo relacionado ao aspecto bioldgico, Existem dois modelos identitarios: 0 essencialista que entende que o homem herda caracteristicas e idéias sobre 0 mundo que orientardo suas préticas ao longo da vida e o néo essencialista que compreende que aidentidade ¢ miltipla e, portanto, sujeita a modificarbes através do tempo. Uma viséo como a essencialista néo ¢ capaz de oferecer uma perspectiva ampla sobre a questo dos géneros, uma vez que, dentro desta forma de pensamento, tudo ¢ compreendide como estando “inscrito por antecipapdo, sem possibilidade de mudanga ou de cria;do Prisioneiros de um esquema predeterminado, homem e mulher estéo condenados a desempenhar para sempre os mesmos papéis”. (Badinter, 1993) Uma vez colocada a posiso criticaliteraria feminista em seus estudos bastante avangados, cabe agora retomar ao universo feminino medieval ¢ observar que, nos textos sobre a demanda do Santo Graal, a tendéncia feminina surgira fequentemente aliada a idéia de pecado. Da mesma forma que um homem se perdeu por causa de uma mulher, sendo por isso expulso do paraiso, também os cavaleiros que se aventuram na corte arturiana podem ser expulsos da possibilidade de contemplarem as maravilhas do vaso sagrado caso se deixem cair em tentapdo. Assim sendo, numa leitura atenta dessas obras, verifica-se 0 aparecimento de damas ¢ donzelas que permitem atestar a honra e a cortesia dos cavaleiros. Entendendo-se cortesia — ideal ético ¢ social da cavalaria — como uma nogéo que engloba tudo, todas as qualidades morais do perfeito cavaleiro (generosidade, humildade, lealdade, bravura etc), Imente também se entende como os cavaleiros atendiam, sem questionar, aos pedidos desses seres que se rodeavam de uma aura de mistério e maravilha, as damas e donzelas. E assim que, por exemplo, Perceval atende a aflico de Blanchefleur quando esta solicita a0 cavaleiro libertar o seu castelo, Ele assim o faz com sucessol Intervir a favor de uma mulher e ampara-la fazia parte das virtudes de um cavaleiro O papel da mulher na sociedade medieval € bastante ambiguo, pois, se era exigido dos cavaleiros em busca do Graal que no fossem seguidos por damas ou donzelas, eles, sempre que solicitados, dispunham-se a servi-las para desta forma atestarem sua cortesia e sua honra Em tragos muito gerais, coexistem nas paginas dos contos arturianos, néo especificamente em Perceval, traros bem marcantes do aparecimento em cena das mulheres. Por um lado elas s40 0 amor e a fonte de toda a coragem dos cavaleiros e, por outro, so vistas como simples encamaydes do mal que usam suas belas e frageis figuras para tentar e seduzir o homem, desviando-o assim de suas missbes. O carater misterioso que rodeia as personagens femininas emerge também daquelas que prevéem o futuro, intimidando os cavaleiras com suas falas amearadoras, como foi 0 caso da prima de Perceval e da mulher feia que 0 amaldigoaram por nao ter feito a pergunta sobre a ceriménia do Graal que ele havia presenciado no palacio do Rei Pescador Neste trabalho, as mulheres que sero objeto de estudo, a mae, a mulher da tenda a Blanchefleur ea mulher feia, tém em comum os diversos fios de inluéncias, quer do ponto de vista ideolégico-moral, quer do ponto de vista do encontro de épocas e sociedades diversas como a celta e medieval. Nao raro, o aspecto magico permeava o ciclo arturiano em se tratando de personagem feminino, a maior de todas as fadas sendo sem duvida a 34 Morgana Preferi deixar para tras seu carter maligno ¢ exaltar seus fios magicos que sero tecidos por outras maos, que por sua vez bordardo outras tramas sobre a busca do Graal 5-Amie A relagdo de Perceval com a mie desde cedo foi bastante inusitada uma vez que ela, ja viva, resolveu poupar 0 filho das amarguras da cavalaria, Seu marido havia sido ferido em combate, bem como seus outros dois filhos que nao sobreviveram. O luto por essas perdas o levou morte e agora ela sozinha havia de cuidar da criago deste filho. Decidiu que, escondendo Perceval na floresta, este jamais tomaria conhecimento das artes cavaleirescas Ele cresceu jogando dardos e ouvindo de sua mae conselhos religiosos. Num desses dias de brincadeiras encontrou-se com um grupo de cavaleiros e naturalmente nfo os reconh Sua ingenuidade era absoluta e sua inabilidade quanto ao comportamento social erainfinita Perceval era até este momento um rapaz tolo e fragil (Orapaz owve mas nfo vé os que chegam a bom passo. Espante-se dizendo consigo: por minh’alma, rinha mie e senhore diz a verdade quando efirma que of diabos sfo as mais feias cousas do mundo, ¢ censina que eu faga o sinal da cruz para me proteger deles. ~ Garoto, no teas medo! + Pelo Salvador em que creio, no tenho medo! Diz o rapaz ~Sois Deus? Claro que ni! + Enfio quem sois? *Umemvaeizo * Gavalaito? Nio corhago ninguim assim chamado! Nunce vi umn, Potém sois mais belo que Deus Gostana de parecer conosco, assim todo bnihante e afeitadol "(in Perceval, Chretien de Troyes, Pig2) A patir deste instante, muda a vida de Perceval. Diz ame que quer ser cavaleiro, esta desfalecel “Caro filho, meu coregéo muito sofiew com vossa auséncia.Tive tanta tristeza que por pouco silo mom Onde estivestes tio longe? ~ Onde? Mie, vou contar Em nada vos mentiei, ois mui grande jibilo senti de uma cousa que vi Mie, nio dizieis que os enjos e Deus Nosso Sextor sio tio belos que jamais Natureza fez tio belas natures? Sim, cao flko,¢ digo einda. Digo e repito. Mie, calai-vos! Pois vi hoje ex mais beles couses que existem, indo pele Gasta Floresta. Creio que io mais belos do que o propio Deus e todos os Sews anjos. A mie foma-o nos bregos. ~ Caro filko, entrego-te a Dews porque tenho mui grende medo port, Segundo creo, viste os anj dos Gquais a genfe se queixa pois matam tudo que atingem. = Verdaceiramente, nfo! Mie! Oh, isso ndo! Nao! Eles dizem chamar-se cavaleiros. ‘Acesta palvia a mde desfelece. Quando volt si, diz em grande coler: ~ Ak, infeliz que sou! Caro filho, eu aceditava vos manter tio bem afastado de cavalaria que jamais ouviteis falar dela! Nunca vos deixavamos ver um cavaleiro,"(in Perceval pg, 31), Segundo Emma Jung em seu livra “A Lenda do Graal, a posi;o adotada pela mae de escolher um domicilio tao afastado deve-se a seu desejo de proteger o illo dos perigos do mundo, especialmente dos da cavalaria, A mae quer manter o filho sob suas asas longe das 6 influéncias do mundo a fim de protegé-lo dos perigos e dificuldades. Esta atitude corresponde a um instinto fimdamental que existe também nos animais e é chamado de instinto protetor da ninhada Isto, se levado adiante em idade avancada do filho, pode acarretar estados neurdticos que Freud chamou de Complexo de Edipo, ao qual confere importancia fundamental. J4 Jung demonstrou em sua obra Symbole der Wandlung, que a “saudade da mae" pode ser entendida como a ocultarao do anseio de crescimento e transforma;ao, chegando assim ao significado transpessoal da mée, Encarada deste ponto de vista, ela no mais uma determinada pessoa, porém, a doadora ¢ conservadora da vida, 2, no mais amplo sentido, comparavel ao inconsciente, fonte e raiz de toda a vida psiqnica O desejo de nao largar 0 filho muitas vezes ¢ representado nos mitos e contos pelo ato de devora-lo ou matalo, Jung fala da mae medonha ou devoradora que ¢ representada na mitologia como uma deusa cruel e destruidora, como a Kali indiana e, nos contos de fadas, como madrasta ou bruza A decisio de Perceval de ir ao encontro ao Rei Artur e assim se fazer cavaleiro rompe definitivamente a sua relagao com a mae que, de tanta dor, falece Antes, porém, 20 entender que a separardo era inevitavel, ela ainda o ajuda a vestir-se, a moda galesa por certo, mas talvez numa tiltima tentativa de servi. Este aspecto, sim, gostaria de salientar. Em algum momento da vida das maes elas vivem como “senhoras do servis”, séo elas que alimentam os filhos, os educam, os orientam, os protegem, os ajudam e fazem dessas tarefas seus abjetivos de vida Apesar de as criticas insistirem em posicionar esta mulher como protetora-devoradora, hha que se reconhecer que todo o esforco dela foi no sentido de poupar Perceval de um golpe de espada fatal, Este movimento ¢ de amor, assim como seus ensinamentos religiosos ¢ suas considerases em relayao ao tratamento com as donzelas "Se encontrandes, perto ou longe, dama que tenba preciséo de ajuda ou damizala em desgraca, sede ronto @ socomé-las assim que vos solicitarem. Quem as damas no presta honre é porque néo fem hhonra no coragéo...” (in Perceval-pig-32). 6 Amulher da tenda Perceval esta na sua busca Andando pela floresta passa por toda a sorte de aventuras, Um dia encontra uma tenda e, como em toda a sua vida apenas conhecera uma simples cabana, deixa-se levar pela curiosidade ¢, 14 entrando, depara-se com uma donzela que Ihe implora que va embora, que suma dali antes que seu companheiro volte e pegue Perceval com ela Nosso herdi nem liga para seus pedidos e a toma nos bracos, beijando-a de uma forma ‘bastante instintiva, sem muito se importar com os comprometimentos sociais implicados neste ato. "Quando o rapaz penetrou sob @ tenda, seu cavalo fz tal barulho de cascos que a donzela ow Despertou. Estremeceu, Muito inocent, o apaz diz: - Damizela, euvos said, pois mina me recomendou-me seudar todas as damizels, em todo o lugar onde as encontrar. ‘A donzela treme de medo, pois esse rapez parece louco, e ela pensa que também é louca de deixar que ‘@ achem sozinha nesse lugar = Vai embore, paz! Segue teu camino, que meu amigo néo te vejal = No entanto vos besjrei, jo! Tanto pior para quem se agestar! 36 - Nunca vos beijarei, se puder me defender ~ diz a donzela. - Foge! Que meu amigo nfo te encontte aqui, ou estis morta! ‘Mas'0 mogo tem bragos fortes e a abraga avidemente, pois nio sabe fazer de outra forma Segura-a deitada sob seu corpo, malgrado a defesa que ele tenta para se desvencilhar. Mas em vio (Queira ou nfo, o rapaz beija-a sem parar sete vezes a fio, diz o conto. Ao fazer assim, vé que a donzela ‘haz no dedo um anel de owo onde brilha uma esmeralda. ~ Minha mie disse também para eu tomar vosso anel, sem nada mais vos fazer. Eia o anel! Quero té-lo! ~ Juro que nfo 0 terds se no o auancares a forge! (Onmoco segura-a pelo pulso, estica-lhe o dedo, pega o anel, passe-o para seu proprio dedd e diz: -Damuzele, desejo-vos todos os bens! Agora vou emibore, bem pago. Sebeis dar beijos bem melhores que as camareizas da casa de minha mie, pois nfo tendes boca amaiga. Porém, a damizela chore e diz: -Néo leves embora meu anelzinho! Serei maltratada por isso e, quanto a ti, perderés a vide a qualquer ‘momento, tenho certeza. Ele parece nada compreender dessas palavras. E verdad que jejuow tempo demais! Esti morendo de fome. Avista um bamiete de vino. Ao lado, uma taga de prata. Depois, sobre um feixe de junco, um guardanapo branco e novo. Exgue-o, Encontra embaixo trés belas tortas de came de cabrio, que mio 0 podem desagradar. Por grande fome, eis que comeca a comer uma torta, que acha gostosa. Enche grandes copadas e as engole em laigos sorvos. O vinho no é dos piores! O rapaz continua a comer o quanto Ihe aprez. Bebe tanto quanto tem vontede. Depois toma a cobrir 0 restante, despedindo-se, recomendando a Deus aquela que néo lhe esté nem um pouco reconhecida: = Deus vos salve, caza amiga! Néo fiqueis téo agastada comigo por levar seu anelzinho. Antes que eu ‘mora fereis recompensa por isso. Acdonzela chora e diz que no o recomendara a Deus, pois por causa dele softerd desventura e desonra, rais do que qualquer cativa. Bem sabe que ele nunca Ihe prestaré ajuda nem socorro””(in Perceval-pg, 3435) Se 0 papel desempenhado pelas donzelas permite, em alguns casos, pér a prova, comprovando ou no o espisito do cavaleiro de defesa e prote;ao dos seres femininos, bem como da satisfaro dos desejos por eles expressos, outras ocasides ha em que estas personagens servem magnificamente para atestar a vilania dos cavaleiros e, desta forma, os excluir de imediato do grupo daqueles que contemplarao as maravilhas do Graal. Como Perceval de nada ainda sabia sobre os deveres de um cavaleiro, agiu de forma errada atropelando as leis da cavalaria. Deste encontro fortuito Perceval realizou seus desejos, alimentou-se, saboreou o vinho e ainda levou um anel. A postura da mulher da tenda foi retratada aqui nesse romance como a mulher usada, aquela que se descarta depois, sem maiores dores ou culpas. Nenhum sentimento esteve envolvido neste encontro a nfo sero de humilhapao dela perante seu ciumento companheiro "E fica 1d chorando. Seu amigo néo tarda a retomar do bosque. Vé que a amiga chora e, curioso, pergunta: = Damizela, por estes vestigios que vejo, creio bem que veio aqui um cavaleiro, = Nio senkor, asseguro, Mas veio um campinio gelés maldoso, feio e louco, que bebeu de vosso vinho ‘quanto quis. Comeu tiés de vossos empadées, - E porisso que chorais, bela? - Ha mais senhor - diz ele. - Tem a ver com meu anel: ele o tomou e levou embora, Eu queria estar mortal = Palavra - toma o amigo — howve ultraje! Jé que mais. Dizei-me sem nada oculter - Size - diz ela - ele me beijou. = Beijou? - Verdadeizamente, asseguo, foi mau grado meu, = Ao contrério! Isso vos agradou e nfo opusestes defesa — diz o cavaleizo ciumento. - Pensais que no ‘vos conhego? Néo sou téo cego ou vesgo para nio ver vossa falsidade. Tomastes caminho mau. Duro 7 penar vos aguarda, Nunca mais vosso cavalo comer aveia nem seré cuidado, até que do feito esteja ‘angado! Se perder a ferradura, néo serd mais ferrado! Se momrer, tereis de seguir-me a pe! Nunca mals ‘nocareis de roupa e caminhareis @ pé e nua, enquanto eu néo coitar a cabega desse que aqui veio. Néo desejo outa justiga. "(in Perceval, pg, 34-36)”. As mulheres medievais softiam com a vergonha que lhes era imposta mas ao que parece nada muito diferente acontece ainda nos dias de hoje, quando pademos verificar 0 exercicio dessa pratica talvez numa tentativa de provar a resisténcia masculina Nota-se, porém, que esta mulher foi apresentada aqui sem nome, conhecida apenas como “mulher da tenda” que de alguma forma serviu ao cavaleiro, No processo de amadurecimento de Perceval, pode-se constatar ao longo da narrativa que ela teve importancia fundamental ja que o herdi mais tarde aprendeu que nada do que ele havia feito com ela é mérito de um verdadeiro cavaleiro. Ela serviu como um degrau para o seu aprimoramento. Tambem através dela e deste encontro fortuito, Perceval aprenderia que o cavaleiro cortés sera, em suma, nfo um modelo apenas de valentia, inteligéncia elegancia e formosura, mas, acima de tudo, um modelo de dedicayo as donas e donzelas 7- A Blanchefleur Perceval a esta altura jé havia encontrado com Gomemant de Gort, homem que lhe ensinow as artes da cavalaria =, Caro amigo, apende agora as armas e dbservai como homem deve seguir a langa, come faz 0 cavalo andar e coino o dete" Desfieldada entio sue insignia, mosta co mapaz como se deve seguar o escudo.."