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CAPITULO 1 A CRIANGA E A CULTURA LUDICA Gitves Broucére UnisensitéParis Nod ‘TralugSode Ivone Manteanelli crevisiode Tizuko Morhida Kishimoto Toda uma escola de pensamento, retomando os grandes temas romanticos inaugurados por Jean-Paul Richter ¢ E, T. A. Hoffmann, vé no brincar 0 espaco da criacdo cultural por exceléncia. Deve-se a Winnicott a reativacio de um pensamento segundo o qual o espaco ladico vai permitir ao individuo criar e entreter uma relacao aberta e positiva com a cultura: “Se brincar é essencial é porque € brincando que o paciente se mostra criativo”!, Brincar é visto como um mecanis- mo psicolégico que garante ao sujeito manter uma certa distancia em relacio ao real, fiel, na concepcao de Freud, que vé no brincar 0 mo- delo do principio de prazer oposto ao principio de realidade®. Brincar toma-se 0 arquétipo de toda atividade cultural que, como a arte, nao se limita a uma relagdo simples com 0 real’. Mas numa concepcao como essa o paradoxo é que o lugar de emergéncia e de enriquecimento da cultura é pensado fora de toda "Winnicott Jew et ralit, tr. fr, Paris: Gallimard, 1975, p. 26. 2 “Toda crianga que briaca se comporta como um poet, pelo fato de criar um mundo s6 seu, ou, mais exatamente, por transpor as coisas do mundo em que vive para um universo n em acordo com suas conveniéncias.” Sigmund Freud, “La création litéraire et le reve éveille” (1908), in: Essais de psychanalyse appliquee, tr. fr, Paris: Gallimard, 1973, p. 70. °O poeta age como a crianga que brinca; cria um mundo imaginério que leva muito a sério, isto é, que dota de grandes qualidades de afetos, sem deixar de distinguilo claramente da realidade.” Id, ibid. 19 © BRINCAR E SUAS TEORIAS cultura como expresso por exceléncia da subjetividade livre de qual- quer restrig&o, pois esta é ligada a realidade. A cultura nasceria de uma instancia e de um lugar marcados pela independéncia em face de qualquer outra instancia, sob a égide de uma criatividade que poderia desabrochar sem obstéculos. O retrato é sem diivida exagerado, mas traduz a psicologizagao contemporanea do brincar, que faz dele uma instancia do individuo isolado das influéncias do mundo, pelo menos quando a brincadeira real se mostra fiel a essa idéia, recusando, p. ex., qualquer ligacio objetiva muito impositiva, caso do brinquedo conce- bido exteriormente ao ato de brincar. Encontramos aqui de volta 0 mito romantico tao bem ilustrado em L’enfant étranger, de Hoffmann, onde o brinquedo se opée ao verdadeiro ato de brincar. Alguns auto- res negam a qualquer construcdo cultural estavel até mesmo o termo “brincadeira”, “jogo”. Seriam uma apropriacao do “brincar”, essa di- namica essencial ao ser humano. Concencées como essas apresentam o defeito de nao levar em conta a dimensfo social da atividade humana que o jogo, tanto quan- to outros comportamentos, ndo_ pode descartar. Brincar nao é uma dinamica interna do individuo, mas uma atividade dotada de uma sig- nificagao social precisa que, como outras, necessita de aprendizagem. Desejariamos, nesta comunicagéo, explorar as conseqiiéncias desse ponto de vista e dele extrair um modelo de anilise da atividade hidica. O ENRAIZAMENTO SOCIAL DO JOGO Brincar supoe, de inicio, que, no conjunto das atividades huma- nas, algumas sejam repertoriadas e designadas como “brincar” a par- tir de um processo de designagao e de interpretagao complexo. Nao é objetivo desta comunicacao mostrar que esse proceso de designaco varia no tempo de acordo com as diferentes culturas. O Judus latino nao é idéntico ao brincar francés. Cada cultura, em fungao de analogi- as que estabelece, vai construir uma esfera delimitada (de maneira 20 A CRIANGA EA CULTURA LODICA mais vaga que precisa) daquilo que numa determinada cultura é designvel como jogo. O simples fato de utilizar o termo nao é neutro, mas traz em si um certo corte do real, uma certa