(in Perceval, pe, 40” Continuando entio suas aventuras, Perceval chega a uma cidade quase morta — “Em nenhum lugar homem encontra pao nem bolo, nem cousa 4 venda, inutil procurar vinho ou cerveja”. Porém, chega ao castelo onde valetes o guiam por uma escada até uma grande sala onde o aguarda a damizela ‘a damizela que se aproximava era mais graciosa, vivaz e elegante que falco ou arara. O mantoe @ ‘tinica eram purpura escwo estrelado de veiros, com guamigéo de arminko, e bela gola de marta aibelina branca e preta. Se jé descrevi a beleza que Deus pode colocar em corpo ou rosto de mulher, desejo fazé-lo mais uma vez, sem mentir uma palavra. Os cabelos que flutuavam sobre as espiduas ‘pueciam fino owo, tanto exam luzentes e lowros. A fronte era alte, branca e lisa, como talhada por mio humana em mémore, marfim ou madeira preciosa, supercilios castanhos, olhos cinza-claros, bem. separados, obliquos e'nisonhos. Nariz reto. O branco sobre 0 rubro, iluminava seu rosto melhor que sinople sobre yrata. Para anrebater o coraéo das pessoas, Deus a fizera a Mais-que-Marevilha. ( in Perceval-pe,49) Perceval, portanto nfo encontra a mée neste ponto do caminho e sim, a mulher e, ainda por cima, uma pessoa super atraente e isresistivel ao sentimento masculino. a da beldade aflita e que necessita de prote;o. De modo encantadoramente ingénuo, ela vem & noite para a cama de Perceval contar-Ihe sua aflizo 38 "Avista a damizela ajoelhada & beira do leito, abracando-lhe estreitamente o peito. Por cortesia, abraga-a da mesma forma e, estreitendo-a firmemente, pergunta, ~ Bela, o que desejais? Por que viestes? ~ Piedad, sire cavaleiro! Por Deus e por Seu Filho, suplico que néo me julgueis mais vil porque vim ‘io pouco vestida, como vedes.."(in Perceval, pg-50)”. Assim ela pede ajuda ao cavaleiro, diz que néo agiienta mais tanto soffimento ¢ que seu reino esta em ruinas. Perceval a coloca em seu leito e ela aceita seus beijos sem muito sacrificio! Assim ficaram toda a noite, bem juntos e boca a boce, até chegar a mana. Nesta noite a anfitié encontrou consolo: boca a baca e corpo ‘ compo eles repousaiam até 0 alvorecer”( in Perceval, pg-52). Segundo Emma Jung (in A Lenda do Graal-pg, 49) analisa, “deve ter-se tratado, antes de tudo, de demonstrar a mulher uma verdadeira considerapao e de estabelecer com ela um relacionamento que nfo fosse apenas de natureza instintivo-erdtica, de méos dadas com isso ia também a considerayao da feminilidade em geral, sobretudo da feminilidade propria do homem, isto ¢, da Anima, Sob a designagio de Anima Jung entendia a personificago do inconsciente do homem, que surge, nos seus sonhos, visdes e fantasias criativas, como mulher ou deusa A sua imagem parece derivar da mae e nela como que se incorpora a porgao de feminilidade que vive o homem e também a experiéncia que o homem tem com a mulher. Mas ela é também, ao mesmo tempo, o a prion de todas as experiéncias do homem com a mulher, porque, surgindo como deusa, a Anima € um arquétipo ¢ possui por isso, uma existéncia real invisivel anterior a toda a experiéncia Na literatura do Graal, encontram-se muitas figuras femininas que tém o caréter de Anima e devem ser consideradas menos como mulheres reais do que como figuras de Anima que possuem cardter sobre-humano trayos arquetipicos. Parece-me, contudo, que na figura de Blanchefleur, a mulher real ¢ mais acentuada do que o carter da Anima porque este ainda é totalmente projetado. Corresponde também marcha de desenvolvimento de Perceval que agora — depois de ter deizado a mée e de enfrentar o mundo como cavaleiro — encontra também a mulher objetiva com a qual, neste nivel, o problema da Anima ainda esta indistintamente mesclado.” Perceval luta, retoma o castelo, recompde a harmonia e, juntos, ele e Blanchefleur podem folgar a vontade e se abragar, ¢ beijar, felizes do jubilo partilhado, até que ele sabe de um novo desafio =“. Por gue ir a este batelha? Mais valeria permanecer em paz no caste. O que temer ainda de Clamadew e sua gente? ‘Mbas tio pouco ela é owvida. Isso é maravilha, pois fala com tanta meiguice, beijando o amigo @ cada palevra, com beijo téo afetuoso e delicioso que Ihe pe a chave do amor na fechadue do corecio Porém nada edianta. Ele ie combater "in Perceval, -g, 59)” Apesar de sua posigfio no castelo de Blanchefleur, ele se rende a virilidade de se satisfazer unicamente com o amor de sua dama e com a vida agradavel de senhor do castelo. Muito embora ela desejasse que permanecessem juntos para que desta forma seu reino ficasse a salvo, ele parte para novas aventuras, abandonando sua amada Este abandono também significou um caminho para 0 seu processo de individuago. Também a Blanchefleur o ajudou a preencher um pouco mais a sua armadura, tomando-o agora um homem que conhece o amor. 39 8. Amulher feia © fato de algumas donzelas deste universo arturiano se relacionarem diretamente com poderes maléficos que atormentam os cavaleiros envolvidos na demanda do santo vaso pode levar o leitor a pensar que todas as aventuras tém por fungo por & provao cavaleiro, a fim de avaliar seu mérito ¢ sua boa conduta. O labirinto que permeia o ciclo arturiano ‘uma construso com muitos caminhos sinuosos ¢ entrecruzados e as vezes inexplicaveis, sugerindo o tom magico dos contos de cavalaria Estas donzelas, que revelam ultrapassar os limites temporais dominando 0 tempo futuro pelo conhecimento que dele tém, surgiram como mensageiras de uma entidade divina que preside aos destinos dos cavaleiros. O universo interior dessas varias donzelas permanece misterioso, eis 0 que nos conta a passagem da mulher feia, que tanto amaldigoou a vida de Perceval “... Nessa mesma note, o rei, a sainha ¢ os barées fizem grande festa a Peseeval, que conciuzem @ Caulion.Festejam toda @ noite, mais o dia seguinte. Depois, no terceizo dia, véem cheger wna donzela sobre una mula amarela, que guia com a mo dieita, das trengas negras costes, Homer eros vit ser ti feio, mesmo no infemol Homem jamais viu metal go bago com a cor de seu colo e des mifos Outre couse, porem exe bem pior os dois olhos, dois buracos nfo mores que olbos de ratos.O nariz era un nariz de gato, of labios de buuzo ou boi, os dentes amuzelos como gem de ovo, A bazba ez de ‘um bode. Peito corcunda, espn forcda. Ances ¢ ombro mu bons pura o baile. Outa coreunda nat costes, pemas fortes como vara de vime, também proprias pare a danga ‘A doncela impele a mula até diante do zei Artur. Haveria homem jamais visto na corle uma joven ‘ssin? Ele sala 0 rei ea todos os bardes,exceto Perceval sem descer da mula diz ele: - Ah, Perceval, fortum tem cabelos na fiente, mas por tés € calval Mito seja quem te sauder ou te Gesejarelgum bem! Néo soubestes agerar a fortuna quando passou perto de til Estiveste em casa de rei Pescador e wiste a langa que sangza, Seria tio custoso abries a boce, emuties um som, tanto que xo, nfo pudeste perguntar a rio da gota de sangue que core da ponte da lange? Viste o Grea, mas a runguém perguntaste quem era o rico homem servido por ele. E digno de pena quem vé tempo fio belo, to clao, fio favorevel e espera cet inda mais belo! E de ti que flo. Foi esse teu caso. Era tempo © ugar de falar. Quedaste mudo. Néo te faltou azo. Teu siléncio nos foi nefasto. Era mister fazer a peigunta."(in Perceval-pg, 85-86)" A prestagéo de um servigo a mando de uma donzela reveste, por vezes, caracteristicas diferentes, visto que 0 pedido ¢ inicialmente envolvido por um caréter misterioso, pois néo explicita o objeto e 0 objetivo do pretendido. Isto faz com que o cavaleiro fique ligado a promessa de reparar o suposto dano, quer dizer, se entrega a nova missdo até que tenha a solugio do caso. Especificamente nesta passagem da mulher jeia ha que se entender que a bruxaria se tomara uma prética, justamente por ocasiao do florescimento do cristianismo medieval. Segundo Emma Jung, “.. a espiritualizagao demasiado unilateral por um lado, ¢ © fato de, no culto a Maria, apenas o aspecto coletivo e luminoso do elemento feminino encontrar manifestayao, vivificaram os lados sombrios da feminilidade, conferindo-lhe um carater demoniaco amearador”. A mulher feia aparece com esta conotapao: é uma figura horrorosa que ofende, ameara e ainda vem envolvida de misténio e magia Nos contos de cavalaria do ciclo atturiano, os fios nfo vao sendo tecidos de forma homogénea, uns se desprendem exiginds que os transformemos de outros novelos para agueles que vinhamos tecendo para o caminho do Graal, simbolo que, ao longo de todo 0 percurso de andlise, nos transforma em identificadores de sentidos ¢, por que néo, em sonhadores de significados. O universo intemo da magica mulher feia permanece de tal 40 forma misterioso que pode de imediato trazer meméria o provérbio que abre este trabalho “Plus profond est le coeur des femmes que la plus profonde mer du monde” 9- Breveresumo do romance Perceval Perceval no cruzou apenas com essas quatro mulheres em sua busca pessoal, mas estudé- las mais cautelosamente pode ajudar a entender melhor a saga do herdi. Destle que abandonou a mae, em busca de pertencer a cavalaria, suas aventuras foram no sentido de voltar um dia para ver a mée. Encontrou a mulher da tenda fortuitamente, vai corte de Astur ¢ ingenuamente pede para ser cavaleiro, luta com 0 Cavaleiro Vermelho ¢ o mata com um dardo. Na tentativa de ver amée, se encontra com Gomemanz de Goort que lhe ensina as artes da cavalaria. Parte outra vez para casa e se depara com o castelo de Blanchefleur e 14 conhece o amor. Sai em batalha e, sempre na tentativa de voltar para ver a mae, descobre o castelo do rei Pescador ¢ 1a, além de receber a espada, testemunha a ceriménia do Graal e comete seu maior erro — no pergunta o significado daquilo. No dia seguinte, esta sozinho no castelo e, quando parte pela ponte, esta ¢ levantada sem que ele veja por quem, Seu encontro com a prima dizendo-lhe que a mae havia morrido e a culpa jogada sobre ele quanto a omisséo da pergunta do cortejo do Graal, faz com que 0 cavaleiro atormentado, siga em frente. Se tivesse perguntado sobre o ritual que viu, o rei Pescador voltaria a andar, pois o encanto teria sido desfeit Perceval volta a encontrar a mulher da tenda, ela em lamentavel estado, toda maltrapilha e machucada, pois seu ciumento companheiro nao havia acreditado em sua historia. O heréi promete-Ihe reparar a injustiza que sofrera Pemoitando numa clareira da floresta, percebeu que havia nevado e presencia a luta de um falcdo com patos selvagens, um deles cai ferido 2, quando Perceval vai salva-lo, langa voo deixando gotas de sangue na neve. Esta cena o faz lembrar de Blanchefleur e ele se pie a refletir. Revé sua trajetoria 0 surgimento da triste mulher de quem ele havia roubado 0 beijo o anel, tomando-a desgracada, depois, a morte da mée, 0 erro em nao fazer a pergunta do Graal e a infeliz lembranga da abandonada Blanchefleur. Paralisado em seus pensamentos, é socorrido e levado a corte de Artur onde acolhido como membro da cavalaria do rei. O encontro com a mulher feia € doloroso, pois esta, além de no o cumprimentar com efusiva saudapao, o acusa de nao ter feito a pergunta do Graal e Ihe roga pragas horriveis. O cavaleiro faz disso a sua misséo ¢ sai em busca do objeto sagradlo. Ao encontrar com o eremita que era seu tio, inicia seu caminho espiritual Chrétien de Troyes faleceu antes de terminar 0 conto, mas deixou muitos seguidores que escreveram varias versdes diferentes para encaminhar a saga do herdi Do ponto de vista psicologico, Perceval encontra outra coisa “.. a sua tarefa, agora mnhecida claramente, ¢ 0 seu objetivo, que apesar de todas as reviravoltas, ele nunca rect mais perdera de vista A capacidade de se impor um objetivo e de persegui-lo com constancia é outra conquista no decorrer do desenvolvimento humano...”. (in A Lenda do Graal-pg,138), Essas mulheres sem divida fizeram parte do crescimento do cavaleiro, elas aprendeu a se tomar um homem melhor! an 10- Conclusio A experiéncia do Graal para Perceval esta estreitamente ligada ao desenvolvimento de sua consciéncia A espada que o cavaleiro recebe anuncia simbolicamente esta conquista, bem como suas experiéncias com as figuras femininas que, de toda forma, o ajudaram neste processo, Se analisarmos 0 crescimento do nosso herdi, em muitos outros simples quesitos poderemos verificar a suamelhora ¢ um bom exemplo disso seria através das roupas. Num primeiro momento ele é apresentado como um galés usando roupas nisticas, simples como ele. Ao ganhar sua primeira armadura toma-se cavaleiro, mas s0 por fora, precisa ainda se fortalecer tanto intelectualmente como psicologicamente e espiritualmente, Sua experiéncia com seu instrutor Gomemanz de Goort nfo s6 Ihe da a chance de vivenciar a presenga masculina, a figura do pai, como também o toma sabedor das artes cavaleirescas, Mais tarde, seu encontro com o ermitéo Ihe proporciona a vivéncia religiosa fortalecendo ainda mais seu espirito, aprendendo afinal que ¢ preciso se desarmar parao encontro com Deus! Como este estudo esta concentrado nas questées do género feminino, ha que ressaltar aqui que os personagens femininos foram criados e representados por homens, o que contribuiu para a predominéncia do discurso hegeménico do patriarcado, direcionando as vozes femininas e, conseqiientemente, moldando o espa;o da mulher no mundo medieval Saber como se origina o patriarcado ¢ irrelevante para os desafios que a mulher tem de enfrentar dentro das sociedades assim constituidas, ainda nos nossos dias. Basta considerar a diferenga de oportunidades no mercado de trabalho e a efetivacio de sua capacidade de atuago no desenvolvimento humano, quer seja este politico, cientifico ou tecnalogico, Por outro lado, conhecer a historia que mantém a mulher afastada da esfera de atuarai da sociedade, cria uma ferramenta util para todos que se propdem a refletir sobre essas préticas e que possam quebrar esses moldes opressores daqui para frente Talvez a maior virtude do texto medieval resida no fato de que, além de fizar nosso olhar no pasado, ele nos leva a refletir a respeito de nosso proprio mundo social e dos desafios que temos de superar para a construgo de uma politica de género mais igualitaria nos diversos campos do desempenho humano No desensolar desta pesquisa, constatei que