representagio do mundo. Antes das novas formas de pensar nascidas do Romantismo, nossa cultura parece ter designado como “brincar” uma atividade que se opde a “irabalhar “ (ver Arist6teles e Santo Tomas sobre o assunto), caracterizada por sua futilidade e oposicgao ao que é sério. Foi nesse contexto que a atividade infantil péde ser designada com 0 mesmo termo, mais para salientar os aspectos negativos (oposicdo as tarefas sérias da vida) do que por sua dimensdo positiva, que s6 aparecera quando a revolucao romantica inverter os valores atribuidos aos ter- mos dessa oposicao. Seja como for, o jogo s6 existe dentro de um sistema de desig- nagiio, de interpretagao das atividades humanas', Uma das caracteris- ticas do jogo consiste efetivamente no fato de nao dispor de nenhum comportamento especifico que permitiria separar claramente a ativi- _dade hidica de,aualauer_ontro.compartamento’. O que caracteriza 0 jogo é menos o que se busca do que o modo como se brinca, o estado de espirito com que se brinca. Isso leva a dar muita importancia & nocao de interpretacao, ao considerar uma atividade como Nidica. Quem diz interpretacao supde um contexto cultural subjacente liga- do linguagem, que permite dar sentido as atividades. O jogo se ins- creve num sistema de significagdes que nos leva, p. ex., a interpretar como brincar, em fungéo da imagem que temos dessa atividade, 0 comportamento do bebé, retomando este o termo e integrando-o pro- gressivamente ao seu incipiente sistema de representacao. Se isso é verdadeiro de todos os objetos do mundo, ¢ ainda mais verdadeiro de uma atividade que pressupoe uma interpretacdo especifica de sua re- lagio com o mundo para existir. Se ¢ verdade que ha a expresso de Ver sobre o assunto Jacques Henriot, Sous couleur de jouer ~ La mélaphore ludique, Pais: José Conti, 1980. °*O cariter hidico de um ato nao ver da natureza do que ¢ feito, mas da maneira como € feito... O brincar nfo comporta nenhuma atividade instrumental que the seja propria. Ele tira suas configuragdes de comportamentos de outros sistemas afetivos comportamentals.” P.C. Reynold, “Play, language and human evolution”, ctado por J.S. Bruner, Ledéceloppement de Venfent ~ Savoir-faire, savor dre, Pacis: PULP, 1983, p. 223. © BRINCAR E SUAS TEORIAS um sujeito no jogo, essa expresso insere-se num sistema de significa- ges, em outras palayras, numa cultura que Ihe da sentido. Para que uma atividade seja um jogo € necessario entéo que seja tomada e in- terpretada como tal pelos atores sociais em funcao da imagem que tém dessa atividade. Essa nao é a unica relacao do jogo com uma cultura preexistente, nio é a tinica que invalida a idéia de ver na atividade hidica a fonte da cultura. O segundo ponto que gostariamos de salientar tem seu funda- mento na literatura psicologica que atualmente insiste no proceso de aprendizagem que toma possivel o ato de brincar’, Parece que a crian- ca, longe de saber brincar, deve aprender a brincar, e que as brincadei- ras chamadas de brincadeiras de bebés entre a mie e a crianca sio in- discutivelmente um dos lugares essenciais dessa aprendizagem. A cri- ‘anga comega por se inserir no jogo preexistente da mae mais como um brinquedo do que como uma parceira, antes de desempenhar um pa- pel mais ativo pelas manifestagées de contentamento que vao incitar a mie a continuar brincando. A seguir ela vai poder tornar-se um parcei- ro, assumindo por sua vez o mesmo papel da mae, ainda que de forma desajeitada, p. ex. nas brincadeiras de esconder uma parte do corpo. A crianga aprende assim a reconhecer certas caracteristicas essenciais do jogo: 0 aspecto ficticio, pois o corpo nao desaparece de verdade, trata- se de um faz-de-conta; a inversio dos papéis; a repeticao que mostra que a brincadeira no modifica a realidade, ja que se pode sempre vol tar ao inicio; a necessidade de um acordo entre parceiros, mesmo que a crianca nao consiga aceitar uma recusa do parceiro em continuar brin- cando. Ha, portanto, estruturas preexistentes que definem a atividade hidica em geral e cada brincadeira em particular, e a crianga as apreen- de antes de utiliza-las em novos contextos, sozinha, em brincadeiras solitérias, ou entéo com outras criangas. Nao se trata aqui de expor a agénese do jogo na crianga, mas de considerar a presenga de uma cultura preexistente que define o jogo, torna-o possivel e faz dele, mesmo em "Pode se centamenie citar novamente Jorome Bruner, particularmente om sua to bela obra hilt’ talk: learning to we language, Oxford: Oxford University Press, 1983, que vilizei do onto de vista de uma analise do jogo em Gilles Brougere, “How to change words into play”, Communication & Cogition, vo. 27, 3 (198), pp. 273-286. A CRIANGA EA CULTURA LUDICN suas formas solitérias, uma atividade cultural que supe a aquisigio de estruturas que a crianca vai assimilar de maneira mais ou menos personalizada para cada nova atividade lidica. Que tentam provar esses exemplos sendo a idéia de que antes de ser um lugar de criacao cultural, 0 jogo ¢ um produto cultural, dotado de uma certa autonomia? Conseqiientemente o primeiro efeito do jogo nao entrar na cultura de uma forma geral, mas aprender essa cultura particular que é a do jogo. Esquecemo-nos facilmente de que quando se brinca se aprende antes de tudo a brincar, a controlar um universo simbélico particular. Isso se torna evidente se pensarmos no jogo do xadrez ou nos espories, em que 0 jogo é a ocasio de se pro- gredir nas habilidades cxigidas no proprio jogo. Isso nao significa que nao se possa transferi-las para outros campos, mas aprende-se primei- ramente aquilo que se relaciona com o jogo para depois aplicar as competéncias adquiridas a outros terrenos nao hidicos da vida, Por isso 6 necessario aprender a contar antes de participar de jogos que usam os mimeros. O jogo supde uma cultura especifica ao jogo, mas também o que se costuma chamar de cultura geral: os pré-requisitos. A idéia que gostariamos de propor e tratar a titulo de hipotese é a existéncia de uma cultura hidica, conjunto de regras e significacdes proprias do jogo que o jogador adquire e domina no contexto de seu jogo. Em vez de ver no jogo o lugar de desenvolvimento da cultura, € necessario ver nele simplesmente o lugar de emergéncia e de enrique- cimento dessa cultura lidica, essa mesma que torna o jogo possivel e permite enriquecer progressivamente a atividade lidica. O jogador precisa partilhar dessa cultura para poder jogar. ‘TENTATIVA DE DESCRICAO DA CULTURA LUDICA ‘Tentaremos definir as caracteristicas dessa cultura ltidica antes de examinar as relagées que ela estabelece com o conjunto da cultu- ra, € as conseqtiéncias que isso pode ter sobre a relacdo da crianca © BRINCAR E SUAS TEORIAS com a cultura numa perspectiva nao mais psicolégica mas antropo- logica. A cultura hidica é antes de tudo um conjunto de procedimentos que permitem tornar o jogo possivel. Com Bateson e Goffman’ consi- deramos efetivamente o jogo como uma atividade de segundo grau, isto é, uma atividade que supée atribuir as significagdes de vida co- mum um outro sentido, o que remete a idéia de fazer-de-conta, de ruptura com as significagdes da vida quotidiana. Dispor de uma cultu- ra lidica é dispor de um certo niimero de referéncias que permitem interpretat como jogo atividades que poderiam nao ser vistas como tais por outras pessoas. Assim é que sio raras as criangas que se enga- nam quando se trata de discriminar no recreio uma briga de verdade e uma briga de brincadeira, Isso nao ¢ facil para os adultos, sobretudo para aqueles que em suas atividades quotidianas se encontram mais afastados das criangas, Nao dispor dessas referéncias é néo poder brin. car, Seria por exemplo reagir com socos de verdade a um convite para uma briga ltidica, Se o jogo € questio de interpretacao, a cultura lidica fornece