a mulher tem uma natureza propria, ¢ esta é acolhedora, doadora, paciente e intuitiva, independentemente da época em que vive. Sua aptidao geradora da esse tom de misturar suas diversas facetas como filha mée, esposa, amente, amiga, avo, profissional, seja la em que area atuar, a mulher vai estar presente tecendo seus fios para melhorar o bordado do mundo, assim como as figuras femininas estudadas neste artigo ajudaram e melhoraram o crescimento do herei Perceval Notas ‘Todas as cotagdes deste artigo estio citadas nas paginas e identificadas entre parénteses. dos didlogos transcritos in Perceval, editedo pela ‘A passagem sobre @ discussio da teoria de Jung para os quatro lados da prigué feminina foi resultado da leita dos seguintes livios: The Moon and The Virgin (New York: Harper and Row, 1980) e The Feminine in Jungian Psychology (Evanston: Northwestern. UP, 1971), 42 ‘A cofagéo inicial que inaugura o trabalho é um provéibio bretéo da ilha de Batz in La Femme Cele, Jean ‘Markale, achado na Interne. Para a realizacéo desta pesquisa foi estudado também o ensaio feminista da autora GUEDES, P: Bebween the ‘Cauldron of Ceridwen and the Christian Cross: Feminist Revisions of The Arthurian Legend. Este estudo foi baseacio também em toda a bibliografia oferecida durante o cwso LET 2383. Referéncias bibliograficas JACOBINA, Eloa ¢ KUHNER, Maria Helena (1998). Feminino Masculino no Imagindrio de Diferentes Epocas: Bertrand Brasil, Rio de Janeiro SUSSEKIND, Flora e DIAS, Tania e AZEVEDO, Carlito. ( 2003 ). Vozes Femininas Fundacao Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro, Brasil WEBSTER, Roger (1996). Studying Literary Theory : London: Amold. De onde foram tiradas passagens referents ao Segundo Sexo (1940), BEAUVOIR, Simone © Seu Proprio Quarto (1928) : WOOLF, Virginia MILLET, Kate (1993). Sexual Politics. London: Viragoto MACHADO, Roberto (1982). Por Uma Genealogia do Poder : In: FOUCAULT, M Microfisica do Poder. Tradugo: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, VII-XXIII MILLS, Sara (1997). Discourse. London é& New York: Routledge. BADINTER, Elizabeth (1993). XY Sobre a Identidade Masculina. Traduso: Maria Ignez Duque Estrada, Rio de Janeiro: Nova Fronteira CONNEL, RW (1995). Masculinities. Cambridge. Polity Press STONE, Lawrence (1979). The Family Sex and Mariage in England. Harmondsworth. Penguin Books. JUNG, Emma (1980). 4 Lenda Do Graal. Tradugéo: Margit Martincic Editora Cultrix. Séo Paulo. Brasil. TROYES, Chretien de (2002). Perceval. Tradugao: Rosemary C. Abilio: Martins Fontes So Paulo. Brasil TROYES, Chretien de (1998). Romances da Tavola Redonda. Tradugéo: Rosemary C. Abilio: Martins Fontes. So Paulo. Brasil MEGALE, Heitor (1999). A Demanda do Santo Graal: Tradu;o: Heitor Megale. Atelié Editorial. So Paulo, Brasil 43 FURTADO, Anténio. Aventuras da Tévola Redonda : Editora Vozes. Petrépolis. Brasil FURTADO, Anténio (2001). Lais de Marta de Franca. Editora Vozes. Petrépolis. Brasil. Especialmente o prefacio de Marina Colasanti 44 Adaptagées Cinematograficas Arturiana Excalibur, Lancelot e As Brumas de Avalon Irene Bosisio Quental “Then it was, that the magnanimous Arthur, with all the kings end military force of Britain, fought against the Saxons. And though there were many more noble than himself, yet he was twelve times chosen their commander, and was as often conqueror” ( Gildas) 1- Introdugao A tradig&o literaria criada em tomo do rei Artur, conhecida como Matéria da Bretanha, nos traz uma série de escritos que relatam as fantésticas aventuras deste rei, que teria sido aquele que, a0 lado de seus cavaleiros, lutou bravamente pela Bretanha diante da terrivel amega de dominaro dos barbaros. Teria Artur realmente existide ou trata-se de uma lenda? A sesposta para tal pergunta permanence um mistério, mas suas historias recheadas de aventuras, batalhas, magia e bravura vém encantando leitores ja ha algum tempo Encantando nao apenas autores ¢ leitores como também diretores de cinema, que viram nas tramas arturianas elementos que poderiam encaixar-se adequadamente na linguagem cinematografica. Apdo, aventura, amor, traicao...aos olhos do cinema, o que mais poderia faltar nas lendarias historias do rei Artur para que se fizesse uma grande produgo? Foi 0 que diretores da industria cinematografica perceberam e executaram. filmes que, a partir da hiteratura referente ao lendario rei da Bretanha retratassem as aventuras ¢ conflitos que envalveram personagens como o proprio Artur, a rainha Guinevere, o cavaleiro Lancelot, Merlin, Morgana, Uther, Gawaine e muitos outros. Ao observarmos a lista de filmes arturianos, encontraremos obras como Excalibur, Lancelot (First Knight), As Brumas de Avalon, Camelot, Lovespell, Lancelot do Lago, O Graal, Knightriders varios mais Observando alguns desses filmes, veremos como ocorreram os pracessos de adaptaso das obras literarias para a grande tela, suas diferencas, personagens, estrutura A partir dos filmes Excalibur, Lancelot (First Knight) e As Brumas de Avalon analisaremos como a historia do rei Artur foi conduzida nesta outra linguagem que em muitos momentos costuma privilegiar a aro, o duelo entre o herdi e o viléo, a fantasia e, como nao poderia falter, os conflitos amorosos Para que possamos analisar adequadamente estas adaptagées ¢ fundamental que também observemos as obras literérias que serviram de fonte para sua construgéo. E importante lembrar que a figura do rei Artur foi mencionada pelos autores Gildas ¢ Nennius e que outros, como Geoffrey de Monmouth ¢ Chrétien de Troyes, produziram obras consideradas como grandes marcos dentro do ciclo arturiano. Também encontramos, como autor de obras relacionadas a Artur, o poeta Wace, que traduziu em versos a obra de Geofifey. Sera a partir destas obras que analisaremos os filmes arturianos, sendo que, no caso de Excalibur ede As Brumas de Avalon, teremos também como fonte de comparagao as narrativas A morte de Artur, de Thomas Malory e As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley. Como estaremos falando da questo da adaptaro, nfo podemos deixar de lado estes dois tiltimos livros citados, ja que dois filmes foram feitos baseados diretamente em seus textos 45 Mas acredito que o mais interessante seria observarmos as obras cinematograficas principalmente a partir das obras de Geoffrey, Chrétien e Wace, uma vez que estas foram as fontes iniciais de onde A morte de Artur ¢ As Brumas de Avalon foram provavelmente escritas, e também por estarem elas entre as mais reputadas da Matéria da Bretanha Para que possamos realizar uma andlise comparativa entre as obras literdrias e cinematograficas, é interessante também que observemos algumas questdes referentes as diferengas entre a linguagem escrita ¢ a do cinema Dessa forma sera possivel que se entenda de maneira mais clara algumas das diferenjas no processo de adapta;o. Através de autores como Marcos Rey, de artigos de Constanca Hertz e André Klotzel, teremos uma idéia de como funciona esta linguagem ¢ como se da a questo da adaptaro. Neste ponto, podemos comentar também a conveniéncia de elaborar uma adaptapfo para que se possa contar uma historia através de imagens, e da importéncia do roteiro neste processo. Gabriel Garcia Marquez, em “Como contar um conto”, fala um pouco sobre esta questo do roteiro e sualinguagem Por outro lado, sera igualmente interessante perceber que, apesar das diferengas entre essas duas linguagens, ambas estabelecem um dialogo que vem desde meados dos anos 20, como nos mostra Flora Sussekind em seu livro Cinematégrafo de letras. Nao é a toa que adapta;des so possiveis de serem feitas neste trabalho de transig&o entre o literario e 0 cinematografico Ao fim, 0 objetivo sera sempre contar uma historia, seja ela através desta ou daquela linguagem 2.—Adaptagao Ao procuramos pela defini . vemos que se trata de “modificar 0 texto de (obra literaria), ou tomando-o mais acessivel ao publico a que se destina ou transformando-o em pega teatral, script cinematografico, etc”. Esta definio contida no Dicionario Aurelio nos da inicialmente uma noo do que vamos observar a respeito dos textos arturianos que foram adaptados para uma outra linguagem: a cinematografica. O cinema de todo o mundo se utiliza da literatura como fonte para a criapio de projetos destinados a um grande ptiblico. Mas esta questo da adaptagéo costuma ser considerada por alguns um tema controvertido pois, na grande maioria das vezes, tais adptagdes néo so bem recebidas por aqueles que ja tiveram um contato anterior com a obra literaria A Aidelidade a obra original é, na maionia das vezes, cobrada pelos leitores que nao véem com bons olhos as possiveis modificagées realizadas pelos diretores cinematograficos. E importante que se discuta até que ponto o adaptador ¢ obrigado a se prender aos elementos a obra original e, portanto, ate que ponto pode ir sua liberdade criadora Esta utilizagao de uma concepgao de adaptaro filmica postulada em termos de Aidelidade faz com que obras cinematograficas que sejam adaptadas fiquem subordinadas aos critérios literarios. Trata-se de questo delicada, pois ¢ preciso que se analise também a linguagem para o qual determinada adaptapo foi feita. No caso do cinema, este percebeu que uma série de elementos presentes na literatura serviam adequadamente aos seus propésitos. Cineastas viram desde cedo que o universo literario abriga temas e estruturas narrativas que poderiam constituir uma verdadeira fonte de inspirago e de trabalho. Como exemplo temos o caso de Griffith, que reconheceu nas narrativas de Charles Dickens modelos, técnicas, conceprao de ritmo e de suspense e articulaydo de duas agdes simulténeas e paralelas que se encaixariam muito bem no formato cinematografico. Ja em 46 1867, Mélies adaptava da literatura Fausto e Margarida, em 1868, A Gata Borralheira ¢, em 1902, iniciava seu percurso de versées de obras de Julio Veme, com Viagem a Lua Vemos por ai que esta aproximagto do cinema com a literatura no que diz respeito a adaptapdes nZo é recente. Mesmo assim, as criticas referentes as adaptagdes sao muitas, como afirma Marcos Rey, em seu livro O Roteirista Profissional: “...a daptag4o, mesmo excelente, sempre desagrada os que dela esperam uma fidelidade maior. O piblico que leu o livro deseja vé-lo todo na tela. Notando a falta de uma cena ou dum personagem sem importancia, fica contra Uns arrogan-se defensores da obra deste ou daquele escritor, ¢ diante de uma adaptardo reagem agressivamente se algo na obra foi esquecido ou modificado” e, acrescenta logo depois, “no geral existe um juizo preconcebido contra adaptagdes” Este desagrado com relapo as adaptapdes é 0 que vemos também nos filmes que retratam a historia de Artur. Kevin J. Hartly comenta sobre esta questo ao se questionar sobre quais os critérios utilizados para a classificapo de uma filme arturiano como bom ou ruim. Hartly diz que, ao se julgar um filme arturiano, é necessério que antes se estabeleca quais sero os termos deste julgamento, sejam eles baseados na estética cinematografica ou baseados nas historias arturianas escritas, ou até mesmo em ambos os critérios. Mas, como no poderia deixar de ser, as criticas com relayao a alguns filmes arturianos como Lancelot ¢ As Brumas de Avalon néo foram muito animadoras. Quando estivermos anelisando cada filme, veremos algumas destas criticas e, claro, veremos também como estas adaptardes se deram. Mas antes ¢ importante que ainda nos detenhamos um pouco mais sobre a discusséo da adaptaro em geral, para que tenhamos uma base maior para nossa futura andlise arturiana Voltando portanto a questo dos critérios de escolha de julgamento citado por Kevin J Harily, também podemos observar alguns depoimentos de profissionais da area do cinema, como ¢0 caso do roteirista norte-americano Syd Field. Ele diz que o produto final adaptado no deve ser analisado segundo critérios de fidelidade, mas de funcionalidade dramatica Quer dizer, Field afirma que o roteirista do filme deve ter liberdade de criapo, uma vez que se esta utilizando de uma linguagem diferente. “ Adaptar ¢ a mesma coisa que escrever um roteiro original, pois o pracesso de adaptapao de uma narrativa implica a construgao de um outro texto, o dramatico (...) sao formas diferentes”. Outra opinido a respeito do tema é de Gérard-Denis Farcy, que ao falar de adaptapo diz que que o minimo inerente @ adaptaro esta na historia e néo nos personagens, que podem ser mudados. No entanto, a partir desta opinigo ¢ interessante pensarmos que, no caso dos filmes sobre o rei Artur, a histéria central que em principio deveria ser seguida esta intimamente ligada a um personagem: 0 rei. Ele € 0 centro da historia, é a figura legendaria que nas aventuras relatadas ¢ aquele que conduz as tramas com coragem e bravura. Estes aspectos do personagem, portanto, néo poderiam ser modificados ou alterados em nome de um novo e original roteiro. Dessa forma, a verdadeira esséncia que foi, desde o principio, a fonte para as aventuras dos cavaleiros da Tavola Redonda, nfo poderia ser transformada E, como veremos mais adiante, a figura de Artur e sua bravura e bondade nao sao alteradas nos filmes em questo Para que entéo entremos nos filmes analisados, seria interessante acrescentar que, se para a linguagem cinematografica parece ser apenas na historia que esta a parte central do trabalho de transposigo ou adaptario, nao devemos nos esquecer das consideragies de alguns profissionais do cinema que dizem respeito as condigies necessarias para que uma adaptarao seja realizada da forma o mais fiel possivel. A primeira destas considerardes que o texto original seja condizente com a durapo pretendida pelo cinema, para que néo a7 seja necessério acrescentar ou suprimar muitas cenas. Na grande meioria dos casos, as obras literarias, ao passarem para as telas, sofrem cortes para que a duragéo cinematografica seja adequada Veremos que, no caso de As Brumas de Avalon, o diretor pereceu querer transpor quase que integralmente a obra original, o que resultou em um filme extremamente longo e por vezes cansativo. Outra consideraso importante se refere importancia de as ages do original serem “filmaveis”, nao apenas de acordo com as possibilidades de orpamento e produsao, mas que sejam ages proprias para a tela do cinema Dessa forma, alguns autores afirmam que existem textos propriamente adaptaveis e outros que constituem um desafio, Sobre isto Umberto Eco diz que “(..) a historia e enredo nao so fungdes da linguagem, mas estruturas quase sempre passiveis de tradugo para outro sistema semiotico”. Estas tradugées ocorrem em conformidade com o texto original e o essencial parece residir na maior ou menor capacidade de a obra filmica gerar um produto estético de boa qualidade. Este ¢ 0 critério discutido em artigo sobre cinema, literatura e adaptayao cinematografica, de Sérgio Paulo Guimaraes de Souza Ele diz também que, sempre que se discute ou questiona a adaptapao ao cinema de um objeto literario, abala-se a centralidade concedida 4 fidelidade como critério de avaliago, e aposta-se na tOnica de que uma apropriapo filmica da obra literaria corresponde a uma leitura desta Como se dara esta leitura é 0 que podemos observar A partir dai, poderiamos comegar a pensar: e os textos arturianos? Sao adaptaveis? Constituem um desafio? 