referéncias intersubjetivas a essa interpretagao, 0 que nao impede evidentemente os erros de interpretacao. A cultura lidica é, entio, composta de um certo mimero de es- quemas que permitem iniciar a brincadeira, ja que se trata de produ- zir uma realidade diferente daquela da vida quotidiana: os verbos no imperfeito, as quadrinhas, os gestas estereotipados do inicio das brin- cadeiras compdem assim aquele vocabulario cuja aquisicao é indis- pensavel ao jogo. A cultura ltidica compreende evidentemente estruturas de jogo que nao se limitam as de jogos com regras. O conjunto das regras de jogo disponiveis para os participantes numa determinada sociedade compée a cultura hidica dessa sociedade e as regras que um individuo conhece compéem sua propria cultura lidiea. O fato de se tratar de {jogos tradicionais ou de jogos recentes nao interfere na questo, mas 6 Gregory Bateson, “A theory of play and fantasy”, in: Steps of an ecology of mind, St. Albans, ‘Herts, Al: Paladin, 1973. Erving Goffman, Frame anabss~ an esa ofthe organization of experience, ‘Nova York: Harper and Row, 1974 4 A CRIANGA EA CULTURA LODICA preciso saber que essa cultura das regras individualiza-se, particulari- za-se. Certos grupos adotam regras especificas. A cultura lidica nao é um bloco monolitico mas um conjunto vivo, diversificado conforme 0s individuos e os grupos, em fungi dos habitos hidicos, das condi- ges climéticas ou espaciais. Mas a cultura lidica compreende o que se poderia chamar de esquemas de brincadeiras, para distingui-los das regras stricto sensu. Trata-se de regras vagas, de estruturas gerais e imprecisas que permi- tem organizar jogos de imitagdo ou de ficgéo. Encontram-se brinca- deiras do tipo “papai e mamie” em que as criangas dispdem de esque- mas que sio uma combinagio complexa da observacao da realidade social, habitos de jogo e suportes materiais disponiveis. Da mesma forma, sistemas de oposigdes entre os mocinhos ¢ os bandidos consti- tuem esquemas bem gerais utilizdveis em jogos muito diferentes. A cultura lidica evolui com as transposigdes do esquema de um tema para outro. Finalmente, a cultura hidica compreende contewdos mais preci- sos que vém revestir essas estruturas gerais, sob a forma de um perso- nagem (Superman ou qualquer outro) e produzem jogos particulares em fungao dos interesses das criancas, das modas, da atualidade. A cultura lidica se apodera de elementos da cultura do meio-ambiente da crianga para aclimaté-la ao jogo. Essa cultura diversifica-se segundo numerosos critérios. Evidente- mente, em primeiro lugar, a cultura em que esta inserida a crianca e sua cultura ltidica. As culturas ltidicas nao sao (ainda?) idénticas no Japao e nos Estados Unidos. Elas se diversificam também conforme 0 meio social, a cidade e mais ainda o sexo da crianga. E. evidente que nao se pode ter a mesma cultura lidica aos 4 € aos 12 anos, mas é interessante observar que a cultura lidica das meninas e dos meninos € ainda hoje marcada por grandes diferencas, embora possam ter al- guns elementos em comum. Pode-se analisar nossa época destacando as especificidades da cul- tura lidica contemporanea, ligadas as caracteristicas da experiéncia hidica em relacéo, entre outras, com o meio-ambiente e os suportes 25 0 BRINGAR E SUAS TEORIAS de que a crianga dispe. Assim desenvolveram-se formas solitarias de jogos, na realidade interagoes sociais diferidas através de objetos porta- dores de ages de significagoes. Uma das caracteristicas de nosso tempo é a multiplicacao dos brinquedos, Pode-se evocar alguns exem- plos como a importancia que adquiriram os bonecos, freqiientemente ligados a universos imaginarios, valorizando o jogo de projeco num mundo de miniatura. Esse tipo de jogo nao é novo, entretanto a cultu- ra lidica contempordnea enriqueceu € aumentou a importancia dessa estrutura lidica. Nao podemos deixar de citar os videogames: uma nova técnica cria novas experiéncias hidicas que transformam a cultura idica de muitas criancas. Tido isso mostra a importaneia do objeto na constituicao da cultura hidica contemporanea. A PRODUCAO DA CULTURA LUDICA Seria interessante tentar levantar hipoteses sobre a producao des- sa cultura hidica. Na realidade, como qualquer cultura, ela nao existe pairando acima de nossas cabecas, mas € produzida pelos individuos que dela participam. Existe na medida em que é ativada por opera- ges concretas que sio as préprias atividades lidicas. Pode-se dizer que é produzida por um duplo movimento interno e externo. A crian- ca.adquire, constréi sua cultura hidica brincando. E 0 conjunto de sua experiéncia Itidica acumulada, comecando pelas primeiras brincadei- ras de bebé evocadas anteriormente, que constitui sua cultura hidica. Essa experiéncia é adquirida pela participagdo em jogos com os com- panheiros, pela observacao de outras criancas (podemos ver no re- creio os pequenos olhando os mais velhos antes de se lancarem por sua vez na mesma brincadeira), pela manipulagao cada vez maior de * Sobre a anilise do bringuedo moderno pode-se consular Giles Brougere (dit), Le jouer, audrement 2. 133, novembro de 1962, Brian Sutton Smith, Tyas elture, Nova York: Gardner Pres, 186, Stephen Kine, Ou ofthe garden ~ Teva hides cata theo of TV maretng Toronio: Garamond Press, Londres: verso, 1093, %6 A CRIANGA EA CULTURA LODIES objetos de jogo. Essa experiéncia permite o enriquecimento do jogo em fungao evidentemente das competéncias da crianga, e 6 nesse ni- vel que o substrato biolégico e psicologico intervém para determinar do que a crianga é capaz. Os jogos de ficgao supdem a aquisigao da capacidade de simbolizacio para existirem. O desenvolvimento da crianga determina as experiéncias possiveis, mas no produz por si mesmo a cultura lidica. Esta origina-se das interagées sociais, do contacto direto ou indireto (manipulagdo do brinquedo: quem 0 con- cebeu nio est presente, mas trata-se realmente de uma interagdo social). A cultura hidica como toda cultura é 0 produto da interagéo social’ que langa suas raizes, como jé foi dito, na interagio precoce entre a mae e o bebe. Isso significa que essa experiéncia nao € transferida para o indivi- duo. Ele é um co-construtor. Toda interacao supde efetivamente uma interpretagdo das significagdes dadas aos objetos dessa interagao (in- dividuos, agdes, objetos materiais), e a crianga vai agir em fungio da significagao que vai dar a esses objetos, adaptando-se a reagdo dos outros elementos da interagao, para reagir também e produzir assim novas significagdes que vao ser interpretadas pelos outros. A cultura lidica, visto resultar de uma experiéncia liidica, € entio produzida pelo sujeito social. O termo “construgao” é mais legitimamente empre- gado em Sociologia, mas percebe-se aqui uma dimensao de criago, se concordarmos sobre a definigdo desse termo. Voltaremos ao assunto. Mas a cultura hidica, mesmo que esse isolamento conceitual corresponda mais a uma necessidade de clareza na exposigao do que a.uma realidade, é também objeto de uma producao externa. De fato, essa experiéncia se alimenta continuamente de elementos vindos do exterior, nao oriundos do jogo. A cultura lidica ndo esta isolada da cultura geral. Essa influencia é multiforme e comega com 0 ambiente, as condigdes materiais. As proibigdes dos pais, dos mestres, 0 espago colocado a disposicao da escola, na cidade, em casa, vo pesar sobre a * Referimo-nos de manera implica & corrente dointeraconismo simbilico, tal como vem Aefnido em Herbort Blumer, Sybaicinferecinion~ perspective nd mend, [960], Berkely Universiy of California Pros, 1986 0 BRINCAR E SUAS TEORIAS experiéncia Kidica. Mas o processo indireto, j4 que ai também se trata de uma interago simbélica, pois, a0 brincar, a crianga interpreta os elementos que serao inseridos, de acordo com sua interpretacao nao diretamente. Alguns elementos parecem ter uma