3—Adaptagées arturianas Apesar da defesa de alguns profissionias cinematograficos com relagio as adapta;bes filmicas de obras literarias, percebemos que na meioria das vezes existe um juizo preconcebido contra estas adaptagies, Mesmo assim, elas continuam sendo feitas, e cada ‘uma apresenta resultados to diversos que podemos pensar que realmente néo existe um modelo pré-estabelecido para todos os casos. Trata-se de um processo que exige esforso ¢ criatividade dos roteisistas para que consigam transformar em imagens as mais diversas narrativas. Como vimos também, algumas obras parecem possuir caracterisitcas que so mais facilmente adaptaveis para o cinema No caso das obras literdrias arturianas, percebemos que existem ingredintes que, antes de mais nada, estéo de acordo com as intenges que envolvem as produgdes de cinema Elementos que compéem uma historia dramética, capaz de prender a atengo do espectador, esto todos presentes na historia do rei Artur, como grandes batalhas envolvendo herdis e barbaros inimigos, aventuras recheadas de magia e coragem que envolvem a figura de um tipico heréi de cinema um rei ‘bom, justo, corajoso, carismatico. Ao levar para as telas um personagem com tais caracteristicas, 0 diretor e o roteirista tem a possibilidade de trabalhar com um tipo que agrada tradicionalmente o grande publico. Nao podemos no entanto deixar de lembrar que as produgdes cinematograficas ao estilo Hollywood costumam levar ao extremos esta dinémica entre o her6i eo bandido. Por ser uma estrutura altamente explorada, vemos nos filmes arturianos a figura do personagem mau bem marcada, constrastando com as qualidades do heréi e seus figis companheiros, sempre bravos e prontos para aluta Mas, se observarmos bem, é exatamente isto o que vemos nas obras literdias arturianas. 0 rei bom, quase que sem defeitos, junto a seus cavaleiros e contra os inimigos saxdes barbaros maus, Talvez seja por isto mesmo que as narrativas arturianas tenham inspirados tantos 48 diretores que viram nas aventuras emocionantes dos cavaleiros uma estrutura que se adequaria as regras de uma bom filme de apo e aventura Nas adaptaydes Excalibur, Lancelot e As Brumas de Avalon vemos algumas caracteristicas citadas por roteitistas e diretores sobre os tipos de transposigdes que podem ser feitas para o cinema Uma delas ¢ a chamada “adaptarao baseada em...” onde se mantém a historia na integra mas se permite algumas modifica;Bes que podem ser de nomes de personagens e de algumas situagies. Este seria o caso do filme de John Boorman, de 1981, Excalibur. O filme se inicia com o conflito que estara prestes a acontecer quando Uther Pendragon, escolhido rei da Bretanha se sente atraido por Igraine, esposa de seu rival Gorlois. Com a ajuda de Merlin, Uther adquire a aparéncia de Gorlois ¢ entra em seu castelo conseguindo entéo se juntar a Igraine. Deste enlace nasce Artur que ¢ levado por Merlin e € criado por outra familia Uther morre em emboscada e enterra a espada Excalibur em uma pedra da qual seré arrancada pelo futuro rei da Bretanha Tempos se passam e 0 jovem Artur, sem saber de sua linhagem real, consegue arrancar Excalibur da pedra e se toma rei. Com o tempo, Artur estabelece a paz, cercado por seus cavaleiros da Tavola Redonda Casa-se com Guinevere, mas seu cavaleiro Lancelot se apaixona por ela e cla por ele e ambos sto acusados de adultério. Nese mesmo tempo, a imma de Artur, Morgana, planeja trair Artur e Merlin e, depois de ter com o irméo um filho, Mordred, ela o ‘usa para tomar posse do reino. Artur, enraivecido, quebra a espada Excalibur e o reino entra num periodo de caos e devastayao, enquanto seus cavaleiros partem em busca do Graal para redimir ¢ salvar a Inglaterra. Percival ¢ quem encontra o Graal ¢ o traz a Camelot para reabilitar Artur. O rei recupera a forga e enfrenta Morgana e Mordred, que ¢ morto em batalha final por Artur. Este por sua vez é mortalmente ferido e levado em barco guiado por mulheres misteriosas, e Percival devolve Excalibur para a Senhora do Lago. A partir deste resumo do enredo do filme, percebemos que, na maior parte, 0 diretor procurou se manter fiel a historia literaria de Melory. De acordo com opiniées de alguns fas da historia de Astur, as quatro areas em que o filme se manteve fiel a narrativa foram: a conexéo da espada Excalibur a forgas magicas, a ida de Artur mortalmente ferida em barco para Avalon, a énfase em Lancelot como cavaleiro preeminente e a ida de Guinevere para 0 convento a0 final. Entre os filmes arturianos este parece ser o que conseguiu agradar um pouco mais aos leitores da historia de Artur, mas mesmo assim no seguiu inteiramente a narrativa de Malory como, por exemplo, no momento em que Guinevere e Lancelot so acusados de adultério. No filme o acusador apenas Gawain enquanto que no livro os acusadores so quatorze cavaleiros. De qualquer forma, este nao parece ser um “erro” tdo fatal a ponto de nao se considerar a adaptaro como boa Qutra apinigo com relagao a cla foi do estudioso de Artur, Kevin J Hartly, que afirmou ser o filme livremente baseado no livro de Malory, 0 que, como veremos mais adiante, significa uma adaptargo que ¢ trabalhada sob um novo ponto de vista Kevin também declarou que o filme “néo envelheceu bem”, que analisando-o agora parece-Ihe ser um produto especifico da época em que foi feito, dominado por uma marcarao musical pesada. Também vemos algumas cenas no filme que caracterizam aspectos tipicamente recorrentes no entretenimento visual, como 0 caso das cenas iniciais entre Guinevere ¢ Uther, que séo talvez mais recheadas de erotismo do que as narrativas escritas. Mas, como estamos falando da linguagem cinematografica norte-americana, este ¢ um ingredinte que nfo poderia falter. Também pode ser interessante compararmos o filme com as narrativas arturianas anteriores a de Thomas Malory. Neste caso, encontramos mais diferengas, tals como a personagem de Morgana que, em Geoffrey de Monmouth aparece apenas ao final quando Artur é levado 49 para Avalon. Jé no filme ela aparece em todo o decorrer da trama como a ima ma traigoeira que através da magia engana a todos. Também nfo vemos em Geoffrey o personagem Lancelot, que viria a ser criado por Chrétien de Troyes, assim como a Tavola Redonda, inventada por Wace. Outro aspecto interessante que diverge entre a narrativa de Geoffrey eo filme ¢ a presensa de Merlin, que no filme esta o tempo todo presente ao lado de Artur, como uma espécie de conselheiro, Em Geofffey, Merlin nfo se encontra com Astur pessoalmente em nenhum momento. E ainda um outro ponto ¢ a cena da espada enterrada na pedra que viria a aparecer na narrativa de Robert de Boron e nao em Geofifey. Mas, como estamos falando de adaptardes e Excalibur se apresenta como uma adaptaro da Morte de Arthur de Thomas Malory, estas diferensas com relaro a Geoffrey de Monmouth nos servem apenas como uma ilustrapao a parte. No que se refere a Malory, vimos uma diferenga relacionada ao filme e podemos ver uma outra ainda que ¢ a énfase no filme em Percival, que parece ser para alguns uma modemnizarao realizada por Boorman. Igualmente o personagem de Bedivere néo é mencionado no filme, enquanto que Malory em seu livro Ihe da a fungao crucial de devolver Excalibur para a Senhora do Lago Como ¢ possivel perceber, as modificardes estabelecidas pelo diretor John Boorman néo foram to grandes e no mudaram o sentido basico dahistoria de Artur. Vimos que existem varios tipos de adaptaréo e uma delas € a “baseada em...”, como foi o caso de Excalibur Nela, a historia se mantém na integra, mas nomes de personagens ou situa;des podem ser modificados. Foi o que aconteceu com os personagens de Percival e Bedivere ¢ a climinagao dos outros acusadores na cena do adultério, por exemplo Outra especie de adaptarao ¢ aquela chamada de “inspirada em...” onde se desenvolve uma nova estrutura para a historia tomando como seferéncia um personagem ¢ uma situapao dramatica, Ha também arecriayao”, onde o grau de fidelidade ¢ minimo, limita-se @ trama central, e a “adaptayao livre’, na qual histona, tempo, esparo ¢ personagens sfo mantidos mas @ estrutura ¢ montada sobre um dos aspectos dramaticos da obra Talvez seja esta ultima o caso do filme Lancelot, de 1995, do diretor Jerry Zucker. Q que vemos neste filme é a utilizaréo de um determinado ponto de vista de uma determinada stuaréo dramética como trama central, No caso, estamos falando do amor entre Lancelot e Guinevere ¢ do proprio personagem Lancelot. O filme nao diz em que obra literaria foi inspirado e, portanto, podemos analisélo a partir das primeiras narratives arturianas ¢ também naquelas em que aparece Lancelot. © filme, como o proprio nome diz, tem como inspirago central 0 cavaleiro Lancelot, Ele aparece como o vemos nas narrativas literarias, é um cavaleiro corajoso, destemido ‘bem apessoado. Mais uma vez os ingredintes de um verdadeiro herdi a0 estilo Hollywood estdo presentes, sendo que desta vez eles esto concentrados principalmente em Lancelot, enquanto que Artur, mesmo aparecendo como um rei justo e corajoso, ndo possui as qualidades de um “gala” como ¢ 0 caso de Lancelot. Neste filme vemos o herei charmoso, bonito, que encanta a mulheres, como a rainha Guinevere, Na verdade isto também é 0 que acontece nas narrativas arturianas, onde Lancelot ¢ aquele que conquista as mulheres ‘enquanto que o encanto de Artur n&o parece ser exatamente na area amorosa Além de o filme se concentrar na figura de Lancelot, vemos de novo a figura do viléo bem delimitada, como aquele que assume a postura de extremamente perverso. Malagant, 0 viléo ex- cavaleiro de Artur, o trai ¢ faz de tudo para tomar 0 reino. Suas maldades e atos de traigao nos lembram o personagem Mordred que aparece em Excalibur e na narrativa de Geoffrey. Embora o sequestrador da rainha se chame Meleagant em Chrétien de Troyes, provavelmente o personagem Malagant do filme se refere sobretudo a Mordred, 0 que nos 50 leva a perceber uma das modificaydes realizadas durante a adaptayo. Outro aspecto que evidencia modificarao no texto arturiano se refere as cenas no filme em que Lancelot ¢ convidado por Artur para ser um cavaleiro da Tavola Redonda e ele so aceita para ficar perto de sua amada Guinevere, Ao lermos as histérias de Artur, isto nfo se da desta maneira, uma vez que Artur, ao se casar com a futura rainha, ja tinha Lancelot coma bravo cavaleiro entre seus companheiras. Portanto 0 motivo pelo qual Lancelot aceita se tomar um cavaleiro nfo parece ser por causa de Guinevere e sim por sua amizade, lealdade ¢ confianga em Artur Ainda no filme Lancelot, podemos observar a cena em que Guinevere ¢ Lancelot sé0 julgados em prara publica por adultério, ¢ 0 vilfo Melagant interrompe o julgamento ¢ ataca Artur e seus cavaleiros, Nesta cena temos um dos momentos em que a bravura e coragem de Artur aparecem mais explicitamente. quando ele se nega a ajoelhar-se perante Malagant, recusando a oferecer-se como seu servo. Malagant e seus homens se encontram estrategicamente situados para matarem Artur que, diante da ameara de morte, nao se ajoelha e conclama o povo a lutar até o fim. Neste momento o rei ¢ ento mortalmente ferido por Malagant, o que nos leva as narrativas literarias onde Artur é também mortalmente ferido por seu rival e filo Mordred em batalha No filme vemos a questo central, ou seja, a morte de Artur por seu traidor.O nome do personagem esta trocado, ele no aparece como o filho do rei e a batalha se da durante o julgamento de adultério. Como vemos, algumas modificaydes foram feitas pelo diretor e roteinista que se preacuparam em manter apenas os acontecimentos centrais. Este filme, portanto, seria o que assinalamos anteriormente como adaptarao livre a partir da historia literéria do rei Artur. Disetor roteirista escolheram o vies do amor entre Guinevere e Lancelot para contarem ahistoria A partir deste ponto de vista do romance é que o filme foi construido Jano filme As Brumas de Avalon encontraremos um outro ponto de vista o ponto de vista das mulheres presentes na historia do rei Artur. Temos ai portanto um viés completamente diverso daquele apresentado em Excalibur e Lancelot, mas esta adaptago filmica esta de acordo com a obra da qual foi adaptada: o romance As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley. A estrutura do filme segue o mais fielmente possivel a estrutura literaria da autora, excetuando-se as cenas em que a ima de Igraine, Morgause, Tanga um feitigo sobre a rainha para que esta nao possa engravidar. Isto no ¢ 0 que acontece no livro que, apesar de, como no filme, colocar a figura de Morgause como um personagem nao bondoso, nao atribui a ela a razao da infertilidade de Guinevere. Também a“maldade” de Morgause ¢ profundamente acentuada no filme pois, como ja vimos, toda obra cinematografica norte-americana parece necessitar de um viléo bem delineado que sirva como a funso do inimigo que que se contrapée ao herdi bom e justo, No filme, os heréis so Artur e Lancelot, mas a personagem de Morgana ganha grande importancia como se desempenhasse o papel de uma heroina que sofre e luta Este aspecto, interessante observarmos, € 0 oposto do que vemos em algumas narrativas arturianas que retratam a inf de Artur como uma feiticeira ma, Em algumas outras, por outro lado, mal se fala em Morgana, como no caso de Geoffrey onde a personagem so aparece ao final, quando Artur ¢ levado para Avalon. Temos estes dois exemplos também nos filmes analisados. Enquanto em Zycalibur Morgana adquire o papel da feiticeira ma e traidora do irméo, em Lancelot ela simplesmente nao existe. Mas em As Brumas de Avalon nfo apenas Morgana, mas outros personagens femininos, como a Senhora do Lago, ganham grande importancia pois é através delas que a historia de Artur é contada. A perspectiva feminina e, mais ainda, a perspectiva das mulheres magicas de Avalon ¢ 0 fio condutor da narrativa at do romance e do filme A autora Marion Zimmer Bradley constréi uma historia onde as ages de Artur, os acontecimentos do reino, da Bretanha, as vingangas, aventuras e relagbes amorosas sfo todos guiados por estas mulheres de Avalon. Com isso percebemos que, se compararmos esta narrativa com outras sobre Artur, encontramos uma série de diferensas estabelecidas a partir de um novo e diferente angulo. No entanto, néo podemos esquecer que, mais uma vez, os fatos e acontecimentos principais foram mantidos. A historia basica éamesma, o que ¢ diferente é a maneira como esta estrutura basica é contada. Enquanto a propria Marion Bradley realizou uma adaptacfo das narratives arturianas, o filme As Brumas de Avalon segue o livra da autora na maior parte das cenas 4- Conclusées sobrea linguagem cinematografica eas adaptagées arturianas Por mais complicado que seja para os que se desagradam da pouca fidelidade que as adapta;des dos filmes artunianos estabelecem, é preciso lembrar mais uma vez que ndo se trata de proceso facil. E que, além disso, a obra filmica possui um olhar, o olhar de um autor de cinema que reflete 0 seu ponto de vista o seu modo de transmitir através de imagens uma historia ja conhecida via outros meios, como o literario. Mas é exatamente isto que trata uma adaptayao. E a transformarao de algo de um determinado meio, de uma determinada linguagem, para outro meio, outra linguagem. Por se tratar de uma outra linguagem, o resultado nfo poderia ser o mesmo, A “tomada” é outra — é a tomada cinematografica E evidente que, por outro lado, a adaptayao nao deve ser uma total traigéo contra a obra literdsia, do contrario, para que se utilizar de um original? Nos filmes que observamos nfo ocorre uma traipfo total das primeiras narrativas arturianas e nem das obras de onde foram tiradas, como ¢ 0 caso de Excalibur e As Brumas de Avalon. O que ocorreu foram énfases em determinadas situa;Ses ou personagens, ¢, para alguns talvez mais grave, novos pontos de vista utilizados. Mas é na maioria das vezes a questo da linguagem que faz com que modificasies sejam adotadas ¢ que a impressdo de um determinado diretor seja passada para o publica. Esta relagio acontece desde a criayao das primeiras veiculagdes cinematograficas. Quando o cinematégrafo foi inventado, por exemplo, a nova linguagem que surgia era vista no apenas como algo que dependia de reproduao, mas tambem de criar%o, invengo, Flora Sussekind em seu livro Cinematégrafo de Letras nos fala sobre os passos iniciais desta nova linguagem, diz que a fita cinematografica se tomou em determinado momento uma “especie de diario em movimento de impresses pessoais variadas (..) assume os contomos da ‘personalidade’ do operador” As duas linguagens, a literéria ¢ a cinematografica, sempre estabeleceram uma conexéo entre si e, apesar de suas diferenfas, conseguem manter um dialogo como pode ser visto através das adaptardes cinematograficas. Se em alguns momentos a fidelidade as historias do rei Artur néo foi mantida, ou se néo agradaram a alguns, estas adaptardes procuraram seguir a estrutura central, inserindo alteragdes que se encaixassem ao espinito do cinema e a0 espirito do diretor. Pois isto néo podemos evitar. todo autor, por mais que esteja somente adaptando, inclui elementos de seu proprio repertério. Espera-se apenas que isto seja feito com responsabilidade e respeito E cabe mais uma vez lembrar que adaptar nao é tarefa facil. Como afirma o jomnalista e critico de cinema e literatura, Ubirata Brasil: “Adaptar uma obra literdvia para a linguagem do cinema pede uma série de qualificagdes do roteirista, que deve ter a firme disposipo de 52 selecionar trechos compativeis com a narrativa cinematografica, Mesmo que isso exija 0 sacrificio de momentos essenciais. A tarefa ¢ ardua e exige, além de criatividade, um punhado de coragem” Referéncias Bibliograficas 1 - Malory, Thomas. A morte de Arthur. Brasilia, Thot Livraria e Editora, 1987 —Zimmer Bradley, Marion. As Brumas de Avalon. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1982 3—Furtado, Antonio. Artur e Alexandre. Séo Paulo, Atica, 1995 4 —Metz, Christian. A significagaio no cinema. Sao Paulo, Perspectiva, 1968 5 —Sussekind, Flora Cinematografo de letras. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1987 6 —Carriére, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema, Rio de Janeiro, Nova Fronteira 1995 7 —Garcia Marquez, Gabriel. Como contar um conto. Rio de Janeiro, Casa Jorge Editorial, 2001 8 — Avellar, José Carlos. Cinema e Literatura no Brasil. Sao Paulo, Cémara Brasileira do Livro, 1994 53 Da Cavalaria a Fic¢ao-Cientifica: O rei Arthur e os cavaleiros da Tavola Redonda em quadrinhos Mario Feijé Borges Monteiro No final da Idade Média, Thomas Malory veio reunir com éxito todas essas abordagens: o Artur heroico defendendo o pis, seus cavaleizos obcecados em aumentar @ propria fama, a cruzada simbolica da busca do Graal. Dessa época aos nossos tempos, vém ocomendo inumeréveis tenfativas, com grau vatiado de sucesso, para atualizar 0 conceito heroico arturiano adaptando-o fos novos contextos ALL. Furtado! Antes de Gildas, Nennius, Geoffrey of Monmouth, Wace, Chrétien de Troyes, Robert de Boron ou mesmo Thomas Malory havia o canadense Harold (Hal) Foster, grande mestre dos quadrinhos. Para mim, foi assim que a lenda comerou, 14 pelos meus oito anos Gostava muito de ouvir meu pai contar historias baseadas em filmes, livros e gibis. Ele costumava narrar de memoria, recordando suas aventuras favoritas, fazendo uma ou outra adaptarao para agradar ao publico (que, no caso, era apenas eu). Foi assim que me tomnei por anteciparao de filmes como King Kong, rom: mo O tiltimo dos moicanos e das séries em quadrinhos Tarzan e Principe Valente nos tempos do rei Arthur Passariam-se ainda alguns anos até que eu pudesse ler os gibis escritos e desenhados por Foster (em edigdes comemorativas publicadas pela antiga EBAL), entretanto o importante ja estava garantido: o conhecimento de que havia um grande rei em cuja corte se reuniam os mais bravos cavaleiras do mundo, todos guerreiros extraordinarios, verdadeiros herdis. E curioso observar que os quadrinhos como os conhecemos nfo existiam antes de Hal Foster comegar a desenhar as tiras de Tarzan para jomais norte-americanos. Até 1929, a formula usada para fazer sucesso era inventar coisas absurdas e engracatlas, sempre a pattir de situagies tipicas do cotidiano das familias. A historia come;ava e acabava na mesma tirinha de jomal (ou pagina dominical). Prevalecia o desenho caricatural, néo havia nenhum realismo estético — os personagens nunca pareciam seres humanos ou animais reais, na melhor das hipoteses eram apenas desproporcionais, As séries eram sempre cémicas Os Sobrinhos do Capitiéo de Rudolph Dirks, Sonhos ce um Comildo e Little Nemo de Winsor McCay, Mutt & Jeff de Bud Fisher, Krazy Kat de George Herriman, Pafincio & Marocas de Geo McManus, Gato Félix de Pat Sullivan, a pequena orf Annie de Harold Gray, ¢ tantos outros. Dai o fato de que, até hoje, os gibis serem chamados de comics nos paises de lingua inglesa ‘As natrativas visuais feitas de aventura e romance, com tramas de longa durago e uma mocinha sempre em perigo, surgiram apenas quando o popular escritor norte-americano Edgar Rice Burroughs autorizou a adaptayao de seus livras sobre o famoso rei das selvas para o formato quadrinhos. As novas historias de Tarzan estrearam em tiras diarias em 1929 e, em 1931, Hal Foster ja estava escrevendo e desenhando para as paginas coloridas dominicais * FurTAno, 1985, pig.211 54 Com Tarzan, cada tira ou pagina dominical passava a ser um breve capitulo de uma longa historia. A emogo e o suspense continuavam sempre no mesmo jomal no dia seguinte, no caso das tiras, ou na semana seguinte, no caso das paginas. Dessa maneira, 0 leitor deixava de rir da piada em forma de situagSes ligeiras (onde cada personagem ja tinha suas situagées tipicas) para acompanhar verdadeiro folhetim. Ou seria um romance de cavalaria ambientada no corapo da Affica? Em 1937, cansado de trabalhar para os outros, Foster resolveu deixar o personagem de Burroughs para ficar razoavelmente rico com sua propria criayo: as paginas dominicais do Principe Valente, heréi dos tempos gloriosos da Tavola Redonda Naquela nova série, Arthur, Lancelot ¢ Merlin eram meros coadjuvantes. Sir Gawain (ou Galvéo na tradigo portuguesa) era o tinico cavaleiro que realmente tinha alguma importéncia, pois atuava como um mentor do jovem Valente. A rigor, Foster nfo precisava ambientar seu herdi “nos tempos do rei Arthur’, visto que o rapaz viajava bastante, corria mundo, aventurava-se no Oriente, lutava com piratas, derrotava gigantes, derrubava tiranos, fazia de tudo um pouco. Valente podia ser um heréi medieval, um principe corajoso e um cavaleiro excepcional sem precisar viver “nos tempos do rei Arthur”. Acontece que Hal Foster nao deixara Tarzan para correr riscos. Nao sei se ele percebia claramente que a estrutura dramatica e 0 apelo herdico dos quadrinhos de Tarzan e de outros personagens recém-chegados (como Flash Gordon) remetia diretamente aos romances de cavalaria, Entretanto, com certeza, o artista sabia do poderoso fascinio exercido pelos mitos arturianos no imaginario popular. Inserir Valente entre os cavaleiros da Tavola Redonda era sua estratégia para ficar rico (e disso nunca fez segredo) E necessério registrar que, apesar de ter sido um importante divulgador da lenda do rei Asthur, o criador do Principe Valente nunca se propés a fazer uma adapta;ao da Matéria da Bretanha Sua obra se inspirava na mitologia arturiana e sé. Nao havia nenhuma intengo de atualizar Arthur, Merlin, Lancelot ou Gawain como herdis para uma nova gerayao de leitores, A excegéo da saga Camelot 3000, de Mike Bar e Brian Bolland, publicada pela primeira vez em 1982, e que comentarei em breve, todas as demais séries em quadrinhos usaram elementos da lenda para ensiquecer suas tramas ou promover suas vendas, sem, contudo, restabelecer a Arthur seu lugar de direito como poderoso ¢ invencivel rei- guerreiro, senhor da temida espada Excalibur, aquele que retomaria quando a Inglaterra mais precisasse Mesmo em séries briténicas como Capitiio Britania (1977) ¢ Union Jack (1999), que a rigor so dois super-herdis ingleses publicados pela editora norte-americana Marvel Comics, 14 esto os elementos lendérios téo-somente como coadjuvantes a ensiquecer a trama Na primeira, o futuro lider de uma super-equipe de mutantes europeus (que seria batizada como EXCALIBUR) ainda é apenas o estudante Brian Bradock. Em Stonehenge, diante de Merlin e Morgana, ele tem de escolher, entre uma espada encravada nar ‘um amuleto misterioso, qual sera o seu simbolo de poder. Bradock escolhe o amuleto e se torna o Capitao Briténia em sua primeira encarnapao (na década de 1980 o personagem seria reformulado) Na segunda, o herdi mascarado Union Jack (o terceiro da linhagem) tem de impedir que a temivel rainha de uma horda de vampiros encontre ¢ se apodere do Santo Graal. Ele 55 fracassa na missfo, mas tudo acaba bem, porque a viséo do Graal extermina a horda como se fosse 0 sol do meio-dia Mais uma vez, nada de Arthur, Lancelot ou Guinevere Outro interessante ponto de ligardo entre os quadrinhos de aventura e apo editados para jovens e certos elementos da tradiso arturiana é um ocultista que mora em Gotham City chamado Jason Blood, um tipo muito estranho e misterioso Gotham, como o mundo inteiro sabe, € a cidade do Batman, Sempre que o homem- morcego tem de investigar algum caso macabro envolvendo forgas sobrenaturais bem sinistras, ele costuma recorrer @ orientardo especializada de Blood, E Batman no ¢ o unico a fazer isso, outros super-hersis da mesma edlitora, a DC Comics, ja pediram socorro a0 perito em ocultismo, pois o *cara" entende como ninguém sobre criaturas infemais, maldigées e afins. Pudera. O homem (?) na verdade é um demdnio! Nao um qualquer, mas o meio-irmao de Merlin por parte de pai Segundo a lenda o mago era filho de um ser das trevas com uma mulher mortal, portanto meio-humano. Blood, porém, é totalmente demoniaco, nasceu no inferno, foi gerado para ser um escravo de Merlin, seu nome verdadeiro ¢ Zirigan, um ser horrendo, fedorento e amarelo que sé fala em rima Ah, ele também cospe fogo ¢ adora matar. Sua miso, no passado, era dar combate a Morgana Em nossa era, ganhou independéncia, no quis mais saber da luta etema entre o mago ¢ a feiticeira e agora cuida ¢ da sua vida Seus objetivos e motivardes nao séo claros, com certeza, sabe-se somente que ele odeia o irmao Merlin (a quem ja teve a oportunidade de aprisionar e torturar) e todos os outros deménios E um personage extremamente carismético, porém cada vez mais distante de sua onigem arturiana Origem? Ah, sim. A “verdadeira” origem de Etrigan, o deménio, ¢, no minimo, um tanto curiosa Décadas antes de comegar a fazer sucesso em Gotham City, disfarcado na figura ‘humana do ocultista Jason Blood (um simulacro de came e sangue), o terrivel Etrigan era o proprio Principe Valente. Como ¢ possivel? Ora, ¢ a intertextualidade. Houve uma aventura de Valente, na década de 30, em que o rapaz se disfargau de diabo amarelo para enganar e assustar os vildes que dominavam um castelo. Usando de tal ardil, 0 jovem principe libertou o castelo sozinho, sem precisar pegar em armas para lutar com um monte de inimigos. Essa historia e o desenho que Hal Foster criou para o disfarce de “deménio amarelo” devem ter influenciado Jack Kirby, o primeiro a desenhar Etrigan, 1a pelos anos 60. O visual de Etrigan ¢ absolutamente idéntico ao disfarce do Principe Valente. Também na editora DC Comics, temos 0 caso de Aquaman, o heréi submarino, rei dos mares, cujas semelhangas com alenda de Arthur tém sido acentuadas progressivamente por diferentes artistas. Rick Veitch, o atual roteirista titular da revista, porém, resolveu radicalizar e mergulhar de cabeza no charme dos velhos mitos da Bretanha. Reproduzo suas palavras em entrevista disponivel no site oficial da editora em maio de 2003 RICK VEITCH: There have long been hin's of a connection with Arthurian legend in the Aquaman mythos, and while I can categorically say we're not going to make him the long lost reincarnation of King Arthur, we are going to resonate with some of that stuff in devilishly cool ways. Mas, afinal de contas, que conexdo pode existir entre um rei da Atlantida um homem do fundo do mar, e o lendario rei dos bretdes? De inicio, nada Acontece que o nome verdadeiro de Aquaman é Arthur Curry Jr. A Atlantida, portanto, tem o seu rei Arthur. 