incidéncia especial sobre a cultura lidica, Trata-se hoje da cultura oferecida pela midia, com a qual as criancas esto em contato: a televisio e o brinquedo. A televi- sio assim como o brinquedo transmitem hoje contetidos e as vezes esquemas que contribuem para a modificagao da cultura hidica que vem se tornando internacional. Mas, embora arriscando-me a repetir, eu diria que o processo é 0 mesmo. Barbie intervém no jogo na base da interpretagao que a crianca fax das significagoes que ela traz”. De uma certa forma esses novos modos de transmissao substituiram os modos antigos de transmissio oral dentro de uma faixa etéria, pro- pondo modelos de atividades lidicas ou de objetos ltidicos a construir. Nao estamos dizendo que o sistema antigo foi menos impositivo, de forma alguma. Na realidade, ha jogo quando a crianga dispée de significacdes, de esquemas em estruturas que ela constroi no contexto de interagoes sociais que Ihe dao acesso a eles. Assim ela co-produz.sua cultura liidica, diversificada conforme os individuos, o sexo, a idade, o meio social. Efetivamente, de acordo com esas categorias, as experiéncias ¢ as interagdes serao diferentes. Meninas e meninos nao fardo as inesmas experiéncias € as interagdes (com os brinquedos que ganham, p. ex.) no serio as mesmas. Entio, portadores de uma experiéncia kidica acumulada, 0 uso que fario dos mesmos brinquedos serd diferente Observamos meninas e meninos brincando com bonecos fantasticos idénticos (da série He-Man, Mestres do Universo) Os meninos inventa- ‘vam jogos de guerra bastante semelhantes @ outros jogos com outros objetos, jé as meninas, em numerosos casos, utilizavam os bonecos para reproduzir os atos essenciais da vida quotidiana (comer, dormir..., reproduzindo os esquemas de acdo usados com as bonecas. Desco- A eme respeiio ver Gilles Brougére, “Désirs actuels et images e'avenir dans le eu", in Ledacation par lj et Voncironnement, 0,47, 3 ttimestte 1992. 28 A CRIANGA EA CULTURA LUDICA bre-se assim uma combinagio, uma negociago entre as significacdes veiculadas pelos objetos hidicos e as de que as eriancas dispoem gra- as a experiéncia lidica anterior. Evidentemente deve-se desconfiar das palavras que usamos e evi- tarque a cultura lidica se constitua em substincia: ela s6 existe potencial- mente: trata-se do conjunto de elementos de que uma crianca pode valer-se para seus jogos. Da mesma maneira que a linguagem com suas regras e palavras, ela existe apenas como virtualidade. Mas 0 jogo deixa menos marcas que a linguagem, e ha os que pensam que ele s6 pode ser associado a subjetividade de um indivi- duo que obedece ao principio do prazer. Trata-se de fato de um ato social que produz uma cultura (um conjunto de significagGes) especifi- ca e ao mesmo tempo é produzido por uma cultura. Limitamo-nos a cultura hidica infantil, mas existe também uma cultura lidica adulta, e @ preciso igualmente situa-la dentro da cultura infantil, isto €, no interior de um conjunto de significagdes produzidas para ¢ pela crianga. A sociedade propée numerosos produtos (livros, filmes, brinquedos) as criangas. Esses produtos integram as representa- {goes que os adultos fazem das criancas, bem como os conhecimentos sobre a crianga dispontveis numa determinada época. Mas 0 que carac- teriza a cultura lidica é que apenas em parte ela é uma producao da sociedade adulta, pelas restrigdes materiais impostas & crianga. Ela é igualmente a reagio da crianga ao conjunto das propostas culturais, das interagdes que Ihe sao mais ou menos impostas. Dai advém a riqueza, mas também a complexidade de uma cultura em que se encontram tanto as marcas das concepgdes adultas quanto a forma como a crianga se adapta a elas. Os analistas acentuam, entio, uns, 0 condicionamento, outros, a inventividade, a criago infantil. Mas o interessante 6 justa- mente poder considerar os dois aspectos presentes num processo com- plexo de producdo de significagdes pelas criangas. E claro que 0 jogo é controlado pelos adultos por diferentes meios, mas ha na interagio lidica, solitéria ¢ coletiva, algo de irredutivel aos constrangimentos e suportes iniciais: é a reformulagdo disso pela interpretagdo da crianga, a abertura produgio de significagSes inassimilaveis &s condigdes preliminares. 