56 Quando surgiu, em 1940, o personagem Aquaman tentava faturar uma fatia do mercado de gibis dominada por Namor, o Principe Submarino, da Timely Comics (antecessora da Marvel). Na sua verséo original, Aquaman era um rapaz da superficie, filho de um cientista dedicado a explorar as profundezas dos oceanos em busca das ruinas submersas da cidade perdida de Atlantida Ao encontré-las, o cientista passava a viver numa espécie de leboratério submarino, sozinho com o filho. Usando os segredos da ciéncia atlante, conseguia o milagre de fazer o rapaz respirar debaixo d agua comandar os peixes por telepatia etc. etc. etc. O resto era o de praxe na década de 40: 0 cientista momia, o filho jurava defender a justiga, a verdade e o modo americano de viver e passava a proteger os navios aliados dos ataques traipociros dos submarinos nazistas Foi na década de 50, quando a publicapo das aventuras de Namor tinha sido cancelada, que os editores de Aquaman resolveram se apropriar daquele conceito de principe submarino, apresentando uma nova origem para o personagem, quase idéntica a de Namor Em resumo: (1) a filha do monarca da Atlantida, como a pequena sereia de Hans Christian Andersen, subia a superficie e se apaixonava por um homem, (2) casava com ele e gerava um filho, (3) os soldados atlantes finalmente acabavam por encontré-la e a levavam de volta para o fundo do mar a forsa. As diferencas eram minimas: (4) o destino do pai e (5) 0 local de nascimento do bebé hibrido. Em Namor, o pai era o comandante de um navio mercante, 0 capitéo McKenzie. No novo Aquaman, o pai era o solitario encarregado de um farol, chamado Arthur Curry. © capitio MacKenzie era assassinado pelos soldados e a princesa dava a luz depois de retomar a corte imperial. O faroleiro Arthur era poupado pelos soldados, mas assistia impotente ao sequestro da esposa do filho pequeno (a princesa dera 4 luz na ilha do farol). Assim, na nova verso, muito mais do que um herdi submarine, Aquaman era um rei dos mares Quando Stan Lee trouxe o velho Namor de volta aos gibis da Marvel (primeiro como coadjuvante do Quarteto Fantastico, depois dos Vingadores), Aquaman entrou em constrangedora crise de identidade, a qual foi superada aos poucos. Entretanto, se o nome civil do personagem nfo fosse Asthur, ndo sei como a historia teria continuado Hoje, a biografia oficial do rei Arthur da Atlantida em resumo bem resumido, ¢ a seguinte. (1) um feiticeiro banido do reino de Poseidonis, o mais importante da confederaréo atlante, assumiu a forma do monarca e se deiton com a rainha, gerando um filho. O bebé nasceu louro, algo inusitado no mundo submarina, uma espécie de marca maldita, indicative de desgraca ou adultério. (2) © monarca, sabendo que o filho nao era seu, ordenou que ele fosse levado para longe, para morrer em aguas distantes, A rainha, disse que o bebé mosrera logo apos nascer. (3) Milagrosamente, a crianga sobreviveu, protegida por golfinhos, e depois foi encontrada numa das praias da ilha do farol onde trabalhava Arthur Curry. (4) Adotado pelo faroleiro, o menino magico, capaz de respirar agua ear, ganhouo nome de Arthur Curry Jr. e aprendeu como ¢ avidana superficie (5) Ao se tornar rapaz, retomou ao mar em busca de sua origem. (6) Apés muitas aventuras facanhas, chega ao reino de Poseidonis, que esta mergulhado no caos e na vilania desde que 0 rei (0 mando de sua mae) morreu sem deixar herdeiros. (7) Arthur Jr, agora chamado Aquaman, expulsa os invasores, restabelece a ordem e restaura a gloria de Poseidonis (8) O trono é oferecido ao antigo Primeiro-Ministro, um homem sabio ¢ justo, indiscutivelmente apto a governar, mas este recusa EntZo, dé-se a revelapéo: Aquaman é 0 filho bastardo da rainha que voltou justo quando o povo mais precisava de um rei. cabelo louro do heréi é a marca de nascenga que permite o reconhecimento. E como a linha sucessoria da Atlantida passa pelas mulheres, néo havendo outros pretendentes, também 57 nao ha nenhum empecilho juridico para que Aquaman seja proclamado rei, mesmo sendo um bastardo. Pronto, Aquaman liberta-se do fantasma de Namor! Na nova fase a que se refere Rick Veitch, ha muito mais magia do que ciéncia no fundo do mar. Uma nova personagem esta sendo introduzida na série, fazendo a ponte definitiva entre os dois seis de nome Arthur: é a Dama do Lago Na tradigao medieval, Lancelot, ainda bebé, foi levado para o reino encantado da Dama do Lago, onde cresceu com as honras de principe, sendo devidamente educado e treinado para se tomar um nobre e destemido cavaleiro. O lago, porem, era uma iluséo magica criada pela Dama para manter seus dominios a salvo de estranhos. Isto ¢, os forasteiros enxergavam um lago, mas abaixo do espelho d’ agua havia terra seca, um reino com castelo, cavalos, florestas, cara etc. etc. etc. Provavelmente, o tal lago deve ter sido inventado a ‘posteriori para justificar o porqué de o her6i criado por Chrétien de Troyes em O Cavaleiro da Carroga se chamar Lancelot du Lac. Enfim, Ninienne, conhecida como a Dama do Lago, e que aprendera as artes da magia com seu amante Merlin, néo respirava debaixo agual Como os nomes tém poder, é aceitavel que o imaginario popular, depois de tanto tempo, tenha transformado a Dama em uma espécie de boa fada das aguas. E como foi o nome Arthur que atraiu a mistica arturiana para a historia de Aquaman, néo chega a ser surpreendente que a lendaria Dama do Lago seja agora uma forpa do Bem a habitar aguas doces e salgadas, uma presenga invisivel que sempre protegeu o rei da Atlantida em segredo. A novidade é que finalmente Ninienne se revela ao seu protegido para explicar qual é a verdadeira missZo do rei na ordem do mundo (aquatico, naturalmente) Apesar dessa aproximagio cada vez maior com os mitos da Bretanha, como 0 proprio. autor Rick Veitch enfatizou, Aquaman néo é “areencamagio do rei Arthur” Assim sendo, acho que ja podemos conversar sobre avolta do rei. Sobre o Arthur, super- heréi de quadrinhos ¢ ultima esperanga da Terra no século XXX. Antes, contudo, pego 0 diseito de fazer uma rapida pausa para breves reflexes teoricas. Pausa: A adaptagiio como discurso que se atualiza. Gostaria de afirmar que 0 processo de formayao e transformarao da narrativa literaria a0 Iongo do tempo acorre como proceso de adaptarao de historias, personagens e linguagens para novos publicos, em novas eras, as vezes em géneros narrativos que nfo existiam antes Gostaria também de argumentar, com base no pensamento de Michel Foucault, autor de A ordem do discurso, que a adaptaro ¢ um discurso que se atualiza No caso, um tipo especial de traduyo que envolve selegéo de conteido e adequarao de linguagem para apresentar a obra a uma nova gerarao de jovens leitores. Embora jamais tenha escrito especificamente sobre o tema “adaptarSes”, Foucault considerava os textos juridicos, religiosos e literarios como narrativas especiais, construidas para propagar discursos, visto que carregam em si sistemas de valores, significados procedimentos de controle ¢ delimitayao dos jogos de poder e desejo. As coisas ditas, ou escritas, ¢ constantemente repetidas, servem para ordenar 0 mundo, as sociedades, as crengas e comportamentos Refletindo sobre as questies envolvidas na idéia de autoria, e sobre textos escritos dietamente inspirados por outros que os precederam, Foucault nos apresentou os conceitos 58 de texto primeiro ¢ texto segundo, ou comentério, fundamentais para se pensar as obras classicas e suas adapta;des, Se aceitarmos que os grandes classicos da literatura podem ser classificados como textos primeiros, e que, portanto, podem dar origem, indefinidamente, a novos textos, sempre atualizados ao contexto historico em que sao produzidos e ao publico a que se destinam, entZo poderemos pensar a adaptargo como um procedimento inerente a renovayao da tradi literaria, como perpetuarao e divulgaro dos cénones, como atualizarao de um discurso. Sem esquecer que qualquer tipo de analise de discurso remete inevitavelmente a disputas sobre critérios de legitimagao e hierarquias de valores Deixo que as palavras do proprio Foucault expliquem como um classico da literatura pode ser um tipo de discurso sempre reatualizavel e capaz de gerar, constantemente, novos discursos Suponho, mas sem ter muita certeza, que niio hi sociedade onde néo existam narratives maiores que se contam, se repeteme se fazem variar, formulas, textos, conjuntos rtualizados de discursos que se narram, conforme circunstincias bem determinadas; coises ditas uma vez e que se conseivam, porque nelas se imagina haver algo como um segredo ou uma niqueza. Em suma, pode-se supor que h4, muito regulamente, nas sociedades uma espécie de desnivelamento entre os discursos: os discursos que “se dizem” no corer dos dias ¢ das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou; e os discwsos que estio na ongem de certo mimero de atos novos de fala que os retomam, os trensformam ou falam deles, ou seja, os discwsos que, indefinidamente, para elém de sua formulagéo, so ditos, permanecem ditos e estéo ainda por dizer. Nés os conhecemos em nosso sistema de cultura: séo os textos religiosos ou jumidicos, so também esses textos curiosos, quando se considera o seu estatuto, e que chamamos de ““iterdrios”, em cerfa medida textos cientificos E certo que esse deslocamento no ¢ estivel, nem constante, nem absoluto, Néo hé, de um lado, @ categoria dada uma vez por todas, dos discursos fundamentais ou criadores e, de outro, @ massa daqueles que Tepetem, glosam ¢ comentam. Mites textos maiores se confundem e desaparecem, e, por vezes, comentérios vém tomar o primeiro lugar. Mas emibora seus pontos de aplicacéo possam mudar, a fngo yemanece; e 0 principio de um deslocamento encontra-se sem cessar reposto em jogo. O desaparecimento radical desse desnivelamento néo pode munca ser sendo um jogo, utopia ou angistia Jogo, & moda de Borges, de um comentario que néo seré outra coisa sendo @ Teaparicéo, palavia por qalava (mas desta vez solene ¢ esperada), daguilo que ele comentn; jogo, ainda, de ume obra que 1ito existe. (.) Por ora, gostaria de me limitar a indicar que, no que se chama globalmente um comentirio, © desnivel entre texto primeiro e texto segundo desempenha dois papéis que sio solidrios. Por um lado permite construir (¢ indefinidamente) noves discursos: 0 fito de o texto primeiro pairar cima, sua permanéncia, seu estatuto de discurso sempre reatualizavel, sentido miiltiplo ou oculto de que passa por ser detentor, a reticéncia ¢ a rigueza essenciais que Ihe atribuimes, tudo isso funda uma possibililade aberta de falar (grifo meu). Mas, por outro lado, 0 comentério nfo tem outro papel, sejam quais forem es técnices empregadas, serio 0 de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ¢0 qual nfo escapa nunce, dizer pela primeira vez equilo que, entrefanto, jé havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, nfo havia jamais sido dito.” As possibilidades de atualizarao de um discurso (seja ele literario ou nfo) so vastas ¢ nao se limitam a textos. No cinema e na televisdo, os roteiros podem ser originais ou adaptados. Em teatro, cada montagem ¢ uma adaptagfolinterpretayfo de uma pepa anteriommente escrita. Na musica, um novo arranjo corresponde a uma adaptapo da obra original, tanto que, pela legislaso brasileira em vigor, os direitos de adaptadores e asranjadores so iguais ¢ esto protegidos pela mesma clausula legal (ver lei 9.640, de 19 " Foucautt, pig.21 225, 59 de fevereiro de 1998, sobre a regulamentapio dos direitos autorais). Grandes editoras de historias em quadrinhos ja investiram em cole;des dedicadas a adaptagées de classicos da literatura, publicando obras escritas e desenhadas por artistas consagrados ‘A adaptarao ideal parece ser aquela que consegue atualizar a linguagem da narrativa e preservar ao maximo o enredo. Mas até que ponto e possivel atualizar um discurso para que cle permanega entre nés sem inserir alterapdes/muta;des na trama original? Pergunto Iembrando que, como dizia o tradutor Paulo Ronai, em A tradueéo vivida, o “‘setor especial a adaptayao ¢ a literatura para adolescentes”. E acrescentando que, nesse “setor especial”, séo plenamente aceitas aquelas obras que se destacam pela forza do enredo, pelo apelo imaginagaio Por falar em forza de enredo e apelo aimaginayo que encantam gerayBes e gera;Bes de leitores, é hora de encerrar a pausa e retomar a natrativa interrompida De volta a Camelot! Fim da pausa. Na minha compreensdo de mening, o rei Arthur, pelo menos em sua juventude, quando deveria estar no auge do vigor fisico e mental, tina de ser muito mais fabuloso e destemido do que qualquer um de seus cavaleiros. Se ele, e somente ele, tinha sido o escolhido por forgas superiores para receber a espada magica Excalibur, ento o grande herdi daqueles tempos néo podia ser outro. ‘Meu pai adorava o Principe Valente ¢ também o mito de Arthur. Entretanto, o rei que aparecia no gibi ja estava um tanto ou quanto velho e cansado de guerra Era um governante bom, sabio e justo, s6 isso. Infelizmente, néo lembrava em nada aquele mito bretéo que atualizava outro mito da antiguidade. Alexandre, o Grande, Jao Arthur de Hal Foster, que aparecia quase sempre sentado, no fundo, remetia o imaginario do publico norte-americano ao presidente da época, Frank Delano Roosevelt, o da lenda arturiana, de fato, rebaixou a importéncia guerreira ou heréica do nica pseudo-historica de Geoffrey of Monmouth, passando pelos contos do amor cortés de Chrétien de Troyes e chegando as histdrias exemplares (de orientardo religiosa) escritas por Robert de Boron, o nosso grande Arthur foi encolhendo Recapitulando as palavras de Furtado ‘Ao prssar da austera prosa latina de Geoffrey para os versos fanceses de Chuétien a literatura azturana zio macou apenas quanto a forma. Com a crescente voge dos ideas, nitos e costumes da cavalara, a énfase em gueras entre povos, mascada pelas batalhas campais e ocesionais combates singulares, foi substituda por conlios individuais, decididos em duelos, justas e tomeios. A figura do rei Atfur passou «segundo plano, valendo mais como um ponto de confluéncia de tudo o que é nobre - fala-se mais na corte do rei do que nele proprio -,e a ago se deslocou para seus cavaleiros, euidos @ volta da Tavola Redonda. Os objetives de tum caveleiro, nesses poemas, nfo tinham sengo ligacées remotas com os destinos de sua patria (.)! Em 1982, os artistas Mike Barr ¢ Brian Bolland langaram uma série em 12 capitulos ‘mensais que se tomou um dos grandes classicos das historias em quadrinhos modemas. Desde entdo, Camelot 3000 ja foi reeditada imimeras vezes, em varios paises. No Brasil, foi * FurTAbo, 1985, pig. 22. 60 Ianpada em agosto de 1984, publicada a pri depois em Superamigos (Ed. Abril) No dia em que chegou as bancas o tiltimo capitulo brasileiro, houve tumulto no colégio Santo Inacio, no Rio de Janeiro, porque dois exemplares da revista foram contrabandeados logo de manh cedo para dentro do terceiro ano colegial, um circulou na turma 32, outro na 34, varios alunos queriam ler ao mesmo tempo, aquela confusdo.. Houve um rapaz, com fama de palhago, que comesou a gnitar “Ele morre! Ele morreu!” em sala de aula ¢, por isso, levou um soco do colega que ainda nfo tinha lido o desfecho. Briga em sala de aula sempre acaba na coordenagdo, aquele vexame. O mais dificil foi os rapazes conseguirem explicar o motivo da briga Na outra turma, a revista em circulayao foi despedazada por trés leitores em conflito, mas 0 acerto de contas ficou para ahora do recreio. ‘A série foi republicadano Brasil, em quatro volumes, em 1988. Mas 0 que Camelot 3000 tem de especial afinal? Trata-se de uma obra-prima, tanto em arte como em enredo. Apéia-se firmemente na tradigSo arturiana mas inova com a ambientarao futuristica Das historias de cavalaria, chegamos as aventuras de fi cientifica Mike Barr, antes de se consagrar com Camelot 3000, estava escrevendo os roteiros para a verso em quadrinhos de Guerra nas Estrelas. Como Hal Foster, quase cingienta anos antes, resolveu deixar a adaptapao de uma saga de sucesso garantido para se arriscar numa produgéo propria. Mas, diferente de Foster, ele estava determinado a recolocar Arthur Pendragon no seu trono. Diz alenda que Arthur, gravemente ferido, foi levado para a ilha de Avalon e de 1a s6 voltaria quando a Inglaterra mais precisasse dele. Pois, no fatidico ano 3000, nao so a Inglaterra, mas todo o planeta precisara do rei. Dessa vez, os invasores nfo sdo os saxées, s&o os alienigenas que vieram para conquistar a Terra No futuro imaginado por Mike Barr, a humanidade chegou ao ultimo ano do século XXX bem no limite dos recursos naturais do mundo, as voltas com problemas de superpopulayao, falta de liberdades democréticas, corruppio em todos os governos, descrédito da sociedade quanto as classes dirigentes etc. A pesquisa espacial fora cancelada séculos antes, porque se acreditava que era dinheiro jogado fora Portanto, nfo ha colénias espaciais, astronaves capazes de ir além de Marte, tubos de teleporte ou coisas do género Ha asteroides em rbita habitados por milionérios excéntricos e nada além disso. A espécie humana, portanto, esta presa ao planeta Terra tecnologicamente despreparada para combater no esparo ou recharar uma invaséo Ha quatro superpoténcias globais: Estados Unidos, Unido Sovietica, China e Republica Africana, Seus lideres so absolutamente sidiculos e facilmente manipulaveis pelo ardiloso diretor de seguranga da ONU. A Unido Soviética esta la é claro, porque a historia foi escrita em 1982. Alias, para constar. ¢ um futuro sem nada que seja parecido com a Internet. ‘Mas vamos ao que interessa: a ago! E as transform: A guerra entre mundos comegou, as criaturas esto vindo do, até entéo desconhecido, décimo planeta do sistema solar, que o leitor ficaré sabendo que se chama Chiron. A Inglaterra ¢ 0 foco principal da invasto, porém os ataques castigam toda a Europa A resistencia francesa é a mais bem organizada e eficiente, gracas a lideranga de Jules Futrele, © tiltimo multibilionario idealista, ¢ aos extraordinarios recursos em termos de tecnologia e logistica de sua megacorporapao. Nos Estados Unidos, a comandante Joan Acton, coordenadora da defesa global, assiste impotente ao aniquilamento da forza aérea norte- io na revista Batman (Ed. Abril, 1* série), et americana O equilibrio politico mundial esta por um fio. As populagies civis estéo desesperadas. E um momento de trevas. E os aliens continuam a desembarcar suas tropas em solo inglés ‘Thomas Prentice, ou apenas Tom, é um rapaz de seus dezoito anos, acaba de perder os pais no massacre de Londres e esta fugindo, tentando sobreviver. Sua esperanga é despistar os perseguidores no labirinto formado pelo sistema de cavernas do parque arqueolégico do Monte Glastonbury. Na mais profunda das cavernas, Tom descobre uma cripta Ao abri-la, descobre um homem, aparentemente um guerreiro medieval, que acaba de despertar de um sono milenar. Quando os invasores alcangam a galeria da cripta, em instantes, o misterioso guerreiro recupera seus reflexos fenomenais, parte para a luta corpo-a-corpo com os alienigenas e val matando, um por um, todos os inimigos que encontra em seu caminho Impressionado com aquele humano diferente, Tom passa a acompanhalo e depois a conduzi-lo aonde ele ordena O sujeito diz ser o rei Arthur, Tom nao acredita mas, em tempo de guerra, é melhor seguir um maluco bom de briga do que morrer. Assim, os dois chegam a Stonehenge, enfrentam alguns fantasmas ¢ libertam 0 mago Merlin, prisioneiro de um encanto. Vendo os dois juntos, Arthur e Merlin, Tom comesa a acreditar que cles sejam de fato quem dizem ser A misséo de Arthur é clara: unificar todos os povos do mundo sob seu comando ¢ expulsar os invasores Juntos, os trés partem para recuperar Excalibur. A beira de um lago, a espada é invocada uma méo feminina se ergue da agua atendendo ao chamado, devolvendo Excalibur ao rei Subitamente, porém, a arma desaparece A magia de Merlin a transportou para o edificio das Nagées Unidas, onde diante das cémeras de televisio e dos olhares atentos da popularao de diversos paises, ela reaparece encravada numa bigoma e numa rocha (a ‘bigoma esta sobre a rocha que surgiu do nada em plena assembléia-geral da ONU, a espada atravessa os dois objetos). Maquinas, robds e soldados tentam retirar a espada, sem sucesso Finalmente, chega Arthur, abre caminho até 0 local a forga e, com um puxdo, retira Excalibur da rochae da bigoma Os populares entram em éxtase, as autoridades comecam a tremer. Arthur se apresenta como rei da Bretanha e soberano do Império Romano, promete a vitoria contra os alienigenas e um mundo livre, unificado sob uma tinica bandeira Orei Arthur voltou. Os cavaleiros da Tavola Redonda idem Jules Futrele € a reencamarao de Sir Lancelot. A comandante Acton, da rainha Guinevere. Outros cinco cavaleiros também reencamaram: Kay, Gawain, Percival, Galahad e Tristéo. A magia de Merlin faz com que recuperem as lembrangas da Tavola Redonda e estejam novamente prontos para combater a servigo do rei, Uma nova corte é estabelecida na Fortaleza de Futrele, o maior dos asterdides em orbita, agora rebatizada como Nova Camelot, As autoridades constituidas nao gostam dessa histéria, mas decidem aceitar 0 rei até que ele cumpra sua promessa de expulsar os invasores, depois pretendem se livrar dele ¢ dos cavaleiros, Varias batalhas ocorrem antes que todos os segredos sejam revelados e se reinicie ademanda do Santo Graal. Os dramas entre os cavaleiros e as intrigas do diretor de seguranga da ONU dio 0 tom da narrativa enquanto a batalha final nao chega. Lancelot e Guinevere no resistem a paixdo € voltam a ser amantes, para soffimento de Arthur. Galahad, agora um samurai japonés, esta esperando a hora certa para se matar e pagar uma divida de honra Gawain, um negro afficano, nfo consegue parar de pensar na familia e no filho pequeno que deixou para trés Kay, um americano vigarista, so pensa em trapacas. Merlin sabe que a vil por tras da invasdo ¢ Morgana Le Fey, mas nfo sabe onde ela esta. Percival é um neo-humano, um ser geneticamente modificado para ser um monstruoso soldado do regime, pouco inteligente ¢ 62 fortissimo. Tristéo vive atormentado, pois reencamou no (belo) corpo de uma mulher e, agora que recuperou a identidade da vida passada nfo consegue aceitar a situa;ao, principalmente depois de descobrir que sua amada Isolda reencamou também. O jovem Tom, por azar, apaixona-se por Trist@/TristZo e esta armado outro triangulo amoroso, outra confuséo. E quem estava faltando, no est mais. o diabolico diretor de seguranga da ONU que conspira contra o novo reinado de Arthur nfo podia ser outro que no o traigociro Mordred reencamado Depois de muitas peripécias, Arthur ordena uma nova demanda do Graal para curar 0 amigo Tom, gravemente ferido na mesma batalha em que Kay morreu, E a primeira baixa na equipe Percival, por fim, encontra o Graal e cura Tom, sendo transfigurado, libertado de sua forma mortal e partindo como um anjo de fogo para a etemidade. E a segunda baixa na equipe. Lancelot, entao, recebe a missio de sero guardido do Graal. Mas Morgana Mordred querem o objeto sagrado, cada um tem seus motivos, e conseguem obté-lo numa falha de Lancelot, em determinado momento o cavaleiro tem de escolher entre proteger sua dama ou o calice, ele salva aranha, porém perde o Graal para os vildes © climax da historia acontece quando os cavaleiros chegam a Chiron, de onde estéo partindo as naves alienigenas. La esta o castelo de Morgana, onde Merlin foi aprisionado e onde, inevitavelmente, se dara o combate final. Os herdis conseguem chegar ao décimo planeta do sistema solar grazas ao unico foguete para viagens interplanetérias existente na Terra, guardado como segredo de Estado pela ONU. A nave, porém, néo podia voar por falta de uma fonte de energia adequada, Arthur Pendragon logo resolve esse problema, usando o poder magico de Excalibur para energizar o foguete Durante a tomada do castelo, Galahad morre. Sir Lancelot enfrenta Mordred em combate singular, mas, pela primeira vez em sua vida é derrotado. Nao por falta de habilidade, mas porque o viléo fundiu o Graal numa amadura e, por meio deste estratagema, tornou-se imune a qualquer ferimento, O cavaleiro so escapa da morte grayas a chegada providencial de Arthur. O rei consegue matar o usurpador e libertar Merlin, depois manda o mago teleportar os cavaleiros sobreviventes para a Terra e fica sozinho no planeta hostil para terminar de uma vez por todas com Morgana e suas tropas. Usando a magica de Excalibur, provoca uma fissao nuclear e explode com a feiticeira, 0 castelo e as tropas No desfecho, na Terra livre dos invasores, Lancelot e Guinevere ficam finalmente juntos. Tristéo ¢ Isolda também, mesmo sendo do mesmo sexo. Gawain retoma para sua familia, ¢ recebido como herei pelo filho. Tom Prentice aparece lendo Le Morte d Arthur, de Thomas Malory, depois se toma o lider da reconstrusao da Inglaterra E Merlin desaparece, desfaz-se no ar, prometendo voltar um dia, quando o ciclo se reiniciar. Em outra galaxia, um alien encontra uma espada encravada numa rocha, é a magica Excalibur. Ao retira-la, ele se lembra de que, em outra era, foi o rei Arthur. Um novo ciclo arturiano esta comesando Mike Barr aproveitou bastante da Matéria da Bretanha, mas, é claro, criou sua propria versio para certos eventos ou personagens daquela tradipo, tomando sempre cuidado para consirur uma narrativa coerente, sem pontas soltas ou contradisBes internas. Como, desde que Geofifey of Monmouth escreveu a primeira “biografia’ de Arthur em Historia regum Britanniae (Historia dos reis da Bretanha), concluida em 1135 d.C., incontaveis autores foram acrescentando novos elementos a lenda, fazendo aqui ¢ ali pequenas modifi temos hoje uma razoavel quantidade de varia;des sobre os mesmos temas 63 E realmente impossivel criar uma narrativa nova sobre o rei Arthur e seus cavaleiros da Tavola Redonda, que seja uma historia bem contada, com inicio, meio e fim, sem fazer certas escolhas... A Matéria da Bretanha é um tipo de mitologia ¢, assim sendo, qualquer adapta;ao ou verséo atualizada, seja na forma de cinema, teatro, literatura ou quadrinhos, implicara necessariamente em interpretaro, selepéo, corte e edicf0 de elementos preexistentes. ‘A Dama do Lago, o Graal, o amor impossivel de Tristéo ¢ Isolda e a origem de Mordred so os principais elementos que envolvem variages em relapdo a tradi¢go ¢ algumas liberdades autorais Em Camelot 3000, 0 autor Mike Barr no menciona nenhuma vez 0 Rico Rei Pescador. Percival (na primeira encamarao) teve sua visio do Graal, mas nao ha detalhes sobre como isso se deu. Os cavaleiros medievais procuraram, sem encontrar, o célice sagrado. Galahad, filho de Sir Lancelot e Elaine, portanto, nunca foi seu guardifo. Na versio reencamada como samurai japonés, ele continua exemplar, obediente e casto, digno do titulo de Cavaleiro Sem Mancha. Entretanto, sera Lancelot o escolhido para guardar o Santo Graal (¢ falhara..). O Graal, fimdido 4 armadura de Mordred, explodira ao entrar em contato com 0 corpo de Merlin, pois a santidade de um ¢ incompativel com a natureza demoniaca do outro. Apés a grande reapéo nuclear que destruiré o castelo de Morgana, o Graal sera desintegrado, para, logo em seguida, suas moléculas se juntarem novamente ¢ o santificado objeto reaparecer restaurado. De novo, ele desaparece, por magica No dia em que o ciclo recomegar, Lancelot tera de encontré-lo, onde quer que esteja Outro elemento importante da tradigao a softer transformagées é a Dama do Lago. Em Camelot 3000, esse nome néo é citado nenhuma vez, mas ha duas personagens diretamente relacionadas ao mito. A primeira ¢ a fada do lago que guardou Excalibur durante séculos, esperando o retomo do rei. A cena em que ela devolve a espada lembra de imediato 0 filme Excalibur, de John Boorman, produ;éo inglesa de 1980. Saberemos, perto do final da saga de Mike Barr, que ela é Elaine, a mae de Galahad, transformada em fada das aguas por Merlin, depois de muito chorar apds ser abandonada por Lancelot. A segunda é a feiticeira Nyneve, aprendiz e amante de Merlin, que o aprisionou em Stonehenge no passado e agora se aliou a Morgana para aprisionalo em Chiron. Em Lancelot do Lac, romance francés do século XIII, podemos ler a origem da famosa Dama do Lago, a fada que criou Lancelot em seu reino encantado. Ela era Ninienne, aprendiz e amante de Merlin, que, por meio de artimanhas femininas, aprendia com 0 proprio mago as palavras magicas ¢ os passes para aprisionélo para sempre em local secreto. A Nyneve, de Barr, é a Ninienne medieval que se tomou uma feiticeira poderosa, mas néo a Dama do Lago. Na série em quadrinhos, quem mais se aproxima do mito da Dama é atriste Elaine, inclusive porque atua como protetora de Lancelot, seu ex-amado Outra variagéo em Camelot 3000 em relagdo a alguns textos arturianos ¢ a condigao de Tristéo como cavaleiro da Tavola Redonda Em varios desses textos, ele servia apenas como cavaleiro favorito do rei Marcos da Comualha, seu tio e marido de Isolda, sua amada Marcos era vassalo do rei Arthur ¢ era por meio desse laco de vassalagem que o amor impossivel de Tristéo ¢ Isolda se inseria nas lendas arturianas. Entretanto Chrétien, em Brec