9 © BRINGAR £ SUAS TEORIAS ALGU! [AS CONSEQUENCIAS DE NOSSA ANALISE Que conseqiiéncias extrair desta répida andlise que tinha por ob- jetivo fornecer um quadro de referéncias a uma interpretagio socioantropologica do jogo? jogo € antes de tudo o lugar de construgao (ou de criagdo, mas esta palavra 6, as vezes, perigosal) de uma cultura lidica. Ver nele a invengao da cultura geral falta ainda ser provado. Existe realmente uma relagdo profunda entre jogo e cultura, jogo e producao de signifi- cacées, mas no sentido de que o jogo produz a cultura que ele proprio requer para existir. E, uma cultura rica, complexa e diversificada. Mas esse jogo, longe de ser a expressiio livre de uma subjetivida- de, é 0 produto de miiltiplas interagdes sociais, ¢ isso desde a sua emer- géncia na crianga. E necesséria a existéncia do social, de significagoes a partilhar, de possibilidades de interpretagao, portanto, de cultura, para haver jogo. Isso supde encontrar uma definicio mais restritiva que o habitual para a palavra jogo, ¢ separé-lo, como fezem cada vez mais os pesquisadores' ', da exploracao - comportamento (comporta- mento de exploracao) encontrado no animal eno homem, e que pode ser anterior emergéncia de uma interacdo social. Para nés, acompa- nhando nesse ponto Bateson, o jogo supée um acordo a respeito do estatuto da comunicacao, nao sendo impossivel que certas espécies animais sejam capazes desse comportamento social elementar. Mas acima de seu substrato natural, biolégico, 0 jogo, como qualquer ativi dade humana, s6 se desenvolve e tem sentido no contexto das interagoes simbolicas, da cultura. Que é feito entdo da criatividade atribuida ao jogo desde a revo: lugio romantica? Se definirmos a nogio de criatividade a partir das teses de Chomsky! , poderemos retomar essa questao relativamente T Ver, por exemplo,S. John Hutt et ali, Play, explora schoo, Londres : Routledge, 1989, *N. Chomsky. La lingustiquecartsienne [1966], tf. Pris: Le Seuil, 1969. Segundo esse autor, hi dois ipos de criatvidade, aquela que moxifca as regras, reqlentemente conside- rada com exclusio da outra,e « que € engendrada pelas proprias regras. Chomsky mostou and earning - A natural history of re 30 A CRIANGA EA CULTURA LUDICA ao jogo. A partir de palavras e estruturas gramaticais conhecidas, 0 lo- cutor pode pronunciar enunciados que jamais ouviu, que sao novos para ele, embora milhares de outras pessoas possam té-los pronunciado an- tes dele. Esse exemplo permite-nos redefinir a nocio, que se tomou usual, de criatividade. Ela € compativel com a nogdo de regra, pois nas- ce do respeito de um conjunto de regras. E essencial e corrente na lin- gua. A criatividade é a possibilidade de usar a linguagem para produzir enunciados pessoais, especificos, novos, e nao a de repetir enunciados ouvidos ou aprendidos, seja qual for o valor intrinseco desses enuncia- dos. Criatividade nao significa originalidade. Dizer pela primeira vez, sem té-Jo ouvido antes, um enunciado produzido por outros, milhares de vezes, é usar a dimensao criativa da lingua, sem com isso ser original. Cada pessoa pode criar no seu nivel pessoal, sem que isso signifique uma criacao da humanidade tomada globalmente. Reservar a ctiatividade & aparigdo de um enunciado absolutamente novo na hist6- ria da humanidade seria reduzi-la a excegio. O Romantismo sobrevalorizou a nogdo de criatividade, associando-a estreitamente & arte, ¢ isso no contexto de uma nova visio da atividade artistica de que somos os herdeiros. A arte torna-se o exemplo privilegiado da criatividade e em troca nao ha verdadeira criatividade fora da arte. As- sim, 0 poder criador da linguagem 6 se expressaria realmente na poe- sia, Para Schlegel a lingua comum é uma forma de arte primordial, mas 86 a poesia revela as potencialidades criativas da lingua. Nao ha verda- deiramente criagao e imaginacao se nao houver poesia. Além do mais, a crianga e 0 poeta estio em relacao estreita. Relativamente & anélise do jogo, é preciso voltar a uma noco nao “romantizada” da eriatividade. Trata'se de abordar a dimensio criativa do jogo, conferindo a essa como, de Descartes a Humboldt, a Lingiistica dos séculos XVII a XIX percebeu exsa dlimensdo critiva que a Lingistica modem nem sempre tomou em consideracéo, O aspec- to criador da lingua evidencia, segundo Chorasky, na wilha de Descartes e seus dseipulos, ‘a capacidade humana de inovar, Para a Filosofia cassia & essa earacterstica que distingue o hhomem do autémato ou do animal. A conseqitincia& que a lingua nio fiea redurida a uma funcéo de comunicacdo (reacao adequada a estimulos } mas ¢ igualmente “um instrumento para exprimirlivremente 0 pensamento e para reagir a situagdes novas" (op. cit, p. 36). «ssa caracterstca da lingua que permite ao homem evadir-se ao mesmo tempo da situagio presente e dos modelos de uso da lingua com que esti familiarizado. Pode petsonalizar suas ‘mensagens, evocar 0 que nio existe, inventar, inovar, permanecendo numa situagio de comunicagio possvel, isto 6 de ser comprcendide por outros, 0 que supde 0 respeito das regras lingiisticas ¢ gramatiais. Ciagio e respeito as regras caminham Indo a lado. © BRINGAK E SUAS TEORIAS nogio o sentido chomskyano da criatividade, aceitando as semelhan- as entre jogo ¢ linguagem. Aceitemos a banalidade da criatividade Segundo esse modelo, quem brinca se serve de elementos culturais heterogéneos para construir sua propria cultura hidica com significa- Ges individualizadas. Resta uma tiltima questo, a de saber se o jogo poderia ser um meio privilegiado de acesso a cultura. E indiscutivel que a cultura lidica participa do processo de socializacio da crianga. Deve-se considerar que sua contribuicao é essencial? Parece-me dificil de provar. Os que defendem esse ponto de vista parecem movidos mais pelo interesse pelo jogo do que por resultados cientificos. Mas dizer que o jogo ea cultura hidica contribuem para a socializagao nada significa, na medi da em que se pode dizer o mesmo de todas as experiéncias da crianga. A titulo de hipétese pode-se ir mais longe. A importancia das diferen- gas sexuais na cultura Itidica pode indicar-nos o papel que ela pode representar na construgio da identidade sexual! ®, Mas parece-me in- teressante ressaltar um outro aspecto mais estrutural. O processo usa- do na construgao da cultura Indica tem todos os aspectos mais com- plexos da construcao de significagdes pelo ser humano (papel da ex- periéncia, aprendizagem progressiva, elementos heterogéneos prove- nientes de fontes diversas, importancia da interacao, da interpretagao, diversificaco da cultura conforme diferentes critérios, importancia da criatividade no sentido chomskyano), e nao € por acaso que 0 jogo freqiientemente é tomado como modelo de funcionamento social pelos socidlogos. Pode-se entio considerar que através do jogo a crianga faz a experiencia do proceso cultural, da interagao simbélica em toda a sua complexidade. Dai a tentagao de consider: como origem da cultura. Pode-se imaginar que isso no pode ocorrer sem produzir aprendizagens nesse campo, o que coloca o problema delicado da transferenciabilidade. Seja como for, a experiéncia hidica aparece como um processo cultural suficientemente rico em si mes- mo para merecer ser analisado mesmo que nio tivesse influéncia so- bre outros processos culturais mais amplos. lo sob diversas formas Sobre esse asaunto, cs Pierre Tap, Masculine frinin chez Uyfant, Toulouse: Privat, 1985. 32

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