et Enide, ja associara Tristéo a Tavola Redonda, o que seria repetido na Post-Vulgata e na obra de Malory. Creio que as maiores mudangas em relaro ao que Geoffrey de Monmouth escreveu em Histéria dos reis da Bretanha ¢ em Vida de Merlin estéo nos personagens de Morgana ¢ 64 Mordred, embora sejam mudangas ocorridas ao longo dos séculos, que Barr apenas aproveitou e soube explorar muito bem. © Mordred de Geoffrey de Monmouth era sobrinho do rei, filho de uma de suas ims, assim como Gawain, Ele se tomava o terrivel usurpador ao se aproveitar da condigao de regente, enquanto Arthur estava fora desafiando o Império Romano, para se apoderar do trono ¢ da rainha Morgana aparecia na Vida de Merlin como uma das nove irmas que governam em Avalon, aquela “sabia nas artes de curar” e primeira em formosura Morgana teria levado 0 nobre monarca para seu quatto, “em aureo leito, com méo prudente lhe descobre a chaga, a contempla e por fim diz a0 rei que, se quiser os filtros seus provar, ¢ muito tempo 1a ficar com ela, salvo havera de ser”! Lembra um pouco 0 caso de Hercules, a0 morrer, foi levado ao Olimpo e ganhou a deusa da juventude como esposa, uma justa recompensa por sua vida de aventuras e batalhas. A bela fada Morgana nessa primeira versio, era a amante-recompensa de Arthur, que ficaria usufruindo dos seus favores até 0 ia de retomar a Inglaterra Em Camelot 3000, como em outras versées anteriores, inclusive o ja citado filme Excalibur, Morgana é uma feiticeira, imma de Arthur por parte de mée, ¢ odeia o meio- immo aponto de ter com ele um illo, Mordred, para que esse filo maldito sejao causador da ruina do pai. Sendo assim, quem cuidou do rei durante sua estada em Avalon? E como Asthur saiu de Avalon para a cripta na mais profinda das cavernas é um mistério, nem ele sabe Ah, Mike Barr nada diz sobre Mordred ter tomado a rainha Guinevere para si durante a auséncia do rei. Os dois personagens, reencamados, e com as memorias da vida anterior ja restauradas, sO se encontram uma tinica vez, na cena em que Arthur chega para salvar Lancelot e matar o filho pela segunda vez, Guinevere esta acompanhando o marido assiste a luta sem ter chance de trocar uma palavra sequer com 0 vilao. O édio insano com que Lancelot enfrenta Mordred, porém, talvez néo fosse s6 por causa do roubo do Graal A mais interessante das invengdes de Barr, com certeza, em meio a tantas reencamactes, é aidéia de que os herois e vildes da saga estéo presos a um destino comum, eles morrem, mas nfo se extinguem, porque, de um jeito ou de outro, eles sempre voltam. Eles ¢ o Santo Graal. Entdo, um novo ciclo se iniaia, ¢ alenda recomera, era apds era E, de fato, tem sido assim desde Geofitey of Monmouth, Chrétien de Trayes, Robert de Boron, Sir Thomas Malory e tantos autores andnimos. Das crénicas em latim aos romances em francés, as muitas ¢ variadas narrativas sobre Arthur comegaram e recomecaram, foram copiadas, adaptadas, transformadas, evoluiram. Elementos como Excalibur, a Tavola Redonda e o Graal foram acrescentados aos poucos e hoje séo partes indissoltiveis da lenda dorei Enfim, poderia ter escolhido cinema musica, teatro ou literatura para comentar a permanéncia e as transformagdes da Matéria da Bretanha nas narrativas contemporaneas, pois a forga da mistica arturiana se espalha em multiplas atividades culturais. Se Arthur nunca voltou é porque, na verdade, ele jamais deixou de estar conosco. E nfo pertence mais aos bretdes, nem aos ingleses, pois sua lenda tomou-se universal. Mas, de qualquer maneira, com ou sem loucas aventuras de ficpdo-cientifica, aquele que foi rei na Idade Média continuow rei nos tempos futuros. Cumpriu-se a proft Rex quondam rexque futurus! "FURTADO, 1088, pags. 00 € 91 6 (Obs: Optei por grafar os nomes dos personagens arturianos tal como eles aparecem nas paginas de Camelot 3000, por se tratar da principal narrativa (adaptagao para quadrinhos) comentada neste trabalho. Bibliografia: FELO, Mario. Quadrinhos em agiio: um século de histéria. So Paulo, Modema, 1997. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Séo Paulo, Edigies Loyola, 1996 FURTADO, Antonio. Artur e Alexandre: crénica de dois rets. Sao Paulo, Atica, 1995 FURTADO, Antonio. Aventuras da Tavola Redonda. Petrépolis, Vozes, 2003 RONAL, Paulo. A tradugéo vivida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981 ZINK, Michel (org). Lancelot du Lac. Paris, Collection Lettres Gothiques, Le Livre de Poche, 1991 66 Leir e Rei Lear Renata Christovao Bottino 1. Introdugio O objetivo deste trabalho é comparar “Leir’, crdnica que faz parte da Historia Regum Britanniae de Geoffrey of Monmouth (século XII) ¢ Ret Lear, tragédia de William Shakespeare (século XVII). Estima-se que a historia do rei Leir (da qual existem muitas verses, sendo a primeira delas a de Geoffrey) tenha sido uma das fontes de Shakespeare ao elaborar Rei Lear (Fraser, 1963, p.191). E mais provavel, porém, segundo Fraser, que Shakespeare tenha tido acesso a verséo do livro The chronicles of England Scotland and Ireland de Raphael Holinshed — mais resumida que a de Geoffrey, acabando, por exemplo, quando Leir reassume o trono com a quda da filha mais nova e do genro, um dos reis dos francos — transformando-a em tragédia com um final bem mais dramatico ¢ estrutura mais complexa que as verses da crénica sobre o rei breto Leir O presente trabalho sera organizado da seguinte forma na sero 2, seré analisada a crénica de Geofifey, levando em conta a defimigao de crénica no seu sentido medieval ea relapo entre 0 texto do bispo e o momento histérico da Inglaterra, na serao 3, sera feita uma andlise de Rei Lear, levando-se em conta o tema da ingratidéo dos filhos com os pais, na sepdo 4, serdo resumidas as diferengas e semelhangas entre as narrativas dos dois autores ¢,ma segdo 5, serdo apresentadas as conclusdes Passemos entio a estudar a crdnica de Geofirey of Monmouth. 2. Leir,a crénica de Geoffrey of Monmouth 2.1 O conceito de crénica na Idade Média Antes de analisarmos a crénica de Geoffrey sobre Leir, convém esclarecer qual era 0 sentido de crénica antes do século XIX. Segue abaixo a definigao de Massaud Moisés, no livro A criagdo literdria: Prosa II (p 101) © vocébyulo crénica designava, no inicio da era cristi, uma lista de acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, em sequéncia cronologica, Situada entre os anais ea historia, limitave-se a registrar os eventos sem aprofundar-lhes as causas ou tentar interpreté-los. Em tal acepréo, atingiu seu apice depois do século XII quando (..) se aproximon estrtamente da histotiografia, nfo sem ostentar tacos de ficgo literéria ‘Vale notar que, apesar de situar esse conceito de crénica um pouquinho depois da época de Geoffrey, essa definisao parece se aplicar @ estéria de Leir, ja que Geoffrey escreveu sua histonia dos seis da Bretanha de forma linear (se bem que ele nfo situe muito as datas) endo se sabe o que ele inventou e o que realmente ocosreu er 2.2 A crénica de Geoffrey of Monmouth sobre Leir propriamente dita Na cronica de Geoffrey, que se passa antes da era crist& o rei Leir, ao envelhecer, néo tendo descendéncia masculina decide dividir o reino entre suas trés filhas — Gonorilla, Regau, Cordeilla — e casd-las com homens que ele considerasse aptos a govemar seus dominios. Para saber qual delas deve ficar com a maior parte do reino decide submeté-las a uma prova perguntar qual mais 0 ama Gonorilla responde. mais que a propria alma e Regau diz: mais que qualquer outro. Leir fica feliz e promete casé-las com quem quiserem, com toda a pompa, e da um terso do reino acadauma (No entanto, apds a partilha final ¢ ele quem escolhe os maridos das filhas, casando a mais velha com o Duque de Albania ¢ a do meio com 0 Duque da Comualha). Cordeilla, a filha mais nova e a mais amada pelo pai, decide questionar as irmas, afirmando que ninguém pode dizer que ama um pai tanto assim ando ser que esteja mentindo e que ela sempre o amou como pai na justa medida do que ele vale. Leir fica furioso com a resposta da filha, a considera ingrata e néo percebe sua sinceridade, excluindo-a da partilha, ¢ declara “Nao digo porém, ja que és minha filha, que no te daria a algum estrangeiro que a sorte te oferecesse” (Tradugo de Antonio Furtado) Vale notar a ambiguidade dessa frase, dada pela dupla negativa, e que parece ser um indicio de que o pai no queria que a filha casasse (Furtado, 1999, p.1l). Cordeilla acaba se casando com Agenippus, que possui um tergo da Galia e a aceita mesmo sem dote porque a ama O rei Leir muda a diviséo do reino, ficando com metade das terras e repartindo a outra metade entre Gonorilla e Regau e seus maridos. Vale notar que essa prova de amor a que Leir submete as filhas ¢ a resposta de Cordeilla, que destoa da das isms por ser mais prosaica, so recorrentes em estdrias folcléricas como no conto do Punjabi de nome O rei e suas filhas em que a filha mais nova diz que ama o pai tanto quanto o sal, enquanto as outras dizem ama-lo “como mel” ou “como sorvete” (Furtado, 1999, p.10) — dai Thompson classificar esse motivo como o do” amor como sal”. Isso enriquece a crdnica em termos de conteiido. Depois dessa observapo vejamos como @ crénica prossegue. Depois de um tempo, os duques tomam do rei a parte do reino que lhe cabia e o Duque de Albania passa a sustenté-lo. No entanto, dois anos depois ocorrem brigas entre os quarenta soldados do rei — cuja companhia Ihe confere dignidade — e os empregados da filha, ¢ esta decide que o pai deve-se contentar em reduzi-los a metade. Leir se enfurece ¢ vai para a casa de Regau, s0 que la também ocorrem brigas entre os criados, ¢ a filha do meio ordena que Leir fique com cinco soldados, o que o entristece e o faz procurar novamente a filha mais velha. Gonorilla o trata com crueldade e ingratidao, dizendo que ele 86 pode ficar na casa dela com um soldado e que no vé razéo para que ele, velho e sem poder, queira muitos cavaleiros acompanhando-o O tei Leir se entristece e, ao lembrar as glorias do passado, pensa se néo ¢ melhor procurar a filha mais nova na Gaia, embora tema que ela nao o ajude por ele nfo téla tratado dignamente. Durante a viagem, o rei Leir cai em pranto ao perceber que é apenas 0 terceiro em importéncia entre os principes a bord. Lamenta seu destino e numa lindo trecho relembra o tempo glorioso em que destrocava os inimigos acompanhado de milhares de homens, ¢ reconhece a sinceridade de Cordeilla e a falsidade das filhas mais velhas, que, 86 estando interessadas na riqueza do pai, o deixam na miséria depois que ele Ihes da seu reino Leir chega a Karitia (onde esta Cordeilla) e manda um mensageiro contar 4 filha sobre sua situago, ficando fora da cidade. Cordeilla chora e manda que o mensageiro alimente ¢ arrume o pai com roupas dignas de um rei em outra cidade ¢ providencia quarenta 68 cavaleiros, que devem acompanhar o pai a presensa do rei Aganippus. Essa atitude de Cordeilla ¢ oposta a das irmés, pois demonstra o respeito que ela tem por Leir, devolvendo- Ihe a dignidade. Ao saber que 0 sogro foi expulso da Bretanha, o rei dos francos arma um exército para ajuda-lo a reconquistar seu reino. Leir leva a filha mais nova @ Bretanha e vence os genros traidores, reinando por mais trés anos até falecer, quando Cordeilla o enterra num local subterréneo consagrado a Janus biffonte e assume o trono bretao — bem como o franco, ja que seu marido morre. Cordeilla governa por cinco anos até que seus sobrinhos Marganus ¢ Cunedagius — filhos dos duques de Albania e da Comualha, respectivamente —, indignados com o fato de a Bretanha ser governada por uma mulher, guerreiam contra a tia e a capturam, levando-a 20 suicidio. A principio os dois passam a dividir a ilha mas Marganus se rebela e luta contra o primo sendo derrotado e morto. Cunedagius reina por trinta e cinco anos E interessante notar que a trama da crénica de Geoffrey — simples em termas formais — pode ter sido motivada pelo contexto historico inglés. O século em que o bispo viveu foi marcado por uma guerra civil na Inglaterra causada pelo problema da sucesso de Henrique I Morto 0 herdeiro do trono num naufragio em 1120, havia possibilidade de Matilda, casada com o conde de Anjou e filha de Henrique I, assumir o trono, ja que 0 outro filho do rei, Roberto de Gloucester, era ilegitimo, Henrique I faleceu em 1135, apos reconhecer a filha como sucessora So que dois fatores complicaram a situarao o casamento de Matilda com o conde nfo era muito bem visto pelos nobres, pois temiam que um estrangeiro assumisse o trono, Estev4o, um sobrinho de Henrique I, correu para ser coroado ret em 1136, abrindo guerra contra a arrogante Matilda Foi justamente nessa epoca que o livro de Geoffrey fi escrito, sendo dedicado a Estevéo numa primeira versio ¢ também a Roberto (Furtado, 1999, p.3). E possivel perceber algumas semelhangas entre Leir e Henrique I, bem como entre os casais Matilda e conde de Anjou e Cordeilla e Aganippus. Assim como Leir, Henrique I tem trés filhos. A sucesso dos dois reis também se complica com a intervengéo de outras pessoas da familia (a de Estevdo no caso de Henrique I, e a dos genros —e depois dos filhos destes no reinado de Cordeilla —no caso de Leis). A ligayao entre o marido de Matilda e o de Cordeilla ¢ obvia os dois possuem terras na Bretanha francesa e de alguma forma se envalvem na sucesso dos reis — Aganippus ajuda Leir a conquistar o trono e 0 conde de Anjou ajuda Matilda a invadir a Inglaterra para tentar combater Estevao (so que nfo obtém sucesso, devido a prepoténcia da mulher), além de ser o pai daquele que sucedera Estevao poré fim ao conflito sucessério em 1153: Henrique II. A associagio entre Matilda e Cordeilla também parece nitida, embora a cagula de Leir néo seja prepotente como Matilda Ambas foram casadas com nobres da Bretanha francesa e impedidas de governar plenamente por alguém da familia Vale ressaltar que Geofitey, apesar de afimmar as qualidades do carater de Cordeilla, nfo faz com que ela tenha um final feliz, como se talvez quisesse deixar em aberto a seguinte questo: sera que, mesmo que Matilda fosse como Cordeilla, néo a deixariam governar? Deixar essa questo em aberto pode ter sido uma estrategia de Geoffrey para manter-se neutro, construindo uma personagem feminina capaz de govemar e ao mesmo tempo fazendo com que as forpas conservadoras a impesam de reinar em paz Vale ressaltar que a estoria do rei Leir néo chega a ser tdo tragica — mesmo com o suicidio de Cordeilla — porque Leir de certa forma trunfa sobre a ingratidéo de Gonorilla, Regau ¢ seus maridos. 69

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